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MACHADO DE ASSIS LEITOR DE ALEXANDRE DUMAS E VICTOR HUGO Gilberto Pinheiro Passos * RESUMO Em Missa do Galo, de Machado de Assis, cria-se uma relagao intertextual com Os és mosqueteiros de Alexandre Dumas e “Vieille chanson di jeune temps “ (Les contemplations)de Victor Hugo, Seja em oposigaoad’Artagnan ouemconsondncia com a ¥0: lirica masculina do poema hugoane , constrdi-se 0 texto que absorve criticamente as dados franceses, inserindo-os em novas relagdes contextuais, onomdsticas ¢ imagéticas. Tal presenga vai de par cam 0 expasto em “Noticia da atual literatura brasileira / Instinto de nacionalidade “(1873),onde Machado de Assis se pergunta sobre a possibilidade de desenvolvimento literério nactonal, sem 0 peciilio legado pela produgao estrangeira, Unitermas: Literatura Comparada;intertexto; Relacdes literérias Brasil-Franga: Machado de Assis/Alexandre Dumas: Machado de Assis/Vicior Hugo, O intertexto as claras Nio ha davida de que a literatura francesa sempre esteve presente na obra machadiana, embora o publico de hoje nao perceba - obrigatoriamente - oesforco intertextual empreendido pelo autor de Dom Casmurro, no sentido de dialogar com os miltiplos textos de origem gatica, que , na sua época, circulavam entre nés. Por outro lado, conviria indagar o porqué de tal didlogo. Teria a literatura brasileira necessidade disso, ou seria apenas um vezo Particular a Machado de Assis? Dai aimportancia de se conhecerem e precisarem as obras de quese vale Nosso autor, nas suas relacdes com a cultura referida. O estudioso tem um largo caminho a percorrer, seja estudando a enorme cépia de citagdes e alusdes que * Professor-Doutor do Depto, de Letras Modemas da FFLCH/USP. Rev. Inst, Est. Bras., SP, 34:73-86, 1992 73 - de modo particular - apontam o trabalho recriador executado por Machado de Assis, seja incorporando ao ponto de vista critico as presengas subterrineas - porém fundamentais - que criam elos significativos ¢ operam sentidos insuspeitados, jamais presentes numa primeira c desarmada leitura. E.0 caso de duas obras, ambas do século XIX, pertencentes a autores de grande voga, no 86 na Europa, como no Brasil, Alexandre Dumas e Victor Hugo (1). Em um conto de Machado, alias de titulo extremamente sugestivo, a Xavier de Maistre, Viagem d@ roda de mim mesmo, publicado em 1885, a personagem-narrador 1é, em dado momento, alguns capitulos de Os trés mosqueteiros e se convence de que “Z../as mulheres pertencem ao mais atrevido.” (2) Sem diivida, d’Artagnan ¢ a senhora Bonacieux,como par principal do romance, andaram incendiando coracdes no século XIX, tio predisposto a ver, os casamentos entre mocinhas ¢ senhores de alguma idade, o resultado de um mero arranjo de conveniéncia a redundar no adultério plenamente justificavel, aos olhos dos jovens (leitores ¢ personagens); malgrado muitos conflitos, podem eles enfrentar as normas sociais coercitivas sem nenhum pejo, uma vez que esto alicergados no primeiro e verdadeiro amor . Nonosso conto personagem-narrador, timorata como poucas, encontra um duplo em si mesmo, o qual the censura a timidez excessiva: “Y...quando sai da casa de Henviqueta , descampondo-me, com unt grande desejo de quebrar a minha prépria cara, Senti-me dous, um que argitia, outro que se desculpava ."(3) O texto busea uma figura simile para a intrepidez, experimentada em combates no apenas amorosos, donde a referéncia explicita ao livro de Alexandre Dumas. Temos ai novo duplo, ou seja, além da personagem que se divide em dois, um texto a buscar outro. A literatura brasileira c a francesa dialogam, por meio da figura do jovem advogado pobre, recém-chegado da provincia, instalado em casa de pensio ¢ sonhador de um futuroa serpreenchido com 0 sucesso na capital eo amor de una vitiva, ainda moga,embora mais velha do que ele e, seguramente, mais exprimentada nas artes do amor . Vencendo 0 oceano, vamos encontrar d’Artagnan como modelo para 0 bacharel de existéncia apagada ¢ quase modorrenta, cujo nome, Placido, da bem conta do seu apequenamento parddico, enquanto