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‘COLEGAO ESTUDOS PLATONICOS sseNo72as.1s081708 SEDICOESLOVOLA, Sto Pai, dr, 214 Kowk yp 7 av thw Entre amigos tudo é comum. Platio, Fedro 279 C Para H.C. de Lima Vaz (in memoriam) L. Rossetti, M. Migliori eT. Szlezik Amigos incompariveis PLATAO NAO ESTAVA DOENTE A tarefa do estudioso &, portanto, estabelecer — em todos os casos e com 0 maximo rigor — as alteragies, as interrupgSes e as confusdes de sentido em cada testemunho, buscando a sua Fonte verdadeira e pondo a luz as intengSes peculiares dos intermediarios. Desse modo é possivel eliminar progressivamente os clemen- tos nio platGnicos. Felizmente existem casos em que os textos transmitidos se corrigem reciprocamente, e, acima de tudo, deve-se ter sempre como unidade de medida as formulagdes platdnicas inquestionaveis contidas nos didlogos. E certo que se deve ficar atento para ndo ir além do devido na tentativa de ‘uma visdo unitéria de conjunto, No inicio da tradi¢ao indireta, isto é, no proprio Platéo, ndo existe uma unidade dogmaticamente rigida, mas uma variedade viva e mutvel pela forma, pelo tempo e pelo método. No ambito da oralidade, assim como nos diilogos, Platdo certamente evitou a rigidez da terminologia ¢ falou dos mesmos assuntos de modo sempre renovado. E indubitavel que os testemunhos literirios transmitidos sio inferiores re- lativamente & palavra oral origindria de Platdo, ¢ essa inferioridade nunca sera superada pela pesquisa filolégica das fontes. Entretanto, a distancia entre os testemuntios ¢ a palavra de Platio ndo é totalmente intransponivel. Deve-se ter presente que é possivel encontrar-se hoje em dia na mesma situagdo dos ouvin- tes contemporiineos de Platio, que puderam constatar que o contetido extrema- mente esquemitico do ensinamento oral do mestre 56 podia ser assimilado plenamente mediante uma experiéncia pessoal amadurecida aos poucos. Coneluindo, pode-se dizer que, relativamente as exposigdes sempre unila- terais, abrewadas, arbitrariamente adaptadas ou distorcidas em sentido polémi- co, que foram transmitidas pela tradigao indireta, necessdrio ter extrema prudéncia, andloga & que hi tempo se exige na interpretagao dos pré-socriticos € na solucdo do problema do Sécrates historico. Nao existe uma receita tinica para a critica das fontes. Os textos individuais estio sempre subordinados s suas condigSes historias e aos interesses intelectuais dos seus autores. Existem, porém, critérios para uma compreensdo adequada. Pode-se tentar captar a gra mage do contetido transmitido nos diversos expositores. B a res- peito de Platdo os pesquisadores hoje dispdem de uma possibilidade de contro- le que, ao contririo, no existe com relacdo aos pré-socriticos e a Sécrates: pode-se confrontar 0s resultados da critica das fontes com a obra eserita com- pleta de Platdo e, portanto, pode-se verificar em que medida a tradigio indireta concorda plenamente ou no com essa obra. o dH 7. SEGVNDO Platdo e a invengdo da filosofia Introdugao O periodo histérico que interessa aqui € imediatamente posterior ao perfodo conhecido como dade do Ferro, iniciado com as invasées doricas na regido da Grécia, que puseram fim a Idade do Bronze recente (1600-1200 a.C.). Esse gio aqueia ou micénica, talizada nos poemas homéricos. Pode-se tomar como marco simbélico do inicio dade do Ferro a destruigio das fortalezas micénicas, ocorrida em torno de 150 a.C. Essa é, talvez, a razo pela qual o periodo que vai do século XII ao slo VIII a.C. foi chamado de [dade das Trevas'. Com efsito, esse periodo de . com a decadéncia da realeza micénica, foi mareado pela violenta ‘oposigaio entre grupos, particularmente entre