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Ensaio TEPI
Ensaio TEPI
Introdução
Ao longo dos últimos anos, é possível identificar que algo de diferente está acontecendo
com as democracias ao redor do mundo. Cada vez mais, governos conservadores e populistas têm
alcançado o poder. Na América, isso ficou evidente com a eleição de Donald Trump em 2016 e
mais tarde de Jair Bolsonaro em 2018. No entanto, esse movimento já vinha ocorrendo
gradualmente em diversos outros países, como a Hungria, Itália, Rússia, entre outros.
O que todos esses governos têm em comum é o seu caráter populista, que Segundo Jan-
Werner Müller (2016) é uma maneira imaginária de se observar a política e considera que a
sociedade está dividia em dois campos homogêneos e antagônicos: o povo e a elite. O povo, é
uma construção discursiva imaginária que pressupõe que existe uma massa de cidadãos que não
são representados politicamente. Eles são detentores da moral e, com o líder populista no poder,
passarão a governar efetivamente o país. A elite por outro lado, é corrupta e trabalha contra os
interesses nacionais. Essa distinção não é feita a partir de pressupostos econômicos ou sociais, ela
é puramente moral.
Considerando que “o povo” é somente uma parcela da população, diversos grupos são
excluídos não só da política, como até mesmo podem ser privados de ter seus direitos de
cidadania reconhecidos como legítimos. Frequentemente e, como podemos observar no Brasil,
Estados Unidos e na Rússia, esses grupos são as mulheres, imigrantes e as comunidades
LBGTQI+. Apesar da articulação discursiva populista se valer de diversos componentes para
alcançar e se manter no poder, destaca-se entre as demais as articulações antigênero, misóginas e
contra a chamada “ideologia de gênero.
Parte I: Causas:
Chantal Mouffe (2018), considera que estamos vivendo uma crise da democracia liberal.
Isso se deve ao fato de o consenso neoliberal instaurado a partir do governo de Margareth
Thatcher ter se desgastado. Esse consenso teve como consequência o que a autora chama de pós-
política: a alternância entre governos de direita e de esquerda sem que haja de fato uma diferença
política-ideológica real entre eles. Ademais, os conceitos de igualdade e soberania popular
prometidos pela democracia foram esvaziados. A clara superioridade econômica de alguns
grupos deixa claro que estamos longe de uma igualdade econômica assim como a predominância
política de uns sobre os outros também nos afasta da soberania popular.
Yascha Mounk (2018) por sua vez, concorda com Mouffe (2018) quanto a crise
democrática que estamos vivendo, mas afirma que as causas são mais diversas. Entre elas,
destacam-se o aprimoramento tecnológico que por um lado, democratizou as informações, mas,
por outro, deu voz à políticos mal-intencionados que espalham fake News e compartilham
discursos absurdos. Ademais, Mounk (2018) dá especial atenção a queda do padrão de vida no
mundo, consequência da desaceleração do crescimento econômico. Muitas das pessoas seduzidas
pelos populistas, ainda tem boas condições financeiras, mas não tem boas perspectivas sobre os
seus futuros e já presenciam familiares e amigos perderem suas casas ou serem demitidos.
Capitalizando essas insurgências, os partidos de extrema direita têm se aproveitado dessas
insatisfações para construir um discurso político que atrai o povo. Eles prometem devolver a
soberania popular, devolver a glória ao país, lutar pelas “famílias”, combater a “ideologia de
gênero” e, sobretudo, seguir à Deus.
Spivack (2010) comenta sobre como as angústias econômicas geradas por um capitalismo
desigual e predatório, são capitalizados e transferidos para a esfera simbólica. Isso significa que
grande parte das angústias da sociedade são geradas pela enorme e crescente desigualdade
econômica e, ao invés dessa angústia ser identificada e combatida, ela é apropriada pelas elites
econômicas e políticas e apontada como sendo advinda de uma esfera simbólica, representada
pelas minorias e população LGBTQI+. Assim surgem os diversos discursos que dizem que “as
famílias não são mais as mesmas”, que é preciso “lutar pela família” entre outras afirmações e
ideias que defendem uma visão ortodoxa patriarcal e machista da constituição da sociedade. Esse
discurso é especialmente interessante para as elites econômicas que procuram manter o status
quo, assim como para os políticos que o utilizam para cooptar eleitores e mobilizar afetos.