representante de valentia amorosa. O reino de Louis XIII, aventuroso e galante, é matéria da trama de Alexandre Dumas que nele busca elementos para povoar a imaginagdo de seus (2) Machado de Assis, inclusive, colaborou para a voga de Victor Hugo em nosso pais, traduzindo Les travailleurs de la mer. A esse respeito, v. MASSA, Jean-Michel. Machado de assis traducteur. Tese complementar de doutorado. Poitiers, (s.d.). A propésito da presenca do autor de Les Misérables , entre nds, v. LEAO, A. Cameito, Victor Hugo no Brasil. Rio de Janeiro. Livraria José Olympio Editora, 1960, p.122 e ss, 42) ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Ohra completa. Rio de Janciro, Nova Aguilar, 1986.tomo Up. 1089. (3) Idem, p. 1057. 74 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:73-86, 1992 Icitores, entre os quais esta nossa personagem, preparando caminho para a irrupgio de outra, cuja conversa com uma contraparente mergulhao leitor num mar de ambigitidades, Referimo-nos a personagem-narrador do conto Missa do Galo (4), cuja trama pode ser resumida em poucas frases: 4 espera de que um amigo venha buscd-lo para a Missa do Galo, Nogueira, um jovem de dezessete anos tem uma ambigua conversa com Concei¢ao, casada com Menezes, seu anfitriaoc primo, oquai mantém - com oconhecimento de todaa familia - uma ligacdo adulterina. A noite de Natal comega com uma ficedo, que se inscreve no cédigo familiar como ida do parente ao teatro, ou s¢ja, visita 4 amante. Dentro dessa perspectiva, ganha relevo cspecial o modo de Nogueira empregar seu tempo, a espera do amigo: “Mas, Sr. Nogueira, que fard vocé todo esse tempo? perguntou- me a mée de Conceigao. -Leio, D, Indcia.” (5) Nao ha diavida de que o ato de ler comporta muito mais do que a mera significagao de lazer : cle ¢a senha textual do didlogo coma literatura francesa explicitada na trama: “Tinha comigo umroniance, Os Trés Mosqueteiros, velha iraducdo creio do Jornal do Comércio.Sentei-me a mesa que havia no centro da sala, e & luz de um candeeiro de querosene, enquanto @ casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fii-me as aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. ""(6) O simile nao podia ser mais consentdneo com a realidade intertextual que 0 conto aprescnta: nao se trata de uma mera leitura de obra francesa, mas de uma tradugdo, indiciando estarmos diante da passagem de uma cultura para outra: a Franca envia o simile que a vida literaria brasileira recolhe, adapta ¢ usa a seu bel- prazer. Os feitos dos mosqueteiros comportam coragem e conquistas amorosas, cujas implicagdes se deixam pcnetrar por uma verdadeira sarabanda de posicdcs socialmente ambiguas, sobretudo, como sabcmos, no que diz respeito a0 casamento: assim, ¢ para ficarmos apenas nos fatos mais evidentes da trama, além da paixdo de d’ Artagnan por uma mulher casada, a rainha, Ana de Austria, mantém ligagdes afetivas com o inimigo inglés. Ha como que um desejo generalizado de vencer a prisiio, representada pelo matriménio. Neste momento, 0 adultério reina: Menezes, d’Artagnan c Ana de Austria sinalizam a passagem para o-interdito social. Portanto, o sinal esta dado para a entrada em cena da mulher de Menezes, exatamente em meio a0 império da ficgdo, conforme podemos ler: (4) Publicado em 4 Semana, Rio, n* 41, em 12/5/1894, p. 322, segundo J. Galante de Sousa, em seu Bibliografia de Machado de Assis, Rio de Janeiro, INUMEC, 1955, p. 635.( Colegio BI / Bibliografia X). (5) Obra complera, tomo II, p.606, (6) Obra completa, tomo Il, p. 606. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:79-86, 1992 78 “Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar- me da leitura, Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas d de jantar; levantei a cabega; logo depois vi assomar & porta da sala o vulto de Conceigdo.""