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Resumo de Estudos Camonianos (biografia e lírica)

Biografia de Luís de Camões: não temos muito de palpável sobre a vida de


Camões. Terá nascido em Lisboa a 1524 (extremo 1525) e morrido a 10 de junho
de 1580 (converge com 1579), também em Lisboa. No ano da sua morte
Portugal perde a autonomia em relação aos espanhóis. De seu nome Luís Vaz de
Camões, filho de Simão Vaz de Camões e Ana de Sá e Macedo. A sua família era
nobre e oriunda da Galiza, estavam em Portugal desde o reinado de D.
Fernando, contudo não tinham grande prestígio nem dinheiro. Subsistiam
através dos outros, dependendo de favores. Sabemos muito pouco sobre a sua
infância e juventude, apenas que vai estar em Coimbra. As suas obras denotam
um grande cabedal cultural, podia então ter apreendido a sua educação e
formação humanista em Santa Cruz de Coimbra, através do seu tio cónego no
mosteiro, Dom Bento de Camões. Denota uma grande qualidade na escrita e
evidenciada cultura, mas não sabemos se frequentou a universidade. Apesar do
contacto evidente desde pequeno com a cultura palaciana (Lisboa) e coimbrã
(universidade), tudo indica que não passava os serões na corte. Sabemos que
não foi uma pessoa querida na corte lisboeta. Era brigão, com carácter
dissoluto, usava artimanhas para sobreviver (vida difícil em Lisboa e Coimbra),
não sendo uma pessoa querida na corte lisboeta. Entre 1542 e 1545 (cerca de
20 anos) está em Lisboa, contactou insistentemente com a corte de D. Manuel,
teve uma vida galante e já era reconhecido pelos seus escritos. Também dizem
ter colecionado ódios, pois piscava o olho a muitas mulheres importantes da
corte. Aparece ligado à família dos Noronhas, por ser perceptor de D. António
Francisco de Noronha (função comum no seu estatuto). Em 1549 sai de Portugal
e fica até 1551 no norte de África, nomeadamente em Ceuta, de forma a buscar
consistência económica por via militar, onde fere a vista direita. Já com cerca de
25/27 anos retorna a Lisboa e privilegia uma vida boémia apesar da sua
qualidade poética. No dia de corpo de Deus envolve-se numa rixa e acaba na
prisão, é perdoado e embarca para a Índia como exilado numa armada (Goa),
onde exerce funções, ou não, sobre a orientação de diferentes governadores
daquele espaço (extensão imperial de Portugal). Viajou por outros lugares mais
orientais onde desempenhou várias funções administrativas e também levou
alguns processos por fraco desempenho. Conheceu mares e territórios,
nomeadamente, China e Japão (inspiração?). Em 1554 vai numa armada para o
mar vermelho e quando volta em 1558/9 ocorre um naufrágio, onde a sua
amada morrera (Dinamen?). Não sabemos se traria os Lusíadas na mão ou se
estava acompanhado de um criado fiel. Em 1560 já está em Goa, mas numa
situação precária (económica e social). Pontualmente aparece encarcerado por
dividas. Em 1567 procura voltar para Portugal e vem para Moçambique. Em
1569 estava ainda em Moçambique muito pobre vivendo da generosidade de
amigos. Camões compunha os “Lusíadas” e o “Parnado de Luís de Camões” (não
chegou aos nossos dias, mas que poderia ter estado na base das Rimas –
coletânea). Em 1570 Camões chega a Lisboa, após 17 anos fora do país. Camões
morre com 50 e tal anos, dos quais 17 anos são passados na terra de oriente e
cerca de dois anos em África, não só fora do país, mas também fora da Europa.
Forte cabedal de cultura literária e humanística impregnada na infância. Volta a
Portugal com o propósito de ter apoio mecenático para lançar os Lusíadas e,
após dificuldades, beneficia de apoios e da benevolência da inquisição. Edita em
1572 a sua obra central, dedicada a D. Sebastião, seis anos antes do seu
desaparecimento. Obtém de D. Sebastião uma pensão, renovando a esperança
da continuação glorificadora do país com este rei. Nos seus últimos anos
beneficiou proteção económica e política, mas acaba por falecer na penúria. Em
1580 morre e inicia-se a dinastia filipina. A partir do século XIX existe no
Mosteiro dos Jerónimos um túmulo com supostamente os seus restos mortais
(símbolo da celebração das descobertas, do país, do tempo áureo desde D.
Manuel). Até ao dia de hoje continuamos a celebrar o dia da sua morte, Dia de
Camões, de Portugal e das comunidades portuguesas. Homem de experiência
poética, de vida, ansiedades, angustias, problemas, vida sofrida, contacto com
outras culturas. A vida multifacetada justifica o carácter multifacetado da sua
obra. Demonstrou tanto conhecer os autores tradicionais (idade média) como
os modernos (gosto italiano), aprendeu grego e latim, só não sabemos que
obras conheceu. Pedro Mariz, Manuel Severim de Faria e Manuel de Faria e
Sousa são os estudiosos/ biógrafos antigos que se debruçaram em Camões.

Repertório camoniano: Muitos autores só foram reconhecidos post-mortem.


Mas Camões pôde controlar o lançamento d´os “Lusíadas”, obra épica dedicada
a D. Sebastião. A Ode e Elígia foram publicadas no mesmo ano que os Lusíadas,
assinada por Pero Magalhães num cancioneiro de mão (organizadas por um
autor que recolhia obras de outros autores). Contudo isso não aconteceu com
as rimas nem com o teatro. As rimas saem após 15 anos da sua morte. Segundo
Diogo Couto, Camões escreveu o “Parnado”, obra que não chegou até nós, mas
poderia conter já muita lírica. Na edição das Rimas de 1595 fazem parte
composições que não são de Camões, presentes no cancioneiro geral de Garcia
de Resende (escritas em 1516, antes do próprio nascer). Textos de teatro são
três, todos os atos foram impressos post-mortem. Denota-se a relevância de
Camões, pois enquanto viajava era convocado por cancioneiros e depois da sua
morte não demoraram muito tempo a reunir a sua obra e a publicá-la.

Os teorizadores dos séculos XVI-XVIII caracterizaram o período médio entre a


Antiguidade Clássica greco-latino (mitos e deuses, termina no séc. V) e o
Renascimento (Deus e o homem, antropocentrismo, inicia no séc. XV), como
Idade Média (um Deus, teocentrismo, séc. V – séc. XV). A queda de
Constantinopla em 1453 marca o ocaso (termo/fim/decadência) da Idade Média
(durou séc. V a XV). A Idade Média é considerada um tempo de trevas, barbárie,
cavaleiros e guerras (leitura pejorativa). Porém é com este tempo que se
entende não haver rutura com a Antiguidade Clássica nem com o
Renascimento, pois sempre que se passa de movimento artístico permanecem
lastros dos diferentes paradigmas histórico-sociais.

