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Reféns do Demônio – Cinco casos de possessão e exorcismo

Malachi Martin
Título original: Hostage to the Devil. The possession and exorcism of five contemporary americans.
1ª edição – novembro de 2016 – CEDET
Copyright © 1976 by Malachi Martin

Os direitos desta edição pertencem ao


CEDET – Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua Ângelo Vicentin, 70
CEP: 13084-060 – Campinas – SP
Telefone: 19-3249-0580
e-mail: livros@cedet.com.br

Editor:
Diogo Chiuso

Editor-assistente:
Thomaz Perroni

Tradução:
Felipe Lesage

Revisão:
Francisco do Nascimento Gabriel Corrêa

Editoração:
J. Ontivero

Capa:
Bruno Ortega

Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Diogo Chiuso
Silvio Grimaldo de Camargo
Thomaz Perroni

ECCLESIAE – www.ecclesiae.com.br

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio
de reprodução, sem permissão expressa do editor.

FICHA CATALOGRÁFICA

Martin, Malachi Brendan, 1921-1999.


Reféns do Demônio – Cinco casos de possessão eexorcismo / Malachi Martin; tradução de Felipe
Lesage – Campinas, SP: Ecclesiae, 2016.

Título original: Hostage to the Devil – The Possession and Exorcism of Five Contemporary
Americans.

ISBN: 978-85-8491-051-9

1. Exorcismo 2. Possessão Demoníaca


i. Malachi Martin ii. Título

cdd – 265.94
264.94

indices para catálogo sistemático

1. Exorcismo – 265.94
2. Possessão demoníaca – 264.94
PREFÁCIO À EDIÇÃO DE 1992
Possessão e exorcismo nos EUA dos anos 90
No piscar de olhos de Deus que foi o intervalo entre a primeira publicação
de Reféns do Demônio, em 1976, e o presente momento, nada, sob certo
ponto de vista, parece ter mudado. Por outro lado, tudo mudou.
Nada mudou no processo pelo qual um indivíduo é possuído por um mal
inteligente e provido de existência pessoal. Nada mudou, tampouco, naquilo
que é necessário para o sucesso no exorcismo de um indivíduo possuído.
Tudo isso permanece tal como descrito e resumido nos capítulos e casos
que seguem.
O que mudou foram as condições da sociedade em que vivemos hoje.
Um clima favorável à ocorrência de possessões demoníacas se instaurou
como condição normal de nossas vidas, e em grau muito maior do que
muitos de nós poderíamos imaginar quinze anos atrás.
Em 1976 o satanismo se apresentava – e era provavelmente assim visto
pela maioria dos americanos – como um sucesso de bilheterias e livrarias.
Em verdade, Reféns do Demônio tinha a intenção de esclarecer e alertar
para o fato de que a possessão não é – nem nunca foi – um faz-de- -conta de
terror, com ogros e finais felizes. A possessão é uma realidade; preços reais
são pagos por ela.
Hoje, nos EUA dos anos 90, pouco se fala da possessão demoníaca
enquanto entretenimento. Há, ao contrário, entre famílias de todo o país, e
em todas as camadas da sociedade, um justificável temor, sobretudo por
conta das crianças. E, de fato, poucas são as famílias que não são de algum
modo afetadas pelo satanismo. Até mesmo por sua expressão ritual –
cerimônias formais e ritos organizados e realizados por indivíduos e grupos,
em declarado louvor a Satã.
Por razões óbvias, não sabemos tudo a respeito dos grupos satanistas
organizados – ou seitas, como são chamados nos Estados Unidos. Mas o
abundante conhecimento de que dispomos, de fato, já justifica que as
famílias comuns temam por seus filhos e seus modos de vida no futuro.
Sabemos, por exemplo, que em todos os cinquenta estados da União,
existem mais de oito mil seitas satanistas. Sabemos que em toda grande
cidade americana, uma Missa Negra – quase sempre organizada por seitas –
é oferecida ao menos uma vez por semana, e em diversos locais. Sabemos
que é possível encontrar membros regulares de seitas satanistas em todas as
profissões, bem como entre políticos, clérigos e religiosos.
Sabemos ademais que nesse universo das seitas deu-se uma certa
“especiação”. Pode-se escolher entre uma seita homossexual ou
heterossexual, por exemplo. Em ao menos três grandes cidades, membros
do clero têm, à sua disposição, pelo menos uma seita pedófila, freqüentada
e mantida exclusivamente pelo e para o clero. Mulheres religiosas podem
encontrar seitas lésbicas mantidas de forma similar.
Sabemos também que em muitas escolas públicas de qualquer grande
cidade, existe, com uma certeza quase absoluta, ao menos um grupo de
jovens envolvido em rituais satanistas. E embora saibamos muito pouco –
repito, por razões óbvias – sobre o sacrifício humano enquanto elemento
ritualístico do satanismo, sabemos, sim, que em algumas seitas nas quais a
confidencialidade é condição vital e absoluta, a pena por se tentar deixá-la é
a morte num ritual de esfaqueamento, no qual se desfere uma estocada por
cada ano de vida do membro desistente.
As fortes evidências do sacrifício humano como elemento ritual são
limitadas pelo fato de que o descarte de restos mortais humanos tornou- -se
uma das formas de magia negra no seio mesmo dos círculos satanistas, por
meio do uso de incineradores e crematórios portáteis; e também porque não
há registro de nascimento ou batismo – em suma, qualquer registro da
existência – de bebês eleitos para serem vítimas.
Não obstante, temos uma quantidade enorme de evidências indicando
que alguns milhares de bebês e crianças são intencionalmente concebidos e
nascem para servir como vítimas nos ritos de sacrifício satanistas. No
mundo do culto satanista, os meninos são preferidos como réplicas, pois do
mesmo gênero, do Menino Jesus. Mas as meninas não são, de modo algum,
excluídas.
A esse respeito, o aumento do número de abusos de crianças como uma
característica de nosso tempo exige particular atenção. Nem todos – talvez
nem mesmo a maior parte – dos abusos infantis originam-se em rituais
satanistas per se. Cada caso deve ser avaliado de acordo com as evidências.
Mas o número de ocorrências de abuso infantil nos EUA, hoje, e a concreta
evidência do satanismo como sendo deles um componente em muitos casos,
começa a dar certa idéia do grau em que a inversão de valores, marca maior
da atividade satanista sob qualquer forma – e do satanismo ritual, sobretudo
– se infiltrou e influenciou todos os níveis de nossa sociedade.
Por mais aterrorizantes que sejam essas poucas informações – embora
não sejam de modo algum toda a informação que tenhamos – ainda mais
chocante é constatar que hoje, nos EUA dos anos 90, nunca se está longe
demais de um centro no qual tais atividades são realizadas rotineiramente.
Ninguém vive longe de uma área geográfica na qual alguma forma de ritual
satanista esteja sendo praticada. O satanismo ritualístico e sua inevitável
conseqüência, a possessão demoníaca, são hoje parte integrante da
atmosfera em que vivemos nos EUA.
Que existe um clima mais favorável do que nunca à possessão demoníaca
entre a população média, isso é claro. Tão claro que o atestam, diariamente,
competentes especialistas da sociologia e psicologia, os quais em sua
maioria parecem não ter qualquer “viés religioso”.
Nosso estado de desolação cultural – um tipo de agonia niilista conjugada
a um egoísmo dominante – nos é atestado pela desintegração de nossas
famílias. Pelo colapso de nosso sistema educacional. Pelo desaparecimento
de normas de decência lingüística, indumentária e comportamental
publicamente aceitas. Pelas vidas da juventude, que por toda parte se vêem
deformadas em meio à violência e a mortes súbitas; pela gravidez precoce,
pelo vício da droga e do álcool, doenças, suicídio, e enfim pelo medo. Os
EUA são hoje, indiscutivelmente, o mais violento dos assim chamados
países desenvolvidos.
Por isso é que os pais de fato têm todas as razões para se preocuparem.
Pois acima de tudo, as maiores mudanças nas condições em que passamos a
viver nos últimos vinte anos acarretaram uma maior vulnerabilidade dos
jovens quanto à possibilidade de possessão. Criados cada vez mais numa
atmosfera na qual a crítica moral não está apenas fora de moda, mas
proibida, eles nadam desprotegidos num verdadeiro mar de pornografia.
Não apenas pornografia sexual, mas a pornografia de um completo auto-
interesse. Seja ela dita ou expressa em atos, a questão dominante de nossas
gerações mais novas é “o que você pode fazer por mim?”. O que podem
meus pais, meus amigos, meus conhecidos, meus inimigos, meu governo,
meu país, fazer por mim?
A dificuldade está em que, enquanto indivíduos e enquanto sociedade,
nós não queremos mais – muitos de nós nem mais são capazes de – dar uma
resposta satisfatória a essa questão.
Uma desolação cultural assim tão penetrante é o solo mais fértil que se
pode esperar para que a possessão se enraíze e floresça em liberdade quase
total. É nesse contexto que o satanismo – incluindo aí o satanismo ritual –
tem causado medo em tantos pais. Pois é nele que seus filhos podem mais
facilmente ser encontrados por aquele Antigo Inimigo de nossa raça que,
nas palavras que São Pedro usa em uma de suas cartas, “anda ao redor de
vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar”. 1
Uma coisa é descrever a situação na qual a atividade satanista tem
florescido entre nós. Mas é essencial identificar de modo igualmente claro
ao menos alguns dos principais fatores culturais e religiosos que
contribuíram de modo fundamental para uma tal situação.
Ao fazê-lo, é difícil resistir à conclusão de que o vigor de que goza o
satanismo ritual, e a nossa dificuldade em lidar com ele de forma efetiva,
não sejam ao menos realçados pela notável mudança de mentalidade entre
os clérigos. Sendo eu um padre católico romano, falo mais especificamente
dos bispos e padres católicos. Mas as responsabilidades não se limitam a
nós, infelizmente.
O exorcismo, tal como exemplificado nos cinco casos descritos nas
páginas de Reféns do Demônio, lida com uma criatura sem corpo e sem
sexo, que Jesus identificava pelo nome de Lúcifer e Satã. Criatura que Jesus
identificava, alhures, como “o pai da Mentira e homicida desde o
princípio”. A existência e as atividades de Satã são elementos integrantes da
cristandade romana tradicional, e de todas as outras formas genuínas desta
religião.
Originalmente um arcanjo, Lúcifer conduziu uma rebelião em
desobediência a Deus e, junto de legiões de anjos que o acompanharam, foi
condenado definitivamente por Deus ao inferno. Em seu estado de eterna
separação de seu Criador, essas criaturas foram sempre conhecidas como
demônios.
Na misteriosa providência de Deus, Satã goza de certa liberdade para
tentar frustrar a vontade divina – de que todo homem e mulher seja
purificado do pecado pessoal e morra em estado de amizade com Deus.
Na medida em que conquista certo número de indivíduos como seus
devotos e servos neste mundo, Satã tem êxito em sua incessante rebelião.
Ademais, esses indivíduos de que Lúcifer se apodera servem também ao
seu propósito, voluntariamente corrompendo e cooptando outros seres
humanos para que adorem e sirvam a Satã.
Adoração, enquanto palavra usada no contexto satanista, assim como
todos os outros termos satanistas, reflete tanto a mente quanto o intento do
próprio Lúcifer. Ela conota o contrário – intencional e deliberado – de seu
sentido cristão.
A essência do culto cristão é o amor. A essência do culto satanista é o
ódio. Pois o Arcanjo Caído agora encarna um total ódio ao ser enquanto tal.
Ódio à vida, ao amor, à beleza, à felicidade, à verdade – a tudo aquilo que
torna a existência o maior bem possível. O culto satanista é a celebração
disso.
Em linhas gerais, é esse o conhecimento básico sobre Satã e sobre a
agenda satanista que os cristãos sempre tiveram.
No entanto, desde a primeira publicação de Reféns do Demônio em 1976,
uma perda de convicção entre os homens da Igreja – incluindo, sobretudo,
hierarquia e clero católicos – conduziu à preterição da própria noção da
existência de Satã, assim como de outros ensinamentos básicos sobre
Inferno, anjos, Purgatório, sobre o pecado individual e sacramentos
essenciais como a Confissão e a Eucaristia.
Foi dito por um conhecido clérigo protestante, a esse respeito, que –
discordâncias com a Igreja Católica Romana à parte – a Igreja Católica
sempre foi a âncora. Se essa âncora se solta, tudo o mais afunda. Como
muitos dos membros da hierarquia católica romana não mais aceitam esses
pontos do credo – nem mais professam ou ensinam a correta doutrina sobre
os sacramentos –, a oposição ao satanismo, incluindo aí o satanismo ritual,
viu-se consideravelmente enfraquecida.
Para o outro lado da história, o lado de Lúcifer, a crença em sua
inexistência é uma enorme vantagem, da qual ele jamais pôde se servir em
tão alto grau. É a melhor camuflagem. Não acreditar no mal é não estar
armado contra ele. Descrer é desarmar-se. Se você não aceita, em seu livre-
arbítrio, a existência do mal, você se torna incapaz de a ele resistir. Aqueles
desprovidos da capacidade de resistir tornam-se alvos fáceis à possessão.
Do mesmo modo como, outrora, a existência de um grande número de
clérigos fiéis causou enormes impactos práticos, também hoje as
conseqüências práticas de um grande número de clérigos infiéis se fazem
sentir por todos nós – crentes ou não crentes, igualmente.
Um grande número de cristãos, entre a população católica e de outras
denominações, não mais aprende sequer orações básicas como o Pai Nosso.
Nas igrejas e escolas paroquiais, igualmente, o tema do Inferno é evitado,
para que, como coloca um padre do centro-oeste do país, as pessoas não
embarquem na “paranóia da culpa”. A idéia de pecado é igualmente
evitada, de acordo com a mesma fonte, com o objetivo de não causar
“danos irreparáveis àquilo que vem sendo ensinado nos últimos quinze
anos”.
Tudo isso já é suficiente para deixar todo cristão em profunda
desvantagem, indefeso mesmo no confronto com o mal que a vida nos traz.
As proibições estritas quanto a que se misture o que é chamado de
“conhecimento racional” com a fé que é necessária ao reconhecimento do
mal são, para muitos, um obstáculo intransponível. E sem a graça que nasce
da fé verdadeira, Satã pode fazer aquilo que ele melhor sabe fazer – cessa
de existir aos olhos daqueles que não vêem.
E, ainda, o mal maior, mais dramático e imediato que resulta de uma tão
profunda falta de instrução recai sobre as verdadeiras vítimas da possessão;
os milhares de vítimas do mal em pessoa.
A Igreja é o único agente da sociedade que dispõe da autoridade e do
tratamento eficaz no combate a um mal tão patente. Se, portanto, os
encarregados dessa função básica da Igreja negam o próprio legado da
Igreja – se chegam mesmo a dar as costas às descrições bíblicas de Cristo
expulsando demônios; se descrevem esses relatos como falsos, como mera
literatura – aí, então, as vítimas da atividade demoníaca perdem qualquer
esperança.
“Se o sal perder o sabor”, diz o Cristo em São Marcos, “como devolver-
lhe o sabor? Tende sal em vós mesmos e vivei em paz uns com os outros”.
Essa é, em poucas palavras, a condição de alguns de nossos clérigos; e é
essa a agonia dos possessos nos EUA nos anos 90. Se os padres da Igreja
não mais crêem, as vítimas de possessão demoníaca não têm mais, pois, a
quem recorrer. Elas não têm mais nenhum lugar aonde ir para buscar ajuda
– a qual elas têm todo o direito de obter, enquanto cristãos aflitos.
A combinação de uma possessão demoníaca válida e reconhecida com a
falta de esperança deve certamente causar o pior dos tipos de insanidade, se
não mesmo a morte. É uma terrível condenação. Tão ou mais terrível, no
entanto, é o fato de aqueles homens mesmos cuja vocação é crer e propagar
tudo aquilo que a Igreja sustenta desde sua fundação, terem abandonado
aqueles que eles ainda dizem servir em nome de Cristo.
O círculo de desamparo e sofrimento causado por esses infiéis dentre os
homens de igreja não se encerra com os cristãos comuns e os possessos,
contudo. Ele se estende para muito além disso.
Por conta da natureza dos ultrajes que ocorrem no curso do ritual
satanista – alguns casos extremos como abuso infantil e assassinato em
série não são senão dois exemplos conhecidos –, os agentes da lei
freqüentemente são envolvidos no quadro da situação. Vendo-se face a uma
inegável evidência de satanismo – pentagramas, crucifixos quebrados,
grafites satânicos e demais parafernálias –, os oficiais da lei podiam,
outrora, contar com a ajuda dos clérigos especializados na possessão
demoníaca.
Esse tipo de ajuda está raramente disponível nos dias de hoje. Em lugar
disso, o que vemos é ignorância, desinteresse, descrença, e mesmo uma
pertinaz falta de vontade, por parte de muitos membros da Igreja, sequer em
discutir o tema da possessão demoníaca e exorcismo.
De fato, na Igreja Católica Romana, a Ordem dos Exorcistas – parte da
ordenação de todo padre desde tempos imemoriais – foi omitida do novo
rito de ordenação sacerdotal, tal como elaborado por alguns inovadores a
partir de 1964, na aurora do Concílio Vaticano II.
Por conta de que tanto a possessão demoníaca quanto seu remédio, o rito
de exorcismo, são pois vistos por muitos membros da Igreja como coisas
irrelevantes – tão desimportante quanto, digamos, treinar-se no uso de um
astrolábio medieval –, muitas dioceses católicas, grandes ou pequenas, nos
Estados Unidos, não dispõem de um exorcista oficial.
Em algumas afortunadas dioceses, nas quais os padres trazem exorcistas
ad hoc de fora da cidade, os bispos das dioceses não sabem de nada, e nem
querem saber. Mas se é verdade que essa não é uma atitude muito benévola,
ao menos eles fazem vista grossa. E como é necessária uma permissão do
bispo para o procedimento do exorcismo, essa vista grossa pode ser – e é –
considerada uma “permissão tácita”.
Em outras dioceses, contudo, os bispos são abertamente contrários ao rito
do exorcismo. Mesmo em tais situações, há padres que ainda trazem
exorcistas de fora da cidade. Sua justificação canônica, mesmo nesse caso,
é que o bispo concedeu “presumível permissão”. Ou seja, “o bispo acredita
naquilo em que ele deveria acreditar enquanto bispo” e, ademais, se ele
soubesse e reconhecesse como válido um caso particular de possessão
demoníaca, poderíamos presumir que ele autorizaria o exorcismo.
Todos esses raciocínios teológicos e chicanas canônicas são mais do que
mera tortuosidade. Elas representam um cenário típico da vida nas
catacumbas. Pois temos, como conseqüência desses trâmites, algo que só
pode ser chamado de “submundo do exorcismo”. Um grupo de padres de
determinada diocese trabalha em segredo com sacerdotes em outras
dioceses, visando a cumprir com suas obrigações juntos aos fiéis
necessitados.
Eclesiasticamente, essa situação dá margem a irregularidades, sem
dúvidas. Ela também conduz, em alguns casos, a sanções canônicas
injustamente impostas, por bispos infiéis irados, que sustentam que sua
autoridade está sendo desprezada.
Mesmo em tão difíceis circunstâncias, contudo, a incidência do número
de exorcismos tem crescido continuamente. Houve um aumento da ordem
de 750% no número de exorcismos realizados entre o início dos anos 60 e
meados dos anos 70. Durante esse mesmo período houve um aumento
alarmante no número de possessões solicitadas – quer dizer, casos no qual o
possesso solicita formalmente que Satã o possua – em comparação com os
casos de possessão por sujeição, que resulta de outros tipos de atividades do
possesso facilitando a possessão.
A cada ano, são realizados cerca de 800 a 1300 exorcismos maiores, e
alguns milhares de exorcismos menores. Para especialistas da área, esse é
um modo confiável de se medir o aumento no número de casos verificados
de possessão. Ainda mais confiável, no entanto, é perceber quantos casos de
possessão não podem ser tratados de todo. Os milhares de cartas que eu
recebo de pessoas desesperadas em busca de ajuda – católicos, protestantes
ou descrentes – dão um testemunho eloqüente e angustiado dessa crise.
Os agentes da lei, entrementes, se vêem cada vez mais confrontados por
sinais, vindos de todos os lados, de crimes cometidos no curso de rituais
satanistas, ou como o resultado macabro da participação de um indivíduo
em tais rituais. Eles freqüentemente se vêem privados de acesso a
especialistas que forneçam assistência e aconselhamento, coisas que outrora
poderiam ser facilmente encontradas.
Àqueles que trabalham no campo do exorcismo, e que portanto adquirem
uma habilidade maior do que a média para descobrir e reconhecer as marcas
do satanismo ritualístico por aquilo que ele é, está claro que em algumas
delegacias o caráter satânico de um crime é ou relegado ao plano de fundo,
ou mesmo sequer mencionado – ao menos nos relatórios públicos.
Em geral, a polícia não tem outra escolha. Eles não têm nem a
competência nem a autoridade no sutil e perigoso campo do satanismo. Para
além do fato de que uma inútil descrição de detalhes satanistas
freqüentemente inspira imitações, qualquer tentativa de um policial – ou de
qualquer outra pessoa, incluso um exorcista treinado e autorizado, como
mostram os cinco casos descritos em Reféns do Demônio – de libertar um
indivíduo de um demônio possessor expõe o aspirante a resgatador a um
enorme risco de ataque demoníaco.
Uma similar falta de amparo é enfrentada, de igual modo, por terapeutas,
psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e outros que, como a polícia,
devem lidar com indivíduos em quadro anômalo. Pois, no contexto atual
que vivemos nos EUA, é incrivelmente alta a probabilidade de possessão
entre sujeitos manifestamente sádicos, violentos ou antissociais.
A resposta mais eficaz ao problema enfrentado pelos agentes da lei e
outros profissionais que devem lidar com as aflições do satanismo seria o
estabelecimento de uma colaboração próxima com aqueles que têm
reconhecida experiência no perigoso e secreto campo do exorcismo.
O desenvolvimento de uma tal rede de cooperação, na presente era,
contudo, parece ser algo próximo do impossível – dadas todas as
circunstâncias expostas acima e outras mais. Assim como os possessos com
os quais eles freqüentemente têm contato, tais profissionais são obrigados a
lidar com o problema do melhor modo possível, valendo-se de ferramentas
perfeitamente inadequadas, providas pelas normas seculares da lei e do
comportamento comum.
São, entretanto, os homens e mulheres comuns que em geral pagam o
preço mais alto. Pois, ainda que a maioria de nós passe a vida inteira sem
nunca topar com um centro satanista diante de si, nem tampouco seja
apresentado à possibilidade de integrar uma seita, a ausência de tais redes
interdisciplinares de cooperação entre especialistas e profissionais traz
conseqüências que nos afetam a todos.
Evidências concretas presentes num número considerável de crimes – em
certos casos de abuso infantil, por exemplo; e numa crescente epidemia
nacional de suicídios, assassinatos e estupros de jovens sem motivo
aparente – levam alguns investigadores laicos a supor, corretamente, que
um círculo de molestadores infantis pode estar, por assim dizer, articulado
em sua organização com outros grupos de criminosos.
No entanto, tal como as coisas se apresentam no momento, não há
evidência legalmente admissível que aponte para a existência de uma
organização nacional de grupos e seitas satanistas. Nem tampouco de que
membros de seitas nos Estados Unidos e no Canadá estejam consciente e
deliberadamente engajados numa conspiração nacional ou transfonteiriça.
De fato, nos Estados Unidos, as seitas podem se valer de proteção
constitucional para o exercício de seus ritos e cerimônias, contanto que
nenhuma infração dessa mesma lei lhes possa ser atribuída durante suas
atividades como membros da seita.
Embora o elemento satanista de tais grupos não deva interessar
diretamente à lei secular – ele deve, de fato, permanecer para além dos
limites da lei –, as leis são, sim, desrespeitadas durante a realização dos
cultos satanistas. Caso se entendesse que esses grupos existem em enorme
quantidade de costa a costa, que alguns deles podem estar ligados entre si, e
que suas atividades com freqüência desrespeitam ardilosamente a lei
secular, nós sem dúvida veríamos uma ampliação do círculo de
competências legais na lide com esse problema, pelo menos em algum grau.
Se a descrença implica vulnerabilidade, o inverso é igualmente verdade.
Dadas as condições gerais que nos cercam em nossa sociedade atual, é
importantíssimo perceber que, mesmo nas piores condições, ninguém pode
ser possuído sem ao menos algum grau de cooperação de sua parte. É
extremamente importante estar ciente de ao menos alguns dos fatores que
podem facilitar a colaboração entre um demônio possessor e um possuído.
Embora as causas de possessão demoníaca não possam ser fisicamente
dissecadas, ou reduzidas aos atuais padrões laboratoriais de “objetividade”,
é e sempre foi possível e necessário falar dessas causas com precisão
teológica.
A possessão demoníaca não é uma condição estática, um estado
imutável. Nem tampouco sofre-se uma possessão súbita, como se pode
quebrar a perna ou contrair sarampo. Antes, a possessão é um processo
contínuo. Processo que afeta as duas faculdades da alma: a inteligência,
pela qual um indivíduo recebe e internaliza o conhecimento, e a vontade,
pela qual um indivíduo escolhe agir segundo esse conhecimento.
A experiência nos permite identificar com clareza a existência de alguns
fatores que dispõem um indivíduo a colaborar, em inteligência e em
vontade, com um demônio possessor. Fatores dispositores, portanto.
A presença de tais fatores dispositores na vida de uma pessoa não indica
necessariamente que ela passará ao rol dos possessos. No entanto, e com
apenas raras exceções em minha experiência, um ou diversos desses fatores
dispositores estão a operar nos casos genuínos de possessão.
Alguns dos fatores dispositores mais comuns estão entre nós desde há
muito, enquanto outros são de lavra mais recente. Alguns são da ordem dos
“instrumentos” exteriores ao indivíduo – o tabuleiro ouija, por exemplo, e
as sessões de espiritismo. Outros são da ordem das “atitudes”, sejam elas
auto-incorporadas ou ensinadas por um terceiro – a Meditação
Transcendental e o Método do Eneagrama são dois dos mais proeminentes
nessa categoria.
Na possessão, todos os fatores dispositores produzem, na pessoa, uma
condição dessas duas faculdades da alma – inteligência e vontade – mais
apropriadamente descrita como vácuo de aspirações. Vácuo, pois é criada
uma ausência de conceitos claramente definidos e humanamente aceitáveis
para a inteligência. Aspirações, pois há uma correspondente ausência de
objetivos claramente definidos e humanamente aceitáveis na vontade desse
indivíduo.
No caso do tabuleiro ouija, da sessão espírita, da Meditação
Transcendental e do Método do Eneagrama os participantes devem se
colocar justamente numa disposição de abertura de si próprios; tornar-se
desejosos de tudo o que venha a acontecer e aceitá-lo.
O próprio termo ouija, por exemplo, é um indicador dessa abertura, pois
ele é composto de palavras francesas e alemãs – Oui e Ja – que querem
dizer Sim. A atitude do participante, na Ouija, é literalmente a de um “sim,
sim”. A inteligência deve estar receptiva a quaisquer sugestões ou conceitos
que lhe venham a ser apresentados. Se os participantes dispõem, também,
suas vontades ao aceite desses conceitos e agem obedecendo-os, completa-
se então o circuito de pré-disposição. O vácuo de aspirações começa a
operar, e tem poder suficiente para encher a mente com conceitos,
oferecendo-se ao consentimento da vontade.
Com muita freqüência, a inteligência e a vontade abrem-se precisamente
dessa mesma maneira no quadro de possessão.
Dentre a vasta gama de fatores dispositores que podem levar à possessão,
o Método do Eneagrama é, hoje em dia, de longe o mais comum e
pernicioso. Dado o estado geral da religião, não é de surpreender a
popularidade desse método, enormemente intensificada por ter sido adotado
e entusiasticamente propagado por teólogos e professores católicos de
importantes ordens religiosas – jesuítas, dominicanos e franciscanos – e por
alguns dos órgãos oficiais usados pelos bispos dos Estados Unidos e do
Canadá encarregados do ensino da doutrina religiosa aos jovens e adultos
católicos.
Mais ainda, como o Método do Eneagrama é atualmente apresentado
como ensinamento autorizado pelo Fórum Norte-Americano sobre o
Catecumenato – o órgão que fornece, às paróquias e dioceses dos Estados
Unidos e do Canadá, precisamente materiais que tragam as comunidades e
os indivíduos à maturidade da fé –, ele penetra profundamente nas
convicções e práticas religiosas, literalmente do berço à tumba dos fiéis.
A eficácia do Método do Eneagrama em sufocar a fé católica genuína é
tal que alguns o consideram como a ameaça mais letal já sofrida, até os dias
de hoje, na campanha empreendida para se liquidar a ortodoxia católica
entre os fiéis.
Como o próprio nome diz – eneagrama significa “nove pontos”, ou
“marcos” –, o eneagrama é uma mandala de nove pontas inseridas em um
círculo. O perfil do eneagrama na mandala quer representar uma flor de
lótus e, como descrito pelo psicólogo suíço Carl Jung, é “um símbolo que
representa o esforço de reunificação do eu”.
O eneagrama chegou ao ocidente por meio do finado mestre espiritual
orientalista George Ivanovich Gurdjieff. Gurdijeff, por sua vez, afirmava
que ele se originara entre os mestres sufi do Islã. Ele chegou aos Estados
Unidos por meio de “professores espirituais” do Chile, da Bolívia e do Peru
e, no início dos anos 70, foi disseminado pela primeira vez pelo Esalen
Institute em Big Sur, Califórnia, e pela Loyola University de Chicago. A
literatura existente hoje em dia sobre o tema é abundante.
De acordo com o ensinamento do eneagrama, existem exatamente nove
tipos de personalidade humana, cada uma das quais é representada por uma
das nove pontas da figura do eneagrama. Cada ser humano está,
invariavelmente, confinado num e tão somente um desses tipos de
personalidade. Mas, no âmago de seu tipo psicológico, cada pessoa pode se
aperfeiçoar até o infinito.
Duas características do método do eneagrama comportam ensinamentos
morais inconciliáveis com os ensinamentos morais básicos particularmente
católicos, e cristãos em geral.
A presunção básica que o eneagrama apresenta à inteligência é de que
cada indivíduo pode se aperfeiçoar sozinho, moralmente falando, dentro dos
limites do seu tipo de personalidade.
Essa presunção é, na realidade, uma nova roupagem da antiga heresia
conhecida como pelagianismo. Ela está em conflito com o ensinamento
cristão básico segundo o qual nós somos absolutamente dependentes da
ação da graça divina para toda perfeição moral. Por nós mesmos, nós nada
podemos. Nós não somente não somos capazes de nos auto-aperfeiçoar ao
infinito; não poderemos nunca, por nós mesmos, escapar sequer do fardo de
nossa natureza pecadora. Somente a graça sobrenatural nos permite fazê-lo.
E essa graça é, simplesmente, gratuita da parte de Deus.
O ensinamento do Método do Eneagrama corta tanto Deus quanto a Sua
graça da jogada. De fato, não há mais nenhuma “jogada” de todo. O
indivíduo é cortado do efetivo conhecimento de sua dependência de Deus e
de Sua graça sobrenatural, necessária à perfeição última. Ele se vê
confinado a um tipo inalterável de personalidade, o qual lhe foi revelado
por mestres do eneagrama.
A segunda característica moralmente errônea do Método do Eneagrama
completa o estrago causado pela primeira. Tendo aceito, de modo fatalista,
suas próprias características pessoais, o participante se vê dependente da
perfeição dos exercícios eneagramáticos adequados para o seu tipo de
personalidade. Em outras palavras, a alma do discípulo está aberta e dócil,
com o objetivo de receber o prometido autoconhecimento adequado ao seu
tipo. A alma torna-se o receptor apto clássico – o vácuo de aspirações –
pronto para a abordagem de um pretendente possessor.
Numa tal configuração, o possessor pretendente pode se apresentar como
aquilo que São Paulo descreveu, com dramática precisão, como um Anjo de
Luz. Mas o perigo é muito mais insidioso por isso. Pois de tal situação pode
resultar a condição comumente chamada “perfeita possessão”.
Como o termo sugere, uma vítima de perfeita possessão é absolutamente
controlada pelo espírito maligno e não dá nenhum sinal exterior, nenhuma
dica sequer, do demônio que a habita. Ela não reagirá com aversão, como o
farão outros possessos, ao sinal de símbolos religiosos como o crucifixo ou
o terço. O possesso perfeito não se furtará ao toque da água benta, nem
hesitará em discutir tópicos religiosos de forma serena.
Se condenado por algum crime, uma tal vítima irá, comumente,
reconhecer sua “culpa”, e mesmo a “maldade” dos atos cometidos. Com
freqüência, essa pessoa irá solicitar que sua vida física lhe seja confiscada;
que ela seja executada por seus crimes. Ela então, à sua própria maneira,
ecoa a insistente preferência satânica da morte sobre a vida, e o desejo
obstinado de ir ao encontro do Príncipe em seu reino.
Por conta de não haver mais vontade disponível para se recuperar a
vítima – e por conta de que uma parte, ao menos, da vontade da vítima é
necessária para que haja esperança de um exorcismo exitoso –, o remédio
tem poucas chances de sucesso, mesmo no caso de que a possessão seja de
algum modo descoberta e identificada como o verdadeiro problema.
Num sentido muito real, todos nós – os possessos, os profissionais que
com eles lidam tão amiúde; os pais que temem por seus filhos; todos
aqueles que vivem numa sociedade assolada por acontecimentos até outrora
inimagináveis – estamos, todos, no mesmo barco.
Até mesmo uma publicação tão sóbria e racional quanto o New York
Times julga pertinente, de tempos em tempos, publicar os mais sombrios
lamentos e profecias. Tomemos, por exemplo, o artigo de 15 de março de
1992, de Robert Stone, no qual ele diz abertamente que “nossa nação
representa a apoteose virtual do interesse-pessoal”. E ele segue dizendo que
“a natureza humana rejeita [o interesse pessoal] como finalidade, exigindo
algo mais elevado”. Então, falando especificamente das novas gerações,
Stone profere uma desesperançada advertência: “Se não podemos fornecer-
lhes uma causa para além da realização de seus desejos individuais, todos
os trunfos passados [da América] terão sido vãos”.
Esse é apenas um aviso, entre tantos outros, que os pais de todo o país
podem também endereçar a todo bispo desobediente, a todo clérigo infiel.
Esses pais podem endereçar-lhes também como um lembrete a
admoestação de São Paulo ao mago Élimas. Sob pretexto de instruir Sérgio
Paulo, um “homem prudente”, Élimas tentou, em verdade, corrompê-lo.
Sem nunca cair em tais dissimulações, nem nunca medir palavras, sempre
pronto a expor sua própria alma, Paulo, segundo se conta, “cheio do
Espírito Santo”, combateu o farsante. “Filho do demônio, cheio de todo
engano e de toda astúcia” – disse Paulo naquele dia – “inimigo de toda
justiça, não cessas de perverter os caminhos retos do Senhor!”.
Contudo, o melhor lembrete aos nossos clérigos é também o mais
simples e mais direto. Uma lembrança da admoestação do próprio Cristo a
seus apóstolos quando ameaçados pela fúria de uma tempestade no Lago de
Genesaré: “Homem de pouca fé, por que duvidaste?”.
Dos cinco exorcizados cujos casos são relatados em Reféns do Demônio,
nenhum deles estava perfeitamente possuído. Eles estavam todos aptos,
portanto, a se submeter ao rito de expulsão. Suas respectivas fortunas
variaram consideravelmente após o exorcismo. Nenhum deles voltou a cair
em possessão.
Marianne K. instruiu-se em prótese dentária, casou-se, e viveu por mais
aproximadamente dezessete anos. Ela morreu de câncer no início dos anos
80.
Jonathan Yves retirou-se do sacerdócio ativo. Ele trabalhou no campo da
informática por certo tempo, mas abandonou o trabalho e vive agora com
parentes seus. Ele nunca veio a se casar.
Richard O. levou uma vida bastante ativa como conselheiro e terapeuta
por alguns anos nos Estados Unidos antes de migrar para a Europa, onde
morreu no final da última década.
Jamsie Z. seguiu sua carreira no rádio e agora vive em semi-
aposentadoria como presidente da companhia que ele mesmo fundou.
Carl V. testou sua vocação religiosa em mais de um monastério antes de
decidir viver como um quase eremita numa parte remota dos Estados
Unidos. Mais do que todos os outros quatro exorcizados descritos em
Reféns do Demônio, Carl atingiu aquilo que mais de um de seus conhecidos
chamam, sem hesitar, de santidade. Nos últimos dois ou três anos de sua
vida, ele foi agraciado com uma particular compreensão da angústia
espiritual de homens e mulheres que procuravam aconselhamento. Muitos
deles falam do resplendor em seu olhar e do poder que ele tinha em trazer
paz às mentes confusas.
Dentre os exorcistas que se apresentaram a si próprios como reféns de
Satã pela liberação de suas vítimas, os padres Peter, David M. e Gerald
estão mortos. Pe. Mark A. vive em uma casa de repouso para sacerdotes. O
Pe. Hartney F. pode ser o único dentre eles a alcançar os cem anos de idade.
Ainda vivo e morando em uma casa de repouso, Pe. Hartney sofre de uma
artrite severa e só consegue celebrar a Missa com extrema dificuldade.
Todos esses cinco exorcistas treinaram diversos outros homens, e
incluíram em sua instrução a sabedoria e a abnegação necessárias a
qualquer um que queira voluntariamente doar-se a si como refém para
liberar outra pessoa das garras da possessão.
O epitáfio sobre a tumba do gentil Pe. Gerald atesta a vocação de todos
esses homens, e dá testemunho da fonte suas forças. Pois esse epitáfio
provém da boca do Deus de amor, em cuja glória Gerald agora repousa:
“Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus
amigos”. 2
Malachi Martin Nova Iorque, abril de 1992.
1 1Pd 5, 8.
2 Jo 15, 13 – NT.
Então! Caíste dos céus,
astro brilhante, filho da aurora!
Então! Foste abatido por terra,
tu que prostravas as nações!