(7) O caminho fica aberto para a predominancia da presenca ficcional, como uma realidade mimética de segunda instdncia, ou seja, a captagio de atmosferas, personagens e situagGes dadas pela literatura francesa: “Concei¢ao entrou na sala, arrastandoas chinelinhas da alcova. Sendo magra, tinha unt ar de visdo romantica, nao disparatada com meu livro de aventuras, Fechei 0 livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim'(8) A partir desse momento, a relacdo entre Nogueira ¢ a figura feminina incorpora o desejo adulterino pela hospedeira (Madame Bonacicux/Conccicao) queemana da personagem-simile, d’ Artagnan, buscando atingir o mais completo graudeespecularidade, segundo 0 prisma donarrador. René Girard, comentando 0 episédio da Divina Comédia, que envolve os desafortunados Francesca e Paolo, leitores-vitimas da historia de Lancelote, afirma: “El amor progresa en sus almas a medida que progresa en las paginas del libro. La palabra escrita ejerce una verdadera Jfascinacién, Impulsa a los dos jévenes amantes a obvar como si sus actos estuvieran determinados por el destino; la palabra es ut espejo en el cual se contemplan para descubrir en ellos mismos las sentejanzas con sus brillantes modelos. "(9) Entretanto, a atracdo, presa ao simile francés, resulta inttil; a busea da realizagao do desejo redunda no vazio (10), mas se toma insistente na meméria pessoal ¢ literéria, procurando a narrativa dar conta de uma situagdo em que predomina a tensio entre a intensidade do desejo ea vanidade dos malentendidos, (7) Obra completa, tomo II, p. 606. (8) Obra compleia, tomo II, p. 607. (9) GIRARD, René. Ei desejo mimético de Paolo y Francesca, em scu Literanwa, mimesis y antropologia. Barcelona, Editorial Gedisa, 1984, p. 20 (Col. Hombre y Sociedade/Seric Mediaciones, v.10). E evidente que estamos diante da relago triangular de que fata 0 mesmo autor, em seu Mensonge romantique et vérité romanesque (Paris, Bernard Grasset, 1962); 2 personagein busea, a panir de suas leituras, passar pelo mesmo desejo de seu modelo. (10) A esse respeito, afirma Dirce Cortes Riedel: “4 aparente homologia é negada pela auséncia de impetuosidade romdntica do esudante surpreso ¢ amedrontado ante a visio romintica de Conceigito - uma visio que Nogueira ndo ache disparatada em relacio ao seu livro de aventuras. A impettosa Concei¢ao. esta gosta de romances, mas os Ié pouco, por falta de tempo. Paradoxalmente, a jovem senhora aparece como metifora que reatiza, no ‘real" do conto machadiano, a ficgao romanesca, que ela nao é enquanto que o upaixonado leitor da novelistica romdntica & a antitese dos desvairados heréis da sua predilegdo. Mas, como a metéfora supde “iransgressdo dos interditos combinatérios a personagem-metaforizugdo dos herdis rominticos é uma hipérbole destes heréis - ‘A presenca de Conceigdo espertara-me mais que o livro’.” RIEDEL, Dirce Cones. “Otelo e D'Artagnan”. Em seu Meidfora, 0 espetho de Machado de Assis. Sio Pauto, Francisco Alves. 1979, p. 108. A respeito das leituras das ersonagens machadianas, v. MAGALHAES Jr., R. O que liam as personagens de Machado de assis, em seu do redar de Machado de Assis (Pesquisas ¢ interpretagées). Rio de Janeiro, Civilizagdo Brasileira, 1998, p. 143- 152. 76 Inst. Est. Bras., SP, 34:73-86, 1992 No texto francés, ndo se da a hesitagio, marca registrada de Nogueira ¢ seu predecessor, 0 advogado Placido. Espicagado pela beleza de Conceigao, nfo sabe o que fazer; no nivel da trama, tal fato pode ser creditado a inexperiéncia de sua pouca idade, mas visto do Angulo intertextual ganha alguns outros contomos: o efeito parddico do herdi ja nao romantico, merguihado em outro contexto histérico-social e limitado por ele. Ironicamente, a conversagio traz como elemento contrastante e emblematico 0 romance 4 morentinha, um dos iniciadores de nossa prosa ficcional e representante do primeiro e adolescente amor romantico, cuja consccugao se di exatamente num feliz casamento, validando arroubos e febres juvenis. CO intertexto subjacente Os trés mosqueteiros e Missa do Galo, portanto, se entrelagam de modo. explicito, permitindo ao leitor uma primeira - embora incompleta - visio dos ecos intertextuais a operarem sentidos no conto. Precisamos, agora, estabelecer a passagem para um texto que, agindo subterraneamente, mas nem por isso de forma menos importante, se