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Sis SOEUR SPP A a I RI LEILA EE I SAE int | cr r Ds $s A N D Le) ae are REPENSANDO A HISTORIA Sn rece tener ae na ol R = P iF N Ss rs Dy) D [) Vel mel =a NA HISTORIA DO BRASIL RAIZES HISTORICAS DO MACHISMO BRASILEIRO A MULHER NO IMAGINARIO SOCIAL “LUGAR DE MULHER E NA HISTORIA” MARY DEL PRIORE Ee A MULHER NA HISTORIA DO BRASIL MARY DEL PRIORE CONTEXT TEX tO A Autora no Contexto 2.1... ee ee eee 9 ‘GAROGRCZS soca SO MEER me 1 2. Imagens da Mulher ............- PRNRI gE mapa TS $. AS Grandes DESOMdeNsS) oc. cece ete esis qe eee ete en 30 4. Ser'Mae na Colonia worse ope sews L8Ce Peewee 46 5. Conclusdes Sugestées de Leitura 2... kee cence teenies 60 © Laitor no ContextO . 6 ccc ee cele cee cee ce ee eae 64 A AUTORA NO CONTEXTO A autora deste livro 6 carioca de nascimento, mas paulista de coragao. Para ela, fazer histéria 6 uma paixao, assim como um processo de enamoramento e prazer. do amor “Aa primeira vista" por um tema, a sensacdo de aventura de “cacar” documentos e descobrir, de forma de- tetivesca, tramas e dramas histdricos, até maravilhar-se com os cena- trios do passado ou encantar-se com palavras fora de uso, que se es- condem travessas, nas obras raras. Seu carinho pela matéria estende- se ao gosto pelos arquivos, os papéis velhos e amarelados, os manus- critos de letrinha mitida e embaralhada, e a tudo 6 mais que além de transportar o historiador no tempo como um tapete magico, o incentive a construir histdrias... Como boa libriana, interessa-se muitissimo per artes pldsticas e enxerga S&0 Paulo como uma grande tela de pintura abstrato-geomé- trica. Os fins de tarde de céu avermelhado contra o cinza dos arranha- céus € a fita brilhante do rio, encantam-na. Domadora do olhar para descobrir uma cidade mais bonita, gosta também de exercitar o corpo com esportes: joga golfe, pratica aerébica € equitacao. Doméstica, possui “os trés filhos mais bonitos do mundo” com quern gosta de compartilhar comida japonesa, livros de arte e video- clips. _ Doutoranda pela FFCHL/USP com uma tese sob a sondigao fe- minina no século XVIII paulista, vern discutindo varias questdes relati- vas 4 sexualidade e sociabilidade femininas em artigos publicadas e congressos. E também pesquisadora do Centro de Estudos de Demo- grafia Histérica da USP, onde, junto com colegas, desenvoive uma in- vestigagao de dar Agua na boca: uma histéria de crian¢a nas popula- g6es do passaco brasileiro. Aqui ela responde a algumas quest6es que lhe formulamos. 1. De algum tempo para ca os estudos sobre a mulher tém se amplia- do muito. Qual a razao disso? R. O aumento de estudos sobre a mulher apenas acompanha o mo- vimento mais amplo de apropriagao que as mulheres tém feito de esforces dentro da sociedade, da economia, da politica e intelec- tualidade, antes reservados aos homens. A mulher nado sé tem ocupado espaco em todas as areas de produ- Gao e saber, como o tem feito com eficiéncia, fator que traz mais luz as atividades que desenvolvem. Os estudos sobre mulher no Brasil refletem também o acompa- nhamento que se faz a bibliografia internacional, esta sim pioneira e de cerita forma engajada com movimentos intelectuais e politicos em determinado momento, Atualmente, vejo a produgao sobre a histéria da mulher tendo como mais nitido compromisso a paixdo de fazer a histéria de um seg- mento cujo passado nos é bastante desconhecido. Paixao de des- cobertas, pois... Existe um ponto de vista feminino da historia? . O ponto de vista feminino da histéria talvez esteja refletido na te- matica que historiadores optam por abordar... Subjetivismo? Talvez uma questaéo de intuigdo feminina: a histéria da sexualidade, do corpo feminino, da casa, do trabalho doméstico, etc... espelham as preocupagédes e realidades de qualquer mulher, ontem ou hoje, na sua vida cotidiana. Creio que o trunfo desta histdéria 6 o de reconciliar mulher com um novo conceito de tempo na histéria: o dia-a-dia... 3. De que forma vocé ajuda a repensar a hisidria com esie texto? R. Pretendo, obviamente, repensar a hisidria da mulher no Brasil. Procurando compreender como e quando se formaram conceitos ideais para a mulher em nosso pais, (refiro-me aos qualificativos t€o0 comumente invocados para rotular as mulheres: “mde”, “tonta’ e “puta’), 0 nosso objetivo é esvaziar o peso e a pecha que signi cam mais rétulos, permitindo 4 mulher exercer, na pratica, os seus papéis sociais, longe de preconceitos. Além de ajudar a mulher a repensar-se, procuro também suprir uma lacuna nos estudos sobre a histdria de nosso pais, onde os “bura- cos” sao muitos, € os historiadores, poucos... oh 1 NT R O DU ¢ A O Gostaria de reunir neste livro dois intimos desconhecidos. As fon- tes @ alguns novos objetos relativos