Tu dizias:
Escalarei os céus
e erigirei meu trono acima das estrelas.
Assentar-me-ei no monte da assembléia,
no extremo norte.
Subirei sobre as nuvens
mais altas e me tornarei igual ao Altíssimo.

E, entretanto, eis que foste


precipitado à morada dos mortos,
ao mais profundo abismo.

Isaías 14, 12-15

“Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome!

Jesus disse-lhes: Vi Satanás cair


do céu como um raio.
Eis que vos dei poder para pisar serpentes,
escorpiões e todo o poder do inimigo.
Contudo, não vos alegreis porque os espíritos
vos estão sujeitos, mas alegrai-vos
de que os vossos nomes estejam escritos nos céus…

Todas as coisas me foram entregues por meu Pai…”

Lucas 10, 17-22


O DESTINO DE UM EXORCISTA
Michael Strong
— parte I
Quando a equipe de buscas adentrou o depósito de grãos abandonado
conhecido localmente como Puh-Chi (Uma Só Janela), o bombardeio em
Nanquim chegava ao seu ápice. O céu noturno brilhava com labaredas
incandescentes e explosões que o preenchiam. Bombas incendiárias
japonesas destruíam por completo as construções em madeira de Nanquim.
Era dia 11 de dezembro de 1937, por volta das dez horas da noite. O delta
do Yangtze estava, em toda sua extensão, sob domínio dos japoneses. Desde
Xangai, na costa, até cerca de cinco quilômetros de Nanquim via-se uma
área devastada na qual a morte instalara-se como atmosfera permanente.
Nanquim era o próximo alvo na lista dos invasores. Estava completamente
indefesa. O dia 13 de dezembro estava marcado como data de sua morte.
Por uma semana, a polícia de uma cidade ao sul de Nanquim vinha
procurando por Thomas Wu. A acusação: assassinato de ao menos cinco
mulheres e dois homens nas mais horríveis circunstâncias: Thomas Wu,
conta a história, havia assassinado suas vítimas e comido seus corpos. Ao
cabo de uma semana de buscas infrutíferas, o Padre Michael Strong, pároco
missionário do distrito, que havia batizado Thomas Wu, enviou uma
mensagem inesperadamente, dizendo que havia encontrado o homem no
celeiro Puh-Chi. Mas o capitão da polícia não entendeu a mensagem que
Pe. Michael lhe havia enviado: “Estou procedendo com um exorcismo. Por
favor espere um pouco”. 1
A porta principal do Puh-Chi estava entreaberta quando o capitão da
polícia chegou. Um pequeno aglomerado de homens e mulheres estava
assistindo. Eles podiam ver o Padre Michael de pé no meio do depósito.
Afastado num canto havia outra figura, um jovem nu, tomado de um olhar
anormalmente idoso, portando uma grande faca em suas mãos. Nas estantes
fixas às paredes do depósito jaziam pilhas e pilhas de corpos nus em
estágios diversos de mutilação e putrefação.
“VOCÊ!!”, o homem nu gritava, enquanto o capitão abria caminho
acotovelando-se para chegar até a porta, “VOCÊ quer saber o MEU
nome!”. As palavras “você” e “meu” atingiram o oficial como dois punhos
cerrados em seus ouvidos. Ele reparou que o padre ficara visivelmente
abalado, cambaleando para trás. Foi a voz, contudo, o que mais intrigou o
capitão. Ele conhecia Thomas Wu, mas nunca que o ouvira falar com uma
tal voz.
“Em nome de Jesus”, Michael iniciou debilmente, “eu ordeno...”.
“Saia daqui! Caia fora daqui, inferno! Seu eunuco velho e imundo!”.
“Você irá soltar Thomas Wu, espírito mau, e...”.
“Eu o estou levando comigo, seu pigmeu”, disse a voz que vinha de
Thomas Wu. “Estou levando-o. E nenhuma força, de nenhum lugar –
nenhum! está ouvindo? – pode nos parar. Nós somos tão fortes quanto a
morte. Ninguém é mais forte! E ele quer vir! Escutou? Ele quer!”.
“Diga-me o seu nome...”.
O padre foi interrompido por um bramido. Ninguém pôde dizer, mais
tarde, como o fogo se iniciou. Uma bomba incendiária? Uma faísca trazida
pelo vento dos incêndios em Nanquim? Súbito, ele se viu numa emboscada
armada discretamente. Num instante o fogo se alastrou, subindo pelo outão
do depósito como um inço incandescente, tomando o piso de madeira, as
paredes.
O capitão já estava lá dentro, e agarrou Pe. Michael pelo braço, puxando-
o para fora.
A voz de Wu o acompanhava em meio a todo aquele barulho: “É tudo um
só, seu idiota! Nós somos todos o mesmo. Sempre fomos. Sempre”.
Michael e o capitão estavam já do lado de fora e se voltaram para ouvir:
“Só há um de nós. Um...”.
O resto da sentença foi abafado por um súbito estouro de vigas de
madeira em chamas.
Agora, o retângulo de vidro da única janela do depósito se escurecia com
fumaça e fuligem. Em poucos minutos seria impossível ver qualquer coisa.
Michael voltou-se abruptamente e tentou enxergar algo lá dentro. Contra a
janela via-se o rosto de Thomas, petrificado num grotesco sorriso
arreganhado, em que se fixava sua agonia. Era um quadro horrível, um
pesadelo de Bosch tornado realidade.
Grandes línguas de fogo chicoteavam e lambiam as têmporas, pescoço e
cabelo de Thomas. Em meio aos estalos e chiados do fogo, Michael podia
ouvir risos do jovem, mas em volume bastante diminuto, quase inaudível.
Entre as chamas ele podia ver as estantes com suas pilhas de corpos
acinzentados. Alguns estavam a derreter, outros a queimar. Olhos escorriam
de suas órbitas como ovos quebrados. Cabelos queimavam em pequenos
tufos. Punhos, dedos, narizes e orelhas, membros inteiros e torsos
derretendo e enegrecendo. E o cheiro. Deus! Que cheiro!
E então, a fixidez do rosto de Thomas se desfez; sua face pareceu se
substituir por outra de traço similar. Na velocidade de um caleidoscópio a
girar, uma longa sucessão de carrancas se compunha e descompunha, uma
após a outra. Todas se contorcendo sobre o rosto de Thomas. Todas elas
com “a impressão digital de Caim gravada sobre o queixo”, como Michael
descreveu a marca que o perseguiu pelo resto de sua vida de padre. Todos
os tipos de expressão labial foram percorridos na forma caricatural da
última palavra de Thomas: “um!”. Faces e expressões que Michael nunca
havia visto. Outras que ele imaginava conhecer. Algumas que ele sabia ter
imaginado. Outras que ele vira em livros de história, pinturas, igrejas,
jornais, em pesadelos. Japoneses, chineses, birmaneses, coreanos,
britânicos, eslavos. Velhos, jovens, barbados, barbeados. Negros, brancos,
amarelos. Homens, mulheres. Cada vez mais rápido. Todas se moldando
sob a fôrma do mesmo sorriso arreganhado. Mais e mais... Michael se
sentia em colisão contra uma linha infindável de faces, décadas, séculos e
milênios passando violentamente diante dele, até que a velocidade
finalmente diminui, e surge a última face sobre o sorriso arreganhado,
moldada em ódio, uma grande impressão digital em seu queixo.
Agora a janela estava completamente enegrecida. Michael não podia ver
mais nada. “Caim...”, ele começou a dizer debilmente para si mesmo. Mas
uma intuição súbita o atravessou como uma facada, retendo a palavra em
sua garganta, como se alguém houvesse acabado de sussurrar em seu
ouvido: “Errado de novo, idiota! O pai de Caim. Eu. O Pai Cósmico da
Mentira e o Senhor Cósmico da Morte. Desde o princípio dos princípios.
Eu... Eu... Eu... Eu... Eu...”.
Michael sentiu uma forte dor em seu peito. Uma mão forte envolvia seu
coração, retendo seu movimento, e um peso insuportável se instalou em seu
peito, puxando-o para baixo. Ele ouviu o sangue pulsando em sua cabeça e
o rugir de uma forte pancada de vento. Um clarão ofuscante de luz estourou
diante de seus olhos. Ele desabou no chão.
Um par de mãos firmes arrancou Michael de diante da janela bem a
tempo. O celeiro se transformara então num verdadeiro inferno. Num golpe
violento, o telhado desabou. As chamas se elevaram triunfalmente e
lambiam as paredes externas, queimando e consumindo tudo vorazmente.
“Tire o velho daqui!”, gritou o capitão por entre a fumaça e o fedor.
Todos eles ficaram encarvoejados. Michael, pendurado no ombro de um
homem, balbuciava e soluçava incoerentemente. O oficial mal podia
entender suas palavras:
“Eu falhei... Eu falhei... Eu devo voltar para lá. Por favor... Por favor...
Devo voltar... Não depois... Por favor...”.
A condição de Michael já era crítica quando o levaram para o hospital.
Além de queimaduras e da inalação de fumaça, ele havia sofrido um ataque
cardíaco leve. Ele continuou a delirar até à noite seguinte.
Antes da queda de Nanquim, ele foi transportado secretamente pelo
capitão de polícia – um fiel – e alguns paroquianos. Partiram rumo ao oeste,
escapando com muita dificuldade das estreitas zonas de controle japonesas.
Em 14 de dezembro, o Alto Comando Japonês soltou 50 mil de seus
soldados na cidade com ordens para que matassem toda pessoa viva. A
cidade se tornou um matadouro. Grupos enormes de homens e mulheres
foram usados por soldados que treinavam a prática da baioneta e da
metralhadora. Outros eram queimados vivos ou lentamente cortados em
pedaços. Filas de crianças eram decapitadas por vorazes oficiais samurais,
competindo para ver quem podia cortar o maior número de cabeças num só
golpe de espada. Mulheres eram estupradas pela tropa e posteriormente
queimadas. Fetos eram arrancados vivos dos ventres, retalhados e dados
como comida aos cães.
Ao todo, cerca de 42 mil pessoas estavam mortas. A morte dominara
Nanquim, como o fizera com todo o delta Yangtze. Animais e safras
morriam e apodreciam nos campos.
Era como se o espírito com que Michael se havia confrontado, na
microescala da necrópole de Thomas Wu em Nanquim – “o Senhor
Cósmico da Morte” – estivesse agora solto por todo o território. Com os
perturbadores eventos ocorridos nos anos de guerra, deu-se rédea solta a
algumas crueldades, que gravaram-se em centenas de milhares de pessoas
com a marca de uma autoridade absoluta e irresistível. A morte era a arma
mais forte. Ela resolvia todas as disputas sobre quem era o líder. E ela
acabou reivindicando todos como suas vítimas, dando a todos o mesmo
estatuto. Na guerra, onde a morte é sempre vitoriosa, você tenta tê-la do seu
lado.
Michael foi finalmente levado a Hong Kong ao cabo do verão de 1938,
depois de um percurso consideravelmente longo. Ali, sabiam os realistas
que era apenas uma questão de tempo até que os japoneses, vitoriosos,
tomassem tudo.
No dia de Natal de 1941, Hong Kong tornou-se possessão japonesa.
Durante os anos de ocupação, Michael viveu discretamente em Kowloon,
ensinando um pouco em escolas, fazendo alguns trabalhos pastorais. Ele se
recuperava a passos lentos.
Durante esse período, todos estavam sob tensão. A comida era escassa. O
assédio por parte dos japoneses ocupantes era extremo. E todos vivam com
a plena convicção de que, exceto por um milagre, caso os japoneses
precisassem evacuar a cidade, massacrariam todos; e se ficassem,
acabariam matando os que não pudessem escravizar.
Ainda assim, Michael padeceu toda a dificuldade física com maior
facilidade que aqueles ao seu redor. Ele sofreu dois outros ataques cardíacos
durante a ocupação japonesa, mas eles não enfraqueceram seu espírito em
nada. Michael não padeceu, como seus colegas, a insuportável incerteza, a
tensão de esperar ou a morte pelas mãos japonesas, ou a liberdade em mãos
aliadas. Como alguns de seus conhecidos notaram, seus sofrimentos não
eram tanto corporais, ou mentais ou na imaginação. Ele já viera do interior
da China destruído a tal ponto que nem o repouso, nem o alimento e nem
mesmo uma atenção amorosa que se lhe devotasse poderiam repará-lo.
Para os poucos que conheciam sua história, era claro que ele só havia
pagado uma parte de sua dívida enquanto exorcista. Ele falava abertamente
sobre essa dívida. E de seu fracasso. Tanto quanto ele, eles entendiam que
seria preciso quitar esse débito cedo ou tarde.
O credor de Michael o fascinava, estava sempre em sua mente. Por
exemplo, próximo ao final da ocupação japonesa de Hong Kong, ele e um
amigo estavam assistindo ao vôo de bombardeiros americanos que
avançavam impavidamente, como pássaros encantados por entre uma chuva
de disparos do sistema antiaéreo japonês. Eles descarregavam suas bombas
e partiam ilesos pelo horizonte. Michael, com as explosões e fogos
prosseguindo no porto, murmurou: “Por que é que a morte produz o mais
forte fragor, e as mais vívidas chamas?”.
Algumas semanas mais tarde, um clarão mais vívido que o sol se
alastrou, sob a forma de um cogumelo, sobre Hiroshima. Um novo recorde
humano: mais pessoas foram mortas e mutiladas por essa única ação
humana do que por qualquer outra jamais registrada pela história do
homem.
Eu ficaria sem notícias de Michael por alguns anos – ou do preço
especial que ele pagou, dia a dia, até sua morte, pela derrota nesse estranho
exorcismo em Puh-Chi.

