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Ba praszaoireHt Um lugar de contrastes, De um lado, exuberancia, magia, sons e sa- bores inebriantes. De outro, miséria, violencia, epidemias, guerras, tira: nia, A Africa sempre serviu de inspi- ragao para filmes livros que ficaram na meméria de varias gerasdes. Mas ainda hé muito o que dizer —eo que aprender ~ sobre esse continente. Em A Africa explicada aos meus fi- Ihws, 0 hiistoriador Alberto da Costa ¢ Silva nos revela os segredos € os detalhes do passado dessa terra, de ‘onde veio boa parte dos nossos an- cestrais, O autor nos mostra m0 somente por que a Africa é fasci- nante, mas também por que nossa trajetdria esté intimamente ligada 20 seu povo. Nao fomos influenciados apenas pelos seus costumes, sua re- ligiao e suas diversas linguas; herda- ‘mos também garra e alegria. Simples e abrangente, A Africa ex- plicada aos meus flhos & uma leitura para jovens de todas as idades. Es- sencial para quem quer desvendar os mistérios e os fascinios desse continente, Outros titulos da colegao: O racismo explicado aos meus filhos, de Nei Lopes A histéria do Brasil explicada aos meus filhos, de Isabel Lustosa A Idade Média explicada aos meus flhos, de Jacques Le Goff 0 séeulo XX explicado aos meus filhos, de Marc Ferro (0 teatro explicado aos meus filtes, de Barbara Heliodora ALBERTO DA GOSTA E SILVA A Africa explicada aos meus filhos &, £ 2 ve anes BP Octo ase %y & “ny sav Copyright © 2008 por Alberto da Costa e Silva PROJETO GRAFICO F CAPA Mariana Newlands ASSISTENTE DE DESIGN Amanda Newlands COPIDESQUE Rebeca Bolite REVISRO ‘Tals Monteiro Dario Nascimento PRODUGKO EDITORIAL Juliana Romeiro CIP. Brasil. Catalogagso-na fonte, Sindicato Nacional dos Fditores de Livros, Ry ee Ss78a__ Sila, Alberto da Cotta e, 2931+ } "A Afsica expicada aos meus filhos / Alberto da Costs e Siva I — Rio de Janeiro: Agi, 2008. (Bxplcado aos meus fihos) ISBN g78-85-220-0897-1 +. Africa — Historia — Literatura infantojuvenl, Titulo I UL Série, ep: 960 08-2800 DU: 94(6) OF 1 Te o7esaszt | Aer Todos ot direitos reservados & [AGIR EDITORA LTDA. — Uma empresa Ediouro Publicagies S.A. asa Nova Jerasalém, 245 — CEP 2104-285 — Bonsucesso — Rio de Janciro —RJ ‘Tel: Qt) 3882-8200 fa: (21) 3862-8212/8813 0 titulo deste livro deveria ser A Aftica explicada aos filhos dos ‘meus filhos. Aos meus netos, portanto. A Isabel, primeira e tinica, a Bruno, Anténio Pedro, Alberto, Jodo Marcelo, Miguel e Filipe, ‘que pedirio a seus pais que continuem com essas conversas € Ihes contem as suas experiéncias afticanas, para acrescentar gra- ae cor ao que aqui vai escrito. Sumario PRIMEIRA CONVERSA, 9 SEGUNDA CONVERSA, 21 TERCEIRA CONVERSA, 35 QUARTA CONVERSA, 53 Quinta conversa, 67 SuxTA CONVERSA, 83 SEr1M6A CONVERSA, 101 OMTAVA CONVERSA, 115 Noa CONVERSA, 133 Décraa conversa, 147 Leituras complementares, 158 Nos filmes, nas histérias em quadrinhos, nos seriados de TV e nos romances, a Africa é sempre um continente misterioso e magico, onde sf possiveis todas as aventuras. A imagem que nos transmitem diariamente os jornais e os noticidrios de rédio e televisio é outra: a de uma parte do mundo assolada por secas, fomes, epidemsias, guer- ras ¢ tiranos. Uma vistio nfio desmente a outra, ambas 0 incompletas. Se uma regio da Africa foi atacada por nuvens de gafanhotos que devoraram todas as plantagoes, e nela hd fome, nas outras a colheita se fez normalmente, os celeitos esto repletos e hi abun- dincia de comida, Se em determinado lugar hi uma feroz Iuta armada, noutros as criancas vao regularmente a escola, de roupa limpa e sapatos lustrados. F a vida familiar transcorre niormal- mente, sem faltar alegria. Todos trabalham e produzem. A Africa é um continente enorme, com uma grande diversi- dade geogrifica. Nela hi de tudo: altas montarihas — algumas, como Kilimanjaro, com os picos permanentemente cobertos de neve; grandes desertos, como o Saara; florestas que parecem sera firm, como a do Congo: grandes extensées de matas baixas de estepes (nome que se da a Areas cobertas por capim ¢ outras plantas rasteiras);€ zonas que estdo sempre alagadas. Cerca de metade do continente é formada, porém, por savanas, uma pai- 2 A Africa explicada aos meus filhos sagem na qual o relvado ¢ interrompido por arvores baixas afas- tadas umas das outras. Numa regio, faz (rio na maior parte do ano. Noutra, predomina o calor timido. E noutras, ainda, o calor seco ou a absoluta falta de umidade caracteristica do deserto, Nas xregides costeiras do norte do continente e na parte meridional da Africa do Sul, o clima 6 temperado, com as quatro estagdes bem definidas, como na Europa. Por quase todo lado, a agdo do homem, durante séculos, al- terou a paisagem, com rocas e plantacbes, 0 pastoreio do gado, caminhos, aldeias e cidades. E também com vegetais trazidos de outros continent acana-de-acicar ea cebola. Das Américas, sobretudo do Brasil, a mandioca, o milho, a batata-doce, o amendoim, 0 caju eo ananis. © milho ea mandioca difundiram-se de tal modo que competem, Da Asia vieram o limao, a berinjela, a manga, ‘em muitos lugares, com os alimentos basicos tradicionais, como © arroz nas duas Guinés, o sorgo e os diferentes tipos de painco ou milhete nas regides de savana, o inhame na Nigéria, ou a ba- nana em Uganda No entanto, « primeira imagem que nos vem & mente, quando falamos de Africa, € a de uma floresta escura, que a luz do sol niio atravessa, e cheia de insetos ¢ de animais perigosos. Que niio deixam de exist. A fauna africana 6, als, riquissi- ‘ma, Em nenhum outro continente ha tantas espécies de grandes animais e em tao considervel nitmero, mas € nas si _tnaiot parte deles se encontra. LA viven os gran 3 © leo, 0 leopardo, o guepardo ou chita, a hiena, o rinoceronte, a zebra, a girafa, o bifalo e os varios tipos de antilopes, cada qual Alberto da Coste « Silva 3 mais