Humanismo e Renascimento: Inicia-se no séc. XV, marcado por mudanças no


Ocidente e no mundo com a queda do Império Romano, os descobrimentos, o
surgimento da imprensa (difusão de obras) e o aparecimento das línguas
vernáculas (apesar do latim permanecer). Começa na Itália, zona central da
Europa que com visões inovadoras éticas e estéticas propiciaram a passagem
periodológica. O séc. XV caracteriza-se como altura de preparação e o XVI como
plenitude renascentista. Assim, Camões viveu no período âmago (tempo
central) do século XVI (1524-1580), século esse considerado o de ouro da
literatura portuguesa, tal como este autor é considerado central da literatura
portuguesa. Este século é marcado pelo Renascimento, um tempo novo na
Europa, multímodo, com ruturas, projeções de lastro anterior (Idade média),
repetições, metamorfoses, típico do idioleto camoniano. A obra camoniana
apresenta claras aberturas a outros tempos, tanto nos leva para a idade média
como nos parece estar a antecipar o Barroco do séc. XVII. Este período
caracteriza-se pela diferenciação, novidade e modernidade, retoma-se a
Antiguidade Clássica como farol pelo seu prestígio, autoridade e credibilidade,
mas assumindo-se a modernidade, ou seja, inovam-se as matrizes antigas
culturais, tecnológicas, etc. Este tempo histórico e cultural durou entre a
segunda metade do século XV até o fim do século XVI/ início do século XVII
(podemos prorrogar até ao séc. XVIII). Camões esteve no centro do tempo
renascentista de evoluções, mudanças e ajustes, onde confluíram reações,
contrarreações e antíteses, como o classicismo e o maneirismo. Apesar da
homogeneidade que o caracteriza permitiu várias mudanças. Camões teve em
conta o lastro de tempos anteriores elementos metamorfoseando-os. Ao
contrário do Renascimento, o Humanismo não é um período, contudo têm
correlação entre eles. Movimento de mudança económico, cultural e social que
levou os homens italianos que estudavam grego, latim, filosofia, antropologia,
etc. a conhecer a antiguidade projetando-a e valorizando-a. Assim o humanismo
define-se como o conhecimento, divulgação e interpretação do tempo greco-
latino que dinamizou e favoreceu o renascimento. Preservou a centralidade de
Deus, mas criou a centralidade do próprio homem nele mesmo (humanidades,
valorização do homem). Camões com matriz humanista num tempo novo
(renascimento). Do centro (Itália) veio para a periferia (Portugal), mas num
processo lento. Pois Portugal continuava com o legado medievo muito
impregnado ainda no séc. XVI, por autores como Gil Vicente (pai do teatro
português) e Garcia de Resende (cancioneiro geral). A verdadeira literatura do
renascimento surge com: Francisco Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, António
Ferreira, Luís de Camões, entre outros. Francisco Sá de Miranda viajou pela
Europa para conhecer, se familiarizar e trazer para Portugal a novidade cultural
de Itália, começou a fazer sonetos e trouxe a gramática do petrarquismo para
Portugal. Camões nasce no momento de mudança/ renovação das práticas
literárias, quando o medievo apesar de se manter importante acaba por se
extinguir. Quanto a Camões devemos ter em conta que era um poeta do
mundo, que viveu grande parte da sua vida no oriente e em África,
experienciando e contactando com outras culturas. A sua vida rica e
multifacetada a nível cultural e de experiências (também em Coimbra), refletem
na sua obra escrita. Sintetizando podemos aferir que a formação de Camões foi
ambientada no séc. XVI humanista e renascentista, formou-se com base em
influências itálicas (anos 20-30), que o novo paradigma cultural e literário o
marcou, o saber livresco e de experiência foram relevantes, ele nunca rejeitou a
tradição poética medieval (quatrocentista ibérica), era bilingue (escreveu em
português e em castelhano), conhecia latim e grego, tentou colher o melhor do
legado tradicional e do legado novo, não deve ter conhecido a poesia
trovadoresca do séc. XIII diretamente, mas alguns ecos lhe terão chegado, mas
deve ter tido um contacto direto e intenso com o quatrocentismo medievo.
Autores greco-latinos como Homero, Platão, Horácio, Virgílio, Ovídio, Plínio, etc.
influenciaram-no, assim como o influenciaram os seus contemporâneos como
Petrarca, Dante e Boccaccio. Camões bebeu na juventude e adultez vários
conhecimentos que lhe permitiram o hibridismo vasto cultural. Foi favorecido
pelo tempo multímodo e evolutivo, pelas tensões e conflitos.

Apesar da poesia em medida velha ser a menos conhecida do escritor, este


nunca olhou para ela como menor, nunca pôs de lado o legado ibérico tardo
medieval e apesar de muitos pensarem que só escreveu lírica na juventude isso
é mentira. Camões escreveu poemas em redondilha de arte maior (7 silabas
métricas) e menor (5 silabas métricas), como glosas, cantigas, vilancetes,
endeixas, esparsas, trovas, novas, letras, improviso, ... onde aguçou a sua
vertente retórica / de habilidade criativa e lúdica, jogo estilístico, figuração
discursiva e gosto pelo complexo por formas, conteúdos e fórmulas (típica das
cortes portuguesas e castelhanas, acompanhadas por dança e música). A poesia
cortesanesca privilegiava o jogo sobre amor e sátira, a par da religião, heroísmo,
folgar, lúdica, história, desconcerto do mundo e das pessoas, usando metáforas,
antíteses e alegorias. Ao conhecer a tradição cortesanesca e os ecos da tradição
palaciana, Camões soube metamorfosear.

Análise de poemas em medida velha (redondilha maior – 7 – e menor – 5):


- agudeza estilística-retórica
- sobre circunstância real, comum da época (mote transforma-se na motivação)
- amor (positivo e negativo) – sofrimento – vingança
- obsessão camoniana de encarregar o amor de fazer tudo e destruir tudo
- sofrimento amoroso dos homens espelhado no sujeito poético camoniano
- mulher provoca sofrimento no homem (ex. mentindo, não reciprocidade)
- esquizofrenia do SP, tentativa de persuasão por reversão retórica
- crítica geral a “x” tipo de mulheres
- ressonância tradicional medieva
- vulgar nos poetas do sec. XVI retornarem poemas/temas existentes (ex.
cantigas/ motes alheios)
- hipérboles, antíteses, oximoros, metáforas, perífrases, anáforas
- olhos e cabelo como fonte de amor
- beleza feminina natural, genuína
- quem sente amor sofre
- poesia palaciana (canções trovadorescas) ressoa – ele sofre porque morre de
amor por ela
- SP encobre os seus sentimentos
- cor, beleza, jovialidade, natureza, vida, flores
- mulher controla o curso da natureza
- petrarquismo: beleza por via dos olhos, mulher bela, olhos claros, suscita amor
a todos que a veem, pele clara, fria/ ausente
- mulher que com os olhos controla a natureza e prende amorosamente as
pessoas
- elogia da beleza através da descrição de enamorado
- olhos, natureza, verdejante, agradável, brotar, acalmar, aclarar, florescer
- Laura – código petrarquista: pele branca, cabelos louros em trança
- corpo magro, bem talhado, descrição de roupas, destaque das mãos
reluzentes
- graciosidade, leveza, natural, ingenuidade
- Hibridismo entre medida velha (voltas, mote, simplicidade da natureza) e
medida nova italiana (petrarquismo)
- história divertida (tom jocoso) em que o SP é feminino (recriação de um
enredo poético)
- contraste entre natureza (intrínseco da mulher, amor espontâneo, essencial) e
cultura (aparência, bem material, regras convencionais, preceitos, vil)
- ridicularização de quem se rege pela culturalização do amor, fonte de
sofrimento (desvantagens)
- amor natural como força motriz do mundo, fonte de felicidade (vantagens)
- cupido (mitologia amorosa) está nu porque não é culturalizado
- no SP em Camões converge um conflito/ dissídio
- Idioleto camoniano: hibridez, ecletismo, genialismo de Camões que funde
vários códigos com o seu lado pessoal gerando um discurso poético próprio
- podem confluir diferentes leituras e interpretações (superficiais, profundas)
- a ambição desmedida pode levar à queda abrupta
- SP ousa pensar numa mulher de alta estirpe e acaba sofrendo (falta de
reciprocidade amorosa)
- jogo de palavras (ex. desasado – depenado – penado)
- sofrer em silêncio para não ser humilhado (caricaturização)
- de coisas simples da poesia trovadoresca torna-as em situações compostas
- mal intrínseco ao SP – masoquismo (dolendi voluptas), auto inimizade,
questionação do eu (drama, angústia)
- Nasce – é – sofre (amor, culturalização)
- Sou o mal – tenho de me transformar – deixo de ser eu (autoaniquilação)
Petrarquismo: O petrarquismo faz parte das matrizes itálicas na obra
camoniana. Define-se como uma gramática poética / literária, sendo que é um
fenómeno de modelização poética que parte da obra de Francesco Petrarca.
Francesco Petrarca foi um autor italiano do séc. XIV, um dos primeiros
humanistas italianos, poeta, pensador, homem novo daquele tempo. Este autor
poetou em termos temáticos, genológicos, discursivos, retóricos que marcaram
todo o seu tempo posterior, essencialmente do renascimento até ao
neoclassicismo com influência na música, pensamento, estudo crítico de textos,
antropologia. O tempo humanístico é marcado pelos ecos da sua obra. Assim,
aquele que segue Petrarca e no fundo o petrarquismo denomina-se de
petrarquista e designa-se de petrarquiano ou petrarquianismo a própria obra de
Petrarca. A poética petrarquista incrustou-se noutros autores, nomeadamente
nas composições camonianas. O Canzionere (cancioneiro) de Petrarca teve
acrescentos e melhoramentos de outros autores. O ícone de mulher em
Petrarca é Laura, que apresenta o ideal de beleza, pele branca, olhos luminosos
e incandescentes, cabelos louros, bela face rosado, beleza dos lábios e dentes,
assenta assim num ideal de beleza físico. Petrarca privilegia o soneto, mas
também a canção. O tema geralmente prende-se ao SP que ama perdidamente,
encontra na mulher amada extremamente idealizada alguém fria, reservada,
indiferente, mas o SP não a deixa de amar e de lhe cantar o seu amor, apesar de
isso lhe provocar grande sofrimento e conflitos. Recorrem-se a antíteses e
comparações. Há um dissídio (conflito patento-latente), que deixa o SP em
angústia, mas que não o faz desistir do seu amor e felicidade idealizados
sofrendo. Resumindo, as forma retórico-temáticas são o amor, sofrimento,
beleza da amada, ícone de Laura – físico belo, mas psicológico reservado, SP a
cantar, conflito. Já na cantiga de amor trovadoresca (provençal ou galaico
portuguesa) havia tópicas poéticos de Petrarca que ressoavam, como as
divergências, a mulher (não era corpórea) e o amor que levava à morte.