1 Este é o único exorcismo relatado neste livro do qual não tenho transcrição e para o qual não pude
conduzir extensas entrevistas. Minha única fonte foi o próprio Padre Michael, que me relatou os
acontecimentos e permitiu que eu lesse seus diários.
Pequeno manual de exorcismo
Avasta publicidade feita ultimamente sobre exorcismo enfatizou os apuros
vividos pelo possesso como um novo gênero de filme de terror. A essência
do mal envolvido perde-se ali, em meio aos efeitos cinematográficos. E o
exorcista, que se arrisca mais do que qualquer um num exorcismo, passa
rapidamente pela tela como alguém necessário mas, no fim das contas, não
tão interessante quanto os efeitos sonoros.
A verdade é que a relação entre esses três agentes – o possuído, o espírito
possessor e o exorcista – aponta para um aspecto da realidade e do sentido
mesmo da vida que nos toca a todos, em nossas próprias vidas.
A possessão não é um processo mágico. O espiritual é real; na verdade, o
espiritual é a base do real. A “Realidade” não seria apenas tediosa sem o
espírito: ela não teria qualquer sentido. Nenhum filme de terror seria capaz
de captar o horror de tal visão: um mundo sem espírito.
O espírito mau é pessoal e inteligente. É preternatural, no sentido de que
não é deste mundo material, mas está neste mundo. Um espírito mau, assim
como um bom, avança conforme as linhas de nossa vida quotidiana. Os
espíritos, por meios bastante ordinários, usam e influenciam nossas ações,
pensamentos, costumes e, de fato, todos os fios que compõem o tecido de
nossas vidas, em todo tempo e lugar. A vida contemporânea não foge a essa
regra.
Comparar os espíritos com os elementos de nossas vidas e do mundo
material, os quais eles podem e por vezes realmente manipulam para seus
próprios fins: eis um erro fatal e freqüentemente cometido. Sons estranhos
podem ser produzidos por espíritos – mas o espírito não é o som estranho.
Pode-se fazer objetos voarem pela sala, mas a telecinésia não é mais
espiritual do que os objetos materiais que se moveram. Um dos homens
cuja história é contada neste livro cometeu o erro de pensar o contrário, e
quase teve de pagar com sua própria vida ao confrontar-se com seu engano.
O exorcista é a peça central de todo exorcismo. Dele depende tudo. Ele
não tem nada de pessoal a ganhar. Mas, em cada exorcismo, arrisca
literalmente tudo o que lhe é caro. Um exemplo extremo do destino
reservado ao exorcista foi o de Michael Strong. Mas todo exorcista deve se
engajar numa confrontação individual, pessoal e implacável com o mal em
estado puro. Uma vez iniciado, o exorcismo não pode ser abandonado.
Haverá sempre um vencedor e um vencido. E não importa qual seja o
resultado, o contato é, em parte, fatal para o exorcista. Ele deve consentir
com certa perda, terrível e irreparável, em seu mais profundo eu. Algo nele
morre. Uma parte de sua humanidade irá definhar por um contato tão
próximo ao oposto de tudo quanto seja humano – a essência do mal; e é raro
que ele se recupere disso. Nenhuma recompensa lhe será oferecida por essa
perda.
Este é o preço mínimo que um exorcista paga. Se ele perde na luta com
um espírito mau, contudo, sofre ainda pena adicional. Ele pode ou não vir a
realizar novamente um rito de exorcismo, mas deverá um dia confrontar-se
com e vencer o espírito maligno que outrora o rechaçou.
A investigação conduzindo a um possível exorcismo geralmente começa
por conta de um homem ou uma mulher – por vezes uma criança – cujo
caso é trazido ao conhecimento das autoridades da Igreja por familiares ou
amigos. É raro que um possesso tome a iniciativa de fazê-lo
espontaneamente.
As histórias contadas nessas situações são dramáticas e dolorosas:
estranhas moléstias físicas que tomam o possuído, perceptível desarranjo
mental, óbvia repulsa a qualquer signo, símbolo, menção ou visão de
objetos, lugares, pessoas e cerimônias religiosas.
Freqüentemente, relatam amigos e família, a presença da pessoa em
questão é marcada pelos assim chamados fenômenos psíquicos: objetos
voam pela sala, papéis de parede começam a descascar, móveis racham,
louças se quebram, ouvem-se estranhos roncos, silvos e outros barulhos
sem fonte aparente. Freqüentemente, a temperatura no cômodo em que está
o possuído despenca dramaticamente. Ainda com maior freqüência um odor
acre e fétido acompanha a pessoa.
Transformações físicas violentas parecem, por vezes, tornar as vidas dos
possessos numa espécie de inferno na terra. Seus processos normais de
secreção e excreção sofrem alterações inexplicáveis – quantidades
exageradas –, dores lancinantes. Suas consciências parecem tomadas pelo
matiz violento da revolta. Os reflexos às vezes se tornam inconstantes ou
anormais, chegando a desaparecer por certos períodos. A respiração pode
ser interrompida por longos períodos. Torna-se difícil detectar os
batimentos cardíacos. A face se distorce estranhamente, às vezes
mostrando-se também anormalmente comprimida ou lisa, sem a menor ruga
ou marca.
Quando tais casos lhes são trazidos, o primeiro problema, a questão
central que as autoridades da Igreja sempre colocam é: estará essa pessoa
realmente possessa?
Henri Gesland, padre francês e exorcista que hoje trabalha em Paris,
afirmou em 1974 que, das 3 mil consultas por ele realizadas desde 1968,
“havia apenas quatro casos do que eu acredito ser possessão demoníaca”. T.
K. Osterreich, por outro lado, afirma que “a possessão tem sido um
fenômeno extremamente comum, os casos abundam na história da religião”.
A verdade é que um consenso oficial ou acadêmico quanto à possessão
nunca chegou a ser estabelecido.
É certo que muitos dos que clamam estar possessos, ou dos descritos por
terceiros como tal, são meras vítimas de alguma doença mental ou física.
Ao ler relatórios dos tempos em que as ciências médica e psicológica não
existiam ou eram muito pouco desenvolvidas, fica claro que erros graves
foram cometidos. Uma vítima de esclerose múltipla, por exemplo, foi
tomada por possuída por conta de seus espasmos, tropeços e os terríveis
ataques de dor na coluna vertebral e nas juntas. Até muito recentemente, a
vítima de síndrome de Tourette era o alvo perfeito para a acusação de
“possuído!”: torrentes de profanações e obscenidades, grunhidos, latidos,
blasfêmias, ganidos, bufos, fungadas, tiques, forte bater de pés, contorções
faciais, tudo isso surge subitamente, e de modo igualmente súbito cessa.
Hoje em dia, a síndrome de Tourette responde a tratamento medicamentoso;
parece que se trata de uma doença neurológica envolvendo uma
anormalidade química no cérebro. Muitas pessoas que sofrem de doenças
bem conhecidas hoje em dia, tal como a paranóia, coréia de Hintington,
dislexia, mal de Parkinson ou mesmo doenças de pele (psoríase, herpes I,
por exemplo), foram tratadas como “possessas” ou ao menos “afetadas”
pelo Demônio.
Hoje em dia, as autoridades competentes da Igreja insistem em que sejam
feitos rigorosos exames da pessoa levada até eles para o exorcismo,
conduzidos por médicos e psiquiatras qualificados.
Quando um caso de possessão é relatado por um padre às autoridades
diocesanas, o exorcista da diocese é levado até lá. Caso não haja exorcista
diocesano, indica-se alguém para a função, ou traz-se um homem de fora
para a diocese.
Por vezes, o padre que traz o relato de possessão às autoridades manda
realizar, por sua própria iniciativa e de antemão, alguns testes médicos e
psiquiátricos preliminares no sujeito, com o objetivo de abrandar o
cauteloso ceticismo com que ele provavelmente se defrontará na
chancelaria ao descrever o problema. Quando o exorcista oficial assume o
caso, ele geralmente conta com seus próprios especialistas para um exame
minucioso, e um julgamento no qual ele sabe poder confiar.
Antigamente, cada diocese da Igreja tinha um padre a quem era atribuída
a função de exorcista. Nos tempos modernos, essa prática caiu em desuso
em algumas dioceses, basicamente por conta de a incidência de possessões
registradas haver diminuído ao longo dos últimos cem anos. Mas, na
maioria das grandes dioceses, há ainda um padre a quem é confiada essa
função – ainda que ele não a exerça nunca ou só raramente. Em algumas
dioceses, há um arranjo privado entre o bispo e um dos padres que ele
conhece e em quem confia.
Não existem, oficialmente, consultas com exorcistas disponíveis ao
público. Em algumas dioceses, “o bispo pouco sabe do assunto e quer saber
ainda menos” – como exposto em um dos casos registados neste livro. Mas
independentemente de como ele chega a obter essa sua posição, o exorcista
deve dispor de sanção oficial da Igreja, pois ele está agindo em instância
oficial, e todo poder que ele tenha sobre o Espírito Mau só pode vir
daqueles clérigos que pertencem à substância da Igreja de Cristo, quer eles
sejam católicos romanos, orientais ortodoxos ou de confissões protestantes.
Às vezes um padre diocesano procederá com um exorcismo ele próprio sem
consultar o bispo, mas os casos desse tipo de que tive conhecimento
falharam, todos.
É reconhecido, tanto nos exames pré-exorcismo quanto no transcorrer do
próprio exorcismo em si, que não há, geralmente, qualquer aberração física
ou psíquica, nem qualquer anormalidade na pessoa possuída que não se
possa explicar por uma causa física conhecida ou provável – e, além dos
testes médicos e psicológicos comuns, existem também outras fontes
possíveis para diagnóstico. Por mais frágeis e incertas que sejam as
descobertas da parapsicologia, por exemplo, pode-se encontrar em suas
teorias de telepatia e telecinésia uma explicação para alguns dos sinais de
possessão. Sugestão e sugestibilidade, como o chamam os psicoterapeutas
modernos, pode explicar uma grande parte deles.
E, ainda assim, mesmo com diagnósticos e opiniões de médicos e
psicólogos em mãos, descobre-se freqüentemente que há uma grande
margem de flutuação. Psiquiatras competentes podem divergir
enormemente entre si; e, na psicologia e medicina, a ignorância das causas
é amiúde camuflada com nomes técnicos e jargões que não são senão
termos descritivos.
Não obstante, os relatórios médicos e psicológicos combinados são
cuidadosamente avaliados e, geralmente, pesam muito no julgamento final
quanto a se proceder ou não com o exorcismo. Se, de acordo com esses
relatórios, há de fato uma doença bem definida, que explica adequadamente
o comportamento e os sintomas do sujeito, o exorcismo é em geral
descartado, ou ao menos postergado, permitindo que se dê curso a um
tratamento médico ou psiquiátrico.
Mas finalmente, com os relatórios em mãos, e dispondo de todas as
evidências, as autoridades da Igreja julgam a situação sob um outro ponto
de vista, especial, uma visão de seus próprios profissionais.
Eles acreditam que exista uma força invisível, um espírito mau; que esse
espírito pode, por razões obscuras, tomar posse de um ser humano; que o
espírito maligno pode e deve ser expulso – exorcizado – da pessoa
possuída; e que esse exorcismo só pode ser feito sob a autoridade e em
nome de Jesus de Nazaré. Os testes da Igreja são tão rigorosos em suas
buscas quanto qualquer exame médico ou psicológico.
Nos registros do exorcismo cristão que remontam à própria época de
Jesus, uma peculiar repulsa aos símbolos e verdades da religião mostra- -se,
sempre e sem exceção, marca de uma pessoa possuída. Na verificação de
um caso de possessão pelas autoridades da Igreja, esse “sintoma” de repulsa
é cruzado com outros fenômenos freqüentemente associados à possessão –
um fedor inexplicável, temperatura congelante, poderes telepáticos no
campo dos temas religiosos e morais, uma pele peculiarmente lisa,
desprovida de rugas, como que esticada, uma distorção incomum da face ou
outras transformações físicas e comportamentais; “gravidade de posse” (é
impossível mover a pessoa possuída, ou então aqueles ao redor do possesso
sentem um peso que os puxa para baixo com uma pressão sufocante),
levitação (o possesso se ergue e flutua sobre o solo, cadeira ou cama, sem
que haja suporte físico identificável para tanto), violentas colisões da
mobília em torno, constante abrir e fechar de portas, rasgar de tecidos
próximos ao possesso sem que ninguém os toque, e assim por diante.
Quando se mapeiam os variados sintomas possíveis, e os diagnósticos
médicos e psiquiátricos não bastam para que se compreenda o quadro,
decide-se geralmente por proceder com uma tentativa de exorcismo.
Nunca houve, até onde eu sei, uma listagem oficial de todos os
exorcistas, compilados juntos com suas biografias e características. Assim,
não podemos satisfazer nossa ânsia moderna por um perfil do, digamos,
“exorcista padrão”. É possível, contudo, dar uma definição bastante clara do
tipo de homem que se encarrega do exorcismo de um possesso. Geralmente,
ele está engajado no ministério ativo em alguma paróquia. É raro que se
trate de um tipo acadêmico, envolvido com o ensino ou a pesquisa. É raro
que se trate de um padre recém-ordenado. Se existe algo como uma média
de idade para os exorcistas, ela se encontra provavelmente entre os
cinqüenta e sessenta e cinco anos. Uma saúde física robusta e vigorosa não
é traço característico nos exorcistas, como tampouco o é um comprovado
brilho intelectual, a detenção de diplomas de pós-graduação seja em
psicologia ou em filosofia, uma cultura pessoal muito sofisticada... Na
experiência deste escritor, os 15 exorcistas que ele conheceu eram
particularmente carentes em tudo quanto se parecesse com uma imaginação
vívida ou um treino humanístico rico. Todos eram homens sensíveis, de
uma mente antes sólida do que extremamente brilhante. Embora existam, é
claro, muitas exceções, as razões comuns para a escolha de um padre são
suas qualidades de julgamento moral, comportamento pessoal e convicções
religiosas – qualidades que não se adquirem por meios sofisticados ou
laboriosos, mas que parecem de algum modo haver sempre e naturalmente
integrado um homem assim. Religiosamente falando, trata-se de qualidades
associadas a uma graça especial.
Não existe treinamento especial para um exorcista. Antes que um padre
se envolva com essa prática, é tido como aconselhável – mas nem sempre
possível ou exeqüível – que ele assista alguns exorcismos conduzidos por
um padre mais velho e experiente.
Uma vez que a possessão tenha sido satisfatoriamente verificada pelo
exorcista, ele toma as posteriores decisões e prepara aquilo que for
necessário. Em algumas dioceses, é ele quem escolhe o padre assistente. A
escolha dos assistentes leigos, do prazo e do local para o exorcismo também
são deixadas a seu cargo.
O local do exorcismo é geralmente a casa da pessoa possuída, pois, em
geral, os parentes e amigos mais próximos são os únicos que ainda lhe
dedicam atenção e amor em circunstâncias tão ameaçadoras. O cômodo
escolhido é, muito freqüentemente, aquele que tenha um significado
especial para a pessoa possuída, não raro seu quarto, a sua “toca”. Nesse
sentido, um aspecto da possessão e do espírito se revela: a íntima relação
entre espírito e localização física. A confusão entre espírito e espaço se faz
sentir de diversas formas, e ocorre em praticamente todo exorcismo. Existe
uma explicação teológica para isso. Mas, de todo modo, uma certa conexão
entre espírito e lugar deve ser tomada como um fato.
Uma vez escolhido o cômodo em que o exorcismo será feito, despe-se o
local ao máximo de tudo quanto possa se mover. Durante o exorcismo, uma
forma de violência pode fazer – e no mais das vezes o faz – com que
qualquer objeto, seja leve ou pesado, se mova, chacoalhe para frente e para
trás, deslize ou voe pelo cômodo, faça muito barulho, atinja o padre, o
possesso ou os assistentes. Não é raro que as pessoas saiam de um
exorcismo com lesões físicas graves. Carpetes, tapetes, quadros, cortinas,
mesas, cadeiras, caixas, baús, roupas de cama, escrivaninhas, castiçais, tudo
é removido.
As portas freqüentemente se abrem e fecham incontrolavelmente e com
força; mas como o exorcismo pode durar muitos dias, não se as pode pregar
ou trancar com especial segurança. A soleira da porta, entretanto, deve estar
protegida; do contrário a força física que emana do interior do cômodo irá
atingir o primeiro a se aproximar da porta – a experiência assim o mostra.
Janelas são fechadas com segurança; por vezes pode-se cobri-las com
placas, impedindo que objetos voadores colidam contra elas e prevenindo
acidentes mais extremos (as pessoas possuídas às vezes tentam defenestrar-
se; forças físicas às vezes propelem os assistentes ou o exorcista contra as
janelas).
Uma cama ou um sofá é geralmente deixado no cômodo (ou ali instalado,
se necessário), e é ali que o indivíduo possesso é colocado. Uma pequena
mesa é necessária. Nela são dispostos um crucifixo, com uma vela de cada
um de seus lados, água benta e um livro de orações. Às vezes haverá
também uma relíquia de um santo ou uma imagem considerada
especialmente santa ou significativa para o possuído. É cada vez mais
comum nos Estados Unidos que se utilize um gravador , que é colocado no
chão ou numa gaveta, ou então, por vezes, pendurado ao pescoço de um
assistente, se não for muito pesado.
O jovem padre que acompanha o exorcista é geralmente indicado pelas
autoridades diocesanas. Ele está ali para preparar-se enquanto exorcista;
observará as palavras e ações do exorcista, o avisará se estiver cometendo
um erro, o ajudará se fraquejar fisicamente, e o substituirá se morrer, tiver
um colapso, abandonar o caso, se estiver física ou emocionalmente abalado
para além do limite do suportável – e todas essas coisas já aconteceram
durante exorcismos.
Os outros assistentes são leigos. Muito freqüentemente, um médico
compõe a assistência por conta do risco geral de choques e ferimentos. O
número de assistentes leigos dependerá da expectativa do exorcista quanto à
violência do procedimento. Quatro é o número mais comum. É claro, em
áreas remotas do país ou em missões cristãs muito isoladas, ou por vezes
em grandes centros urbanos, não existe a possibilidade de se contar com
assistentes. Simplesmente não há ninguém disponível, ou não há tempo
para se conseguir alguém. O exorcista deve fazer tudo sozinho.
Por experiência, um exorcista acaba sabendo o que pode esperar em
termos de comportamento violento; e, para o bem dos próprios sujeitos
possuídos, em geral eles devem ser fisicamente contidos durante certas
partes do exorcismo. Os assistentes, portanto, devem ser fisicamente fortes.
Ademais, pode-se dispor de uma camisa de força, embora o uso de tiras de
couro ou cordas seja mais comum.
Cabe ao exorcista certificar-se de que seus assistentes não têm
consciência de culpa de pecados pessoais no momento do exorcismo, pois
também eles podem vir a ser atacados pelo espírito maligno, embora não
tão direta ou constantemente quanto o próprio exorcista. Todo pecado será
usado como uma arma.
O exorcista deve estar tão seguro quanto possível, de antemão, de que
seus assistentes não se enfraquecerão nem serão subjugados por
comportamentos obscenos ou uma baixeza de linguagem para além de suas
imaginações; eles não podem empalidecer à vista de sangue, excremento ou
urina; devem estar prontos a suportar insultos pessoais horríveis e
preparados para terem seus segredos mais obscuros expostos publicamente
aos gritos, diante de seus companheiros. Esses são eventos corriqueiros
durante os exorcismos.
Aos assistentes são dadas três regras essenciais: devem obedecer às
ordens do exorcista imediatamente e sem questionar, não importa quão
absurdas ou frias possam lhes parecer; eles não devem tomar qualquer
iniciativa, exceto sob comando; e não devem nunca falar com o possesso,
mesmo que numa exclamação involuntária.
Mesmo com todo o cuidado do mundo, é impossível ao exorcista
preparar seus assistentes completamente quanto àquilo que lhes é reservado.
Ainda que eles não estejam sujeitos aos ataques diretos e incessantes a que
o padre se submeterá, não é incomum aos assistentes abandonarem ou
serem retirados do exorcismo em curso. Exorcistas mais experientes
chegam ao ponto de fazer umas tantas rodadas de experimentação, com
base na velha teoria de que um sujeito precavido vale por dois – pelo menos
até certo ponto.
O tempo de um exorcismo é geralmente ditado pelas circunstâncias. É
comum que haja um sentimento de urgência para que se o inicie o quanto
antes. Todos os envolvidos devem ter uma agenda livre. É raro que um
exorcismo dure menos do que algumas horas – mais comumente dez ou
doze. Às vezes ele pode se estender por até dois ou três dias.
Ocasionalmente chega a semanas.
Uma vez iniciado, salvo por raras ocasiões, não há pausas, embora uma
ou outra pessoa presente possa deixar o aposento por alguns instantes para
comer, descansar muito brevemente ou ir ao banheiro. (Um estranho
exorcismo no qual se fez uma pausa é descrito neste livro. O padre
envolvido teria preferido mil vezes levar o exorcismo a cabo de uma vez do
que ter sofrido a fúria violenta causada por tal adiamento).
As únicas pessoas que se vestem de um modo especial são o exorcista e
seu padre assistente. Cada um deles traja uma longa batina preta que os
cobre do pescoço aos pés. Sobre a batina veste-se sobrepeliz branca. Uma
estola estreita roxa é portada ao redor do pescoço e corre ao longo do
tronco.
Geralmente, o padre assistente e os auxiliares leigos preparam o cômodo
de acordo com as instruções do exorcista. Eles e o exorcizando estão
prontos na sala quando o exorcista entra, por último e sozinho.
Não existe algo como um dicionário do exorcismo; não há manual ou
conjunto de regras, não há Baedeker 1 dos Espíritos Malignos a ser seguido.
A Igreja provê um texto oficial para o exorcismo, mas trata-se apenas de
uma base. Pode-se lê-lo em voz alta em 20 minutos. Ele simplesmente
provê a fórmula com as palavras precisas e algumas orações e ações rituais,
de modo a que o exorcista disponha de uma estrutura preestabelecida com a
qual ele possa se dirigir ao espírito maligno. De fato, a condução de um
exorcismo é deixada em grande parte a cargo do exorcista.
Não obstante, todo exorcista experiente com que eu já falei concorda
num ponto: há um progresso de estágios reconhecível num exorcismo, não
importa o quanto ele possa durar.
Um dos mais versados exorcistas que eu já conheci, condutor do primeiro
exorcismo relatado neste livro, dá nomes aos vários estágios gerais do
processo. Esses nomes refletem o significado geral, o efeito ou a intenção
daquilo que está acontecendo, mas não os meios específicos utilizados pelo
espírito maligno ou pelo exorcista. Conor, como eu o chamo, fala em
presença, afetação, ponto de quebra, voz, choque e expulsão. Os eventos e
estágios que esses nomes codificam ocorrem em nove a cada dez
exorcismos.
Desde o instante em que o exorcista entra no cômodo, uma sensação
peculiar parece tomar o próprio ar. Dali em diante, em todo exorcismo
genuíno, todos que estiverem no aposento tomam consciência de alguma
Presença estranha. Esse sinal indubitável de possessão é tão inexplicável e
inequívoco quanto incontornável. Todos os sinais de possessão, sejam