belo e dgil do que o outro: o elande, o cudo, a impala, a pa- lance, o gu, osint-sim, oihscose, o guelengue eas mumeroses espécies de gazelas. Sao muitas, muitissimaS,2s aves Rntre elas, ce destacando a avestruz, a cegorha, o flamingo, 0 pelicano € a 4guia-pesqueira. Nas florestas,os grandes animais sao menos rmumerosos: a pantera, 0 crocodilo, o porco selvagem, 0 gorila € 0 chimpanzé, Nelas, predominam os passaras, os répteis, os peque- nos mamifferos que vivem em érvores, 0s insetos € os vermes. ‘Mas 0s filmes no mostram nas florestas animais enormes, como o clefiante ¢ 0 hipopstamo? E verdade. O elefante vive tanto na floresta quanto nas sava- nas. E 0 hipopétamo, onde haja rios e lagoas. A crescente deman- da por marfim na Asia ena Europa, desde a Idade Média, reduziu muito o némero desses dois animais —o dente do hipopétamo cera to apreciado quanto a presa do elefante —, sobretudo depois da introducio das armas de fogo pelos europeus. A casa preda: toria fez enormes estragos entre outros mamiferos, felizmente hoje protegidos em grandes reservas onde s6 se permite 0 uso das maquinas fotogréficas e das filmadoras. Na india, o elefante é usado no transporte e na guerra. O mesmo aconteceu na Africa? 7 Que se saiba, somente na Antiguidade, em Cartago, Axum € Méroe. Cartago disputou com Roma, nos séculos IIT ¢ I a.C., a supremacia no Mediterraneo. O reino de Axum, na atual Etiépia, jd era importante no primeiro século da era cristd, e 0 de Méroe, onde hoje é a Repiiblica do Sudao, desde o século II]. Mas nem a 4 A Africe explicada aos meus filhes India, nem Cartago, nem Axum, nem Méroe domestic _fante, pois este ndo era gerad i “era capturado ainda jovem, domado e treinado. ele em criado em catiyeiro. O animal © Deforma Permanente, a Afticas 86 domesticou dois de seus ani- seu servigo: obo, o cairo, o cavalo, ocamele, 0 poro, acaba agp Nio consegaiu, para fcar num exemplo, sla a zebra ou atria um carro, Os europeus tentaram fazer isso no século XIX, e foi uum malogro completo: a zebra revelouse ndo s6 indomesticsve, amas também indamdvel, como, de resto, os outros mamiferos do continente até mesmo 0 fbex, uma espécie de cabra selvagem existente na Etiépia, Os afticanos conseguiram, é certo, ter animais selvagens em cativeiro e até crié-los e amansé-los. Os neguses ou reis da Abissinia ou Ftiépia, até quase os nossos dias, criavam leses para exibi-los como simbolo de poder. O rei etiope, nas gran- des cerim6nias, apresentava-se aos seus stiditos ¢ aos emissdrios estrangeiros ladeado por dois ledes seguros por servicais. Eu estudei as chamadas Guerras Piinicas na escola. Nunca, po- rém, pensei em Cartago como uma poténcia africana, e sim, como um pats criado pelos fentcios no mar Mediterraneo. Comecou, de fato, como uma colonia fenicia, e era movida Por seus interesses no Mediterraneo, mas ficava na Africa, Na Africa do Norte. Para ser mais preciso, préxima a atual cidade de ‘Ténis, naquela faixa de terras férteis e de clima temperado que se estende do Marrocos ao canal de Suez e esta separada do resto da Africa pelo deserto do Saara. Alberto do Costa e Silva 5 Ease deserto s6 passou a ser atravessado regularmente pelos homens depois que os seus habitantes, os berberes, comevaram a séculos da era crista. Veloz, capaz utilizar o camelo, nos primeitos s de ficar sem agua durante dez a 15 dias, com cascos esparramados que pisam bem tanto a areia fofa quanto o chao de peda do deser- to, podendo suportar cargas de 150 a 200 quilos, 0 camelo de uma s6 corcova ou dromedaio deu as tribos do deserto a possibilidade™ de fazer o comércio entre as duas margens do o rillitarmaente os ofsis, os_pocos, as pastagens ralas, as minas as de sal e as rotas que percorreriam as caravanas, Estas eram poucas e no chegavam a aproximar permanentemente as duas margens do deserto, Por isso, aquela parte do mundo que os arabes viriam. a chamar de Bilad al-Sudan, ou Terra dos Negros, continuo por muito tempo quase isolada do norte do continente. E seré essa Africa ao sul do Saara 0 tema de nossas conversas. rio Nilo ndo contribuiu para aprosximar a Africa do Norte do resto do continente? Nao foi uma espécie de corredor? Certamente, foi. Mas — atengdo! — nio era um caminho nada facil, pois é interrompido seis vezes por grandes cataratas. E mais, 20 sul, hé outro sério obstécuilo & navegacio. Onde o Bahr-el-Ghazal ou “rio das Gazelas", proveniente do oeste, se junta ao chamado ‘Nilo das Montanhas, que desce dos Grandes Lagos, para formar ‘© Nilo Branco, estende-se o chamado Sudd. A palavra Sudd sig- nifica “barragemt’ e se aplica a uma vasta érea coberta por uma vegetagio flutuante que muda constantemente de formato € € t€0 densa que as canoas 86 passam por ela com enorme esforso de seus tripulantes. 16 A Africa explicada aos meus filhos Apesar dessas dificuldades, houve, desde os tempos mais an- tigos, contatos, ao longo do Nilo e de seus afluentes, entre os egipcios € os povos vizinhos, sendo muitas vezes dificil dizer se determinado costume, idéia ou objeto se difundit do Egito para outras partes da Africa ou se teve origem ao sul do Saara e dali se ropagou para o pais dos faraés. Os africanos que vive ao norte do Saara sao diferentes dos que vive ao sul? 4 __ Of due viver ao norte so predominantemente brancos, €os que vivem ao sul, negros. Mas estes também sao diversos entre si, Um amara da Eti6pia ¢ tio distinto de um ambundo de Angola quanto, na Europa, um escandinavo de um andaluz. E um jalofo do Senegal é diferente de um xona de Zimbabué como um musso de um siciliano. \ Na regio meridional do continente, hé um complicador: os chamados coisas, que compreendem os bosquimanos e os ho- tentotes. So povos baixos,/pardo-amarelados'com face e natiz achatados, olhos estreitos como os dos chineses, cabelos que de ‘Go encarapinhados mais parecem um gorro feito com graos de