as comunidades rurais, a aristocra~ cia guerreira e a aristocracia do palécio®. Mas foi essa mesma crise que levou & busca de novas formas de equilibrio com vistas a sobrevivéncia dos grupos que "area egea, in S. Serms (a Una storia grega. Formazione, Torino, Gi Einaudi, 1996, 2. “Ao sairem da [dade Escura, no século VIII, as comunidades gregastinham apenas as 8 de organizagio politica. Senhores aistocrticos locais (basileis) man- independéncia, econhecendo apenas com relutincia qualquer forma lealdade para com a familia, o cla (PV. Jones (Org.], O mundo de Atenas. trad. A. L. de Almeida Prado, S30 Pa PLATAO NAO ESTAVA DOENTE disputavam a hegemonia da regio. £ nesse periodo que surge uma nova con- epg do poder, centrada na nogio de igualdade (isonomia), e comega uma zgrande mudanga na concepcio arquitetOnica da cidade, na qual o espago urbano passa a centrar-se na praga (agora) ¢ nao mais em torno do palicio real ¢ dos santuérios religiosos?. Além da supressio da realeza micénica, os invasores dérios trouxeram novos hibitos culturais e religiosos, como a incinerasao de cadiveres, novas técnicas de guerra, decorrentes do dominio da metalurgia do ferro © da domesticacdo dos cavalos, novas tecnologias, como as transformagies na deco- ragdo da cerdmica, e finalmente, mas ndo por Ultimo, uma grande transformagio também na lingua’ No século IX a.C. comegou o periodo de expansio das cidades gregas, com a fundagio de col6r no sul da peninsula margens do mar Negro’. Nesse periodo surgi um evento que se mostraria de grande importincia para a afirmagio da identidade cultural grega: os Jogos | Olimpicos, celebrados pela primeira vez em 776 a.C, Com efeito, a formagdo da) identidade cultural grega pode ser vista também pela dptica dos jogos de equipe ‘Como afirma Jones, “Os jogos so competitivos, mas em um jogo de equipe hi permanente tensdo entre a autoexibigdo do individuo e as necessidades da equi pe. Nao hé divida quanto identidade dos adversarios. Tratamos 0s adversarios como pessoas a ser derrotadas e espera-se que fagam 0 mesmo conosco. Jogados | Soe eeaememnrsieenrscmemetarmacn: ata diante do pablico, os jogos so uma arena onde o sucesso é visto por todos. De | nada valem as desculpas, tudo os resultados. dade que quanto mais perto do topo chega a e: ie mais 0s adversarios se dedicam a derroti- inalmente, quase sempre € ver- mais dificil fica permanecer 4 a rocha, portanto ‘a cidade alta’ (depois chamada acré- cepirtual do estado, eo termo polis terminou por significar,justamente, ‘esiado"™ (F_Casoua, Chi erano i greci?, in S. Sernis [a cura Cultura Are Societi, 2/1. Una op. cit, 5-23, ingua greg, ci toria Cultura Arte Soc! c alfabeti iS, 1. Formazione, Tgreci. Storia Cultura Arte Societi, 2/1, Una storia are 15, CH BV. Jones (Org.), O mundo de Atenas, op. cit, 133. PLATAO € A INVENGAO DA FILOSOFIA Proximo ao final do século VIII a.C. irrompeu no cenario da Grécia uma tecnologia que, pelos seus efeitos na cultura, seria das revolugdes mais genuina- mente gregas. Trata-se da invengio do alfabeto, como culminago de um proces- so de comunicagio visual de mais de trés milénios. A grande novidade do alfabe- to com relacdo as formas anteriores de escrita foi 0 fato de consistir em “um sistema de ‘moldes’ (como os gregos apropriadamente os chamavam) nos tamanhos pequenos convenientes, com a mixima economia (até ai, fagania dos fenicios), € tais que, a despeito de seu niimero reduzido, quando vistos (ou, como dizemos, “tidos’) numa variedade sem fim de arranjos lineares automaticamente acionam uuma meméria actistica de todo o discurso falado neles repertoriado”” Hoje sabemos que desde a Idade do Bronze os gregos dispunham