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pyre MCRL mL Ieee re Me aR onc) conhecimento na interface de diferentes saberes. ON aha constr imal sat Renae (eect Teen} Ceasers CoM OO BNET cg tc ee Ce) <0 apés a Segunda Guerra Mundial, a ética em Seen entire eter tcc tir eC oat ob uceeo mre oem C bette tency Nate MeO Msi Be ec eMC! Peenicieke rr rc conhecimento. No Brasil, o sistema de reviséo ite BRC tOes (as (c arte Re Roe eR retlcy Peete tence ee ec esac eee eRe ect tnt id era e teleosts totale sitors (Col seal latceRel Bcoste este PESQUISA PCE ee MS Ed Autor: Guilhem, Dirce feces Titulo: © Que ¢ éti rolecao PHiMEInos 7 WA OU sag 788511"00145 7! & « As criangas também nao foram poupadas dos abu- sos dos experimentos nazistas. A fim de que se conhe- cesse a histdria natural de doengas, criancas saudaveis foram infectadas com o virus da hepatite, por exemplo.* Outras foram submetidas a cirurgias experimentais sem anestesia para que se observassem reagées a estimulos. Entre os procedimentos cirtirgicos, realizaram-se ope- ragdes para mudanga de sexo, castragao, remogao de 6rgaos e membros. Um dos experimentos mais abusivos da histéria da medicina nazista foi também conduzido com criangas: a injegao de anilina nos olhos de gmeos idénticos para testar a mudanga de cor. Houve ainda casos de pessoas que foram delibe- radamente feridas e que tiveram agentes infecciosos in- jetados em seus ferimentos a fim de que, posteriormen- te, fossem testados medicamentos. Em tais testes, essas pessoas eram divididas em dois grupos: as que recebiam tratamento e as que nao o recebiam. O objetivo era co- 16 Dirce Guithem e Debora Diniz nhecer aeficdcia do tratamento estudado, simulando si- tuagées de ferimento e infecgao comuns nos campos de batalha. No entanto, experimentos abusivos em nome do progresso cientifico nao foram conduzidos apenas pelos médicos alemaes sob o regime nazista. Durante a ocupacdo japonesa na China e na Coréia na Segunda Guerra, pessoas foram submetidas a experiéncias rea izadas com armas quimicas e bioldgicas, o que levou a morte pelo menos trezentos mil seres humanos. Ao contrario do caso alemao, os japoneses utili- zaram poucas “cobaias prisioneiras”, pois © alvo prin- cipal era a populacao civil.’ A equipe de pesquisa era composta por milhares de médicos, cientistas, tecnicos auxiliares e enfermeiros que trabalhavam intensamen- te em varios centros. A missao desses cientistas e sua equipe era a de disseminar epidemias em diferentes re- gides, uma forma de guerra biolégica disfargada, porém com grande eficacia. Além da populagao civil, visava-se atingir plantagdes, de modo a causar a fome e aumen- tar a exposigao das pessoas &s epidemias. Em laboraté- rios bem equipados, eram realizadas vivissecgSes sem anestesia nos camponeses.* b Os centros de experimentacgao ficaram conheci- dos como “fabricas de morte” Uma delas, a Unidade 731, na Manchiria, guarda histérias de tortura. A roti- na de pesquisa consistia em oferecer boa alimentagao e exercicios fisicos regulares as pessoas envolvidas. O ob- jetivo desse tratamento cuidadoso era garantir que Os O que é Etica em Pesquisa a participantes estivessem em excelentes condigdes He satide, pois seriam dissecados vivos e teriam suas cabe- cas abertas para avaliagdo da massa encefalica. Assim como muitos procedimentos nazistas, essas eram pré- ticas realizadas sem qualquer anestesia.”® No entanto, durante quarenta anos, esse foi um dos mais importantes segredos da guerra entre os ofi- ciais japoneses. A descoberta dos crimes ocorreu de uma forma pouco usual: um estudante encontrou as anotagées de um oficial em uma loja de livros usados. O antincio gerou uma série de protestos dos sobreviven- tes, 0 que provocou tensao diplomatica entre os paises envolvidos. Em meio as controvérsias éticas, estava a pergunta sobre se os resultados dessas pesquisas po- deriam ter sua validade cientifica reconhecida e serem utilizados pela comunidade internacional.? Os pesqui- sadores deveriam ter sido julgades por crime de guerra, mas 0 tribunal que realizou 0 julgamento desses crimes em Téquio nao os colocou na pauta. O JuLGAMENTO DE NuREMBERGUE A cidade de Nurembergue, na Alemanha, foi o centro de uma série de julgamentos realizados