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-OCONTRATOSOCIAL ONTEM E HOJE Paulo J, Krischke (Org.) CORTEZ E€ €DITORA ogacéo na Publicacéo ( lo Livro, SP, Brasil) CTP) ° Contato Social, ontem © hoje / Johannes Althusius ct al. |; organizago Paulo J. Krischke. ws,” Paulo : Cortez, 1993, anes Varios tradutores. ISBN 85-249-0495-X 1. Contrato social 2. Btica I. Althusius, Johannes. Il. Krischke, Paulo J. 93-1645 CDD-320.11 Indices para catdlogo sistemdtico: 1. Contrato social : Ciéncia politica 320.11 2. Pacto social : Ciéncia politica 320.11 Digitalizado com CamScanner icin betes CARTA ACERCA DA TOLERANCIA* John Locke [..] Se alguém pretender fazer com que uma alma, cuja salvagio deseja de todo o coragao, sofra em tormentos, mesmo que ainda nao se tenha convertido, confesso que isso nao apenas me surpreenderia, como também a outrem. Ninguém, certamente, acreditaré que tal atitude tenha nascido do amor, da boa vontade e da caridade. Se os homens sao submetidos a ferro e fogo a professar certas doutrinas, e forgados a adotar certa forma de culto exterior, mas sem se levar em consideragdo seus costumes; se alguém tentar converter os de f€ contréria, obrigando-os a cultuar coisas nas quais nfo acreditam, e permitindo-Ihes fazer coisas que o Evangelho nao permite aos cristos, € que nenhum crente permite a si mesmo, nao duvido que apenas visa reunir numa assembléia numerosa outros adeptos de seu culto; mas quem acreditar4 que ele visa instituir uma igreja crista? Nao 6, Portanto, de se admirar que os homens — nao importa o que pretendem — lancem mao de armas que nao fazem parte de uma campanha cristé, quando nao intencionam promover o avango da verdadeira Teligiio e da Igreja de Cristo. Se, como 0 Comandante de nossa salvagao, desejassem sinceramente a salvac%o das almas, deveriam caminhar nos seus passos e seguir o perfeito exemplo do Principe da Paz, que enviou seus discfpulos para converter nagdes ¢ agrupé-las Sob sua Igreja, desarmados da espada ou da forga, mas providos das ligdes do Evangelho, da mensagem de paz ¢ da santidade exemplar de suas condutas. Se os infiéis tivessem que se converter mediante @ forga das armas, se 0 cego ¢ o obstinado tivessem que ser lembrados a * Extrafdo de Os Pensadores, S40 Paulo, Abril, 1978. Tradugiio de Anoar Aiex. Publicado com a autorizagio da Editora, 95 Digitalizado com CamScanner dos, seria mais facil s por soldados arma _ 0 fj de oa ores Ee ército das legides celestiais, do que por uae” Sr drigait tA cists Poder0so, mediante sey? ragga rol 7 ae . pi A tolerancia para os defensores de Opinides oy tas aeeteg < temas religiosos est4 tio de acordo com 0 Evangelho ¢ com . : ar, lue parece monstruoso que os homens sejam CeBOS diante 4,240 q se ; Un; luz tao clara. Nao condenarei aqut 0 orgulho e a aMbigao de yp a 4 impiedade © © zelo descaridoso de Outros, Bs, a es, defeitg, nao podem, talvez, ser erradicados dos assuntos humano; que Ele nome da religio, © impunidade de seus ges do 8overno civil ¢ da as verdadeiras fronteiras entre a Igreja e a 0 for feito, nao Se pode pér um fim as lado, e, por outro, Comunidade, Parece-me Constitufda aper Seus membros. . _ Denomino de bens civis Vida, a liberdade, a libertagao da dor, e a Posse de coisas externas, inheiro, MOveis etc, que a Comunidade uma ‘ociedade de homens Nas para a Pres ervacdo e melhora dos bens civis de Satide fisica ea tais como terras, IS, Opondo-se a justiga e ao leve ser Teprimida Pelo medo do castigo, que 4 Privacao ou diminy; bens civis que de outro modo ; +» Mas vendo que ninguém se Permite volunta- reaPOitdo de qualquer Parte de seus bens, muito menos © OU de sua vida, o Magistrado reveste-se de forga, 96 f Digitalizado com CamScanner wy seja, com toda a forga de seus stditos, a fim de punir os que ‘nfringiram quaisquer direitos de outros homens. Mas que toda a jurisdi¢io do magistrado diz Tespeito somente a esses bens civis, que todo 0 direito e 0 dominio do Poder civil se limitam unicamente a fiscalizar e melhorar esses bens civis, € que nao deve poder ser de modo algum estendido a salvagao das almas, seré provado pelas seguintes consideragdes, Em primeiro lugar, mostraremos que nao cabe ao magistrado civil o cuidado das almas, nem tampouco a quaisquer outros homens. Isso no Ihe foi outorgado por Deus, porque nao parece que Deus jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro para induzir outros homens a aceitar sua religido. Nem tal poder deve ser revestido no magistrado pelos homens, porque até agora nenhum homem menosprezou 0 zelo de sua salvacdo eterna a fim de abragar em seu coragaéo um culto ou fé prescritos por outrem, Principe ou stidito. Mesmo se alguém quisesse, nfo poderia jamais crer por imposigao de outrem. E a f6 que d4 forga e eficécia a verdadeira religido que leva a salvacao. Seja qual for a religido que a gente professe, seja qual for o culto exterior com o qual se est4 de acordo, se néo acompanhados de profunda convicc4o de que uma é verdadeira € 0 