pimenta-do-reino, e falam Iinguas que possuem cliques ou esta- ‘Tidos com valor de consoantes. Os coissis ocupavam, no passado, a maior parte do sul da Aftica, mas foram sendo expulsos para as areas semidesérticas e desérticas{ primeiro pelos negros ¢, de- pois, pelos colonizadores brancos. ‘A Africa € riquissima de Iinguas e culturas. Falam-se no con- tinente mais de mil idiomas. Mais de dois mil, segundo alguns estudiosos, Algumas dessas linguas, como o haucé e 0 suaili, si0 Alberto de Coste ¢ Silva ” faladas por dezenas de milhdes de pessoas € numa érea geogré- fica bem extensa. Outras, por uns poucos milhares. Numa area onde predomina determinado idioma, pode haver pequenos bol- s6es de outro, Ou de outros. Muitas vezes dois grupos vizinhos se ‘expressam em linguas inteiramente diferentes. E podem ter valo- res e maneiras de viver também distintos. Ou, ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes. Ou até conflitantes. Vocé pode nos dar um exemplo? Posso, A mais oriental das cidadezinbas iorubis fica a pouco mais de uma centena de quilémetros da mais ocidental das al- deias ibos, na Nigéria. Entre os iorubis, o nascimento de gémeos é celebrado como um acontecimento positive e a mae é tida como favorecida pelas divindades. Jé entre os ibos, os gémeos eram, no passado, considerados uma abominacZo e abandonados na floresta, enquanto a mie tinha de se submeter a ceriménias de purificacdo. E nao param ai as oposigdes ¢ as dessemelhangas entre os dois povos. No plano politico, enquanto os iorubés se organizavam em cidades-estados, com um rei sagrado, entre os, ibos predominava a auséncia de Estado, com as comunidades re- gidas pelos conselhos de anciées. Nao s6 as culturas diferem de povo para povo, como se fo- ram modificando ao longo dos séculos. Hé, contudo, certos tra- 0s comuns a todas elas, de modo que se pode falar de uma cultura africana como nos referimos a uma cultura européia, ainda que sejam to distintos os modos de vida em Portugal e na Finlandia, 8 A Africa explicada aos meus filhos ‘Nao sito também diferentes 0s costumes dos pastorese os dos agri- cultores? Claro que sim. Alguns povos africanos, como os pigmeus das florestas do Congo e os sis ou bosquimanos das areas semi-dri- das da Africa do Sul, vivem da caca e da coleta de raizes, frutas e mel. Outros, como os c6is ou hotentotes, os fulas ¢ os massais, da criagdo de gado. A maioria retira o sustento do cultivo da terra. ‘Mas os pastores, enquanto conduzem o gado de uma pastagem para outra, colhem os frutos das drvores e o mel das colmeias que encontram no caminho, e suas mulheres podem cultivar ce- reais em pequenos rogados. Os lavradores no s6 pescam, cagam € recolhem o que lhes dé naturalmente a terra, como também podem possuir cabras, ovelhas e bois. Provavelmente, havia também uma grande diversidade de organi- -zagdes politicas na Africa. E verdade, Alguns estados estendiam-se por amplos territ6- tos e exam formados por virias nagbes, sob o comando de uma delas — ea esses estados chamamos impérios. Havia reinos me- nores, com uma ou mais nagdes. E outros ainda menores, que podemos comparar as cidades-estados da Grécia antiga. Essas varias entidades politicas eram compostas geralmente de uma familia real, ou de duas ou mais familias reais que se revezavam no poder ou o disputavam pelo voto ou pelas armas. O rei coman- dava uma nobreza privilegiada e com essa minoria compartia 0 mando sobre os homens comuns ¢ 0s escravos. Emialgumassotiedades, os ferreitds, 0s ourives, 6s scion, asqleiras 05 Bardos fokmavam.castas :profidsiona Chaivizmos Alberto da Costa ¢ Silva 9 esses grupos de castas porque scus membros se casavam entue> sie eram desprezados pelas demais pessoas. Bram desprezados mas, éo mesmo cena idos, porque tinham o poder de alte- rar a natureza, Os ferreiros transformavam o minério em facas,~ pontas de langa ¢ enxadas. Os escultores cortavam num pedaso de madeira a imagem de um ancestral. As oleiras faziam com 0 barro potes ¢ gamelas. E os bardos, dielis ou griots, que eram mi sicos, poetas e historiadores, davam uma fung0 nova as palavras quando compunham versos, ‘Mas havia poves, como 0s ibos, que, como voce disse, nite pos- sutarn reis. Nem reis, nem chefes permanentes, nem o que chamamos de estados. A unidade social era a aldeia ou um pequeno agru- pamento de aldeias, onde as decisdes eram tomadas por um conselho dos chefes das familias que ali viviam e impostas, em ‘muitos casos, pelas associagbes de poder (as chamadas socieda- des secretas), cujos membros usavam miéscaras assustadoras € ‘mantinham a ordem, castigando os que se desviavam das nor- mas costumeiras. ‘A maioria das sociedades africanas era altamente hierarquiza- da. Nobres, plebeus, estrangeiros, escravos, homens e mulheres, cada qual conhecia o seu lugar — nele ficavam desde o nasci- ‘mento ¢, em muitos povos, até aps a morte, pois, de acordo com suas crencas, 0 morto, se era aristocrata, continuava, no além, aristocrata, € 0 escravo, escravo. Mas havia também sociedades que se regiam pelo mérito, nas quais o poder do sangue se res- tringia as estirpes reais, e tanto um plebeu quanto um escravo 2» 4 Africa explicada ace meus filhos podiam ascender as mais altas fungdes do estado, fama e & opu- Jéncia. Em outras, era a riqueza que determinava a posi¢do social de cada individuo. E em outras, ainda, nao havia diferengas, s6 se distinguindo dos demais os idosos que formavam o conselho dos ancides e, em caso de guerra, momentaneamente, aqueles tidos por mais capazes para conduzir a luta, Segunda conversa Ontem estévamos falando das organizagdes politicas africanas. Quando surgiram os primeiros reinos na Africa? Nao sabemos. H& mais de 5 mil anos, com certeza, pois data dessa época a uniao dos dois grandes estados que havia no Egi- to. Por volta de 2000 a.C., os egipcios se referiam ao reino de Cuxe, na