acrescenta, qual um paradoxo, ao romance Os trés mosqueteiros. Como se sabe, a meméria reconstréi, de modo préprio, cenas da noite da missa do galo, evocadas por Nogueira. Em meio aos desvaos da meméria talvez esteja 0 texto com o qual o conto dialoga subrepticiamente: envolto na Icitura de obras francesas - dado inescapavel e confesso - 0 narrador surge, aos nassos olhos, ligado a voz lirica de um poema de Victor Hugo, “Vieille chanson du jeune temps”, publicado em Les Contemplations ( 1856 ). Para melhor compreensio do fenémeno intertextual, vamos reproduzi-lo aqui: Je ne songeais pas @ Rose; Rose au bois vint avec moi; Nous parlions de quelque chose, Mais je ne sais plus de quot. J étais froid comme les marbres; Je marchais é pas distraits; Je parlais des fleurs, des arbres; Son oeil semblait dire: ‘Apres?’ La rosée offrait ses perles, Le taillis ses parasols: Sallais; j'écoutais les merles, Et Rose les rossignols. Moi, seize ans, et l'air morose. Elle vingt; ses yeux brillaient. Les rossignols chantaient Rose Et les merles me sifflaient. Rose, droite sur ses hanches, Leva son beau bas tremblant Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:79-86, 1992 7 Pour prendre une mire aux branches; Je ne vis pas son bras blanc. Une eau courait, fraiche et creuse, Sur les mousses de velours; Etla nature amoureuse Dormait dans les grands bois sourds. Rose défit sa chaussure, Et mit, d'un air ingénu, Son petit pied dans l'eau pure; Je ne vis pas son pied mu. Je ne savais que lui dire; Je la suivais dans le bois, La voyant parfois sourire Et soupirer quelquefois, Je ne vis qu'elle était belle Qu’en sortant des grands bois sourds. ‘Soit; n’y pensons plus!’ dit-elle. Depuis, j’y pense toujours, “(11). A personagem brasileira encontra, no texto de Victor Hugo, a figura simile a operar ndo mais por oposigdo, mas por relagio especular de semelhanga, © que nao quer dizer total identidade. A andlise aprofundada das duas obras se encarrega de mostrar o trabalho escritural do texto brasileiro, incorporando os dados franceses num universo préprio, quer do ponto de vista contextual, ononidstico e imagético ou do género das duas obras. Abra rancesase corporificanum poema lirico, vazadoem heptassilabos, onde a condensa¢ao cumpre um papel fundamental. Nele nao ha lugar para o nome da voz lirica masculina: 0 ser inominado busca expressar o breve instante da vida em que uma moga (Rose) consegue obseda-lo, de mancira indelével, mas nGo imediata, deixando, assim, marcas profundas, quo obrigamaescrever para recapturar 0 momento magico da proximidade do ser feminino, por meio da rememoragao escritural. © resultado nao pode deixar de consignar a presenca indestrutivel da mulher:em nove estrofes, evoea seis vezes o nome “Rose” eo incorpora, foneticamente, a“‘rosée” ea simesmo, fazendo-o despontar, sintomaticamente, em “morose”. Jé pelo nome, a figura feminina se vé em perfeita consonancia com o quadro bucélico que o poema apresenta: sendo “rosa”, oferece seus atributos fisicos nossa visdo, em pleno bosque : olhos que brilham, coxas que sustentam, brago que ¢ belo e branco, pé que se desnuda: 0 todo se converte em partes para ser retomado, ao fim, por um tinico e definitivo adjetivo, “belle”, inelutavel e Para sempre inscrito na memoria ("Depuis, j’y pense toujours. "). (1D VICTOR HUGO. Les contemplations, Paris, Gallimard, 1973, p. 71-72. 0 pocma foi composto ‘¢m junho de 1831, segundo informagio constante da edigio citada. 78 . Inst, Est. Bras., SP, 34:73-86, 1992 A revelacao da beleza de Rose se deixa registrar, outrossim, no titulo, em que 0 adjetivo “vieille” permite insistir no carater de lembranga marcante do passado evocado artisticamente, uma vez que a literatura admite a retomada posterior do momento vivido, agora carregado de sentido novo e presente. A voz lirica masculina se caracteriza, inicialmente, como um ser estranho ao mundo vegetal de “Rose”, ou animal de certos habitantes do bosque (“rossignols”, “merles”), pois concentraem sia rijeza ea indiferenga conotadas a partir do mineral (‘J’étais froid comme les