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REVISTA LITTERIS ISSN 1983-7429 Número 4, edição quadrimestral – março de 2010

Dossiê Estudos Árabes & Islâmicos

EROTISMO E LITERATURA EM AS MIL E UMA NOITES

La literatura árabe ignora totalmente ese producto de la vejez espiritual: la intención


pornográfica. Los árabes ven todas las cosas en su aspecto hilariante; su sentido irónico
sólo conduce a la alegría, y ellos ríen de todo corazón, como niños, allí donde un
puritano gemiría de escándal .
J.C. Mardrus

Michele Fonseca de Arruda1


FERLAGOS/ UFF-PG/UFRJ-PG

RESUMO: A relação entre literatura e erotismo é uma constante no mundo das Letras,
entretanto, As Mil e Uma Noites, o grande clássico da literatura ocidental, já foi alvo de
mistificações literárias e associações a manuais de arte amorosa produzidos na Antiguidade.
Neste artigo, buscamos desmistificar o forte referencial erótico muitas vezes associado à obra
mais influente da literatura árabe. Para tanto, partiremos de uma análise bipartida entre Oriente e
Ocidente, destacando as diferenças sociais, históricas e religiosas, bem como os inevitáveis
choques entre culturas tão distintas.

ABSTRACT: The relationship between literature and erotism is a continual topic in the world of
Fine Arts. However, One Thousand and one nights, the famous classic of the Eastern Literature,
was already a target of literary mystification and connections to guides of the art of love written
in the ancient times. In this paper we have as an aim to demystify the strong erotic reference,
which is a number of times associated to the most influential work of the Arabic literature. Thus,
we are going to start from a distinguished analysis between West and East, highlighting the
social, historical, and religious differences, as well as unavoidable conflicts between such
different cultures.

1
CONTATO: michelearruda@ig.com.br .Michele Fonseca de Arruda é Mestre em Letras pela Universidade
Federal Fluminense. Atua na área do Ensino/Aprendizagem do Espanhol como Língua Estrangeira e Literaturas de
Língua Espanhola. Atualmente é Professora no setor de Graduação da Faculdade da Região dos Lagos
(FERLAGOS).
REVISTA LITTERIS ISSN 1983-7429 Número 4, edição quadrimestral – março de 2010
Dossiê Estudos Árabes & Islâmicos

Não é de hoje que o sexo e o erotismo vinculam-se à arte e, muito estreitamente, à


literatura. Escritores como Apollinaire, Sade, Nabakov, Maupassant, Zola e Flaubert são
exemplos de artistas que mostraram o erotismo como criação literária em pelo menos uma de
suas obras.
Para abordar o erotismo de As Mil e Uma Noites a partir de um ponto de vista ocidental,
faz-se necessário considerar o inevitável choque entre culturas tão distintas. Sobre a temática
voluptuosa de algumas obras e o referido choque cultural, Jesus Antônio Durigan, Doutor em
Letras e Professor da Universidade Estadual de Campinas, em seu livro intitulado Erotismo e
Literatura, tece o seguinte comentário: “para complicar ainda mais, por ser um fato cultural, o
texto erótico se apresenta como uma representação que depende da época, dos valores, dos
grupos sociais, das particularidades do escritor, das características da cultura em que foi
elaborada.” (DURIGAN, 1986, p. 7).
Como já observado, o ocidente e o mundo islâmico têm conceitos distintos sobre vários
aspectos e, em relação à sexualidade e ao erotismo, essas diferenças não se extinguem. Muitos
dos costumes muçulmanos considerados arcaicos são, na verdade, mitos. A imagem da mulher
muçulmana envolta em panos, reprimida e submissa, serviu para sedimentar a crença de que, na
sociedade islâmica, a mulher sofre todo tipo de privações. Curioso é saber que, no espaço
familiar, a mulher muçulmana goza de muito mais liberdade sexual que a mulher ocidental.
No ocidente, até pouquíssimo tempo atrás, homens e mulheres experimentavam o
erotismo de modo diferente, com homens assumindo o papel de “caçadores” e mulheres
aceitando passivamente o cortejo, ou seja, a supremacia do macho sobre a fêmea. A civilização
islâmica não apenas retrata as mulheres como suscetíveis ao desejo carnal, mas as imagina com
seres tão passionais quanto os homens. Assim, para os muçulmanos, o ato sexual seria fonte de
prazer mútuo. A fim de confirmar nossas reflexões, citamos, uma vez mais, o professor Durigan:

No ocidente concorda-se facilmente com a idéia de que os orientais conseguiram, com


um passe de mágica, realizar a incrível façanha de anular as dicotomias corpo/alma,
razão/instinto, natureza/cultura, tão caras ao mundo ocidental. (...) a civilização oriental
não só não marginalizou o corpo, como fê-lo participar, em toda a sua plenitude e com
todas as suas exigências, dessa visão integradora do mundo. As posições, as técnicas, os
comportamentos sexuais ficaram sendo tão-somente a conseqüência “natural” da
maneira específica de assumir e de se relacionar com o mundo para, com tal
procedimento, obter mais quantidade e mais intensidade no prazer. (DURIGAN, 1986, p.
14/15).
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Dossiê Estudos Árabes & Islâmicos