ruidosos e grotescos, ou então mais sutis ou discutíveis, parecem contidos
nessa Presença.
Não há sinal físico claro da Presença, mas todos a sentem. É preciso
experimentá-la para entender; não se pode localizá-la espacialmente – nem
ao lado, nem acima, nem dentro do possesso, num canto do aposento, sob a
cama ou pairando no ar.
Em certo sentido, a presença não está em lugar nenhum, e isso só
aumenta o terror, pois há uma presença, um outro que está ali. Não se trata
de um “ele” ou “ela” ou “isso”. Às vezes parece que esse ente é singular, às
vezes, plural. Ao falar, no curso do exorcismo, ele por vezes se referirá a si
como “eu”, por vezes como “nós”; usará “meu” ou então “nosso”.
Invisível e intangível, a presença causa transtorno em todos os humanos
que se reúnem na sala de exorcismo. Você pode exercitar seu cérebro e
tentar produzir dela uma imagem mental. Pode ainda dizer a si mesmo:
“Estou imaginando isso. Cuidado! Não entre em pânico!” e sentir então um
alívio momentâneo. Mas a seguir, após um intervalo de uns poucos
segundos, a presença retorna como um silvo inaudível no cérebro, uma
ameaça muda contra a sua pessoa. Seu nome e essência parecem ser
compostos de ameaça, parecem ser pura e simples malignidade, buscar
obstinadamente o ódio pelo ódio, a destruição pela destruição.
Nos estágios iniciais de um exorcismo, o espírito maligno tentará de tudo
para se “esconder atrás” do possesso, por assim dizer – parecendo ser uma
só e única pessoa e personalidade junto a sua vítima. Essa é a fase de
afetação.
A primeira tarefa do padre é quebrar essa afetação, forçando o espírito a
revelar-se como ente separado do possesso – e nomear-se a si, pois todos os
espíritos possessores são chamados por um nome que em geral (embora não
sempre) tem a ver com o modo como esse espírito age sobre a vítima.
Quando o exorcista inicia seu serviço, o espírito maligno pode
permanecer em completo silêncio; ou então pode falar com a voz do
possesso, e utilizar experiências passadas e lembranças do possesso. Ele o
faz geralmente de forma hábil, utilizando detalhes que ninguém senão o
possesso poderia conhecer. Isso pode ser muito perturbador, e até mesmo
enfraquecedor: pois todos, inclusive o padre, podem vir a crer que é o
sacerdote o vilão, sujeitando um inocente a rigores terríveis. Mesmo os
maneirismos e características do possesso são usados pelo espírito como
camuflagem.
Por vezes o exorcista passa dias sem conseguir destruir a afetação. Mas
até fazê-lo, ele não pode mudar seu foco de atenção. Se não a destruir, ele
perde o jogo. Talvez um outro exorcista substituto possa vir a conseguir.
Mas ele, particularmente, foi vencido.
Todo exorcista aprende, durante a fase da afetação, que está lidando com
um tipo de força por vezes muito ardilosa, noutras vezes extremamente
inteligente, e que noutras ainda demonstra uma estupidez grosseira (o que
nos faz questionarmo-nos, posteriormente, sobre a questão do
singular/plural); ela é, ao mesmo tempo, muito perigosa e extremamente
vulnerável.
Curiosamente, ao mesmo tempo em que esse espírito – ou poder, ou força
– conhece detalhes os mais secretos e íntimos das vidas de todos no recinto,
ele também demonstra lacunas de conhecimento quanto a coisas que podem
estar em curso num instante do presente.
Mas o padre não deve se iludir com pequenas vitórias nem contar com a
estupidez do espírito. Ele deve estar pronto para ter seus próprios pecados,
erros e fraquezas trazidos à mente ou bradados numa horrível voz para
todos ouvirem. Ele não deve se desculpar por seu passado e nem fraquejar,
ainda que veja suas memórias mais queridas tocadas por um sentimento de
mácula e desprezo; ele não deve se desviar de nenhum modo de seu intento
inicial que é liberar a pessoa possuída presente diante dele. E deve, a todo
custo, evitar negociações abusivas ou qualquer tipo de argumentação lógica
com o possesso. A tentação de fazê-lo é mais freqüente do que se possa
pensar, e deve ser encarada como uma armadilha fatal que pode acabar não
somente com o exorcismo, mas também, e literalmente, com o exorcista.
Segundo os relatos, quando a afetação começa a fraquejar, o
comportamento do possesso em geral aumenta em violência e repugnância.
É como se se abrisse um bueiro invisível, e dele saísse tudo o que de mais
desumano existe. É uma torrente de imundície e ultrajes sem fim,
acompanhados freqüentemente de violência física, contorções, ranger de
dentes, saltos, às vezes ataques físicos contra o próprio exorcista.
Uma nova etapa de procedimentos se inicia quando se aproxima o ponto
de quebra, inaugurando um dos sofrimentos mais sutis a que o exorcista se
submete: a confusão. Confusão completa e terrível. Raro é o exorcista que
não vacila, nessa etapa, ao menos por um instante, envolto na particular
angústia provocada por um estado em que a contradição vem de todos os
sentidos.
Seus ouvidos parecem cheirar palavrões que lhe são lançados. Seus olhos
parecem ouvir sons ofensivos e gritos obscenos. Seu nariz parece sentir o
gosto de uma cacofonia em altos decibéis. Cada sentido parece registrar
algo que outro sentido deveria captar. Cada nervo, cada tendão dos
observadores e dos participantes enrijece num esforço por controle. O
pânico, o medo de sucumbir à insanidade, ataca todos os presentes como
que a pontapés. Todos experimentam esse assalto de violência e confusão
crescentes. Mas o exorcista é quem conduz o grupo em meio à tormenta. É
ele o alvo direto de todos os ataques.
Alcança-se o ponto de quebra no exato instante em que a afetação
finalmente é vencida por completo. A voz do possesso já não mais é usada
pelo espírito, mas uma voz nova e estranha pode vir a sair pela boca da
vítima. No caso de Thomas Wu, a voz estranha de fato vinha da boca do
possesso: e foi por isso que o capitão de polícia ficou tão estarrecido. O som
produzido, freqüentemente, não é nem remotamente parecido com qualquer
outro som humano.
No ponto de quebra, pela primeira vez, o espírito fala do possesso na
terceira pessoa, como um ser dele separado. Pela primeira vez, o espírito
possessor age pessoalmente e fala como “eu” ou “nós”, alternadamente no
mais das vezes, bem como em “meu” e “nosso”, “meus” e “nossos”.
Outro sinal freqüente de que se atingiu o ponto de quebra é o surgimento
daquilo que o Padre Conor chama de Voz.
A Voz é uma cacofonia vocal extremamente perturbadora e angustiante.
Nas primeiras sílabas parece ser possível identificar algumas palavras que
se pronunciam lentamente num timbre rouco – mais ou menos como uma
gravação em fita sendo tocada em velocidade reduzida. Mal se inicia um
esforço para compreender a tal palavra, e uma onda de medo gélido nos
invade – você sabe que esse som é forâneo. Mas seu esforço de
concentração foi destruído, frustrado por uma gama de ecos, de vozinhas
ásperas fazendo reverberar cada sílaba, em gritos, sussurros, risos e
gemidos. Todos eles atingem o seu ouvido, enquanto a voz estranha passa à
próxima sílaba, a qual você tenta então apanhar, enquanto se lembra da
primeira, já perdida. A essa altura, as vozes ferinas já alcançaram a segunda
sílaba; e a voz procede à terceira sílaba; e assim por diante.
Para que o exorcismo possa prosseguir, a Voz deve ser silenciada. É
necessário um enorme esforço de vontade da parte do exorcista, em
confronto direto com a vontade estrangeira daquele espírito, para silenciar a
Voz. O padre deve controlar-se a si mesmo e obrigar o espírito, antes de
mais nada, a calar-se, e então identificar-se de modo inteligível.
Como em tudo aquilo que se refere ao exorcismo de um espírito maligno,
o padre lança essa ordem ao espírito por sua própria vontade, mas sempre
sob a autoridade e em nome de Jesus e de sua Igreja. Fazê-lo em nome
próprio ou em nome de alguma suposta autoridade inventada é um convite
ao desastre. O mero poder humano, sem os aparatos divinos e sem ajuda, é
incapaz de lidar com o sobrenatural. (Deve-se lembrar, aqui, que quando
falamos do sobrenatural, não estamos tratando dos fenômenos conhecidos
como poltergeist).
Em geral, a essa altura, quando a Voz começa a se esvair, uma pressão
tremenda, de natureza obscura, afeta o exorcista. Esse é o primeiro e mais
importante limiar que se cruza rumo a um confronto direto e pessoal com
“as forças do Reino”, o chamado Choque.
Nós todos sabemos, por experiência pessoal, que não pode haver
confronto entre vontades pessoais sem aquele contato sensível e perceptível
entre duas pessoas. Essa comunicação se faz em mão-dupla, de forma tão
real quanto uma conversa que se valha de palavras. O choque é o cerne de
uma comunicação especial e ameaçadora, o núcleo dessa singular batalha
entre as vontades do exorcista e do Espírito Maligno.
Por mais dolorosa que venha a ser, o padre não pode furtar-se a encarar a
etapa do choque, e deve mesmo provocá-la. Se ele não é capaz de travar
uma batalha entre a sua própria vontade e a do ser maligno, forçando-o ao
confronto, então, uma vez mais, o exorcista é derrotado.
O que está em questão entre ambos, exorcista e espírito possessor, é
simples. Será o arqui-inimigo do humano capaz de proceder com sua
invasão e assumir o comando? Será que ele conseguirá passar, fétido e
impiedoso, infiltrar-se pela estreita fresta da alma e adentrar o campo que o
exorcista defende solitário? Ou antes, ele irá, a contragosto, em meio a
protestos, cedendo a uma força maior que ele, parar, identificar-se, desistir,
retirar-se, desaparecer, e evaporar, retornando a um abismo secreto do ser,
ao qual nenhum homem jamais gostaria de ir?
Ainda que ele ainda deva suportar muita pressão sobre si, e mesmo
padecendo da mais profunda agonia humana, é muito provável que, tendo
chegado até aqui, ele alcança seu objetivo. Ele ganhou, aqui, certa
vantagem, pois já conseguiu forçar o espírito maligno a expor-se a si
mesmo. Ele deve, caso não o tenha conseguido até agora, forçá-lo a dizer
seu nome. E então, segundo a opinião de alguns exorcistas, o profissional
deve prosseguir em busca do máximo de informações que possa obter. Pois,
coisa peculiar, descobriram os exorcistas que quanto mais se consegue
forçar um espírito maligno a revelar-se na etapa de Choque e no seu
poslúdio, mais simples e segura será a expulsão quando chegar o momento.
Esse esforço por obter uma identificação a mais completa possível é, talvez,
a marca da dominação de uma vontade sobre outra.
É de interesse crucial meditarmos sobre a violência de um exorcismo –
os sofrimentos físicos e mentais são tão extremos que podem mesmo levar à
morte. Por que os espíritos empreendem, então, tal combate? Por que não
fugir, flutuando até outro lugar ou outra pessoa? Sim, pois mesmo o espírito
parece sofrer nessas batalhas.
Em muitas ocasiões, em diversos exorcismos, ocorre um curioso evento
relativo ao espírito e ao local, aquele estranho enigma, mencionado
anteriormente, relativo ao cômodo escolhido para o exorcismo. Quando
Jesus expulsou espíritos impuros, esses espíritos demonstraram
preocupação quanto ao lugar ao qual partiriam. Em muitos e muitos relatos,
assim como em diversos exorcismos descritos neste livro, o espírito
possessor se lamenta, e pergunta, angustiado: “Para onde devemos ir?”;
“Também nós devemos possuir nossa habitação”; “Mesmo o Ungido nos
deu um lugar entre os suínos”; “Aqui... não podemos mais ficar aqui”.
Um espírito maligno, tendo encontrado uma morada em alguém que
consinta em hospedá-lo, não parece abandonar facilmente seu recinto. Ele
luta com unhas e dentes, artimanhas e até mesmo ameaça matar seu
hospedeiro antes de ser expelido. O grau de violência dessas contendas
depende, provavelmente, de diversos fatores; a inteligência do espírito com
que se está lidando e o grau de possessão alcançado sobre a vítima são,
talvez, dois sobre os quais podemos especular.
Independentemente dos fatores que determinem o grau de violência, uma
vez que o exorcista tenha forçado o espírito invasor a se identificar, tendo
ele suportado aqueles primeiros combates mudos da fase de choque, e
invocando, então, a condenação formal e expulsão pelo rito de exorcismo, o
resultado imediato é geralmente uma luta de complexidade inimaginável,
uma sessão de violência explícita que descarta toda e qualquer sutileza.
A pessoa possuída está, a essa altura, evidentemente consciente, de um
modo ou de outro, daquilo que a possui. Freqüentemente, o possuído se
torna um verdadeiro campo de batalha durante boa parte do restante do
exorcismo, tendo de suportar dores e provações inacreditáveis.
É por vezes possível ao exorcista apelar diretamente à pessoa possuída,
instando-lhe que se sirva da parte de sua vontade ainda livre do controle e
influência do espírito, e que se engaje diretamente na luta, ajudando o
exorcista. Nesses momentos, não há besta capturada que se debata contra o
solo de forma mais patética; nenhum animal clama por sua vida com
crueldade e voracidade superiores ao espírito possessor quando desse
consentimento. A própria aparência nauseabunda do possuído parece dar
sinal de seu desejo de libertação, um indício desesperado da vontade de
combater, evidência de uma revolta contra aquilo em que ele, outrora,
consentira.
O possessor vai sendo então forçado, cada vez mais, para fora,
protestando continuamente contra a revolta de sua vítima e contra a sua
própria expulsão. Pode-se chegar a crer que o possuído nunca se recuperará,
tamanha a violência das contorções e a desfiguração de seu rosto nessa
etapa.
Também o exorcista deve investir um ataque em cheio agora. Ao ver-se
encurralado, o espírito maligno parece capaz de apelar a uma inteligência
superior, e ele tenta atrair o exorcista a um terreno de armadilhas, minado
com situações das quais nenhum ser humano poderia se livrar por si só.
Qualquer fraquejo na fé – ela que, sozinha, sustenta o exorcista – ou
qualquer cansaço fará com que a mente do exorcista transborde duma
terrível luz da qual ele não conseguirá se afastar – luz que pode queimar as
raízes mesmas de sua razão, e perverter suas emoções tornando-o o mais
servil dos escravos, desesperado por libertar-se de toda vida corpórea.
Esses são somente alguns dos muitos perigos e armadilhas enfrentados
por todo exorcista. Suas dores são de ordens física, emocional e mental. Ele
tem de lidar com os mistérios sem se deixar impressionar; lidar com algo de
tortuoso, mas de forma inteligente; algo de uma qualidade abstrusa, mas
impondo-lhe sentido. Os traços cáusticos de um pesadelo se encontram, ali,
em plenitude. E no entanto não se trata de um sonho, não há qualquer
possibilidade de se escapar da situação num abrir de olhos.
Tão poderosa é a fetidez que se sente que muitos exorcistas começam a
vomitar incontrolavelmente. Eles devem encarar dor física, sentir a angústia
tocar suas almas mesmas. Eles são forçados a entender que estão lidando
com o completamente imundo, o totalmente desumano.
Todos os sentidos parecem, subitamente, não fazer qualquer sentido. A
única esperança parece ser o desespero. A morte, a crueldade e o desprezo
parecem normais. Tudo de belo e gracioso parece ser uma ilusão. Nada,
parece, nunca esteve certo no mundo dos homens. Uma atmosfera mais
bizarra que o Pinel.
Se, a despeito de suas emoções, sua imaginação e seu corpo – todos eles
aprisionados –; se, a despeito de tudo isso, a vontade do exorcista se
sustenta durante o choque, ele consegue exercer sua função última nessa
situação, e fazer-se testemunha humana autorizada de Jesus. Não é por
nenhuma força a ele pertencente, nem por qualquer privilégio especial, que
ele invoca a derrota do espírito maligno e a liberação do possesso.
E, se o exorcismo obtiver êxito, é isso o que acontece. A possessão chega
ao fim. Todos os presentes se dão conta de uma mudança no ambiente.
Aquela sensação de presença faz-se, súbito, totalmente ausente. Por vezes
ouvem-se vozes em retirada; noutras, só um silêncio mortal. Por vezes o ex-
possuído se encontra ao cabo de suas forças; noutras, acorda como se
estivera num sonho, ou num pesadelo, ou ainda num coma. Às vezes a
vítima se lembra de grande parte do que ocorreu; às vezes, não se recorda
de absolutamente nada.
Não se pode dizer o mesmo quanto aos exorcistas, durante e após esse
horrível trabalho. Eles carregam profundas dúvidas e amargos conflitos que
não podem ser divididos com família, amigos, superiores ou terapeutas.
Seus traumas pessoais residem para além dos limites das palavras
reconfortantes e em profundidade maior do que o que pode alcançar
qualquer palavra de consolo. Eles não dividem seus sofrimentos com
ninguém senão com Deus. E mesmo aí encontra-se um traço peculiar de
dificuldade, pois é um compartilhar pela fé, e não por uma comunicação
face a face.
Mas é somente assim que esses homens, de vida aparentemente comum,
trivial, perseveram e atravessam dias de horror mudo e noites de insônia
que vivem por anos após o exorcismo, como preço de seu sucesso e prova
permanente de que, no passado, outro ser humano fora restaurado graças à
iniciativa de quem, voluntariamente, fez frente ao ódio em pessoa.
As cinco histórias apresentadas a seguir são reais. As vidas das pessoas
envolvidas são contadas com base em longas entrevistas realizadas com
todos os principais envolvidos, com muitos de seus amigos e parentes, e
com muitos outros envolvidos direta ou indiretamente, de maneiras mais
modestas. Todas as entrevistas foram checadas, de forma independente, em
busca de comprovação factual sempre que possível. Os exorcismos,
especificamente, são reproduzidos a partir das próprias fitas gravadas à
época e de transcrições dessas fitas (as sessões tiveram necessariamente de
ser editadas por uma questão de duração; todos os exorcismos registrados
aqui duraram mais de 12 horas).
Eu escolhi esses cinco casos dentre um maior número que me era
disponível pois, tanto especificamente quanto em seu conjunto, eles são
ilustrações bastante impressionantes do modo como um mal personalizado e
inteligente se move com astúcia entre os modismos e interesses
contemporâneos e nas fronteiras da experiência de homens e mulheres
comuns. Nenhum caso do século quatorze, quinze ou dezesseis, por conta
de seu apelo romântico, teria qualquer relevância para nós hoje em dia. Ao
contrário, eles se prestariam mais a nos fazer desprezar tais ocorrências
como fábulas, produzidas para despertar medos e fantasias nas pessoas
“mais ignorantes”, de tempos “menos sofisticados”.
Cada caso apresentado aqui traz, como elemento-chave, uma ou mais de
uma atitude comum em nossa sociedade. Essa tendência é forçada, na
pessoa possuída, ao extremo mais assustador.
No primeiro caso, Sorriso e o amigo de Zio, o elemento permanente é a
insistência no fato de não haver diferença essencial entre bem e mal, e, em
última análise, nenhuma diferença entre o ser e o não ser; todos os valores
seriam subjetivos e dependentes unicamente das preferências pessoais de
um indivíduo.
Em Padre Ossada e Seu Natura, a idéia irresistível de que se valeu o
espírito maligno parece ser a de que todos os mistérios podem e são
solucionáveis por meio de explicações “naturais” (isto é, racionais,
científicas ou quantificáveis); de que não pode haver interesse, para um
homem moderno, em nada que não possa ser racionalmente explicado; e de
que não pode haver verdade relevante ao homem para além daquilo que seja
racional.
Em O virgem e o “Ajeita-Moça”, a batalha envolvia um dos maiores,
mais profundos e misteriosos “dados” de nossa própria natureza e de nossa
sociedade – nesse caso, o gênero e o amor humano. O padre responsável
por este caso me disse, alguns meses antes de morrer, numa das conversas
mais profundas que já tive em minha vida: “Um pássaro não voa por ter
asas. Ele tem asas porque voa”. Acredito que ignorar essa misteriosa
verdade e sua aplicação em nossa sexualidade seja algo extremamente
perigoso.
Em Tio Ponto e o Papa-Sopa, temos um exemplo daquilo que é possível
que esteja acontecendo com muitos de nós na sociedade moderna, sem que
o percebamos. Pois parece estar disseminada hoje em dia uma visão
puramente egoísta da vida humana, excedendo em muito os limites do que,
no passado, costumava ser visto como egolatria e individualismo. Isso
produziu, em milhares de pessoas, um comportamento aberrante e
idiossincrático que é verdadeiramente destrutivo.
Em O Galo e a Tartaruga, a confusão fatal (e nesse caso ela foi,
literalmente, quase fatal) era entre espírito e psique; entre aquelas partes e
atributos nossos que são quantificáveis, e pelas quais, não obstante, o
espírito se faz conhecer tão mais facilmente. Se tudo aquilo que tomamos
por espírito passa a ser visto como mero produto da psique humana, sem
qualquer sentido ou significado para além de sua concretude, então até
mesmo o amor pode ser apresentado como simples reação química, e o
paradigma do amor se vê morto.
Em cada um dos casos, um elemento básico da possessão é a confusão.
Confundem-se sexo e gênero. Confunde-se o espírito com a psique, o valor
moral com a ausência de qualquer valor, e confunde-se mistério com ilusão.
E, em cada caso, o argumento racional é usado, não para esclarecer, mas
como uma armadilha, para criar confusão e cultivá-la como arma principal
contra o exorcista. A confusão, assim nos parece, é a principal arma do
maligno.
Há muito mais que se dizer e observar quanto ao sentido da possessão.
Nem tudo pode ser abarcado em um único volume. Mas é preciso entender
que a possessão e o exorcismo não são, em si, simples curiosidades, sem
interesse para além do bizarro e do espanto. Trata-se de expressões
concretas da realidade que envolve nossas vidas diárias, de pessoas comuns.
Nenhum estudo sobre a possessão e casos de exorcismo, sob uma ótica
cristã, seria adequado sem um mínimo de explicação – do ponto de vista
cristão – sobre a realidade: o que ocorre durante a possessão, e como o
processo de degradação se desdobra num indivíduo em particular. Tal
explicação ocupa a seção final deste livro.
Este estudo não tenta responder o enigma último quanto à possessão: por
que é que tal pessoa, e não outra, torna-se objeto do ataque diabólico que
pode culminar em possessão parcial ou perfeita. A resposta, certamente, não
repousa em provas de nível psicológico, hereditariedade ou fenômenos
sociais. Uma resposta final incluiria, como ingredientes principais, a livre
escolha pessoal que cada indivíduo faz e o mistério da predestinação
humana. Quanto à livre escolha, conhecemos o básico: eu posso escolher o
mal, pela simples razão ou motivo de escolher o mal. Alguns,
aparentemente, o fazem. Quanto à predestinação, pouco ou nada se sabe. O
mistério permanece.
Conheço pessoalmente todos os homens e mulheres envolvidos nos cinco
casos aqui relatados; eles me ofereceram total cooperação sob a condição de
que suas identidades, assim como a de seus familiares e amigos, não fossem
reveladas. Todos os nomes e locais, portanto, foram alterados, e outros
possíveis indicadores de identidade foram velados. Qualquer semelhança
entre os casos aqui relatados e quaisquer outros que possam haver ocorrido
não é intencional, mas puramente fortuita.