Stilnovismo: Os autores petrarquistas dialogaram com outro tipo de gramáticas,


nomeadamente com o dolce stil novo, matriz itálica que também faz parte da
obra camoniana. Não devemos confundir petrarquismo com stilnovismo, já que
este é anterior a Petrarca, o petrarquismo apenas aproveitou características do
dolce stil novo, ou seja, reformulou-o. O stilnovismo está ligado a um estilo
medieval, é mais simplista e introspetivo relativamente ao SP que o
Petrarquismo, assenta numa dimensão espiritual em que a mulher é comparada
com figura mulher-anjo (interior). Exemplos de stilnovistas são: Pietro Bembo,
Juan Boscán e Garcilaso de la Veja. O ícone de mulher é a Beatrice de Dante
(stilnovista, autor da divina comedia). Ao contrária da mulher idealizada
corpórea de Petrarca, aqui a mulher é comparada a um anjo espiritual
sossegadora e contemplativa.
Camões – O petrarquismo e stilnovismo têm uma grande repercussão na poesia
humanista e do renascimento, assim como em Camões. A reformulação e jogo
de versos confirmam a síntese genial própria de Camões dos -ismos, o seu
idioleto próprio.

Neoplatonismo: Além do petrarquismo e stilnovismo, Camões joga com outro


código, o neoplatonismo. Destaca-se o cabedal de conhecimento de Camões
que se espelha tanto na lírica como na épica, assim vemos repercussões
neoplatónicas no seu repertório. Platão é o grande autor da antiguidade a nível
de pensamento, filosofia e antropologia. Platão estudou as relações,
nomeadamente o amor. O amor platónico assenta na idealização, no
inalcançável e não contempla a dimensão carnal. Percebemos que são vários os
pensadores da idade média que conheceram Platão, por exemplo D. Duarte, rei
português culto e devotado aos livros com biblioteca própria que se refere
numa sua obra aos conhecimentos vindos de Platão. Na idade média temos o
conhecimento e no renascimento o neoplatonismo, usado como base e
sustentação na composição literária. A doutrina neoplatónica desenvolvida no
humanismo e renascimento parte de Platão e aos estudos sobre Platão, como
de Plotino que desenvolveu aspetos introduzidos por Platão. Associa-se muito,
entre outros, a dois autores que procederam a uma releitura e projeção: Leão
Hebreu (Diálogo de Amor) e Marsílio Ficino (comentou o célebre banquete de
Platão), estes autores viveram essencialmente no séc. XV e transição para o séc.
XVI. Mais do que código ou modelo artístico-literário como petrarquismo ou o
dolce stil novo, o neoplatonismo é uma doutrina de alcance filosófico,
antropológico e artístico-literário. Alicerça-se na ideia de que há um mundo
sensível (sensorial, terreno, palpável), inteligível (ideias, conceitos,
reminiscência) onde o bem ou belo são essenciais na orientação da vida e
experiência do ser humano, como no amor. Pelo que o Amor surge como força
motriz do homem na vida, sentimento que organiza o universo, pangesiaco, de
superação, tranquiliza, harmoniza, anula conflitos/ tensões/ disforias, atinge o
belo/ bom/ perfeição. Além do amor conflui a ideia de natureza. O amor
neoplatónico não põe de parte o desejo carnal, apenas não o incorpora como
um fim em si mesmo. Mas deve-se experienciar para chegar ao verdadeiro amor
e ao plano divino onde reside Deus e a perfeição. Vemos que a complexidade
parte de Platão e é amplificada por outros autores. Esta doutrina pode estar em
harmonia ou não com o petrarquismo e dolce stil novo. O que sustenta a
metamorfose e o idioleto camoniano. Em síntese, o neoplatonismo parte de
uma releitura de textos de Platão e Plotino e baseia-se no bem, belo, sensível
que atinge o plano inteligível divino de perfeição. É positivo, eufórico, de
superação de vicissitudes, amor como forma motriz.

Além do classicismo também temos de ter em conta a poética do Maneirismo


(disforia, melancolia, pessimismo, ...).

Classicismo e Maneirismo: Estes dois -ismos distinguem-se como polos


antónimos, pois são visões do mundo estéticas e éticas opostas que coexistem.
Camões como contou com a tensão evolutiva que o séc. XVI apresenta lastros
classicistas, mas também maneiristas confluindo, por exemplo n’Os Lusíadas
(refratário). Camões supera tudo o que existia através da metamorfose temática
e formal, reuniu todas as condições para criar uma obra única (genial) de acordo
com a sua época. Enquanto o classicismo se relaciona com o harmonioso,
tranquilo, realista, eufórico, positivo, amor, bem, beleza, locus amoenus, etc. O
maneirismo de influência itálica (soneto, canção, ode, ...) relaciona-se com o
disfórico, melancólico, pessimismo, negativo, conflitivo, nostálgico, dissídio,
dramático, locus horrendus, etc. É uma noção refrataria, oposta e contraposta
ao neoplatonismo. “No dia em que eu naci morra e pereça...” e “Erros meus má
fortuna...” são exemplos de poemas maneiristas de Camões. Aqui a visão do
amor é anti neoplatónica.

Análise de sonetos (2 quadras, 2 tercetos, versos decassilábicos):