outro agrad4vel a Deus, em lugar de auxiliarem, constituem obstéculos & salvacao. [...] Em segundo lugar, 0 cuidado das almas nao pode pertencer ao magistrado civil, porque seu poder consiste totalmente em coergao. Mas a religido verdadeira e salvadora consiste na persuasao interior do espfrito, sem o que nada tem qualquer valor para Deus, pois tal € a natureza do entendimento humano, que nao pode ser obrigado Por nenhuma forga externa. Confisque os bens dos homens, aprisione © torture seu corpo: tais castigos serio em vao, se se esperar que eles o facam mudar seus julgamentos internos acerca das coisas. Dir-se-4 que o magistrado pode usar argumentos, e assim conduzir © heterodoxo para a verdade e proporcionar-lhe salvagao. Concordo, mas tal Ihe cabe em comum com outros homens. Ensinando, instruindo © corrigindo os que erram por meio de argumentos, ele certamente ‘4 © que convém a qualquer pessoa bondosa fazer. A magistratura N40 0 compele a por de lado a humanidade ou a cristandade. Mas uma coisa 6 Persuadir, outra ordenar; uma coisa insistir por meio de argumentos, outra por meio de decretos. Enquanto esta é fungio do Poder civil, aquela depende da boa vontade humana. Todo homem 97 Digitalizado com CamScanner o de admoestar, exortar, convencer @ outrem do ero ¢ través dO raciocinio a aceitar sua opinido; mas € fungao dar ordens por decreto € compelir pela espada. Afirmo, tem o direit ersuadi-lo al er 5 do rn det civil nao deve prescrever artigos de £6, ou doutrinas, Pas de cultuar Deus, pela lei civil. Porque, nao lhes sendo ol yinculadas quaisquer penalidades, a forga das leis desaparece; mas, ¢ as penalidades sao aplicdveis, obviamente sao futeis e inadequadas ; ara convencer 0 espirito. Se alguém deseja adotar certa doutrina ou a de culto para a salvagao de sua alma, deve acreditar firmemente que a doutrina € verdadeira, e que a forma de culto sera agradavel e accitavel por Deus. As penalidades, porém, nao sao de modo algum capazes de produzir tal crenga. O esclarecimento € necessfrio para mudar as opinides dos homens, e 0 esclarecimento de modo algum pode advir do sofrimento corp6reo. Em terceiro lugar, 0 cuidado da salvagdo das almas de modo algum pode pertencer ao magistrado civil; porque, mesmo se a autoridade das leis e a forca das penalidades fossem capazes de converter 0 espirito dos homens, ainda assim isso em nada ajudaria para a salvacao das almas. Pois se houvesse apenas uma religiio verdadeira, uma Yinica via para 0 céu, que esperanga haveria que a maioria dos homens a alcangasse, se os mortais fossem obrigados a ignorar os ditames de sua propria razao e consciéncia, e cegamente aceitarem as doutrinas impostas por seu principe, e cultuar Deus na maneira formulada pelas leis de seu pafs? Dentre as varias opinides que os diferentes principes sustentam acerca da religido, 0 caminho mais estreito e o portao apertado que levam ao céu estariam inevitavelmente abertos a poucos, pertencentes a um tnico pafs: 0 que salientaria o absurdo e a inadequada nogao de Deus, pois os homens deveriam sua felicidade eterna ou miséria simplesmente ao acidente de seu nascimento. [...] Consideremos agora O que € a Igreja. Parece-me que uma igreja € uma sociedade livre de homens, reunidos entre si por iniciativa Propria para 0 culto puiblico de Deus, de tal modo que acreditam que seré aceitavel pela Divindade para a salvagao de suas almas. ee Como uma sociedade livre e voluntdria. Ninguém aie eel eo igreja qualquer; caso contrério, a religido de Sap fae mn '¢ com sua propriedade, Ihe seriam transmitidas {sue one 7 2 Seu pai e de seus antepassados, e deveria sua mse ee cla: nfo se pode imaginar coisa mais absurda. O aime eee desta maneira. Ninguém esté subordinado por ‘uma igreja ou designado a qualquer scita, mas une-S¢ 98 Digitalizado com CamScanner yoluntariamente & sociedade na qual acredita ter encontrado a verdadeira religito ¢ a forma de culto accitével por Deus. A esperanca de salvagao que 14 encontra, como se fosse a tinica causa de seu ingresso em certa igreja, pode igualmente ser a tnica razdo para que 14 permanega. [...] Desde que nenhuma sociedade pode manter-se unida, por mais livre que seja, Ou por mais que seja superficial o motivo de sua organizagao, quer uma sociedade de homens de letras filos6ficas, de mercadores do comércio, quer de homens ociosos para mitua con- versa¢ao e comunicagao; se estiver completamente sem leis se dissolver4 imediatamente e morrer4. De modo que uma igreja deve também ter suas leis, para estabelecer o ntimero e lugar das reunides, para prescrever condigdes com o fim de admitir ou excluir membros, para regulamentar a diversidade de fungdes, a conduta ordenada de seus negécios, e assim por diante. Mas, desde que esta uniao € espontanea, como foi mostrado, e livre de toda forga coerciva, resulta necessa- riamente que o direito para formular suas leis nao pertence a ninguém em particular mas a propria sociedade, ou, pelo menos — o que d4 no mesmo — aqueles