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EE) ere CRUE Hy ‘owsijen}xa,u09 MSU EC TUM RCT Ey euegin e109} Y EROn TAWA Eh 20) COLIN ROWE E FRED KOETTER . CIDADE-COLAGEM Uma das teorias urbenas norte-americanas de msior influéncia no periodo pés- modeino 6 2 que Colin Rowe e Fred Koetter desenvotveram no livro Collage City {[Cidade-colagem, escrito em 1973 e publicado em 1978. O excerto incluido neste 3 cepitulo foi publicado na revista mensal britanica Architectural Review, em 1975, j fe contém as seguintes segdes: “Depois do milénio”, “As crises do objeto: o im- passe da textura”, "Cidade-coliséo e a politica da bricolagem” e “Cidade-colagem e ea reconquista do tempo". Os problemas do urbanismo moderno tratados na dos autores foram posteriormente resumidos por Rowe em termos pseudopsica- falticos nas expressoes “fxao80 no objeto, culto do Zeitgeist, inveja da fisica (ou pseudo- ciéncial e stradaphotia".' 0 “diagnéstico” de Rowe e Koetter baseou-se numa pesquisa que um grupo de alunos, « professores de Universidade de Cornel realizou ern Roma, cidade muito admirads como modelo do urbanismo tradicional. A adoro do dualismo figura/fundo como instrumento de andige do urbano despertou um novo interesse pela planta de Roma feita em 1748 por Noli ‘ds desenhos de Noll ressaltam 0 papel dos espagos pibico e privado na determinagéo do cartter da cidade. A principal descoberta do grupo de pesquisadores de Cornell foi que a arqitetura moderna hava invertido a proporgso entre espace “livre” © espaco construido, pyoduzindo resultados desastrosos no nivel da rua. Privilegiando @ construgéo de objetos, ‘omodemismo criou éreas sem vida no espaco urbano, as quais dividiram vizinhaneas, 'so- laram pessoas @ isolaram as edificagdes de seu entorno, Apesar de convenientes pare os automoveis, faltava a essas dreas desabitadas as caracteristicas de fechamento e de escale tumane to tipicas dos espacos publicos da Europa pré-moderna (cap. 9). Accritica de Rowe e Koetter prossegue com uma revise dos modelos de utopia ur ‘bana vigentes por volta de 1965, que variavern do “nostaigico” ao “profético”. Esses die ferentes modelos so importantes quando considerados em relagdo uns aos OUtTOS, mas vistos separadamente sao rejeitados por serem demasiadamente radicais. Em lugar deles, Rowe e Koetter propdem a node da colagem como uma técnica e um “estado de espirito” “tingid cle ume certa ronia. Os autores propdem esse método fragmentério como solugso sem sacrificar a possibilidade de um pluralismno democrético: lagem [..] poderia ser um meio de admitir a emancipacao e de permit a todos de uma situagéo pluralista sua expressao legitime” mnie, @teoria de Rowe e Koetter ¢ influenciada pelos escritos pro-democrat do lésofo austriaco do século XX Kerl Popper, que defendem a necessidade de evitar cosrtitivos e totalizantes. Essa concepgéo antitotaitaria liga os autores 0 penso- ‘como JOrgen Habermas, Jacques Derrida e JeanrFrangois Lyotard to de Rowe e Koetter de que construir inevitavelmente envolve julzos de contetido ético da boa sociedade é reiterado por Philip Bess © Kersten Har- ‘Cidade-colagem” ¢ 0 livro de Venturi Complexidade contradicéo (cep.1) Contém argumentos inclusivos (ordem/desordem, “acomodacao @ co, como” etc), 6 preciso distinguir 0 enfoque pluralista de Rowe @ de Venturi. A forma e a intengéo das oposigées (resumidas na ex, © coexisténcia") sao similares nas duas obras. Rowe, influenciados pela concepeao de ambivaléncia da teor Plicidade de leituras. Mas as diferengas afloram com mais nitidez no livto posterior de Venturi, com Las Vegas, escrito em parceria com Denise Scott Brown € Steven Ia fragmento neste capitulo). A posi¢ao populista destes ultimos evita deli implicagoes politicas de sua pesquisa, na medida em que recusa todo j bre 0 corredor comercial de Las Vegas. Jé Rowe e Koetter, mais compr questées éticas, veem com entusiasmo a hipétese de uma sociedad urbanismo que admite a mudanca. existéncia’, « Koetter da rag _ PEESSE0 “scomoascr Koetter @ Venturi foram igualms? 'a da Gestalt, que permite anna r Aprendends fENOUT (Ver um iberadamente as U%20 de valor so. }ometidos com ag Pluralista@ de um 1. Colin Rowe, “The Present Urban Predicament", Cornell Joumal of Architecture 1, 1981, p. 7, 2. bid. pp. 17-18 COLIN ROWE E FRED KOETTER Cidade-colagem DEPOIS DO MILENIO A cidade da arquitetura moderna, que ja se tornou uma realidade quase irresistivel, comegou a atrair muitas criticas e suscitou dois estilos bem diferentes de reagio, n- nhum deles recente. Em suas origens, pode ser que essa cidade tenha sido uma res- posta simbdlica as rupturas sociais e psicolégicas provocadas pela Primeira Guerra ‘Mundial e pela Revolugdo Russa; e um estilo de reagao foi o de declarar a insuficiéncia do gesto inicial. A arquitetura moderna nao foi longe o bastante. Talvea a ruptura seja um valor em si; talvez devéssemos ter mais rupturas; quem sabe abragando esperan- ‘sosamente a tecnologia. Hoje, devemos nos preparar para uma espécie de surfe com putadorizado sobre e por entre as marés do tempo hegeliano em diregao a um posse porto supremo de emancipagao. Esta poderia ser uma inferéncia aproximada da imagem do Archigram; mas qu remos comparé-la com uma imagem cuja inferéncia é justo 0 oposto. Como uma Te sos iber eli po facto, Faben seisot ‘aeamente, Li Peatratodaa de ionimagin rf. ALLE f ll an eee Lif LEE se \ da paisagem urbana, a praca do caibshd A primeira fthagad scaaaa anit consciente de tencionalmente nostélgica,¢, se ambas sio totalmente airs i we guna pretend sugerir tod vitalidade de um futuro imaginacn i otiedade de io a aleatoriedade da outra pretende aludir a todas ay dig rene sais que poderiam ter sido provocadas pelos acidentes do tempo, Awe ooo um mercado inglés (que também poderia ser na ey rihiee de aval (0 atalidade correspondendo a 1950, mais ou menos) tambers og eee todas as acumulagdes e vicissitudes da histéria, >peomtttorde ‘Com isso, no estamos fazendo uma apreciacao da imagens, nem ee qual i € mais necesséria, de certo modo andloga. As duas partes so, em us ina Beary ard Mca Nos (cm ens eee aioe encenas num deserto, com uma fantistica montanha o funda) eo Adm ern eho (uma cena forjada que insiste em que as coisas hoje s8o muito mais peti as que jamais o foram). Uma é um produto do Superstudio, Tecentemente exibido pelo Museu de Arte Moderna, ea outra é uma maquete para a Main Street da Dinneylindig Eo argumento pode ser muito simples. O Superstudio reconhece publicamente que idealiza todas as formas fisicasartfciais,objetos, edficios, como coerctines et rinicos, destinados a restringir uma provavel liberdade marcusiana de escolha, Objetos, edifcios, formas fisica sao e devem ser considerados dispensives,e a vida ideal deve serirrestrita e ndmade ~ tudo 0 que precisamos é de um grupo de coordenadas carte- sianas (representantes de uma estrutura eletrOnica universal); depois, estando conecta- dosa essa rede de liberdade (ou viajando aleatoriamente através dela), a consequéncia natural seré, ipso facto, uma existéncia feliz e harmoniosa. Pois bem, se isso traduz razoavelmente a poesia da imagem do Superstudio, nao a distorce seriamente. Liberdade significa liberdade em relacdo as coisas ~ liberdade re- lativamente a toda a desordem de Veneza, Florenca, Roma; liberdade para explorar um eterno Arizona imaginario, estender-se na esperanga de tirar sustento do cacto ocasio- nal~eaideia de tal absoluta simplicidade s6 pode ser sedutora. Todos aqueles edificios engragados de Le Corbusier desapareceram, todas aquelas extravagincias tecnolégicas do grupo Archigram foram declaradas obsoletas. Em compensagio, aqui estamos nés como realmente somos, nus, verdadeiros, sem culpas e sem ofensas -tirante, é claro, a certeza de que, ali pertinho, existe um excelente restaurante e um Lamborghini pronto Para nos levar até 14. Dados os pressupostos da imagem italiana, podemos aceitar sua logica; mas, como lum cabedal bésico da ficgo cientifica, a imagem ainda autoriza a consideragao da Dis- neyléndia como um reductio ad absurdum da paisagem urbana. Pois este nao € um Ari- ona de fantasia, trégico apesar de tudo, mas uma Main Street de comédia musical. present a ualidade de cada uma dessas » mas introduzindo uma compa- Aparentemente, a privagio pode assumir diversas formas, e seja lé 0 que signifique uma liberdade abstrata (Nao me confinem ou Por favor, me confinem s6 um pouquinho), a liberdade em Florenga talvez nao seja a mesma coisa que a liberdade em Dubuque, Mas isso é mera intuigao de que, assim como hé um senso de abundancia na Ilia, hg ‘um senso de privagio em Iowa, pois nos lugares em que ha muito tempo prepondera a realidade de uma rede perfeitamente cartesiana de cidades, de estradas rurais ou de campos, e onde essa rede contém um minimo de interpolagies, rede e interpolagoes assumem consequéncias diversas do que poderiam realizar em outros lugares. A rede deixa de ser um ideal desejavel, as interpolagdes deixam de ser uma realidade desagra- divel - a primeira se torna um fardo um tanto cansativo da vida, as interpolagdes uma complicagao ja esperada. Se esse argumento for admissivel, poderiamos, talvez, chegar a duas conclusdes: 1. que o sucesso da Walt Disney Enterprises reside em proporcionar interpolagdes significativas e especiais em uma rede abrangente e igualitéria; e 2. que o mundo de utopia proposto por uma organizago como o Superstudio so- mente pode funcionar como uma espécie de sinal aberto para futuros empresé- rios do estilo Disney. Em outras palavras, a rede fundamental da liberdade - que se assemelha a rede fundamental de Nebrasca ou do Kansas -, quer seja proposta como uma ideia ou por conveniéncia, produzird uma reagdo mais ou menos previsivel, e a proposital elimina- io do detalhe local, de ordem espacial ou psicolégica, provavelmente ser contraba- langada por sua simulagao. Isso nos sugere que imagens do género daquelas duas se ligam em sequéncia (como uma Universidade Livre de Berlim e um Port Grimaud) numa cadeia de causa e efeito, Contudo, isso nao elimina uma questo importante, a questdo importante da ex- clusividade das duas imagens, a presungao de profecia de