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perspectivismo e multinaturalismo na América indigena A reatviade do espa edo tempo em ido imagine dla como re dependese da ecolha de um served. E perfetamente leptin incur observado se ele faclta a explcagies Mas é do corp do obsevadar ue preccamos, no de sua mente ALN. Whitehead Assim, a reciprocidade de perspectivas que vicomoa caracteritia prpria do pensamenta mitio pode r= vindicar um dominio de aplicagio muito mas vaso ©. Lévi-Strauss Introdugao! (© tema deste ensaio é aquele aspecto do pensamento amerindio que manifesta sua “qualidade perspectiva” (Arhem 1993) ou “relativi- dade perspectiva" (Gray 1996): tata-seda concepgio,comum a mui tos povos do continente, segundo a qual 0 mundo ¢ habitado por di- ferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humans e nio-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista dstintos. Os pressupos- {os ¢ conseqiiéncias dessa idéia sio iredutiveis (como mostrou Lima 1995: 425-38) ao nosso coneeito corrente de relativism, que & primeira vista parecem evocar. Eles se dispem, abem dizer, de modo exatamente ortogonal & oposigio entre relativismo € uni- +: As pgnas que eum tém su origem em um ddlogo bm Tina i A primita verso do principal dos argos qui funds (Vion de Caro a0 com 0 fardgrate (If 981) " ‘versalismo. Tal resisténcia do perspectivismo amerindio aos termos de nossos debates epistemolégicos pe sob suspeita a robustez e 4 transportabilidade das parigdes ontologicas que os alimentam, Em particular, como muitos antropélogos ja coneluiram (embora por outros motives), a distingdo clissica entre Natureza e Cultura no pode ser utilzada para descrever dimensdes ou dominios inter- nos a cosmologias nio-ocidentais sem passar antes por uma critica cexnoligiea rigorosa, Tal critica, no caso presente, exige a dissociagio e redistribui- ‘¢10 dos predicados subsumidos nas duas séries paradigmaticas que tradicionalmente se opdem sob os rétulos de Natureza e Cultura universal e particular, objetivo e subjetivo, fisico e moral, fato e va- lor, dado e construfdo, necessidade e espontaneidade, imanéncia e transcendéncia, corpo ¢ espirito, animalidade e humanidade, ¢ ou- tr0s rantos. Esse reembaralhamento das cartas conceituais leva-me a sugerir o termo multinaturalismo para assinalar um dos tragos contrastivos do pensamento amerindio em rel Jo as cosmologias > yf) oc plod rmicament ed de Tne pe pens jose met er Li 95) © en de ‘hr de nde ma one indies msec depo para essa primeira versio. Meses depois de ver publi ’ ° der alco agp dpm sodomy node oii came megs am alguna expan “dn mt eo al coven gas sd “pent melhor Waen ee dade de compreensio. Ao relé- oe {ie em ios estigion da daborago do texto Por fim, os desenvolvimestos em 8 ess aqui expostas (Vin ‘arden Sarto ms dog pnt iar prt us gold 198 9) 2. "Tal 6a ligica de um discurso, comumente Fundamento ontoligico reside em uma separasi +o, 0 primeiro concebido como o mundo interior undo, o mundo exterior da matria e da substineia” (In wo sos contrasts, conttastando-os com as dstingbes efetivamente ope. antes nas cosmologias amerindias. Porspectivismo © estimuloinicial para esta reflexdo foram as numerosas referén- cias, na etografia amazénica, a uma concepgio indigena segun- ddo-a qual o modo como os eres humanos véem 0s anima tras subjetividades que povoam 0 universo — deuses, espiritos, rmortos, habitantes de outros niveis eésmicos, plantas, fendmenos meteorolégicos, acidentes geogriicos, objetos ¢ artefatos ~é pro- fundamente diferente do modo como esses seres véem os humanos Tipicamente, os humanos, em condigdes normais, véem os hue manos como humanos eos animais como animais; quanto aos espi- tos, vr estes sees usualmenteinvisiveis é um signo seguro de que as‘condigdes’ no s40 normais. Os animais predadores ¢ os espiri- tos, entretanto, véem 05 huumanos como animais de presa, ao passo {que os animais de presa véem os humanos como espi animais predadores: “O ser humano se vé a si mesmo como tal. A tos ou como. lua, a serpente, o jaguar e a mie da variola o véem, contudo, como um tapir ou um pecari, que eles matam”, anota Baer (1994: 224) s0- {| bre os Machiguenga. Vendo-nos como nio-humanos, é a si mesmos | que 0s animais e espiritos véem como humanos. Eles se apreendem | como, ou se tornam, antropomorfos quando estio em suas préprias _ casas ou aldeias,¢ experimentam seus proprios habitos e caracteris- fticas sob a espécie da cultura: véem seu alimento como alimento hu- ‘mano (os jaguares véem o sangue como caiim, 05 mortos véem 08 grilos como: Peixes, os urubus véem os vermes da carne podre co- eee ), Seus atributos corporais (pelagem, plumas, msc mo adornos ou instrumentos culturais, seu sis~ como onganizado identicamente as instituigBes humanas 410 (com chefes, amis, ritos,regras de casamento et.) Esse "ver co- sno’ refere-se literalmente a perceptos, e nio analogicamente acon- ‘eitos, ainda que, em alguns casos, a énfaseseja mais no aspecto ca- tegorial que sensorial do fendmeno; de qualquer modo, os xamisy estes do esquematismo césmico (Taussig 1987: 463~63) dediea- ddos a comunicar e aclministrar as perspectivas cruzadas, estdo sem pre a para tornar sensiveis os eonceitos ow inteigiveis asides: Em suma, 0s animais sio gente, ou se véem como pessoas. Tal concepgio esta quase sempre associads & idéia de que a forma ma- nifesta de cada espécie é um envoltério (uma ‘roupa’) a esconder | ‘uma forma interna humana, normalmente visivel apenas aos olhos da propria espécie ou de certos seres transespecificos, como os xa mis.’ Essa forma interna € 0 espirito do animal: uma intencionali- dade ou subjetividade formalmente idéntica & consciéncia humana, materializavel, digamos assim, em um esquema corporal humano culto sob a miscara animal. Teriamos entio,& primeira vista, uma distingdo entre uma esséncia antropomorfa de tipo espiritual, co- ‘mum aos seres animados, e uma aparéncia corporal varidvel, carac- ica de cada espécie, mas que nao seria um atributo fixo, ¢sim teris uma roupa trocavel ¢ descartavel. A nogio de ‘roupa’ é, com efeito, uma das expressdes privilegiadas da mecamorfase ~espiritos, mortos ¢xamas que asstumem formas animais, bichos que viram outros bi- chos, humanos que sao inadvertidamente mudados em animais —, processo onipresente no “mundo altamentetransformacional” (Ri- vitre 1994) proposto pelas culturas amazénicas.