Em As Mil e Uma Noites, homens e mulheres demonstram seus desejos e se entregam ao


sexo sem pudores e culpas, agem de modo natural e buscam somente o prazer. Não há obstáculo
moral, hesitação, remorso, senso de proibição ou sentimento romântico. Já nos romances
ocidentais, homens e mulheres são representados como seres de grande atividade física, cuja
libido aparece disfarçada em sentimentos elevados ou moralmente aceitáveis. Ao casarem-se, a
realização sexual geralmente fica relegada a um beijo no fim da narrativa.
Na contramão da “moral literária”, o erotismo de As Mil e Uma Noites desponta de forma
tão crua que alguns contos foram totalmente expurgados de importantes edições. Borges relata
que o primeiro tradutor britânico, Eduardo Lane, descartou trechos inteiros e ainda justificava sua
atitude no corpo do texto: “Passo por alto um episódio dos mais repreensíveis.”; “Suprimo uma
explicação repugnante.” Jamil Almansur Haddad, poeta, ensaísta e crítico literário, na
Conferência da Semana de Estudos Árabes, realizada pelo Centro de Estudos Árabes da FFLCH-
USP (1986), comenta:

Livros como as Mil e Uma Noites dão muita margem à mistificação literária. Os textos
são, às vezes, em certa extensão, suprimidos: entra, aqui, o problema de censura. Edições
censuradas das Mil e Uma Noites publicam-se até no Mundo Árabe. E aqui se situa um
problema muito discutido: o da "pornografia" das Mil e Uma Noites. Esse problema não
é de fácil solução.
As histórias de fundo sexual que, às vezes, se encontram nas Mil e Uma Noites, para o
árabe, ou para o japonês, talvez, sejam muito naturais, não estão carregadas de malícia
ocidental; ou seja, resvalam mais para o humorismo que para a noção do pecado cristão.
Por outro lado, há a diferença de culturas: a mulher muçulmana tem de velar o rosto,
mas não tem problema algum em exibir os seios. Enfim, são outras categorias em jogo.
Talvez, no seio, resida mais a maternidade do que o prazer sexual. De modo que esse
aspecto erótico das Mil e Uma Noites tem de ser estudado com mais largueza de vista e
mais imparcialidade. (HADDAD, 1986, não paginado).

Amparados pela leitura de três versões de As Mil e Uma Noites, a de Jean Antoine
Galland, a de Joseph Charles Mardrus, ambas de origem francesa, e outra realizada a partir dos
originais árabes para a língua portuguesa, de autoria do professor de língua e literatura árabe da
USP, Mamede Mustafá Jarouche, pretendemos comparar o modo como os três tradutores
caracterizam um mesmo episódio de forte conotação erótica. Para tanto, vamos deter-nos apenas
no capítulo introdutório, mais especificamente no fragmento em que Shazaman, irmão do sultão
Shariar, descobre que sua cunhada, igualmente à sua esposa, é infiel. Iniciaremos com a versão
mais difundida, a de Antoine Galland, que assim descreve o referido episódio:
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A sultana, por sua vez, não ficou muito tempo sem amante; batendo palmas gritou:
“Massud, Massud!” E imediatamente, outro negro desceu do alto de uma árvore e
precipitou-se para ela.
O pudor não me permite contar tudo o que se passou entre as mulheres e os negros, trata-
se de um pormenor dispensável. Basta dizer que Chahzenã viu o suficiente para julgar
que o seu irmão não era menos lastimável do que ele”. (GALLAND, 2001, v. 1, p. 31).

Nesse pequeno fragmento, podemos perceber que Galland apresenta uma visão
“suavizada” da história, pois o “pudor” o proíbe de expor com maior riqueza de detalhes o ato
sexual entre as mulheres e os negros, algo que a “decência europeia” de sua época não admitia e
que, por essa razão, era preciso deixar velado. O famoso orientalista francês justifica que tal
passagem é um “pormenor dispensável”, confirmando sua versão casta e moralista da obra,
exemplo curioso da deformação que pode sofrer um texto meticulosamente adaptado para o uso
da corte de Luis XIV.
Passemos à versão de J.C. Mardrus, que expõe o mesmo trecho da seguinte forma:

Y subitamente la mujer del rey gritó:¡Oh, Massud! Y en seguida acudió hacia ella en
robusto esclavo negro, que la abrazó. Ella se abrazó también a él, y entonces el negro la
echó al suelo, boca arriba, y la gozó. A tal señal todos los demás esclavos hicieron lo
mismo con las mujeres. Y así siguieron largo tiempo, sin acabar con sus besos, abrazos,
copulaciones y cosas semejantes hasta cerca del amanecer” (MARDRUS, 2004, Libro 1,
p. 14).