a quem a sociedade a isso autorizou por mituo consentimento. [...] J4 afirmei que a finalidade de uma sociedade religiosa consiste no culto ptiblico de Deus, por meio do qual se alcanga a vida eterna. Portanto, toda disciplina deve orientar-se para esse objetivo e todas as leis eclesidsticas a ele tém de confinar-se. Em tal sociedade nao se deve nem se pode fazer algo para obter bens civis ou terrenos; , nao importa por que motivo, nao se deve nela recorrer a forga, desde que a forga cabe inteiramente ao magistrado civil, sendo a Posse e 0 uso de bens exteriores fungdes de sua jurisdigao. Mas, perguntar-se-4, que espécie de sang%o assegurar4 obediéncia as leis eclesidsticas, j4 que elas nto devem ter poder coercivo? Julgo que a sancao adequada a confissio ¢ as manifestagdes exteriores, quando nao resultarem da profunda convicga’o do espfrito humano, sendo portanto destitufdas de qualquer valor. Por isso, as armas, mediante as quais os membros de certa sociedade podem ser confinadas aos seus deveres, sto exortagdes, admoestagoes & conselhos. Se tais medidas, porém, nao reformarem os transgressores, levando os trans- Viados a retomar ao caminho reto, nada mais resta a fazer, exceto impor aos obstinados e teimosos, que oferecem obstéculos para sua Propria reforma, a separagio e a exclusio da sociedade. Consiste 99 Digitalizado com CamScanner 7 forga maxima € ultima da autoridade eclesidtica. Portanto, ° nisso @ be que ela pode infligir implica interromper a relacao entre nico _ ° membro desgarrado, fazendo com que a pessoa condenada teine de pertencer a determinada igreja. Sendo isso entendido, investiguemos, a seguir, qual € 0 dever de cada um com respeito a tolerancia. Primeiro, afirmo que nenhuma igreja se acha obrigada, pelo dever de tolerancia, a conservar em seu seio uma pessoa que, mesmo depois de admoestada, continua obstinadamente a transgredir as leis estabelecidas por essa sociedade. Pois, se forem infringidas com impunidade, a sociedade se dissolver4, desde que elas compreendem tanto as condigdes da comunhao como também o tnico lago que une entre si a sociedade. Entretanto, deve-se tomar cuidado para que a sentenga de excomunhao nao esteja redigida com termos insultuosos ou com tratamento grosseiro, que tragam qualquer dano a pessoa expulsa no ffsico ou nos bens. Conforme afirmei, toda forga cabe ao magistrado, nao sendo permissfvel 0 seu emprego por qualquer indi- viduo, excetuando apenas os casos de autodefesa. A excomunhiio nao despoja nem pode despojar 0 excomungado de quaisquer de scus bens civis ou de suas posses. Sao fatores referentes 4 sua situagio de cidadio, ¢ sujeitos & protegao do magistrado. A forga total da excomunhao consiste apenas nisto: sendo declarada a resoluga3o da sociedade, fica dissolvida a unio entre 0 corpo e certo membro; e, cessando esta relagdo, certas questOes que a sociedade comunicava a seus membros, e sobre as quais ninguém tem qualquer dircito civil, deixam também de existir. (...] Segundo, nenhum individuo deve atacar ou Pprejudicar de qualquer maneira a outrem nos seus bens civis Porque professa outra religido ou forma de culto. Todos os direitos que lhe pertencem como indivfduo, ou como cidadao, sao invioléveis e devem ser-lhe preservados. Estas nao so as funcdes da religido. Deve-se evitar toda violéncia e injaria, seja ele Cristo ou pagao. Além disso, nao devemos nos contentar Com os simples critérios da justiga, € preciso juntar-Ihes a benevoléncia © a caridade. Isso prescreve 0 Evangelho, ordena a razdo, e exige de NOs a natural amizade e o senso geral de humanidade. [...] © que fic divergem entn Ou dito acerca da tolerancia mutua de pessoas que diferentes Snire ‘si em assuntos religiosos vale igualmente para a Ue aS pesos Gue devem se relacionar entre si do mesmo modo ‘NE 8S Pessoas: nenhuma delas tem qualquer jurisdigao sobre a outra, 100 Digitalizado com CamScanner nem mesmo quando o magistrado civil — 0 que por vezes ocorre — pertence a esta ou aquela igreja, j4 que 0 governo nio pode outorgar qualquer novo direito & Igreja nem a Igreja ao governo civil. Assim sendo, pertenca © magistrado civil a certa igreja ou dela se separe, a Igreja permanece sempre o que fora antes: sociedade livre e voluntéria. Nao adquire o poder da espada pelo ingresso do magistrado, nem por té-la deixado perde a autoridade de ensinar ¢ excomungar que antes possufa. Este sera sempre o direito imutdvel de uma sociedade espontanea: 0 poder de expelir 0 membro que julgar merecedor, e por aceitar novos membros ndo adquire nenhuma jurisdigao sobre os que lhe sao estranhos. E, portanto, a paz, a eqilidade e a amizade so mutuamente observaveis nas diferentes igrejas, do mesmo modo que entre os indivfduos, sem nenhuma alegag’o de jurisdiga0 sobre os outros. [.. Ninguém, portanto, nem os indivfduos, nem as igrejas e nem mesmo as comunidades t¢m qualquer titulo justificvel para invadir os direitos civis ¢ roubar a cada um seus bens terrenos em nome da religiéo. Aos