* Essas concepgdes so consignadas em vi americanas, mas foram, via de regra, objeto de registros sucintos,€ parecem ser muito desigualmente elaboradas pelas cosmologias em cexnografias sul- 3. Quando esto reunidos em suas aldeas na mata px os animals despem as ‘oupase assume sua figura humana. Em outros casos, roupa sera como que transparene aos olhos da propria espe e dos xis humsnos + rexistrada entre outros para os MakanaAhem> io de zou corporal fi 5st puta lo sacar amb, eal com um valor talvez sind maj pregnant nas culturss da 20naseentronal da América do None da Asine mais aramente entre alguns cagadores-coletorestrpicg, de outros cominentes! Na América do Sul, as sociedades do noroene amaznico mostra as desenvolvimentos mais completos (ver Athem Ions € 99 em quem a caacteriagio que precede foi largimenns insirads Reichel-Dotmatoff 198555. Hugh-Jones 1996). Mas sag asetnogafas de Vilga (1992) sobre o canibalismo war’ ede Lim, (19s sobre aepstemologia juruna que trazem as contibuigdes may direamenteafis 20 presente trabalho, por ligatem a questi dos pon. tosde vita ndo-humanos e da natureza relacional das categorias cos. moligicas ao quadro mais amplo das manifestagSes de uma econo- ‘mia geral da alteridade (Viveiros de Castro 1995a, 1996a),7 > 199308 Yagua (Chaumell 1983: 135-27). 0s Piro (Gow com pess), os Tio (Riviee 199) ow 0s Alto-Xinguanos (Gregor 1977: 5 Viveitos de Casto tyr: #8). Hla €provavelmente panamericana, tendo um grande rendimenta,p. x, a cosmologiakwakiul (Goldman 1975: 63-63, 124-25, 182-86, 27-28), 5-Cf,paraalguns exemplos: Baer 1994: 102, 119-224 (Machiguenga); Grenand 19H: 42 (Wayapi); Jara ty: 68-73 (Aku): Osborn 1990: 151 (U'wa); Vivei= rose Cato gpa 68 (Arawetd); Weiss vy: 158 (Campa) 6-Csp.ey Saladn d’Anglure 19, Fienup 1985 MeDonnell 934 (Koyukon, Kaska); Tanner 1979, Scott 1989, Heightman 1393 (Cees); Hallowell 6 (Ojibwa): Goldman 1975 (Kwakiutl): Guédon 1984 (Simshian; Bodlscher 1989 Haida). Para a Sibéia, cf. Hamayon 1g9o. Cf, en- ins Howell 198 196 Karim 1981, para os Chewong e Ma’Betisék da Malis, ( eudo de Howell 98 foi um dos primeirosa se demorar sobre o tema. Con- ‘eps semethates também for 8 dos Kalu (Schiefin ign iordan 1994 (Esquim); Nekon am regstradas em uma cosmologia melanési, sap 3). 7-Ch. caps. 24 supra, As moh ne ‘As noses de perpestiva ep de visa em um pa Pinipnens sain ‘mas seu foco de apicagao era a humana, em p “iettcado quase sempre analitico¢sbstrann 286-195 9960 cap. 4 apa), ‘am-me qu era posivel gen (Viveiros de Castro gga: 248-11, Osesudos de Vilage, sobretudo,o de Lima most ralizar esas nogies, (NI, A mengio i nogio de > a Agu esclarecimentosiniciis sdo necessirios. im primeiro ugar, 0 perspectivismo raramente se aplca em extensio a todos os animais (além de englobar outros seres); ele parece incidir mais fe~ aqientemente sobre espécies como 0s grandes predadoresecarnice- 10s, tas 0 jaguar, a sucuri, 05 urubus ou a harpia, bem como sobre as presas tipicas dos humanos, tais 0 pecari, os macacos, os peixes, ‘0s veados ou a anta. Pois uma das dimensdes bisicas, talvex mesmo a dimensio constitutiva, das inversoes perspectivas diz respeito a0s estatutos relativos e relacionais de predador e presa.* A ontologia amaznicca da predagdo é um contexto pragmiticoe tebrico altamen- te propicio ao perspectivismo. Em segundo lugar, a‘personiude” ea 'perspectividade’ ~a ca- pacidade de ocupar um ponto de vista ~ so uma questio de grau e de situago, mais que propriedades diacrticasfixas desta ou daque- laespécie. Alguns ndo-humanos atualizam esas potencialidades de modo mais completo que outros; certos deles, aids, manifestam-nas com uma intensidade superior & de nossa propria espévie,e, neste sentido, sio ‘mais pessoas’ que os humanos (Hallowell 1960: 69). Além disso, a questio possui uma qualidade « posteriori essencial. A possibilidade de que um ser até entio insignificante revele-se como tum agente prosopomérfico capaz de afetar os negécios humanos es- ti sempre aberta; a experiéncia pessoal, propria ou alheia, é mais de- cisiva que qualquer dogma cosmolégico substantive, Nem sempre € 0 caso, além disso, que almas ou subjetividades, sejam atribuidas aos representantes individusis, empiricos, das es- pécies vivas; hd exemplos de cosmologias que negam a todos 0s ani- mais pés-miticos a capacidade de conscigncia, ou algum outro pre- > peespectva ns linhas fins do cap. do presente vo np consava ds ver- ses origina don artigo andes 8.Ch Rena-Casevite 9110-11, 29-385 Vl pp 9-st A 995 9° Howell 1996: 15, a icado espiitual.” Entretanto, a nogo de sapitiion “Monos? dos an mais "Mies da caga’,‘Mestres dos queixadas’ ete.) & como se sabe, “recor difsio no continent. Ess espiitos-mestres,invariaye mente dotados de uma intencionalidade andloga & humana, funcio. mnam como hipéstases das espécies animais @ que esto associados, criando um campo intersubjetivo humano-animal mesmo ali onde, ‘os animaisempiricos nlo sio espiritualizados. Acrescente-se que a distnsao entre os animais vistos sob seu aspecto-alma e 03 espirtos. resizes das espécies nem sempre & clara ou pertinente (Alexiades 1999: 194); de resto, sempre possivel que aquilo que, 20 toparmos com ele na mata, parecia ser apenas um bicho, revele-se como o dis- farce de um espirito de natureza completamente diferente, Recordemos, por fim e sobretudo, que, se ha uma nogdo vire tualmente universal no pensamento amerindio, é aquela de um esta- do origindrio de indiferenciagdo entre os humanos e os animais, des- crito pela mitologia: [0 que € um mito?2}~ Se voeéperguntasse a um indio americana, é ‘muito provivel qu ele respondese:é uma hstiria do tempo em gue os homens eos animais ainda nao se distnguiam. Esta definigio me parece muito profunda (Lévi-Strauss & Eribon 1988: 193. -Asnarrativas miticas io povoadas de seres cuja forma, nome com- Portamento misturam inextricavelmente atributos humanos e niio- hhumanos, em um contexto comum de intercomunicabilidade idénti- 0 a0 que define o mundo intra-humano atual. O perspectivismo amerindio conhece entio no mito um lugar, geométrico por assim dizer, onde diferenga entre os pontos de vista é a0 mesmo tempo anulada eexacerbada. Nesse discurso absoluto, cada espécie de ser ‘Parece aos outros seres como aparece para si mesma — como hi Ovi M985 2935; 1986: 245-46 Vines de Cato gpa 7)-74 Ber 9948. 