de um. sistema sildbico de comunicagdo escrita, fortemente calcado no sistema fenicio, conhecido como Linear BY, Entretanto, o alfabeto transformou a lingua falada em um artefato visivel, separado do falante, disponivel para a inspecio ¢ a re- flexdo, que podia ser preservado sem recurso 4 meméria. De fato, 0 alfabeto podia ser “recomposto, reordenado, repensado, a fim de produzir formas de declaracio ¢ tipos de enunciacdo antes indisponiveis — por nio serem facilmen- Se-fosse possivel designar o novo discurso por uma palavra letrada favorecera 0 discurso deseritivo da agdo; a pos-letrada alterou o equilibrio em favor da reflexdo. A sintaxe do / rego comegou a adaptar-se a uma possibilidade crescente de enunciar propo- sigdes, em lugar de descrever eventos. Esse foi o trago fundamental do legado do alfabeto a cultura pés-alfabética”™. ~ Essa nova tecnologia de comunicagao visual foi determinante para as ca- racteristicas da cultura grega. Como afirma Maria Michela Sassi, a partir dos 7. CEE A. Havetock, A revolugdo da escrita na Grécia e suas consequéncias culrurais, trad, 0. J. Serra, Sto Pauio/Rio de Janeiro, Ed, UnespiPaz ¢ Terra, 1996, 14, 8, Plaquetas de argila cozidas pelo fogo de um incéndio do ps op ima gue o alfabeto “forneceu a base conesitual para a construgo das ceiéacias¢ Filosofia moderaas” (15) PLATAO NAO ESTAVA DOENTE cestudos de Goody © Watt, ela se tornou “um instrumento essencial para a cons- ‘trugdo do pensamento, na medida em que consente depositar a reflexio em textos que podem ser meditados com calma (permitindo, em particular, apreen- der as eventuais contradigdes internas). Na fixagdo visual do escrito © na sua reprodutibilidade, mais que nas formas méveis da escuta, o discurso encontra uma configuraqdo objetiva favorivel a elaboracdo do pensamento abstrato. Ade | ta 0 reconhecimento do pensamento reflexivo como | is, o registro escrito fa 12 em uma cadeia cumulativa de resultados © 0 expe, ao mesmo ica: de fato, o constitui como base de futuras inovagdes™". a.C., apesar de certa diminuigdo da pressio social nas cidades gregas, proporcionada pelos fluxos migratérios em dirego as col nias, 0 sistema de propriedade fundiaria em algumas cidades, como Atenas, comegava se mostrar como um peso inaceitivel: “Os camponeses viam-se e: magados pelas dividas. A escravidio era uma consequéncia possi proprietdrios de terras ressentiam-se do pagamento de um sexto de sua producéo fos senhores. A época parecia madura para a tirania. [...] Nesse momento, em 594.93, Sélon foi nomeado arkhon em Atenas € tentou oferecer solugdes para (0 problemas da época. (..] Sélon procurava uma alternativa para Jj Aliviou a opressio das dividas que levavam a escravidio. (...] No nivel politico, idade dos eupatridas. Definiu quatro classes com base na riqueza agricola. A partir desse momento, os mais ricos na sociedad fossem ou nio eupatridas, passaram a poder ocupat os principais cargos da dade. Paralelamente a0 Conselho do Arespago, Sélon instituiu um Conselho Popular (boule), de quatrocentos representan ‘A despeito das reformas de Solon, a nobreza dtica persistia em lutar pelo seu dircito & lideranga, como mostra o caso do tirano Pisistrato, que por duas vezes foi derrubado do poder pelos seus inimigos, ¢ duas vezes 0 retomou, tendo per- manecido no poder até a morte em 528-27 a.C. A sucessio de tiranos em Atenas revela que uma das caracteristcas da tirania grega é que ela no durava mais do ‘que um par de geragées. Em 508 a.C., Clistenes, que fora arkhon em Atenas em |. Outros | ete PLATAO £ A INVENGAO DA FILOSOFIA a democracia. Clistenes aprofundou as teformas de Sélon, criando dez novas phylai (csibos) artificiais, rompendo