Nubia, E 0 reino de Axum jé existia no primei- ro século da era crista. Nao sé os reinos surgiram muito cedo na Africa, como alguns deles perduraram durante séculos. Pode-se escrever uma histéria politica com duragio de muitos séculos nao s6 do Egito, mas também de outros paises. A da Etiopia, por exemplo, alonga-se desde Axum até a atual repd- blica, com uma tinica interrupglo da independéncia, durante © dominio colonial da Italia, que durou apenas cerca de cinco anos, de 1936 a 1941. O reino do Benim, que ainda hoje existe, integrado a Nigéria, tem mais de oito séculos de existéncia. Assim como os emirados de Kano, Zaria e Katsina, também na Nigéria. Zanzibar foi um estado independente durante mais de 700 anos. J& outros, embora tenham sido poderosos, tiveram pouca duragi reino angimi de Gaza, em Mocambique, du- rou pouco mais de Go anos, e o sultanato fula de Macina, no atual Mali, apenas 44. Py A Africa explicate os meus filhor Desses estados antigos, quais foram os mais famosos? Os que mais alimentaram a imaginagdo dos Arabes e, mais tarde, dos europeus foram Gana ¢ Mali. Esses dois pafses ndo exister até hoje? Nio so os mesmos, embora o antigo Mali se localizasse em parte na atual Repablica do Mali. O antigo reino de Gana tinha 0 seu nticleo provavelmente no sudeste da atual Mauritinia. Quando a colonia briténica Costa do Ouro, que assim se cha- mava porque era produtora desse metal, ficou independente, em 1957, jé adotara como novo nome o de Gana, carregado de simbologia ¢ prestigio, pois era o nome de um reino que entrou na historia como grande fonte de ouro. O Sudao francés tam- bém foi buscar no passado o seu novo nome, Mali. Com isso, esses estados recém-independentes procuravam mostrar que @ Africa tinha uma longa historia, que o colonialismo procurara negar ou esquecer. Quando existiu o reino de Gana? Gana aparece pela primeira vez num texto drabe do século VIII, como o pais do ouro. E ¢ a abundancia desse metal que fica na nossa meméria quando lemos a descricao do rei e de sua cor- te, feita no século XI por Al-Bakri, outro drabe, natural de Cérdo- vva, na Andaluzia. O soberano vestia uma ampla tinica e tinha nd cabeca um turbante encimado por um gorro bordado em ouro. Trazia colares e pulseiras também de ouro. Atris dele ficavam dez escravos, com espadas ¢ escudos omamentados de ouro. De ‘ouro eram os arreios dos cavalos do rei. E as coleiras dos cachor- Alberto da Corte ¢ Silve 25 ros. Conta mais Al-Bakri: que o rei amarrava um de seus corcéis ‘uma pedra de ouro que pesava 14 quilos. ‘A mesma peda de ouro vai reapatecer bem mais ao sul, no alto rio Niger, na corte do rei do Mali.'O grande viajante Ibn Ba- tuta, que andou por aqueles terras entre 1352 ¢ 1353, viu esse rei, que tinha o titulo de mansa, dar audiéncia a seus siditos, de man- to vermelho e gorro bordado em ouro, sentado em almofadas, sob um grande guarda‘sol encimado por um grande passaro de ouro, Estava cercado por seus chefés militares, com espadas e langas de ouro. O relato de Ibn Batuta apenas confirmava o que ja corria o ‘mundo érabe e até a Europa cristé: que o Mali era um reino riquis- simo em ouro, Isso ficara claro para os egipcios durante a passa- gem pelo Cairo do mansa de nome Musa, em 1324. Ele entrou na cidade a cavalo, precedido por 500 escravos, cada um deles com um bastdo de ouro. E gastou tanto, durante sua estada, sempre pagando em ouro, que este perdeu valor. Num mapa-mimdi dese- snhado na ilha Maiorca, em 1375, por Abra Cresques, 0 ei negro aparece vestido & européia, com ceo € coroa, a oferecer com a mio direita uma grande pepita de ouro a um berbere a camelo, Nao havia um pouco de exagero nesses relatos? Talvez. Talvez os reis de Gana e do Mali ndo amarrassem 0 cavalo numa grande pedra de ouro. Mas o fato é que a regito da Affica onde ficavam aqueles paises foi, durante varios séculos, até a descoberta do metal nas Américas, a grande fornecedora de ouro ao mundo drabe € & Europa. Era para adquirir ouro que as céfilas, ou caravanas de camelos, atravessavam o Saara. E era 26 A Africa explicada aoe meus filhos com ouro africano que se cunhavam moedas na Europa e no Oriente Médio. E de onde se tirava esse ouro? De varios lugares. No caso do ouro que se comerciava em Gana e no Mali, sobretudo de Bambuk, na forquilha formada pelo encontro dos rios Falemé e Senegal, e de Buré, no alto Niger. 0 ouro era obtido tanto no leito d6s'tio8)pelo sistema de lavage na bateia, quanto em minds. Cavavam-se pogos quadrados, com ‘uma profundidade qué podia chegar a 20 metros. A medida que a escavacdo descia, suas paredes iam sendo reforcadas por vigas de madeira, Numa delas havia uma espécie de escada, por onde desciam e subiam os mineiros. Estes cavavam tineis horizontais em virias ditesBes e uniam os posos entre si Nao s6 nesses dois lugares se produzia ouro, A Nubia abas- tecia o Egito desde 0 século XVI a.C. Do planalto de Zimbabué descia até 0 porto de Sofala 0 ouro com que se cumhavam as mo- edas no indico, 0 ouro viajava enormes distincias — de Lobi ¢ do pats axante, na atual Replica de Gana, ou de Zamfara, no norte da Nigéria, até Tombuctu, na curva do rio Niger —, levado pelos mercadores em pequenos saquinhos ¢ até mesmo, quando em forma de pé, dentro do pequeno tubo que existe nas penas dos pissaros. Pelo que nos disse, 0s afticanos dominavam as técnicas de mine- ragiio do ouro. E muitas outras técnicas. Como as agricolas, por exemple. Num continente de solos em geral pobres e com chuvas escassas Alberto da Coste « Silve 27 € mal distribufdas, os afticanos foram obrigados a desenvolver préticas agricolas complexas. Muitos povos conheciam as técni- cas da irrigaco, da rotasio de plantios, da adubagem com esterco animal e restos de cozinha, da construgao de socalcos ou platafor ‘mas nas encostas das montanhas, a fim de impedir a erosio do solo eali