ao estudo da mulher na histdéria do Brasil. Isto, porque o artesanato em que se constitui o fazer a histé- ria da mulher brasileira, tem sido costurado aqui e ali com alguns arti- gos, pequenos trabalhos e raras obras gerais, trazendo ao leitor a des- confortavel sensagdo de que mais exiguos do que as namativas sobre a mulher no passado, sdo os documentos que a tém como prota- gonista. A mulher na histéria do Grasil tem surgido reccrrentemente sob a luz de esteredtipos, dando-nos entadada ilusdo de imobilidade. Auto- sacrificada, submissa sexual e materialmente e reclusa com rigor, a imagem da mulher de elite opOem-se a promiscuidade e a lascivia da mulher de classe subalterna, pivO da miscigenagao e das relagdes in- ter-étnicas que justificaram por tanto tempo a falsa cordialidade entre colonizadores ¢ colonizados. Para romper com a silenciosa paisagem dos esterectipos femininos, fundada na negagao dos papéis histéricos representados por mulheres, faz-se necessdrio rastrear a informagao mais humilde, adivinhar a imagem mais apagada e reexaminar o dis- curso mais repetido. S6 assim podemos libertar as imagens femininas do olhar que sé as vé contraditérias, pois pensar o “por qué” © 0 “para qué” de uma histéria da mulher brasileira significa abandonar as pola- rizagoes, @ deixar emergir a membria de tensGes entre os papéis mas- culinos e femnininos, vislumbrando além de seus conflitos e comple- mentaridades, 0 tecido mesmo da narativa histérica. MULHER E HISTORIOGRAFIA “Mais do que quaique: quire, o alhar sobre as mulheres 6 mediaizado, & preciso decitar analureza desta: -ediacde,” Mictotie Perroi Desde que no século X!X a histdéria firmou-se como uma discipli- na cientifica, ela tem dado & mulher um espago cuidadosamente de- maicado pelas representagdes e ideais masculinos dos historiadores que, até bem pouco tempo, a preduziam com exclusividade. A primeira mirada sobre as mulheres, s¢ bem que obliqua e moralista, vem de Michelet, em 1859, no seu livto "La Femme”. O conhecido historiador francés compreendia o mavimento da histéria como uma resultante da relagao dos sexos, modulado pelo conflito latente entre a mulher/natu- reza e o homem/cultura. A mulher, sessalva Michelet, sd teria papel benéfico neste processo se dentro do casamento e enquanto cumprin- do o papel de mae. Ao fugir da bentazeja esfera da vida privada ou, ao usurpar © poder politico como faziam as adtilteras e as feiticeiras, elas tornavam-se um mal. Na segunda metade do sécuio XIX, 0 sexo individual, masculino ou feminino, tem importancia relativa para os historiadores, mas a questéo do matriarcado absorve o debate antropoldgico. Engels entao discutia Morgan ¢ Bachofen e escrevia “A origem da Familia...", subor- dinando a liberacdo da mulher a uma revolug¢do da propriedade priva- da. Suceceu-o o positivismo de Seignobos que rejeitava a histéria dos sexes © Go cotidiano, elegendo o povo e o Estado como objetos por exceléncia. Nos anes 1930, os Annailes de Marc Bloch e Lucien Fébvre inauguram © predominio do econémico e do social, através dos estu- dos de conjuntura e estrutura, mas n&o tevam em conta a dimensao sexual. Em estudos sobre a familia, mas esmagada sob o rigorismo de Le Play, ela é sufocada. Dos anos 20 aos 40, a histéria da mulher é contundida com feminismo ¢ origina algumas obras como as de Jules Puech e Leon Abensour, muito valtadas para a sociclogia. Neste inierim, o campo entdo inovader da Demoarafia Histérica pouco elucidava scbre as mulheres, consideradas téo-somente uma varidvel de reprodugao. Nao levando em conta as mulheres sds, ape- nas os casais, a Demografia Histérica ainda reafirmava o cardter patri- linear da Histéria ao utilizar unicamente os patronimicos masculinos para a reconstituigdc de familias. Foi sem duivida a partir do 1970, com a “Nouvelle Histoire” favo- recendo a expansao da Antropologia Histérica, que se colocou em de- bale o papel da familia e da sexualidade, ¢ com a Hisidéria das Men- talidades, voltada para pesquisas sobre o popular, que se inaugurou uma conjuntura mais aberta para se ouvir falar a mulher, Duas preocu- pacdes marcavam a produgéio que ora se iniciava: 1) Fazer emergir a .mulher no cendrio de uma histdria pouco preocupada com as diferengas sexuais; 2) Demonstrar a exploracao, a opressdo e a dominacdo que viti- mavam as mulheres. Trabalhos fortemente marcados por estas caracteristicas acaba- ram levando a historia da mulher a um isolamento intelectual, e a es- tudos circulares sem maior influéricia na disciplina histérica. Nestes ul- timos dez anos muito se aprendeu com os avangos historiograficos, e vale incorporar algumas li¢des ao nosso fazer a histéria da mulher no Brasil, A dialética, sempre utilicada, da dominacdo masculina versus opressao