354 mana ~, €entretanto age como se jd manifestando sua natureza dis- tintiva e definitiva de animal, planta ou espirito. De certa forma, todos os personagens que povoam a mitologia io xamis,o que, aliés, €afirmado por algumas culturas amazinicas (Guss 1989: 52), Discurso sem sujeito, disse Lévi-Strauss do mito (1964: 19);discurs so ‘86 sujeito’, poderiamos igualmente dizer, desta ver falando nao da enunciagao do discurso, mas de seu enunciado. Ponto de fuga universal do perspectivismo, 0 mito fala de um estado do ser onde 0s corpos € os nomes, as almas € as ages, o eu eo outro se inter- penetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo epré- objetivo. Meio cujo fim, justamente, a mitologia se propée a contar. Tal fim — também no sentido de finalidade ~ é, como sabemos, aquela difezenciagio entre cultura e natureza analisada na monumen- tal tetralogia de Lévi-Strauss (1964, 1966, 1967, 1971). Este processo, porém, ¢ 0 ponto foi relativamente pouco notado, nio fala de uma di- ferenciagio do humano a pa mitologia evolucionista moderna. A condigao original comum aos hu-| ‘manos ¢ animais nao é a animalidade, mas a humanidade, A grande divisio mitica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que do animal, como é o caso em nossa «a natureza se afastando da cultura: 08 mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos (Lévi- Strauss 1985: 14,1995 Brightman 19952 40, 60). Os humanos sio aque- les que continuaram iguais a si mesmos: os animais sio ex-humanos, eno os humanos ex-animais." 10, nogio de que osujeito — os homens, 0s indios, meu grupo —que dsingue€ ‘ terme historicamenteestavel da dstingo entre "eu" €0"outro'~ os anima losbbrancos, os outros indios —aparece tanto no caso da dferenciagoiterespet- fea quanto no da separagio intra-espeifica, como ve pode ver nos diferentes mi tosamerindios de origem dos Brancos (cf, p. ex DaMatta 197, 197358. Hugh: Jones 1988; Lévi-Strauss eggs. tambm cap. 3 sp, e Viveieos de Castro 2000). (Os outros foram o que somos, mio, como para nds, io o que fomos. Eas se Pereebe quo pertinente pode ser a nosho de *sociedades Fis”: a histra existe sim, mas algo que sé acontece as outros, ou por esa dees. 5 malgumas emograiasamazdnicas,encontra-se claramente ormulada a idéi de que a humanidade & a matéria do plenum py. moral, ova forma origindra de virtalmente tudo, nto apenas dos animais: A mitlogia dos Campa é,em larga medida, a hstéria de como, um g tum, os Campa primordias foram irreversivelmente transformados nox primero representantes de vias espécies de animais plantas, em como de corpo celestes onde acidentes geagréfices.[...] O desenvolv. ‘mento do univer, portato, foi um processo de diversficagao,e a hu manidade é substincia primeva @ partir da gual emergiram muicas, send todas ax categorias de sere cosas no univers; es Campa de ho- jestoordescendentes dos Campa ancestrais gue eseaparam & ransf ‘magi (Weiss 1972: 169-70). ‘Assim, se nossa antropologia popular vé a humanidade como engui- da sobre alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura ~ten- do outrora sido ‘completamente’ animais, permanecemos, ‘no fun- do’, animais -, 0 pensamento indigena conclui ao contrario que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmos continuam a ser humanos, mesmo que de modo nio-evidente. Em suma, para os amerindios “o referencial comum a todos os eres da natureza no € o homem enquanto espécie, mas a humani- dade enquanto condigio” (Descola 1986: 120). Esta distingio entre ‘tespécie ea condigao humanas deve ser sublinhada.’' Ela tem uma onexio evidente com a idéia das roupas animais a esconder uma ‘sin bianca snon feldoprpecan nn SSomonebimacerene 1. distingi a nso andloga 3s de Wagner (1 Iida co 1981: 133) ou Ingold (1994), entre a hu decom ee on manny Coan a ned Cop) como ideal moral (ou hum) 396 Xamanismo 6 perspectivismo amerindio estéassocado a dus caractersticas re correntes iso simbélica da caga, ea impor- tancia do xamanismo.!® No que respeita a casa, sublinhe-se que se trata de uma ressondincia simbolica, nfo de uma dependéncia ecol6- gica: horticultoresaplicados como os Tukano ou os Juruna — que além disso sio principalmente pescadores — nao diferem muito dos grandes cagadores do Canad e Alasca, quanto ao peso cosmolégi co conferido & predagio animal (venatéria ou haliéutica, & subjeti- ‘ago espiritual dos animais,e&teoria de que o universo é povoado de intencionalidades extra-humanas dotadas de perspectivas pro- Js. Nesse sentido, a espiritualizagio das plantas, meteoros ear~ na Amazénia: aval pri tefatos talvez pudesse ser vista como secundaria ou derivada diante da espiritualizagdo dos animais: 0 animal parece sero prototipo ex- tra-humano do Outro, mantendo uma relagdo privilegiad com ou- tras figuras prototipicas da alteridade, como os afns.* Ideologia de cagadores, esta é também e sobretudo uma ideolo- gia de xamiis, A nogio de que os ndo-humanos atuais possuem um la- do prosopomérfico invisivel é um pressuposto fundamental de varias dimensdes da prtica indigena; mas ela ver ao primeiro plano em um contexto particular, o xamanismo. O xamanismo amazénico pode ser 12 A relago entre o xamanismo e a caga€ uma questo clissica. Cf. Cau {98333152 © Crocker 1819-25 15. importincia da relagio venatdrio-xamanistica com 0 mundo animal, em sociedades cuja economia ¢ baseada na horticultura e na pesca mais que 8 = ‘58, suscia problemas interessantes para a historia cultural da Amazdnia(Viveiros de Castro 1996 — ef, cap. 6 s4pr). 