- cabelos louros, ondulados e reluzentes como o ouro (fino, rico, claro)
- faces rosadas, olhos doces e reluzentes, riso sincero, gentil e ténue (lábios,
dentes)
- mulher como divindade, num pedestal, mulher-anjo, doçura, brandura, beleza,
única, invulgar, ausente, homem como ser inferior – dolce stil novo
- decalque do petrarquismo e stilnovismo
- modelização do ícone Laura de Petrarca (petrarquismo) e Beatrice de Dante
(stilnovismo)
- cabelos louros e trançados
- estratégia de contentamento pela imaginação ou contemplação do SP que
aparenta saber que jamais terá o todo
- amor com turbilhão de sentimentos contraditórios que o ser humano procura
- SP não consegue definir “amor” (poema circular), complexidade
- podemos renunciar a tudo menos ao amor, subversão das coisas naturais da
vida em nome de um bem maior
- turbilhão de sensações, incerteza, desconcerto proveniente do amor que o SP
sente
- autoanálise psicológica, perda de autodomínio (faculdades, conhecimentos),
SP consciencializado do sofrimento que sente, teor dramático
- SP arrebatado por amor, sofrimento, preservação de recordações positivas
- SP enamorou-se, tinha esperança de viver o amor, mas a mulher amada não
cumpriu o que prometera (fado)
- tudo de bom do SP ficou na mulher, nele só ficaram as coisas más, contudo ele
não se queixa pois recordar as lembranças são prova do seu amor
- marcas de dolce stil novo: mulher-anjo, gentileza, doçura, tranquilidade,
serenidade, paraíso, bem, não se descreve fisicamente a mulher, contemplação
pelo olhar (SP inebriado)
- a mulher como ser superior tanto no petrarquismo como no stilnovismo
- para o SP estar pleno e feliz basta ter uma experiência
- SP canta, elogia, exorta o amor doce e concertado
- dimensão eufórica – neoplatonismo
- amor e canto do amor - força motriz, fonte de alegria, mudança para o bem,
plano suprassensível (universal, tese, abstrato)
- no plano pessoal a experiência amorosa não é eufórica como ele canta – o SP
não é tão expansivo, contenta-se com pouco, é inferior à amada
- petrarquismo: mulher rigorosa, marca distância, temas desconcertados, beleza
única, amor questionador, reorganizado cosmologicamente
- superação das dificuldades da vida amorosa pelo neoplatonismo, mas o SP não
controla a experiência pessoal conflitiva
- metamorfose espiritual: SP transforma-se naquilo que ama, não tendo já que a
desejar nem a alcançar porque possui-a no seu corpo – chega ao plano
inteligível
- SP tranquilo pelos caminhos da espiritualização, sem conflito (alma) –
neoplatonismo – contudo, não passa de uma semi-ideia – reminiscência,
idealização, meio caminho para a ideia, não será algo real/ concreto/ palpável,
tem a ver com o pensamento/ imaginação (corpo)
- SP não atinge completude amorosa, ideia de insatisfação, desejo perene
- Neoplatonismo – caminho que SP camoniano recorre para aniquilar os
dissídios, mas sem êxito.
- desejo carnal pode ser via de purificação para um mundo inteligível
(conhecimento, compreensão) – plano superior, divino, acese, perfeição –
experiência neoplatónica
- mulher: plano espiritual de beleza, emanação de Deus, harmonia, bem
- os modelos de mulheres como Laura e Beatrice são artificiais (crítica), assim o
SP procura uma mulher concreta
- SP supera os dilemas quando abandona os modelos (petrarquista e stilnovista),
adotando só o neoplatonismo
- fusão de stilnovismo, neoplatonismo e petrarquismo (classicista): tonalidade
eufórica, leda, deleitosa, serenidade, amenidade, tranquilidade, paraíso,
sensível inteligível, descrição corpórea, valiosa, doce riso, pele branca, cabelos
louros, bochechas rosadas, recatada, graciosa, despojada, com siso, beleza
natural, alegre, comedida, cativeiro de amor
- a vida e morte do SP depende da senhora amada
- características delicadas de uma mulher: olhos, riso, gesto, brando, doce,
humilde, honesto, alegre, contida, moderada, comedida, angelical, recatada,
pura, despojada, bondosa, graciosa, ousada sem ser propositado, forma de
estar a medo, plano superior – dolce stil novo
- mulher transforma o SP que este perde a capacidade de pensar (autonomia
volitiva e cognitiva), mesmo assim ele não se importa de perder essas
características - ideia de superação
- mulher amada como figura anjo (dolce stil novo), fermosa, bochechas rosadas,
olhos pretos, pele branca (petrarquismo), recatada (dolce stil novo), cativeiro
amoroso (petrarquismo)
- a canção é típica dos novos modelos vindos de Itália
- tom nostálgico, desgostoso, melancólico, disfórico, de mágoa
- fala-se do passado, presente e suposto futuro
- imagem de uma mulher pintada no pensamento do SP: testa branca e
reluzente (Laura de Petrarca), riso discreto, olhar sereno, gesto delicado
- esperança, engano, pensamento, desengano - lembrança até à sua morte
- esperava ser feliz mas ao recordar o que tinha e agora já não tem resta-lhe a
tristeza (lembrança duplamente pior) – SP apesar do sofrimento não se importa
de o cantar (petrarquismo)
- dissídio/ conflito total - maneirismo
- SP reverte o petrarquismo: Bárbora é a antítese de Laura
- cativa (escrava) que tem o SP cativo de amor, perde a capacidade volitiva
- única, mais bela, olhos pretos, sossegados e cansados (mata de amor as
pessoas), cabelos pretos, negra, doce, mansidão, sossego, tem juízo, presença
calma, tranquila, beleza serena que amansa o cativeiro amoroso do SP, amor
permite ao SP sentir-se vivo, esperança e positividade pois o amor é natural
(sem convenções) e poderá ser recíproco
- amor neoplatónico, negação do petrarquismo mas mantendo características
tanto do petrarquismo como stilnovismo – idioleto camoniano
- quando se sai da cultura para o natural, a probabilidade do amor ser feliz é
grande. O amor culturalizado raramente é feliz.
- maneirismo (tom disfórico, melancólico, pessimista, negativo) contrasta com o
neoplatonismo (bem, vida, amor) e é uma reação ao exagero classicista
(contacto de Camões com os autores italianos e castelhanos)
- noções maneiristas: erros próprios, má fortuna (fado – má sorte), incerto da
vida amorosa levam à perdição – bastava-lhe só o amor, mas sobrepõem-se os
erros (assume-os, culpa própria) e o destino.
- sofrimento, dissídio, perda de esperança, engano e desengano (dor e mágoa)
- renuncia a possibilidade de encontrar a felicidade – renuncia circunstancial
(oposto ao petrarquismo que o SP mesmo sabendo que sofre continua a cantar)
- dor, mágoa, revolta, obscura, pessimismo, disforia, morte, destruição do
mundo
- negação da própria existência, aniquilamento da natureza diurna, cenário
apocalíptico, negação total da mãe natureza
- papel como fiel secretario do SP, escrita poética como desafogo
(petrarquismo), pois o canto minora o sofrimento (atenuar a dor, refúgio)
- contentamento: fica feliz com apenas escrever o que sente
- desconcerto, dor, engano, desengano, lagrima, mal intrínseco na alma do SP
(maneirismo), lembrança com caracter negativo
- mulher, desde a infância como motivo de infelicidade no SP
- desabafo à maneira petrarquista com tonalidade maneirista
- vingança, tormento, dor, descontentamento, mágoa, engano – ecoar de
sensações disfóricas e negativas
- graça, mansidão, amenizar o dissidio dramático
- complexidade de uma ideia aparentemente circunstancial
- maneirismo, engano e desengano, desatino, ma fortuna e fado, esperança e
entusiasmo no amor e felicidade – desemboca no sofrimento
- SP culpabiliza o amor, erros, destino, etc
- duplo sofrimento através da lembrança (felicidade breve, efémera, provisória)
- masoquismo: conhece a dor, mas não se importa de por amor ir ao abismo e
sofrer, assim como de o lembrar (sente e vive de novo o mal)
- SP deixa de cantar o amor profano para cantar o amor divino – experiência
totalizadora – sumula do seu universo poético – redireccionamento para um
lado mais ao divino (fase mais tardia de Camões)
- intertexto bíblico (ex. cativeiro do povo hebreu na Babilónia)
- poema em medida velha numa retratação final (?)
- contraste entre presente (mal) e lembrança do passado (bem)
- as lembranças do passado acabam por ser atenuadas por já não existirem
porque já não é gosto mas mágoa
- dimensão profunda existencial transversal ao ser humano – presente, atual –
bem efémero que logo após vem o mal (desengano)
- SP coloca-se num tempo presente e lembra as memórias efémeras do tempo
passado – pensa como o gosto e prazer agora lhe fazem sofrer e sentir mágoa –
cativo das memórias negativas
- canto intransitivo, confusão, recorre a outra forma já que o canto não curou o
dissídio
- abandonar o instrumento musical (canto lírico musical profano - frauta) em
busca do amor/ desejo por uma mulher
- deixa o canto do amor, mas não deixa a sua causa, o amor
- canto do amor profano do passado era um desafogo para amenizar o
sofrimento, mas renuncia completamente ao canto profano da frauta rude
(amor, engano, ventura, vida, natureza, mágoa,...)
- SP acredita haver na reminiscência (Platão) um futuro por isso preserva o amor
- novo tempo de felicidade numa tonalidade divina
- Beleza, bem, bondade na pátria divina, perfeição em Deus – neoplatonismo
- beleza geral – plano inteligível – por isso tem de mudar o canto
- passado (frauta – plano sensível – terreno) trocou por uma lira dourada que
lhe permita redirecionar o canto ao amor profano que só lhe deu agruras para o
canto de amor divino
- reminiscência - Paz – finalmente – retratação/ palinódia
- passa para patamar da beleza divina e bem supremo com a ajuda de Deus,
através da lira santa (experiência nova não é fácil)
- rendido a Deus, quase a completude do universo da obra camoniana
- renuncia a tudo o que tem a ver com a dimensão humana - diferença do
mundo inteligível e sensível
- síntese de uma vida, toda a sua obra lírica - novo canto ao divino (lira dourada)
– este é o único poema que segue esse ideal
- por um lado frauta rude (canto profano) e por outro lira dourada (novo canto)
Alguns conceitos breves:
. Ode – importante na cultura da antiguidade clássica, culto, elevado estilo,
objetivo de ser cantado, louvar ou exaltar algo, dimensão heroica.
. Estilemas – expressões ou palavras muito tipificadas de certo código.
. Idioleto – discurso muito próprio, vastidão do seu universo poético, também
muito coerente.