Como já mencionado, a consequência é a exclusão política de diversos grupos assim
como a crescente mobilização de desafetos contra eles. Apoiados em um conservadorismo e
praticando discriminação abertamente, os resultados já podem ser vistos: o ano de 2020 foi o
mais violento da história para as pessoas transsexuais, quando uma vítima era feita a cada
48horas. Outro dado chocante é o aumento da violência de gênero no governo vigente. (Câmara
dos deputados, 2020)
Em suma, os governos populistas e as elites econômicas apoiam seus discursos na
construção política-imaginária que coloca os grupos minoritários como inimigos e imorais e, por
outro lado, coloca a família patriarcal como moralmente correta e modelo a ser seguido.
Em meio a uma crise da democracia liberal, o discurso antigênero faz parte da artimanha
da extrema direita que, em última instância ludibria os cidadãos. Como já mencionado, é
prometido que eles voltarão a exercer sua soberania, que o país voltará aos seus tempos de glória,
que a voz do povo será ouvida, que os politicamente excluídos terão sua vez. Essas promessas
seduzentes apenas fazem parte de um arcabouço de manipulação que, no final das contas,
continua a perpetuar as causas do problema e cria uma sociedade tão excludente quanto a que
eles prometeram extinguir. Para Müller (2016), lentamente os populistas trabalharão de forma a
minar a democracia e suas instituições, o que além de minar os direitos das minorias, pode
terminar com a própria derrocada da democracia.
Assim como Bolsonaro, Trump é um político populista que exacerbou clivagem social
entre “eles” e “nós”. Apoiado em um forte discurso anti migratório, Trump também criou a
fronteira política do povo e da elite excluindo grupos minoritários, sendo amplamente apoiado
pelas fake News e teorias conspiratórias.
Somente para se ter uma dimensão do contexto estapafúrdio em que Trump se elegeu,
vale dizer que ele era integrante de um movimento chamado Birther, cujas ideias estavam
atreladas ao fato de Barack Obama não ser americano, o que o desqualifica como apto a ser
presidente. Os absurdos eram inúmeros, e a comunidade LGBTQI+ não ficou de fora.
Durante seu governo, os retrocessos foram muitos e em muitos momentos o Brasil e os
Estados Unidos estiveram unidos para defender uma cartilha conservadora, contra a “ideologia de
gênero” e contra o aborto. Alguns dos retrocessos apontados pelo site Observatório g (2019) são
a negativa de vistos para parceiros de diplomatas gays, a aprovação de um projeto de lei que
inviabiliza os transgêneros de atuarem livremente dentro das redes públicas americanas, o
banimento de pessoas transgêneros das forças armadas, a retirada de menções aos LBGTQI+ do
site oficial da casa branca entre outras mais simbólicas como ignorar o mês do orgulho
LGBTQI+.
Em 2020, Trump chegou até mesmo a modificar a definição da palavra gênero, que
segundo ele deveria ser feita a partir da biologia de cada indivíduo. Essa medida deixou centenas
de pessoas desamparadas e vulneráveis não só a violência como a discriminação na busca de
atendimento médico, registros além de dificultar o acesso ao aborto de pessoas transgêneros.
Em um outro caso emblemático, Trump chefiou a substituição do termo “saúde sexual e
reprodutiva” para “saúde materna e da criança” em diversas resoluções da ONU e no documento
sobre prioridades da saúde global, negociado com o G7, em Milão. A troca de termos, enfraquece
a histórica luta feminista contra o aborto. (G1, 2017)
O problema gerado pelas ações do governo Trump são problemáticas porque não se
restringem somente a maior democracia do mundo. Os Estados Unidos têm um grande poder de
influência em todo o globo e essas medidas repercutem de modo a endossar a onda de
conservadorismo mundial e legitimar ações parecidas que ocorrem em outros países.
Conclusão
Para diversos autores, a crise da democracia liberal é entendida como um processo que
tem suas causas ligadas a evolução tecnológica, a apreensão econômica e demográfica, entre
outros. O esvaziamento dos conceitos democráticos e o não atendimento das demandas populares
criou uma massa de cidadãos extremamente insatisfeitos com o status quo vigente. Políticos
populistas de direita, se aperceberam dessa situação e aproveitam para cooptar eleitores através
de discursos que falam exatamente o que o povo quer ouvir.
Se por um lado o populismo de fato, tem um caráter democrático pois é inegável que
existem setores sociais excluídos da política, de outro, ele exacerba a polarização política e cria
uma fronteira entre o povo e a elite que exclui diversos grupos minoritários. Esses grupos, em
geral são os imigrantes, as mulheres e a comunidade LGBTQI+.