1 Baedeker: referência por antonomásia a qualquer guia de viagem, por alusão ao mundialmente
famoso Guia de Viagens Baedeker – NT.
NOTA

Os casos narrados a seguir foram fielmente traduzidos do texto


original escrito por Malachi Martin. Não houve adaptação de
linguagem no sentido de amenizar as inúmeras declarações
obscenas e blasfematórias por parte do Demônio, por mais
perturbadoras que fossem. Assim mantém-se a intenção do autor de
explicitar o teor repugnante da ação demoníaca.
OS CASOS
Sorriso e o amigo de Zio
Peter encheu uma vez mais os pulmões com ar fresco. Hesitava em fechar
aquela janela, aberta face ao tumulto da Rua 125, 15 andares abaixo. Era a
primeira vez na história que um Papa de Roma passava pelas ruas de Nova
Iorque, e o entusiasmo se fazia sentir até mesmo no ar. Os batedores do
Papa já haviam passado pela ponte da Avenida Willis sentido Bronx, rumo
ao Yankee Stadium. A multidão ainda se deslocava até o local. Freiras
caminhavam num passo frenético de pinguim, soprando apitos e ordenando
filas de estudantes vestidas de branco. Ambulantes gritavam os preços de
seus cachorros-quentes. Uma mulher malvestida e seu filho vendiam
bonequinhos de plástico do Papa aos transeuntes. Dois policiais removiam
barreiras de madeira. Um caminhão de lixo buzinava a duros golpes,
tentando abrir caminho em meio ao tráfego. Pe. Peter fechou finalmente a
janela, puxou as cortinas, unindo-as, e voltou-se à cama.
O cômodo reconquistava o seu silêncio, exceto pelo respirar inconstante
da jovem Marianne, de 26 anos. Ela estava deitada com um cobertor cinza
sobre o colchão nu. Com seu jeans desbotado, body-shirt 1 amarela, cabelos
ruivos bagunçados sobre a fronte, a palidez de suas bochechas e a cor velha
e gasta das paredes ao seu redor, ela parecia parte de uma trágica cena
gravada num pastel deslavado. Com exceção de uma curiosa contração em
seus lábios, seu rosto não tinha qualquer expressão.
À esquerda de Peter, de costas para a porta, estavam dois homens
vultosos. Um deles era um ex-policial e amigo da família, veterano de 32
anos de esquadrão, crente de já ter visto de tudo ali – estava prestes a
descobrir que não, não tinha. Sessentão, calvo, vestindo um macacão, os
braços cruzados sobre o peito... seu rosto era a própria marca da
perplexidade. O outro: o mais próximo dos conhecidos do pai de Marianne,
a quem a menina chamava de tio, era um gerente de banco e já avô, na casa
dos cinqüenta anos, papudo e de rosto rubro, num terno azul, os braços
pendendo lateralmente, os olhos fixos no rosto de Marianne com uma
expressão de temor desamparado. Solicitou-se a esses dois homens, ambos
atléticos e musculosos, que assistissem o exorcismo de Marianne K. para
impedir qualquer violência física ou ferimento que ela tentasse provocar. O
pai de Marianne, homem delgado, com os olhos avermelhados e uma
expressão abalada em seu rosto, estava com o médico da família. Rezava
em silêncio. Peter sempre insistira em que houvesse um membro da família
presente durante o exorcismo. Em contraste com os outros, o jovem
médico, um psiquiatra, guardava uma expressão concentrada, como que de
um estudioso, checando o pulso da garota.
O colega de Peter, Pe. James, sacerdote na casa dos trinta anos, estava ao
pé da cama. Com cabelos pretos, o rosto oval, um aspecto jovem e
apreensivo, seus trajes em preto, branco e roxo lhe eram como que um
uniforme por estrear. Em Peter, com seus cabelos grisalhos despenteados e
as bochechas cavadas, aquelas mesmas cores pareciam fundir-se numa
velada unidade. James, com suas vestes, mostrava-se pronto para começar a
agir. Peter, o veterano, já estava em ação há um bom tempo.
Numa mesa de cabeceira ao lado de James tremulavam as chamas de
duas velas. Um crucifixo repousava entre elas. Num canto da sala havia um
gaveteiro. “Eu deveria tê-lo removido antes de iniciar os trabalhos”, pensou
Peter. O móvel, deixado ali, a princípio, para que nele se apoiasse um
gravador, tornou-se um belo de um incômodo. Provavelmente continuaria a
sê-lo, até que o caso fosse finalizado, pensou Peter. Mas ele achou melhor
não mover mais nenhum objeto no quarto, uma vez que o exorcismo já
havia iniciado.
Era uma segunda-feira, 8h15 da noite, décima sétima hora do terceiro
exorcismo de Peter em trinta anos. Aquele também seria seu último
exorcismo, embora ele ainda não pudesse sabê-lo. Peter estava seguro de
haver chegado ao ponto de quebra do rito.
Durante os poucos segundos que ele levou para chegar da janela à cama,
o rosto de Marianne se deformava num emaranhado de expressões. Sua
boca se contorcia mais e mais em forma de “S”. O pescoço estava tenso,
expondo cada veia e artéria, e seu pomo de Adão parecia um nó atado numa
corda.
O ex-policial e seu tio correram para contê-la. Mas sua voz os atirou para
trás, instantaneamente, como uma chicotada.
“Seus velhos filhos da puta! Vocês comeram a mulher um do outro. E
ainda brincaram um com o pipi do outro nessa história. Tirem suas patas de
cima de mim, seus tarados”.
“Segurem-na!”, disse Peter, decidido. Quatro pares de mãos se
amontoaram sobre ela. “Que Jesus tenha piedade do meu bebê”, sussurrou
seu pai. Os olhos do ex-policial se incharam.
“VOCÊ”, gritou Marianne, pregada à cama, os olhos abertos e
flamejando de raiva, “VOCÊ! Peter Predador. ‘Coma a minha carne’, ela
disse. ‘Sugue o meu sangue’, ela disse. E foi o que você fez! Peter
Predador! Você virá conosco, seu podre. Você vai lamber meu cu e vai
gostar, Peeeeeetrrrrr”, e sua voz mergulhou naquele “rrrr” até tornar-se um
rugido animal.
Algo começou a doer no cérebro de Peter. Ele perdeu o fôlego, entrou em
pânico por conta de seu descontrole, parou e esperou, vacilando sobre seus
pés. Finalmente retomou a respiração, espirando aliviado. Transmitia ao
Padre James um olhar frágil e vulnerável. O jovem sacerdote passou a Peter
o seu livro de orações, e ambos se voltaram a Marianne.
Peter
Quase um ano mais tarde, em 1966, no dia em que Peter foi enterrado no
Cemitério Calvary, seu colega mais jovem, Pe. James, conversou comigo
após o funeral. “Não me importa o que o médico tenha dito” (o relatório
oficial dizia que a causa da morte era trombose coronária), “ele partiu,
realmente, depois daquele último conflito. Era só uma questão de tempo.
Veja, não é que ele não fosse bravo e devoto. Ele era, de fato, um homem de
Deus, antes e acima de tudo. Mas foi só naquele último exorcismo que se
deu conta de que a vida é traiçoeira com os homens decentes”. Peter, ao que
parece, nunca emergiu de um estado ligeiramente onírico após o exorcismo
de Marianne; ele falava sempre como alguém que conversasse com uma
terceira pessoa ali presente. Era tão exasperador quanto ouvir só um lado de
uma conversa telefônica.
“Ele nunca voltou a ser o mesmo”, disse James. “Parte dele se perdeu,
passou para o Além, durante o choque, como você diz”. Então, após uma
pausa e alguma reflexão, ele disse, quase que para si próprio: “Dá para
imaginar isso? Ele teve de nascer em Lisdoonvarna, 2 62 anos atrás, ser
criado perto de Killarney, 3 e fazer todo o trajeto até aqui três vezes – para
descobrir, na terceira, que era aqui que ele deveria morrer, e como, e
quando. Isso faz você se perguntar qual é o sentido da vida. Você nunca
sabe como vai acabar. Peter nem mesmo se tornou cidadão americano.
Todas essas viagens... só para morrer como o Senhor havia decidido”.
Peter era um dos sete filhos de sua família, todos eles meninos. Seu pai
mudara-se do condado de Clare para Listowel, no condado de Kerry, onde
prosperou como comerciante de vinho. A família vivia numa ampla casa de
dois andares com vista para o rio Feale. Eles gozavam de respeito e
conforto financeiro. O Catolicismo Romano por eles vivido era da estirpe
daquele cristianismo vigoroso, “muscular”, que os irlandeses souberam,
dentre todas as nações do Ocidente, oferecer como sua contribuição à
religião.
Peter passou sua juventude naquela relativa paz dos “velhos tempos
britânicos”, antes de a Fraternidade Republicana Irlandesa (antecessora do
IRA), os Voluntários Irlandeses, e a Rebelião de 1916 criarem a Irlanda
moderna, no curso de tempestuosas lutas pela “terrível beleza” que atraíra
Patrick Pearse, James Connolly, Eamonn De Valera e outros líderes rumo à
armadilha do derramamento de sangue. Cinqüenta anos mais tarde, nos
últimos anos de Peter, o sangue ainda corria.
A escola ocupava três quartos do ano de Peter. Os verões eram vividos
em Beal Strand, na costa de Ballybunion, ou na colheita em fazenda de seu
avô, em Newtownsands.
Num desses verões – décimo sexto de sua vida –, Peter flertou com sua
única experiência sexual. Ele estivera deitado por horas nas dunas de areia
de Beal Strand com Mae, garota de Listowel que ele conhecia já há três
anos. Naquele dia, suas famílias haviam partido para assistir às corridas de
cavalo de Listowel.
Um flerte inocente progrediu para simples jogos de amor e finalmente a
uma fervorosa troca de beijos e carícias, até que ambos jaziam nus e
incrivelmente felizes sob a luz daquele início de noite, o calor ondulando e
enrubescendo docemente seus corpos, agarrados um ao outro. Em seguida,
Mae o apelidou jocosamente de “Peter Predador”. Para aplacar o seu temor,
ela acrescentou: “Não se preocupe. Ninguém vai saber que você fez amor
comigo. Só eu”.
Por mais um ano, aproximadamente, ele esteve interessado em garotas,
particularmente em Mae. E então, no despontar de sua maioridade, ele
começou a pensar no sacerdócio. No momento em que terminara a escola,
sua decisão já estava tomada. Peter me havia dito uma vez: “Quando nós
dois dissemos adeus, naquele verão de 1922, Mae me provocou: ‘Se você
um dia deixar o seminário e não se casar comigo, vou contar para todo
mundo do seu apelido’. Ela nunca contou do caso para uma só alma. Mas, é
claro, eles sabiam”. Os únicos verdadeiros inimigos de Peter eram os
sombrios habitantes d’“O Reino”, os quais ele chamava pela vaga alcunha
de “eles”. Lançou-me um olhar peculiar e desviou-o para acima de minha
cabeça. Mae havia morrido em 1929 por conta de uma ruptura de apêndice.
Peter iniciara seus estudos no Seminário de Killarney e os concluíra em
Numgret, com os jesuítas. Não era um estudante brilhante, mas obteve
ótimas notas em Lei Canônica e Hebraico, que pronunciava com um típico
sotaque irlandês (“Meu avô pertencia a uma das Tribos Perdidas”),
construiu uma reputação por seu juízo bom e razoável em dilemas morais, e
ficou conhecido no local por seu hábil chute no futebol americano, com o
qual conseguia derrubar um cachimbo da boca de um fumante que estivesse
a 30 metros de distância, sem nem mesmo resvalar no rosto do sujeito.
Ordenado padre aos vinte e cinco anos, ele trabalhou por seis anos em
Kerry. Fez então um primeiro estágio numa paróquia de Nova Iorque por
três anos; esteve presente em dois exorcismos enquanto assistente. Numa
terceira ocasião, quando fazia as vezes de mero assistente, teve de substituir
o exorcista, homem mais velho que sofrera um colapso seguido de morte,
por conta de um ataque cardíaco durante o rito.
Duas semanas antes de embarcar para sua Irlanda natal, para suas
primeiras férias em três anos, as autoridades o designaram para seu
primeiro exorcismo. “Você é jovem, padre. Preferiria que tivesse mais
experiência”, assim se recorda Peter das instruções de seu bispo, “mas, ao
menos, o nosso Velho Camarada não vai ter muito o que usar contra você.
Assim sendo, vá em frente!”.
O exorcismo durou 13 horas (“Com tantos outros lugares, fui cair
justamente em Hoboken...”, ele costumava dizer em tom jocoso), e o deixou
atordoado. Ele nunca esqueceu as declarações assassinas urradas contra ele
pelo homem que exorcizara. De uma boca espumante, com os dentes
cerrados, em meio ao cheiro como de um corpo que há mais de dois anos
não se lava, o homem rosnou: “Você quer destruir o Reino em mim, seu
porco irlandês de merda. E você acha que vai escapar. Não se preocupe.
Você vai voltar, para mais. E mais. Tipos como você sempre voltam. E nós
vamos fazer a sua alma arder. Arder. Você vai feder. Como nós! No terceiro
assalto você está fora! Lembre-se de nós!”. Peter lembrara.
Mas duas semanas de férias no condado de Clare o restauraram em sua
energia e entusiasmo. “Deus! Os scones 4 com manteiga salgada derretendo,
o chá quente, o bacon de Limerick, a chuva leve e a paz daquilo tudo! Tava
demais”.
A maioria das feridas de Peter não lhe foram infligidas pelas ásperas
realidades do mundo ao seu redor; antes, foram abertas no fundo de sua
alma em resposta ao mal que por vezes sentia em sua vida.
Aqueles que ainda se lembravam dele, em 1972, concordavam quanto a
que Peter não fora nem um gênio, nem um santo. Cabelos negros, olhos
azuis, de uma aparência esquelética, era um homem de pouca imaginação,
profunda lealdade, risada forte, gigantesco apetite para bacon e batatas, uma
constituição de ferro, incapacidade para odiar ou cultivar rancor, e em
constante discordância de opiniões com seu bispo (um velho homenzinho
chamado carinhosamente de “Packy” 5 por seus padres). Peter era algo
preguiçoso, inofensivamente vaidoso por seus 1,87m de altura, e eterno
viciado nas histórias de detetive de Edgar Wallace.
“Ele tinha essa qualidade distintiva”, observa um de seus amigos. “Dava
para sentir que ele tinha um grande espírito, conjugado a um enorme bom
senso, intocado por qualquer tipo de mesquinhez”.
“Se um dia, de manhã, ele encontrasse o Demônio no topo de uma
escadaria, e visse Jesus Cristo aos primeiros degraus, no térreo”, acrescenta
um outro, “ele não correria afoito ao encontro do Senhor voltando as costas
para o diabo. Desceria de marcha à ré. Só para garantir”.
Em circunstâncias normais, Peter teria ficado definitivamente na Irlanda
após suas férias repletas de scones e garoa. Teria trabalhado nas paróquias
por alguns anos, e posteriormente seria atribuído a sua própria comunidade.
Mas havia algo diferente conduzindo seu coração, e algo a mais escrito nas
estrelas. Quando ele partiu rumo a Nova Iorque, no eclodir da Guerra da
Coréia, com vistas a substituir um capelão que acabara de ser convocado,
ele se lembrou do exorcismo em Hoboken. “No terceiro assalto você está
fora! Porco! Lembre-se disso!”.
Ele observou, jocoso, a um amigo preocupado que conhecia a história
toda: “Ainda não é a terceira!”.
Em janeiro de 1952, foi-lhe solicitado que fizesse seu segundo
exorcismo. A eficácia no primeiro procedimento e seu rápido poder de
recuperação impressionaram positivamente as autoridades do clero. O
exorcismo ocorreu em Jersey City. E, a despeito de sua duração (quase três
dias e três noites inteiras), muito pouco de sua energia física ou mental foi
gasta. Espiritualmente, esse exorcismo lhe foi de uma importância peculiar.
“Foi uma espécie de aquecimento para o certame de 1965”, ele me disse
em 1966. “A cerimônia durou tempo demais para o meu gosto, era pedrada
o tempo todo, quase nos destruiu. Mas aqui dentro [apontando para seu
próprio peito] não havia muita tensão”. E acrescentou algo cujo sentido me
escapou naquele instante: “Jesus teve um predecessor no Batista. Eu
suponho que as trevas também tenham os seus próprios precursores”.
Hoje, olhando em perspectiva para seu papel de exorcista, fica claro para
mim que os dois primeiros exorcismos o prepararam para o terceiro e
último deles. Eram três assaltos com o mesmo inimigo.
O sujeito a ser exorcizado, naquele mês de janeiro, era um garoto de
dezesseis anos de origem hispânica que havia sido submetido a um
tratamento contra epilepsia que durou anos, para no fim ser diagnosticado
como não epilético, e fisicamente são, por uma equipe de médicos do
Hospital Presbiteriano de Columbia. Não obstante, quando o garoto voltou
para casa, todas os terríveis distúrbios recomeçaram de um modo muito
mais pronunciado; foi aí que os pais se voltaram ao seu padre.
“Disseram-me que você tem... é... certa experiência com o Diabo, padre”,
disse o monsenhor numa voz chiante, o rosto avermelhado sorrindo de
modo bizarro enquanto dava a Peter as permissões necessárias e algumas
instruções. Então, balançando em sua cadeira, ele acrescentou
sombriamente, numa piada católica sem graça: “Mas não o traga aqui para a
chancelaria com você. Livre-se dele – ou dela, ou disso, ou do que quer que
o demônio seja. Já temos bastante deles pesando nas nossas costas aqui”.
Tudo correu bem. O garoto tornou-se amigo devoto de Peter. Mais tarde
ele foi enviado para o Vietnã, e morreu numa emboscada noturna, nos
arredores de Saigon. Seu comandante escreveu, num envelope com o nome
de Peter que o morto havia deixado para trás. O envelope continha um
pedaço de linho manchado de sangue e uma pequena nota. Mais de uma
década atrás, logo antes de sua libertação da possessão, num ataque
derradeiro de revolta e apelo, ele havia arranhado o pulso de Peter, e o
sangue do padre havia caído na manga de sua camisa. “Eu guardei isso
como um sinal de minha salvação, padre”, dizia a nota. “Reze por mim. Eu
me lembrarei de você quando estiver com Jesus”.
Peter tinha, então, 48 anos de idade e encontrava-se no ápice de sua vida
de padre. E no entanto sofria, em seu íntimo, de um sentimento crescente de
inadequação e inutilidade. Sentia que, em comparação com muitos de seus
colegas que obtiveram diplomas, qualificações, altos cargos e
especializações, ele tinha muito pouco a mostrar quanto a suas realizações.
“Eu não tenho riquezas em mim”, escrevera para um de seus irmãos, “só
uma pobreza escura. Por vezes ela chega a obscurecer também a minha
alma”. Quando chegou o momento de ele assumir sua própria paróquia, foi
preterido. (Packy já estava morto; mas, dizem alguns, o finado bispo havia
deixado claro em seus registros que Peter deveria ser descartado).
Peter, de fato, era um dissidente. Comparado a um padre normal, era
inferior em graças sociais, mas superior em juízo; carente de know-how
eclesiástico e ambição, mas muito contente com seu trabalho. Às vezes suas
alegações de “pobreza interior”, de não possuir “nenhum talento
excepcional” soavam ocas quando confrontadas com suas atitudes
obstinadas e opiniáticas. De qualquer modo, bastava, a um bispo comum,
que percebesse o olhar direto e fixo de Peter para supor sua autoridade
episcopal em risco. Pois seu olhar não era insolente, mas antes resoluto; ele
reconhecia as distintas dignidades da hierarquia, mas era incapaz de
qualquer tipo de subserviência. Dizia: “Eu lhe respeito por aquilo que você
representa. Aquilo que você é é uma outra história”. Tal homem poderia ser
um transtorno para o espírito absolutista, e uma ameaça à tendência
autoritária da maioria dos eclesiásticos.
A despeito de umas tantas observações bem engraçadas, tais como:
“Quanto mais alto sobem, mais escuros ficam seus traseiros”, Peter não
dava nenhum indício exterior de descontentamento ou ansiedade. A falta de
autoconfiança o preservara da revolta ou do desgosto. Suportou tudo de
maneira leve. “Bem, Pe. Peter”, disse-lhe um bispo em gracejo, quando ele
partia para um estágio de três meses numa paróquia de Londres, “lá vai
você, rumo ao inferno ou à glória, hã?”. Peter revidou a zombaria: “Em
ambos os casos, os bispos têm prioridade, meu senhor”.
Tivesse Peter protestado quanto a sua não indicação como pároco, e se
servido de amigos influentes ao seu dispor, e teria, sem dúvida, podido se
retirar para a calmaria rural de uma paróquia de Kerry, gozando da
extraordinária autonomia de um padre de paróquia. (Um papa ou um bispo
só se aproximam de um “PP” com muita cautela. Somente uma governanta
da paróquia pode ameaçar frontalmente a autonomia de um pároco. Mas,
também aí, as governantas irlandesas eram uma raça à parte).
Na situação em que Peter se encontrava e na qual optou por permanecer –
sob a estrita dependência dos caprichos eclesiásticos, e nunca protestando
em busca de posições fixas –, ele tinha tempo disponível para uma breve
visita a Roma, durante a qual um encontro acidental o transformaria
profundamente.
Após seu segundo exorcismo, ainda vieram dez anos de “auxílios” em
várias dioceses, quase sempre numa dinâmica temporária, como substituto
de outros padres. E então, num café da manhã beneficente organizado ao
final de setembro de 1962, Peter conheceu um bispo da Costa Oeste que, a
caminho da abertura do Concílio Vaticano II em Roma, ficava alguns dias
em Nova Iorque. O bispo era conhecido por sua simpatia com os
“inconformistas” e sua abertura aos “casos difíceis”. Como todos os bispos
que foram ao concílio, ele precisava de um ou dois especialistas em teologia
para aconselharem-no em Roma. Particularmente, de um teólogo
conselheiro especialista em assuntos pastorais.
No dia seguinte, Peter estava a bordo do vôo da TWA com o bispo, rumo
à Cidade Eterna. Não fosse por aquela viagem, ele provavelmente nunca
viria a estar ao lado de Marianne, três anos mais tarde. E, certamente,
tampouco teria conhecido dois homens que exerceram sobre ele uma súbita
e profunda influência pelo resto de sua vida. Em Roma, Peter pôde exercer
sua função de conselheiro durante uma estada de dez semanas. Mas o mais
importante para ele, pessoalmente, e o que o afetou mais profundamente,
foram as experiências vividas com o Padre Conor e com Paulo VI, então
Monsenhor Montini.
Pe. Conor era um diminuto frade franciscano irlandês, calvo, loquaz e de
olhar penetrante, que ensinava teologia em uma universidade romana.
Usava óculos sem aros, trotava – nunca andava –, e falava com um
fortíssimo sotaque que tornava todas as suas aulas de latim simplesmente
ininteligíveis.
Ele costumava fazer sala para estudantes, professores, visitantes
estrangeiros, membros da hierarquia e amigos em seu monastério após a
hora da sesta, três ou quatro dias por semana. Ali era possível saber de
todas as fofocas de Roma e testar sua veracidade (pois metade de Roma se
nutre de fofocas a respeito da outra metade, e vice-versa). A especulação é
o bastão que faz agitar continuamente as águas do rumor. “Contaram-me,
meu amigo, que...” era uma fórmula de abertura freqüente nas conversas de
Conor.
Ele passava seus verões pescando próximo a Lough Corrib, Irlanda; era
um especialista nos cristais de Waterford, e sempre fora fascinado por toda
vida política, seja civil ou eclesiástica, o que fez o Concílio Vaticano II
surgir diante de seus olhos como um canteiro de erva-gateira aos olhos de
um gato. Ele havia estudado demonologia (“quase tudo balela”, dizia ele
com seu sotaque carregado), bruxaria (“um monte de besteira, se ’cê quer
saber”), exorcismo (“um treco maluco”), e possessão (“o demônio é um
ladrão pé-de-chinelo!”). Serviu como consultor a um membro da hierarquia
romana no trato com casos de possessão; conduziu exorcismos em 14
ocasiões (mas sempre protestou, dizendo que “nunca chegaria nem perto do
tição, nem com vara longa; só fui porque me mandaram lá!”). Uma piada
interna que sempre deixou Conor furioso conta que ele expulsava os
demônios ameaçando “mandá-los de volta para a Irlanda”.
Fora dos círculos eclesiásticos romanos, a atividade de Conor enquanto
exorcista era relativamente pouco conhecida. De fato, ele era visto por seus
colegas de sacerdócio na Irlanda como um rato de biblioteca, e por seus
amigos leigos como “um grande homem, simples, com inclinações
ligeiramente bizarras pela Idade Média”.
Peter e Conor tinham aproximadamente a mesma idade. Compartilhavam
um amor pela Irlanda e uma paixão pelas ruínas de Roma. E Conor
reconhecia em Peter uma mente intocada pelas ambições vis que corroíam
aqueles que circulavam por Roma, lutando para galgar os degraus da vida
política. Ele também captava o caráter inútil que Peter atribuía a si mesmo.
Ele achou a experiência de exorcismo de Peter enormemente
interessante. Peter tinha “o tato”, como ele dizia – uma habilidade natural
para controlar as intempéries próprias ao exorcismo. Peter, por sua vez, via
em Conor um amigo com experiência prática e capaz de aconselhá-lo.
Vagando pelos subúrbios de Roma, sentado ao cortile 6 do monastério de
Conor, visitando os pontos turísticos de Roma, bebericando um café na
Piazza Navona, eles pouco a pouco assumiram os papéis de mestre e
discípulo. Peter colocava questões; Conor as respondia. E explicava. E
teorizava. E instruía. Ele prevenia. Ele corrigia. Ele encorajava.
No campo do exorcismo, Conor já havia reduzido as coisas a um padrão
reconhecível de comportamento: como se comportava o possesso; como
agia o espírito possessor; e como o exorcista deveria reagir e conduzir o
exorcismo. Durante as longas caminhadas e conversas com Conor, Peter
cristalizou suas primeiras impressões e aprendeu valiosas linhas mestras.
Ele nunca havia se dado conta da distinção radical entre aquele que está
perfeitamente possesso e os simples revoltosos. Tampouco havia
compreendido que os revoltosos eram vítimas de possessão que, em parte
por sua conivência, é certo, haviam se tornado reféns e tentavam agora, por
um lado, dar sinal, implorar por ajuda, mas que em meio a esse sofrimento
também se tornavam vítimas de um violento protesto contra tal ajuda –
protesto feito pela coisa maligna que os possuía.
Peter pôde ajustar e corrigir suas técnicas imediatamente, mesmo sem
conduzir outros exorcismos, quando Conor explicou que a maior porção de
cada exorcismo era resolvida em se atacando a fase de afetação, dissipando
assim uma cortina de fumaça; que a etapa mais perigosa era o ponto de
quebra daquela afetação e o imediato confronto de vontades entre o
exorcista e a coisa que torturava o possesso; e que o “Grande Mandachuva”
(epíteto que Conor utilizava para se referir ao Demônio) só intervinha, ele
próprio, muito raramente.
Na visão de Conor, o mundo dos espíritos maus era como uma
organização autocrática: “O Zé Stálin mandava o Molotov fazer o seu
trabalho sujo. O Mandachuva, também, manda os seus capangas”.
Conor ensinou seus truques e macetes a Peter; e deu-lhe algumas tags –
frases, palavras, números, conceitos – para rotular fases perigosas,
momentos capitais e eventos num exorcismo. Disponibilizou a Peter
algumas de suas próprias práticas: o uso de “textos provocadores”, por
exemplo. Em alguns pontos de hiato no exorcismo, não havia modo de
duelar face a face com o possesso e com aquilo que o possuía. O espírito
possessor literalmente se escondia atrás da identidade do possesso. Ele tinha
de ser expelido. Conor tinha o hábito de ler alguns textos extraídos dos
Evangelhos, até o ponto de o espírito cometer algum erro, ou desfazer-se
arrogantemente de seu disfarce.
Os conselhos de Conor, sempre concretos e vívidos, ecoavam na mente
de Peter com aquele caloroso sotaque que ambos compartilhavam, como se
dividissem ainda a mesma alfombra. “A coisa é maior do que você. É um
espírito contra o seu. E você é um pé-rapado, um pobre coitado, a não ser
que você tenha Jesus ao seu lado”.
Mas, acima de tudo, Conor fez com que Peter se reconciliasse com o
inescapável ônus de todo exorcista. Ele explicou, em termos simples, quais
eram as feridas que se poderia sofrer enquanto exorcista, quais deviam ser
evitadas, e quais eram incuráveis uma vez infligidas. Eram todas feridas
“internas”, no espírito, na mente, na memória e na vontade. Peter já havia
sofrido algumas delas, em pequena escala. Ele se deu conta então do que
ainda poderia experimentar.
Conor refinou a idéia de Peter quanto ao “Demônio” ou os “demônios”,
expressando em termos simples aquilo que para muitos modernos é um
enigma, se não mesmo um nonsense: de que modo aquilo que não tem
corpo pode ser uma pessoa, ter uma personalidade. E ele tratava a
psicanálise com severidade: “Mais tarde, eles vão descobrir que o negócio é
completamente diferente: e daí vão colocar o Siggy 7 e sua turma na mesma
prateleira de restos históricos, junto com as pesquisas do Galeno sobre
ossos e de Aristóteles sobre plantas”.
Mas não foi Conor, no entanto, quem livrou Peter da sua falta de
autoconfiança. Ele nunca poderia dar a Peter razões para confiar em seu
próprio juízo. Quem causou essa mudança foi o homem que, dois anos mais
tarde, se tornaria Paulo VI.
Peter nunca trocou uma só frase com Giovanni Battista Montini, então
arcebispo de Milão. Montini havia sido relegado do Vaticano à selvageria
política de Milão pelo Papa Pio XII, sobrevivera a ela, e estava agora de
volta a Roma – “sempre a ouvir vozes” (como diziam as más línguas
romanas, descrevendo o semblante etéreo de Montini e a impressão que ele
dava de ter persianas sobre seus olhos para esconder a luz guardada em seu
interior) – e estava profundamente envolvido no concílio.
Um dos conselheiros teológicos de Montini ficou impressionado com as
reflexões de Peter durante um jantar. Eles se encontraram por diversas
vezes durante a estadia de Peter. Certa vez foram, com Conor, a um
encontro de teólogos que discutiam os assuntos calorosamente debatidos
nas salas do concílio. Esses encontros eram freqüentes naqueles dias; o
arcebispo Montini era o convidado de honra nesse encontro específico.
Enquanto Montini, que acabara de chegar, se dirigia ao seu assento,
Conor sussurrou para Peter: “Me disseram, meu amigo, que o Joãozinho
[então Papa João XXIII] não vai durar muito”. E então acenando com a
cabeça em direção a Montini: “Ele é o próximo cara”.
Mas Peter não estava exatamente interessado em futuros papas . Por uma
razão inexplicável, estava fascinado era por Montini. Tudo naquele homem,
sua pessoa, suas falas e seus escritos tinham um significado especial para
Peter. Como comentou com Conor, “ele parece ter uma visão de coisas que
ninguém mais vê”.
Decidiu aprender tudo o que pudesse sobre Montini, falando com aqueles
que conheciam o arcebispo, lendo seus sermões, visitando freqüentemente
os conhecidos e empregados de Montini. Ele chegou até mesmo ao ponto de
se referir a Montini pelo apelido Zio, utilizado carinhosamente por aqueles
que conviviam com o arcebispo.
Peter veio a compartilhar do mesmo ponto de vista mordaz de Conor
sobre os papas recentes: “Pacelli [Pio XII] era como um cubo de gelo
servido dentro do coquetel de um arcanjo, em um banquete divino”...
confiou Conor com ironia, quando voltavam para casa certa noite. “Austero,
aristocrático, por vezes com um olhar de quem morreu e esqueceu de deitar,
sabe... O Johnny [João XXIII], é claro, é uma montanha de espírito. Mas
esse coleguinha aí [Montini] tem mais um ar de tragédia.
Peter fez um esforço para conseguir assistir a todas as falas públicas de
Montini. Foi numa dessas ocasiões que ele teve seu “momento Montini”.
Junto com outros presentes, ele se ajoelhou para receber a benção do
arcebispo ao final de sua fala. Quando Montini ergueu sua mão direita para
fazer o sinal da cruz, Peter ergueu seus olhos. Seus olhares se encontraram,
então, no ponto de junção da cruz que o arcebispo traçava no ar. Nesse
olhar, as “persianas” sobre os olhos de Montini se abriram por um instante.
Seu semblante comunicava, por um instante, um brilho deslumbrante, um
calor. As “persianas” então se fecharam de novo, e os olhos de Montini
passaram a transitar por sobre as cabeças das outras pessoas que se
ajoelhavam ao redor de Peter.
Mais tarde, Peter entendeu que aquele sentimento vago de incerteza o
havia deixado. Pela primeira vez em sua vida, ele não tinha mais qualquer
temor.
Isso se deu em meados de novembro de 1962. No início do mês de
dezembro, ao terminar a primeira sessão do concílio, ele fora comunicado
de que estava liberado de suas obrigações em Nova Iorque, e de que poderia
voltar à Irlanda para o Natal. Depois das férias em sua terra natal, ele
trabalhou na Irlanda de janeiro de 1963 até agosto de 1965.
Chegava ao cabo de suas férias de verão em julho de 1965 e preparava
seu retorno a Kerry, quando recebeu uma breve nota vinda de Nova Iorque,
contando o caso da jovem Marianne K., aparentemente um genuíno caso de
possessão. A nota era urgente: as autoridades sentiam que ele era quem
melhor poderia gerir o caso. Seria possível que viesse imediatamente?
Em meados de agosto, ele chegou em Nova Iorque.