por uma corte internacional — 0 Tribunal de Nurembergue. Esse tribunal resultou de um acordo assinado em Londres, emagosto de 1945, por representantes dos quatro paises vencedores da guerra: Estados Unidos, Gra-Bretanha, 8 Dirce Guilhem e Debora Diniz Frangae a entio Unido Soviética. A corte era composta por juizes e promotores dessas quatro nagées ¢ foi presi- dida pelo promotor estadunidense Robert Jackson. No primeiro julgamento, os principais lideres da Alemanha nazista foram acusados de crimes contra a humani- dade e contra 0 direito internacional. Dos vinte e dois réus, entre os quais altos funciondrios nazistas, como Hermann Goering e Rudolf Hess, dezenove foram con- denados e trés absolvidos. As penas eram variadas: de dez anos de prisdo a prisdo perpétua ou pena de morte por enforcamento. Entre 1945 e 1949, foram efetuados doze julga- mentos. O primeiro deles foi o que analisou as pesquisas médicas com seres humanos nos campos de concentra- cdo nazistas. Os pesquisadores alemies responsdveis pelos experimentos abusivos estavam agora no banco dos réus. Foram oito meses de julgamento entre a acu- sao e a sentenga. A principal tese do tribunal contra os alemies foi a de que as pessoas envolvidas nas pes- quisas estavam em situagao de extrema fragilidade, nao dispondo de quaisquer possibilidades de defesa ou exer- cicio da vontade. Elas foram compulsoriamente utiliza- das pela medicina nazista como “cobaias prisioneiras” . O julgamento teve enorme repercussdo inter nacional. Paises com grande concentragao de vitimas do regime nazista estavam atentos aos fatos. Israel, por exemplo, sentenciou a forca Adolf Eichmann, um. dos carrascos nazistas. Seu julgamento foi um dos O que é Etica em Pesquisa a mais noticiados internacionalmente apds 0 Tribunal de Nurembergue.” Esse conjunto de fatos e, 0 mais im- portante, sua ampla divulgacio mundial apds a Segunda Guerra levaram & elaboragao de diretrizes internacio- nais para a pesquisa cientifica com pessoas. O objetivo era garantir que principios dos direitos humanos — em particular a dignidade da pessoa humana e a autono- mia da vontade — seriam 0 ponto de partida de qual- quer pesquisa cientifica envolvendo pessoas." Foi nesse marco da génese da cultura dos direitos humanos que, em 1947, se elaborou o Cédigo de Nurembergue.”?:? O Copico pe NureMBERGUE O Cédigo de Nurembergue representa a entrada definitiva de principios da cultura dos direitos humanos na pesquisa cientifica. Composto por dez artigos, umnu- mero simbélico para a tradigao ocidental, o documento tinha como objetivo ser claro e sintético na orientagao ética das pesquisas. O primeiro artigo era uma resposta imediata aos julgamentos de guerra: “o consentimento voluntario do ser humano € absolutamente essencial”.! Desde entao, 0 consentimento individual para a inclusio em umestudo vem sendo uma questiio-chave no campo da ética em pesquisa, assim como nogées de equilibrio entre risco e beneficio ou medidas de protegao A satide e dignidade dos participantes."¢ Sob a dtica totalitdria e opressora do nazismo, as pesquisas abusivas dos campos de concentragao se jus- 20 Dirce Guilhem e Debora Diniz tificavam em nome do bem comum: algumas pessoal morreriam ou sofreriam danos irreversiveis, mas a cién- cia avancaria. O Cédigo de Nurembergue impés restri- des definitivas a essa matriz utilitarista perversa, uma vez que os participantes nao poderiam ser instrumentos para o avango cientifico, mas sempre pessoas protegi-. das pelos direitos humanos e com interesses particula- res serem respeitados. Todos os artigos do documento corroboram essa redefinicio da pesquisa cientifica: o participante tem o direito de abandonar 0 estudo sem represalias, 0 ensaio em humanos deve ser precedido de experimentages em animais ndo-humanos, e pesquisas com risco de morte devem ser evitadas. Um fenémeno inesperado, no entanto, se suce- deu a divulgagao do Codigo de Nurembergue. O docu- mento ficou conhecido como uma pega do julgamento dos crimes de guerra e, portanto, como um discurso ético sobre as atrocidades nazistas. Pelo fato de ter sido uma resposta imediata ao pds-guerra, poucos pes- quisadores o entenderam como um guia orientador dos estudos com pessoas fora das situagdes de guerra. O resultado foi um siléncio em torno das pesquisas cienti- ficas e de quais principios éticos as norteariam. Houve uma falsa presungdo de que apenas os criminosos da guerra deveriam ser chamados & reflexdo ética, sendo esse um tema secundério as pesquisas de paises demo- craticos e livres.'