uma, a suposta nostalgia de outra, Tal como as duas imagens inglesas anteriormente observadas, uma € quase toda antecipagao; a outra, quase toda recorda¢ao; e, a essa altura, nao resta dtivida sobre a relevancia de aludir ao enorme absurdo dessa divisio, que parece ser muito mais uma questo de postura heroica do que qualquer outra coisa. ‘Trata-se, certamente, de um tipo de cisdo, tanto mais flagrante quanto, de cada lado, ha uma hipotese psicoldgica inteiramente falsa - um tipo de cistio que nao ajuda em nada. Dado que fantasia da cidade universal de emancipacdo levou a uma situacéo abomind- vel, permanece o problema do que fazer, Os modelos ut6picos reducionistas certamente submergirio no relativismo cultural em que, para o bem ou para o mal, estamos mer- gulhados, e somente seria razoavel abordar esses modelos com muita circunspec¢ao: as fragilidades inerentes a qualquer status quo institucionalizado (mais de Levittown, mais de Wimbledom, ainda mais de Urbino e Chipping Campden) também parecem indicar que nem o mero“deem-lhes o que querem’” nem a paisagem urbana nao modificada ttm cen der to qe podeiimaginar como saa Francis Yates, num livro recente, The Art of M cionow as catedrais géticas como artificios eee roe ee Mien detradose para letrados, esses eifcios destinavam-se a sistematinas ewe et dando alembri-los, e.na medida em que operavam como ausilare de aula free ten, foi possvel traté-los como teatros de memra, Essa denominacto¢ atl sees hoje em dia somente conseguimos pensar nos edificos como necessaiamene ecrar cos. ese modo aternativo a ens tale sa pra cori nos react ie jdamente preconceituosa, O edificio a 2 nn sa também o somos como a utra.E,embora reconhecendo que, sem 0 apoio da teoria académica, so estes os dose smodos pelos quais habitualmente interpretamos os edificios, a distingao entre teatro de profeca teatro de meméria poderia ser transportada para aesfera do urbanismo, ssas observagdes bastam para evidenciar que os defensores da cidade como tea- tro de profecia provavelmente serio considerados radicais, enquanto os expoentes da cidade como teatro de meméria sero quase sempre vistos como conservadores, Mas, se alguma verdade existe nessas suposigées, também deve ser possivel afirmar queesses conceitos, em bloco, néo tém realmente muita uildade. Provavelmente, em qualquer época, a maior parte da humanidade é, a0 mesmo tempo, conservadora e radical, preocupa-se com o familiar e se perturba com o inesperado, e, se ns vivemos no passado tanto quanto confiamos no futuro (o presente nao passando de um epi- sédio no tempo), parece razoavel aceitar essa condi¢ao. De fato, se nao ha esperanca sem profecia, sem meméria nao pode haver comunicacao. Por ébvio, trivial elacénico que isso pareca, feliz ou infelizmente, foi um aspecto do espitito humano negligenciado pelos primeiros proponentes da arquitetura moderna — felizmente para eles, infelizmente para nds. Mas, se sem essa distingio psicol6gica su- perfcial “o novo modo de construir” jamais teria surgido, nao hé mais justifcativa para ndo reconhecer a relacdo complementar, que é fundamental para os processos de antecipacdo e retrospecgdo. Nao podemos realizar atividades interdependentes sem 0 txercicio de ambas, e nenhuma tentativa de suprimir uma no interesse da outra poderd dar certo durante muito tempo. Podemos receber a energia da novidade da profecia, aso nivel dessa energia deve ser estritamente referido ao contexto conhecido, quig banal e necessariamente carregado de meméria do qual emerge. A dicotomia memsria-profecia, tio importante para a arquitetura moderna, pode ser considerada, por isso mesmo, totalmente ilusoria, til até certo ponto, ma aie ticamente absurda se bem esmiuada.E, se isso for admisstvel parecer plausvel que cidade ideal que temos na cabega se amolde & nossa constituicao psicol6gica, pode-se pensar que cidade ideal, agora passivel de ser postulade, deve comportar-se a um s6 tempo como teatro de profecia¢ teatro de meméria. AS CRISES DO OBJETO: 0 IMPASSE DA TEXTURA ‘Até aqui, tentamos especificar duas versbes da ideia ut6pica: a utopia como um objeto implicito de contemplagao e a utopia como instrumento explicito de mudanga social Depois, confundimos de propésito essa distingio introduzindo as fantasias da arqui- tetura como antecipagdo ¢ como retrospeccao, mas, de modo sucinto, para esquecer essas questbes secundérias: no seria responsdvel alimentar especulagdes no terreno das utopias sem passar os olhos primeiramente nas consideragoes de Karl Popper. Para ease efeito, hi dois ensaios datados de fins da década de 1940: “Utopia and Violence” {Utopia e vialéncia] e “Towards a Rational Theory of Tradition” [Por uma teoria ra- ional da tradigio].? surpreendente que nenhum desses ensaios tenha sido até 0 mo- mento citado por seus comentérios sobre os problemas da arquitetura e do urbanismo contemporaneos.* ‘Como era de esperar, Popper é severo com a utopia ¢ indulgente com a tradicéo, sas esses ensaios deveriam também ser analisados no contexto de sua continua critica pesada as visdes indutivas simplistas da ciéncia, a todas as doutrinas do determinismo histérico e a todos os teoremas sobre a sociedade fechada, que comega a ser vista como uma das construgdes mentais mais importantes do pensamento filosofico do século xx. Popper, um liberal vienense, que residiu na Inglaterra durante muitos anos ¢ que usou que parecia uma teoria do Estado prépria dos Whigs {membros do Partido Liberal in- gles] como a ponta de langa de um ataque a Plato, Hegel e, ndo por acaso, a0 Terceiro Reich, deve ser entendido como critico da utopia e expoente da utilidade da tradicio. Para Popper, a tradicio ¢ indispensdvel ~ a comunicagao baseia-se na tradigao, que esti ligada a percepgo da necessidade de haver um ambiente social estruturado; a tra- digao é o veiculo critico de um aperfeigoamento da sociedade; a “atmosfera” de uma sociedade relaciona-se com a tradigao; e a tradigao é de certa maneira afim com 0 mito - ‘ou,em outras palavras, tradigées especificas sao de certa forma teorias incipientes, cujo valor é 0 de ajudar a explicara sociedade, ainda que 0 fagam imperfeitamente. ‘Mas essas afirmagées devem também ser entendidas paralelamente & concep¢a0 de ciéncia da qual provém, um modo de compreender a ciéncia que nao a vé tanto como agregacio de fatos, mas como critica rigorosa de hipéteses. As hipsteses é que revelam os fatos e nao o inverso. Assim entendida, prossegue a argumentacao, o papel das tra- diges na sociedade é mais ou menos equivalente ao das hipéteses na ciéncia. Isto é: da mesma maneira que a formulacao de hipSteses ou teorias resulta da critica do mito. De maneira semelhante, as tradicGes tém a importante dupla fungao de nao sé . determinada ordem ou algo parecido co: Pia e ym uma estrutura social, ne ee jficar. [E] tal. como a invengao do mito ou das teorias no campo da deh sirural tem uma funco ~ a de nos ajudar a por ordem nos acontecimentos da © actiagio de tradicbes faz.0 mesmo no ambito da sociedade.t aa ‘Devem ser essas as raz0es pelas quais Popper contrasta uma abordagem racio- al da tradiglo com @ tentative racionalista de transformar a sociedade pela agio de goes abstratas ¢ ut6picas, que ele considera “perigosas e perniciosas”, A uto fia propde um consenso em. oFno de objetivos, e “é impossivel determinar cientifi- ate objetivos. Nao hé nenhum modo cientifico de escolher entre dois fins [..]” sendo assim problema de construir um projeto utdpico nao pode ser resolvido somente pela cién- das; desde que no podemos determinar cientificamente os fins tltimos das ages po- Iiticas [.»] elas terdo, pelo menos até certo ponto, o carter de divergéncias religiosas. Enio pode haver nenhuma tolerancia entre essas diferentes religides ut6picas [..] 0 ttopista tem de derrotar ou esmagar seus competidores.* Em outras palavras, se a utopia propée a realizacao de bens abstratos em vez da erradi- cacio de males concretos, tende a ser coercitiva, pois é bem mais fil haver consenso sobre 0s males concretos do que sobre os bens abstratos. Ese, por outro lado, a utopia se presenta como um projeto para o futuro, é duplamente coercitiva porque nés ndo po- demos conhecer 0 futuro. Mas, além disso, a utopia é especialmente perigosa porque sua invencdo tende a ocorrer em perfodos de répida mudanga social, e os projetos urbanos _ut6picos provavelmente se tornarao obsoletos antes de ser postos em pratica. Dessa forma, osformuladores de utopias tenderao a inibir a mudanga por meio da propaganda politica, ela supressio da opiniao dissidente e, se preciso for, pela fore fisica. O que se pode lamentar em tudo isso é que Popper nao tenha feito nenhuma dis- tingéo entre a utopia como metéfora e a utopia como prescrigao. Mas,levando isso em conta, o que nos é apresentado (apesar de a abordagem da tradiao ser desnecessaria- mente complexa e 0 tratamento da utopia, com certeza, um pouco rigido e abrupto) por inferéncia, uma das criticas mais devastadoras do arquiteto e do planejador do século xx. ‘Actitica de uma determinada “ortodoxia” contemporinea também é bastante co- athecida. A posicao popperiana que, em face do cientificismo e doistoricismo,insiste 1aflibiidade de todo conhecimento deveria ser razoavelmente difundidas mas, se Popper esta obviamente preocupado com certas atitudes € procedimentos muito irra- ionais, devido a suas consequéncias praticas, a condicao intelectual que ele se senti ‘compelido a rever é facil de demonstrar. O antincio feito pela Casa Branca, em 13 de julho de 1969, da cria¢ao do National Goals Research Staff declarava 0 seguinte: O niimero de instituigées puiblicas e privadas dedicadas a realizar previsdes vem aumen- tando muito, jd constituindo um corpo crescente de informagGes que servem de base para a formagao de juizos acerca da provavel evolucao dos fatos no futuro e sobre as escolhas disponiveis agora. Ha uma necessidade urgente de estabelecer uma conexdo mais direta entre as pre- visdes cada vez mais complexas que hoje sao feitas eo proceso de tomada de decisdes. A importincia prtica de criar essas conexGes ¢ acentuada pelo fato de que pratica- mente todos os grandes problemas nacionais de hoje poderiam ter sido antecipados bem antes de atingir proporgées criticas. Uma extraordindria quantidade de instrumentos e técnicas foi desenvolvida, pos- sibilitando a realizagao de projecdes de tendéncias e permitindo com isso fazer 0 tipo de escolhas bem fundadas de que necessitamos para dominar 0 processo de mudanga, Esses instrumentos e técnicas vém sendo crescentemente utilizados nas ciéncias so- ciais e naturais, mas nao foram aplicados de modo sistematico na ciéncia do governo. Chegou o momento em que podemos e devemos usé-los.