assim as barreiras naturais das quatro antigas tribos fundadas no parentesco. As tribos se organizavam em demoi, agrupamentos que tinham os seus arranjos politicos locais, que se tormaram o centro das relagSes de lealdade entre 0s cidadios ¢ que “deram ao ateniense comum um novo sentido de participagdo e um novo sentimento de autoconfianga, no mais tendo ele de viver sob o peso do dever para com o senkor local”, Foi no interior desse clima espiritual que floresceu, primeiramente nas co- Jonias gregas, uma nova forma de pensamento, que esta na origem de mais uma das invengées produzidas pelo genio grego: a da filosofia, jas, cientistas ou filésofos? Acostumamo-nos a falar de filosofia pré-socritica quando nos referimos aos lcos, atribuindo assim o epiteto de fildsofos a alguns personagens fia". Nao é 0 caso de considerar aqui os problemas histortograficos que esto implicados nesses esque- ‘mas consagrados, que remontam a PlatBo e Avistteles, nem se trata de por em compilagio de Hermann Di «© ampliada por Walther Kranz'*. 0 que interessa ¢ refletir sobre a qual filésofos atribuida a esses personagens, isto é, perguntar sc homens como Tales ou Anaximandro, Pitigoras ou Empédocles, entre outros, se consideraram Fil6so- fis ¢ foram assim considerados pelos seus contemporineos. Tales de Mileto (c. 625-$45 a.C.), por exemplo, considerado por Aristét 0 de Filosofia”, nfo pode ser compreendido fora daquele “mercado do mundo” que era entéo Mileto, a mais pujante das cidades helénicas éa Asia Menor, na qual desempeniou importante papel na vida politica. Se foi contado posteriormente entre os Sete Sibios da Grécia, é preciso dar-se conta de que essa sabedoria (sophia), na época ce Tales, expressava um saber eminen- temente pritico, que no manifestava nenhum contraste com a sabedoria teérica, 3, O mundo de Atenas, op. cit, 9. categoria de “ps co de M. M. Sassi 15. CE H. Dis, W. Keanz, Die Fragmente der Vorsohraiter, Berl 16, CF. Aaisronaxes, Mei. 983 b 20. PLATAO NAO ESTAVA DOENTE. A imagem do “sdbio Tales”, ridicularizada por Aristéfanes em As nuvens'” e imortalizada por Plato na célebre anedota do Teeteto, com. 0s tacos do sofo desorientado, incapaz de ver o que estava & sua frente, apresentado c um pogo enquanto contempla o céu, provocando o riso da imagem nao corresponde & verdade da sua atuagio politica, nem da sua atividade de observador do céu que previu o eclipse de 28 de maio de 585 a.C., ou da atividade do matematico que mediu a altura das pirimides pela extensio da sombra no momento do dia em que a sua propria sombra era equivalente a sua altura, Isso para nfo falar da anedota relatada por Aristiteles segundo a qual Tales usou os seus conhecimentos de astronomia para provar que 0s filésofos poderiam enriquecer facilmente se quisessem. ‘No que se refere as afirmagies que a doxografia lhe atribui™, destaco ape- nas que a imagem usada por ele ao dizer que a terra flutua como um pedago de madeira sobre a agua deve ser lida como uma tentativa “de tornar clara sua doutrina por meio da evidéncia visual: esta demonstra que nio se trata de pro- ‘cessos que se desenvolvem sobre éguas miticas, distantes ¢ inaleangaveis, mas de fatos observaveis na experiéncia cotidiana e de modo a ser constatados por todos. De fato, a forma como Tales expe o fendmeno torna pos ‘meira vez uma verificagio, sem dever recorrer a algum apoio miti Anaximandro, rido em 547 a.C. Segundo 0 testemunho de Temi gregos que teve a coragem de publicar um eserit ele foi o primeiro entre os sm prosa, conhecido com 0 T7, AmisTOraNes, AF muvens, 180. stho, Teet. 172.C 58. ‘onsta que 0 censuravam por ser pobre, atribuindo isso @ inutilidade