que pensam de outro modo, pediria que ponderem consigo acerca das ilimitadas ocasides para a discérdia e guerras, quao poderosa provoca¢ao para rapinas, matangas e infindveis 6dios que fomecem A humanidade. Nenhuma seguranga ou paz, muito menos amizade, jamais pode ser estabelecida ou preservada entre os homens, se a opiniao predominante est4 fundada no privilégio e que a religiio deve ser propagada pela forga das armas. Em terceiro lugar, vejamos que dever de tolerancia se exige dos que se distinguem do resto dos homens, isto 6, dos leigos, como lhes agrada nos denominar, por certa categoria eclesidstica e offcio divino, tais como os bispos, padres, presbiteros, ministros ¢ outros designados de forma diversa. [...] Nao € suficiente que os sacerdotes se abstenham da violencia, da pilhagem e de todos os modos de perseguicao. Quem se considera como sucessor dos apéstolos, e assume a responsabilidade de ensinar, tem também obrigagao de advertir seus ouvintes dos deveres da paz e da boa vontade para com todos os homens, tanto 0 equivocado como 0 ortodoxo, tanto os que diferem dele na f6 e culto como os que com ele concordam. E deve aconselhar toda a gente, quer os individuos, quer os funcionérios publicos na comunidade, se os ha em sua igreja, a praticar a caridade, a humanidade ¢ a tolerancia, ¢ a acalmar e moderar todo fervor e aversao do espfrito, que decorrem 101 Digitalizado com CamScanner tanto do veemente zelo humano por sua propria religiio e seita como da astécia incitada de outros contra os dissidentes. [...] Enquanto nos assuntos domésticos, na administrac¢ao dos bens e em problemas de satide fisica, toda a gente se julga capaz de discernir 0 que € mais conveniente ¢ orientar-se pela via que lhe parecer a melhor. Pois ninguém reclama ao seu vizinho porque ele nao sabe administrar seus negocios. Ninguém se enfurece com outrem por ter errado ao semear sua terra ou casar sua filha. Ninguém tenta reformar um perdulério por ter gasto sua fortuna numa taverna. Ninguém se manifesta ou profbe alguém de demolir, construir ou de fazer quaisquer despesas segundo sua vontade. Ao passo que, se um homem nao freqiienta a igreja e nao se comporta de acordo com as cerim6nias estabelecidas, ‘ou se nao faz com que seus filhos sejam iniciados nos sagrados mistérios desta ou daquela congregacao, ocasiona ruidosas reclamagdes e¢ acusagdes. [...] Que seja permitido aos oradores sacros de cada seita 0 uso de argumentos vigorosos para refutar os erros humanos, poupando ao mesmo tempo os indivfduos. Nao supram sua falta de raz&o com instrumentos discordantes, que fazem parte de outra juris- dicgdo e nao devem ser manejados pelos sacerdotes. Nao recorram a autoridade do magistrado para suprir sua propria elogiiéncia e sabedoria, pois pode talvez acontecer que, enquanto visam apenas 0 amor da verdade, 0 zelo descontrolado, que se manifesta pelo fogo e espada, revela antes sua ambicio de dominio. Porque nao se persuadir4 facilmente os homens sensatos de que quem com olhos enxutos e¢ consciéncia tranqiiila pode enviar seu irmao ao executor para ser queimado vivo est4 sinceramente e de todo 0 coragao preocupado em salvar este irmao das chamas do inferno no outro mundo. Em quarto e ultimo lugar, consideremos quais os deveres do magistrado com respeito a tolerancia, que, certamente, s4o importantes. J4 provamos que 0 cuidado das almas nao incumbe ao magistrado. Nao € cuidado magistratico, quero dizer (se posso assim denominé-lo), © qual consiste em prescrever por meio de leis e obrigar por meio de castigos; ao contrdrio, 0 cuidado caritativo, que consiste em ensinar, admoestar e persuadir, nao pode ser negado a homem algum. Portanto, © cuidado da alma de cada homem pertence a ele proprio, tem-se de deixar a ele préprio. Mas que sucederd se ele deixar de cuidar de sua satide e propriedade, coisas que mais de perto dizem respeito a0 governo do magistrado? Prover4 o magistrado mediante lei expressa que 0 individuo nao se tome pobre ou doente? As leis tendem, tanto quanto posstvel, para proteger os bens e a satide dos stiditos contra 102 Digitalizado com CamScanner a violencia ea fraude de terceiros; mas n&o os protege contra a negligéncia ou prodigalidade deles préprios. Nenhum homem pode ser forgado contra a sua vontade a ser sadio ou rico. Ainda mais, mesmo Deus nao salvar4é os homens contra a vontade deles. Supo- nhamos, contudo, que certo principe pretenda forgar os stiditos a acumular riquezas Ou preservar a satide de seus corpos. Deverd ser previsto por Iei que devem somente consultar médicos catélicos que todos serao obrigados a viver segundo suas reccitas? Como, nao se tomaré qualquer remédio, nenhum alimento, exceto os preparados no Vaticano, ou provenientes de uma botica de Genebra? Ou, para prover seus sditos de riqueza e bem-estar sero todos obrigados por lei a se tornarem mercadores ou misicos? Ou se converterao todos em merceeiros ou ferreiros porque h4 quem mantenha a famflia na abundancia e