feminina, deve ser evitada por sua circularidade, e substitui- da pela andlise das mediacGes, no tempo e no espago, através das quais qualquer dominagao se exerce. Deve-se fugir da histéria que faz da mulher uma vitima, ou o sou inverso. As zonas de andlise mais produtivas para a historia da mulher sao as nebulosas, onde encon- tramos as mulheres andnimas, ou como diria Duby, “os murmurios fe- mininos que se perdem num coro tonitruante de homens que os sufocam”, Melhor co que tentar responder se as mulheres tinham poder, é tentar decodificar que poderes informais e estratégias elas detinham por tras da fic¢ao do poder masculino, ¢ como se articulavam a sua subordina¢ao e resisténcia. O estudo dos discursos normativos sobre a mulher deve ser estimulado quando levar em conta as praticas sociais, do contrério, tendo no homem o sujeito das falas, ¢ a mulher seu obje- to, corre-se o risco de fazer um retrato fora de foco do segmento feminino, Vale dizer, finalmente, que o territério Go feminino na histéria nao € um lugar sereno, cnc a mulher se iocomove sem riscos, e onde o confronto e o conflito nao imprirmmem suas mareas. A histéria da mulher é, antes de tudo, uma histéria de complementaridades sexuais, onde se interpenetram praticas sociais, discursos © representagées do uni- verso feminino como uma tema, intriga e teia. A histéria da mulher, que torou visivel o que estava esquecido ou mesmo desapercebido, iem no Brasil suas pioneiras. Miriam Morei- ra Leite, Maria Odila Silva Dias © Maria Beatriz Nizza da Silva marca- ram_a_producdo historocrafica com irabaihos notaveis © o ineditismo. das fontes com que ee A iconografia e a fotografia, os relatos de viajantes estrangsiics, os civis © criminais, a tadigéo cral, a documentagéo ci por estas brilhantes autoras diag- SE ERE ES SETS MULHER E HISTORIOGRAFIA "Mais do que qualquerautra, 9 othar sobre as mulheces & medial é precisa decitar a naturoza desta: ediacdo."” Michelle Perral Desde que no século XIX a histéria firmou-se corno uma discipli- na cientifica, ela tem dado a mulher um espago cuidadosamente de- marcado pelas representacGes e ideais masculinos dos historiadores que, até bem pouco tempo, a produziam com exclusividade. A primeira mirada sobre as mulheres, se bem que obliqua e moralista, vem de Michelet, em 1859, ro seu livro “La Femme”. O conhecido historiador francés compreendia o movimento da historia como uma resultante da relagao dos sexos, modulado pelo conflito latente entre a mulherfnatu- reza e o homem/cultura. A mulher, ressalva Michelet, sé teria papel benéfico neste processo se dentro do casamento e enquanto cumprin- do o pape! de mae. Ao fugir da benfazeja esfera da vida privada ou, ao usurpar 0 poder politico como faziam as adulteras e as feiticeiras, elas tomavam-se um mal. Na segunda metacde do século XIX, o sexo individual, masculino ou feminine, tem importancia relativa para os historiadores, mas a quest&o do matriareado absorve o debate antropaldgico. Engels entéo discutia Morgan e Bachofen e escrevia “A origem da Familia...", subor- dinando a liberagao da mulher a uma revolucdo da propriedade priva- da. Sucedeu-o 0 positivismio de Seignobos que rejeitava a histéria dos S@xOS © do cotidiano, elegendo o pova e o Estado coma objetos por exceléncia. Nos anos 1930, cs Annalies de Mare Bioch e Lucien Fébvre inauguram o predominio do econdmico e do social, através dos estu- cos de conjuntura e estrutura, mas néo levam em conta a dimensdo sexual. Em estudos sobre a familia, mas esmagada sob o rigorismo de Le Play, ela é sufocada. Dos anos 20 aos 40, a hisiéria da mulher & confundida com feminismo ¢ origina algumas obras como as de Jules Puech e Leon Abensour, muito voltadas para a sociciogia. Neste inicrim, o campo entao inovader da Demografia Histérica pouco elucidava sobre as mulheres, consideradas téo-somente uma varidvel de reprodugao. N3o levar.do em conta as mulheres sés, ape- nas 08 casais, a Demografia Historica ainda reafirmava o cardter patri- linear da Histéria ao utilizar unicamente os patronimicos masculinos para a reconstituigao de farnilias. Foi sem dtivida a partir de 1970, com a “Nouvelle Histoire” favo- recendo a expansao da Antropologia Histérica, que se colocou em de- bate o papel da familia ¢ da sexualidade, © ccm a Histéria das Men- talidades, voltada para pesquisas sobre o popular, que se inaugurou uma conjuntura mais aberta para se ouvir falar a mulher. Duas preocu- pag6es marcavam a producao que ora se iniciava: 1) Fazer emergir a .mulher no cendrio de uma histéria pouco preocupada com as diferengas sexuais; 2) Demonstrar a exploragdo, a opressdo e a dominagao que viti- mavam as mulheres. Trabalhos fortemente marcados por estas caracteristicas acaba- ram levando a histéria da