® “Ciéncia do governo”, “instrumentos e técnicas” que “devem ser usados”, “previsées complexas”, “o tipo de escolhas bem fundadas de que necessitamos para dominar 0 processo de mudanga”: isto é [Claude-Henri] Saint-Simon e Hegel, os mitos da so- ciedade potencialmente racional e da histéria inerentemente légica instalados no mais improvavel dos centros de poder. Com esse tom ingenuamente conservador e a0 mesmo tempo neofuturista, uma tradugio popular do que hoje jé € folclore, esse discurso poderia ter sido criado sob medida para servir de alvo as estratégias criticas de Popper. De fato, se “dominar 0 proceso de mudanga” parece grandioso, a rigorosa falta de sentido dessa ideia s6 pode ser acentuada, porque para haver “dominio sobre 0 processo de mudanga’” é preciso eliminar toda mudanga, salvo as de menor impor- tancia e menos essenciais. Esta ¢ a ideia central de Popper. Na medida em que a forma do futuro depende de futuras ideias, tal forma ndo pode ser antecipada; portanto, as muitas fusdes futuristas do utopismo com 0 historicismo (0 curso atual da historia su- jeito a um controle da razao) somente podem resultar numa restricao de toda evolugéo progressista, toda verdadeira emancipagao. Talvez seja este © ponto que nos permite efetivamente distinguir a esséncia de Popper, o critico partidério da libertagao do de- terminismo hist6rico e das concepg6es estritamente indutivas do método cientifico, 0 qual, mais que qualquer outro, esquadrinhou e discriminou o complexo de fantasias hist6rico-cientificas que, para o bem ou para o mal, foi um elemento mobilizador do século xx. declaragao da Casa Branca de 1969 (que foi tac i-,..: Pre eth longe de ser mero absurd, Bo, i ae Cenc. = todos 0s governos atuais (dé para imag Remarc ae cuase todos 08 governos a Para imaginar suas versoes francesa ¢ britanica) oane'e Se € uma afirmagao muito préxima, Por seus preuposioe cos, do espirito ger: arquitetura it isi o ss er moderna e, portanto, das atitudes cortespon- Os caminhos para o futuro estarao, enfim, bem Pavimentados e livres de acid no existirio mais quebra-molas escondidos nem tigue-zagues erréticos: a tial ; final fi divulgada. Livres de pressuposigbes dogmaticas noe agora consultamos, do ponto de vista légico, apenas os “fatos”, ¢ consultando-os, estamos, finalmente, oe 2 projetar a soluedo fundamental, universalmente abrangente ¢ jamais interrompida do design total. Algo um pouco parecido com isso foi e continua a ser © leitmotiv da arquitetura moderna; e, se tudo 0 que o liga a sociedade for obviamente enigmatico, podemos, mesmo assim, continuar meditando sobre os lagos de parentesco de Politica total com a arquitetura total, Ebem provavel que, quando a explicasio for enfim a elas estio na mesma situacao e que algo da politica total « ae vitavelmente presente em todas as projecSes utépicas. A io bien Insist: os cidadios da Utopia de Thomas Morus nao podiam ndo ser felizes, porque “Pteiaag, nao podiam escolher outra coisa senao ser bons. A ideia de habitar na bondade, sem ait Sng yg _cbscidade de fazer uma escolha moral, tende a estar presente na maioria das fantasia, ; © 8 metaféricas ou literais, sobre a sociedade ideal, ae Endossr a utopia da sociedad ideal € ume coisa, fazer-he a critica éoutra, mas, G8 para oarquiteto,0 conteid ético da boa sociedade sempre foi algo que a construcao de- Via tomar evidente. A bem dizer, é muito provavel que essa tenha sempre sido a referéncia Primordial do arquiteto pois, a despeito de outras fantasia de controle que porventura tenham se misturado para socorré-lo ~ antiguidade, tradigdo, tecnologia - estas foram invariavelmente concebidas como ajuda e estimulo a uma ordem social considerada de certa forma salutar ou decente. Assim, para nao termos de recuar até Platio, mas pegando um trampolim bem mais recente, no Quattrocento, a Sforzinda, de [Antonio Averlino] Filarete, contém todas as premonigdes de uma situacdo pensada como inteiramente suscetivel ao con- _ tole. Lé hd uma hierarquia de edificagdes religiosas, a regia principesca, o palicio da ristocracia, 0 estabelecimento mercantil, a residéncia particular. Nos termos dessa EE +, fp fy MY 2 4 LE Figay # Wy resentada, se descubra que da arquitetura total esté ine- ‘utopia nunca oferece op¢des. ia € nao se pos em questéo sua aplicagio eliteral. E que a cidade medieval representava um nticleo nao suscetivel a0 >Ht0 € a0 interesse, e que nao podia de maneira alguma ser diretamente transgredido, O diagrama do projeto de Filarete para a cidade de Storzinda (do Codex Maglia Beccianus) 6 um antigo simbolo da ordem humanista, culo pressuposto é que todas as situagdes humanas eram Suscetiveis a regras que asseguravam uma cidade hierarquica e bem organizada. since as st seit sai seuqota. A ni ‘a que fo buna “Pai “hing ky Yoem, fa mi 1 Tivoli, 6 0 accmulo de Riu ia, a Villa Adriana, em Tivoli, ‘ ‘salhes 6 a versdo construida de uma ideia, Bas Enquanto Vers os varias ideias. A Villa Adriana ao mesmo tempo expde as exigénci ad hoc. Nisso esta o comego da colagem pessa forma, o problema do novo passou a ser u dacidade - 0 Palazzo Massimo, Campidoglio etc. manifestag dacidade— 0 jardim revela o que a cidade deveria se, '860€S polémicas fora 0 jardim como uma critica da cidade ~ critica ceu com fartura ~ ainda nao recebeu suficiente atensaa, : cremplo, esse tema é profusemente Remand eae fora de Hlorenga, por le encontrar-se em Versalhes, essa critica seiscentista de Patlsmedicg teat a4 géne Georges) Haussmann e Napoledo 111 levaram tio a sévio muitos nae sti Visio profética da cidade, uma versio em tamanho grande da utopia oa Filarete, com as érvores no lugar dos edificios, num exagero literal do en as pico, Versalhes nos serve agora como uma espécie de caixa de cimbio para dar into 4 umaznova fase da argumentagfo. Temos entdo a Verslhesimpassve, destnnaas deambiguidades. O padrao ético se anuncia a0 mundo, ¢ 0 amincio evidentemente no érefutado, Isto é controle total e sua brilhanteilustracdo. Ea vitéria da genera lidade, a prevaléncia da ideia irresistivel, o cancelamento da excegio, ¢ a analogia Gbvia com que cotejé-la, para nossos fins, a Villa Adriana, em Tivoli, Se Versalhes pode ser vista como um esboso para o design total num contexto de politica total a Villa Adriana tenta dissimular toda referéncia a uma ideia de controle, Uma é toda unidade e convergéncia; a outra € toda disparidade e divergéncia, Uma se apresenta como organismo inteiro e completo; a outra, como dialtica viva dos elementos que a compoem: comparado com a obstinacao de propésito de Luis xiv, Adriano, que propée o oposto de qualquer “totalidade”, s6 parece precisar de um acimule dos mais variados fragmentos. Ambas sio evidentemente aberracées, produtos do poder absoluto, mas sao os produtos - quase ilustragées clinicas — de psicologias completamente diferentes. O confronto entre Lufs xiv e Adriano poderia ser mais bem interpretado por uma ci- tagao de Isaiah Berlin. Em seu famoso ensaio, Berlin distingue duas personalidades: oourigo ea raposa. A raposa conhece muitas coisas, mas o ourico conhece uma grande coisa, Bis 0 texto que foi escolhido para ser trabalhado e servir de pretexto para a con- tinuagdo do argumento: ma inter} ue a cidade mais tarde reconhe- hé um grande abismo entre, de um lado, aqueles que relacionam todas as coisas a uma s6 nogdo fundamental, um sistema mais ou menos coerente ou articulado, em Cujos termos eles compreendem, pensam e sentem - um s6 principio universal de Organizagao em fungdo do qual tudo o que eles sdo e dizem tem significasao; do outro lado, existem aqueles que perseguem muitos fins, nio raro desvinculados e até contra- ditbrios; se alguma conexio existe, é apenas de facto, por conta de alguma causa psi- col6gica ou fisiolégica. Desvinculados de qualquer principio moral ou estético, estes liltimos vivem, realizam agées ¢ alimentam ideias mais centrifugas do que centripetas; seu pensamento é disperso ou difuso, move-se entre muitos niveis, apreendendo a esséncia de grande variedade de experiéncias e objetos pelo que so em si, sem buscar, consciente ou inconscientemente, ajustar-se a eles ou exclui-los de qualquer nogao interior unitéria, imutavel e, as vezes, até fandtica, O primeiro tipo de personalidade intelectual e artistica pertence a categoria dos ourigos; 0 segundo, a das raposas” Entre essas duas categorias, as grandes personalidades do mundo se distribuem de modo mais ou menos equitativo: Platao, Dante, [Fiddor] Dostoiévski, [Marcel] Proust sio, nio precisa dizer, ouricos; Aristételes, [William] Shakespeare, [Aleksandr] Pushkin, [James] Joyce sao raposas. Essa € distingao elementar; mas podemos estender 0 jogo a outras éreas, se 0 que nos interessa sio os representantes da literatura e da filosofia. [Pablo] Picasso é ‘uma raposa; [Piet] Mondrian, um ourico,as figuras comegam a tomar seu lugar e, quando nos voltamos para a arquitetura, as respostas s40 quase inteiramente previsiveis, Palladio um ourigo; Giulio Romano, uma raposa; [Nicholas] Hawksmoor, [John] Soane, Philip Webb provavelmente séo ourigos. E quase certo que [Christopher] Wren, [John] Nash e Norman Shaw sao raposas; mais recentemente, se [Frank Lloyd] Wright é,sem sombra de diivida, um ourigo, [Edwin] Lutyens com certeza é uma raposa. Mas, aprofundando um pouco mais a ldgica dessas categorias, 8 medida que nos aproximamos da arquitetura moderna comegamos a reconhecer a impossibilidade de chegar a uma distribuigao simétrica. Pois se [Walter] Gropius, Mies, Hannes Meyer, Buckminster Fuller sdo obviamente ourigos, onde esto as raposas para completar 0 rol? A preferéncia é evidentemente