se torne rico exercendo essas profissdes? Contudo, dirao que hé milhares de maneiras para fazer fortuna e apenas um caminho para o céu. Bem formulado, certamente, especialmente pelos que querem forgar os homens para este ou aquele caminho. Pois, se houvesse varios caminhos, ainda assim nao existiria um unico pretexto para a compulsao. Mas, ent3o, se estou marchando com m4ximo vigor pelo caminho que, segundo a geografia sacra, leva diretamente para Jerusalém, por que sou espancado? Seré, talvez, pelo fato de nao usar borzeguins; porque nao me deram o banho batismal de maneira correta ou meu cabelo nao foi cortado como deveria; porque como came na estrada ou qualquer outro alimento que concorda com o meu est6mago; porque evito certos atalhos que parecem conduzir-me a sargas e precipfcios; porque, entre as varias sendas da mesma estrada e que levam para a mesma diregao, escolho aquela que me pareceu ter menos vento ou barro; porque evito a companhia de certos viajantes Menos graves ¢ de outros mais impertinentes do que deveriam ser; ou, enfim, porque sigo um guia que est4é ou nao est4 coroado de mitra e vestido de branco? Certamente, se ponderarmos devidamente, verificaremos que, na maior parte, sao assuntos triviais como estes que criam inimizades entre confrades cristaos, apesar de todos con- cordarem com os aspectos essenciais da religiao. Tais ninharias, porém, Se n§o acompanhadas da superstigio ou da hipocrisia, Peden sey Observadas ou omitidas, sem qualquer prejuizo a religido e 4 salvacao das almas. Entretanto, concedamos a esses fandticos, que condenam tudo que nao estiver segundo seu modelo, que tais eee origi am Caminhos diversos que conduzem a diferentes diregdes. O que ci 103 Digitalizado com CamScanner 3 disso? Apenas que um deles éo verdadeiro caminho da ; dentre as mil maneiras pelas quais os homens Vigj; salvaglo; mas j ais correta. Ora, nem ida ainda se duvida qual seja a mi a. MTA, © Cuidado da comunidade nem 0 direito de decretar leis Tevelam © caminho que conduz ao céu com certeza maior para oO magistrado do que q meditagéo humana revela para si mesma. Suponhamos que tenho 9 corpo fraco e sou atacado por grave doenga, para a qual existe apenas uma cura, embora desconhecida. Consiste, pois, a tarefa do magistrado em receitar um remédio, porque hé apenas um tnico que 6, dentre varios remédios, desconhecido? Porque tenho apenas uma maneira de escapar da morte, ser-me-4, portanto, mais seguro fazer 0 que o magistrado ordena? Tudo quanto cada homem deve sinceramente investigar em si mesmo, através da reflexdo, estudo, julgamento e meditagao, nao se pode considerar como sendo propriedade particular de qualquer classe de homens. Os principes nascem superiores em poder, mas em natureza igualam-se aos outros mortais. Nem 0 direito nem a arte de dirigir compreendem o conhecimento seguro das outras coisas, e muito menos da verdadeira religido. Pois, se assim fosse, por que os senhores de terra diferem enormemente em assuntos teligiosos? Mas concedamos que, provavelmente, o principe conhece melhor 0 caminho para a vida eterna do que os seus stiditos, ou, pelo menos, por causa dessa incerteza, ser4 mais seguro ¢ conveniente obedecer a seus ditames. Poder-se-4 dizer, ent4o, se ele mandasse alguém ganhar a vida no comércio, recusaria fazé-lo por duvidar que assim enriqueceria? Imagino que seria mercador por ordem do principe, Por julgar que, se nao fosse bem-sucedido no comércio, o principe Poderia compensé-lo de outro modo qualquer; sendo, pois, verdade que ele pode protegé-lo da fome e da pobreza, certamente pode compensé-lo por ter perdido tudo em virtude de m4 sorte ou mau negécio. O mesmo nao ocorre em assuntos acerca da outra vida. Se nela alguém faz um mau investimento, se em certas ocasides seus negdcios forem desesperadores, de modo algum pode o magistrado Teparar sua perda, acalmar seu sofrimento ou restaurar seu equilfbrio, menos ainda se estiver na prosperidade. De que modo se pode ter Seguranga para alcangar o reino do céu? cluiremos Poderio, talvez, dizer que nfo devemos atribuir esse julgamento infalfvel, para o qual tendem todos os homens, ao magistrado civil mas & Igreja. Aquilo que foi determinado pela Igreja deve ser obedecido Por todos por ordem do magistrado civil, que, recorrendo 2 sua autoridade, evita que alguém aja ou acredite em assuntos sacros 104 Digitalizado com CamScanner opostos a0 ensino da Igreja. Deste modo, 0 poder decisivo pertence a Igreja: prestando-lhe o préprio magistrado obediéncia e exigindo dos outros 0 mesmo. Ora, como se ninguém visse com que tamanha freqiéncia 0 nome da Igreja, venerada no tempo dos apéstolos, tem sido usado em épocas posteriores para langar pocira nos olhos das pessoas! Em conclusao, isso n&o nos ajuda no presente caso. Afirmo, pois, que 0 nico e estreito caminho que conduz ao céu nao é mais bem conhecido pelo magistrado do que pelos individuos; por conse- guinte, N40 posso orientar-me com seguranga em quem provavelmente