mulher a um isolamento intelectual, e a es- tudos circulares sem maior influéncia na disciplina histérica. Nestes ul- timos dez anos muito se aprendeu com os avangos historiograficos, e vale incorporar algumas ligées ao rosso fazer a histéria da mulher no Brasil. A dialética, sempre utilizada, da dominacdo masculina versus opressdo feminina, deve ser evitada por sua circularidade, e substituil- da pela andlise das mediagoes, no tempo e no espaco, através das quais qualquer dominagao se exerce. Deve-se fugir da histéria que faz da mulher uma vitima, ou o seu inverso. As zonas de andlise mais produtivas para a histéria da mulher sao as nebulosas, onde encon- tramos as mulheres ariénimas, ou como diria Duby, “os murmurios fe- mininos que se perdem num coro tonitruante de homens que os sufocam”. Melhor do que tentar responder se as mulheres tinham poder, é tentar decodificar que poderes informais e estratégias elas detinham por tras da ficcdo do poder masculino, e como se articulavam a sua subordinagao e resisténcia. O estudo dos discursos normativos sobre a mulher deve ser estimulado quando levar em conta as praticas sociais, do contrério, tendo no hcmem o sujeito das falas, e a mulher seu obje- to, corre-se o risco de fazer um retrato fora de foco do segmento feminino. Vale dizer, finalmente, que o territério do feminino na histéria nao 6 um lugar sereno, once a mulher se iocomove sem riscos, e onde o confronto e o conflito nao imprirnem suas marcas. A histéria da mulher &, antes de tudo, uma histéria de complementaridades sexuais, onde se interpenetram praticas sociais, discursos e representagdes do uni- verso feminino como uma tama, intriga e teia. A histéria da mulher, que tornou visfvel o que estava esquecida ou mesmo desapercebido, tem no Brasil suas pioneiras. Miriam Morei- ra Leite, Maria Odila Silva Dias e Maria Beatriz Nizza da Silva marca- ram_a_producdo historiegrafica com trabalhos notaveis e o ineditismo das fontes com que lidaram. A iccnografia ea eae os relatos de viajantes estrange os civis © criminais, a tradigdo oral, a documentagao cic: foram por estas brilhantes autoras diag- nosticades e interpretacos, introduzindo-nos no mundo feminino da ca- sa, do trabalho, do casamento e da familia ao longo do século XIX. Para contribuir corn estes esforgos precursores, gostariamos de retroceder ao periodo colonial, desconhecido momento de génese de papéis femininos muito difundidos em nossa sociedade, A maternida- de, a piedade e a sexualidade, domesticada ou nao, constituiram-se em atitudes e hdbitos de assimilagao ou resisténcia 4 implantacao do sistema colonial, que convém analisar nas praticas do personagem feminino mais representativo entao: a branca pobre, a mulata e a ne- gra forra enquanto mae, devota e infratora. Controntar tais mulheres com o discurso erudito que se lhes é oferecido como padréo de com- portamento, parece-nos © primeiro passo a ser dado. a PT I ST TES 2 IMAGENS DA MULHER ‘a A mulher & muito apta oom a graca de Deus pata a vitude, 80 ndo romper as ters do Bem que Deus ihe deo.” Frei Luiz dos Anjos. 1626 AIGREJS © AS FILHAS DE EVA AS personalidades, tao diferenciadas, dos trabalhos de Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. concordam em reconhecer nas mulheres bra- Sileiras do periodo colonial o uso luxuriose do corpo. Desnudando os compos quentes e sensuais das escravas negras em constante intercurso sexual com seus senhores, Freyre descobre OS corpos marméreos, porque brancos e frios, das sinhds sem prazer. Sob © signo da dupla moral, corpos femininos de cores e situagées S0- ciais diversas fariam, segundo ele, o prazer ou a prole dos homens do Brasil colonia. Caio Prado, com o mesmo olhar dos viajantes do século XIX, as vé licenciosas e dissolutas. Fora do espago doméstico ou do eito, seriam “mulheres com facilidades de costumes", associadas as “mulheres submissas de ra¢as dominadas”, surdas aos deveres do ma- trimdnio e genitoras de imegularidade moral. Endossando os esteredti- pos, afirma que a prostituig¢ao era a forma de trabalho mais frequente. “Ste diagndstico tem uma longa trajetéria, pois € cam esta mesma cis- largada misoginia {ou machismo) que a Igre;a se debnuga sobre suas ovelhas, desde os primeiros anos de dominagao colonial. A importagao da metépole de um discurso moralizador sobre o uso dos corpos, instala-se na Terra de Santa Cruz de par com 0 desejo de cristianizagao e difusdo da fé catdlica, bem como com a ansia do sistema mercantil de constituir contingentes populacionais que habi- tassem as novas terras. A idéia de adestrar a sexualidade dentro do “talamo conjugal” decorre do interesse de fazer da familia o eixo irra- diador da moral crista. Mas eis que falta 4 mulher ideal para casar, e a Igreja vai