uma s6. A visdo central prevalece. Ha uma predo- minancia de ourigos, mas, se as vezes temos a impressio de que os temperamentos do tipo raposa sao marcados pela dubiedade e, portanto, nao tendem a se revelar, ainda assim resta a tarefa de atribuir um lugar a Le Corbusier, “quer seja ele um monista ou um pluralista, quer sua visdo tenda ao um ou a muitos, quer ele tenha uma sé substan- cia ou uma mistura de elementos heterogéneos”. Berlin faz essas mesmas perguntas a respeito de [Liev] Tolstéi — perguntas que ele mesmo afirma nao serem de todo relevantes; e, em seguida, arrisca sua hipstese: que Tolstéi ~ uma raposa por natureza, mas que acreditava ser um ourigo; porque seus dons ¢ realizagdes sio uma coisa, enquanto suas crencas e, por consequéncia, sua interpretacdo das préprias realizacdes, sio outra; e que, consequentemente, seus ideais © induziram, bem como aqueles que foram levados por seu talento para a persuasio, a um sistematico mal-entendido acerca do que ele e os outros estavam fazendo ou deviam estar fazendo? Como tantas outras teses da critica literdria transpostas para o contexto da arquitetura, a tipologia parece dar certo e, mesmo sem forgar muito a barra, ela nos fornece uma explicagio parcial. De um lado, temos 0 Le Corbusier arquites a anguta econtradit6ria”, como o definiu William Jordy. me requinte supostas estruturas platonicas § iprichada simulagio de detalhe empiric, aa ees ee erencas ceebrais e complicados scherz. De outro lado, temos ee digressbon, fansta, 0 protagonista enfadonho de estratégias completamente earn involugdes espaciais que normalmente considerava serem Rice ee situagao privada. O mundo publico é simples, 0 mundo privado é Stews iee mundo privado aparenta uma preocupacio com a contingéncia, a ae a E,seo jidade publica sustentou por muito tempo um desdém quase arrogante por cee Jaivo do especifico. Hesealitier Mas,se a eotntinerso) de ease complexa e cidade simples parece estranha (o inverso seria mais l6gico) ¢ se para explicar a discrepancia entre a arquitetura ¢ o urbanismo de LeCorbuser podemos sugerir que ele fosse uma raposafngindo-s de ourigo para fins publics, 0 que fizemos fi construir uma digressio dentro da digresioJécbservarnos anteriormente a relativa auséncia de raposas na atualidade; voltaremos a essa segunda digressio mais adiante. Por ora, cabe lembrar que o desvio para a questio da raposa versus ourigo teve outros propésitos: o de definir Adriano e Luis x1v como representan- tesmais ou menos autarquicos desses dois tipos psicolégicos, possuidores de poderes autocraticos para cultivar suas propensoes inatas e depois indagar dos seus produtos: qual deles poderia ser visto como 0 melhor modelo para os dias de hoje ~ a acumulagao disparatada de fragmentos ideais ou a exibigao de um todo coordenado? ‘AVilla Adriana é uma Roma em miniatura, Ela reproduz de modo plausivel todos ‘os contlitos entre pecas ideais disparatadas e todos os acontecimentos empfricos alea- térios que Roma exibia em profusdo. & um endosso conservador de Roma, enquanto Versalhes é uma critica radical de Paris. Em Versalhes, tudo é projeto, total e completa~ mente,mas em Tivoli assim como na Roma de Adriano, 0 projetado eo nio projetado modificam ¢ amplificam suas respectivas mensagens. Adriano é um dos “cuturalistas” de Frangoise Choay, preocupado com o emocional ¢ 0 usével; mas, para Luis xiv, 0 “progressivista” (com a ajuda de [Jean-Baptiste] Colbert), a exigencia é que presente futuro sejam explicdveis pela razdo. Idiossincrasias aleat6rias, diversidade local, tem pouca influéncia nessa atitude, e quando as racionalizagbes de um Colbert fo trans- mitidas por intermédio de [Anne-Robert-Jacques] Turgot @ Saint-Simon e Auguste Comte, 6 que se comeca a perceber a enormidade profética de Versalhes: Nao ha diivida de que ali, em Versalhes, esto prefigurados todos os mitos da sociedade racionalmente organizada e “cientifica”, a sociedade em que nto hd lugar pata 0 acidental, a sociedade governada pelo conhecimento & Pela eal i {qual todo debate se tornou supérfiuo. Se em seguida saturamos &SS¢ mito de fanta- witeto, com sua “inteligen- Ba pessoa que constréi sias sobre a evolugao histérica e, ainda mais, da ameaga da condenagao eterna ou do culto da crise, podemos chegar perto de um estado de espitito nao muito distante do que norteou 0s primérdios da arquitetura moderna, Mas, se € cada ver. mais dificil conter o riso ante a velha histéria de que, para evitar o desastre iminente, a huma- nidade deve conduzir-se em estreita sintonia com as forgas inelutaveis do destino, entio, se nos emancipamos por nosso riso, talvez seja 0 caso de (a sugestao ¢ feita com a devida hesitagao) consultar 0 que fomenta, em primeiro lugar, 0 gosto e, em segundo lugar, 0 senso comum. gosto nio é mais ~ ¢ talvez nunca tenha sido - uma questao séria ou substancial, e falar em senso comum deve inspirar igualmente certa reserva. Apesar de toscos, esses conceitos podem ser titeis como instrumentos rudimentares para uma outra aborda- gem da Villa Adriana. Dada a igualdade de condigdes no que respeita ao tamanho ea perenidade em Versalhes e Tivoli, é quase certo que a preferéncia estética espontanea dos dias de hoje recai nas descontinuidades estruturais e nas multiplas vibragées sin- copadas que a Villa Adriana apresenta. Da mesma forma, a despeito da escrupulosa Preocupagdo contemporanea com um princfpio central, com uma condic¢do de total, holistica e original continuidade, é evidente que as multifacetadas disjungdes da Villa Adriana, a inferéncia admitida de que ela foi construfda por muitas pessoas (ou regi- mes politicos) em diferentes épocas histéricas, seu aspecto de combinacao do contra- ditério com o racional, poderia recomenda-la a atengo das sociedades politicas em que o poder muda de mos com frequéncia ¢ tolerancia. Levando em conta a controversa atitude antiut6pica de Karl Popper e, basica- ‘mente, a insinuagao antiourico de Isaiah Berlin, 0 favoritismo do argumento jé deve ter se tornado claro: melhor pensar numa acumulagdo de pequenas pecas formais, ainda que contraditérias (como produtos de diferentes regimes) do que alimentar fantasias sobre solugdes totalizadoras e “sem falhas”, que a estrutura politica acabaré abortando. Isso implica estabelecer a Villa Adriana como uma espécie de modelo que demonstra as exigéncias do ideal e as necessidades do ad hoc; uma outra implicagao € que esse tipo de instalagao esté comecando a se tornar necessério do ponto de vista politico, Mas a Villa Adriana nao se reduz, decerto, a mera colisio fisica de obras arquite- ‘Onicas. Fla ndo é uma simples reprodugio de Roma, porque também apresenta uma iconografia tio complexa quanto sua planta. Aqui uma referéncia ao Egito, ali parece U6 estamos na Sfria, ¢ mais adiante poderia ser Atenas, Assim, embora fisicamente a ilustragao ecuménica da mistura promovida pelo Império ¢, quase, como uma série de recordagGes das viagens de Adriano, Isso quer dizer que, na Villa Adriana, afora os conllitos fisicos (ainda que dependendo deles) estamos, antes de mais nade, na pre- senca de uma condi¢éo extremamente condensada de referencias simbdlicas. E iss0 SO Lal Te ~ a SN oN os ev introduzir um outro argumento cujo desenvolvimento temos de postergar \ vm pouco: que na Villa Adriana estamos na presenca de algo parecido com o que hoje a fe costuma chamar de colagem. tig, NY cI0ADE-COLISAO E A POLITICA DA BRICOLAGEM Oaulto da crise no perfodo entre as duas guerras mundiais: antes que seja tarde a so- cjedade deve livrar-se de sentimentos, pensamentos e técnicas obsoletas; e se, no in- tuito de se preparar para sua iminente libertacao, ela estiver pronta para fazer tabula rasa, arquiteto, figura-chave dlessa transformacao, deve estar pronto para assumir a lideranga hist6rica. Porque © mundo construido da habitagao e dos empreendimen- tos humanos € 0 bergo da nova ordem, e se 0 arquiteto hé de acalenté-lo como deve, precisa estar preparado para se colocar na linha de frente da batalha a favor da huma- nidade, Embora 0 arquiteto alegue ser um cientista, é possivel que nunca tenha traba- Ihado antes em circunstancias psicolégicas e politicas tao fantésticas. Mas, se tudo isso sio digress6es, vemos as raz0es - razdes do coragao, como diz Pascal - que fizeram a cidade ser pensada como mero resultado de descobertas “cientificas” e de uma colabo- ragéo “humana” absolutamente ditosa. Eis em que se transformou a utopia ativista do design total. Talvez seja uma visio irrealizavel; para aqueles que estio esperando hé cinquenta ou sessenta anos (muitos j4 devem ter morrido) o estabelecimento dessa cidade ut6pica, ja deve ter se tornado claro que a promessa - tal como foi formulada ~ néo pode ser mantida. Ou, entao, poder-se-ia pensar que, se a mensagem do design total teve uma trajet6ria um tanto suspeita e muitas vezes provocou ceticismo, ela continua ser, quem sabe até hoje, o substrato psicol6gico da teoria urbana e de sua aplicagio pratica. A verdade é que essa mensagem tem sido téo pouco reprimivel que, nos til- ‘timos anos, surgiu uma versio renovada e literal dela na forma de interpretagoes da -abordagem “sistémica” e outros achados “metodolégicos”. Introduzimos as ideias de Karl Popper principalmente para referendar um argu- -antiut6pico com o qual absolutamente nao concordamos; no entanto, a divida temos com Popper deve ter ficado patente em nossa interpretagao da utopia ati- a. De fato, € dificil escapar do ponto de vista de Popper, principalmente quando ente desenvolvido como em The Logic of Scientific Discovery (1934) e The of Historicism (1957)."' Poderia ter nos ocorrido que a ideia da arquitetura mo- ‘como ciéncia, integrada a uma ciéncia total e unificada, cujo modelo ideal é a {amelhor de todas as ciéncias), dificilmente sobreviveria num mundo que inclui stamente a critica popperiana a essas fantasias. Mas pensar assim nao leva em conta - quanto o debate na arquitetura é hermético e atrasado, Nas dreas em tica popperiana parece ser desconhecida e onde também se presume que @ ‘dos primérdios da arquitetura moderna é lamentavelmente deficiente, nem € preciso dizer que os métodos propostos para a solugao