ignora tanto como eu 0 verdadeiro caminho, e quem certamente deve estar menos preocupado do que eu com minha propria salvagao. [...] Mesmo assim, pedem-me para ter coragem e dizem-me que tudo se encontra protegido e assegurado, porque o que o magistrado verifica no povo e confirma por sangOes civis n’o consiste no cumprimento de seus préprios decretos em matéria de religiio, mas nos decretos da Igreja. Pergunto: de que igreja? Obviamente, da igreja ao agrado do principe. [...] As decisdes dos sacerdotes, cujas disputas e rixas s40 muito bem conhecidas, nao podem ser mais sonoras e seguras do que as dele, nem podem todos os seus votos acrescentar nova forca ao poder civil. Contudo, isto merece também ser observado: os principes raramente tém qualquer considera¢ao pelas opinides e votos dos eclesidsticos que nao favorecam sua propria fé e maneira de culto. Mas, em suma, 0 aspecto fundamental e determinante total da controvérsia 6 este: mesmo se for judiciosa a opiniao do magistrado em religido e orientada para 0 caminho verdadeiramente evangélico, ainda assim quem nao estiver profundamente convencido disso em seu proprio espirito nao ser4 salvo. Nenhum caminho no qual entra contra sua prépria consciéncia jamais o levar4 para as mansdes abencoadas. Pode enriquecer-se através de um offcio que nao lhe agrada, pode ser curado de uma doenga por remédio nos quais nao confia; mas nao pode ser salvo mediante religido na qual nao confia, ou por um culto que nao the agrada. & indtil para um descrente assumir as manifestagdes externas de moralidade; para agradar a Deus necessita de {6 e sinceridade interior. Por mais que seja promissor e geralmente aprovado certo remédio, ser administrado em vaio se 0 estémago o rejeita quando ingerido e consiste num erro obrigar um Paciente a ingeri-lo, porque a sua constituigao peculiar o transformar4 €m veneno. Seja qual for a religiio discutida, 6 certo, porém, que Nenhuma religiao pode ser util e verdadeira se nao se acredita nela 105 Digitalizado com CamScanner er, pois, em vao que 0 magistrado obrigar4 seus ertencerem a certa igreja com 0 pretexto de salvar suas es acreditam, virao por sua livre vontade; se nao acreditam, ler4 comparecer. Por conseguinte, por maior que Seja boa vontade ¢ caridade, e a preocupagao de salvar a o pretext de forgad se salvar. alma dos homens, nao podem ser orga los a var. Deve-se, portanto, quando tudo tiver sido feito, deix4-los 4 sua Propria cons- ciéncia. Libertamos, assim, todos os homens de se dominarem mu- tuamente em assuntos religiosos. Portanto, 0 que € que devem fazer? Todos nés sabemos e reconhecemos que devemos cultuar Deus pu- blicamente; por que devemos nos reunir em assembléias publicas? Porque os homens dotados dessa liberdade devem fazer parte de certa sociedade religiosa para manter servicos publicos, nfo apenas para mitua edificagao como também para testemunhar ao mundo que sao cultores de Deus e oferecem seus servigos 4 Divina Majestade. Nao se sentem, ademais, envergonhados por tais servigos; pelo contrério, julgam-nos valorosos para Ele, sendo aceitdveis por Ele, e, finalmente, pela pureza de sua doutrina, santidade de sua vida e forma decente de culto, estimam encorajar outros a amar a religido e a verdade, e ‘a executarem esses servigos religiosos que nao podem ser realizados pelos homens isoladamente. Denomino igrejas essas sociedades religiosas e acho que devem ser toleradas pelo magistrado, pois as pessoas reunidas nessas assem- bléias esto apenas preocupadas com o que é legal e apropriado aos individuos separadamente, a saber, a salvagao de suas almas; com respeito a isso nio h4 nenhuma diferenga entre a igreja nacional as outras dela discordantes. como verdadeira. S siditos a P almas. Se el de nada Ihes val Mas como em todas existem dois aspectos fundamentais que devem ser considerados — a forma externa ¢ os ritos do culto, e as doutrinas e os artigos de f€ —, os quais, abordados separadamente, Permitem entender claramente toda a quest4o da tolerancia. I — O magistrado nao pode revigorar mediante lei civil em Sua pr6pria igreja (menos ainda na de outrem) o uso de quaisquer Titos ou nao importa que cerim6nias para cultuar Deus, ndo apenas Porque essas igrejas sao sociedades livres, como ainda o que € ofertado a Deus no culto divino justifica-se unicamente pelo fato de que seus hs acreditam que serd aceito por Deus. Tudo o que nao for ee ca pase Nessa seguranca nao ser4 legal nem aceitével por 8. [...] Dirao, entao, que se nega ao magistrado (0 que cada um 106 Digitalizado com CamScanner Ihe outorga) 0 poder sobre coisas indiferentes? Se isto Ihe for tirado, nao haverd nenhum assunto sobre o qual ele pode legislar. Admito ue as coisas indiferentes, e, talvez, nenhuma exceto estas, esto sujeitas a0 poder legislativo. 