* O que é Etica em Pesquisa 2 A DecLarAGAO DE HELSINQUE © Cédigo de Nurembergue foi um documen- to elaborado em resposta as dentincias dos crimes de guerra. Seus autores foram juristas € médicos militares, e seu marco de referéncia, os direitos humanos. Como principais alvos de critica, estavam os pesquisadores médicos nazistas. Isso representava uma mudanga simbdlica de prestigio social pouco confortavel para os médicos. Foi exatamente na tentativa de reaproximar ética, medicina e opiniao publica que a Associagao Mé- dica Mundial propés a Declaragéo de Helsinque, em 1964.°O documento é um desdobramento de alguns dos preceitos éticos do Cédigo de Nurembergue, po- rém com objetivos mais concretos de intervengao na pratica de pesquisa biomédica. Desde sua edig&o, a Declaragao de Helsinque ja passou por varias revises (Téquio, 1975; Veneza, 1983; Hong Kong, 1989; So- merset West, 1996; Edimburgo, 2000; Estados Unidos, 2002; Tdquio, 2004)."6 O objetivo de devolver dignidade a pratica mé- dica era tao claro no documento que seu primeiro ar- tigo afirmava: “a misséo do médico é salvaguardar a satide das pessoas. O conhecimento e a consciéncia s&o dedicados a atingir essa missdo”.'> A ambigao do texto, no entanto, n&o se restringia 4 pesquisa médica, mas abrangia todas as areas de satide; por isso, ele se referia A biomedicina. A primeira versio da Declara- <> 2 Dirce Guithem e Debora Diniz g&o de Helsinque consistia em um texto breve, com- posto de trés secdes: 1) principios bésicos; 2) pesqui- sa médica combinada com cuidados em satide; e 3) pesquisa biomédica sem fins terapéuticos. A primeira segdo é a que mais diretamente dialoga com o Cédigo de Nurembergue, reafirmando a importancia de prin- cipios éticos, como o consentimento, a dignidade e a integridade dos participantes. As versées subsequentes da Declaragaio de Hel- sinque foram tentativas de acompanhar © debate sobre ética em pesquisa no campo médico. Dada a legitimi- dade que o documento alcangou internacionalmente, e n&o apenas no universo da pesquisa biomédica, os pro- cessos de sua revisao foram objeto de intensa contro- vérsia. Temas como a importancia dos comités de ética em pesquisa, os estudos multicéntricos ou 0 acesso a tratamentos de sadde tiveram sua entrada definitiva na agenda de debates internacionais sobre ética em pes- quisa."* Por isso, mesmo sendo de uma tinica associa ao profissional, a Declaragdo de Helsinque constitui, hoje, uma das pegas de reflexado ética fundamentais nesse debate. HENRY BEECHER E A VIRADA ETICA A proposigéo de documentos na esfera da ética em pesquisa foi um dos passos iniciais para a consoli- dagao da cultura dos direitos humanos na ciéncia bio- O que é Etica em Pesquisa 23 médica. No entanto, o espanto causado por uma pu- blicagdo de Henry Beecher mostrou que era preciso ir além das regulamentagées internacionais e avangar em campos mais sdlidos para a mudanga de valores e praticas na pesquisa.’ Em 1966, Beecher escreveu um artigo de revisdo sobre dezenas de estudos conduzidos com pessoas publicados em periédicos de grande pres- tigio internacional. O objetivo era avaliar quais critérios &ticos haviam sido utilizados pelos investigadores para realizar pesquisas com populagées vulnerdveis,. tais como criangas, deficientes ou idosos. Esse artigo analisou vinte e dois estudos con- duzidos nos Estados Unidos apés a Segunda Guerra Mundial, muito embora mais de cinquenta tivessem sido recuperados na pesquisa documental.” A metodologia de avaliag&o examinou secdes-chave dos artigos para o debate ético: objetivo da pesquisa, populacao envolvi- da, financiadores e resultados. A principal constatagao de Beecher foi sobre quem eram os participantes das pesquisas de maior risco ~ internos em presidios e insti- tuig6es asilares, criangas com deficiéncia mental e ido- sos com deméncia. Ou seja, eram pessoas que, apesar de muito diversas entre si, comungavam da condicéo de vulnerabilidade jé anunciada como delicada para o envolvimento em pesquisas cientificas pelo Cédigo de Nurembergue e pela Declaragao de Helsinque.'