de problemas sio complicadfs- simos e demorados, Basta observar atentamente a minuciosa exatidao do processo descrito em No- tes on the Synthesis of Form'® para ter uma ideia disso. Trata-se evidentemente de um. processo“limpo”, que lida com dados “impos”, atomizados, purificados e novamente purificados; tudo é obviamente salutar e higiénico. Mas, por resultarem das caracteris- ticas inibidoras do compromisso, sobretudo do compromisso com a fisica,o resultado nunca parece to importante quanto o processo. E algo semelhante pode ser dito sobre a produgio correlata de ramos, redes, diagramas e colmeias que, em fins dos anos 1960, se tornaram procedimentos tao consp{cuos. Ambos sao tentativas de evitar qualquer imputacao de desvio tendencioso; e se, no primeiro caso, existe a suposigao de que os fatos so verificaveis e isentos de valor, no segundo, atribui-se igual imparcialidade as, coordenadas de um diagrama. E como se houvesse a crenga de que; tal como os para~ lelos de longitude e latitude, as coordenadas do diagrama eliminardo toda e qualquer tendenciosidade, ou mesmo responsabilidade, na especificagao do detalhe de preen- chimento, Se o observador neutro ideal é sem diivida uma ficc4o; se, entre a multiplicidade dos fendmenos que nos cercam, nds observamos © que queremos observar; se nossos julgamentos sio inerentemente seletivos, porque é impossivel assimilar toda a quan- egetes em com tidade de informagbes factuais; , se todo uso literal de um diagrama ‘neutro” tem asmardregemiesem a ssp apoiar toda argun ENTIRE VILLAGE eon em it de modo que, ‘sadada de ourigo “tex biol disfare A B c D Reng bran af £E~ KEE AD weg A1A2 A3 B1B2B3B4 C1C2 D1 D2 Se ee w Porque emp, At contém os requisitos 7,53, 57,59, 60, 72,125, 125,128 ‘Az contém os requisites 31, 34,36, 52,54, 80, 94,106, 136. Ne, ‘A3 contém os requisitos 37, 38,50, 55,77, $1, 103, Nathaly, B1 contém os requisitos 39, 40, 41, 44, 51, 118, 127, 131, 138. “hang Mais cq B2contém os requisites 30,35, 46, 47,61, 97, $8 X “om g Diagrama publicado em Notes on the Synthesis of Form, de Christopher Alexander, 4 ae fa ot. LEE sjcokdades para dar conta de problemas semelhantes, mito do arquiteto como f. {ofa natural do século XVII ~ com suas pequenas varetas de medi, suas balangas ¢ a0 mesmo tempo Messias ¢ cientista, Moisés e [Isaac] Newton (um mito que feow ainda mais riiculo depois de sua anexacao pelo primo pobre do arquiteta,» jador) ~ deve agora ser confrontado com O pensamento selvagem e com tude Buea bricolagem representa. sgubsiste entre nés”, escreveu Claude Lévi-Strauss, iF x Zs AL Eh, WLLL HY APPLESEED umaforma de atividade que, no plano técnico, nos permite compreender muitobem oque, noplano da especulacao, podia tr sido uma ciéncia que preferimos chamar de “primeira”, emyez de “primitiva”. E 0 que se costuma chamar, em francés, de “bricolagem”.!5 Tah, oz Lévi-Strauss prossegue fazendo uma minuciosa anilise dos diferentes objetivos da bricolagem e da ciéncia, dos diferentes papéis do bricoleur e do engenheiro, i y Em seu sentido antigo, o verbo bricoler se aplicava ao jogo de bola e do bilhar, & caga ¢ equitagdo, mas sempre para evocar um movimento incidental: 0 da bola que 1i- cocheteia, do cdo que corre ao acaso, do cavalo que se desvia da linha reta para evitar um obstéculo. E, em nosso tempo, o bricoleur ainda é uma pessoa que trabalha com as. réos, usando meios divergentes em comparagao com os do artesio."* Nao € nosso propésito apoiar toda argumentacao que se segue nas observacdes de Lévi-Strauss. O que pretendemos é tao somente incentivar uma identificagao que se mostre de certa forma itil, de modo que, se nos inclinarmos a reconhecer Le Corbu- sier como uma raposa disfargada de ourigo, também podemos imaginar uma tentativa aniloga de camuflagem: o bricoleur disfarcado de engenheiro. Os engenheiros fabricam as ferramentas do seu tempo. Nossos engenheiros so sau- diveis e viris, ativos e tteis, equilibrados e felizes no seu trabalho [...] nossos enge- aheiros fazem arquitetura porque empregam um célculo matemético que deriva da lei natural.* ‘uma afirmagao quase cabal do mais conspicuo preconceito dos primérdios da ar- itetura moderna, Comparemos com o que diz Lévi-Strauss: O bricoleur ¢ capaz de executar grande mimero de tarefas diversificadas, mas, ao con- trério do engenheiro, ele nao subordina cada uma delas a obten¢ao de matérias-primas i concebidas e arranjadas sob medida de seu projeto. Seu universo de ins- € fechado e as regras do seu jogo sempre implicam arranjar-se com 0 que 310 estiver“A mao”, isto 6, com um conjunto de ferramentas e materiais que é sempre finito e também heterogéneo, porque a composi¢ao do conjunto nao tem nenhuma relagag com o projeto do momento, nem sequer com qualquer projeto em especial, mas é 9 resultado contingente de todas as ocasides que se apresentaram para renovar ou enri- quecer o estoque, ou para conservar-lhe os resfduos de construgdes ou de destruigdes anteriores. Portanto, 0 conjunto de meios do bricoleur nao pode ser definido por um projeto (o que pressuporia, ademais, como no caso do engenheiro, que houvesse tantos conjuntos instrumentais quantos fossem os tipos de projetos, pelo menos em tese). $6 podemos defini-lo por sua instrumentalidade [...] porque os elementos sao colhidos ou guardados devido ao principio de que “sempre podem servir para alguma coisa”, Esses elementos séo de certo modo especializados, apenas o suficiente para que 0 bricoleur nao necessite do equipamento e do conhecimento de todos os oficios e profissdes, mas no o suficiente para que cada um deles se restrinja a um uso definido e predetermi- nado, Cada elemento representa um conjunto de relagdes concretas e possiveis; sio “operadores”, mas utilizaveis em quaisquer operagdes do mesmo tipo.'* Infelizmente para nds, Lévi-Strauss nao se presta a citagdes razoavelmente lacOnicas, Pois 0 bricoleur, que certamente encontra um representante no “homem de sete instrumen- tos”, é muito mais que isso. “Todo mundo sabe que o artista tem alguma coisa de cientista ede bricoleu.”” Mas, sea criagdo artistica esta a meio caminho da ciéncia e da bricolagem, isso nao quer dizer que o bricoleur seja “atrasado”. “Pode-se dizer que o engenheiro ques- tiona o universo, enquanto 0 bricoleur focaliza uma colecdo de sobras produzidas pela atividade humana’.!* Mas também ¢ preciso repetir que ndo hé nisso nenhuma questo de primazia.O cientista ¢ o bricoleur simplesmente devem ser distinguidos pelas fungdes inversas que eles atribuem aos acontecimentos e a estrutura, como meios e fins, o cientista criando acontecimentos [...] por meio de estruturas e o brico- leur crindo estruturas por meio dos acontecimentos."” Ja nos afastamos muito da nogéo de uma “ciéncia” exponencial, cada vez mais exata (uma lancha de corrida que a arquitetura e o urbanismo seguirio como es- quiadores muito inexperientes), Mas, em compensa¢ao, temos nao sé uma con- frontagao entre 0 “pensamento selvagem” do bricoleur ¢ 0 pensamento “domes- ticado” do engenheiro, mas também uma ttil indicagao de que esses dois modos de pensar ndo representam uma progressao em série (em que o engenheiro ilustra um aperfeigoamento do bricoleur etc.). Ao contrario, sio condigées necessaria- mente coexistentes € complementares do pensamento, Em outras palavras, talvez estejamos prestes a alcangar uma aproximacao do “pensée logique au niveau du sensible”, de que fala Lévi-Strauss, ~ \ nos despojar das ilusdes do amour propre Profissional i \ pos estabelecida, a descricao do bricoleur é muito mais eaten réxima da reali eo uurbanista que qualquer fantasia “astm? iS SACarEG ; Pec da arquitetura é que, por estar sempre, de uma forma ou de outra, ’ verde, em melhorar, em fazer melhor as coisas segundo algum critério, mesmo, a mpreiso,em como as coisas devem serelaesté sempre irremediavelmente envol- sada com julzos de valor ¢ nunca alcanca uma resolugdo cientifica ~ pelo menos nos termos de uma teoria empirica simples dos “fatos”, Se & assim na arquitetura, no urbs- siamo (que nem a0 menos se preocupa em fazer as coisas resistir) a questao de uma solugao cientifica dos problemas s6 pode piorar. Afinal de contas, se a nogao de solucio “nal” mediante uma acumulacao definitiva da totalidade dos dados é, evidentemente, ON una quimera epistemol6gica; se certos aspectos da informacao nunca serio discrimi. i, —N sadosourevelados,es€0inventatio dos “fatos” nio pode nunca estar completo devido He 4staxas de mudanga e obsolescéncia, ent, aqui e agora, deveria ser possivel airmar .queoshorizontes do planejamento cientifico da cidade sé podem ser entendidos como a aos horizontes da politica cientifica. Considerando que o planejamento nao pode ser mais cientifico do que a so- ciedade politica da qual é uma instancia, nem na politica nem no planejamento é possivel adquirir informacoes suficientes antes que uma ago se torne necesséria. Em nenhum dos casos, a aco pode esperar a defini¢ao do problema num futuro idealizado para ser afinal resolvido; ¢ se a causa disso € que a possibilidade mesma desse futuro, onde afinal se pusesse fazer tal definicao, depende de uma agio im- perfeita realizada no presente, entao tudo isso anuncia, mais uma vez, 0 papel da bricolagem, com que a politica tanto se assemelha e o planejamento urbano certa- mente deveria parecer-se. ‘Mas seré que a alternativa entre o design total “progressista” (estimulado pelos ou- ‘Tigost) ea bricolagem “culturalista” (impulsionada pelas raposas?) é,em tiltima anilise, /que nos resta para escolher? Nos achamos que sim, e, na nossa opinido, as conse- 'politicas do design total sao realmente devastadoras. Nao a condicao atual de isso € conveniéncia, de volicdo e arbitrio, mas uma combinacio sumamente de “ciéncia” e “destino” - é este 0 mito nao confesso da utopia ativista ou Eé nesse sentido que o design total foi e ¢ uma mistificacao. No mundo esign total nao pode significar outra coisa senao controle total, € um controle 'por abstracdes acerca do valor absoluto da ciéncia ou da hist6ria, mas pelos : pelo homem. Esse argumento nao precisa ser enfatizado, mas nunca mais dizer que a execucao do design total (por mais amado que seja) sempre