1. Mas isso nao implica que o magistrado pode decretar tudo o que for de seu agrado acerca de qualquer coisa que lhe é indiferente. © bem ptiblico consiste na norma e na medida do legislador. Se alguma coisa nao for util 4 comunidade, por mais indiferente que seja, nao pode em razdo disso ser estabelecida pela lei. 2. Entretanto, por sua propria natureza, as coisas indiferentes distanciam-se da jurisdigéo do magistrado quando sao compreendidas pela Igreja e pelo culto de Deus, deixando, entao, de ter qualquer relagio com os negécios civis. A tnica fungao da Igreja consiste na salvagio das almas, e nao afeta de modo algum a comunidade, nem qualquer membro dela, se esta ceriménia ou aquela é praticada. Nem a observancia nem a omissao de quaisquer cerim6nias em assembléias religiosas ajudam ou prejudicam a vida, a liberdade ou a propriedade de outrem. [...] 3. As coisas indiferentes por natureza nao podem, mediante decisio e autoridade humanas, ser transformadas num dos aspectos do culto divino, precisamente pelo fato de serem indiferentes. Uma vez que as coisas indiferentes nao sao por natureza capazes, por virtude alguma a elas inerente, de propiciar a Divindade, como nenhum poder ou autoridade humana pode conferir-lhes tanta dignidade ¢ exceléncia para torné-las capazes de merecer 0 favor divino. Nas funges ordindrias da vida as coisas indiferentes sao livres e legais se nao proibidas por Deus, sendo, portanto, pass{veis de serem decididas pela autoridade humana. Semelhante liberdade nao existe com Tespeito a religiao e aos assuntos sagrados. [...] Vé-se, portanto, que, por mais que as coisas indiferentes dependam do poder do magistrado civil, Mmesmo assim nao podem com base nessa alegacdo se introduzir no Nilo sagrado © se impor sobre as assembléias religiosas, porque Componentes do culto sagrado deixam imediatamente de ser indiferentes. Quem cultua Deus, cultua-O com a intengo de agrad4-Lo e conseguir Seu favor. Obediente a ordem de outrem nto pode fazé-lo, porque Oferece a Deus o que acredita que ser4 desagradavel & Divindade, j4 que a isso nao foi por Ele ordenado. Com esse culto nao apazigua 107 Digitalizado com CamScanner Deus; pelo contrério, de modo consciente e deliberado, termina por provocd-Lo mediante ofensa manifesta, repugnante com vistas ao culto, Dir-se-4: se nto h4 nada no culto divino deixado a discrigao humana, por que é permitido as prdoprias igrejas 0 poder de regular o tempo ¢ o lugar do culto, ¢ assim por diante? No culto religioso — respondo — devemos distinguir entre o que faz parte do Proprio culto e 0 que unicamente € circunstancial. Uma parte do culto consiste naquilo que se acredita exigido por Deus ¢ ser-lhe agrad4vel; torna-se, entao, necessfrio. Embora as coisas circunstanciais nao Possam, ge- ralmente, ser omitidas do culto, permanecem indiferentes Porque nao sao especificamente determinadas. So, assim, 0 tempo e o lugar do culto, ou o habito ¢ a postura do cultor, desde que a vontade divina nao ordenou nada nesse sentido. II — O magistrado nao pode proibir que esses ritos ou ceriménias sejam usados nas assembléias religiosas tais como foram estabelecidos por certa igreja, porque destruiria a propria igreja, cujo objetivo consiste no culto de Deus por ela livremente formulado. [..] Cabe aos cultores ponderar se isso agrada a Deus; ao passo que a fung’o do magistrado consiste apenas em garantir que a comunidade nao sofra, ¢ que dano algum seja ocasionado a qualquer homem, quer em sua vida, quer em sua propriedade. [...] Vé-se, assim, a diferenga entre a Igreja e a comunidade. O que quer que seja legal na comunidade, nao pode ser proibido pelo magistrado na Igreja. O que quer que seja permitido aos siiditos para o uso ordindrio, nao pode nem deve ser proibido nas reunides religiosas, se os padres desta ou daquela seita desejam us4-lo com propésitos sagrados. Se sentado ou ajoclhado um homem pode legalmente comer pao ou beber vinho em sua prépria casa, a lei civil nao deve proibi-lo de fazer 0 mesmo no culto, embora aqui 0 uso do vinho e do pao seja bem diferente, pois na Igreja aplica-se no ritual sacro e adquire um significado m{stico. As coisas que em si mesmas so prejudiciais 4 comunidade, e que Sao proibidas na vida ordindria mediante leis decretadas para o bem geral, nao podem ser permitidas para o uso sagrado na Igreja nem 840 passfveis de impunidade, Os magistrados devem, contudo, tomar © maximo cuidado para nao se aproveitarem do pretextado bem Publico a fim de limitar a liberdade de qualquer igreja; ao contrério, © que € legal na vida ordindria e estranho ao culto de Deus nao Pode ser proibido pela lei civil no culto divino ou em lugares sagrados. ____ Mas, podem perguntar, se certa igreja 6 iddlatra, isto deve igualmente ser tolerado pelo magistrado? A isso respondo: se 0 108 Digitalizado com CamScanner magistrado tiver 0 direito para reprimir uma igreja id6latra, nao pode, igualmente, no devido tempo e lugar, utiliz4-lo para arruinar uma ortodoxa? Pois devem se lembrar que o poder civil se assemelha em toda a parte, ea religiio de cada principe € ortodoxa para si mesma. [..J O poder civil pode modificar tudo na religiio ao