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O papel da pesquisa na articulagao entre saber e prdatica docente Marli E. D, A. André Este trabalho vem retomar 0 didlogo que iniciei com o texto de Sonia Kramer “A formagao do professor como leitor e construtor do saber”, quando fui sua debatedora na Sesséo Especial do GT Metodologia e Didética, na XVI Reuniao Anual da ANPEd (1993). Av comentar o texto, avancei algumas pro- posigSes a respeito do papel da pesquisa na formagio e aperfeigoamento do professor. Procurarei desenvolver um pouco mais aquelas proposigées; ¢, como o fiz naquela ocasiao, continuarei tratando de um modo geral os cursos ou programas de formagao docente, sem me deter nos aspectos mais especificos da formago em servigo. Creio que mesmo assim j4 teremos questes suficientes para um debate rico e proveitoso. Aos autores que me incitaram ao didlogo naquele momento ~ Sonia Kra- mer e Anténio Névoa ~ acrescento agora um outro, Philippe Perrenoud, em cujos textos tenho encontrado apoio para minhas reflex6es e muitos desafios para novas investigagées. Como Perrenoud (1993), considero que hé pelo menos trés motivos para se incluir a iniciagéo & pesquisa como um dos objetivos dos programas de formacao de professores: 1. constitui-se num método ativo de apropriagao de conhecimento. 2. Aproxima o professor das situagSes reais da escola. 3. Pode servir de paradigma a uma pratica refletida. Antes de discutir cada um desses aspectos, eu gostaria de esclarecer que estarei enfatizando a finalidade didatica da pesquisa, isto é, seu papel mediador no preparo de professores para que venham a ter uma atuagao docente eficaz em sala de aula, Neste sentido, eu a distingo muito claramente da pesquisa cientffica que visa sobretudo a produgao de novos conhecimentos e deve satii fazer critérios especificos de objetividade, originalidade, validade ¢ de legitimi- 36 dade & comunidade cientifica. A pesquisa com propésitos didéticos nao deve necessariamente atender a esses requisitos. ‘A que ctitétio deve entéo atender? Além de propiciar 0 acesso aos conhe- cimentos cientificos, deve levar 0 professor a assumir um papel ativo no seu proprio processo de formagao e a incorporar uma postura investigativa que acompanhe continuamente sua pratica profissional. A pesquisa como modo de apropriagao ativa do conhecimento A proposta de que os cursos e programas de formagao docente utilizem uma metodologia investigativa (André, 1993) apoia-se numa perspectiva ao mes- mo tempo pedagégica e epistemoldgica. Parto do principio de que os conhe- cimentos se constroem na a¢ao ¢ na intera¢ao. Assim, da mesma forma que 0 fazem as pedagogias ativas, com base nas cortentes cognitivistas da psicologia, sugiro que os programas de formagio e aperfeigoamento docente estimulem seus participantes a utilizarem a metodo- logia cientifica que inclui, entre outros aspectos, a definigao de um problema e a busca sistematica de conhecimentos para sua elucidagao. Isto vai exigir um preparo dos docentes para observar, registrar, selecionar, analisar ¢ relatar dados. ‘Além de um ativo envolvimento do sujeito, destaco o papel fundamental das interagSes sociais no processo de formagao do investigador. O exercicio do didlogo ¢ a partilha de saberes e experiéncias dever ser exercitados tanto na definigdo dos temas e problemas de interesse comum, quanto na busca conjunta de alternativas para seu equacionamento. Faz parte do desenvolvimento social do indivfduo aprender a conviver ¢ a trabalhar com o outro; aprender a ouvir e a se fazer ouvir, expressar idéias e opinides préptias e acolher pensamentos ¢ opinides divergentes. Ora, estas habilidades e comportamentos sé poderio vir a ser desenvolvidos ou aperfeigoados na medida em que existirem situagGes concretas para seu exercicio. Espera-se, portanto, que os cursos de formagio criem espagos para o trabalho coletivo ¢ que o uso da metodologia investigativa