14. CE. Erikson 198; 110-125 Descola 1986: 317-0; Athem 1996 Registre teetanto, que nas clturas da Amazéniaocidental em especial aquelas que Fazer planes parece sea0 menos to siete izasi0 dos so de alucingenos, a persoificagio das «quanto a dos animais, e qu, em dreas como c Alo Xingu, aes atefatos desempenha um grande papel coxmol6gica——— \ "7 defini como a babildade maifeta por certs individu de craggy delieradamente as batreitas corporis eadotar a perspctiva de sa iesvidaesalo-espeificas, de modo a administra as elagdes en, ests 05 humanos. Vendo 0s Stes m0-humanos como estes se yore (come lumanos), os sama so capazes de assumiro papel de inter locutores atvos no didlogo transespecitio; sobretudo, eles sio caps. 2exde volar pra conta histra algo que os egos dficimente po. dem faze, © enconteo ou 0intercimbio de perspectivaséum proces peigoso cura arte politica uma diplomacia, Seo ‘mulicuturah m0 cident éo relativismo como politica pblica,o perspectivisny, xaminico amerindio é 0 multinaturalismo como politica césmica, © xamanismo é um modo de agit que implica um modo de go. necer, ou ants, um certo deal de conhecimento, Tal ideal é sob ‘ris aspectos,o oposto polar da epistemologia objetivista favore. ida pela modernidade ocidental. Nesta iltima, a cate goria do obje. to forneceo tls conhecer éobjtivar; € poder distinguirno objew «que Ihe €itrinseco do que pertence ao sujeito cognoscente, e que, como tal, foi indevida e/u inevitavelmente projetado no objeto, Conhecer assim, é dessubjtivar, explicitar a parte do sujeito pre- senteno objeto, de modo 2 reduzi-la a um minimo ideal. Os suje- 40s, tanto quanto os objetos,sBo vistos como resultantes de proces- sos de objetivasio: o sujeito se constitui ou reconhece a si mesmo ‘nos objetos que produ, ¢ se conhece objetivamente quando conse- fue se ver ‘de fora’, como um ‘isso'. Nosso jogo epistemologico se chama objetivagdo; 0 que nao foi objetivado permanece irreal ¢ abstrato. A forma do Outro é a coisa (© xamanismo amerindio parece guiado pelo ideal inverso. Co- nhecer € personificar, tomar 0 ponto de vista daquilo que deve ser conhecido ~ daquilo, ou antes, daquele; pois 0 conhecimento xami- ‘nico visa um ‘algo’ que é um ‘alguém’, um outro sujeito ou agente A forma do Outro éa pessoa,’> "s Observe qu esse modo de exprimiro contrast no € apenas semelhante 4 > 8 Para usar um vocabulério em voga, eu diria que a personifica- do ou subjetivagio xamanicas refletem uma propensio a universali- zara “atitude intencional” destacada por Dennett (1978) e outros fic {osofos modernos da mente (ou filésofos da mente moderna). Sendo mais preciso ~ visto que 0s indios sdo perfeitamente capazes de ado- tarasatitudes “fisica” e “funcional” (opzcit.) em sua vida cotidiana —, diria que estamos diante de um ideal epistemoligico que, longe de buscar reduvir a ‘intencionalidade ambiente’ a zero a fim de atingie uma representag3o absolutamente objetiva do mundo, toma a decisio ‘oposta: 0 conhecimento verdadeiro visa & revelagio de um maximo de intencionalidade, por via de um processo de “abducio de agéncia” (Gell 1998) sistemitico e deliberado, Eu disse acima que o xamanis- ‘mo era uma arte politica. O que estou dizendo, agora, que ele ¢ uma a. Pois a boa interpretacio xaménica é aquela que conse- ant poli gue ver cada evento como sendo, em verdade, uma aso, uma expres- siio de estados ou predicados intencionais de algum agente (i. ibid. 16-18). O sucesso interpretativo é diretamente proporcional i ordem de intencionalidade que se consegue atribuir a0 objeto ou noema."” Um ente ou um estado de coisas que ndo se presta 3 subjetivagio, ou > célebre oposigi entre ‘dom’ emereadora! Enendo quese rata do mesmo con- trast, formulado em termos nio-economicitas til as coisas eas pessoas assumem a forma socal da cosa, ent em uma econo- mia do dom clas assumem a forma social da pessoa” (Strthern 188: 154 Gregory 1082: 4). 16. A definisio tedrico-antropolgica da ‘arte” como envolvend 0 peocesso de abdugio de agéncia esti magistalment exposta por Alfred Gell em Ar and agency (1998. 17. Estou me referindo aqui ao conceito de Denner sobre an-ordinalidade dos ss- temas intencionais. Um sistema intencional de segunda ordem £aquele onde 0 ‘observadoratribui no apenas erengas, desejoscoutrasinengies a0 objeto (pri- imeira ordem), mas também crenga et. «reipeta de ours crengas ee, A 13 CG. nitivsta mas acetasustenta que apenas 0 Homo sapien exibe intenconaidade de ‘ordem igual ou superior a dos. Observe-se que meu prinipio xamanstico > 7 seja, 4 determinagio de sua relagio social com aquele que conhece, ¢ {amanisticamenteinsigoificante ~& um residuo epistémico, um fatoy impessoat’rexistemte a0 conhecimento preciso. Nossa epistemologia objetivista,escusado dizer, coma o rumo oposto: ela con idera a ati tude nteneional do senso-comum como uma mera fics cémoda,al- gp que adotamos quando 0 comportamento do objeto-alvo & compli. cado demais para ser decomposto em processos fisicos elementares, ‘Uma explicagdocientifica exaustiva do mundo deve poder reduzir to. da asio a uma cadeia de eventos causai mente densas (nada de ‘ago Em suma, se no mundo naturalista da modernidade um sujeito € um objeto insuficientemente analisado, a convengao interpretativa amerindia segue o principio inverso: um objeto & um sujeito ineom- pletamente interpretado. Aqui, é preciso saber personificar, porque preciso personificar para saber. O objeto da interpretacao 6 a con- tra-interpretagio do objeto." Pois este deve, ou ser expandido até atingir sua forma intencional plena ~ de espirito, de animal em sua face humana -, ou, no minimo, ter sua relagio com um sujeito de- > de‘abdugio de um maximo de agéncia vai de encontro, evidentemente, aos do ‘mas dapsicologia isicalsa: “Os pscdlogos tm feqientementerecorrido ao prin. We 10 que