*” Alguns estudos foram apresentados em detalhes, uma forma de desnudar 0 quanto a pesquisa cientifica | 2 Dirce Guilhem e Debora Diniz estava distante de valores humanistas 2 preceitos éti- cos j4 acordados internacionalmente. E importante lembrar que todas as pesquisas tinham sido realizadas fora do contexto da guerra, ou seja, diferente dos ex- perimentos nazistas, eram agora pesquisadores de so- ciedades democraticas que haviam levado pessoas & morte por nao administrar tratamentos, por oferecer placebo ou por inocular virus para conhecer a evolugao de doencas contagiosas.!” Além disso, grande parte dos estudos foi financiada por instituigdes ptiblicas de pes- quisa, 0 que indica que 0s investigadores nao estavam sozinhos na elaboragao do desenho metodolégico de seus experimentos. © artigo de Beecher deve ser entendido como uma peca que, por se destinar a analisar a realidade da pesquisa cientifica afastada das circunstdncias de guer- ra, permitiu a aproximagao entre discursos ainda dis- tantes — a ética e a pratica cientifica. Mais importante do que as declaracées internacionais, foi esse estudo que provocou a abertura do debate sobre ética em pes- quisa dissociada do contexto do nazismo & dos abusos da guerra. Um dos pontos de vanguarda de Beecher foi adefesa do termo de consentimento livre € esclarecido para a participagio de pessoas em pesquisas cientificas. Ainda hoje, esse é um dos requisitos fFundamentais em grande parte dos experimentos com seres humanos, em particular com populagées vulneraveis."”""° OE ______.) O que é Etica em Pesquisa 25 Casos A ética em pesquisa se fortaleceu com os deba- tes publicos nos Estados Unidos nos anos 1970 e 1980. ‘Apés a publicagao do artigo de Beecher, dois casos fo- ram decisivos para a agenda de discussées politicas ¢ académicas sobre o tema. O primeiro foi um experi- mento clinico realizado com 0 objetivo de conhecer a histdria natural da sifilis, e 0 segundo foi um estudo na drea da psicologia para verificar a interagdo entre gru- pos e suas reagdes em situages hierdrquicas. 1. O Estupo TuskEGEE Esse é um dos casos mais discutidos na histéria da ética em pesquisa nos tltimos quarenta anos. Oce- nério € um estudo sobre sifilis financiado pelo gover- no dos Estados Unidos e conduzido com seiscentos homens negros agricultores, residentes no estado do Alabama. © objetivo era conhecer 0 ciclo natural de evolugao da doenga e, para isso, os participantes foram: divididos em dois grupos: duzentos homens receberam © tratamento para a sifilis disponivel na época e quatro- centos foram incluidos no grupo-controle, ou seja, n&o receberam nenhum tratamento. Todos os participantes eram jovens, e © critério de inclusdo era ja ter a doen- a hé pelo menos cinco anos. A pesquisa foi conduzida entre 1932 e 1972, sendo que em grande parte desse periodo o principal tratamento para a sifilis, a penicilina, jd havia sido descoberto. Foi somente com a dentincia <> pop 26 Dirce Guilhem e Debora Diniz do casohha capa do jornal The New York Times que se interrompeu 0 estudo. Uma das controvérsias centrais do Estudo Tuskegee era sobre como seiscentos homens foram con- vencidos a participar da pesquisa. Na verdade, chegou- se A conclus&o de que eles nao foram informados de que se tratava de uma pesquisa médica, mas iludidos de que estariam recebendo tratamento contra a sifilis. Naquele momento, essa era a “doenca do sangue ruim”, e era co- nhecida a sua letalidade. De fato, as investigagdes so- bre a pesquisa mostraram que aqueles homens n&o con- sentiram em participar e, muito menos, em nao obter tratamento no grupo-controle. Durante o estudo, eles recebiam atengo da equipe de pesquisadores, mas esses servigos ou cuidados, tais como vitaminas e consultas médicas, eram secundarios ao tratamento da doenga. Antes da dentincia pela imprensa, alguns artigos foram divulgados na comunicagao cientifica sobre o caso, mas nenhum atingiu a opiniao publica e provo- cou ‘0 debate ético.”!** Do total de participantes, ape- nas setenta e quatro sobreviveram.”