plantar. Misturavam também, na mesma gleba, diferen- tes tipos de plantas, para assegurar a colheita de pelo menos uma delas. Assim, se 0 ano fosse mal para o paingo, podia ser bom ou razoavel para 0 sorgo ou o milo. Nada disso combina, porém, com as idéias predominantes sobre 08 africanas do passado, e até mesmo do presente. A imagem que nos passam deles é de sebvageria ¢ atraso Mas, vejam. Quando portugueses ¢ outros europeus come- garam, no século XV, a descer a costa africana, nao predomina- va neles a impressio de que entravam em contato com povos primitives e atrasados. Estranhavam os costumes dos negros, ‘mas nio os olhavam com desprezo. Lastimavam que desconhe- cessem a verdadeira fé, mas s6 se consideravam superiores por Serem cristaos. ‘Um visitante holandés do século XVII nao escondeu a sua admiracio por Benim, uma cidade enorme, cortada por uma lon- ga avenida, que lhe parecia mais larga do que a principal rua de ‘Amsterda. Bem antes dele, os portugueses espantaram-se com o tamanho de Ijebu-Ode e, mais ainda, com a sua muralha, que em alguns pontos alcangava os sete metros de altura e tinha qua- se 130 quilémetros de comprimento. Vasco da Gama, ao chegat 28 A difrice explicada aos meus filhes 4 costa oriental da Aftica, encontrou portos cheios de navios de comerciantes de todas as partes do oceano Indico, bem como cidades com casas parecidissimas com as dos Algarves, em Por- tugal: com terracos, de pedra e cal, e pintadas inteiramente de branco. Para muitos marinheiros ingleses, j4 no século XVIII, as habitagdes de barro socado e cobertura de palha que encon- travam em Serra Leoa nao eram piores do que as que conheciam nas areas rurais de sua terra. ‘Ao chegarem a Aftica, os portugueses logo reconheceram, or exemplo, a exceléncia do ferro que ali se produzia. Tanto que © adquiriam para revendé-lo na india. Desde pelo menos Goo a.C., a Africa conhecia a metalurgia do ferro. Os nativos adotavam uma técnica de pré-aquecimento dos fornos (que sé seria desenvolvida na Europa no século XIX), que Ihes permitia obter um ferro, e também um ago, de alta qua- lidade, compardwvel, ¢ até superior, em alguns casos, 20 que saia das usinas européias. O produto afticano apresentava, contudo, uma desvantagem, que derivava da dimensio dos seus foros: suas barras eram pequenas. Por isso, na forja, os afticanos fa ziam enxadas e facas, mas ndfo grandes espadas. Nem capacetes. Nem couracas. Problema semelhante se passava com a manufatura téxtil. Como assim? Os teceldes afiicanos produziam panos de algodzo de étima qualidade, que desde o século X Xilleram exportados para a Europa ¢, a partir do século XVI, para o Bra — 05 famosos panos-da- Alberto da Coste ¢ Silve 29 costa —, mas, como Os seus teares eram estreitos, deles s6 saiam tiras de no maximo 25 centimetros de largura. Em muitas regides da Africa, no havia familia sem tear. Fiava-se e tecia-se em casa, na intimidade de um pétio prote- gido por muro ou cerca. Num conjunto de habitagdes de uma familia, os teares podiam chegar a meia dtizia. O nfimero era ainda maior em oficinas, nas quais, como em Kano, no norte da Nigéria, trabalhavam familiares e escravos, a fim de produzir para 0 comércio. Em certos lugares, homens e mulheres fiavam e teciam; now- tos, s6 as mulheres. E havia dois tipos bisicos de tear o horizon- tal € o vertical. Eram muito simples — feitos com alguns paus fincados no solo e algumas cordas —, nos quais, porém, se ob- ‘tinham tecidos fortes ¢ requintados. As tiras estreitas que safam do tear eram cosidas umas as outras com tamanha habilidade que, em muitos casos, a costura podia passar despercebida. Con- feccionava-se, assim, um pano com cerca de um metro de largura ¢ muitos de comprimento. 6 se fiava e tecia o algodao? 7 Na maioria das regioes, usava-se q’algodio) mas em outras, como no norte da Nigeria, entre os fulas € os haucés, teciam-se também as las deCovelhae dé camelo) e, em outras, ainda, como no Congo e em Angola,4rafia/A fazenda de algodio era em ge- ral branca, ¢ depois tingida ou estampada, sendo muito popular a de listras azuis e brancas. Faziam-se também panos entrete- cendo-se fios de diferentes cores, para criar motivos decorativos 30 A Africa explicada coe meus filhos padronizados. Os axantes da atual Gana, depois da chegada dos ‘curopeus, passaram a desfiar os tecidos de seda que deles adqui- iam, para junté-los aos fios de algodiio e tornar mais brilhantes 5 seus panos com desenhos elaboradissimos e multicoloridos, Atualmente, usam-se carretéis de linha de seda comprados na Europa e no Extremo Oriente. © chamado “pano de palha” ou de rafia no era, em geral, usado como peca de vestimenta na regiao do Congo e de Angola, mas, sim, como moeda. Passava de mio em mio até se desges tar e puis, perdendo progressivamente o valor. Entre esses panos de réfia, alguns, em forma de um grande Iengo quedrado, com cerca de 65 centimetros de lado, feitos no reino do Congo, eam '2o finos € bonitos que mais pareciam, aos olhos dos europeus, brocado, damasco e seda acetinada. Os tecidos recebiam com freqiiéncia belos bordados, como ocorria ¢ ainda ocorre na Bti6pia e entre os mandingas, os nupes © os hausés, ou aplicacdes com imagens feitas de outras fazendas, como no antigo reno do Daomé e na atual Repttblica do Benim. les sabiam fuundir outros metais? Claro. De ligas dé cob ©, como 0 bronze ¢ 0 latao, os seus escultores fizeram pecas de grande tamanho, criaram obras de arte que figuram entre as mais belas jé safdas das mios dos homens. E isto desde possivelmente 0 século XI, em Ife em Igbo Ukwu, e desde 0 século XV no 0 reino do Benim. ~Até hoje ainda se Fimdem placas de bronze ¢ = esculturas no reino do Be- “mim (que fica na Nigéria e no deve ser confundido com a atual Repiiblica do Benim). Em varias regides da Africa, fabricam-se | | Alberto de Coste e Silve 3a requintadas jéias de ouro