Marianne K.
Durante a primavera de 1964, e a milhares de quilômetros de distância da
calmaria e frescor rurais de Kerry, onde vivia Peter, os habitués 8 de Bryant
Park, em Nova Iorque, começaram a notar a presença de uma jovem mulher
esguia, de estatura média, vestindo jeans, sandálias e uma blusa, com uma
capa de chuva deitada sobre seus ombros. Suas visitas ao parque eram
irregulares, e lá ela ficava por períodos imprevisíveis; às vezes por dez ou
quinze minutos, certa vez por dois dias inteiros. O clima nada tinha que ver
com a duração de suas estadas; sol, chuva, neve, nada disso fazia diferença.
Ela parecia sóbria; mas aqueles que passavam por perto sentiam o odor
rançoso de cabelos e pele mal lavados. Ela nunca falava com ninguém, e
nunca parava ou sentava duas vezes no mesmo lugar. Sua expressão era
fixa, uma espécie de sorriso congelado que se restringia unicamente à boca
unicamente; seus olhos eram inexpressivos, suas bochechas desprovidas de
qualquer linha, muito tesas; seus dentes nunca eram visíveis por entre os
lábios fixos e sorridentes. Seus cabelos loiros estavam geralmente
despenteados. Aqueles que a viam com freqüência a apelidaram de Sorriso.
Marianne K.
Seu comportamento era inofensivo, embora excêntrico num primeiro
momento. Em certos dias ela vinha ao parque, sentava ou simplesmente
ficava de pé, sem quaisquer impulsos de conversar com quem quer que
fosse. Partia então subitamente, como se houvera recebido alguma notícia.
Em outros dias, ela chegava, o semblante totalmente inexpressivo, e partia
precipitada. E ainda noutras vezes, ela levava pequenos bastões de madeira
que fincava cerimoniosamente na terra, atando uma tira de pano com um
laço à sua base. “Como uma cruz de cabeça para baixo”, como descreveram
posteriormente.
Numa única vez, durante esse período inicial, Marianne causou certo
incômodo. Ela veio ao Bryant Park de manhã, sentou-se por algum tempo, e
então ergueu-se rigidamente, olhando ao sul, com um brilho no olhar que
poderia ser tomado por beatífico. Alguém passou portando um rádio
tocando música em altos brados. Quando o rádio se aproximou dela, ela
lançou subitamente suas mãos sobre o ouvido, gritou, girando como um
pião, e caiu dura de cara no chão, seu corpo em espasmos. Um grupo de
pessoas se reuniu em torno dela. Um policial caminhou até ela com a
morosidade típica do tira novaiorquino. “Amigo, desligue esse negócio”,
ele disse ao dono do rádio.
Quase imediatamente chega um homem ao lado do policial. “É a
Marianne. Eu cuidarei dela”, disse ele com uma voz muito clara e investida
de autoridade.
“Você é parente?”, perguntou o policial, olhando-o enquanto ele se
agachava junto a Marianne.
“Eu sou a única pessoa que ela tem neste mundo”. O policial se recorda
de que o homem tocou Marianne em seu punho esquerdo e falou-lhe
brandamente. Em poucos segundos ela acordou e ergueu-se rápida porém
instavelmente. Seu rosto ainda trazia aquele sorriso. Juntos, ela e o homem
alto caminharam lentamente rumo à 5ª Avenida.
“Não precisa registrar isso, policial”.
O policial ouviu aquelas palavras ditas calmamente, com confiança, por
sobre os ombros. “Eu tive certeza de que eles eram pai e filha”, comentou
mais tarde, rememorando o incidente. “Ele parecia ter idade para ser seu
pai; e ambos sorriam do mesmo modo”.
Não ocorreu nenhuma outra complicação pública no caso de Marianne,
embora ela já estivesse num estado de possessão por um espírito maligno.
Nenhum sinal característico daquela possessão, inequívoco por si só, se
havia feito visível, desde a infância de Marianne até o ano seguinte ao
incidente em Bryant Park.
Marianne crescera com um irmão um ano mais jovem do que ela. Eles
passaram seus primeiros anos em Filadélfia. A família era, à época, de
classe média baixa. Eram católicos fervorosos e muito unidos. Seus pais,
ambos descendentes de poloneses vivendo já há duas gerações na América,
não tinham parentes nos Estados Unidos. Poucos eram seus amigos
próximos. Nenhum deles havia completado o ensino médio: e nunca haviam
encontrado tempo para a cultura, ou tempo livre para coisas finas. Sua mãe
era uma mulher discreta e tenaz, que tinha um emprego e estava
continuamente preocupada com as contas a pagar. Seu pai era de um caráter
abruptamente franco, terra-a-terra; cresceu durante a Grande Depressão,
casou-se tarde, era solidamente fiel à esposa, nunca se deixou afligir diante
das dificuldades, e, fora de suas horas de trabalho, passava todo o tempo
livre em casa.
A disciplina em casa não era rígida, e uma boa dose de diversão e alegria
trespassava o ambiente. Ambos os filhos foram criados com vistas a
levarem uma vida ordenada. A religião ocupava um lugar proeminente em
suas vidas. As orações em comum eram recitadas de manhã e à noite. O
amor e lealdade familiares eram baseados nas crenças religiosas. O padre
polonês era a autoridade maior.
Naqueles primeiros anos, tão forte era a semelhança entre Marianne e
George, seu irmão mais novo, que eles eram freqüentemente tomados por
gêmeos. Quando a mãe ou o pai os chamavam, ambos podiam responder
imitando perfeitamente a voz um do outro. Eles tinham sinais e palavras
especiais entre si, uma espécie de linguagem privada que só eles podiam
usar.
Esse companheirismo próximo entre as duas crianças se desfez quando,
por volta do oitavo aniversário de Marianne, sua família se mudou para
Nova Iorque, para onde seu pai havia sido transferido pela empresa em que
trabalhava. Seu novo cargo fez com que a família gozasse de segurança e
conforto financeiro. A mãe de Marianne não trabalhava mais fora de casa.
Seu irmão tinha êxito na escola; fazia amigos com facilidade, era bom atleta
e de uma presença jovial e exuberante. Em Nova Iorque, ele buscou cada
vez mais a companhia de seus iguais, passando cada vez menos tempo com
sua irmã.
Marianne fizera poucos amigos e só se sentia à vontade em casa. Ela
nunca pareceu preferir o seu pai a sua mãe, nem vice-versa. Após terminar
o colegial, passou dois anos no Manhattanville College, onde seus
interesses acadêmicos eram em Física e Filosofia. Mas sua permanência
naquela instituição foi turbulenta e infeliz. Ela queria a “verdade inteira,
saber tudo”, disse a seus professores num primeiro elã de entusiasmo. Mas
com o tempo, pareceu tornar-se cínica e desiludida, e deu a impressão de
acreditar que eles estavam fugindo do real problema, e lhe escondendo a
verdade inteira.
Ela encontrou especial dificuldade com sua professora de Metafísica,
uma tal Madre Virgilius, à meia-idade, míope, voz aguda, exigente,
disciplinadora, membro da “velha escola”. Madre Virgilius ensinava
filosofia escolástica. Ela zombava dos filósofos modernos e de suas teorias.
Suas discussões com Marianne foram, desde o início, acirradas e
inconclusivas. A garota continuava assediando a professora com questões,
duvidando de qualquer declaração que Madre Virgilius fizesse, retornando
em seus raciocínios passo a passo até que a freira se encontrasse,
desesperada, diante de suas próprias idéias iniciais, que ela aceitara mas
nunca questionara. E Marianne era demasiado esperta e tenaz para Virgilius,
saltando agilmente de objeção em objeção e semeando dificuldades e
comentários para fazê-la tropeçar.
Mas, claramente, Marianne parecia estar atrás era de uma armadilha na
qual pudesse fazer cair a freira. Não parecia haver, de sua parte, qualquer
desejo de encontrar algo verdadeiro ou de aprofundar seus conhecimentos,
mas tão somente um impulso de crueldade, uma impassível destreza no
trato com palavras e argumentos, alternando silêncios sarcásticos e sorrisos
de satisfação, enfim uma zombaria recalcada.
Virgilius sentia essa realidade, mas não era capaz de identificá-la. Ela
simplesmente se esforçou para preservar sua dignidade. Mas isso não
ajudou nenhuma das duas em nada.
A história chegou a seu ponto culminante numa tarde. A aula tratava do
princípio de contradição. “Se algo existe, se algo é, então ele não pode
senão existir. Ele não pode, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, não
ser”, concluiu Madre Virgilius no clímax de sua exposição. “A mesa está
aqui. Enquanto ela está aqui, ela não pode não estar aqui. O ser e o não ser
não podem coexistir simultaneamente”.
Assim que ela concluiu, a mão de Marianne disparou ao alto. “Por que
eles não podem coexistir simultaneamente?”.
Elas estiveram debatendo nesse terreno interminavelmente. A freira não
tinha mais respostas nem paciência. “Marianne, nós discutiremos isso mais
tarde”.
“Você diz isso porque não pode prová-lo. Você só está supondo isso”.
“Os princípios primeiros não podem ser provados. Eles...”.
“Por que eu não posso ter um outro princípio primeiro? Digamos: ser e
não ser são inseparáveis. A mesa está aqui porque ela não está aqui. Deus
existe porque ele não existe ao mesmo tempo”.
Risos silenciosos corriam pela classe.
Marianne berrou aos seus colegas de classe: “Isso não é uma piada! Nós
existimos e não existimos!”.
O clima de mofa deu lugar ao de hostilidade e constrangimento.
Ninguém na classe, incluindo Virgilius, percebeu, nas reflexões de
Marianne, que por algum tipo de impulso interno, sua mente estava
funcionando num confuso circuito fechado. Ela não estava sendo guiada por
idéias claras, não tecia seus comentários a partir de um lastro de ricas
reflexões e experiências, mas estava sendo impulsionada unicamente por
uma peculiar fascinação com o negativo. Muitas foram as mentes, de ainda
maior envergadura, que caíram num penhasco escuro por essa mesma via,
ou se fizeram perfurar, em desespero, por sobre pedras pontiagudas.
Virgilius, que já estava cansada daquilo tudo, sentiu-se humilhada. E
enfurecida, disse: “Eu já disse, senhorita, nós conversaremos...”.
Mas antes que ela pudesse concluir essa frase, Marianne já estava de pé,
tinha apanhado seus livros, encarado todos na sala e saído pela porta.
Marianne recusou-se a retornar a Manhattanville. Todas as vezes que lhe
perguntavam o porquê, ou lhe rogavam que voltasse, ela repetia: “Eles estão
tentando escravizar minha mente. Eu quero ser livre, conhecer toda a
realidade, viver o real”. Ela não guardava senão desprezo por seus ex-
professores. Mas ninguém poderia imaginar quão longe ela avançara nesse
desprezo.
De acordo com o seu relato, esse novo caminho se iniciou quando ela
decidiu que seus professores – Madre Virgilius entre eles – eram
impostores, que só faziam repetir o que lhes fora dito. Não há nada de
anormal aí: até certo nível, Marianne apresentava uma reação emocional
comum à adolescência. Mas ela se obstinou naquilo com uma lógica que
não era normal para sua idade. E se isolou deliberadamente: não se
comunicava com seus colegas, tampouco discutia essa questão com seus
pais. Ela estava determinada a trabalhar isso por si mesma.
Pouco a pouco, ela estendeu essa mesma premissa (“Todas as autoridades
em minha vida são farsantes, porque repetem algo que lhes foi dito e que
nunca questionaram”) a seus pais, aos padres da igreja local, aos
ensinamentos religiosos que recebera e aos hábitos e costumes da vida
diária. Enfim, a tudo.
Seus pais não conheciam nada de filosofia. Quando Marianne falava
sobre “quão bom é ver todos os ‘nãos’ lado a lado com os ‘sins’” ou da
“sujeira no nariz da Vênus de Milo” ou do “assassinato como um ato de
beleza tão real quanto a composição de uma sonata”, eles ficavam
chocados. Só sabiam que a amavam; mas as manifestações desse amor eram
tomadas por Marianne como grilhões lançados sobre ela. “Se ao menos
você pudesse me odiar, mamãe, só por cinco minutos, nós nos daríamos tão
bem”, disse certa vez para sua mãe. Numa outra ocasião: “Por que o papai
não me estupra ou quebra o meu nariz com um soco? Aí então eu veria a
minha beleza. E o conheceria em verdade”.
Ao cabo de muitas discussões e consultas, ficou decidido que Marianne
seria enviada à Hunter College para o semestre de outono de 1954. Talvez
uma escola puramente secular, mas com bons padrões, satisfaria aquilo que
os pais de Marianne entendiam, superficialmente, como uma urgência de
sua filha em adquirir conhecimento.
Academicamente, Marianne nunca teve qualquer dificuldade durante
seus três anos em Hunter. Mas o ritmo da vida familiar mudou durante
aquele período, e ela viveu uma transformação totalmente inesperada em
seu caráter. George, seu irmão, partira no ano anterior para estudar
oceanografia. Ele era o ser humano com quem ela se comunicava de modo
mais íntimo. Seu pai estava fora de casa com maior freqüência do que
nunca, viajando pela empresa. Sua mãe, que retomara o trabalho numa
agência de propagandas, perdera qualquer contato real com Marianne ao
final de seu primeiro ano de faculdade.
Seus coetâneos na faculdade lembram-se dela como uma garota
corpulenta, com um semblante sepulcral, que não sorria facilmente e ria
com menos freqüência ainda, falava num tom de voz grave, tinha poucos
amigos, nunca saíra com garotos, dava a impressão de um caráter
enormemente inflexível sempre que uma discussão surgia, e (até onde eles
podiam ver) quase não saía de casa. Mas nenhum de seus colegas, e nem
mesmo sua família, sabia coisa alguma a respeito de seu primeiro encontro
com o Homem.
Durante seus dois primeiros anos na faculdade, Marianne costumava ir
até o centro da cidade e sentar-se na Washington Square Park, estudando
seus livros e tomando notas. Numa tarde de 1956, enquanto lia As
variedades da experiência religiosa 9 de William James, ela sentiu
subitamente, mas sem qualquer sentimento de espanto, que alguém se
curvara sobre seu ombro e olhava as páginas de seu livro. Ela olhou para
cima. Tratava-se de um sujeito alto, cuja face e as roupas nunca vieram a
causar especial impressão em sua memória. Sua mão esquerda repousava
sob as costas do banco do parque. A memória de Marianne guardou a
imagem de sua boca, e os dentes bem alinhados ostentados por detrás dos
lábios, enquanto ele lia repetidamente as palavras sobre a página em que o
livro estava aberto: “Quando você encontrar um homem vivendo nos
limites incertos de sua consciência...”, 10 percorrendo todas as palavras por
diversas e diversas vezes, sem pausas. A boca continuava a repetir e repetir:
“...nos limites incertos da consciência nos limites incertos da consciência
nos limites incertos da consciência nos...”. Ele o fazia suavemente. Sem
pressa. Sem ênfase particular. Até que as palavras passaram a formar um
carrossel turbilhonando em seu ouvido, e sua mente girava, esbarrando
contra as palavras por todos os cantos. Ela eclodiu em lágrimas.
Aquela mesma boca disse, ainda suavemente: “Eles estão todos
pressionando você para os limites incertos... Você quer se livrar disso?”.
Ela guarda poucas lembranças do que se seguiu, mas respondeu, entre
lágrimas: “Eu não quero que eles me ajudem. Só quero que me deixem em
paz”.
Ele sentou-se ao seu lado por aproximadamente uma hora. A mão
esquerda permaneceu visível na memória de Marianne. Assim como a boca.
Ela não se lembra de mais nenhum traço, exceto que lhe foram passadas
certas instruções. “Não deixe que nenhum homem a toque! Você tem pouco
tempo para alcançar o seu verdadeiro eu! Venha falar comigo com
freqüência!”. E havia uma instrução peculiar: “Busque aqueles que
pertencem ao Reino. Eles a reconhecerão. Você os reconhecerá”.
Foi desse momento em diante que a sua família e seus conhecidos
perceberam mudanças claras em Marianne. Ela desapareceu de casa durante
longas manhãs e tardes, mesmo quando não havia aula ou trabalho em
laboratório na faculdade. Falava raramente com seus pais. As refeições
tomadas em casa tornaram-se menos freqüentes. Seus coetâneos da
faculdade perceberam que ela se tornara mais introspectiva, mais temerosa
dos estranhos, mais reticente diante daqueles que a conheciam, e
extremamente tímida.
Sua mãe ficou preocupada. Após muita exortação, ela convenceu
Marianne a consultar um psiquiatra. Mas, passadas umas poucas sessões,
ele a dispensou, dizendo a seus pais que, ainda que ela certamente
precisasse de uma melhor alimentação (estava perdendo) e de muito amor,
ele não podia detectar nada de errado ou perigoso em sua psicologia. Ela só
queria ser livre; e assim era, dizia ele, essa nova geração. Em todo caso,
alertou o psiquiatra, eles deveriam levar sua idade em conta: rebeldia e
independência eram normais àquela faixa etária.
Seu pai estava satisfeito. Mas sua mãe ficou profundamente apreensiva.
“À época em que eles se deram conta de que eu estava mudando
seriamente”, diz Marianne, “eu já havia aceitado a autoridade d’o Homem
em minha vida. Eu havia mudado profundamente. Quero dizer, meu estilo
de vida interior havia se alterado sob sua influência”.
Marianne sempre se refere a essa figura como sendo “o Homem”; mas
hoje em dia lhe é impossível determinar se ele era mera alucinação,
invenção deliberada de sua própria mente, uma pessoa real, ou
simplesmente uma metáfora e símbolo de sua revolta inicial. De fato, na
memória de Marianne referente aos nove anos entre esse primeiro encontro
com o Homem e o exorcismo de 1965, ele segue aparecendo e
desaparecendo em suas recordações. Mas na maioria das vezes, sobretudo
nos últimos quatro anos, quase tudo é branco total. Umas poucas
experiências lancinantes; isso é tudo o que resta intacto para ela.
Tendo concluído seus estudos na Hunter, Marianne decidiu cursar pós-
graduação em Física na New York University. Seu isolamento era então
completo. Pouco depois de um ano, ela abandonou a universidade, alugou
um apartamento no East Village e começou a trabalhar como balconista de
uma loja na Union Square. Seu comportamento, comparado aos padrões
católicos conservadores de seus pais, era heterodoxo. Marianne nunca mais
foi à igreja, vivia relações esporádicas com diversos homens, não cuidava
de sua aparência e falava de maneira rude e grosseira, às vezes com
palavrões, contrariando tudo aquilo que seus pais valorizavam. Ela não
permitia que eles a incomodassem.
Quanto a seus pais, justamente, eles estavam enormemente preocupados:
mas, seguindo a indicação otimista do psiquiatra, ainda pensavam que tudo
aquilo era uma fase, rebelião passageira. Contudo, se preocupavam
particularmente com sua saúde: ela tinha passado de 60 para 40 quilos em
questão de poucos meses. Mas sua mãe, enormemente angustiada e confusa,
parou de deixar pacotes de comida à entrada do apartamento de Marianne,
após o primeiro ter retornado escorrendo um líquido fétido: Marianne tinha
misturado excremento e urina às frutas e sanduíches.
Em sua memória, hoje, o próximo passo importante em sua mudança de
“estilo de vida interior”, como ela o denomina, foi referente à religião
formal e às convicções religiosas. Ela deu esse passo conscientemente, com
o Homem a seu lado, e em duas ocasiões particulares.
Uma delas se deu num Domingo de Ramos, quando passava diante de
uma igreja na qual se realizavam os serviços litúrgicos. Algo referente às
luzes daquela igreja em particular atraiu seu interesse – “Era algo como um
chamado desafiador”, recorda. Ela entrou e pôs-se de pé em meio à
assembléia, no fundo da igreja. Subitamente, sentiu o mesmo nojo e repulsa
que ela então havia experimentado com relação a seus pais e professores.
Ao dirigir-se à saída, o Homem ao seu lado, virou-se também. Ele estava
ali, mas ela não havia reparado nele.
“Já deu, minha amiga?”, ele disse quietamente, jocosamente.
Ela viu seu sorriso à meia-luz e sorriu de volta. Ele disse: “O sorriso do
Reino, agora, é seu”. E então, enquanto eles saíam: “Se você não gosta, não
precisa pôr tudo no mesmo saco, sabe”. Ambos sorriram. E isso foi tudo.
A segunda ocasião se deu na semana seguinte, durante a Páscoa. Uma
cruz iluminada fora disposta no General Building na Park Avenue. Ela a
observava da esquina da 56th Street com a Park Avenue, quando ouviu o
Homem dizer, próximo a ela: “Isso parece injusto, unilateral... Não acha
que eles deveriam virá-la de cabeça para baixo, também? Só para
equilibrar? É sério, seria a mesma coisa, mas em perfeito equilíbrio”. O
Homem sorriu.
“Para mim”, comenta Marianne hoje, “aquele sorriso parecia perfeito.
Não era necessário equilibrá-lo com uma expressão carrancuda. Perfeito
para mim, então”.
Em casa, naquela mesma noite, ela se viu a si mesma desenhando cruzes
invertidas ao lado de cruzes em posição correta, todas enfileiradas. Mas ela
não conseguia criar coragem para desenhar a figura crucificada em nenhum
dos tipos de cruz. Sempre que tentava, “o lápis corria em formas de S, de Z,
de X...”. Daquele momento em diante iniciou-se, verdadeiramente, o que
ela recorda ser uma “nova tonalidade e forma de meu estilo de vida
interior”. Suas descrições aí são confusas e marcadas por expressões que
podemos julgar de difícil compreensão. Mas o sentido geral do que ela
conta é horripilante. O processo inteiro consiste na aquisição de uma “luz
nua” e em seu “casamento com a não-existência”, expressões que ela
aprendera com o Homem.
“Eu comecei a viver exatamente de acordo com a minha crença. Digo,
dentro de mim mesma, meus pensamentos, sentimentos, memórias, e toda a
atividade mental se desdobrava em consonância com essa convicção. Eu
reagia às coisas – pessoas, coisas e acontecimentos – como se eles só
constituíssem um dos lados da moeda do real. E logo descobri que todas as
pessoas tinham um enorme poder dentro delas – enquanto humanos.
Pessoas, coisas, acontecimentos, desafios com os quais nos defrontávamos.
O modo como respondíamos dava às coisas uma qualidade especial. Em
certo sentido, fazemos das coisas aquilo que elas nos parecem ser.
“Deixe-me dar um exemplo que também irá lhe mostrar para até que
ponto eu persegui essa minha idéia. Certa vez, do lado de fora da Biblioteca
Pública na 42nd Street, numa tarde ensolarada, uma mulher bem vestida
passou por mim, de braços dados com um homem. Eu estava sentada sobre
os degraus, e e ela sorriu para mim. Eu me vi sorrindo em retorno e
dizendo, por meio de meu sorriso (pois eu sentia isso em meu interior):
‘Você gosta de mim. Eu gosto de você. Você me odeia. Eu odeio você. Vê!
É tudo a mesma coisa!’ Ela deve ter entendido as mesmas coisas, porque o
sorriso como que congelou em seu rosto; mas ela continuou sorrindo –
como eu o fiz.
“Num outro dia, eu fiquei com um cara na Third Avenue. Fomos ao seu
apartamento e tivemos uma relação sexual. Ele era gentil, mas se mostrou
muito medroso depois de eu haver terminado. Acho que eu revelei um lado
de seu próprio caráter que ele nunca imaginara. Podia ver em seu rosto que
ele estava amedrontado. Insisti em que ele me fizesse um café. Ao bebê-lo,
ainda nua, disse-lhe o quanto eu e ele nos odiávamos, e que quanto mais eu
e ele nos amássemos, mais nos odiaríamos. Ainda posso ver o seu rosto
perdendo o sangue e o medo expresso na sua esclera. Ele obviamente estava
receoso que algo de ruim acontecesse. Quando ele balbuciou algo parecido
com ‘Hyde’ e ‘Jekyll’, 11 eu disse: ‘Oh, não, cara! Diga logo numa só
palavra, sem voltar atrás. Jekyll- -Hyde. Perfeito, vê só?’”.
Daquele momento em diante o desenvolvimento de Marianne se deu em
dois estágios breves. O primeiro deles foi bem rápido, e consistiu na busca
pela total independência: exceto quanto ao necessário para sua
sobrevivência ou prazer, ela não se preocupava mais com nada nem
ninguém. Marianne não se colocava mais quaisquer questões quanto à
bondade ou maldade morais; quanto a se a vida era boa ou má, digna de ser
vivida ou encerrada, se gostava dos outros ou se os desprezava, se por eles
era apreciada ou detestada; se cumpria com suas obrigações ou delas se
esquivava.
O segundo estágio foi mais difícil e se deu aos trancos e barrancos. Ele
começou com uma quase adoração de si mesma, e terminou com seu
“casamento com a não-existência” e a completude da “luz nua”. Ficou
claro, durante o exorcismo que se deu alguns anos mais tarde, que esses
eram termos que descreviam sua total sujeição ao espírito maligno.
Ela passou a monitorar suas percepções de perto, escrupulosamente. De
início, elas causavam fascinação, tocavam-na com um frescor
impressionante, parecendo perfeitamente originais em sua fonte – ela
mesma. Ela se tornou, aos seus próprios olhos, um gênio, alguém com um
olhar perfeitamente único. Achava a companhia dos outros exasperante e
destrutiva. Falar com outra pessoa era algo que diluía a agudez de sua
percepção; fazer o que quer que fosse acompanhado de alguém significava
vestir-se em falsas roupas e não ser inteiramente ela mesma; sentir o que
quer que fosse ao lado de outra pessoa significava que ela só sentiria
relativamente, pois teria de levar a outra pessoa em conta. Idealmente, ela
acreditava, cada um deveria sentir absolutamente aquilo que sentia; o que
quer que pensássemos, deveríamos pensá-lo completamente; o que quer que
desejássemos, deveríamos desejá-lo totalmente. Nenhum ensimesmamento
poderia ser mais perfeito.
Antes de Marianne alcançar o sucesso em seu absoluto isolamento, todo
retorno à conversação, toda refeição tomada na companhia de outros,
mesmo o fato de ouvir uma aula ou de trabalhar no laboratório, tudo isso
tornava difícil o retorno ao “espaço interior e visão própria” que ela
possuíra antes de tais contatos. Marianne se via com uma “visão dupla”,
turva, confusa. Via-se obrigada a passar dias “fazendo suas próprias coisas”
– caminhar no parque (coisa que, agora, fazia quase todos os dias), ficar em
seu apartamento escrevendo páginas e mais páginas, rasgando-as logo em
seguida para nunca mais lê-las; ficar parada, sentada ou de pé, por horas –
até que finalmente ela se visse completamente absorta no “eu” que estava
escondido. E então subitamente todo aquele tumulto externo se esvaía. Na
presença daquele eu interior, tudo se despia uma vez mais. Tudo se tornava
absoluto uma vez mais. E seguro. Ela não era mais interrompida ou
incomodada pelo “fluxo ruim” vindo dos outros.
Ao alcançar um domínio cada vez maior de seu isolamento, ela veio a
perceber que o eu que ela almejava repousava “além”, “entre” e “atrás”
(para usar suas próprias expressões) do mundo de suas ações e reações
psicofísicas. Para além do ritmo incessante das sinapses, dos registros em
sua memória, do barulho do veloz movimento dos quadris de seus
parceiros, dos irritantes monólogos dos outros indivíduos... Ela tornou- -se,
aos poucos, mais sensível e confiante de que iria encontrar o eu que ela
buscava envolto em sombras semitransparentes. Esse eu se encontrava num
patamar independente daquele mundo externo dispersivo, e de nosso
próprio teatro psíquico interior, este sempre à mercê do mesmo mundo
externo e que tão facilmente era por ele aniquilado. A preocupação com as
ninharias não tinha vez para o verdadeiro eu. Ela passou a acreditar que, se
pudesse evitar que o “fluxo ruim” dos outros entrasse nela, conseguiria
alcançar “a perfeição da pessoalidade”.
“Uma de minhas mais importantes percepções foi que em todo comércio
com as pessoas – uma conversa, um trabalho ou mesmo em presença dos
outros, falando e interagindo com eles – havia dois níveis de ‘fluxo’, de
comunicação”.
O primeiro, o “exterior”, era – assim o percebia Marianne – aquele com o
qual ela ouvia, via, tocava, saboreava, cheirava, se recordava,
conceitualizava e verbalizava. Todas essas funções poderiam ser
reproduzidas por uma máquina habilmente construída, um computador, por
exemplo. Muitas dessas faculdades poderiam ser encontradas em animais
altamente inteligentes. Mas, nos seres humanos, era impossível ter esse
nível “exterior” de comunicação sem o segundo nível.
O segundo nível de comunicação era, como acreditava Marianne, um