Essa exclusão não é aleatória e faz parte de uma estratégia bem pensada que visa fazer
manutenção do status quo vigente e trabalha a favor das elites políticas e econômicas vigentes.
As angústias geradas pela desigualdade econômica gritante, são atribuídas como advindas do
modo de ser e de viver da comunidade LBGTQI+. Afirma-se que a ideologia de gênero tenta
modificar os valores sociais, sexualizar as crianças, e implementar uma ditadura gay. Para
disseminar esse discurso, os populistas de direita distorcem informações e criam informações
falsas. O pânico e o medo se espalham e faz com que as pessoas se tornem mais suscetíveis a
aceitarem medidas autoritárias, incitações à violência e discursos de ódio.
O discurso discriminatório, portanto, ajuda a compor a conjuntura de crise tão necessária
para a existência e perpetuação dos governos populistas, que não se sustentam sem que algo
genuinamente forte, como uma crise, ancore a sua legitimidade. Nesse ínterim, as minorias se
tornam cada vez mais vulneráveis e são o bode expiatório para todos os problemas sociais
existentes. Como consequência, as desigualdades econômicas, que são a verdadeira origem das
angústias humanas atuais, se tornam esquecidas e não podem ser combatidas.
Como exemplo, cita-se o governo Trump e Bolsonaro que durante suas campanhas
utilizaram das fake News para alavancar seus números e, mesmo durante seus governos
continuam a construir um cenário de crise além de retrocederem as diversas conquistas feitas
pelos governos progressistas.
Para combater o populismo de direita, Chantal Mouffe (2018) propõe a composição de um
novo terreno hegemônico e a criação de uma fronteia política que enfrente o verdadeiro inimigo:
as forças que compõe o neoliberalismo. Para isso, seria necessária a articulação de um povo
plural, que entre as suas diversas demandas e visão de mundo, tenham em comum o desejo de
aprofundar o seu papel como cidadão e reestabelecer os valores democráticos intrínsecos: a
soberania popular e a igualdade.
Para concluir, é muito difícil dizer se a democracia agonística aspirada por Chantal
Mouffe (2018) poderá ser alcançada, mas independentemente disso, é preciso reestabelecer a
tolerância mútua da sociedade como um todo. Isso significa entender os adversários políticos
como legítimos e estabelecer um diálogo com os populistas. O combate aos populistas não pode
ser feito ignorando-os ou tentando apontar os absurdos que eles dizem. Seus eleitores sabem que
muitos dos seus discursos são exagerados ou falaciosos, mas é justamente isso que eles procuram:
qualquer coisa que não faça parte da velha política, que por tantos anos negligenciou suas
demandas. Por isso, é preciso estabelecer um diálogo entre as demandas do povo e as possíveis
soluções.
Ademais é de extrema importância que as angústias retornem para o seu verdadeiro lugar
e que fique claro que os populistas de direita, ao invés de ajudarem, na verdade estão ludibriando
o povo. Para que isso seja feito é preciso que a esquerda se articule e o debate político seja
reestabelecido, no sentido de superar a pós-política. Finalmente, mas não menos importante, a
proteção das instituições independentes deve ocupar o primeiro lugar da pauta da luta contra o
populismo de direita, uma vez que elas são responsáveis por garantir o direito das minorias e,
portanto, ajuda a sustentar a democracia.
Referências
METRÓPOLES. Vídeos: grupo cerca hospital para evitar aborto legal em menina de 10
anos. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/videos-grupo-cerca-hospital-para-
evitar-aborto-legal-em-menina-de-10-anos. Acesso em: 25 mar. 2022.
MOUFFE, Chantal. Por um populismo de Esquerda. 1. Ed. São Paulo: Autonomia Literária,
2018.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. 1 Ed. Companhia Das Letras, 2018.
MÜLLER, Jan-Werner. What is populism. 1. Ed. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 2016
OBSERVATÓRIO G. 5 vezes que Trump retrocedeu nos direitos das causas LGBTs.
Disponível em: https://observatoriog.bol.uol.com.br/destaque/5-vezes-que-trump-retrocedeu-nos-
direitos-das-causas-lgbts. Acesso em: 25 mar. 2022.
ROSA, Pablo Ornelas; SOUZA, Aknaton Toczek; CAMARGO, Giovane Matheus. O combate à
“ideologia de Gênero” na era da pós?verdade: uma cibercartografia das fake news difundidas nas
mídias digitais brasileiras. Sinais, Vitória, v. 1, n. 1, p. 128-154, fev./2020.