Conclusão sobre a lírica: Camões é um poeta conhecedor, multifacetado e


multímodo, conheceu a realidade típica do séc. XVI ocidental e europeia
marcada por modelos literários como o petrarquismo e o dolce stil novo e
doutrinas como o neoplatonismo na época do renascimento. O seu estilo de
época é variado: maneirismo e classicismo. Nunca pôs de lado a herança
medieval. Conhecia as gramáticas do seu tempo e de tempos anteriores. A sua
experiência de vida fora do país parece estar plasmada nas canções IX e X
(autobiografia). Recorre a pessoas aparentemente reais. Dominava vários
géneros e discursos: endechas, trovas, sonetos, glosas, canções, éclogas,
bucólicas, ... Retórico-estilística variada e rica com temáticas como: amor, vida,
mundo, morte, natureza, dissidio, engano, desengano, fortuna, erro, culpa, ....
Procurou muitos modelos para ultrapassar os obstáculos do amor – dor,
mágoas, nostalgia – pontualmente não foi muito eufórico. Acabou com a análise
e reflexão de dois poemas em medida velha. Espinha dorsal da obra camoniana:
elogio à beleza matéria de Laura, a espiritualidade angelical de Beatriz, beleza
corpórea, pretidão de amor da Bárbora, Dinamen, ... Nos Lusíadas também
confluem doutrinas literárias, mistura-se o campo mítico pagão com uma
dimensão cristã e são já publicados numa fase avançada da sua vida.

Resumo de Estudos Camonianos (épica)

Introdução:

Camões é o poeta central do cânone da literatura de língua portuguesa –


cultura e idiossincrasia – tal como Os Lusíadas é a obra central e fundamental da
cultura global portuguesa. Autor de um idioleto muito próprio com carácter
híbrido, multímodo e multifacetado tanto a nível da lírica como da épica. A
primeira edição d’Os Lusíadas foi lançada a 1572 e mantem uma elevada
tiragem editorial até aos nossos dias. A obra Os Lusíadas é um poema épico do
ponto de vista genológico. A épica de Camões está em linha com obras da
antiguidade através da inovação imitando e recriando a matéria, estrutura e
estilo. No seu tempo, o do renascimento, confluíam a antiguidade clássica,
tradição tardo-medieval, classicismo e maneirismo. O classicismo e maneirismo
são os códigos artístico-literários deste poema. Durante muito tempo este
poema foi visto à luz do classicismo, mas na atualidade sabemos que muitas
temáticas se enquadram no maneirismo (teoria do Professor Aguiar e Silva).
Quanto à estrutura externa, o poema divide-se em 10 cantos, 1102 estrofes e
8816 versos. Quanto à estrutura interna preserva uma modelação tradicional:
Proposição, Invocação, Dedicatória e Desenvolvimento in media res (começa-se
a contar quando os nautas portugueses estão em plena viagem). A Viagem, a
História de Portugal e a Intriga Mitológica são os três níveis/ planos com os
quais convivemos durante toda a obra, importantes na potenciação de leituras
mais particulares. Primeiro irrompe o plano da viagem e logo de seguida
interliga-se com o da intriga mitológica no primeiro canto, o da história de
Portugal só emana no canto terceiro. O estilo épico e celebrativo do poema
procura falar da bravura dos nautas portugueses nas aventuras épicas e
invulgares, a matéria específica deste canto celebrativo que rememora e projeta
o glorioso passado recente. Contudo, o poema épico não é exclusivamente feito
da celebração de feitos do herói coletivo, pois o objetivo é recriar o universo
cultural português englobando guerra, amor, dimensão trágica da vida, etc.
Deve-se ter em conta alguns episódios estruturantes: os dois concílios dos
deuses (deuses adjuvantes e oponentes), a viagem (Vasco da Gama chega junto
do rei de Melinde), história de Portugal (guerra como Aljubarrota ou líricos
como morte de Inês de Castro), tema do amor (ilha dos amores), lastro
maneirista (velho do Restelo). A leitura não deve ser feita só pelo eixo
horizontal, mas através de segmentações, isto é, interligar os episódios com o
seu co-texto. Por exemplo a mitologia e a história são fulcrais em termos de
inter-relacionamento para entender a dinâmica do poema, enquanto a viagem e
o herói coletivo são reestruturantes. A ideia de heroicidade portuguesa está
muito latente, já que o autor afirma que os feitos que narra são superiores a
todos os já narrados, e os que seguirão, os de D. Sebastião, ainda os superarão.

Canto I:

- Na Proposição (estâncias 1 a 3) apresenta-se a matéria do poema: armas e


barões assinalados que partiram de Portugal inaugurando o caminho marítimo,
heróis super-humanos, reino novo complementa ao já existente, espírito
cruzadista dos reis portugueses, carácter único, invulgar, épico, exortativo da
viagem da descoberta do caminho marítimo para a Índia e o plano histórico –
imagem grande e eloquente do coletivo português. Também quem os narra tem
papel importante. Fala-se de Engenho – inspiração – e Arte – técnica. Os
grandes feitos de outros heróis (como Ulisses e Eneias) deixam de ter relevo
porque um valor maior se levanta, o das grandes navegações portuguesas.
Refere-se à viagem, mas também aos feitos de Neptuno (água) e Marte (fogo e
guerra) que se renderam na viagem e na guerra ao épico coletivo português,
pois supera todo e qualquer herói existido e cantado até ao momento. Está aqui
a génese de tentativa de superar no canto poético épico os grandes poemas
épicos da antiguidade porque a matéria, o herói coletivo que o narrador vai
tratar pelos seus feitos na viagem e da guerra, assim o suplantaria. O carácter
único e invulgar do herói coletivo, dos feitos da viagem e da guerra (história)
protagonizadas desde a formação do reino até à atualidade são hiperbolizados.
Ao aludir-se à rendição de Neptuno e Marte antecipa-se o nível da intriga
mitológica. Canto (poema) de superação.

- Na Invocação (estâncias 4 e 5) dirige-se às Tágides (ninfas do Tejo). O estilo


mais apropriado para um poema épico não devia ser um verso mais humilde
(lírico, frauta rude), mas um outro canto distinto. Pede às ninfas que deem uma
luminosidade que lhe permitam um outro estíloco à altura dos feitos de grande
dimensão. De uma poesia lírica, amena, bucólica é necessária uma tuba canora,
sublime, grandíloqua, ou seja, adequar o estilo, tom e som à matéria
grandiloquente que se vai tratar. Pede às tágides que o protejam e deem
inspiração. Aponta sempre que à matéria tão única de superação cabe um estilo
igualmente único de uma tuba canora. Ainda assim a dimensão formular não
impede que haja lastros mais líricos

- Na Dedicatória (estâncias 6 a 18) fala-se de uma figura régia, D. Sebastião


ainda jovem, antecipando os seus grandes feitos bélicos que derrotarão os
mouros. Referencia a composição desta própria epopeia em versos cadentes.
Apela dedicando ao rei que ele encontre neste poema o que os seus
antepassados fizeram. Imortalização do país que o viu nascer. Frisa que só
ouvirá façanhas reais, algo que sempre se supera. Refere outros heróis. Os
feitos que D. Sebastião levará – antecipação – terão este valor de superação até
desta matéria (na realidade D. Sebastião desaparecerá em batalha seis anos
depois). Tétis quer D. Sebastião como genro – categoria de deuses ao rei
Portugal. Eterna superioridade a quem siga D. Sebastião como monarca. Os
argonautas de D. Sebastião são os heróis da nau. Termina a dedicatória com
uma exortação final pedindo a D. Sebastião que enquanto ele protagoniza os
feitos bélicos políticos os vá contando.

- No Início da narração (desde a estância 19) remete-se para o nível da viagem.