marbres”). Por outro lado, utilizando-se de preterigées, realga sua incapacidade momentanea de manter um contato visual axiomatico (“Je ne vis pas son /beau / bras blanc.”, “Jene vis pas son /petit/ pied nu”), paradoxalmente oposta asugestéo comunicativa entrevista nos olhos de Rose, mas nao captada em sua inteireza (“Son oeil semblait dire: ‘Aprés?’” , "/../ses yeux brillaient.”, “La voyant parfois sourire / Et soupirer quelquefois “ ), Preso ao impasse da indiferenca, transfere-a - animizando a natureza - para o cenario que o circunda: gracas a um sutil deslocamento, temosa velada confissio do embotamento de outro sentido: sao os “grands bois sourds” que encerram 0 adormecimento da “nature amoureuse”. Aqui, a surdez fisica & apenas suporte para ocerne da questo: sua incapacidade de “ouvir” o despertar da natureza amorosa, pois se encontra, momentaneamente, “surdo” a ela (12). ‘A grande revelagao ocorre textualmente quando do abandono dos “grands bois sourds”, pois, 0 jovem, num atimo, se poe a “ver” e “ouvir”, ou seja, se relaciona como um todo com a inteireza da figura de Rose, resumida, como sabemos, no adjetivo “belle”. Findo o encanto do momento, finda o interesse de Rose (“‘Soit; n'y pensons plus! ‘ dit-elle.”), comecando a germinar 0 da voz masculina e 0 encanto da literatura, que circulard até chegar ao Brasil. O leitor brasileiro, familiarizado com Missa do galo, pode reconhecer imediatamente uma série de elementos comuns entre as duas obras, que talvez fiquem mais evidenciados, se observarmos os quadros seguintes: A.Presenga da meméria, lacunosa e fragmentaria: “Ha impressdes dessa noite,que me “Nous parlions de quelque aparecem truncadas ou confusas. chose,/Mais je ne sais Contradigo-me,atrapalho-me.” plus de quoi.” B.Diferenga de idade: “Nunca pude entender a conversagaio “Moi, seize ans,et que tive com uma senhora, hd muitos Vair morose.Ele anos,contava eu dezessete,ela trinta.”” vingt.” C.lmporténcia do othar: (12) O termo francés “sourd” apresenta, nesse caso, campo semantico idéntico ao do portugués, ou seja, “surdo” a algum reclamo, a algum pedido, Rev. Inst, Est, Bras., SP, 94:79-86, 1892 79 { “Os othos néo eram de pessoa que acabasse de dormir; parecian ndo ter ainda pegado no sono. “Conceigéo ouvia-me com a cabega reclinada no espaldar, enfiando os olhos por enire as pélpebras meio cerradas, sem os tirar de mim.(...)vi-a endireitar a ca- bega, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos bragos da cadeira, tudo sem desviar de mim os gran- des olhos espertos “Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir;mas os olhos,cerrados por wn instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga,como se ela 08 howves: D.Forga erética dos bragos e pés: “Nao estando abotoadas, as man- gas cairam naturalmente, ¢ eu vi-lhe metade dos bragos, mui- 10 claros, ¢ menos magros do que se poderiam supor.”” “Voltei-me, e pude ver, a furto, © bico das chinelas;" E.Conversacio “desco: la”: “Falava emendando os.assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primet- ros, e rindo para fazé-la sor- F.Desinteresse maseulino: “Je parlais des fleurs des arbres; Son oeil semblait dir Aprés?’” “ses yeu brillaient. “Rose,droite sur ses hanches, Leva son beau bras tremblant Pour prendre une miire aux branches; Je'ne vis pas son bras blanc.” “Rose défit sa chaussure, Et mit, d'tn air ingénu, Son petit pied dans Veau pure; Je ne vis pas son pied mt." “Je ne savais que lui dive; Je la suivais dans le bois, La voyant parfoissourire Et soupirer quelquefois, " Rov. Inst, Est. Bras, SP, 94:73-86, 1892 “Tudo nela era atenutado e “Je ne songeais pas a Rose;” passivo. O préprio rosto “’étais froid comme les era mediano nem bonito nem marbres; feio.Era o que chamamos uma Je marchais 4 pas distraits; pessoa simpdtica.” G.Interesse masculino: “\..em certa ocasiao,ela,que “Je ne vis qu'elle était belle era apenas simpética,ficou Qu’en sortant des grands bois linda, ficou lindissima. “ sourds. H.Desinteresse feminino: “Na manhd seguinte, ao almogo, —_“‘Soit;n’y pensons plus’ falei da missa do galo e da dit-elle.” gente que estava na igreja sem excitar a cuiriosidade de Conceigéo. Durante o dia, achei-a como sempre,natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversagao da véspera.” LPersisténcia da lembranga: “NUNCA PUDE entender a conversagéo “Depuis, j'y pense que tive com uma senhora, lié muitos toujours." 