da filosofia ue, devido aos seus conhecimentos de astronomia, previu a proximida ita de azeite; quando ainda era inverno, alngou com 0 pouco «i to e Quios, gastando apenas uma peq acudis ao mesmo tempo e com urgénc : entendeu, ndo 56 obtendo uma soma elevada de dinheiro como provando que era facil, para bora nao fosse essa, de fato, a meta 12); terra fusua sobre a gua ima tem uma alma, dado que 22), € 4) tudo esta cheio de deuses (A 2 HL Fastin, La sageaza-arcaica: Talete, Eracito, Empedocle, in in S. Serns (8 5, Storia Cultura Arte Societ, 2/1, Una storia grega. I. Formazione, op. si, 236). | PLATAO E A INVENCAO DA FILOSOFIA, titulo de Peri physeos, “Sobre a natureza”, do qual se conserva um tinico frag- mento, extraido do Comentdrio sobre a Fisica de Aristoteles de Simplicio®. Ele também se notabilizou pela agdo politica™, tornando-se respeitado pelos contem- afirmado no enigmatico fragmento 1, de forte conotagao ju ficas poderiam ser resumidas nas seguintes proposigoes" 1) Os fenémenos meteorolégicos tém causas naturais; a égua da chuva é a agua do mar ¢ dos tios que evapora pelo calor do sol, é levada pelos ventos e depois cai sobre a terra. O trovio eo relmpago so causados pelo encontro e pela fra- tira das nuvens; os terremotos, pela fratura da terra, causada por calor excessivo ‘ou por excesso de chuva. 2) A Terra é um corpo de dimensio finita que flutua no espago; ela nic cai porque nio tem uma diresdo especial para onde cair, eno & “dominada por aenhum outro corpo”. 3) Sol ¢ Lua ¢ estrelas giram em torno da Terra, completando circulos completes; eles slo levados por imensas rodas, semelhantes a “rodas de carro"; essas rodas so internamente vazias, cheias de fogo e furadas para o interior: os astros que vemos sio o Fogo visivel por esses bburacos. As rodas server provavelmente para explicar por que 0s astros nfo eaem; as estrelas esido em circulos mais priximos, a Lua, num circulo intermédio e 0 Sol no cfrculo mais longinquo, em distincias proporcionais aos nimeros 9, 18 ¢ 27, respectivamente. 4) © mundo surgiu quando sairam d fio 0 quemte, e isso gerou a ordem do mundo. Uma espécie de esfera de foz0 cresceu em volta do ar e da terra “como a casea de uma arvore”; depois se frag- 2. Tandsto, Or XXXVI, 317 yama a atengdo para o fato de até hoje io ter sido adequs ‘ontronto entre a escrita de Anaximandro e a suspeitar que Anaximandro, aspirando a conte ‘norma juridia, emprestou tu que se torna eerteza quando da era arcaica” (M. M. Sasst 26. O resumo que se s smenio do pensamento cientifico, trad. F S. Moreira, S30 Paulo, Loyal PLATAO NAO ESTAVA DOENTE ‘mentou e ficou aprisionada nos eirculos que formam Sol, Lua e estrelas. A Terra, inicialmente, estava coberta de gua ¢ gradualmente foi se enxugando. 5) Todos jeram originariamente do mar ou da umidade originéria que cobria jpassado. Os primeiros animais eram peixes ou uma espécie de peixes: cles se mudaram para a terra firme quando esta se enxugou e se adaptaram par ‘iver ai, Os homens, em particular, no podem ter nascido na forma atual, porque as criangas pequenas nfo sfo autossuficientes ¢, portanto, outro deve té-los nu trido. Eles derivaram de outros animais, da forma de peixes. Ademais, atribui-se a Anaximandro a criagio do primeiro mapa geogriifico ‘do mundo entio conhecido, que foi depois aperfeigoado por Hecateu. Tambéem se atribui tradigdo de ter introduzido no mundo grego o uso do reldgio de sol, constituido basicamente de um bastdo fincado verticalmente no solo, cu sombra ¢ medida em seu comprimento para calcular a altura do sol sobre 0 horizonte. Com esse instrumento, conhecido como gndmon, jé se pode desen- volver uma complexa astronomia sobre os movimentos do sol Poder-se-ia falar do satirico © polémico Xen6fanes (¢. 