se centre na discussdo conjunta, no saber partilhado. Tendo esclarecido os principios que me levam a defender 0 método de investigagao como modo de apropriagio ativa do conhecimento, cabe explicitar como se dé o seu desenvolvimento em sala de aula. uso da metodologia de investigagéo implica, em primeiro lugar, a exis- téncia de um problema a ser resolvido, ou de uma questo a ser respondida, ou ainda de um projeto a ser realizado. Como e de onde vao surgir essas questes? Eis uma primeira indagagao. Elas estario certamente relacionadas aos temas desenvolvidos no programa de formagao e podem estar voltadas a uma questao mais teérica ou mais prética, a uma disciplina ou a um conjunto de disciplinas, aos cixos geradores do curso, aos seus objetivos primordiais, ou a uma combi- nagao de todos esses. O importante ¢ que em qualquer dessas situagdes haja um envolvimento efetivo dos participantes, seja na definicao do tema/problema a ser pesquisado, seja no planejamento dos passos a serem seguidos para sua elucidacso. Tanto a fase de identificagao dos temas e problemas para estudo quanto a de selegao das estratégias para seu equacionamento vao exigir dos professores uma série de habilidades/capacidades, como selegao de fontes de consulta; for- mulagao de questdes orientadoras ¢ um trabalho sistemAtico de coleta € registro de informagées. Estas capacidades precisam ser desenvolvidas ~ eu diria mesmo ensinadas — nos cursos de formagéo, pois elas nao s4o inatas, e sua falta ou seu uso inadequado pode comprometer totalmente os resultados de um trabalho de pesquisa. As préximas etapas do método de investigagao incluem a andlise ¢ inter- pretagao dos dados coletados ¢ o relato ou comunicagio dos mesmos. Mais uma vez, torna-se necessdrio que haja orientag6es sobre como se faz andlise interpretagao de dados e como se elabora um relatério (ou outras formas de comunicagao) de pesquisa. Este aprendizado vai, sem duvida, exigit muito tra- balho individual (de preparo pessoal, de estudo, de reflexo), mas se tornard extremamente mais rico com as discusses e trabalhos conjuntos. Levando em conta que a metodologia investigativa é apenas uma entre as varias possibilidades de envolvimento ativo do sujeito no proceso de apropria- ao de conhecimentos, suas vantagens sao dbvias. Uma bastante evidente é a possibilidade de que o professor venha a reproduzir em suas aulas 0 mesmo tipo de prdtica vivenciada em seu curso de formacao. Outras vantagens dizem mais respeito a certas atitudes ¢ preocupagies que se desenvolvem com o tra- balho de investigacao, como, por exemplo, uma visdo mais analitica da realidade, atengao aos mecanismos ocultos ¢ a aspectos nao apreens{veis 4 primeira vista, consciéncia do arbitrério ¢ da complexidade, assim como da multiplicidade de pontos de vista e interpretag6es, relativizac4o das evidéncias do senso comum, entre outros. A pesquisa do tipo etnogrdfico como forma de aproximagio do real Nao apenas na 16+ Reuniao da ANPEd (André, 1993), mas em muitas outras ocasides, jd tive oportunidade de defender o uso da pesquisa etnogréfica, voltada &s situagdes do cotidiano escolar, nos cursos € programas de formagio 37 38 de professores, com o objetivo de articular teoria e pratica pedagégica, pesquisas e ensino, reflexdo ¢ agéo didéticas. O meu argumento bésico é o seguinte: trazer cenas do cotidiano escolar, captadas pelas pesquisas do tipo etnogréfico para serem discutidas nos programas de formagao e aperfeigoamento docente, pode ser uma excelente alternativa para 0 exercicio de tio buscada articulagéo teoria-pritica. Se essas cenas forem cui- dadosamente selecionadas ¢ suficientemente exploradas podem, por um lado, aproximar o professor (principalmente os iniciantes) das situagles reais das es- colas e, por outro lado, podem permitir a investigagao tedrica de forma mais orientada e sistematica. Como diz muito bem Erickson (1989), de todos os tipos de