e prata, entre as quais merecem des- taque as produzidas pelos axantes. Entdo, por volta de 1500, a Africa conecia técnicas semelhantes 4s européias? Sé6 em alguns setores. A Africa 20 sul do Saara ignorava as engrenagens, que nos moinhos substitufam, multiplicando, 2 forga humana e foram responsaveis, a partir do século IXppor ume verdadeira revolugio na vida econdmica européia. Des- conhecia, para dar um outro exemplo, a roldana, que permitia ‘até mesmo a um menino magricela tirar Agua de um poco. E nao sabia da engrenagem e da roldana porque nao inventara a yoda nem a recebera de outros povos. Nenhum tipo de carro rodava na Africa subsaariana. Em algumas poucas regides, ha- via asnos e bois de carga, mas, na maior parte do continente, 0 que nao descia ou subia os rios em canoas era levado a cabeca das mulheres. Tampouco existiam na Africa ao sul do Saara instrumentos corriqueiros como o sertote, a plaina, 0 torno, 0 parafuso. ‘Mas tudo isso nao era conhecido na Africa ao norte do Saara, no Egito e ao redor do Mediterréineo? / Era. O mar Mediterraneo foi, desde o inicio da Historia que conhecemos, uma regio de intenso comércio, de intensas tro- cas de bens, experiéncias, invencdes ¢ idéias. Estava ligado pe- Jos navios ¢ pelas caravanas ao resto da Europa e & Asia. Recebia novidades tanto das ilhas Briténicas quanto da China. © que se inventava numa terra distante nao demorava a chegar ali. 3 4 Africa explicada aos meus filhos Sea Africa banhada pelo mar Mediterraneo conheceu todas essas coisas, por que elas ndlo atravessaram o deserto? Talvez, como jé disse na nossa primeira conversa, porque as Catavanas fossem poucas ¢ ndo chegassem a aproximar perma- nentemente as duas margens do deserto. De cada uma das ci- dades do norte da Africa que comerciavam com 0 outro lado do rico, nao somavam uma dezena — safam apenas uma ou duas céfilas por ano. E havia ‘anos em que nfo safa nenhuma. Os camelos atravessavain o deserto com sal, tecidos de lie de linho, espadas, contas de Venera e de coral, objetos de cobre © outros artigos de luxo, Excetuadas as barras de sal, todos eram bens de pouco peso e de grande valor. Como os camelos nao se adaptavam savana nem, muito menos, & floresta, esses produ- tos trocavam de miios na borda do deserto, ® Os comerciantes que iam levi. los para a savana e para a flo- restq nao éram os mesmos que tinham atravessado o deserto, Alguns'deles, é bem verdade, eram provenientes da Africa do Norte e até do Iraque e da Siria, que se haviam instalado no Bilad al-Sudan em busca de riqueza ou como agentes de casas comerciais com matriz no outro lado do deserto. Conheciam a roldana eo serrote, mas nao sabiam fazé-los nem encontravam motivo para importélos. Ninguém iria adquiri-los. Se manda- vam buscar seleiros, para consertar as selas dos camelos ¢ ensi- nar a gente da terra a fabricé-las, nao precisavam de quem sou- besse construir cartos de rodas, que niio tinham condicées de ‘competir com os camelos no deserto, nem eram de utilidade nas savanas sem estradas e muito menos nas florestas. Talvez assim Alberto de Coste ¢ Silvx B se explique por que os mercadores muculmanos difumdiram a sua fé, mas nao as téenicas ¢ as ferramentas de trabalho usuais no mundo islémico * Uma novidade trazida por uma caravana muitas vezes no voltava na céfila seguinte. As novidades nao chegavam com a persisténcia € 0 volume necessarios para vencer as resisténcias & mudanga em populagdes formadas em grande parte por cam- poneses. Geralmente, estes nio se mostravam propensos a aban- donar seus modos de trabalho tradicionais e s6 aceitavam 0 que era novo, quando suas vantagens jé tivessem sido provadas. Nao demoraram, por exemplo, a cultivar 0 milho, a batata-doce e 0 amendoim, trazidos do Brasil pelos portugueses, mas se apegam até hoje & enxada de cabo curto, ainda que conhecam a de cabo comprido, introduzida pelos europeus. ‘Acresce que os reis e os grandes chefes, tendo a seu servigo 1um grande niimero de familiares, agregados ¢ escravos, no ti nnham maior interesse em instrumentos poupadores de trabalho. Desejavam, das caravanas, os bens de hixo, para uso proprio ou para presenteé:los aos stiditos poderosos e assegurar sua fideli- dade, E, mais ainda, as armas. Alguns deles procuravan adotar as novas armas ¢ as novas taticas de guerra de que tomavam conhecimento, mas mesmo essas tardavam 2 se diftundir. A sela com estribos jé era conheci- da pelos arabes desde o século VII, mas s6 quase 700 anos mais tarde comegaria a ser utilizada do outro lado do Sara. Surgem entio, na Africa ao sul do Saara — provavelmente, pela primeira vez, no Mali —, as cargas pesadas de cavalaria, com guerreiros protegidos por capacetes de ferzo e cotas de malha e armados de 34 A Africa explicada aos meve filhor Tangas longas e espadas. Como j era de praxe nas batalhas que se travavam na Europa, na mesma época. Vemos no mapa que a Arabia esta quase colada a Africa, Por que 45 téonicas ¢ os instrumentos desenvolvidos pelos drabes ou por ees conhecides no atravessaram o mar Vermelho e 0 oceano Indico e se 4difundiram pelo continente africano? Os tripulantes dos barcos arabes, persas, indianos ¢ indoné sios que comerciavam nos litorais africanos do {ndico deixavam- se ficar nas ilhas junto & costa. As populacdes mesticas, que se formaram nessas ilhas ¢ que se dedicaram principalmente a0 comércio, pouco influenciaram as do continente. Quanto aos etfopes, que mantinham antiqiissimas relagdes com a peninsu: Ja Arabica, eles se isolaram, nas suas altas montanhas, do resto da Africa. | Terceira conversa ‘Como eram as relages comerciais dos litorais da Africa banha- dos pelo occano indico com os drabes, os persas, 0s indianos € os indonésios? No infcio da era crista, um grego, ou egfpcio convertido a cul- ura grega, escreveu um livro, o Périplo do mar eritreu, com in- formagbes para