muitas das proposigbes de Descola (como ele i) "Assim, as “categorias elementares de esteuturasio da vida social” seria 0 primeiro a admi esto presentes na obra desse autor, que onganizariam as relagBes entre humanos e nio-humanos sao es- sencialmente, nos casos amazénicos discutidos por Descola, as ca- tegorias de parentesco, e em particular as categorias da consangiii- nidade € da afinidade. Ora, em O pencamento selvagem lé-se a observagio que jé citeialhures (cap. 2 supra): Enure a: populasies onde as clasifcasies totémicase as especiax Licasdes funcionaistém um rendimento muito redugid, isto guan- to nao esto completamente ausentes, as rocas matrimoniai po~ dem fornecer um modelo diretamente aplicivel ¢ mediaga0 da nnaturezae da cultura (Lévi-Strauss 1962b: 170) Isso é uma prefiguragdo concisa do que muitos etnégrafos vieram a escrever, mais tarde, sobre o papel da afinidade como operador cosmolégico na Amazénia. Ao sugerir, outrossim, a distribuigao ‘complementar desse modelo de troca entre natureza ¢ cultura e dos sistemas totémicos, Lévi-Strauss parece estar visando algo muito semelhante ao modelo animico aqui discutido. Outra convergén- cia: Descola menciona os Bororo como exemplo de coexisténcia en- ido também o caso tre animismo e totemismo; mas poderia ter dos Ojibwa, onde a coabitagio dos sistemas cotem € manide (Lévi- Strauss 19622: 25-33), que serviu de matriz para a oposigio geral > de “dualismo dinimico” de Peter Roe (1990), que 0 autor estima ser uma carac- teristica distintiva da arte e do pensamento amazénicos (o que certamente seria abonado por Lévi-Strauss: ef. cap. 8 infra); ou a retomada que fiz (Viveiros de smo e sacrificio& luz do conecito deteu- Castro 1992a) do conteaste entre tot ano de devir, que procura dar conta da centralidade dos processos de predagioy ‘ontologiea nas cosmologias tupi, bem como do cariter diretamente socal (¢n80 especularmente classficatério) da interagio das orden humana ¢extea-humans 21. Para uma diseussio conjunta dos pares totemismo/sueriticio earoe/bope, cf. Viveiros de Castro 199t: 88,91 m1 6 enue totemiamo e steiiio (id. 1962b: 295-303), pode ser dicey. nent interpreta no quadro da distingdototemismo/ animism Vou concenirar neu comentiio no contraste entre animismo ena. turalismo, pis ele éum bom ponto de partda para a apreensio da di ferenga caracterstica do perspectivismo amerindio. Tomo o contra, seem sentido ligeiramente diferente do original, pois penso que 4 descrigio do naturalismo moderno exclusivamente em termos de “dualsmo ontolégico”€ algo incompleta. Quanto a0 totemismo, ee me parece um fendmeno heterogéneo, antes classficatério que onto. légico: nio é um sistema de relagdes entre natureza e cultura, como os outros dois modos, mas de corelagdes puramente logicas e diferen. ciais. Fiquemos assim, por ora, com o animismo e o naturalisma © animismo pode ser definido como uma ontologia que pos- tula o cariter social das relagdes entre as séries humana e nfo-hu- rma intervalo entre natureza e sociedade é ele proprio social. O naturalismo esti fundado no axioma inverso: as relagies entre so- ciedade e natureza sio elas proprias naturais. Com efeito, se no mo= do animico a distingo narureza/cultura interna ao mundo social, pois humanos e animais acham-se imersos no mesmo meio socio- césmico (e neste sentido a natureza é parte de uma socialidade en- lobante), na ontologia naturalista a mesma distingao é interna a na- tureaa (¢ neste sentido a sociedade humana é um fendmeno natural entre outros). O animismo tem a sociedade como pélo nio-marca- 40,0 naturalismo, a natureza: esses pélos funcionam respectiva ¢ Ccontrastivamente como a dimensdo do universal de cada modo. Ani- ‘mismo e naturalismo slo, portanto, estruturas assimétricas ¢ meto- nimicas (o que os distingue do totemismo, estrutura metaférica e eqiipolente).2 2 Dip que sas cruturas sb asimérica porque, no eso do naturalism por Semple angio denaurera no necesita da nogo de cultura para ser defini, SASPOS mio verdad. Em ours plavras em nossa onoogia 9 34 Em nossa ontologia naturalist, a interface sociedade/nature- za é natural: 08 humanos si0 organismos como 05 outros, corpos- objetos em interacio ‘ecoldgica’ com outros corpos forgas, dos reggulados pelas les necessrias da biologia eda fsica; as frgas pro- dlutivas’ aplicam as forgas naturais. Relagbes sociais, isto é, relagies contratuais ou instituidas entre sujeitos, s6 podem existic no interior da sociedade humana. Mas, ¢ este é 0 problema do naturalismo — i essas relagdes? Dada a universalidade da na quio ‘nio-naturais! tureza, 0 estatuto do mundo humano e social é profundamente ins- tavel, ¢, como mostra nossa tradigio, perpetuamente oscilante entre ‘o monismo naturalista (de que a sociobiologia ou a psicologia evo- lucionitia sao dois dos avatares atuais) e 0 dualismo ontolégico na- rureza/clltura (de que 0 culturalismo ou a antropologia simbélica so algumas das expresses contemporineas).”' A afirmagio deste Glkimo dualismo e seus correlatos (corpo/mente, raz3o pura/ razdo pritica etc), porém, s6 faz reforgaro cariter de referencial ilkimo da nogio de Natureza, a0 se revelar descendente em linha direta da oposicdo teoldgica entre esta e a nogio de Sobrenatureza, de cetimologia transparente. Pois a Cultura € 0 nome moderno do Es- pirito ~ recorde-se a distingao entre as Naturvissenschafien e as Geis- teswissenschafien —, ou pelo menos o nome do compromisso incerto entre a Natureza e a Graga. Do lado do animismo, seriamos tenta- dos a dizer que a instabilidade esté no pélo oposto:o problema aqui > imerace ature scedae aural org sino da pip vi o- tno", comer, eas, irda (Seale ye “Nop = yuvesse, a biologia devia have uma ops ent cukar ilo, orgie ho Na ias amerindias, ao contririo, adita interface € so- sahara sempre"), Nas ontolo ‘ ‘Aqui, a caeyora da na ial porque ting vita coment ad Aa en 4 definigdo prévia da cultura. (Paro cont so no cap. $f) para essa insabild rureza que exge “inato', ef. Wager 1981, esa alias 25. CE, Stathern 1980 € Latour 1998 se uma bow exposigio popular da tensio entre monis lade; em Malik 2900 cha- dualsno na consiénia 165 a de cultura e natureza presente nos adhe 8 Nima aarp ds. acombinag de humanidde e animaligg eros hamanossa questo €diferencitr uma naga se dnwioortno univer € COP Ptiuarmeng: ana pat de epi PUBLCO™ aNSeSpciic, ao uit bem Mas & realmente possvel,e sobretudo interesan. ae definiroanimismo como uma projegio das difereneas e qual dksimteras 0 mundo humano sobre o mundo no-humano, st ¢ tomo um modelo “soeiocénrico” onde categoriaserelagdes inn, hnumanas sio uss para mapear 0 universo (Descola 1996)? Tal ta em algumas glosas da teoria: “¢ prego projtvita éexpli ox sistemas otémios tomam a natureza por modelo da sociedade centio os sistemas animicos tomam a sociedade por modelo da natu, seca” (Athem 1996: 185). O problema aqui, obviamente, é0 de evi. tar uma indesejavel proximidade com a acepslo tradicional do ter. smo ‘animismo’, ou com a redugo das ‘classificages primitivas’g cemanagbes da morfologia social; mas € também o de ir além de ow- tras caracteriaagoes clissicas da relagio sociedade/natureza, nota. damente aque devemos a Radcliffe-Brown, em seu primeiro artigo, sobre 0 toremisma.* Ingold (1991, 1996) mostrou como os esquemas de projegao ‘metafrica ou de modelizagao social da natureza escapam do rede cionismo naturalista apenas para cairem em um duslismo nature- 22/caltura que, ao distnguir entre uma natureza ‘realmente natura’ 34 Cl Radeife-Brown 199: 130-31, onde, entee outros argumentos dignos de ernest os pcr de pesnificaia ds epics fendmenos nati sep mem concentra como se fosse ma sociedad de peso, itz uma ordem social ou moral"), como os que se acham entre os Esqui- ‘su Andamaneses, dos semasdeclauifeagi secomndota hemi ics das espécies naturas, como os a ‘qe configuram um “sistema de solidariedades socials” re homer naturez, Daca cone eevee peo a dingo animism /tteismode "ste manido/swtem explorad por Lévi-Strauss 3665 «uma natureza ‘culturalmente consteuida’,revela-se como uma tinomia cosmolégica, viciada pela regressio 20 infinito. A no- le modelo ou analogia supde a distingao prévia entre um domi- sao dl si tio onde as relagdes socias sio consttutivase iteraise outro onde clas sio representativas e metaféricas. Em outras palaveas, ai de que humanos e animais esto ligados por uma socialidade co- mum depende contraditoriamente de uma descontinuidade ontolé- imeira. O animismo, interpretado como projegio da sociali- sgica pri dade humana sobre o mundo nio-humano, no passaria da metéfora ide uma metonimia, permanecendo cativo de uma letura ‘tomes’ on classificaria.” Entre as questdes que restam a resolver, portanto, esti a de sa- per se 0 animismo pode ser descrito como um uso figurado de cate- gorias do dominio humano-social para conceituaizar o dominio dos ‘ndo-humanos e suas relages com o primeiro. Isto redunda em in- dagar até que ponto o perspectivismo, que poderia ser visto como uma espécie de corolério do ‘animismo’ de Descola, exprime real- mente um antropocentrismo. O que significa, afina, dizer que os aanimais sio pessoas’ ‘Outra questio: se 0 animismo depende da atribuigdo aos ani- mais das mesmas faculdades sensiveis dos homens, e de uma mesma forma de subjetividade, isto é, se os animais sio ‘essencialmente” humanos, qual entio a diferenga entre os humanos ¢ 0s animais? Se ‘0s animais so gente, por que nao nos véem como gente? Por que, justamente, o perspectivismo? Cabe também perguatar se a nogio de formas corporais contingentes (as ‘roupas’) pode ser de fato des- crita em termos de uma oposigio entre aparéncia e esséncia (Descola Rividre 1994; S. Hugh-Jones 1996a).. 1986: 1305 Arhem 1993 25, Nata deste digo, Hoje, penso que o argumento de Ingold é eloguente, mas, cm ima andlise insti, especialmente em seu momento propostvo, que ‘do discuto aqui. Reservo para outra oportuniade a fundamentagio desse juizo (Viveitos de Casto 2003). so «port, seoanimismo um modo de objetvasao da ay, sevaondeo duals naturena/ Ira NBO VIO, © que Fazer yy re pndanes inagbesarexpito da centralidade dessa opp ros eosmologias su-americanas? Tratar-se-ia apenas de mais ym, “uso totémica, se ndo de uma projesdo ingénua de nosso duals. mmoxidentl?E possivel fazer um uso mais que sin6pico dos coy. ceitos de Natura e Cultura, ou eles seriam apenss “rétuls gen. ros” (Descola 1996: 84) usados nas Mitoldgicas para organizar og milpls contrastes semanticos dos mitos americanos, contrastes estes irredutiveis a uma dicotomia tinica e fundamental? Etnocentismo Em um texto muito conhecido, Lévi-Strauss observa que, para os selvagens, a humanidade cesa nas fronteias do grupo, concep que se exprimiria exemplarmente na grande difusdo de auto-etnéni- ‘mos cuo significado é ‘os humanos verdadeiros’, ¢ que implicam portnto uma definigao dos estrangeiros como pertencentes ao do- minio do extra-humano. O etnocentrismo nao seria assim o triste Privilégiodos ocidentais, mas uma atitude ideolégica natural, ine- rente aos coletivos humanos. © autor ilustra a reciprocidade uni sal de al atitude com uma anedota: Nas Grandes Anilhas, alguns anos apis a descoberta da América, en- tant os expanhisenviavam comissies de inguérito para investiga se indigenstinkam ou ndo uma alma, estes se dedicavam a afogar os ‘ranco gue aprisionavam, a fm de verfcar, por uma demoreda obser= >a, seseuscadévereseram ou nd a ound ujeitos putrefasao, (Lévi-Strauss "9926 384) LévieStrauss extra ‘i — es ‘essa parabola a ligdo paradoxal: “O barbaro é ada, ohomem que cré na existéncia da barbie’ xe guns anos depois, ele iria recontar 0 caso das Anilhas, mas dessa ver sublinhandlo a assimetria das perspectivas: em suas investigagbes, sobre a humanidade do Outro, 0s brancos apelavam para as ciéncias sociais, 0s indios, para as ci \cias naturais; e s¢ os primeitos con- clufam que os indios eram animais, os segundos se contentavam em desconfiar que 0s brancos fossem divindades (id. 19552: 82-83), ignorance égale”, conclui 0 autor, ltima atitude era mais digna de seres humanos. A anedota revela algo mais, como veremos. Por ora, observe- se que seu ‘ponto’ geral é simples: 0s ndios, como os invasores eu- ropeus, consideravam que apenas o grupo a que pertenciam encar- navaahumanidade; osestrangeiros estavam do outeo lado dafronteira que separa os humanos dos animais eespiritos, a cultura da narureza e da sobrenatureza, Matriz.e condigio de possibilidade do etnocen- trismo, a oposigdo natureza/cultura aparece como um universal da apercepgio social. Em suma, a resposta & questo dos investigadores espanhdis era positiva: os selvagens, realmente, tém alma."