3) De imediato, se patenteia a presenga do poema no conto machadiano, embora notemos que o caminho intertextual percorrido propiciou a perda das marcas explicitas relativas 4 apropriacdo executada . No entanto, conforme ja mostramos, a personagem narrador indicia, coma frase “- Leio, D. Indcia.”, sua entrada no campo da literatura francesa. O texto, em seguida, explicita a relagdo com Alexandre Dumas, numa perspectiva algo enganadora, se vista de modo exclusivo, ja que serviria para por em relevo apenas a diferenca entre o temperamento arrebatado do jovern gascfo e a verdadeira abulia do narrador. A mais densa relacao se di com o texto subterraneo de Victor Hugo, jando-se pelo suti] elo onomistico transposto: no poema, o nome masculino nao aparece, porque a atengdo se concentra sobremodo em “Rose”, ligada a0 (13) ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1986, tomo II, p. 605-611. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:73:86, 1992 a mundo vegetal e a eclosio luxuriante do cenario bucdlico; no conto, o eco intertextual comeca pelo nome ¢ origem da personagem-narrador: Nogueira reenvia imediatamente a drvore curopéia que produz um dos alimentos do Natal, as nozes. Sua cidade é Mangaratiba, do tupi_midga’ra (tipo ou parte de planta) ¢ tuba (sufixo coletivo), significando “/ocal de mangards abundantes” (14); Portanto, tanto seu nome, como sua origem denunciam estreita relacdio com o mundo vegetal, donde promanam no apenas Rose, mas tantas sugestdes idilicas do poema francés. Um nome emprestado a uma arvore européia (ligada indelevelmente a0 Natal) com origem em uma regio de nome tupi constitui algo de interesse quanto 4 exdtica adaptagao simbélica do europeu em terras brasileiras. Assim, © poema de Victor Hugo vai cncontrar suas transformagées necessirias, resultado do aproveitamento realizado pelo conto brasileiro . Oclemento onomastico parece se ater exclusivamentea Rose/Nogueira, mas uma andlise mais demorada do significante Conceigdo mostra estar ele estreitamente ligado ao contexto especifico da obra, tal como a perfeita identidade entre a rosa ¢ 0 ambiente vegetal do poema. Comecemos pela data de Natal. A simbologia religiosa da [greja costuma designar a figura de ligacdo entre Deus ¢ os homens, por meio da qual se concebe e se encarna a divindade cm sua forma humana, como Nossa Senhora da Conceigao. O texto ndo deixa duvidas quanto a sua vinculagiio a religiosidade: “Eu tenho una Nossa Senhora da Conceigéo, minha madrinha, muito bonita,” (15) De origem portuguesa, tal culto é um dos mais antigos e arraigados do Brasil, pois j& em meados do século XVII, D. Joo IV 0 consagra, fazendo de Nossa Senhora da Conccigdo a padroeira de Portugal ¢ seus dominios. Dessc modo, a esposa de Menezes esti, desde o principio, vinculada ao elemento temporal da trama, Por outro lado, sua imagem inicial, dada pelo narrador, se bascia em representacdes de cunho religioso: “Boa Conceigdo! Chamavam-the ‘a santa *, ¢ fazia jus ao titulo, tao facilmente suportava os esquecimentos do marido /.../ Deus me perdoe, se a julgo mal.” (16) Como se vé, o significante do nome se acopla a um significado contextual caracteristico, ao qual podemos ligar , imagética e metonimicamente, 0 elemento semantico que Nogueira encerra, formando um conjunto: Natal, maternidade, alimentagao. Em pleno encantamento vivido por ele, ou seja, quando a “santa” Concei¢io assume aspecto que tende ao terreno, sua “imagem “ externa e primeira parece levar a palma sobre a recéndita, que apenas imaginamos; fala- (4) CC. verbete em MACHADO, José Pedro. Diciontirio onomastico da lingua portuguesa, Lisboa, Editorial Confluéncia, 1984, vol. Il. p.935. (15) Obra completa, tomo Il, p. 610. (16) Obra completa, tomo 11, p. 606. 