pres- algum nivel de centralizacao do controle politico e econémico, controle este que, 0s poderes ora existentes em qualquer lugar do mundo, nos parece a 312 “O governo mais tiranico de todos, o governo de ninguém, 0 totalitarismo da téc. nica” ~ essa imagem do horror, de Hannah Arendt, nos vem mente nesse ©, nesse contexto, 0 que dizer da bricolagem “culturalista"? E possivel antecipar seus Perigos, mas na qualidade de um reconhecimento deliberado da tortuosidade da his. t6ria e da mudanca, da inevitabilidade de um futuro de profundas cesuras temporais, dos varios matizes da expresso societéria, uma concep¢ao da cidade como intrinseca eidealmente obra de bricolagem comeca a merecer uma séria atengdo, Seo design tota Parece representar uma capitulagdo do empirismo légico a um mito nada empitico, Se parece imaginar o futuro (onde tudo sera conhecido) como uma espécie de dialética do nao debate, ¢ porque o bricoleur (como a raposa) nao pode alimentar tais expecta- tivas de sintese conclusiva, jé que sua acdo se realiza nao s6 num mundo infinitamente extenso, embora sujeito as mesmas generalizagoes, mas implica uma disposicio e uma capacidade de lidar com uma pluralidade de sistemas fechados finitos (a colegio de sobras deixadas pela atividade humana) da qual, pelo menos por enquanto, seu com- portamento oferece um importante modelo. Se estivermos dispostos a reconhecer os métodos da ciéncia e da bricolagem como Propensdes concomitantes, se nos dispusermos a reconhecer que ambas so formas de tratar os problemas, se quisermos (e ndo é nada fécil) aceitar a igualdade entre o Pensamento “civilizado” (com seus pressupostos de seriagio légica) ¢ 0 pensamento “Selvagem” (com seus saltos analgicos), entdo, restituindo a bricolagem um lugar ao lado da ciéncia, talvez se torne possivel imaginar a possibilidade de preparar uma dia- Iética futura verdadeiramente titil. Dialética verdadeiramente uitil? A ideia é tao s6 a do conflito entre poderes concor- rentes, 0 conflito quase fundamental entre interesses claramente definidos, a legitima suspei¢ao acerca dos interesses dos outros, da qual provém o processo democratico, tal como €; ¢ entio 0 coroldrio dessa ideia é meramente trivial: se for esse 0 caso, isto é, se a democracia se compde de entusiasmo libertério e diivida legalista, se é inerente a ela uma colisdo de pontos de vista e aceitavel como tal, entao Por que nao admitir que uma teoria dos poderes concorrentes (todos eles visiveis) fosse capaz de definir uma cidade ideal mais completa do que as inventadas até hoje? Recordando a Villa Adriana, essa proposigao nos induz automaticamente (como 0s ces de Pavlov) a situagao da cidade de Roma no século xv11, aquela inextricavel fu- sao de imposicao e acomodagao, aquele congestionamento flexivel e resistente, muito bem-sucedido de intengdes, uma antologia de composigdes fechadas e objetos inters- ticiais ad hoc, que é, a0 mesmo tempo, uma dialética de tipos ideais, somada a uma dialética entre tipos-ideais e contexto empirico, Ea considera¢ao da Roma do século xvit (a cidade completa com a identidade assertiva de suas subdivisdes: Trastevere, Sant Eustacchio, Borgo, Campo Marzo, Campitelli...) instiga-nos a uma interpretacdo equivalente da cidade que a precedeu, onde os prédios do forum e das termas con- ti doce mnteresses arama din, a qual prov opmi, ramente iva sense, rio e divides no ta enti pu er ise) se oe go? sos soe? ‘A Roma do século XVII exemplifica a dialética de tipos ideais urbanos. Euma cidade completa, onde as partes integradas afirmam sua identidade. viviam numa relagao de interdependéncia, independéncia e miiltiplas possibilidades de interpretagao. A Roma imperial é, de longe, uma afirmacao ainda mais dramé- tica, Porque, com suas colises mais abruptas, disjuncdes mais agudas, edificagdes formais ainda mais expansivas, com sua matriz.discriminada de modo mais radical e uma auséncia geral de inibicdo “sensivel”,a Roma imperial, muito mais que a cidade do alto barroco, € a melhor ilustragao do espirito do bricoleur em toda sua generosi- dade ~ um obelisco daqui, uma coluna dali, uma fileira de esttuas de outro lugar, até ano detalhe, esse espirito se revela inteiramente. A esse respeito, é divertido lembrar a influéncia de toda uma escola de historiadores que, em certa época, se empenhou com afinco em apresentar os antigos romanos como engenheiros do século xrx, precurso- tes de Gustave Eiffel, que por alguma razao haviam infelizmente perdido 0 rumo. Assim, propomos aqui pensar a Roma, imperial ou papal, hard ou soft, como uma espécie de modelo alternativo ao desastroso urbanismo da engenharia social e do design total. Apesar de reconhecermos que o que temos aqui sao produtos de uma topografia especifica ¢ de duas culturas particulares, ainda que nao completamente Separdveis, estamos também supondo estar diante de um estilo de argumento que néo carece de universalidade. Isto é: embora a estrutura fisica e politica de Roma mostre 313 6 que talvez seja o exemplo mais explicito de campos colidentes e rulnas intesticnis istem ve nquilas. ae pe quis vé-la assim - é uma versdo implodida de Londres 0 modelo Roma-Londres pode inclusive ser ampliado a outras comparagdes, com Hous. ton ou Los Angeles. Mas acrescentardetalhes poderiaalongar indevidamente a argumen, tag. $6 para conclir oassunt: mais que um “elo (hegeliano) indestrutvel entre beer ¢ verdade”, mais que as ideias sobre uma unidade futura permanente, preferimos nas possbilidades complementares da consciéncia e do confito sublimado, B se precisa ‘mos urgentemente tanto da raposa como do bricleur, também pode ser que, em face do cientificismo prevalecente e do laissez aller que salta & vista, as atividacies de ambos bem poderiam proporcionar a verdadeira e constante Sobrevivencia pelo Design, CIDADE-COLAGEM E A RECONQUISTA DO TEMPO. A tradisao da arquitetura moderna ~ que sempre professou uma aversio Pela arte - entendeu a sociedade ea cidade de modo muito convencional, mediante conceitos de Uunidade, continuidade, sistema, Mas ha um método alternativo ¢ aparentemente bem mais favordvel “arte” que, até onde se sabe, nunca teve necessidade de aderir de modo tio literal a princfpios “bsicos”. Essa outra tradicdo de modernidade ~ estamos pen- sando em Picasso, [Igor] Stravinsky, [T. S.] Eliot, Joyce ~ estd a léguas de distncia do ethos da arquitetura moderna. Fazendo da ambiguidade e da ironia uma virtude, nao se ulga em absoluto dona de um canal de comunicagio seja com as verdades da cién- cia, seja com os padrées da historia. “Nunca fiz ensaios ou experiéncias”; “Nao consigo entender a importancia que atri- buem a palavra pesquisa’; “A arte é a mentira que nos permite compreender a verdade, Pelo menos a verdade que nos é dada a compreender”;“O artista deve conhecer a me. neira de convencer os outros da veracidade de suas mentiras”.® Declaragdes como es- sas de Picasso nos fazem lembrar a definicao de (Samuel Taylor] Coleridge para uma obra de arte bem-sucedida (também poderia servir para definir um feito politico) como aquela que estimula “uma suspensio voluntéria da descrenca”. Talver, Coleridge use um ‘om mais inglés, mais otimista, menos impregnado da ironia espanhola, mas a ideia éa mesma, fruto de uma percepcio da realidade como algo dificil de lidar. E claro que, logo que comegamos a pensar nas coisas dessa ‘maneira, todos nds, a nao ser o mais empeder- nido pragmético, comecamos a nos afastar do estado de espirito alardeado e das afor- tunadas certezas do Rens Say i digdes de c Estamos assim em con de caracterizar, em parte, as d spoderidade,e.2dmitindo que existem dois modos Scientia tater a demos agora pensar no Bicycle Seat [Cabera de touro} (1944), de Picasso, aap asco proprio artista: . segundo as Voce se lembra daquela cabeca de touro que eu expus recentemente? Com o gu; e-oassento de uma bicicleta eu fz uma cabesa de touro que todo mundo reco a como uma cabera de touro, Isso completou uma metamorfose, agoracu gortira ta outta metamorfose na diresio oposta. uponhamos que acabeca de toute foeee : duno ferro-velho. Talvez, um dia, um operstio se aproximeediga: “Olhasé, tome. coisa ali que serve bem para guidom de minha bicileta[..]"e assim, teria ocomide uma dupla metamorfose.”' e “i Lembranga da fungao e do valor anteriores (bicicletas e minotauros); mudanga de contextos uma atitude que estimula 0 compésito; exploracao e reciclagem do sen- to js fer disso 0 bastantet); desuso da fungao com a correspondente concrecao de referéncias; meméria; antecipacao; elo entre meméria e espirito - eis af uma lista de possiveis reagdes & proposta de Picasso. Levando em conta que a proposta se dirige obviamente a0 “povo”, € em palavras desse tipo, em termos que falam de prazeres lembrados e valores desejados, de uma dialética entre passado e futuro, do impacto de um contetido iconogréfico, de um conflito simultaneamente temporal e espacial, que, para resumir um argumento anterior, se poderia comecar a definir ‘uma cidade ideal do espirito. Partindo da imagem de Picasso, nos perguntamos: 0 que é“falso” e 0 que é“ver- dadeiro”, 0 que é“antigo” e 0 que é“de hoje”? E por causa da impossibilidade de dar uma resposta conciliat6ria a essa agradavel dificuldade € que nos vemos obrigados, porfim,a identificar 0 problema da presenga do compésito (ja prefigurado na Villa Adriana) em termos de colagem. A colagem e a consciéncia do arquiteto, colagem como técnica e colagem como estado de espirito: Lévi-Strauss nos diz que “a moda intermitente das colagens, que surgiu quando o artesanato estava morrendo, nao Pode deixar de ser [...] outra coisa senao a transposicao da bricolagem para a esfera dacontemplago”” A recusa dos arquitetos do século xx a pensar em si mesmos como bricoleurs ex- plica sua indiferenca a uma das mais importantes descobertas do século xx; pareceu faltarsinceridade 4 colagem, como se fosse um atentado aos principios morais, uma adulteracao deles. Basta pensar na Natureza-morta com cadeira de palha (1911-12), de icasso, sua primeira colagem, para comegar a entender por qué. Analisando essa obra, Alfred Barr diz 0 seguinte: 35 36 [1] 0 fragmento da palha do assento da cadeira no é nem oa ne es os ‘m pedaco de lona colada na tela ¢ depois parcialmente pintado. a ne ican Picasso joga com a realidade e a abstracio em dois meios a aaa is ou proporsbes.