* Mas o impacto do caso deve ser entendido para além dos equivocos cientificos e éticos da pesquisa. Nao restam duividas de que nao se deve utilizar placebo em contextos em que ha tratamento eficaz para uma doenga; ficou eviden- te, também, que no se pode ludibriar os participantes sobre 0 verdadeiro objetivo do estudo. No entanto, o principal legado do Estudo Tuskegee foi ter permitido O que é Etica em Pesquisa ar aproximar a pesquisa médica do debate puiblico sobre ética, ao demonstrar que a ética em pesquisa deveria ser uma questao discutida nao apenas pelas agéncias de financiamento ou comunidades cientificas, mas princi- palmente pela sociedade. 2. A Pesquisa DA PrisAo STANFORD A novidade desse caso foi o deslocamento do debate sobre ética em pesquisa do campo médico para outras dreas da pesquisa biomédica, em particular a psicologia. O estudo foi coordenado pela Universidade Stanford, nos Estados Unidos, em 1971, e simulava a organizacao social de um presidio.° Situado no marco dos estudos comportamentais, ele tinha como objetivo analisar a reagao das pessoas a simulacées de situacdes hierdrquicas.com restrig&o de liberdade. Os participan- tes foram recrutados apds uma chamada no jornal, em que se ofereciam cento e quarenta reais por dia de par- ticipagao, uma quantia convidativa aos alunos da uni- versidade. A pesquisa seria realizada em duas semanas, e vinte e quatro estudantes foram selecionados para ocupar o papel de guardas e de prisioneiros em uma pe- nitencidria simulada na Faculdade de Psicologia. O critério de selegdo dos participantes baseou- se em testes psicolégicos e médicos, visando encontrar aqueles que se adequavam ao perfil idealizado pela me- todologia. A preparagao para a simulagao dos papéis de guardas e presos se deu em uma Unica reuniaio, quando 28 Dirce Guilhem e Debora Diniz foram feitas recomendagées de seguranga, tais como © ndo-uso da violéncia, e explicadas algumas regras de funcionamento das relagdes sociais no presidio. Uma das primeiras acdes de pesquisa foi simular o registro dos participantes-presos na policia para a tomada de impresses digitais, a guarda dos pertences pessoais & a leitura dos direitos. Nao se simulou.a delegacia; em vez disso, para garantir o senso de realidade neces- sario ao estudo, estabelecet-se uma parceria com 0 Departamento de Policia, e policiais reais colaboraram nessa fase. Transportados para © presidio ficticio, os participantes receberam uma nova identidade.?>° O desafio da pesquisa teve inicio quando os par- ticipantes assumiram seus novos papéis e identidades. De um jogo de representagao social, o estudo adqui- riu contornos nao previstos pelos coordenadores. Os participantes no papel de guardas adotaram posturas abusivas e violentas, as quais foram inicialmente acei- tas por aqueles no papel de prisioneiros. No entanto, & medida que a simulacao ganhava forca, os participantes que atuavam como prisioneiros decidiram se rebelar, cos coordenadores da pesquisa interromperam © estu- do antes do prazo previsto. O risco de uma verdadeira rebeliao com uso incontroldvel de violéncia estava no cenario de decisées da equipe. O resultado foi desolador: os objetivos da pesqui- sa nao foram alcangados, e os participantes que ocupa- ram o papel de prisioneiros sofreram severas alteracdes <> Dep O que é Etica em Pesquisa 29 Aocionais. Além dos equivocos metodolégicos e éti- cos, um ponto extensamente discutido no desenho do estudo foi o papel do coordenador da pesquisa, pois, em vez de um observador da simula¢ao, ele atuou como di- retor do presidio sendo um participante do estudo.”” O Retatorio BELMONT A divulgacao desses casos de pesquisa cientifica com participantes em situagSes extremas permitiu a abertura do debate sobre ética em pesquisa. Foi nesse novo cendrio de debates que, em 1974, 0 governo dos Estados Unidos instituiu a Comissao Nacional para a Protegao de Sujeitos Humanos em Pesquisas Biomédi- cas e Comportamentais.”* Durante quatro anos, 0 obje- tivo da comissao foi pensar os desafios éticos da pesqui- sa biomédica e comportamental, a fim de propor dire- trizes para os estudos futuros. Entre os compromissos da comiss4o, estava o de que seriam cuidadosamente ponderadas as pesquisas com populagées vulnerdveis, em particular as que incluissem criangas, internos em presidios e pessoas com deficiéncia. O resultado foi a publicagao do Relatério Belmont, em 1978, um marco para as regulamentacées nacionais de diversos paises nas décadas seguintes.”