82 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:73-86, 1992 se de quadros presos ‘a parede (entre os quais 0 de Cledpatra) ¢ a moga, em vez dos que retratam mulheres, prefere “duas imagens, duas santas” (17), além de se referir a escultura, representativa da madrinha , que possui em seu oratério. Estamos, portanto, diante de um “quadro” duplice: de um lado, “santa”, ligada a Nossa Senhora, e, de outro, sua “humanizagao”, conotada por Cledpatra, com os sentidos de_paganismo, luxtiria ¢ império sobre os homens, oque permite ao leitor circular entre o sensual ¢ 0 religioso (com um altissimo patamar de figuras), além de observar, por contraste, o apequenamento de Conceigio, humilde ¢ abandonada esposa de escrivdo fluminense . O texto francés nao busca dar a Rose uma figura simile qualquer: ha como que uma busca do absoluto de seu encanto, restrito ao corpo e d relagaio coma natureza,coma qual forma um todo harmonioso, conforme ja sublinhamos. Conceigio, presa a vida familiar carioca do Segundo Império, tende ao encanto suti] e encoberto de um corpo votado ao recato ¢ ao abandono. O contexto social sabe dar-Ihe contornos, pois Ihe tira a voz prépria : seu desejo, ambiguo quanto a integridade e veracidade, se origina a partir da visio do narrador. Este, também preso a sua época ¢ leituras, a vé de modo vario : Conceigdo - Madame Bonacicux ~ Cledpatra. ‘No poema , a cerrada relagao entre Rose ¢ a natureza compéem o unico quadro de referéncia da seducio experimentada pela voz lirica, algo bastante complexo em Missa do Galo, pois passa, obrigatoriamente, nao s6 pelo desejo do outro (d’Artagnan), mas também pelo contexto do ambiente fechado ¢ acolhedor da casa da Rua do Senado, no qual se insere 0 conflito afetivo. Dai apresenga de outro texto - agora, subterraneo, talvez em harmonia mais estreita com as ambigilidades, mascaramentos ¢ negaccios de uma sociedade algo devota e extremamente autoritaria em relagaio ao sexo feminino. Sc tudo é possibilidade de realizagao do desejo nascido da contemplacio fisica e de sugestivas - mas inconclusas - manifestagdes verbais, o despertar da consciéncia ante a beleza feminina tem tempos diferentes, até mesmo porque apenas um esta sob cfeito da ficgao especular. Preso.a d’Artagnan, Nogueira se da conta, em meio 4 conversa, da beleza de Conceigio: “/../ em certa ocasiao, ela, que era apenas simpética, ficou linda, ficou lindissima. "(18) Como sabemos, o impacto da presenga da hospedeira é mediado pela leitura francesa, predominando Alexandre Dumas sobre Victor Hugo, nesse asso e plasmando-se, de maneiraainda mais evidente, oamlgama intertextual. Em Os trés mosqueteiros, a paixio por Madame Bonacicux é uma das molas de propulsio de uma narrativa plena de lances dramaticos, ao passo que, no conto brasileiro, o desenrolar da agao ¢, em tudo ¢ por tudo, oposto a quaisquer atos ousados: 0 tom de Missa do Galo se aproxima, portanto, daquele que caracteriza a “Vieille chanson du jeine temps”, com sua rememoragio de um idilio sugerido, mas frustrado em seu nascedouro, (17) Obra completa, tomo II, p. 610. (18) Obra complera, tomo I, p. 619. Rev. Inst, Est, Bras., SP, 34:73-86, 1992 a3 Utilidade da circulagao literdria. Tanto o romance de Dumas como o poema de Hugo apontam, enquanto corporificagao intertextual, um elemento cultural e externo aos dois contos brasileiros: a cintilagao, as claras ou subterrinea, da literatura francesa (19), a refletir um gosto disseminado entre a populagao letrada, ao qual se acrescenta, em Missa do Galo, a nascente tradig&o ficcional brasileira (A moreninha ), mostrando a simbiose possivel entre eles. Tal resultado ji estava previsto no famosissimo “Instinto da nacionalidade" (20), no qual Machado reconhece a existéncia de um lastro literdrio brasileiro apenas nascente ese perguntaa respeito de umanacionalidade literdria suficientemente desenvolvida, capaz de representar uma tradigéo operante e suficiente, como cabedal a se recorrer e onde se reconhecer, possibilitando ao autor nacional se tornar independente do estrangeiro: “Reconhecido o instinto de nacionalidade que se manifesta nas obras destes tiltimos tempos, conviria examinar se possuimos todas as condigdes ¢ motivos histéricos de uma nacionalidade literdria; esta investigagdo (ponto de divergéncia entre literatos), além de superior as minhas forgas, daria em resultado levar-ine longe dos limites deste escrito."