dispender séculos de peroracao para formar, fora das elites, uma mentalidade de continéncia e castidade para mulheres para quem certas nogGes como virgindade, casamento e¢ monogamia eram situa- ¢6es de oportunidade e ocasiao, em contrapartida a realidade mais for- te: a das dificilimas condi¢ées materiais e inseguran¢a econémica na col6nia, que ditava regras e costumes prdprios. OQ discurso sobre o uso dos corpos femininos e seus prazeres, imposto de cima para baixo, sobretudo a partir da século XVII, expres- sa-sé através de uma apologia que lisonjeia a mulher para melhor submeté-la. A Reforma protestante e a Contra-Reforma catdlica, intro- duzindo mais austeridade nos costumes, ddo o tom severo dos discur- sos, € a mulher torna-se o alvo preferido dos pregadores que subiam ao pulpito para acusd-la de luxtiria. Com origem no Génesis, 0 mito da mulher voluptuosa e perversa atravessa com momentos de exaltagao os primeires séculos do cristianismo até o século XVII, periodo da ful- minagao eclesidstica contra 0 sexo. Uma abundante produgdo de “panegiricos” (obras elogiosas) en- cobria o pretexto de melhor domesticar a mulher dentro do casamento, para tal fim se fazia necessdrio eleger um modelo feminino de corpo obediente e recatado, e carnes tristes. Para louvar esta mulher, deter- minava-se com clareza 0 seu avesso: “... aS que estado sujeitas e muito apegadas a seus sentidos..." na descrigao do pregador frei Antonio de Padua, em 1783. Nestas, um manual de confisséo de 1794 ha de ad- moestar”... “o vo, 0 supérfluo, o desavergonhado adomo... seus enfei- tes enganosos, seus ungtientos clorosos é outros mil embelecos ¢ embustes que usam para chamar atengdo dos homens”. Queixando-se do que considera “provocacao intolerdvel", o confessor Manuel de Ar- ceniaga segue condenando “a nudez dos peitos... e as desculpas que aparentam cobri-los com gazes e panos transparentes, porque nado os ocultam nem cobrem, antes com estes enganos artificiosos, provocam, atraem e chamam mais atengao”. A necessidade de recato é uma re- gra. “Se alguma mulher se fardar com alvaiade ou outro enfeite para agradar a outros que nao séu marido, imponha-se-lhe trés anos de pe- niténcia”, declara ainda Arceniaga. Além de perseguir a exibigao de “seios e tetas”, que a Reforma ira associar a prostituigado, a Igreja vai ao encalgo da ostentagao cos pés femininos, pois que “espicagavam os aguilhées da carne”. “Que mulher nenhuma va as igrejas de saia tao alta que Ihe apa- regam os artelhos dos pés e com as saias a maneira de degraus de sepultura aparecendo a mais inferior, nova moda que com escdndalo de toda a modéstia e honestidade tem introduzido o deménio", reza a carta pastoral de D. Antonio de Toledo em 1773. Deseja-se fechar a mulher na armadura da aparéncia para que ela nado seja a imagem falaciosa de si mesma. A este modelo de de- sordem sensual contrapde-se a necessidade de recato que deve ser obedecida mesmo a forca. Num processo paulista de divércio em 1756, o juiz aconselha ao marido: "Fazendo a mulher o contrario de amar e respeitar o marido é permitido a este reger e aconselhar sua mulher, e ainda castigd-la mo- deradamente se merece...” Se o castigo nao for humano ministrada pelo marido, ele sera divino. A mulher que deseja escapar aos castigos celestiais ou tempo- rais deve estar enquadrada no casamenio, e nele “... deve estar sujeita ao seu marido... deve reverenciar-Ihe, querer-lhe e obsequiar-lhe. Deve inclinar-se ao séquito da virtude e com seu exemplo e paciéncia ga- nha-lo para Deus. Ndo deve fazer coisa alguma sem seu conselho. Deve abster-se de pompas e gastos supérfluos e usar de vestido ho- nesto conforme seu estado e condigaéo de crista”. (Manuel de Arceniaga). O autor da Instrugao as senhoras casadas para viverem em paz e quietacdo com seus maridos, obra de 1782, ainda emenda: “Quando o marido a corrigir de alguma coisa mostre-se-Ihe agradecida a seu bom afeto e receba a corregao com humildade”. Diogo de Paiva de Andrade, autor do século XVII, também faz eco As admoestagdes da Igreja quando aconselha em seu livro “O ca- samento Perfeito”: “A mulher nem ha de ver, nem ha de ser vista prin- cipalmente quando estiver muito enfeitada, porque ambas estas cau- sas costumam provocar desonestidade”. As preocupac6es com a pureza fisica e mental das mulheres ex- trapolavam os textos sacros e profanos e invadiam a midia mais efi- ciente dos tempos coloniais: 0 confessiondrio que assim como 0 ptlpi- to das igrejas em dias de oficio e festas religiosas irradiava o discurso normatizador dos corpos. O padre confessor entao perguntava a confitente: “Se pecou com tocamentos desonestos consigo ou com outrem? Se tem retratos, prendas e memdrias de quem ama lascivamente? Se falou palavras torpes com