® Nao é uma tarefa simples traduzir a complexida- de do raciocinio ético para o universo dos desafios lan- cados pela pesquisa biomédica. E preciso um esforgo 30 Dirce Guilhem 2 Debora Diniz de tradugao do debate filoséfico para o campo da ética aplicada. Foi nesse espirito de resolugao de problemas e antecipacio de novas dificuldades que o Relatério Belmont propés trés principios norteadores da éticaem pesquisa: respeito pelas pessoas, beneficéncia e justica. Os autores do documento justificaram a indicagao des- ses trés principios em razao de sua presenga na tradi- 80 filosdficae cultural de grande parte dos paises onde o debate sobre ética em pesquisa se estruturava. Além disso, tais principios tinham sido os fundamentos dos documentos internacionais jA propostos sobre o tema: 1) Respeito pelas pessoas: reconhece que os individuos so auténomos e devem ter liserdade e independéncia em suas decisées. Esse principio é um dos fundamentos do termo de consentimento livre e esclarecido; 2) Beneficéncia: principio com larga tradigo na histéria da pratica médica, assume que fazer o bem é maximizar os be- neficios e ndo causar danos. O principal desafio é balancear noges coletivas e privadas de bem perante os riscos e be- neficios de uma pesquisa; 3) Justiga: também conhecido como equidade nas pesquisas, tem 0 objetivo de garantir a igual distribuigdo de riscos beneficios. Com base nesse principio, especial atengo vem sendo dada & selecdo dos participantes. © documento teve grande repercussao. Por um lado, era uma das iniciativas pioneiras de paises demo- craticos em assumir que o tema da ética em pesquisa nao era matéria exclusiva de crimes de guerra. Esse fato representou uma guinada importante no debate O que é Etica em Pesquisa 3 internacional, impulsionand@ a reflexio em diferentes paises. Por outro lado, o compromisso do documento com a clareza e a instrumentalidade permitiu que o raciocinio sobre ética em pesquisa ultrapassasse os li- mites dos departamentos de humanidades e atingisse a pratica da pesquisa cientifica. O resultado imediato foi a publicagao de Principios da ética biomédica, uma das obras de referéncia da bioética. Nela, os trés principios foram discutidos e reformulados, © que levou a teoria dos quatro principios ou teoria principialista.” A partir desse marco, foram elaborados e divul- gados outros documentos para subsidiar o processo de revisdo ética das pesquisas, com o objetivo de promo- ver a protecio, o bem-estar e a seguranga dos parti- cipantes. Essas diretrizes determinam que os estudos nao devem ser iniciados antes de sua avaliagao por um comité de ética em pesquisa. Conhecer alguns desses documentos € importante, pois a maioria dos paises os utiliza como referéncia para a elaboracao de suas nor- mas e legislagao nacionais. Podem ser citados: 1) Diretrizes Eticas Internacionais para a Pes- quisa Biomédica em Seres Humanos (CIOMS/OMS) —divulgadas em 1982, foram alvo de duas revisdes, em 1993 e 2002; 2) Diretrizes Internacionais para Reviséo Etica de Estudos Epidemiolégicos (CIOMS/OMS) - sua pri- meira vers&o foi disponibilizada em 1991 e atualmente se encontra em fase de revisdo;?! 32 Diree Guilhem # Debora Diniz 3) Diretrizes para Boas Praticas Clinicas (GCP/ ICH), divulgadas em 1996; 4) Consideragées Eticas em Pesquisas Biomédi- cas para Prevengao do HIV (Unaids/OMS) ~ a verso inicial, de 2000, foi revisada e atualizada em 2007;*, 5) Diretrizes Operacionais para Comités de Eti- ca que Revisam Pesquisas Biomédicas (TDR/OMS), divulgadas em 2000; 6) Questdes Eticas e Politicas em Pesquisas En- volvendo Participantes Humanos (NBAC/EUA) e Questées Eticas e Politicas em Pesquisas Internacio- nais: Ensaios Clinicos nos Paises em Desenvolvimento (NBAC/EUA), ambas de 2001;°° 7) Etica em Pesquisa Relacionada a Cuidados de Satide nos Paises em Desenvolvimento (Nuffield Coun- cil on Bioethics/Reino Unido), de 2002 e 2004; 8) Declaracaio Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (Unesco), de 2005.37 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 1. 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