pesquisa a etnografica € a que tem maior potencial para produzir conhecimentos titeis € interessantes para os docentes. Em mais de uma oportunidade eu procurei des- tacar as contribuig6es desse tipo de pesquisa para o repensar do trabalho docente (André, 1992 ¢ 1993), de forma que nao vou repeti-las no momento. Gostaria de enfatizar apenas uma dessas contribuigGes, qual seja, a de propiciar uma aproximagao do professor as situagdes concretas das escolas. Ao retratar situag6es do dia-a-dia escolar que nao s4o exatamente as que © professor vivencia — embora sejam muito semelhantes a elas ~, 0 estudo do tipo etnogréfico pode favorecer um olhar mais critico e menos preconcebido sobre 0 trabalho docente. E como se o professor estivesse olhando para um espelho no qual a imagem nio fosse a sua, mas a lembrasse muito proxima- mente. A minha hipétese é a de que, sentindo-se mais distante, ele pode vir a aceitar mais facilmente os problemas da pratica docente coditiana ¢ pode pensar mais objetivamente sobre as formas de superd-los. E preciso que fique muito claro que nao estou fazendo com isso qualquer apologia 4 neutralidade: estou procurando apenas uma forma que favorega a compreensio e o aperfeigoamento da pratica docente. Essa aproximagao as situagies concretas das escolas via pesquisa etnogréfica parece ser especialmente til aos professores que nao tém experiéncia de ma- gistério, pois os deixa muito préximos da vida escolar cotidiana sem que eles estejam de fato Id presentes. E posstvel, assim, trazer para os cursos de formagao muitas questées da prética pedagégica cotidiana sem sobrecartegar as escolas ¢ as professoras, jé tio sobrecarregadas pelas suas tarefas rotineiras. Junto aos professores com experiéncia docente, a pesquisa poderia ser usa- da tanto no sentido de analisar situagies especificas-da pritica pedagdgica que aparentemente nada teriam a ver com sua prépria pratica, o que poderia favo- recer um olhar mais critico e conseqiientemente uma melhor aceitagao das mudangas necessérias, quanto no sentido de propiciar uma comparagio delibe- rada com a sua pritica docente. Um ponto que precisa ser bem esclarecido € que nao basta trazet a pesquisa etnogréfica para os cursos de formasao visando aproximar o professor do dia- a-dia da escola. E preciso ir muito além e empreender 0 que eu chamo de garimpo tedrico, isto é, tomar a pesquisa como ponto de partida para um esforco de reflexao, de garimpagem dos aspectos criticos da realidade que precisam ser aprofundados. E, a partir daf, garimpar a literatura educacional para fundamen- tar as leituras ¢ as andlises desses aspectos criticos, fugindo das conclusbes apres- sadas e superficiais. Garimpar ainda mais, buscando em outras dreas do conhe- cimento explicagées que possam ao mesmo tempo ampliar e tornar cada vez mais densas essas leituras ¢ interpretagbes. A pesquisa etnogréfica seria 0 texto gerador de um novo texto que iria sendo produzido pelo grupo de participantes dos programas de formacao ¢ aperfeigoamento docente, através do estudo, da discussao, da troca de saberes ¢ do exercicio da escrita. Texto que ajudaria os seus produtores a se aproximarem cada vez mais do real pedagégico. A pesquisa como paradigma para uma pratica refletida Como sugere Perrenoud (1993: 129), a iniciagdo & pesquisa poderd ajudar os professores a adotarem a pritica refletida, ou seja, uma disposigio ¢ compe- téncia para a andlise individual ou coletiva de suas préticas, para um olhar introspectivo, para pensar, decidir ¢ agit tirando conclusdes e, inversamente, para antecipar os resultados de determinados processos ou atitudes. Poderiamos citar um ntimero bastante grande de autores que na literatura educacional recente vem propondo a pratica profissional refletida como um caminho eficaz na melhoria do trabalho docente. E preciso que tenhamos até uma certa cautela ao analisar tais proposigdes para que nao se tornem palavras