“fluxo” ou “influência” de uma pessoa a outra. E sempre que dois seres
humanos se comunicavam, eles o faziam em ambos os níveis,
simultaneamente, ainda que não soubessem ou não admitissem.
Marianne tinha idéias muito bem definidas quanto à fonte desse segundo
nível de comunicação. Sua formação acadêmica e seu apetite voraz pela
leitura lhe haviam fornecido ferramentas muito sofisticadas com as quais
desenvolver seu ponto de vista:
“A fonte não era o subconsciente, nem um sexto sentido ou telepatia nem
qualquer uma dessas categorias que impressionam pelo nome”, como ela
expõe. A fonte, pensava ela, era o eu em cada um. Ela disse: “O eu tem um
modo de comunicação que não precisa de imagens, pensamentos, lógica ou
qualquer partícula ou matéria”. Psicólogos e fisiologistas identificavam o eu
com os circuitos cerebrais, juntas sinápticas e mecanismos de sensação. Isso
era como dizer que o violino era a fonte da música do violinista. Religiosos
e espiritualistas identificavam o eu com a “alma” ou o “espírito” – e mesmo
com Deus, ou um deus. E tanto psicólogos quanto religiosos insistiam no
fato de que é possível fazer escolhas. Assim, na maioria das pessoas, essa
fonte e seu “fluxo” se confrontavam numa espécie de dinâmica de “preto-
ou-branco”. A maioria das pessoas estava, constantemente, a escolher, a
responder, assumindo a responsabilidade por suas ações, dizendo sim ou
não, e por conseguinte, “fendendo a unidade viva do eu”.
Era raro que Marianne encontrasse alguém cujo “fluxo” entrasse e saísse
dela sem tentar dividir o eu que ela já havia encontrado dentro de si. Ela se
lembra que o “fluxo” do Homem era perfeitamente correto, que ele até
mesmo a ajudara a alcançar os tais “vultos semitransparentes”. Em outras
vezes, no metrô, nas ruas, nas vitrines, ela recebia uma influência útil dos
transeuntes, sem nunca conseguir descobrir precisamente de onde ela vinha.
Sua vida diária tornou-se um contínuo esforço de resistir aos “fluxos”
externos – exceto aqueles que, segundo seu próprio ideal, tinham o
“equilíbrio perfeito”, fluxos que continham a “não-existência em si”.
Marianne lembra-se, vagamente, de continuar a ser instruída pelo
Homem, de vê-lo com freqüência, ouvi-lo falar, obedecer algumas ordens
dadas por ele. Mas ninguém consegue colher nada de preciso ou detalhado
quanto às instruções recebidas. Até hoje, os esforços feitos para rememorar
instruções dadas pelo Homem produzem pânico súbito em Marianne, e o
medo paralisa temporariamente sua mente. É como se, hoje, reminiscências
da influência do Homem estivessem presas nos recônditos de seu ser
interior, e o esforço de rememorar os dias de possessão como que
expusessem uma ferida ainda não cicatrizada.
O fim de seu sofrimento veio, um dia, em Bryant Park. Ela havia
chegado cautelosamente, sentindo o “fluxo” de todos os presentes, pronta a
partir se qualquer distúrbio se aproximasse dela. Ele estava sentado
languidamente num banco, sem fazer nada, fitando o espaço cum olhar
ocioso.
Sentada no outro canto do banco, Marianne observava, também
ociosamente, a cena dos passantes. À luz matinal, sob um céu depurado por
uma leve brisa, o tráfego murmurava a plenitude de sentido da vida de
outros seres humanos em seus trabalhos diurnos. Os pombos se
alimentavam. Não haveria cena urbana mais pacífica.
E então, num segundo, uma pressão enorme pareceu cair sobre Marianne,
da cabeça aos pés, como se ela tivesse sido apanhada numa rede. Ela
estremeceu. Uma espécie de mão invisível pareceu puxar uma corda que a
apertava, de modo que a rede se alastrou por cada centímetro de seu corpo e
de seu eu exterior, cada vez mais firme. “Conforme a rede se fechava sobre
mim, ela agarrava e comprimia cada partícula do meu ser”.
Marianne não sentia mais a luz do sol nem o vento. O mundo exterior se
tornara uma pintura pálida, sem frescor, nem calor e nem frio. Os
movimentos das pessoas, dos animais e objetos se tornaram traços
angulares sem profundidade nem som coerente. Todo sentido havia sido
drenado daquela cena.
Somente em seu interior é que ocorria movimento. Pouco a pouco, “a
rede, então sob a forma de uma mão enorme e envolvente, apertava,
contraindo cada vez mais minha consciência”. A todo instante, sob essa
pressão, ela estava “abrindo cada parte secreta do meu eu, dizendo, ‘Sim’,
‘Sim’, ‘Sim’, a uma força que não aceitaria ‘Não’ como resposta”.
E ninguém dentre aqueles que a viam – uma jovem estirada imóvel sobre
o banco, sob a luz do sol –, poderia imaginar que Marianne estava abrindo
uma porta de si mesma à possessão.
Sem dar qualquer aviso, a pressão cedeu. A rede havia sido lançada e
retesada. Marianne fora apanhada em segurança, de modo inelutável. E
então ela percebeu, como se acordasse de um sonho, que um certo tipo de
névoa ou bruma estava se desfazendo em sua consciência, proporcionando
uma nova sensação. Ela entendeu que sempre estivera próxima das
“sombras, de uma escuridão que a acompanhava”. Ao olhar uma vez mais
para a grama, as árvores, os homens, mulheres, crianças, animais, o sol, o
céu, o prédio, com a indiferença e inocência que eles assumiam sob seu
olhar, ela também via, por toda parte, essa mesma escuridão.
As trevas se arrastavam para dentro dela, como uma cobra que desliza
leve e lentamente até sua toca, trazendo consigo uma espécie de
“transparência obscura”, de “luminosidade opaca”, espécies de “sombras
com brilho” que causaram um arrepio em todo o seu ser.
Essa coisa que a invadiu parecia ser uma “pessoa”, ter uma identidade
individual. Identidade de um caráter tão sedutor e repugnante que o arrepio
lhe provocou uma sensação de “dor-prazer” como ela nunca imaginara ser
possível. Ela sentiu que todo o seu “ser se acalmara, tornando-se consciente
de si mesmo, dissolvendo todas as teias de aranha”. Era como apaixonar-se
pelas mandíbulas abertas de um crocodilo. Cada gota de sua saliva, cada
aresta de seus dentes, cada ranhura em sua boca “era animal, simplesmente
animal, e pessoal”.
Ela ficou o tempo todo a repetir “sim” silenciosamente, como se
respondesse a um pedido de casamento, como se estivesse sendo rendida. O
tempo parecia ter parado, “como se um bestiário de sons animalescos,
odores e presenças” gradualmente fluíssem em sua consciência e ali se
misturassem ao rumor das crianças brincando, com a melodia das troças
gritadas pelos trabalhadores ao redor, com os apanhados das conversas de
casais passando ao longo do caminho. Todos os sons que haviam animado
aquela manhã quando ela adentrava Bryant Park foram contaminados,
então, por “um novo odor de coisas corrompidas, velhas e novas... um odor
de corrupção”. O agradável ruído que pairava no ar e os sons do tráfego
foram banhados num fluido de “grunhidos, rosnados, silvos, mugidos,
balidos desesperados”. O azul do céu, a fachada reluzente dos arranha-céus,
o verde da grama, todas as cores ao redor de Marianne, ela assim se lembra,
se impregnaram de uma faixa de negro, marrom, vermelho.
Aquele era o “equilíbrio” que ela sempre buscara. “Eu finalmente havia
adentrado a morada do meu eu”, ela reflete – morada que sempre estivera
ali, é claro. Era esse o maravilhoso e o espantoso naquilo tudo. O
maravilhamento estava em “descobrir que a morada se situava em um não-
lugar, numa sala com uma cadeira desocupada que em realidade não existia,
paredes brancas que se dissipavam no nada”.
Ela se levantou para partir, radiante com o recém-descoberto “frêmito do
equilíbrio”. Mas foi trazida bruscamente de volta ao mundo indesejado dos
sentidos, pela música do rádio portátil ao braço de um transeunte. A
serpente que repousava dentro dela se enrolou subitamente, e se debatia
diante de qualquer tentativa de entrada de uma beleza ou graça particular
em sua alma. Ela sentiu seu próprio corpo cair e se contorcer. Era como se,
dentro de sua cabeça, uma pequena engrenagem se houvesse quebrado,
passando a girar cada vez mais rápido, produzindo um silvo agudo ao
acelerar. O chão lhe ocorreu, atingindo-a em cheio na testa. Mas o
verdadeiro sofrimento se dava no interior de Marianne. “Nunca conheci
tamanha dor e tamanho sofrimento”, disse ela.
“Quando eu decidi partir para onde me guiava o Homem, ele pouco
disse. Suas palavras queimavam no interior de minha memória: ‘Não tema.
Você agora desposou a não-existência e faz parte do Reino’. Eu entendi
tudo sem nada entender com meu intelecto ou razão. Eu disse, ‘Sim! Sim!
Tudo em mim lhe pertence, agora’.
“Nada nunca mais foi o mesmo, até o dia em que eu fui exorcizada”.
Não se tratava tanto do que Marianne havia aprendido, mas antes do que
ela havia se tornado. “Eu não era outra pessoa. Era eu mesma. Apenas
estava convencida de que havia me tornado livre, por ter me tornado
totalmente independente e também por aquilo que me havia adentrado e se
instalado em meu interior”.
Só para poder confirmar suas convicções, “a certa altura, algo como doze
meses antes do exorcismo, eu de fato fui a um psiquiatra – e aí realmente
descobri quão longe me encontrava da idéia ordinária de ‘ser normal’.
Conforme ele falava, eu percebia que tudo o que dizia, sua terminologia, os
conceitos que usava, e as teorias em que se baseava, tudo aquilo era uma
conversa furada, que não representava nem a metade do caminho que eu já
havia percorrido. Ele estava me tratando como se eu fosse um animal
humano doente – concentrando-se em minha parte animal. Mas ele não
sabia nada sobre o espírito; eu sabia portanto que ele não podia entender
minha parte espiritual, não podia, enfim, me entender. Ele me sufocava com
palavras e métodos, e tentou até mesmo aplicar umas hipnoses de um
completo amadorismo. Ao fim da sessão, era ele quem falava mais sobre si
mesmo do que eu.
“Um segundo psiquiatra me disse que eu precisava viajar, me afastar
daquilo tudo – mas isso foi ao cabo de uma longa sessão. Uma vez mais,
nesse caso, acho que nada do que a terapeuta – dessa vez, uma mulher -,
nada do que ela fez por meio dos métodos aceitos da psicanálise
(discussões, monólogos no divã, hipnose, medicação etc.) jamais
ultrapassou o raso patamar dos meus atos psíquicos. Ela parecia dar voltas
ao meu redor, fascinada por imagens, dados superficiais e terminologias; e
eu via meu eu psíquico, esse mecanismo parcial e insignificante em mim, a
responder-lhe. Durante toda a sessão, meu eu real, meu próprio ser que não
se adequa de todo em imagens ou palavras, permanecia intacto. A terapeuta
jamais adentrou o eu. Nenhum psiquiatra era capaz de passar por aquela
porta por conta da enorme carga de imagens, emoções e conceitos que eles
carregavam consigo. Somente o eu nu era capaz de adentrar e viver ali”.
Dali em diante, tanto quanto fosse possível julgar de um ponto de vista
externo, o estado de Marianne só fez deteriorar-se. Após o “casamento com
a não-existência”, em Bryant Park, algumas amarras parecem ter sido
cortadas.
Ela tornou-se adepta de toda forma de relação sexual com homens e
mulheres, mas nunca encontrou ninguém disposto a “ir até o fim”. As
lésbicas em geral ficavam só na superfície, buscando prazer e satisfação
sem a necessidade de um homem. Os homens com quem ela praticava sexo
anal se empalideciam, e freqüentemente perdiam a ereção, quando ela
tentava proceder com o coito anal “em seu sentido pleno”, como ela dizia.
Eles só queriam viver uma experiência nova, dizia ela, mas não tinham o
desejo de “viver a completa bestialidade”. Eles só conseguiam aceitar “uma
pequena parte da besta”, e deixavam de aproveitar as “delícias da beleza
bestializada e da besta embelezada”.
As poucas pessoas da vizinhança que a viam com alguma freqüência
começaram a achá-la peculiar. Ela raramente falava. Nas lojas, apontava
para aquilo que queria comprar ou entregava o produto ao dono da loja,
grunhindo. Nunca os olhava nos olhos. Tudo parecia envolto num vago
sentimento de ameaça ou perigo, um senso indescritível de um fogo
misterioso em seu interior, por todo o tempo em que ela permanecia
próxima a eles.
Seus pais tentaram vê-la diversas vezes, mas só conseguiam lhe falar
através da porta trancada de seu apartamento. Seu linguajar era repleto de
obscenidades.
Certa vez os vizinhos ouviram baques surdos e objetos sendo quebrados
durante quatro ou cinco horas. Vencendo, ao final, a relutância própria aos
habitantes do East Village em solicitar interferência de quem quer que seja,
eles chamaram a polícia. A porta teve de ser forçada. O cheiro na sala era
de fazer vomitar. Não conseguiam entender a temperatura congelante no
recinto, já que, do lado de fora, Nova Iorque era sufocada pela fétida
umidade do ápice do verão.
A sala estava um caos total. Ao chão, em volta da cama e da mesa, nos
armários, banheiro, na pequena cozinha, havia milhares de folhas de papel
rasgadas, repletas de rabiscos indecifráveis. Marianne estava deitada de viés
sobre a cama, uma das pernas dobrada contra si, um pouco de sangue
correndo no canto de sua boca, seus olhos abertos e inexpressivos.
Respirava normalmente.
Uma ambulância chamada por alguém chegou logo no instante em que
Marianne começou a se acalmar. Ela sacou a situação num piscar de olhos.
A expressão em seu rosto logo mudou: falava com uma voz normal e
garantiu-lhes que tudo estava bem. Ela havia caído, disse, de uma cadeira
ao reparar as cortinas. “Policial não quer problemas”, ela comenta ao
rememorar o incidente. “E, de todo modo, eu radiava demasiado poder e
auto-confiança. A única coisa que eu queria fazer era gritar obscenidades
nas caras deles: ‘Vocês perderam tudo! Eu acabei de ser fodida por uma
aranha barriguda!’. Mas não havia porquê eu dizer aquilo”. Eles a deixaram
em paz.
Durante todo esse período, Marianne estava sempre cheirando mal, e
constantemente parecia ter cortes e feridas em suas canelas e no dorso de
suas mãos. Ela nunca demonstrava qualquer emoção, exceto quando
confrontada com um crucifixo, ou alguém fazendo o sinal da cruz, o som
dos sinos de alguma igreja, odor de incenso vindo da porta de uma igreja, a
visão de um padre ou freira, a menção do nome de Jesus (mesmo quando
usado enquanto insulto ou num gracejo). A seu irmão, George, que mais
tarde viria a tornar-se uma das visitas mais assíduas, foi dito que em tais
momentos ela parecia se contrair inteira como se estivesse sendo linchada, e
por uma fresta em seu sorriso constante e ameaçador era possível ouvi-la
rosnar murmúrios ressentidos.
A violência contra terceiros era rara. Numa ocasião, uma estudante
ginasiana agitou sua caixinha de donativos, em prol de uma igreja local, na
cara de Marianne, pedindo uma contribuição. A resposta foi um grito por
entre os dentes, num surto de choro, Marianne escondendo seus olhos com
as mãos e chutando violentamente as canelas da garotinha. À frente da
caixa, ela ainda se lembra, havia a imagem de um crucifixo, e junto a ele o
nome de Jesus.
Por outro lado, ela era capaz de repelir ameaças de violência com certa
facilidade. No crepúsculo de uma tarde de outubro, na esquina da Leroy
Street, Marianne foi abordada por um assaltante, e se lembra claramente
que ele fez seu primeiro movimento vindo pelas costas. Ela voltou sua face
deliberadamente para ele, exibindo-lhe inteiramente o seu sorriso retorcido:
“Sim, meu irmão?”. Ele parou como se tivesse batido contra um muro
invisível e ficou olhando-a, surpreendido e frustrado. Com um olhar tomado
de medo, deu as costas e foi embora.
Por volta do mês de maio de 1965 a coisa alcançou um ponto crítico. O
irmão de Marianne retornara a Nova Iorque para uma visita prolongada.
George, àquela altura, estava casado e era pai de duas crianças. Não era
fácil organizar visitas à casa dos pais. Sua mãe lhe havia mantido
informada, por carta, da cisão com Marianne. Mas ela não tinha dado
indício da extensão da mudança sofrida por Marianne.
Ele então ouvira a história por completo. Falou com os mais recentes
empregadores de Marianne e as poucas pessoas que tiveram contato com
ela – seu senhorio, o merceeiro e uns poucos outros. Foi até mesmo ao
distrito de polícia local. As notícias não eram nada boas. Ninguém tinha
uma palavra positiva sequer a dizer sobre sua irmã. George não conseguia
acreditar nas histórias que ouvia sobre a pequena Marianne, de quem ele
fora tão próximo. Alguns falavam dela em termos depreciativos, que o
feriam profundamente. Outros manifestavam grande medo e apreensão
quanto a ela. Um sargento da polícia foi bem longe: “Se eu não tivesse
confirmado, meu filho, eu diria que você é um belo de um mentiroso, e não
o irmão dessa aí. Essa garota aí é encrenca, encrenca pura. E, além disso,
ela é suja. Não parece em nada com um rapaz fino como você”.
George decidiu visitar, ele próprio, sua irmã. Sua mãe sentou-se com ele
na cozinha, antes de ele partir. George lembra, hoje, que ela o preveniu
dizendo que “o que aflige o nosso bebê é algo mal, algo realmente mal. Não
é corpóreo. E também não é na sua mente. Ela partiu com o mal. É isso. O
mal”.
George ouvira esse recado, e grande parte do resto do que fora dito, com
reservas: era a sua mãe, supersticiosa e amorosa, falando sobre sua
menininha. Ela lhe deu um crucifixo e pediu que o deixasse escondido no
quarto de Marianne. Ela disse: “Você verá, filho. Ela não vai resistir a isso.
Você vai ver”. Para animá-la um pouco, George tomou o crucifixo, colocou-
o em seu bolso, prontamente esqueceu-o, e partiu para o centro da cidade
para ver Marianne.
Era a primeira vez que George e Marianne se encontravam em oito anos.
E ele era o primeiro dos membros imediatos de sua família que ela
consentia ver em seis anos. Marianne estava visivelmente encantada em
poder vê-lo em seu pequeno apartamento de um cômodo. Mas George,
sentado a ouvi- la falar lentamente numa voz suave e em staccato, entendeu
imediatamente que algo de fato ia mal com sua irmã, que alguma mudança
muito profunda havia ocorrido nela.
Ainda era possível reconhecer nela a sua irmã – os maneirismos que ele
conhecera nos tempos idos ainda eram perceptíveis. E ela ainda tinha o
“rosto da família”, que ambos compartilhavam. Mas, como George o disse,
ela parecia “ter visto algo que ocupava constantemente sua mente, mesmo
enquanto ela falava comigo. Ela estava falando como que em benefício de
um outro par de ouvidos, repetindo o que um outro alguém lhe estava
dizendo”. Ele teve aquele sentimento estranho que o fez sentir-se tolo diante
de si mesmo: Marianne não estava sozinha, e ele o sabia. Mas não lhe era
possível captar o verdadeiro sentido daquilo tudo. Não somente estava
perplexo com o comportamento de sua irmã, mas com os efeitos daquilo
tudo: sua irmã o amedrontava. George não sentia medo facilmente, nem
nunca havia sentido medo de nenhum dos seus familiares próximos.
Ele sentia um ligeiro alívio quando, em diversos momentos durante a
conversa, podia ver lampejos da personalidade que havia conhecido em sua
juventude, quando eram companheiros inseparáveis. Mas, durante tais
momentos, ela parecia implorar por ajuda ou tentar vencer algum obstáculo
que ele não conseguia definir, e que ela não podia revelar. E então, a onda
de medo o acometia uma vez mais. Ele se lembrou da voz de sua mãe
dizendo, mais cedo naquele mesmo dia: “Você vai ver. Ela não resistirá ao
crucifixo”. Em parte por curiosidade, em parte para satisfazer o pedido de
sua mãe, ele decidiu esconder o crucifixo na sala, como sua mãe havia
pedido.
Quando Marianne foi ao banheiro, George colocou o pequeno crucifixo
sob o colchão. Tão logo Marianne retornou e sentou-se no canto da cama,
ficou pálida como a cal e caiu dura no chão, o quadril a tremer como se ela
sentisse enorme dor. Em poucos segundos, sua expressão facial mudou, de
um semblante sonhador a algo quase animal; ela espumava pela boca e
mostrava os dentes numa expressão de dor e ódio.
George saiu correndo dali e ligou para seus pais de um telefone público.
Eles chegaram cerca de quarenta e cinco minutos mais tarde, trazendo o
médico da família com eles. Naquela noite, eles trouxeram Marianne de
volta para casa, no norte de Manhattan.
Seguiram-se então semanas de pesadelo para George e seus pais. Eles
agora tinham acesso total a Marianne. Ela estava num estado que o médico
descreve, um pouco livremente, como coma. Acordava, contudo,
regularmente, alimentava-se em pequenas doses, tinha ataques paroxísticos
nos quais grunhia e cuspia, e sofria de incontinência, de modo que tinha de
ser lavada continuamente. Enfim, retomava seu estado comatoso.
Às vezes ela era encontrada vagando pela sala no meio da noite,
tropeçando nos móveis em meio à escuridão, seu rosto congelado num
horrível sorriso. As drogas e o álcool foram eliminados do quadro de causas
daquela condição. A hospitalização havia sido considerada e a seguir
rejeitada. Embora estivesse subnutrida, seu médico e um de seus colegas
não encontraram nada de errado no organismo, nem qualquer indício de
doença.
Desde o princípio, seu pai insistira em que o padre de sua paróquia viesse
a sua casa, onde Marianne agora repousava, mas as visitas eram, todas,
catastróficas. Era como se ela soubesse de antemão que o padre estava
vindo. Tinha ataques aterrorizantes de raiva e violência. Acordava, tentava
atacar o padre, destilar algumas obscenidades, cortar sua própria pele, pular
da janela do décimo quinto andar, ou começava a bater sua cabeça contra a
parede.
Os distúrbios eram constantes. A porta de seu quarto nunca ficava nem
aberta nem fechada; ficava continuamente balançando de lá para cá. Fotos,
estátuas, mesas, louças quebravam constantemente. Tudo isso, somado ao
fedor insuportável, fez com que finalmente sua mãe e seu irmão buscassem
as autoridades da Igreja. Não importava o quanto se lavassem- -na ou
perfumassem-na, nem quanto limpassem a sala, ela sempre exalava um
odor fétido e úmido, uma putrefação que eles desconheciam até então. Tudo
isso, somado à extrema violência de Marianne quando um terço ou um
crucifixo lhe era trazido próximo a seus lábios, convenceram sua família,
finalmente, de que sua doença era mais do que física ou mental.
Quando Peter chegou em Nova Iorque no meio de agosto, foi-lhe dada
uma pequena sinopse do caso. Ele insistiu em fazer duas visitas e exames
preliminares, durante os quais, surpreendentemente, não houve violência.
Em primeiro lugar, Peter acompanhou dois médicos, escolhidos por ele,
numa visita a Marianne. Ela cooperou perfeitamente nessa ocasião. Na
segunda visita, ele levou um experiente psiquiatra consigo. Esse especialista
estendeu seus exames por mais duas ou três semanas, tomando notas
abundantemente, gravando conversas, discutindo o caso com colegas,
questionando seus pais e amigos. Sua conclusão foi de que ele não poderia
ajudá-la. Ele recomendou um de seus colegas. Após uma sessão de hipnose,
conversas mais prolongadas com Marianne, e com base também nos
resultados de terapia medicamentosa, seu colega declarou que o estado de
Marianne era normal dentro das definições de qualquer teste psicológico.
Foi no começo de outubro que Peter sentiu-se seguro de que tinha um
genuíno caso de possessão em Marianne, e que poderia proceder com o
exorcismo em segurança. Ele planejou iniciá-lo cedo numa segunda-feira de
manhã. Escolheu de antemão seus assistentes, e então passou muitas horas
ensinando-lhes como agir, o que fazer e o que não fazer durante o ritual de
exorcismo. A função principal que eles deveriam exercer era conter
Marianne fisicamente. Peter dispunha de um jovem padre como assistente
principal; a ele cabia monitorar as ações de Peter, avisá-lo caso o controle
da situação lhe estivesse escapando das mãos, corrigir quaisquer erros que
ele pudesse cometer, e – nas palavras de Peter – “me cortar e assumir meu
lugar se eu cometer o erro mortal”. Todos os assistentes eram instruídos
com uma regra absoluta: jamais falar nada em resposta direta ao que
Marianne viesse a dizer.
Tarde da noite no domingo que precedia a visita à casa de Marianne,
Peter recebeu, enquanto conversava com alguns amigos após o jantar, um
telefonema angustiado de George. Marianne estava pior do que nunca.
Andava pelo apartamento tomada de cólera, gritando o nome de Peter.
Houvera uma série de distúrbios pela casa, ainda não controlados, que
começavam a se espalhar para além do apartamento da família. Não só os
vizinhos reclamavam, mas seus pais já haviam sido vítimas de alguns
acidentes aberrantes. A situação estava ficando incontrolável.
Peter partiu imediatamente e chegou ao apartamento um pouco depois da
meia noite, preparando-se para um início imediato do exorcismo. Seus
assistentes já haviam chegado e, sob as ordens do padre, entraram antes
dele, ataram a roupa de cama ao leito e instalaram Marianne num cobertor
jogado sobre o colchão. Ela não ofereceu resistência, mas deitou-se de
bruços, os olhos fechados, murmurando e grunhindo vez ou outra.
Removeram o tapete do piso, e retiraram toda a mobília, deixando somente
duas peças. Peter precisava de uma pequena mesa de cabeceira para os
castiçais, crucifixo e livro de orações. O gravador fora colocado numa
cômoda. As janelas foram fechadas em segurança e as cortinas retiradas. Já
passava das 3h30 da manhã quando tudo estava pronto para o exorcismo.
Os quatro assistentes se aproximaram da cama de Marianne, naquele
pequeno quarto. A única luz vinha das velas sobre a mesa de cabeceira. Em
volta deles, pairava aquele fartum rançoso que marcava a presença de
Marianne; nem mesmo as bolinhas de algodão embebidas em solução de
amônia, que eles haviam colocado em suas narinas, puderam cortar aquele
odor. Vez ou outra, o ronco de um carro ou o silvo de uma sirene soavam
em seus ouvidos, vindos das ruas. Nenhum deles se sentia à vontade. A
peça central dessa cena, Marianne, jazia sobre a cama.
Quando Peter entrou vestindo batina preta, sobrepeliz branca e estola
roxa, Marianne tentou afastar-se de onde ele estava, ao pé da cama, mas
dois dos assistentes a retiveram. Não houve qualquer violência até ele
empunhar o crucifixo, aspergi-la com água benta, e dizer, numa voz calma:
“Marianne, criatura de Deus, em nome de Deus que a criou e de Jesus que a
salvou, eu ordeno que você ouça minha voz como a voz da Igreja de Jesus e
que obedeça aos meus comandos”.
Nem ele, muito menos seus assistentes, estavam preparados para a
explosão que se seguiu.
Pegando a todos desprevenidos, Marianne estremeceu e sentou-se ereta
sobre a cama. Abrindo sua boca numa estreita fenda, ela emitiu um longo
uivo que pareceu seguir-se sem pausa ou respiração por quase um minuto.
Todos foram lançados para trás, fisicamente, pela força desse grito. Ele não
inspirava piedade, tampouco comunicava um apelo ou um sofrimento
qualquer. Antes se parecia com o som que, em suas imaginações, emitiriam
um lobo ou um tigre “quando capturados e lentamente estripados”, como o
descreveu o ex-policial. Era a concretização, em som, de uma profunda
hostilidade e de uma dor infinita. Isso os deixou confusos e angustiados. O
pai de Marianne irrompeu em lágrimas, mordendo seus lábios para sufocar
sua própria voz; ele queria responder. “Num primeiro momento aquilo lhe
causa medo”, diz o jovem colega de Peter ao rememorar o evento. “Noutro,
lhe faz chorar. Depois você fica abalado. E assim se deu. Foi a confusão”.
Quando ela finalmente silenciou, eles haviam se recuperado e
prenderam-na novamente. Ela não resistiu. O sorriso estava de volta em sua
boca, entortando seus lábios numa forma de saca-rolha. Sua pele estava
muito fria. Seu corpo estava imóvel, relaxado. As primeiras palavras que
vieram dela eram calmas:
“Quem é você? Você vem para me perturbar? Você não pertence ao
Reino. E, contudo, você está protegido. Quem é você?”.