(21) (0 grifo & nosso). Shakespeare ¢ sua produgio baseada em temas estrangeiros constituem seu exemplo, comprovando que o futuro autor de Quincas Borba, ao arrepio das correntes que s6 consideravam como legitimamente nacional o que usava de temas brasileitos, compreendia a necessidade de a nossa literatura aproveitar © vastissimo legado da produgao ocidental, da qual a francesa cra a mais evidente no Brasil do século XIX. (19) A presenca da cultura literdria, cientfica ¢ filoséfica francesa entre nés, no séeulo XIX, é fato que dispensa provas, tal a sua evidéncia, No entanto, para desenvolvimento do tema, ¥. a respeito,a fina andlise de Antonio Candido em O Francés Instrumento de Desenvolvimento, In: ANTONIO CANDIDO, CARONI,Italo, LAUNAY,Michel ct alii. O francés instrumental : experiéncia da Universidade de Sto Paulo. Sio Paulo, Hemus, 1977, p. 9-17 (trad. de Diva B. Damato), ASSIS BARBOSA, Francisco. Aigins aspectos da influéncia francesa no Bra: GARRAUX. A.L. Bibliographic brésitienne, 2.04., Rio de Janeiro, 1 Olympio, 1962. p. XI- XXXVII, (Col. Documentos brasileiros,100), NIZZA DA SILVA, Maria Beattiz. Linguagem, cultura, saciedade; 0 Rio de Janeiro de 1808 a 1821, Tese mimcografada, Sdo Paulo, 1973 (Em livto Cuttura e saciedade no Rio de Janeiro (1808-1821). 2a d., Si Paulo, Editora Nacional, 1978 (Col. Brasiliana, 363), CRUZ COSTA, Joao, Comtribuigdo & historia das idéias no Brasil. 2.ed., Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 1967 (Col. Retratos do Brasit, 56), (20) Publicado em Nove Mfundo de Nova lerque (24 de muro de 1873). (21) Noticia da atual literatura brasileira Hastinto de nacionalidade. Em scu Obras. ‘canipletas, Rio de Janciro, Editora Nova Aguilar, 1986, tomo IIL, p. 802. Joao Alexandre Barbosa observa que noséo autor recusa a submissio da literatura 4 histéria, “enquanto mecanisma de puro e sini reflexo; dito de outro modo: estabélece uma faixa de liberdade, na qual entra a tradicdo litera estrangeira. C-BARBOSA, Jodo Alexandre. -{, paixdo critica. Em seu A teitura do intervato, Sio Paulo, Huminuras/ Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p, 43. Roberto Schwarz afirma que a célebre férmuta, constante do artigo, the “serviria como programa de trabalho V.o™Prefiicio” achado de clssis. S30 Paulo, Livraria Duas Cidades, 84 Rev. Insl. Est. Bras., SP, 34:73-85, 1992 Desse modo, o grande simile de amor ¢ aventura esta presente por meio da tradugo de um romance extremamente popular de Alexandre Dumas, assim como 0 simile da sugestdio amorosa frustrada esta no diélogo em surdina com outra obra francesa. A alta literatura brasileira, representada por Machado de Assis, reconhece em si o germe estrangciro, nele se espclha, mas, como mostramos, adapta-o as suas necessidades de plasmagio do nacional, ABSTRACT fn “Missa do Galo", by Machado de Assis, an intertextued relationship with Os tres mosqueteiros, by llexundre Dumas, and “Vieille chanson du jewne temps” (Les contemplations), by Victor Hugo is established, The text critically assimilates and inserts the french characteristics in new comextual, anomastic and imageuic relationships, in oposition to d'cirtagnan or in consonance with the Irie and masculine voice of the Victor Hugo poem. ‘This presence goes to mect with what exposed in “Notice from the actual brazilian Merature/Nationality instinct” (1873), where Machado de Assis asks himself about the possibility of national literary development, without the peculium legated from the foreign production, Key-words: Comparative firerature: Intertext; Literary relations Brazil- Franve: Machada de ssis/lexandre Dumas: Machado de Assis/Vicior Hugo. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 3: 73-86, 1992. 85

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