O herói épico coletivo, comandado por Vasco da Gama, já iniciou a sua viagem
rumo à Índia (1497/98). Desbravamento dos reinos aquáticos, pois já nos
tínhamos destacado nas descobertas em relação ao reino da terra. Intromete-se
o plano da intriga mitológica na viagem, elemento este ético e estético na
narração (estância 20). A presença mitológica prende-se com os modelos
clássicos e os de gosto itálico. A viagem de desbravamento pela costa africana
leva os deuses a reunirem-se para determinar se os nautas podem seguir o seu
objetivo de conquista marítima, ou seja, decidirem o futuro do império
português em causa. Neste concílio, Vénus (deusa do amor) favorece o projeto
dos nautas portugueses, enquanto Baco surge como obstáculo que se opõe ao
objetivo do herói coletivo português. O concílio através da hierarquia foi
presidido por Júpiter, para ele será difícil que outro povo que não o luso tome
outros povos deles (deuses), que o passado do povo português era corajoso e
ímpeto a nível bélico e que agora algo de novo virá. Antecipa-se o projeto criado
no reino do mar, contudo não há consenso entre os deuses, Baco demonstra ter
inveja dos portugueses com temor que a sua coragem os faça tomar todo o
mundo. Vénus bela é afeiçoada à gente lusitana, atribuindo-nos a continuidade
do povo romano (latim). Ainda assim mesmo os deuses que estão contra nós
acabam por nos dar mais visibilidade. Os portugueses apesar de meros
humanos são capazes de provocar sensações nos deuses, gerando tumulto
entre eles, mistura-se o nível da viagem (portugueses) e o da mitologia (deuses).
Marte (guerra) coloca-se do lado de Vénus (amor), encaminhando os Lusitanos
para um bom desfecho. Júpiter toma a decisão positiva para o bem dos
portugueses, sobreavaliando os nautas portugueses. Há uma premonição dos
portugueses na sua viagem até Melinde (porto seguro na costa africana onde
Gama contará a história de Portugal e dos portugueses ao rei de Melinde). O
concílio dos Deuses termina na estância 41 do canto I. Na estância 42 volta-se
ao plano da viagem marítima, onde os portugueses atravessam obstáculos e
aventuras ardilosamente plantadas por Baco. No final do canto I, o poeta pela
voz do narrador realiza considerações. Nas estâncias 104, 105 e 106 temos uma
cilada de Baco aos nautas portugueses, que chegando à ilha de Moçambique
são enganados por um piloto mouro até uma cilada em Mombaça. O autor além
de engradecer o herói coletivo capitaneado por Vasco da Gama, também
evidencia as fragilidades humanas dos nautas portugueses). Depois de toda a
ardileza de Baco Vénus intercede.

Canto II:

Vénus intercedendo novamente em favor dos portugueses move-se pelo céu à


procura de Júpiter, fazendo súplica ao pai (estâncias 33-55). Caracteriza-se
Vénus à semelhança de Laura de Petrarca: sensualidade antes da súplica oral.
Vénus queixa-se que este povo é constantemente maltratado por Baco e que
Júpiter não faz nada. A deusa do amor aparece numa posição sedutora e
chorosa junto do seu pai. O pai sensibilizado assegura-lhe que o povo irá a
novos mundos. Dá-se uma prolepse (avanço temporal). A mitologia tem um
papel de compensação. No fim do Canto II surgem novamente ciladas de Baco.
Até que finalmente a frota chega a Melinde: mantimentos, piloto, ... aí o rei de
Melinde pede ao Capitão Gama que descreva a viagem, o país e as suas gentes.
Canto III:

Canto dedicado ao recontamento da história de Portugal por Vasco da Gama ao


Rei de Melinde com alusão a vários monarcas e situações. Quando Vasco da
Gama e os nautas portugueses chegam à Índia o capitão conta ao rei de
Melinde a história de Portugal. A partir daqui, dialeticamente, irrompem os três
níveis/ planos. Os nautas portugueses (e o povo no geral) evidenciam o amor ao
império que estão a construir desde o período anterior à viagem (guerra,
política, coragem, valentia, bravura, etc.). Pelo amor ao império mereciam uma
recompensa: o império do amor. Dimensão metafísica passa pelos caminhos do
neoplatonismo – permanece o desejo, a superação não é constante. Os nautas
partem destemidos com proteção divina, na guerra vão levar o amor ao império
novo. O narrador introduz o canto de maneira retórica dirigindo-se a Calíope
(musa da épica) para servir-lhe de inspiração. Passamos a ouvir a voz de Gama
levantando o rosto para narrar os feitos ao rei de Melinde. Nas estâncias 30-84
fala-se do Rei Afonso Henriques. Na história de Portugal há referência a todos
os reis, a momentos de grande exaltação bélica e política (principalmente), de
grande elogio cultural (D. Dinis) e momentos mais pequenos intercalares. A
célebre batalha de Ourique marca o momento fundacional de defesa do reino
de Portugal contra os Mouros. Em Ourique cristo aparece a Afonso Henriques e
apoia a batalha contra os infiéis levando a um desfecho imprevisível para a
desproporção de 1 português para 100 mouros. Fala-se na morte de Afonso
Henriques e do choro pelo mesmo (hiperbolização - perda de um valeroso rei).
A história sobre Afonso Henriques é longa, enfocada e de relevo ocupando mais
de 50 estrofes. Nas estâncias 96 a 98 menciona-se o rei D. Dinis, conteúdo
cultural que se relaciona com a universidade e o seu apego a Coimbra.
Chegamos a D. Afonso IV na estrofe 99, a sua história não é contada na maior
valentia. O rei nunca gostou muito dos castelhanos, mas é ele que socorre as
terras na Batalha do Salado, pois a sua filha era casada com um castelhano (deu
a mão dela, agora tinha de ajudar o marido dela). Esta atitude afetiva provém da
súplica da filha Maria ao pai (à semelhança de Vénus e Júpiter). Vemos que é
um constante as figuras femininas dirigirem-se ao pai de forma sensual, chorosa
tentando remover a dureza de seus pais. Descreve-se topicamente a Batalha do
Salado. Na estância 120 começa a história de Inês de Castro que depois de
morta foi rainha. Depois do episódio afetivo de Afonso IV com a filha, sucede
um episódio em que o rei é fortemente criticado por não ser sensível a razões
amorosas, demonstrando uma dureza de peito, que não tinha de todo com a
filha Maria, e culmina na morte de uma mulher, que também lhe faz uma
súplica. Homem que não soube honrar o premio bélico que tinha, pois não cede
à mãe dos seus netos. Nem todos os episódios são bélicos e políticos, este é
lírico. Já atentámos a dois momentos bélicos, a batalha de Ourique e a batalha
do Salado, e duas súplicas com dimensão afetiva, Vénus ao pai Júpiter e Maria a
Afonso IV. Tanto Vénus como Maria são caracterizadas aos olhos do
petrarquismo: sensualidade, cabelos loiros e gestos. Inter-relacionam-se assim
os três níveis: Viagem, intriga mitológica e história de Portugal. Podemo-nos
perguntar se as intervenções/ intromissões da voz do poeta se consideram um
quarto nível. No ponto de vista contextual do episódio do Salado (vitória bélica
de Afonso IV), precede-lhe um episódio profundamente afetivo (súplica da filha
Maria) e sucede-lhe um episódio trágico (morte de Inês de Castro). Após Afonso
IV se encher de glória, no assassinato de Inês de Castro perde-a, pois não soube
demonstrar afetividade com Inês de Castro como teve com a sua filha. Condena
o próprio amor (amor natural e puro de Pedro e Inês), pois põe em causa a vida
de Inês. Na lírica, o amor também era fonte de dor e ou se renunciava ao
próprio amor ou se enfrentava o sofrimento (masoquismo). Culpa-se o amor –
dissídio – não se esperava o desfecho proveniente do um amor puro e natural
como o deles. Sabemos de antemão que o caso tem um desfecho trágico,
contudo a estância 120 inicia bem “linda e sossegada”. Em Camões (ex. lírico) –
dicotomia (inicia bem - engano efémero, mas acaba mal – desengano). Passados
dois versos percebemos que o estado inicial de beleza e sossego não passava de
um engano, ao qual sucede um desengano. Alude-se ao que se terá sucedido
em Coimbra, junto ao rio Mondego, Inês lembra-se dos tempos passados com
Pedro, chorava de saudade, gritava e suspirava o nome que tinha escrito no
peito. Natureza pródiga. Misturam-se elementos positivos e outros que
adensam a ideia anterior de engano. Culpabiliza-se o fado/ destino que não
prolonga o engano (fugaz/ passageiro). Também na lírica o SP rememorava o
passado de forma saudosa como aqui - episódio lírico revertido (ente feminino
quem rememora). Engano e desengano, memória e saudade,
descontentamento, pressão do destino. Não basta apenas mostrar o amor pelo
império (recompensado pelo império do amor), é necessário o amor pelo
próprio amor que Afonso IV (velho, pai, sisudo) não conseguiu preservar.
Aparentemente Afonso IV mandou matar Inês por ser sensível ao que circulava
no povo (murmúrio, razão de estado) e pela determinação do filho em não
querer casar. D. Pedro já tinha um casamento, com D. Constança (Inês veio com
ela), mas Afonso IV não queria ligações com Castela e Galiza. Há uma teoria de
que D. Pedro e D. Inês se teriam mesmo casado, informação descartada por
Fernão Lopes de modo a não deslegitimar a imagem de D. João, mestre de Avis.
Afonso IV preservou Afonso XI de Castela pela súplica da filha Maria, mas não
preservou Inês. Como Pedro estava preso de amor por Inês, teve de a matar
para matar com ela esse amor. Abrange-se a dupla faceta de Afonso IV que sai
beliscado por não respeitar as leis do amor e matar Inês, não sendo um herói
total/ completo (não sabe lidar com razoes afetivas). Inês como símbolo de
cordeiro, sacrifício, fraqueza, dama delicada. Camões pretende endereçar a
lição de que para se ser um herói há que, para além dos momentos bélicos,
saber dosear a afetividade, pois D. Afonso IV não soube dosear a sua afetividade
com a grandiosidade bélica. Surge alguma piedade de Afonso IV, pois o mais
fero coração do guerreiro do Salado comoveu-se por instantes pela fraqueza e
delicadeza da dama, mas este vai pelo murmúrio do povo. Temos o paradigma
masculino posto em causa, pois entre razoes afetivas (filha no Salado) e de
estado (por cima da mãe dos netos), típica insensibilidade do paradigma
masculino. Inês pensa nos filhos (instinto maternal) e em D. Pedro (quem ama)
e com as mãos atadas pelos assassinos (algozes) direciona o olhar para o céu
lavada em lágrimas. Gama parece estar incrédulo de como Afonso IV pôde fazer
isto a uma dama delicada. Aqui temos mais uma súplica, de uma mãe que evoca
o seu amor aos filhos, propondo ao avô cruel o exílio, que é antinatural e refere
a Batalha do Salado. Inês apresenta-se como inocente (mundo feminino, sem
responsabilidade, amor como lei natural da vida) sem justificação para o
homicídio. A mãe dirige-se ao avô e não enquanto mulher ao rei, um discurso
afetivo que toca Afonso IV. Os culpados da morte de Inês foram Afonso IV, o
povo e o destino inexorável. Muito ela pediu, muito ele queria ser piedoso, mas
mandou matá-la na mesma como se de um conjunto de mouros se tratasse.
Inês ao morrer surge Numa caracterização física petrarquista inversa: pálida
(branca), faces rosadas (rosas secas), palidez de secura, pele seca antinatural –
cessa o rosado das faces a brancura natural da face – deixa de ser um modelo
petrarquista quando morre. Alude-se à fonte da Quinta das lágrimas – mito que
se mantém até aos nossos dias - contudo historicamente o assassinato decorreu
em Tentúgal. No episódio de Inês de Castro: D. Afonso IV não apresenta
completude heroica (falta de valores éticos), a dimensão é lírica e trágica,
cotexto bélico (glória cristã contra os mouros e a súplica), pojante e
desconcertante, ferimento das leis do amor impregnado na cultura portuguesa.
Nas estâncias 137-138 em nome do amor, D. Pedro vinga-se legitimamente.
Depois passa-se já a falar de D. Fernando.