Animo lascivo? Se se ornou com animo de provoecar a outrem a luxdria?” O controle sobre o corpo feminino avan- Gava, e em nome do amor conjugal tao caro a Igreja, deitava-se nos No dbulo page para beijar-se um relicdrio, a expressdo da devo- ¢4o feminina, leitos ¢ redes com as mulheres casadas. "Acuso-me que com minha mulher tive varias vezes tatos, ésculos, amplexos e palavras torpes”, declara cabisbaixo um marido confitente. A Igreja ainda controlava e€ punia o coito interrompido, pois que sé admitia a cépula com finalidade de reproducao. Os manuais de confissdo indagam sobre a cépula de casados dentro da Igreja e outros lugares piiblicos, numa Clara mostra de que a nogéo de privacidade para o sexo, ainda ndo se tinha instaurado. E finalmente, proibe o acesso a mulheres menstrua- das, “pela imundicie... e dano que. podia causar a prole", como a lepra @ outras enfermidades. Sé nao se contagia de qualquer mal, a mulher exemplar “que paga ao marido que pede com instancias para aliviar o perigo da incontinéncia”. Mas sera certamente a constituigdo da familia, como eixo de di- fusao da fé catdlica, assim como o papel da mulher enquanto propa- gadora do catolicismo, que ira inspirar os pregadores coloniais. Insiste Arceniaga em 1724: “... seu principal cuidado deve ser instruir e educar os filhos cristamente, cuidar com diligéncia das coisas da casa, naéo sair dela sem necessidade nem sem permissao de seu marido, cujo amor deve ser superior a todos, depois de Deus”. Azeredo Coutinho, em 1798, embute neste discurso tarefas cons- trutivas para a mulher. Sua submissao passa a ser mais um valor a servigo do modelo feminino ideal. Nele, a educag&o confunde-se com domesticidade. Diz ele, “... aqueles que nao conhecem a grande in- fluéncia que as mulheres tém no bem ou no mal das sociedades, pa- rece que até nem querem que elas tenham alguma educagao. Mas isto é um engano, é um ero que tras o principio da ignorancia. Elas tém uma casa que govemar, um marido que fazer feliz e filhos que educar na virtude”, Nao sao, porém, apenas estes os corpos femininos ideais a ser- vigo da Igreja e do amor a Deus. Além dos pregadores ventriloquos que esvaziam a mulher de qualquer uso prazeroso do corpo, a literatu- ta laica confirma 0 modelo da mulher contida e obediente introduzindo, no entanto, uma contrapartida de seu companheiro. Adverte o autor do Casamento Perfeito: “Com que raz4o ou confianga poedera matar a sua mulher por uma afei¢do desordenada, quem se desordena em tantas e tao escandalosamente, sem temor de Deus nem vergonha dos ho- mens, nem emenda nas maldades nem intervalo nas torpezas”. Rui Gongalvez, em 1557, autor Dos privilégios e das prerrogati- vas que 0 género feminino tem por Direito comum e Ordenagdes do *Reyno, mais do que o género masculino, advoga sobre a fragilidade da carne feminina, “... na qual virtude de castidade o género feminino sempre foi igual com o masculino... se prova serem as mulheres tao excelentes nesta virtude e mais que o género masculino e da virtude ser tao herdica”. Diogo de Paiva de Andrade pondera em prol das mulheres: “Nunca convém. ao homem prudente dar 4 sua mulher liberdades de- masiadas... quer dizer, se ela se desconcertar por demasiada largueza de seu marido; nao merece ela o castigo, se nado ele". Os homens, se- gundo Paiva, sao suspeitos e “... porque pode haver homens de natu- teza t&o rebelde e contumazes que nao baste nenhum amor nem dil g&ncia para se darem por obrigados ao que suas mulheres Ihes mere- cem, tém elas mais precisa hecessidade de tirar primeiro que casem, por pessoa fiel e verdadeira, mui particulares informagées das vidas, costumes e inclinagGes e procedimentos de seus maridos... que as vir- tudes e os vicios dos homens andam mais na praga que os das mulhe- res”. (1630) Nao ha, no entanto, consenso dos autores eruditos sobre a posi- Gao da mulher. Um anénimo do século XVII sublinhava: “E o homem que deve mandar e a mulher somente criada para obedecer”. O Guia de casados, espetho da vida, insistia: “E a mulher o centro dos apeti- tes, desejosa de muitas cousas diz Catulo, e se o homem conviver com todos os seus desejos facilmente caira nos maiores precipicios...” O acordo epistolar entre autores laicos ou religiosos gira sempre em tomo das mesmas quest6es: o casamento como elemento de equilibrio social, ¢ dentro dele, a auséncia de paixGes, a abediéncia e a subordinagao da mulher. A Igreja, mais minuciosa, fabrica através dos manuais de confissdo um saber sobre a sexualidade feminina no pas- sado, pois nao capturar o mais intimo, o mais infimo dos gestos, signi- fica nao poder controla-lo nem puni-lo. A hipocrisia deste-sistema normativa — que quer eleger um mo- delo ideal de mulher para implantar, com sucesso, a familia