* No tempo em que LévicStrauss escrevia essaslinhas, aestraté- «gia para se fazer valer a plena humanidade dos selvagens, e assim in- distingui-los de nés, era mostrar que eles faziam as mesmas distingdes que nés: a prova de que eles eram verdadeiros humanos é que consi- deravam que somente eles eram humanos verdadeiros. Como nds, cles distinguiam a cultura da naroreza, e também achavam que os Na- turvlker io os outros. A universalidade da distingdo cultural entre natureza ¢ cultura atestava a universalidade da Cultura como Natu- reza do humano, Agora, porém, tudo mudou. Os selvagens nio sio mais etnocén- trieos, mas cosmocéntricos; em lugar de precisarmos provar que eles so humanos porque se distinguem dos animais,trata-seagora de mos- 26, Note-se quea questo quinhentsa versio toligica do chamado “proble- sma. das otras mentes”, que entretém eabegasfilosoticas desde os primadis da rmodernidade 369 pry humans somes ns que opomOS humanos e chy, rere den modo que eles mane Fiera: para ees, natureza ec) turasio parte de um mesmo campo socioedsmico. Os amerindios nig comentepassariam ao largo do Grande Divisorcartesiano que sep, rousahumanidade da animalidade, como sua concepgio social do cos. mos ecésmica da sociedade) anteciparia as lies fundamentais da tcologia, que apenas agora estamos em condligdes de assim (Rei. chel-Dolmatoff 1976; Wagner 1977). Antes ironizava-se a recusa, por parte dos nds, de conceder os predicados da humanidade a oy, tros homens; agora se sublinha que eles estendem tais predicados mui to além das fronteiras da espécie, em uma demonstrago de sabedoria *ecoséfiea”(Arhem 1993) que devemos emular, tanto quanto permi- rar quio, tam os limites de nosso objetivismo.” Outrora, era preciso contestar a assimilagio do pensamento selvagem a0 animismo narcisico, esti- gio infantil do naturalismo, mostrando que o totemismo afirmava a distingio cognitiva entre o homem e a natureza. Hoje, o animismo é de novo imputado aos selvagens, mas desta vez ele é largamente pro- clamado (nao por Descola, apresso-me a sublinhar) como reconheci- mento verdadeiro, ou 0 menos ‘vilido’, da mestigagem universal en- tre sujeito eobjetos, humanos e ndo-humanos, a que nds modernos sempre estivemos cegos, por conta de nosso hibito tolo, para ni di- 27, O mesmo LévsStrausilusra essa reviravolta, em um espléndido parigeafo de ‘1a bomenagem 2 Rousieau: “Comesou-se por separar homem da nature : por ‘onsttui-loem reno soberano: sereditou-se assim apagar sua caracterstica mais inquesionivel, saber, qu ele € antes de mais nada um ser vivo. A cegueira diame ‘ks propiedad comum abrucaminho para todos os abusos. Nunca como agora 20 cabo dos quar himos culos desu stra, pide o homem ocidental se dar ‘ont come, ao se arrogaro drcio de separarradcalmente a humanidade da ani- ‘alae, concedendo primeira tudo aquilo que negava c A segunda, ele absia um clo malta, e que a mesma frotera,constantemente ead, servia-lhe para sfasar homens de otros de cucos homens pra reivindicar em benefici de minoris cada ‘ems rests, oprivlégio de um ha “dobmcar roan, lt dum humanism que nase coreompida porter prio sea principio e seu conceit” (16a: 3) vr zer pecaminoso, de pensar por dicotomias. Da hibris moderna, salvem-nos assim os hibridos primitivos e pés-modernos ‘Duas antinomias, portanto, que sio de fato uma sé: ou os ame- sindios sio etnocentricamente avaros na extensio do conceito de hu- manidade, e opdem totemicamente natureza e cultura; ou eles sio cosmocéntricos e animicos,e ndo professam tal distingao, sendo mes- mo modelos de tolerincia relativita, ao admitir a multiplicidade de pontos de vista sobre o mundo. Em suma:fechamento sobre si ou “abertura ao Outro” (Lévi-Strauss 1991: 16)? Penso que a solugdo para essas antinomias no esta em escolher um lado, sustentando, por exemplo, que a versio mais recente € a jus- taerelegando a outra is trevas pré-pés-modernas. Trata-se mais bem cde mostrar que tanto a tese como a anttese sio razodivels (ambas cor- respondem a intuigdes etnograficas slidas), mas que elas apreendem ‘0s mesmos fendmenos Sob aspectos distintos; e também de mostrar que ambas sio imprecisas, por pressuporem uma concepgdo substan tivista das categorias de natureza e cultura (seja para afirmé-las ou para negi-las) inaplicavel As cosmologias amerindias. A primeira coisa a considerar é que as palavras indigenas que se costumam traduzit por ‘ser humano’, e que entram na composi clo das tais autodesignagoes etnocéntricas, nfo denotam a humani- dade como espécie natural, mas condigdo social de pessoa, e, sobre tudo quando modificadas por intensificadores do tipo ‘de verdade’, ‘realmente’, ‘genuinos’, funcionam, pragmitica quando nao sinta ccamente, menos como substantivas que como pronomes. Elas indicam 4 posigio de sujeitos so um marcador enunciativo, no um nome, Longe de manifestarem um afunilamento semintico do nome c mum ao proprio (tomando ‘gente’ para nome da tribo), essas pala- ak i 4 vas fazem 0 oposto, indo do substantivo ao perspeetivo (usando) ‘gente’ como a expressio pronominal ‘a gente”). Por isso, as cate- jorias indigenas de identidade coletiva tém aquela enorme variabi- lidade de escopo caracteristica dos pronomes, marcando contrasti- Vamente contextual e desde a parentela imediata de um Ego até todos «os humanos, ou todos 0s seres dotados de conseiéncias sua coagula. «o como etndnimo parece ver, na maioria dos e8808, um artefato produzido no contexto da interagio com o etndgrafo, Nao é, tam. pouco, por acaso que a maioria dos etndnimos amerindios que pas. saram i literatura no sio autodesignagdes, mas nomes (freqiiente. mente pejorativos) conferides por outros povos: @ objetivagio exnonimica incide primordialmente sobre 0s outros, no sobre quem esti em posigio de sujeito (ver Urban 1996: 3244). Os etndnimos so nomes de terceiros, pertencem i categoria do ‘les’ ndo & cate. goria do ‘nds’ Isso & consistente,aliés, com uma difundida evita- fo da auto-referéncia no plano da onomastica pessoal: os nomes rio sio pronunciados por seus portadores, ou em sua presencas no- rear éexternalizar, separar (d)o sujeito. 