Canto IV:

Fala-se da Batalha de Aljubarrota e vários reis até que Vasco da Gama narra um
momento histórico muito próximo cronologicamente do da narrativa, o reinado
de D. Manuel (a partir da estância 60). D. Manuel teve um sonho profético após
sentir alucinações antes de adormecer, nesse sonho alude-se ao descobrimento
de um sítio longínquo recôndito no Oriente onde nasce o mundo, dois homens,
um deles não fala, convidam o rei a ir até à Índia para concretizar a ideia de dar
novos mundos ao mundo. D. Manuel acorda, mas é esta profecia que
desencadeia a viagem narrada desde a estrofe 19 do canto I. Assim,
percebemos que os nautas estão desbravando o mar Atlântico e Índico pelo
sonho do rei, que foi apoiado pelo concelho régio. Os nautas partiram de Belém
em 1497/98 (tempo de D. Manuel), assim nas estâncias 89 a 93 assistimos a
momentos afetivos na despedida. O capitão Gama recria as vozes das crianças,
mães e esposas que eventualmente poderão perder filhos e maridos no mar
pelas ideias de D. Manuel. A Celebração épica ousada dos portugueses em
momentos bélicos e na conquista do caminho marítimo para a Índia. Nas
estâncias 94 a 104 temos o episódio do velho do Restelo, símbolo da oposição e
resistência à mudança. Nas praias ficava o velho venerável de voz pesada que
impunha respeito, conhecimento, experiência, sabedoria e senso comum,
olhava para os nautas descontente, desaprovando a atitude que mais convinha
aos nautas por base na glória, vaidade, cobiça, fama, o mandar e a ânsia de
poder. A voz crítica e dissonante em relação ao projeto da partida alerta para
desastres, perigos, mortes, tormentas, crueldades, promessas vãs, pecados e
desobediência (profecia negativa e disfórica). Nega o suposto despojo material
dos portugueses, que esconderia defeitos condenáveis (dimensão humana),
opondo-se ao projeto profético e sonhado por D. Manuel. Adverte que se o
propósito é espalhar a fé cristã porque não o fazem no norte de África.
Amaldiçoa o primeiro nauta que deixou a terra em direção ao reino novo da
água (Ceuta, 1415). Termina o discurso de uma forma muito desconcertante
incomoda, acusa, critica e condena (maneirismo - dissídio, disforia, pessimismo).
O poema que seria apenas classicista (eufórico) inclui episódios maneiristas. O
canto IV termina com uma voz completamente contrária a todo o plano
histórico e da viagem. Camões traz um contrabalanço verdadeiro sobre as
conquistas. Camões inclui na narração de Gama as ideias do velho do Restelo,
não que seja partidário das mesmas.

Canto V:

O narrador conta que os nautas portugueses ignoraram o velho do restelo que


“vociferava” seguindo viagem e retoma-se, assim, o plano da viagem que marca
verdadeiramente a estrutura do poema (ligação do canto I in media res com as
naus navegando e este canto com a saída das naus para alto mar). Precede-se à
chegada dos nautas a Moçambique, onde está o rei de Melinde (relato da parte
da viagem que ainda não tínhamos visto, mas que faria sentido ser contada
antes). Sintetizamos que se descreveu todo o elemento terra (desde Afonso
Henriques até D. Manuel) em alternância com o reino da água (plano da
viagem) mesclado ainda com o plano mitológico (estético), o que denota a
capacidade compositiva de Camões como autor do poema.

Cantos VI-VIII:

Procede-se mais um concílio dos deuses marinhos. Surgem novas dificuldades


para os nautas portugueses. Desencadeiam-se várias peripécias na história de
Portugal, na viagem e na mitologia, de modo que os portuguesas cumpram o
objetivo de chegar a índia. O herói épico português tem como conceção a
relação entre o amor do império e o império do amor (ex. Inês de Castro e Ilha
dos amores).