e a fé ca- tdlica na colénia, — explicita-se claramente nos processos que desven- dam as formas de contravencao as leis civis e eclesidsticas. Quao. tantes da pregacao erudita ¢ religiosa nado se encontravam as mulatas @ negras forras € as brancas empobrecjdas, todas mulheres livres a lu- tar contra_as_dificuldades do cotidiano7jAo discurso monocoraio sobre “seus Comportamentos, ou 6S que deveriam ter, elas respondiam com praticas tidas por desabusadas, mas apenas resultantes de suas con- digdes materiais de vida. Ao “publico escandalo” de tantos concubina- tos e mancebias somavam-se filhos tidos “por fragilidade da carne humana”. fora de qualquer lago conjugal. A matemidade, além de sen- timento, cuidados com filhos e trabalho de parto, era um lacgo que unia maes e filhas num mesmo oficio: o da prostituigao, com a béngao da pobreza e a conivéncia de pais e maridos. Com o félego das profundezas, as mulheres irdo buscar na pre- ga¢ao religiosa que aparentemente Ihes vitima e cerceia, os mecanis- mos de resisténcia a exploragao e ao-sofrimento. Ardilosas, recorem, quando Ihes convém, aos tribunais eclesidsticos para separarem-se de maridos que as brutalizam ou Ihes dissipam os bens. Através de pro- cessos por rompimento de esponsais, resgatam noivos, namorados e amantes fuj6es, qué com promessas de casamento haviam “levado de suas virgindades". Ao modelo exclusivo de amor matrimonial e as de- mandas tiranicas da Igreja sobre o uso de seus corpos, respondem com adultérios que pontilham aqui e ali, os processos de divdrcios. E através dos testamentas revelam as outras faces da devogao e da ma- ternidade: o horror 4s penas do infemo, e simultaneamente, a confis- s4o de filhos bastardos. s Descoladas, portanto, de uma prédica que as fantasiava virtuosas e puras. as mulheres coloniais sao mais filhas de Eva do que de Maria; mergulhadas nas asperezas do trabalho doméstico, ou nos oficios de rua e da lavoura, acabam por elaborar, mesmo enquanto rascunhos dos modelos eruditos, regras e éticas proprias. AS PROSTITUTAS NO BRASIL COLONIAL “As mulfieres por se empregarem e por falia dé meios para se sustentarem, se prosiituem...” Carta do Marqués de Lavradioem 1778 Em virtude das enormes distancias entre os discutsos e as prati- ©as sobre o uso dos corpos, e estando articuladas com a sexualidade nao domesticada e com a luta das autoridades civis e eclesidsticas pa- fa transformar o “talamo conjugal”, na unica forma de sexo licito, as prostitutas do Brasil colonial foram tteis para a construgao e valoriza- gao do seu oposto: a mulher pura, identificada com a Virgem Maria e distante da sexualidade transgressora. Pacificadoras .da violéncia se- xual contra as donzelas casadouras e do desejo que pusesse em risco a fidelidade as esposas, as prostitutas, aos olhos da Igreja, eram a Sal- vaguarda do casamento modemo. Para os tedlogos, a prostituigao se constitula num crime menor do que o adultério ou a sodomia, pois desde o século Xill que textos de S80 Tomas de Aquino e Santo Agostinho justificam que “a socie- dade carecia tanto de bordéis quanto necessitava de cloacas”. A vela- da cumplicidade com a prostituigao convivia com as preocupagdes contra os concubinarios, e com a idéia de que uma boa ordem familiar dependia de um meretricio ordenado em fun¢cdo dos celibatarios. Es- tes, portanto, deveriam pacificar seu 4nimos nos bordéis com muiheres “publicas € postas a ganho", cuja sexualidade era uma mercadoria que caracterizasse o seu oficio. A prostituicéo, embora aparentemente transgressora, constituia- se numa pratica a servico da ordem sécio-espiritual no mundo moder- no. No Brasil, no entanto, as caracteristicas que a tornavam um “mal necessario”, vao misturar-se com outras praticas consideradas pelas autoridades como transgressoras, fazendo com que a Igreja enxergas- sé, em cada mulher que infringisse as normas, uma prostituta em po- tencial. Como nao se isolava as prostitutas em “putarias e mancebias”, nem se as cobria com véus como era uso na metrépole, na colénia os limites entre os comportamentos tidos por desviantes e a prostituicdo eram ténues. Em Minas Gerais por exemplo, as Devassas realizadas no século XVIII rotulavam como “mal procedidas” e “meretrizes” as mulheres com formas nao ortodoxas de relacdes extraconjugais. Sao denuncia- das como prostitutas, mulheres amasiadas, separadas ou mesmo ca- Sadas; e seus maridos ou amantes como prestando-se A alcovitice ou lenocinio por pobreza ou velhice. Por maiores rendimentos os extre- mos da sociedade da mineragao se tocavam: senhores exploravam suas escravas e maes exploravam filhas, sem qualquer constrangimen- to sendo aquele dado pela miséria e pela fome. “Nao ha cousa como ser mulher dama, que sempre tem duas patacas na