4 Assim, as autodesignacdes coletivas de tipo ‘gente’ significam ‘pessoas’, nfo ‘membros da espécie humana’; ¢ elas so pronomes pessoais, registrando o ponto de vista do sujeito que esté falando, ¢ ‘lo nomes proprios. Dizer entdo que os animais ¢ espititos sio gen- te € dizer que sio pessoas; é atribuir aos ndo-humanos as capacida- des de intencionalidade consciente e de agéncia que facultam a ocu- pacio da posigio enunciativa de sujeito. Tais capacidades sio reificadas na alma ou espirito de que esses no-humanos sio dota- dos. & sujeito quem tem alma, e tem alma quem é capaz de um pon- 28. Uma variate dessa recusa de auto-objetivasio onomastca se acha naqueles ‘#805 ou momentos em que, quando o coletivo em posigio de sujeito se toma co- ‘mo parte de uma pluralidade de coletivos anilogos asi, 0 termo auto-referencal ‘ipnifia ‘ov our’, endo usado primordialmente para identifica os coletivos de |W o sujet se exc. A alternativa&subjetivasio pronominal é uma auto-obje ‘ago igualmenterelacional, onde ‘eu’ s6 pode significar‘o outro do outro’: achuer dos Achuar, ou 0 naw dos Pano (Taylor 1985: 168; Erikson 1990: 80-84) Alba sto- ho se fa vise, em a forma eas araceritcs de um serhamano"(986: 1-18) m ua hominizagio culturalizagao imaginarias; 6 ca. ‘mais implica ; ie reopen. do pensamento indigena, assim, parece inques- vs ereio que se trata de algo completamente diferente, fe 1¢ 0 ponto de vista de referencia, os. sob a espécie da huma tionivel. M Todo ser que ocupa vicariament tando em posigio de sujeito, apreende- dade. A forma corporal humana e a cultura ~ os esquemas de per. s especificas ~ sao cepgio € agio “encorporados’* em disposi atributos pronominais do mesmo tipo que as autodesignagdes acima discutidas. Esquematismos reflexivos ou aperceptivos (“reificagdes” «sense Strathern 1988), tas atributos sio 0 modo mediante o qual to- do agente se apreende, ¢ nao predicados literais ¢ constitutivos da «espécie humana projetados ‘metaforicamente’, ou seja, impropria- ‘mente, sobre os nio-humanos. Esses atributos sao imanentes ao pon- to de vista, e se deslocam com ele. © ser humano ~ naturalmente— goza da mesma prerrogativa, e portanto, como diz a enganadora tautologia de Baer (ver supra p. 350), “vé-se a si mesmo como tal”, Deixemos claro: os animais ¢ outros entes dotados de alma no S80 sujeitos porque so humanos (disfargados), mas o contririo — eles so humanos porque so sujeitos (potenciais). Isto significa dizer que 4 Cultura éa natureza do Sujeto; ela é a forma pela qual todo agente experimenta sua prépria natureza, 0 animismo no & uma projesio figurada das qualidades humanas substantivas sobre os ndo-huma- ‘nos; o que ele exprime é uma equivaléncia real entre as relagdes que bhumanos e ndo-humanos mantém consign mesmos: os lobos véem os lobos como os humanos véem os humanos — como humanos. O ho- mem pode bem ser, é claro, um “lobo para o homem”; mas, em outro sentido, o lobo é um homem para o lobo. Pois se, como sugeri, a con- 4igdo comum aos humanose animais éa humanidade, no a animali- dade, € porque humanidede & 0 nome da forma geral do Sujeito Fe radtzoo eo inglés embody seus derivados, que hoje gozam de uma fe- “Cans epulardad no ago anropolgico (cf. Turner 1994), pelo neoogisme “Porat vst que nem encarna’ nem ‘incorporar’ so realmente alequados ‘A atribuigdo de consciéncia ¢ intencionalidade de tipo humano (para no falarmos na forma corporal e nos hibitos culturais) aos seres nao-humanos costuma ser indiferentemente denominada de ‘antropocentrismo’ ou de ‘antropomorfismo'. Penso, porém, que esses dois rétulos devem ser tomados como designando atitudes cosmol6gicas antagénicas. O evolucionismo popular ocidental, por exemplo, é ferozmente antropocéntrico, mas nio me parece ser particularmente antropomérfico. Por seu turno, 0 animismo indigena pode ser qualificado de antropomérfico, mas certamente no de antropocéntrico. Pois, se uma legito de seres outros que os humanos sio ‘humanos’ ~ entio nés os humanos no somos assim tio especiais. O velho narcisismo primitivo é uma balela. Para se achar um verdadeiro caso de narcisismo, é preciso ir aos modernos. Ao jovem Marx, por exemplo, que assim escreveu sobre o homem’ (ise. 0 Homo sapiens): Ao criar um mundo objetivo por meio de sua avividade pritica, ao trabalhar a natureza inorgénica, 0 homem prova asi mesmo ser uma espécie consciente ... Sem dievida, os animais também pro- duzem... Mas um animal s6 produo gue necessita imediatamen- te para si mesmo ow sua prole. Ele produs unilateralmente, oo pas- so gue 0 homem produ; universalmente... Um animal sé produ «asi mesmo, enguanto.o homem reprodus o todo da natureza... Um animal forma as coisas em conformidade com o padrio e as neces- sidades de sua espécie, a0 passo gue 0 homem produ em: confor~ ‘midade com ox padrées de outras espécies (Marx 1961 [1844]: 76 apud Sahlins 1996). Seja li o que Mars quisesse dizer com essa proposigio de que o ho- mem “produz universalmente”, leio-a como se estivesseafirmando que o homem é o animal universal: uma idéia interessante. (Se 0 homem é o animal universal, entio as outras espécies animais io, cada uma, humanidades particulares?). Embora isso paresa ir a0 encontro da nogio amerindia de que a humanidade éa forma uni a

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