Canto IX:

Depois de perigos esforçados, conquistas e desventuras os portugueses chegam


à Índia e no regresso os nautas são surpreendidos por uma ilha móvel que se
torna imóvel colocada estrategicamente no seu caminho por Vénus. Como
sabemos o recurso à mitologia tem sobretudo uma função estética e
pontualmente ética (planos da viagem – regresso – e da mitologia). Esta ilha é
uma alecopia (ou alegoria), pois acontece fora de um tempo e espaço concreto,
entre o plano real e mitológico da viagem. Este episódio tem uma vertente mais
sensual, tal como a écloga sétima, com ninfas e seminudez, o que perturbou os
leitores da época. A ilha que fora preparada por Vénus, quem ajudou de forma
estruturante os portugueses, era um prémio que simbolizava o império do amor
(contraposto ao amor ao império) como recompensa por todo o esforço dos
portugueses ao longo da história e naquela viagem. As ninfas inspiradas na
Laura de Petrarca foram fabricadas pela deusa do Amor de forma que se
fundisse a gentes humanas, nautas, com as míticas, ninfas, (dissídio), contudo
não geraram uma nova raça, logo o prémio de concretização amorosa não
alcançou a sua completude. Na ilha namorada o tema é o amor e o
enamoramento, remete-se para a frescura, abundância e beleza. Um episódio à
luz do classicismo, com dimensão metafísica e filosófica de neoplatonismo. A
costa da ilha namorada formava parte do mar dentro da terra, uma enseada em
forma de concha. Metaforicamente descreve-se a ilha à luz sexual, a proa rasga
o mar, facilmente penetrável, ou seja, a embarcação com os nautas (proa dura)
rasga o mar tal como o órgão sexual masculino rasga órgão virgem feminino e
na penetração funde-se no elemento feminino (enseada). Assim como, os
portugueses chegam e rompem a virgindade das belas ninfas, um universo lírico
camoniano, que dificilmente veríamos a ocorrer num poema épico, assente no
neoplatonismo em que a consumação carnal leva ao plano superior. Os
adjetivos associados à ilha parecem descrever de forma classicista uma mulher
(locus amoenus). A sensualidade vai ganhando contornos cada vez mais
intensos. Descreve-se um banquete, uma mesa com comida. Há consumação
amorosa entre os nautas e as ninfas não de forma natural, mas congeminada
por Vénus. As ninfas tinham as características petrarquistas exceto quanto a não
serem recíprocas, pois as ninfas belas nuas ou seminuas esperavam pelos
nautas portugueses. A imagem da ilha fértil, fecunda, com múltiplos elementos
da natureza é hiperbolizada. Todos os frutos tinham simbologias atrevidas
correspondentes: laranjas - cor dos cabelos, limões – seios, pêssegos - pele
sedosa, romã - órgão sexual feminino, cerejas, cachos, amoras, peras, etc. Os
pássaros bicavam a fruta como o homem penetrava a mulher. A descrição de
natureza fecunda e natural pode ser lida como a consumação amorosa, cenário
idílico, ameno, fértil, verdejante, colorido e com formas. O banquete natural
está sobre uma mesa, por sua vez, colocada sobre um riacho. Natureza e a
beleza feminina em comunhão, tal como as frutas abrem para se entregar. O
narrador caracteriza-as paradigmaticamente como incautas (sem cautela,
desprevenidas), pois elas fingiam não saber da presença dos portugueses,
passeando pela natureza, tocando flautas e arpas, seguindo os animais,
banhando-se nuas enquanto queriam ser observadas (mundo industriado por
Vénus). Já os portugueses ao não saber da industrialização de Vénus, esperavam
fazer uma caçada, mas ao invés de animais as presas são as ninfas, deusas de
uma imagem única e invulgar. Os fogos do desejo amoroso invadem os
mancebos portugueses ao deslumbrarem as deusas seminuas. Mais forçado que
genuíno, as presas sorriam, gritavam, corriam pelo mato e caíam
propositadamente para os caçadores caírem em cima delas. Até Leonardo sem
sorte no amor, apesar de sentir que a sua ninfa lhe fugia muito, finalmente ela
deixa-se apanhar persuadida pelo seu discurso. Também houve uma ninfa para
o capitão Gama, Tétis. Na ilha angelical os portugueses são dignos de se
fundirem carnalmente com as ninfas (amor ao império contrabalançado com o
império do amor). Alcançam a plenitude amorosa como se de casais se
tratassem, celebraram as uniões e juraram promessas como maridos e
mulheres. O cruzamento entre ninfas e humanos geraram uma nova raça de
heróis sobre-humanos. Fica a ideia de que mais vale viver este capítulo que lê-
lo. Além da consumação carnal, o prémio vai para além do amor, os seres
mitológicos mostram aos portugueses a máquina do mundo, símbolo do
supremo conhecimento, saber e do bem neoplatónico. O duplo prémio (amor e
conhecimento) como ponto de chegada ganho pelo esforço e arte concedeu a
quase imortalidade aos portugueses. O episódio da Ilha namorada contrasta de
forma utópica com os episódios de Inês de Castro e do velho do Restelo. O
canto termina com a ideia de plenitude, concretização, prémio, recompensa,
euforia e classicismo.

Canto X:

O episódio da ilha dos amores continua e termina neste canto. Depois do


desgaste físico da cena anterior (celebração do amor e sua consumação entre os
casais), as ninfas e os nautas conformes e contentes usufruem de um banquete
após a “caçada” (ideia de realidade). Contemplam o globo, a máquina do
mundo subordinada por Deus, ainda num lado mais classicista e eufórico como
no canto IX. Continua-se a celebrar o que os portugueses podem vir a conhecer
(celebração épica do herói coletivo português). Mas a alotopia (com deuses da
mitologia pagã) fundiu os planos da viagem e o mitológico através de algo
artificial. Os nautas portugueses mereceram pelo amor ao império fundir-se
com as ninfas originando uma nova raça (compensação, consolação). Aqui
chega-se ao império do amor pelo espírito de superação neoplatónico. Chega-se
ao fim a estadia dos nautas na ilha após o prémio da consumação amorosa, a
comunhão com o supremo conhecimento, a fundição com as divindades pagãs e
o contacto com Deus. Até que se retorna a um momento maneirista, pois após a
carência de realidade da ilha dos amores, pressente-se a degeneração total do
reino. Apesar da valentia e esforço dos portugueses e do apoio dos deuses, eles
partiram para o outro lado do mundo quando havia tanta coisa para fazer no
reino deixando as mães, esposas e filhos. Após o conhecimento supremo, o
poema muda a linha de ideia. Revela-se a voz do autor num tom melancólico,
disfórico, pessimista e maneirista, desistindo de cantar os feitos pois ninguém
valoriza as artes. O poeta confessa precisar de nova inspiração de Calíope se não
perde a capacidade e o gosto pela escrita (pode ser antecipação de estrofes
mais à frente), sente aproximar-se do outono da sua vida e vai perdendo
capacidade de escrita. O seu esforço como autor do poema não está a ser
valorizado e é por isso que pede uma última inspiração para acabar a epopeia.
Perde a confiança e o otimismo do que estaria guardado de bom para os
portugueses. Após centenas de versos sobre a viagem de ida, apenas uma
estrofe conta a de regresso, podendo o poema acabar aqui. Mas não acaba, a
estrofe seguinte inicia-se com “não”, um tom disfórico. Não há sintonia entre
aquilo que ele faz, o canto, e a insensibilidade a esse mesmo canto por parte da
gente do próprio reino de Portugal. E apesar do poema não ter posto em
evidencia os feitos menos positivos dos portugueses (morte de Inês de castro,
fama e cobiça), a reflexão agora é muito negativa (extremamente maneirista).
Retoma-se a invocação ao rei, fala de estudo e inspiração e o poema encerra
com a palavra inveja.

Reflexões finais:

Os portugueses por mais forças oponentes conseguem ultrapassar todas as


dificuldades. Subverte-se a guerra e o amor ao paradigma masculino e feminino.
As personagens femininas (Vénus, Inês de Castro, ninfas, Tétis) são fortes, com
espírito bélico e afetivas deixando uma lição no ar para o sexo masculino. A
completude heroica que, por exemplo Afonso IV não alcança, por não saber
balançar o amor ao império com o império do amor. O plano da utopia
(materializado na ilha dos amores) esbarra com o da realidade. O autor não
compreende porque não é reconhecido pela qualidade do seu poema épico. O
rei D. Sebastião quer ouvi lo e pode ser protagonista de novos feitos originando
um novo canto. Camões destacou-se tanto no plano da guerra como do canto,
mas não reconheceram o seu papel heroico. Não obteve qualquer recompensa
pelo seu esforço, sente-se vítima do seu tempo. O lastro final do poema é
maneirista.
Em suma, o poema está lançado dentro do mecanismo dos três níveis,
heroísmo, amor e tragicidade e cada episódio pode interligar-se de acordo com
a ideia do amor ao império e do império do amor. Como sabemos, o idioleto
camoniano vive de dissídio e tensão.

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