Embora ambas as versões sejam de origem francesa, notamos nítidas diferenças entre as
abordagens de Galland e Mardrus. Ao contrário de seu compatriota, Mardrus descreve
explicitamente a cena de orgia entre escravos e as mulheres da corte. Utiliza a palavra “gozo” no
sentido de orgasmo, sem falsear nem omitir nenhum dado.
A Mardrus se confere o mérito de conseguir chegar até a última página de sua tradução
sem atenuar nenhuma situação erótica. Prova disso é a narração da 1001ª noite, na qual Sherazade
apresenta ao sultão os filhos que, ao longo dos anos, tivera com ele. Assim, a relação sexual entre
o casal que Galland simplesmente omite, Mardrus explicita e, na sua versão, ganha inequívocas
provas.
Na versão de Jarouche, o referido fragmento é apresentado desta maneira:
Os dez agarraram as dez, enquanto a cunhada gritava: Mas ud! Ó Mas ud!; então um
escravo negro pulou de cima de uma árvore no chão e imediatamente achegou-se a ela;
abriu-lhe as pernas, penetrou entre suas coxas e caiu por cima dela. Assim ficaram até o
meio do dia: os dez sobre as dez e Mas ud montando na senhora. (JAROUCHE, 2005, v.
1, p. 42).
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Rico em descrições, sem cortes, objeções ou censura; assim se apresenta o texto de


Mamede Mustafá Jarouche. O encontro carnal entre o escravo negro e a esposa do sultão é
narrado detalhadamente, sem atenuar o erotismo próprio do ato. Jarouche usa expressões ousadas,
tais como “abriu-lhe as pernas”, “penetrou entre suas coxas” e “montando na senhora”, efeito
que dá à descrição um caráter mais real e explícito, cuja intenção é chocar o leitor e obter o efeito
ilustrativo da reação provocada em Shazaman, que assistia a cena. Na versão de Jarouche, a obra
ganha um caráter mais atraente e voluptuoso, fato que confirma as palavras do próprio tradutor,
que, em determinado momento da introdução de seu livro, diz que “o texto mileumanoitesco
geme mais e melhor que quaisquer amantes ou moribundos jamais o fariam” (JAROUCHE,
2005, p. 27). Ao descrever explicitamente o desejo ardente da esposa de Shariar e a consumação
do ato sexual, o tradutor brasileiro rompe com a ideia de mulheres muçulmanas reprimidas, frutos
de uma sociedade rigorosa, e desmistifica a concepção que incompatibiliza o Islã ao erotismo.
Segundo o livro A Sexualidade no Islã, do pesquisador tunisiano Abdelwahab Bouhdiba,
“a cultura muçulmana apresenta uma rica tradição de celebração do prazer e do gozo. Essa visão
hedonista da sexualidade muçulmana revela uma nova faceta das sociedades árabes e destroça o
estereótipo fundamentalista e generalizante de hoje em dia.” (BOUHDIBA, 2006, p. 48).
Desse modo, concluímos que o erotismo é parte intrínseca do ser humano, mas, como
podemos perceber, não é um conceito universal que se manifesta do mesmo modo em todos os
lugares e épocas. Todos os conceitos (pornografia, erotismo, obscenidade, bom e mau gosto) são
tão relativos e, em determinadas ocasiões, tão difusos, que as tentativas de atacar a arte com esses
epítetos em nome da moral ou algo semelhante são vulgares desculpas que a pudica consciência
da hipocrisia institucional trata de impor a uma ordem estabelecida de pareceres.
Ao comparar as três traduções, percebemos que o caráter erótico de uma obra (ou
ausência do mesmo) manifesta não só costumes, aspectos sociais, psicológicos e religiosos de
determinadas culturas, como também políticas de distintas épocas, de períodos de permissão e de
proibição.

BIBLIOGRAFIA:

LIVRO das Mil e Uma Noites. Tradução de Mamede Mustafá Jarouche. 1. ed., v. I. Rio de
Janeiro: Editora Globo, 2005, 4 v.
REVISTA LITTERIS ISSN 1983-7429 Número 4, edição quadrimestral – março de 2010
Dossiê Estudos Árabes & Islâmicos

LAS MIL y Una Noches. Traducción al español de Vicente Blasco Ibáñez, a partir de la
traducción al francés de J.C. Mardrus, publicada en 1903. Ediciones elaleph.com: Argentina,
2004.

ARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

BAUDRILLARD, Jean. De la seducción. Buenos Aires: Red. Editorial Iberoamericana, 1994.

BOUHDIBA, Abdelwahab. A sexualidade no Islã. São Paulo: Globo, 2006.

DEMANT, Peter. O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004.

DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e Literatura. São Paulo: Ática, 1986.

GALLAND, Antoine. As Mil e uma Noites. Tradução de Alberto Diniz. Apresentação de Malba
Tahan. 3. ed., v. 1 e 2. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

GOTLIB, Nádia Battella. A Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1985.

DOCUMENTO ELETRÔNICO:

HADDAD, Jamil Almansur. Interpretações das Mil e Uma Noites. In: SEMANA DE ESTUDOS
ÁRABES, 1986, São Paulo. Conferência. São Paulo: Centro de Estudos Árabes da FFLCH-USP,
1986. Disponível em: <http://www.hottopos.com/collat6/jamyl.htm>. Acesso em: 20 jan. 2010.

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