bel-prazer do principe, ou nao pode modificar nada. Se lhe for permitido pela lei, pela forga © por penalidades introduzir algo nas questdes religiosas, nao haveré mais limite para isso; baseando-se em recursos semelhantes o magistrado se julgaré com poder para obrigar tudo a se conformar a regra da verdade por ele inventada. Ninguém deve ser despojado de seus bens terrenos por motivo religioso. Embora subjugados por um principe cristéo, os americanos nao devem ser despojados da vida e da propriedade porque nao praticam a religido cristé. Pois, se acreditam que agradam a Deus e serdo salvos mediante os ritos de seus antepassados, devem ser deixados em paz e com Deus. Fis como isso comegou. Um grupo pequeno e insignificante de cristdos, destitufdos de tudo, chega a um pafs pagao; esses estrangeiros pedem aos nativos, em nome da comum humanidade, que os socorram com o essencial a vida. Seus desejos s&o satisfeitos, fornecem-lhes habitag3o e as duas ragas terminam por se unir e formar um tnico povo. A religido crista cria rafzes e difunde-se, embora nao seja ainda a mais forte. Mantendo-se, até aqui, entre eles, a paz, a amizade, a {6 e harmoniosa justiga. Aos poucos, porém, 0 magistrado converte-se e 0s cristios tornam-se a faccdo mais forte. Imediatamente as leis so rompidas e os direitos civis violados, a fim de extirpar a idolatria; toubando desses pagdos inocentes, cumpridores rigorosos do que é direito e de modo algum causando ofensas contra a boa moral e a lei civil, suas vidas, seus bens e as terras de seus antepassados, a nao ser que se esquegam de seus antigos ritos, & adotem os novos e estranhos. Vemos, finalmente, de modo claro, 0 que resulta do zelo pela Igreja combinado com o desejo de domfnio, e como a teligiao © a salvacdo das almas podem ser usadas como subterfiigio da €spoliacio e da ambicao. Se acreditam que a idolatria deve ser extirpada de alguma regido Pelas leis, castigos, fogo e espada, podem trocar 0 nome da regio © aplicar esse relato a si proprios. Desde que tanto os pagdos da América como os cristéos de pafses europeus sto despojados de suas Propriedades por discordarem de algum modo da igreja nacional, Portanto, nao devem os direitos civis, com base na religido, ser Violados ou modificados tanto numa como em outra regiao. 109 Digitalizado com CamScanner Poderao afirmar, porém, que, sendo a idolatria um pecado, nao ser tolerada, Se disserem que a idolatria € um pecado e, portanto, rupulosamente evitada, esta inferéncia é correta; mas nag ¢ disserem que é um pecado e, portanto, deve ser Punida pelo magistrado. Nao cabe nas fungdes do magistrado punir com leis e reprimir com a espada tudo 0 que acredita ser um pecado contra Deus. Todos concordam que a avareza, 0 malogro para aliviar a necessidade dos outros, a frivolidade e muitas outras faltas semelhantes sio pecados. Mas alguém pensou que elas devem ser punidas pelo magistrado? Nao ha motivo para isso, pois, elas nao prejudicam os direitos de outros homens ou causam distirbios 4 paz publica. Mesmo nas regides em que sd reconhecidas como pecados nao sao reprimidas mediante punicao legal. As leis nada prescrevem contra os mentirosos, ou mesmo contra os perjuros, pois eles nao sao condenados por revelarem baixeza moral ou provocarem a Divindade, mas quando ameagam mediante a injiria a comunidade ou os vizinhos. O que ocorre, porém, se a religido crista parecer falsa e ofensiva a Deus, ao pagdo e a um principe maometano? Nao devem, igualmente, com base no mesmo raciocinio e de modo semelhante, liquidar com os cristaos? [...] A integridade da conduta, que nao consiste num aspecto des- prezfvel da religiao e da piedade sincera, diz respeito também a vida civil, e nela repousa a salvacao tanto da alma humana como da comunidade. As agOes morais pertencem portanto a jurisdi¢do tanto do tribunal externo como do intemo, e esto sujeitas aos dominios do governo civil e do doméstico; vale dizer, do magistrado e da consciéncia. Neste ponto, portanto, existe o perigo de que um desses pode infringir 0 dircito do outro, fazendo nascer a discérdia entre os guardiGes da paz e da alma. Se for, porém, rigorosamente observado © que afirmei acima acerca dos limites do governo, tais obstéculos serao removidos com facilidade nesse assunto. Todo ser mortal possui alma imortal, que pode alcangar felicidade ou miséria eternas. Como, porém, a salvagao da alma depende de atos e crencas prescritos por Deus com respeito as coisas desta vida, que so necessfrias para se obter o favor de Deus, segue-se disso 0 seguinte: 1) acima de tudo, o homem 6 obrigado a observar tais_ coisas, devendo empregar 0 m4ximo cuidado, aplicag3o e diligéncia para alcang4-las ¢ realiz4-las, pois nao h4 nada em sua condig4o de ser mortal compardvel a eternidade; e 2) como uma pessoa no viola os direitos de outrem por estar equivocada em seu culto, ou nid deve ser escl serd correta S 110 Digitalizado com CamScanné

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