570-470 a.C.), eujo fragmento 27 — “tudo vem da terra ¢ na terra tudo termina’ antecipa o reftio da Quarta-feira de Cinzas, “lembra-te de nari”, como recorda Anthony Kenny com 0 humor caracteristico dos ingleses’ Do mesmo modo, seria 0 caso de falar do obscuro Heréclito (nascido por volta de ‘540 a.C.), que, segundo Didgenes Laércio, escreveu uma obra “propositalments rum estilo obscuro a fim de que somente 0s iniciados se aproximassem dela’; ou ainda do cosmélogo e mago, médico e taumaturgo Empédocles (c. 495-435 cchamado por Werner Jaeger de “‘centauro filoséfico” por causa da singular alianga ‘entre ciéncia da natureza ¢ misticismo®, Por fim, mas no por tltimo, poder-se-ia falar do misterioso Pitigoras (nascido por volta de 570 a.C.), a quem se atribui a ceriaglo da palavra “filésofo"™. A andlise da atuagio e da obra desses ¢ de outros TGR A. Kany, Uma nova historia da filosofta ocidental. 1; Filosofia antiga, trad. C. |A. Birbaro, rev. tee, M. Perine, So Paulo, Loyola, 2008, 35 [Lacecio, IX, 6, trad. (do grego), intod. ¢ notas M. da Gama Kury, | | i PLATAO £ A INVENCAO DA FILOSOFIA “préssocriticos” certamente confirmaria a sugestdo de Livio Rossetti, segundo a qual todos esses sophoi, que hoje chamariamos de intelectuais, foram consi- derados fildsofos @ posteriori, ou seja, adquiriram essa qualificagdo por exten- So, mas nio tiveram a mais vaga noticia desse destino que thes seria conferido: “Bles provavelmente se consideravam, de maneira mais simples, sophoi e se “| tomaram philosophoi somente gragas a uma decisio dos pésteros, que deve ser situada entre 345 330 aC." 7 2. Os logot sokratikot No Elogio de Helena, de Gérgias (c. 480-380 a.C.), aparece a expresso “competicies de discurso icos” (9 13), Entretanto, aqui o termo “filos6~ no mesmo sentido que ja fora utilizado por Herécli- 10 mundo grego até ent. Algumas indicagBes numé~ reas podem confirmer a raridade do uso do termo: antes de Platio, encontram-se menos de dez ocorréneias do termo fitasofia ou fildsofo; depois do inicio da ati- vidace literaria de Platio, ou seja, pouco mais ce um decénio apés a morte de Socrates (399 a.C.), aqueles termos se tornaram comuns: registram-se 346 ocor- réncias deles em Plato, 87 em Iséerates, 18 em Xenofonte e outras tantas em ‘outros autores™, Fla indicios suficientes para pensar que foram os discipulos de Tr filosofia pitagirica, of C. H. Kai, Piigoras e as ptagdricas. Uma breve historia tad. | < L.C. Borges, Sao Paulo, Loyola, 2007, 7 i Gli onori resi a Tate dal Hypnos, Sto Paul ‘Embora seja praticamente impossivel estabelecer com seguranga uma eronologia das ‘bras de Gorgias, 0 Elogio de Heiena pade ser sivado aproximadamente em 414 a.C. Cf. M. Unrersrenve, 4 obna dos softsias: uma interpreragio filosbfica, trad. R. Ambrosio, Sto Paulo, Paulus, 2012, 154-162, 33. "Segundo preciso que os homens amantes da sabedoria (philosophous) sejam conltecedores de muita coisas” (DK 22 B 35). 3M. CEL. Rosser, Invaduedo a fi tad. E. de G. Versosa ‘pensamenio enire os gregos. cuja primei afismava: “O primeiro emprego de p/ um fragmento que se atibui a Hericlito, no inicio do séeulo V. Na real adguirem direto de cidadania somente com Platdo e Arstételes a0 tomar um valor preciso, PLATAO NAO ESTAVA DOENTE Sécrates que popularizaram 0 uso do termo filosofia a partir do momento em que ccomecaram a fixar por escrito os assim chamados logo! sokratiko, ‘Um paragrafo do grande estudioso de Sécrates Mario Montuori resume bert © ponto de partida da questio: Se, estando Sécrates ainda vivo, Arist6fanes oferecia 20 riso da plebe das Dionisiacas a prosaica