os navegadores e comerciantes sobre os portos (que havia na costa africana do Indico e as mercadorias que neles, se vendiam e compravam. Esse comércio vinha de muito antes, envolvendo egipcios, gregos, etiopes e érabes. E seria, depois, dis- ‘putado por romanos e persas. Foi, porém, hpés a conversao da peninsula Arabica e da Pérsia ao credo de Maomeé que esse comércio tomot maior vulto. f des- sa €poca que as crénicas locais — como a Crénica de Quiloa, um Livro escrito provavelmente na primeira metade do século XVI — datam a chegada dos primeiros grupos de imigrantes mucul- ‘manos e a fundagio de colénias nas ilhas préximas ao litoral £ possivel que comerciantes estrangeitos jé estivessem es- tabelecidos em algumas delas, desde muito antes. E temos um motivo para pensar assim. A navegago no oceano Indico era re- gulada pelo fendmeno das miongbes\ De novembro a marco, os venttos sopram de nordeste para sudoeste: de maio a setembro, ‘\/ no sentido inverso. 4 38 A Africa explicada eos meus filhot Enos meses de abril ¢ outubro? So meses de transicdo, Em abril, pode continuar a soprar o vento de nordeste para sudoeste ou ji comecar o vento contré- rio. Em outubro, ou continua a soprar o vento do sudoeste ou 4 principia o do nordeste. O importante & que os barcos a vela tinham de acompanhar a diregéo dos ventos, Ora, nem sempre ‘uma embarcacto originéria do golfo de Cambaia ou de Oma con- seguia chegar a um porto da Africa Oriental, como Quiloa, antes de fins de fevereiro ou infcio de marco. Passava, depois, algum tempo a adquirir a quantidade desejada de ouro, ambar, presas de elefante, chifres de rinoceronte, carapacas de tartaruga, plue mas de avestruz, peles de animais selvagens, almfscar e outros Produtos aromaticos. Quando o barco completava a carga, ja era, por exemplo, fim de julho, e seria temerdrio empreender a via- gem de volta, Mercadores € marinheiros viam-se obrigados, entio, a perma- hecer em Quiloa até maio do ano seguinte,& espera da mongao de sudoeste, Compravamh alugavam Gu éonstrufam casas) uniam-se amulheres da terra e ampliavamn suas ligagées comerciais. Alguns viram as oportunidades que se abriam para quem ali Se insta- lasse"dé forma permanente ou semipermanente, adquirindo as ‘mercadorias € as armazenando, a fim de télas & disposicio dos navios logo que estes chegassem ao porto. Ecomecaram até air buseélas, com seus barcos, em outros pontos da costa. Torna- ratti-se também fonecedores de alimentos aos navios estrange- ros domos de plantagdes no continente defronte. © 05 filhos e netos desses colonos com mulheres locais eres iam afticanizados, mas sem perder 0 contato com a pitria de ses ee Alberto de Coste e Silva 39 seus pais ¢ avés, Felavam um idioma banto, o suafli, que se tomnou a lingua de quase toda a costa, ¢ adotaram os costumes bantos, ainda que submetidos as normas do islamismo e im- pregnados de tracos culturais dos paises de origem de seus an- ‘No s6 comerciantes se instalaram nessas ilhas. Elas serviram. também de refiigio para perseguidos,religiosos ¢ politicos. As cronicas e as tradigbes locais referem-se a principes e a hereges arabes e persas for ied ot Acai pontos da costa indica da Africa, Quando 8 portugueses Id chegaram, no fim do século XV, encontraram em Sofala, Quelimane, Angoche, Mogambique, Quiloa, Mafia, Zanzibar, Pemba, Mombaga, Gedi, Melinde, Lamu, Manda, Pate, Brava, Merca e Mogadixo pequenos reinos chefiados por emires ‘¢ xeques mulatos ou negros, com populagdes que rezavam na diresdio de Meca e seguiam os preceitos do islamismo. Presentes na costa indica da Africa ha quase um milénio, os mercadores mugulmanos devem ter aprendido desde cedo a ir buscar no interior do continente os produtos que desejavam ad- quirir. £ verdade que, transpostas as praias, na maior parte da regio a terra era hostil, coberta por uma vegetacao espinhenta, a nyika, na qual estava presente a mosca tsetsé, transmissora da doenca do sono. A ambigao da riqueza faria com que alguns habitantes do litoral ameno se arriscassem a entrar nesse dificil dos terras que foram criar cidades- sertio. Entravam como mercadores, mas nao contribuiram para a difusio de novas técnicas, de novos instrumentos e de novas idéias, a ndo sero islamismo e, posteriormente, as armas de fogo, que tornariam menos perigosa a cacada aos elefantes. ~ 4 Africa explicade cos meus filhos Voct disse, ems nossa conversa anterior, que os portugueses se es- Pantaram, ao chegar a essas cidades-stados, com o niimero de navios 0 volume de comércio que nelas encontraram, Encontraram de fato cidades ricas de tudo 0 que mais dese- javarn: ouro, prata, péroles, marfim, ambar, sedas, damascos, cravo, pimenta, canela, gengibre, noz-moscada, lacas, faiancas Porcelanas. Como esté em Os lusfadas, de Camoes, eem Décadas, do cronista Joao de Barros. Nesses portos entravam ¢ saiam todas as semanas virios barcos, alguns muito grandes, em maos de marinheiros habeis, que conheciam a biissola, quadrantes e car. tas de marear. Para os portugueses tudo era motivo de surpresa e pasmo: jé'para um comerciante muculmano experiente, aquelas idades eram parceiras menorés di grande rede comercial do fn- ico e formavam o limite ocidental daquele que eta entio 0 mais ico de todos os oceanos. Eo Atlantico, nao tinha importancia? Até se descobrirem prata ¢ ouro no continente americano e se firmar a produc de acticar no Brasil, o Atlintico ao sul do {t6pico de Cincer era visto sobretudo como um caminho para © Indico. Descia-se a costa da Aftica para se chegar a India e China. ‘Na parte norte do Atlantico, havia, & certo, um comércio cos- teiro muito antigo, desde 0 Marrocos até a Escandinavia. O Me- diterraneo fazia parte dessa rede comercial, e 08 navios saidos do continente iam ter &s ilhas Briténicas e & Islandia, Os barcos dedicados a pesca do bacalhau podiam avangar ainda mais para 0 | | Alberto da Costa ¢ Silva 4 ocidente. Para o sul, 0 Atlantico era, porém, até 0 infcio das nave- gagbes portuguesas, um oceano vazio de barcos a vela. [Mas 0s portugueses nao sabiam que havia ouro ao sul do Saara? Sabiam. E, desde o inicio de sua aventura maritima, procura- ram obté-lo nas costas afticanas. Tanto assim que, jé na pentilti- ‘ma década do século XV, ergueram um castelo numa regio onde 5 grandes da terra usavam jéias de ouro e Ihe deram um nome que diz tudo: Sao Jorge da Mina, pois acreditavam que as minas de ouro ficavam ali, bem préximas ao litoral Mais do que um estabelecimento militar, Séo Jorge da Mina era um enorme depésito comercial fortificado. Uma grande fei- toria de pedra, como outras que seriam erguidas nas costas do [Atlantico e do Indico. Poucas, quando comparadas com as cerca- das por paligadas ou por muros altos de barro, & africana. ‘Tanto aquelas quanto estas necessitavam, para serem ergui- das, do consentimento dos reis e chefes locais, que recebiam aluguel ¢ tributos. Era raro, rarissimo, que o senhor africano concedesse aos europeus o uso de terra para cultivo, de modo que a gente da fortaleza ou da feitoria dependia da vizinhanga para alimentarse — e, em alguns casos, até mesmo para se abastecer de gua. Os reis afticanos em cujos dominios ficavam esses estabelecimentos europeus tinham sobre eles firme con- tole. Se os europeus os desgostassem ou deixassem de efetuar os pagamentos devidos, simplesmente Ihes cortavam no 6 0 comércio com a gente local e os mercadores do interior, mas também a comida e a 4gua. EES # 4 Africa explicada 401 meus filhos Eos europeus no reagiam? Nao tinkam eles, nesses fortes, armas ‘mais poderosas como canhées e espingardas? ‘Tinham, Mas, no inicio, os canhOes nao dispunham de rodas — ficavam imeéveis no alto dos muros e atirando numa s6 dite $40 — € 0 niimero de soldados era sempre pequeno. Nao havia condiges para tentar romper um cerco. E 0s africanios acabariam por submeter 05 estrangeiros pela fome. f preciso lembrar que as armas de fogo eram, até 0 século XIX, carregadas pela boca, Primeixo, punha-se a bucha, depois,'¢ pélvora e, finalmente, 2 bala, Entre um tito e outro podia passar tempo suficiente pata um bom arqueiro disparar meia diizia de flechas, que em muitos lugares eram envenenadas ¢ sé precisavam atingir de raspio a vi tima para maté-la, Se os europeus fossem muitos —o que quase rnunca era 0 caso —, eles poderiam fazer uma barreira de fogo —uns alimentando as armas, enquanto outros atiravam e um terceizo grupo se preparava para atirar —, mas, mesmo assim, ea dificil fazer frente a muitas centenas, quando no a milhares de guerreiros afticanos. Na realidade, os europeus s6 consegui- ram, militarmente, uma superioridade nitida sobre os afticanos como rifle de ferrolho eo rifle de repetigao — e se fizeram imba- tiveis com a metralhadora. Voce disse que os europeus eram sempre, poucos nesses fortes ¢ fei- torias. Por qué? Porque nao tinham resistencia as enfermidades tropicais. Ja se calculou que, de cada dez europeus que se instalavam na Afri ca entre os séculos XVI e XIX, seis morriam no primeiro ano — quando nao nos primeiros meses — e mais dois faleciam nos. | Alverto de Coste ¢ Silve 4 anos seguintes, atacados por maléria, febre amarela, parasitas intestinais, varfola, doenca do sono, esquistossomose, verme-da- guiné e cegueira dos rios. O que nao falta nos relatos dos respon- sdveis por esses entrepostos, e também nos dos viajantes e dos capities de navios, sao referéncias a mortes por diarréia e febres. Os que viviam nesses estabelecimentos passavam boa parte do tempo cuidando dos enfermos e enterrando os mottos. Pode-se dizer que o mosquito, responsével pela transmisséo da malaria ¢ da febre amarela, foi o grande aliado do africano contra as ambi- ses de conquista européias. Se estavam, como voce disse, & mercé dos africanos, por que 0s eu- ropeusinsistiam em fortfcar esesestabelecimentos comerciais? Para se protegerem principalmente de outros europeus,/Esta- ‘vam preocupados com os inimigos que vinkam pelo mar. Com a gente da terra, aspiravam & amizade ou, pelo menos, ao bom entendimento necessério ao comércio. Era, aliés, comum que os europeus que neles viviam formassem familia com as mulhe- res locais. Elas e seus filhos serviam muitas vezes de intermedi- rios entre a feitoria e a cidade ou aldeia afticana que a cercava. © mesmo se passava com aqueles aventureiros ou degredados que os barcos portugueses deixavam nas costas da Africa, que receberam os nomes de. Tangados oy tangomos e cujas histérias, sob muitos aspectos, se assemelham 4s dos nossos Caramuru e Jodo Ramalho. Casavam com mulheres da terra, africanizavam- se, 20 mesmo tempo que as europeizavam, e serviam de agentes comerciais para os reis ¢ mercadores africanos e para os entre- postos europeus. 4 A Africa explicede aos meus fithos Eram eles dos poucos que conseguiam penetrar nas redes mercantis afticanas e viajar serio adentro, pois os reis da costa proibiam aos brancos 0 acesso ao interior e os negociantes afti- canos guardavam cuidadosamente os segredos de suas rotas ¢ de seus mercados. Os que comerciavam com o ouro nio infor mavam onde o obtinham ¢ satisfaziam os curiosos dizendo, por exemplo, que o adquiriam de uma gente feroz, com rabo e cabeca de cao. Esse invencionice tomou tamanho jeito de verdade que havia, ainda na metade do século XIX, quem andasse em busca desses homens com rabo. A mortandade entre os curopeus que se instalavam na Africa era enorme. Mas, pelo que entendi, aqueles que resistiams por alguns meses as doencas casavam-se em geral com afficanas. O que acontecia com as mulheres, quando 0s maridos morriam? Essas senhoras ficavam com aquela parte dos bens do marido ue nio era confiscada pelo rei da terra. E, mais importante ain-

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