algibeira”, diz Emerenciana numa Devassa. O universo do meretricio, “desenvoltura”, ou “desonestidade” ain- da se caracterizava na col6nia por passar longe dos esforcos metropo- litanos de conter 0 nascimento de mesticos, que tanto afligia as auto- tidades. Mais do que perseguidas por seu oficio, as meretrizes como as encontramos nos processos do século XVIII, sao perigosas por en- .géndrarem uma prole ilegitima, pois concebida fora do casamento, e miscigenada, porque contrariava o ideal da “pureza de sanque” tao ca- ro aos colonizadores. Em Minas Gerais e Sao Paulo, as “casas de alcouce”, espaco por exceléncia da meretriz, foram numerosas e exerciam a funcao simulta- nea de venda de comidas ¢ bebidas. Confundiam-se mais adiante com os “zungus” ou “casas de posses” que as libertos e forros alugavam no Rio de Janeiro para exercer a fornicagao. Ao sabor de “galhofas, batuques e saraus”, o meretricio somava, além da pobreza, a espontaneidade e alegria dos encontros marcados fora da rotina exaustiva do trabalho. Nao seriam as ‘casas de alcouce” espacos onde se desenvolveria uma sexualidade atipica, para fugir da austeridade pregada pela Igreja dentro do casamento? Um momento de descontracdo em meio 4 rotna exaustiva do trabatho. Na Bahia em 1700, 0 jesuita Jorge Benci ja observava as mulhe- res-mercadoria que se ofereciam aos olhares masculinos, ¢ descreve- as “adornadas em holandas, telas, primaveras e rendagens em ouro”, além das “folhagens da vaidade tirada por fruto e ocasiao do seu pe- cado”. Em Minas, um bando de 1733 critica as escravas prostitutas por “andarem com cadeiras e serpentinas acompanhadas de escravos, e se atrevem irreverentemente a entrarem na casa de Deus com vesti- dos ricos e pompas, e totalmente alheias a sua condi¢ao...". Vestidos estes “cortacios na oficina do Diabo”, concluiria o queixoso Benci. A prostituigao de escravas era tao comum na col6énia, que para Nao terem suas imagens contaminadas, nas primeiras décadas do. século XIX, as senhoras tomavam o especial cuidado de esclarecer nos recenseamentos, que “viviam da honesta subsisténcia do jornal de seus escravos”. Apesar de condescendente sobre a “fornicagdo simples”, dentro do casamento, a Igreja inaugura um discurso médico sobre os corpos, para combater os excessos da carne. Para isto, cria o conceito amplo de “luxuria” que teria que dar conta de tudo que nao fosse o coito para a reprodugao. Associado as “luxuriosas e lascivas”, o modelo da prosti- tuta enquanto mulher venal surge no quadro da polariza¢ao entre vida conjugal e vida extraconjugal. A primeira, “boa”, a segunda, “ma e pe- caminosa”. As esposas, pudicas e castas, as meretrizes um mal obscu- ro e tenebroso. Em 1732, Raphael Bluteau esclarecia no seu Vocabulario Portu- guez e Latino: Pecam as meretrizes contra a natureza porque fazem venal a formosura que a prépria natureza Ihes deu. Ofendem a si pré- prias, feitas alvo de toda a impudicia ¢ prejudicam a patria porque or- dinariamente se fazem estéreis e se sao fecundas dao origem a uma ignominiosa posteridade”. Com a mesma preocupacéo do autor do Casamento Perfeito, que associa adornos 4 devassiddo, Bluteau tam- bém percebe na beleza algo transgressivo e por isso revoluciondrio. A esterilidade, invocada a seguir no seu discurso, é negativa pois contra- ria Os pressupostos oficiais de aumentar o contingente branco e domi- nador para as tarefas da colonizagao. A ilegitimidade, por sua vez, compromete a ordem do Estado metropolitano na medida em que o equilibrio da dominagao colonial pode ser quebrado pelo incremento de “bastardos” e mesticos, colocados pelo prdprio sistema, nas fim- brias da marginalidade social. Prossegue Bluteau: “A meretriz é um composto monstruoso; olhos de serpente, m4os de harpia, aspecto de Medusa, lingua de ‘aspide, riso sardénico, lagrimas de crocodilo, cora- ¢ao de furia, voz de sereia, atrevida e temerdria acomete os perigos, incontinenti e lasciva se deleita nos vicios, impia e sacrilega dedica ao apetite os sentidos que havia de consagrar a Deus; vive de artificios e mata com enganos; foge para que a persigam; peleja para ser vencida, nega para ser mais desejada; se a tocares se dissolvera e deixara 0 chao encoberto de impudicas cinzas...”. Tao sedutora quanto aterradora, esta 6 a imagem que invadira © imaginario erudito dos pregadores do século XVIII, alheios contudo as “velhacarias e manganagens’”, atributos mais prosaicos das prostitu- tas brasileiras. Os manuais de confissao como o de Arceniaga, previ- nem em 1794 os confitentes, contra “as mulheres profanas, que se apresentam nas ruas, nos-passeios, nas visitas com trajes indecentes e desonestos... para que as vejam com todo adomo e compostura que

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