imagem de um Sécrates sofista, mestre do que neles hi de pior, corruptor dos jovens ¢ negador dos deuses patrios, depois de morto io celebrava na Apologia do homem acusado, processado & con- denado por asebei vel piedade e devogio de um Sécrates predileto do deus de Delfos, sabedor apenas da sua ignorancia, investido de uma missio spiritual para todo o povo; vitima, portanto, de uma injusta condenasdo. Poli ‘ao contrario, reapresentava contra Sécrates as acusagdes proclamadas ou caladas no tribunal, atribuindo-Ihe a responsabilidade pela conduta moral ¢ «politica de discipulos corruptos, subversivos da pitria democratica. Envolvidos na acusacdo, Platio e Xenofonte teciam novamente a apologia do Mestre Plato, ‘0 delincar no Gérgias a inédita imagem de um Sécrates mestre da arte pol tica, entendida como capacidade de tornar os outros melhores, Xenofonte, fi- loespartano, a0 acentuar o retrato do Sécrates eusebes proclamado pelo Apolo délfico 0 mais justo, o mais temperante, o mais sibio de todos; ¢ mais tarde ‘Aristételes, superando toda polémica sobre o homem, definia para sempre © ccariter do filosofar socritico como busca dos conceitos éticas*. ‘A condenagiio de Sécrates, como se sabe, mudou © rumo da vida de Plato @ do grupo dos seus seguidores mais préximos. Didgenes Laércio relata que, segundo 0 testemunho de Hermodoro, “apés a morte de Sécrates, 20s predecessores, €distanciar-se com relagdo a eles: € Timitando-se s uma investigaedo acerca da natureza (historia peri physeos), no ser taal tum desses homens que ainda, nos séculos VI e V, se designam pelo nome de sophos. sibio, tomo op Sete Sabies, entre 0s quais figura Tales, ou sophistes, hébil no saber & mania ‘esses peritos na arte dapalavra, desses mestres da persuasio, de compete tres no decorrer do século ¥, ¢ que 35. Cf, M. Monuoat, Soon. Fi Introd, G. Reale, Milano, Vita © Xa) pensiec, 1998, 13 | PLATAO £ AINV! (AO DA FILOSOFIA, 1ssofos restantes, alarmados com a erueldade dos tiranos, foram para a.com- panhia d=-Buclides**. Na ‘Atenas impregnada de ressentimentos em consequén- clardeTonge guerra frat imortalizada no relato de Tucidides”, a hostilida- de dos democratas contra Socrates estendeu-se também aos seus discipulos", centre 05 quais estavam Critias, Alcibiades e Cérmides, sobre 0s quais pesava larmente a ira dos democratas, mas também os outros que sio citados a Plato, Criton, Critabule e Apolodoro lias abastadas de Atenas. A ria de Diégenes Laércio sobre a fuga dos assim chamados socriticos ceramente & verdadeira, inclusive porque, segundo as leis atenienses, a condenago do corruptor dava direito de perseguir também os corrompidos. Por isso, Plato deixou Atenas depois da morte de Socrates ¢ s6 regressou em 387 aC. para fundar a Academia”. + No momento em que Platio voltou para Atenas, Anito, 0 acusador no pro- inda exercia na cidade importantes cargos politicos“. Poucos anos antes do retorno de Platio, 6 orador Po em Atenas um discurso chamado Katego! antigas acusages contra Sécrates de ser inimigo do pove e traidor da democra- a fixagdo por escrito dos logoi sokratiko! se insere num projeto de reabilitagdo de Sécrates e dos socriticos, pois também estava em questiio o circulo dos seus amigos mais préximos. Como afirma Mario Montuori, “o nas- 106, Em UI, 6 ele escreve que se para Wégara com outs diss do Peloponeso, tad. M. da Gama Kur, Pref. H. Jaguaribe, 38. Sobre as relagdes de Scerates com a demoeracia ateniense, ver G. V.asros, Si socratict, Introd, G. Reale, tad. F PLATAO NAO ESTAVA DOENTE imento dos logo! sokratikoi as suas caracteristicas, 0 seu espirito mats profia- sartjevem ser emetidos & exigéncia de Plato de uma defesa de si mestno « de Xx Guls soctiticos tanto da acusagio de corrupedo como da acusagio de incaps- cidade de evitar o processo e a morte de Socrates". ‘Como se sabe, Socrates ndo escreveu nada, mas ¢ legitimo pensar que a Svs atuagio foi dovisiva para que ele viesse a merecer dos disefpulos « qualiicagio de fildsofo © para que 0s textos que rel a sua ata sokrutikoi, viessem a ser chamados de fi ‘magdo mais importantes sobre Sécrates sto apresentada em Atenas no ano 423 a. io, que faz de Socrates 0 protago- tists da maioria dos seus dilogos, particularmente nos assim chamagos dislogos de juventude: Xenofonte, com os seus Ditos e feitos memordvels de Soerates © tim outros esoritos menores nos quais Sdcrates € protagonista; ¢ Arstoteles, due tio Joi contemporanco de Socrates e $6 ocasionalmente fla dele emora iva coisas importantes sobre ele“ Didgenes Laércio cita, entre os amigos de Sdcrates, além de Xenofonte ¢ plaie, também Esquines. Antistenes, Aristipo, Eulides e Fédon. Com exeesio do comediografo Arst6fanes, que ndo foi discipulo, mas entico fero7 de Socrates" do historiador Xenofonte, que foi ouvinte de Sdcrates na juventude ¢ comps seus ‘escritos sobre ele na velhice”, ¢ de Esquines, que ndo deve ser contado como filosofo, mas como literato™ citados estio ligados ao que se aa senvionou chamar de escolsflosicas: Antstenes foo fndador do cinismo"; Cf id, 308. 443, Sobre a assim chamada “questo socrit Ve Maaaunaes-Viniens, O problema de Socrates, Lisboa, Fundagio Catouste Gulbs 1952 seer emunbos de Aristételes sobre Socrates esto reunidos em T Dewass ei ne, Pais, Les Belles Lettres, 1942. Ver tarbém V. Maas.iAss-VIEs, ofta antiga, Lisboa, Fundacéo Calouste Gulbenkian, 2005 47 to the Thought of NYT, Sobre a relagdo de Xenofonte com Socrates, TE Sobre a relagdo de Esquines de Sfeto com Socrates ef. Diocenes La PLATAO EA INVEN(AO DA FILOSOFIA, Ariipoesiavana orgem de escola cirenaiea, Euclid fo] 0 fandador da escola megicica®:; Fédon, que foi dos seguidores mais amados de Sc tempo o menos original, fundou uma escola em sua cidade, E ara sponta, meso que brevemene, a crates funda Poa hekpeprice den origem e fixou © sentido dos termos fildsofo e il vou me ater unicamente ao testermunho de Platio, particularmente a0 sro dos asin chamados “didlogos da juventude™, Sécrates pode ser carac- ane antes de tudo, como um grande conversador, De fato, posteriormente eager sili he Ge cat parton aie 8 Ge Sp oss, Diggenes Laie dele afr: “Duramt o resto da vd ole parman cm sua cidade, entregando-se cada vez mi is beater a ia de indagacao, conver- teed com todo or que desejeser eteter-se com el, pois seu bjt no cra levar 05 outros a renunciar as suas opinides, ¢ sim chegar 4 verdade™. Entretanto, Sécrates no conversava de qualquer maneira e nem sem al maliite sn eee arin cee al i como um procedimento de perguntas e respostas®, que nik as a um ; tas, que ndo visava apenas a um acid oe 1 erlocutores, mas que 56 podia comesar a partir de algum szudo prvi, em via de acordos posteriores a ser construidos pelo dilogo. aie bas dilnge ie fren ieee Slept ieee: ado em buscar um acordo com o seu interlocutor em torno d =p : yr em torno do assunto que era objeto do didlogo. Os acordos buscados por Sécrates exigiam a respon € a0 mesmo 50, taro cata qu Astin, quando our fla de Sern fi omado de exiema i, da qual nfo se refer enqumto no parade Crete par Atenas pc es. ranco, De curtos. 2, $16 C, apud G. REALE, Histiria da floso- »_7 fa3, Sderates e soeriticas menores, trad, M. Perine, nova ed. des enifento o perigo de morte para continua ouvir Si A trnistewues Soman Maga lomo eminem pene deere ws ge |

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