de ordem, afastando ou mesmo excluindo outras propostas igualmente eficazes. O que importa enfatizar aqui € 0 potencial da pesquisa para desenvolver junto ao professor essa disposicao e competéncia para pensar o préprio trabalho. Nao prescindindo da metodologia investigativa e da fungao mediadora da pes- quisa etnogréfica, a pesquisa-acdo parece ser a forma mais direta e possivelmente a mais eficaz de se atingir esse objetivo. Caracterizada pelo acompanhamento sistemdtico e controlado de uma agao realizada por um individuo ou grupo, a metodologia da pesquisa-agao retine condigdes muito favordveis para o desen- volvimento do trabalho docente refletido. 39 40 © importante papel que poderiam ~ ou deveriam — desempenhar as uni- versidades nesse sentido é mais do que evidente. Na formagio inicial, o envol- vimento, do aluno nessas pesquisas serd mais lento ¢ gradual, j4 que raramente ele chega ao curso com experiéncia docente que seria o objeto da investigacao. Pode-se, nesse caso, trabalhar com a memédria educativa (Lima, 1988) e sé nas fases mais adiantadas do estdgio recorrer ao exercicio de reflexéo sobre a propria pratica. Nos programas de aperfeigoamento, porém, essas restrigdes deixam de existir, ¢ as condigdes sio as mais propicias para o desenvolvimento de projetos de pesquisa-acao. Para que estas experiéncias possam ser bem-sucedidas, no entanto, é pre- ciso que se vinculem a convénios firmados entre a universidade ¢ as secretarias de educagao, em que fique muito claro o papel e as responsabilidades de ambas as partes. A literatura oferece um numero razodvel de trabalhos j4 elaborados nessa mesma linha, tanto no Brasil quanto no exterior, oferecendo dados mais do que suficientes para se saber em que direg6es vale a pena investi ¢ quais os erros a evitar (André, 1992; Carr e Kemis, 1988; Ludke, 1993; Martins, 1989; Névoa, 1992; Perrenoud, 1992). Pesquisas reunindo docentes da universidade ¢ das escolas de 1° e 2° graus, visando o desenvolvimento de uma investigagao centrada na reflexdo sobre o proprio trabalho e na busca de elementos para seu aperfeisoamento, seriam uma das possibilidades. Mas h4 outras, como por exemplo a elaborasio conjunta de material diddtico de boa qualidade para subsidiar o trabalho docente, a produsao ¢ andlise de videos com finalidade de aperfeigoamento didético ¢ muitas outras que certamente ito enriquecer a pratica pedagdgica nao sé das escolas de 1° e 2° graus, mas, sobretudo, da universidade. Referéncias bibliogréficas André, M.E.D.A. (1992). A contribuigdo do estudo de caso etnogrifico para a reconstrugdo da diddtica, Sio Paulo, Faculdade de Educagao/USP. (Tese de livre-docéncia.) . (1993). Formagao de professores em servigo: um didlogo com wdrios textos. Trabalho nao publicado. ANPEd — 16* Reunio Anual (1993). Educagdo: Paradigmas, Avaliagdo ¢ Pers- pectivas — Programagao ¢ Resumos dos Trabalhos, setembro. Erickson, F. (1989). Métodos cualitativos de investigacién sobre la ensefian- za. Wittrock, M. La investigacién de la ensehanza, 11. Madrid, Espanha, pp. 195-301. Carr, W. ¢ Kemmis, S. (1988). Teoria critica de la enseAanza, Barcelona, Edi- ciones Martinez Roca. Lima, M.L.R. (1988). “Mudangas qualitativas no conhecimento sobre o traba- Iho docente”. In: V.V.A.A. Um desafio para a diddtica, Sao Paulo, Loyola, pp. 39-62. Ludke, M. (1993). Combinando pesquisa e prética no trabalho e na formagao de professores. Ande, 12(19):31-37. Martins, RL.O. (1989). Diddtica tedricalDidatica pritica. S40 Paulo, Loyola. Novoa, A. (1992). “Formasao de professores ¢ profisséo docente”. In: Névoa, A. (coord.) Os proféssores ¢ sua formagao. Lisboa, Publicagses Dom Quixote, pp. 15-33. Perrenoud, Ph. (1993). Praticas pedagdgicas, profissto docente e formasao. Lisboa, Publicagées Dom Quixote. Marli E. D. A. André Faculdade de Educagio - USP Coordenadora do Programa de Pés-Graduagio 41

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