(E] se paramos para pensar no que & mais “real”, a os lizando entre a estética e a contemplagao metafisica, pois o que nos paré E is rea 0 mais falso e 0 que parece mais distante da realidade cotidiana é 0 mais real, jé que menos imitativo.” © fac-sfmile em lona da palha da cadeira, um objet trouvé apanhado no submundo da “baixa” cultura e algado ao mundo superior da “alta” arte, aoe o dilema do arqui- teto, uma vez que a colagem é simultaneamente inocente e esicions 7 De fato, entre os arquitetos, somente Le Corbusier, um grande indeciso, ora raposa, ora ourigo, demonstrou simpatia por esse tipo de trabalho, Seus edificios, embora nao 0s projetos urbanos, seguem um processo mais ou menos equivalente ao da colagem. Objetos e episddios sao obviamente importados e, apesar de conservarem os indicios de suas origens e fontes, adquirem um efeito inteiramente novo devido a mudanga de contexto. No atelié Ozenfant, por exemplo, encontramos um grande ntimero de alu- Ses e referéncias que parecem ser basicamente agregadas pelo sentido de colagem. Objetos dispares reunidos por meios variados, “fisicos, éticos, psicoldgicos”, a lona, com o detalhe em fac-simile muito evidente e a superficie que parece dspera, ‘mas na realidade é lisa, (..] parcialmente absorvida na superficie pintada e nas formas Pintadas por deixé-las sobrepostas (...]* 4 com pequenissimas modificagdes (substituindo-se o fac-simile de lona pela tinta in- dustrial, a superficie pintada pela parede), as observacées de Alfred Barn podiam ser usadas para interpretar o atelié Ozenfant. Nao é dificil encontrar outros exemplos de Le Corbusier como colagista: a dbvia cobertura De Beistégui; as paisagens vistas dos telhados ~ navios e montanhas ~ de Poissy ¢ Marselha, pedregulhos espalhados na Porte Molitor e no Pavilhio Suico; um interior em Bordeaux-Pessac; e, especialmente, © pavilhdo da exposicao Nestlé de 1928. Entretanto, ¢ evidente que, & excecao de Le Corbusier, de espitito sao esparsas ¢ raras vezes for, Lubtetkin, em Hightpoint 2, indicagdes desse estado eee eae ee oe eee ener te.acrehartrat iwrag do coberture De Beistégui do colagiss Le Corbusier. sarsuaintegridade e conferit-Ihes dignidade, de combinar o informal com o cerebral, a onvensio e a quebra da convengio, opera necessariamente de modo inesperado. Um sndodo rudimentar, “uma espécie de discordia concors, uma combinagao de imagens desemelhantes, ou uma descoberta de semelhangas ocultas em coisas aparentemente esses comentarios de Samuel Johnson sobre a poesia de John Donne, que seriam igualmente aplicaveis a Stravinsky, Eliot, Joyce, a boa parte do programa do cabismo sintético, indicam até que ponto a colagem se baseia num jogo de normas e recordagdes, num olhar retrospectivo que, na opiniao dos que pensam a histéria e 0 futuro como uma progressdo exponencial para uma simplicidade cada vez mais per- feita, somente inspira a conclusdo de que a colagem, apesar de todo seu virtuosismo psicoldgico (Anna Livia, toda aluvial), é um entrave deliberadamente interposto 20 ‘igido curso da evolugao. Eridentemente, a argumentagao lida com duas concepgdes de tempo. Por um lado, __Stempo se torna © metrénomo do progrtesso, atribuindo-se aos seus aspectos sequen- um cardter dinamico e cumulativo; por outro lado, embora a sequéncia ¢ a cro- 'sejam reconhecidas pelo que so, admite-se que 0 tempo, privado de alguns imperativos lineares, se reorganize em fungao de esquemas experimentais. De do,a perpetracdo de um anacronismo ¢ 0 maior de todos os pecados. De outro, a de data é de somenos importincia. As palavras de [Filippo] Marinetti no Mani- urista de 1909: ido vidas tém de ser sacrificadas, nao nos entristecemos se brilha diante de n6s a magnificente de uma vida superior que sobrevird & nossa morte [...] Estamos 37 no promontério extremo dos séculos! De que vale olhar para tris [.] n6s 4 vivemos no absoluto, pois ja criamos a eterna velocidade onipresente. Cantaremos as grandes mul. tid’es agitadas pelo trabalho; ressaca multicolorida e polifnica da revolucao.** E suas frases posteriores: A vit6ria de Vittorio Veneto e a ascensao ao poder do fascismo sao uma realizagao do programa minimo do futurismo (..} 0 futurismo ¢ estritamente artistico e ideolégico |...] Profetas e pioneiros da gran- de Italia de hoje, nés, futuristas, temos a satisfagdo de saudar em nosso primeiro-mi- nistro, que ainda nio completou quarenta anos, um maravilhoso carter futurist, poderiam ser uma reductio ad absurdum do primeiro argumento. JA a frase de Picasso: Para mim, nao existe nem passado nem futuro na arte [...] As diversas maneiras que use em minha arte nao devem ser vistas como uma evolugao ou como passos em dire- ‘s80.a um ideal desconhecido de pintura [...] Tudo o que eu fiz foi para o presenteena esperanca de que permanega sempre no presente2* pode ser interpretada como uma afirmagao radical do segundo. Do ponto de vista teolé- gico, um argumento é escatol6gico, o outro remete a encarnago, mas, apesar de ambos serem necessérios, o segundo, mais frio e abrangente, ainda chama a atencio. O segundo «argumento poderia incluir 0 primeiro, mas o inverso jamais serd verdadeiro. Dito isso, es- tamos agora em condi¢ées de abordar a colagem como um instrumento sério, Considerando a cronolatria de Marinetti e a atemporalidade de Picasso; tendo em vista a critica de Popper ao historicismo (que também ¢ Futurismo/futurismo), as dificuldades da utopia e da tradicdo, os problemas da violencia e da atrofia, o su- Posto impulso libertério e a alegada necessidade da seguranga proporcionada pela ordem; levando em conta a estreiteza sectaria da armadura ética dos arquitetos e das, visdes mais razodveis do catolicismo, a contragao e expansdo - pergunto-me que outras solugées dos problemas sociais sdo vidveis fora das limitagoes da colagem. Limitagdes que deveriam ser dbvias o bastante, mas que prescrevem e asseguram um territério aberto, Pensamos que a técnica de colagem, que recruta objetos ou os retira de seu contexto, €= nos dias de hoje ~ a tinica forma de abordar os problemas fundamentais da utopia efou da tradic4o, ¢ que a origem dos objetos arquitetonicos inseridos na colagem social nao precisa ter grandes consequéncias. Ela tem relagéo com 0 gosto e a convicgao. Os objetos podem ser aristocraticos ou “folcléricos”, académicos ou populares. Nao tem importancia se provém de Pérgamo ou do Daomé, de Detroit ou de Dubrovnik, que seyosesempltico tae para tentar seats pespectivas Sunde quer q ‘pinch xitica do" *ctondio oposta Sorbus distin, Stecigeasn \ seanama ver com 0 sécul0 XX 0410 com 0 século xy, deacordo com suas interpretagdes pessoais de re icionale,em certa medica, a colagem se acomoda s ‘os requisitos da autodeterminagao, Mas apenas em certa medida, porque sea cidade da colagem pode ser met. tnedora que a cidade da arquitetura moderna, se ela talver ssja um merce a emancipagio a0 mesmo tempo Permitir a expressao legitima de todas ig ae ‘numa situagao pluralista, ela nao pode ser mais hospitaleira que Meise pinioes fuigo humana. A cidade aberta ideal, tal como a socid a! eee lade aberta ideal, + quanto a situaclo oposta. A sociedade abertae a sociedade fechade: vga nt dades priticas, sAo caricaturas de ideais contradit6rios, e€ cae a deviamos relegar todas as fantasiasradicais de emancipagao ou controle Ania é preciso admitir 0 grosso dos argumentos de Popper a favor da emancipacao ede. sociedade aberta. No entanto, apesar da evidente necessidade de reconstruir uma teo- ria rica eficiente, que foi por tanto tempo negada pelo cientficismo, historicismy psicologismo, se quisermos construir uma cidade aberta para uma sociedade aberte teremos de reconhecer que hé um desequiltbrio na tese geral de Popper comparavel a que existe em suas criticas da tradicao e da utopia. Isso parece dever-se a um foco exclusivo ém processos empiricos, que, afinal de contas,sdo extremamente idealizados, eauma mé vontade para tentar construir tipos ideais positivos. As exuberantes perspectivas do tempo cultural, os abismos e profundidades hists- sicas da Europa (ou onde quer que se julgue estar localizada a cultura), em confronto com a insignificincia exética do “resto” do mundo, abasteceram as épocas anteriores da arquitetura, e a condicao oposta é que vem distinguindo a nossa era ~ 0 desejo de abolir quase todos 0s tabus da distancia fisica, as barreiras do espago e, com isso, uma deter- minagdo andloga para erigir as mais impenetraveis fronteiras temporais. Pensamos na- quelacortina de ferro cronolégica que na mente dos devotos pds a arquitetura moderna em quarentena contra os males da livre e desembaracada associagao temporal. Mas, se épossivel admitir as antigas justificativas (identidade, incubagao, estufa),as razbes para ‘manter artificialmente 0 calor do entusiasmo comegam agora a nos parecer estranhas. Noentanto, quando se reconhece que a limitagio do livre comércio, no espago ou no tempo, nio pode sustentar-se indefinidamente sem perda de lucros, que sem 0 livre comércio a dieta fica muito restritiva e provinciana, que a sobrevivencia da imaginagio corre perigo, e que, no fim, ocorrera sempre alguma forma de rebeliao dos sentidos, ‘tudo isso nos leva a identificar um aspecto da situagao - um aspecto provavel, um as- ecto que poderia ter sido imaginado por Popper, ¢ do qual as pessoas razoavelmente "_Sensiveis poderiam muito bem se esquivar. Ser que aceitago do livre comércio implica “ima absoluta dependéncia dele? Os beneficios do livre comércio devem ser acompa- __hados tio somente por um desenfreamento da libido? As sociedades e as pessoas se referencia absoluta ou do valor imultaneamente & hibridagao e De certa forma, a filosofia social de Popper ¢ compassiva. E uma questao de ata- que e détente, ataque a atitudes que nao contribuem para a détente. Mas uma postura intelectual como esta, que, ao mesmo tempo, concebe a industria pesada e Wall Street ‘como tradic6es a serem criticadas ¢ postula a existéncia de uma arena ideal de debates (uma versio rousseauniana do cantao sufco completada pelo Tagesatzung organico?), também pode inspirar ceticismo. A versio de [Jean-Jaques] Rousseau do canto suigo (de pouca utilidade para ele), as reunides de uma cidade da Nova Inglaterra (tinta branca e cabana da feiticeira?), a ‘Camara dos Comuns do século xvim (nao exatamente representativa),a reunido de um, departamento universitério ideal: tudo isso - e mais uma miscelanea de sovietes, kibutz e outras referéncias & sociedade tribal - faz parte das poucas arenas de discurso légico ¢ igualitario planejados ou edificados até nossos dias. E se obviamente precisamos de muito mais arenas, enquanto especulamos sobre suas arquiteturas, somos levados a pensar se estas seriam constructos meramente tradicionais, Isso introduz, primeira- mente, o problema da dimensao ideal dessas diversas arenas, e, em seguida, indaga se € possivel conceber certas tradigées especificas (a espera da critica) sem aquele grande corpo de tradigéo antropolégica que inclui a magia, o ritual e a centralidade do tipo ideal, e que supe a presenca incipiente da mandala da utopia. Visto que estamos falando de uma condigio de equilibrio efetivo, embora nao de todo evidente, o cantao suico ideal da imaginagao ea comunidade da Nova Inglaterra do cartéo- postal reclamam agora pelo menos uma breve atengao. Consta que o cantao suigo ideal da imaginago, isolado mas aberto ao mercado, ea cidadezinha da Nova Inglaterra do cartio- postal, fechada mas acessivel a todas as transagdes comerciais, sempre preservaram um obstinado e calculado equilibrio entre identidade e beneficios. Dito de outra forma, para sobreviver, o cantao e a pequena cidade tiveram de mostrar duas faces. Nesse ponto, por- ‘que é preciso impor ressalvas as ideias de livre comércio e de sociedade aberta, lembramos 0 precario“equilibrio entre estrutura e acontecimento, necessidade e contingéncia, interno eexterno”, de que nos fala Lévi-Strauss.” Ora, a técnica da colagem, por intengao se nao por definicao, insiste exatamente na centralidade desse ato de por em equilibrio. Um ato de por em equilibrio? Mas: © humor, como se sabe, é a inesperada copulacdo de ideias, a descoberta de alguma relacao oculta entre imagens que parecem ser muito distantes umas das outras. Uma efusdo humoristica pressupoe, entéo, um actimulo de conhecimentos, uma memé- ria abastecida de nogdes que a imaginagao seleciona para formar novas combinagoes. Seja qual for o vigor do pensamento, ele nunca pode formar muitas combinagbes com poucas ideias, assim como nao possivel tocar muitas variagoes de tons com poucos carrilhdes. E verdade que 0 acaso pode as vezes produzir uma feliz comparacio ou uum excelente contraste, mas esses lances da sorte nao sao frequentes, e aquele que nao ggxre a exist mune deg ssn todos uto sobecthe Rock sane demos p ‘tustungimento de skdnitodo da ‘cb amesmo Soma op Chin Bis \ \ i recursos proprios e, apesar disso, se cos re: a custa de empréstimos ou do oes * espesasdesnecessrias haved sempre, Samuel Johnson nos proporciona i 4 jem um intercimbio em que todos os components retem wine sn aie riquecida pela aco reciproca, em que os respectivos papéis podem ee aa. mente transpostos, em que 0 foco da ilusio esté em constante lax conn nn realidade, e, sem diivida, alguns desses estados mentais devem instrair men, e sbordagens da utopia e da tradicao. uir todas as Isso me faz lembrar novamente de Adriano, me faz pensar no cendrio dist ‘privado” de Tivoli. Ao mesmo tempo, penso no Mausoléu (Castel eahoeil ee Pantedo em suas localizagdes metropolitanas. E penso, sobretudo, no Pantedo ¢ on seu deulo. O que pode suscitar a meditacao sobre a publicidade das intencoes, mae sariamente singulares (mantenedora do Império) e a privacidade dos interessesintri. cados, uma situagdo que nao se parece em nada com a Ville Radieuse versus Garches. A utopia, platOnica ou marxista, foi geralmente concebida como um axis mundi ou um axis istoriae. Mas, se ela atuou como uma agregacao totémica, tradicionalista e acri- tica de ideias, se teve uma existéncia poeticamente necesséria e politicamente deploravel, isso apenas confirma a tese de que uma metodologia de colagem, que acomoda toda uma gama de axis mundi (todos utopias de algibeira ~ 0 cantdo suio, a cidadezinha da Nova Inglaterra, o Dome of the Rocks, a Place Vendéme, o Campidoglio, e semelhantes), bem poderia ser um meio de nos permitir desfrutar a postica da utopia sem nos obrigar a pasar pelo constrangimento da politica da utopia. Isso o mesmo que dizer que,comoa grande virtude do método da colagem esta em sua ironia, no fato de parecer uma técnica de usar coisas e de, ao mesmo tempo, nao acreditar nelas, também € uma estratégia que ‘nos permite lidar com a utopia como imagem, trabalhar com fragmentos dela, sem nos obrigar a aceité-la in toto. E isso nos sugere que a colagem, mesmo sendo um suporte de ilusGes ut6picas de imutabilidade e finalidade, poderia alimentar uma realidade feita de mudangas, movimentos, acdes e histéria. {Collage City”, fragmento extraido de “Collage City”, Architectural Review 158, n. 942 (ago. 1975): pp. 66-90. Cortesia do autor e do editor.] |. Frances Yates, The Art of Memory. Londres e Chicago: 1966, p.79- 2 Karl Popper, Conjectures and Refutations, Nova York, 1962. 4 Stanford Anderson, “Architecture and Tradition That Isn't Trad Dad”, Journal, v.80, n. 892, 1956, é uma importante exce¢ao. , Architectural Association apresentagao 322 4 Popper, op.cit. p. 31, 5. Ibid., pp. 358-60. 8 Public Papers of the Presidents of the United States, Richard Nixon 1969, n. 265. Declaragio sobre a criagao do National Goals Research Staff. 1. Isaiah Berlin, The Hedgehog and the Fox. Nova York: 1957; P-7- 8. Ibid.,p.10. 8. Ibid.,p.14, 10. William Jordy, “The Symbolic Essence of Modern European Architecture of the Twenties and its Continuing Influence”, Journal of the Society of Architectural Historians, v.XX11,n. 3.1963. 11. Karl Popper, The Logic of Scientific Discovery, Nova York: 1959, originalmente publicado com o titulo de Logik der Forschung, Viena, 19343 The Poverty of Historicism. Londres, 1957. 12. Christopher Alexander, Notes on the Synthesis of Form. Cambridge: 1964. 18, Claude Lévi-Strauss, The Savage Mind. Chicago: 1969, p.16. 14. Lévi-Strauss, op. cit. p.16. 18, Le Corbusier, Towards a New Architecture. Londres: 1927, pp. 18-19. [Por uma nova arquitetura, trad, Ubirajara Rebougas. Sio Paulo, Perspectiva, 1989]. 16. Lévi-Strauss, op.cit, pp.18-19. 17 Ibid. p. 22. 18 Ibid, p.19. 120. Alfred Barr, Picasso: Fifty Years of His Art. Nova York: 1946, P.271. 21. Barr, op.cit.,p.241. 22 Lévi-Strauss, op. cit. 23 Barr, op.cit,p.79. % Ibid.,p.79. 2.F T. Marinett, textos do Manifesto Futurista de 1909 e do apéndice de A. Beltramelli, !uomo Nuove, Milo: 1923. As duas citacdes estdo em James Joll, Thre Intellectuals in Politics. Nova York: 1960. 28. Bart, op. cit. pp. 79-90. 21, Lévi-Strauss, op. cit p.30. 28. Samuel Johnson, The Rambler n. 194,25 jan. 1752. we olerece 4 estr mutter & da THOMAS L. SCHUMACHER . CONTEXTUALISMO: IDEAIS URBANOS E DEFORMACOES Este manifesto apresenta as novas ideias (cerca de 1970) de Colin Rowe e seus ‘alunos do Atelié de Desenho Urbano da Cornell University sobre os problemas da construcao no contexto da cidade. Como resultado de um balango do urbanismo moderno, o grupo de Rowe, de quem Schumacher foi aluno, preconizou a neces- sidade de dar fim & destruicéo das dreas do centro da cidade em consequéncia das novas edificecdes, e propés a estratégia alternativa do “contextualismo”, termo com que os estudantes designaram a teoria de Rowe. Thomas Schumacher "eco" dou recentemente que: io verdade, 2 palav’a originalmente usada por Steven Hurtt ¢ Stuart Con. smo, uma combinagso de contexto e texture, Estavamos intereseados na = agitaionas chamam de fessuto urbana [ou tecido urbana} ena forma urbe esados em estil |... nossos projetos buscavam concilar o urbanisy cidade tradicional [85 insuficiéncias © os problemas da arqutetura nao estifstic0s |. possivel fazer cidades de qualidade usando tem demonstrou a Escola de Amsterda na década de 1930.’ fol contexturais: ura urbana, oque na. No estévamos ma Moderno com a sate artigo contém uma das primeiras exposicdes da tese da “cidade-colagem” « owe, que Schumacher apresenta com intengdes normativas. Uma das ideias ne importantes dessa teoria é 2 de que os espacos urbanos sdlidos (os volumes dos sdifelos) e 05 esPagoS Urbanos vazios (da rua © da praca) podem ser figurativos, © emprego de diagramas analiticos de figura-fundo evidencia a importancia da forma dos espagos puiblicos para a criagdo do cardter da cidade. As cidades europeias se ‘aracterizam por espacos publicos figuratives bem delimitados, inclusive ruas e pracas, enquanto as cidades norte-americanas tendem a ter planos abertos, ilimitados, com jarins, calgadas arborizadas e parques. Uma segunda ideia importante da teoria contextualista ¢ a do “edifico diferenciado”. ‘Schumacher reconhece uma divida com o livro de Robert Venturi Complexidade e contradi- ¢éo em arquitetura na elaboragao desse conceito. Cita em especial a afirmacao de Venturi de que 0 edificio deveria compatibilizar condicdes dificeis sem esconder a ecomodagéo. O *ediicio diferenciado” resume o ideal ¢ 0 circunstancial, modificando as condigées do local econciiando muitas influéncies sem perder sua “imagibilidade”*gestaltica ‘Ocontextualismo propde um meio-termo entre um passado irrealista congelado, que néo admite nenhum desenvolvimento, ¢ a renovacdo urbana que desti6i toda a estrutura da cidade. Schumacher oferece a estratégia da cidade tradicional de fazer acréscimos “greduais como modelo alternativo & demolicao e reedificacdo em massa das décades de 1950 e 1960. O modelo da cidade-colagem obteve grande repercussdo nas faculdades ‘dearquitetura dos Estados Unidos, inclusive no Institute for Architecture and Urban Stu dies {1AUS], onde Rowe lecionou entre 1967 e 1969. |. Schumacher, declaragdo nao publicada, maio 1995. ‘que tem o objeto de evacar no observador determinads imagem. que pode S9f lidade e visibilidade. (N.T.]

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