Sorriso
O Padre Peter olhou para o texto do seu exorcismo. “Curioso”, pensou
ele, “era para eu estar transpirando”. As palmas de suas mãos estavam
secas, bem como sua boca. Ele olhou de soslaio para a garota. Seus olhos
estavam fechados, mas seus globos oculares estava obviamente movendo-se
por detrás das pálpebras, como se ela estivesse entretida numa animada
conversa. Aquele sorriso permanecia colado em seus lábios como um
chicote undoso. Sua cabeça estava agora levemente inclinada à lateral,
como se ela ouvisse o padre.
“Marianne!”, disse ele num quase sussurro, com dificuldade de encontrar
sua própria voz. Nenhuma resposta. Silêncio por aproximadamente dez
segundos. Então, dessa vez num tom imponente: “Marianne!”.
“Por que ferir assim seu coraçãozinho” – Marianne falava em tom suave
– “Eu agora pertenço ao Reino. Você não sabia?”. Pausa. “Então, por favor,
dê o fora”. Mais uma pausa. “Vai lá com o Zio”. Uma risadinha. E então:
“Aposto que ele não sabe sair dessa, rapaz!”.
A borda de seus dentes apareceram como uma curva branca por detrás de
seus lábios. Os pés de galinha se desfizeram do entorno de seus olhos. Sua
expressão se enrijeceu inteiramente. “A menos que... a menos que... a
menos que você queira brincar, a menos que você queira ser o buraco pr’eu
enfiar meu marretããão”. Suas palavras eram emitidas em ritmo arrastado e
num só fôlego, mas sem qualquer movimento perceptível dos lábios. Peter
podia ouvir os pulmões chegando ao fim de seu alento no morrer daquele
“ão” prolongado, como se ecoando no vácuo.
Os quatro assistentes se entreolharam, agitados. O gerente bancário, que
agora transpirava muito, tocou os protetores auriculares de cera, em seus
ouvidos, para certificar-se de que eles ainda estavam ali. James, o padre
mais jovem, reteve sua respiração e estava prestes a falar, quando Marianne
se pronunciou uma vez mais, agora numa voz rouca:
“Perdão, Peter”. Ela soava como um amante, que houvesse simplesmente
beijado o parceiro com demasiada força – pedia perdão, mas poderia vir a
morder de novo.
“Marianne!”, dessa vez insistentemente. O nome agiu como um puxar de
títeres invisíveis. Seu corpo ficou rígido. Sua cabeça, fixa à cama, fitando o
teto; os olhos, voltados para cima por detrás das pálpebras, estavam
parados; a pele, petrificada e perfeitamente lisa, parecia dez anos mais
nova. Para qualquer um que a visse, aquela era uma jovem estudante
ouvindo atentamente seu professor. Exceto pelo sorriso.
“Lechah venichretha verith”. 12 As palavras em hebraico saíram de seus
lábios de modo assaz inteligível para Peter. “Um trato”, ela prosseguiu, “só
você, Peter, e eu. Peter Predador!”.
Uma janela abriu-se na memória de Peter, nela lançando uma semente de
pânico. Era como um morcego, ziguezagueando na noite da memória.
Como um grão de areia lançado em seu olho, levando-o às lágrimas. “Não
se preocupe. Ninguém vai saber disso. Só eu”. O rosto e a voz de Mae, tão
caros a Peter, voltaram, desde aquela distante noite de verão até ele. Mas a
voz de Marianne reduziu essa memória às cinzas.
“Um trato, Peter! Vamos falar do Uno no Santíssimo. Aleph. Beth.
Gimel. Daleth. Shin. Esqueça o seu hebraico e toda sua barba, cabelo e
bigode, sim?”. O tom de sua voz era uniforme, gutural, nem másculo e nem
afeminado, mas corajoso e escarnecedor. A semente de pânico em Peter
começara então a germinar, pressionando-o contra o limiar de sua própria
mente, e ele a buscar refúgio. Lembrou-se que aquilo era pura armadilha, e
surgiram as palavras do velho Conor: “Nunca discuta, meu rapaz. Nick é
um mestre nisso. Ele vai te pegar como um cordeirinho”.
Peter fez um novo esforço de controle mental. Seu pânico foi amenizado.
“Marianne!”.
Mas a afetação prosseguiu. “Tschah! Peter! O que é o que é, um pequeno
judeuzinho entre eu e você?”. A voz se fez menos gutural, quase suplicante.
“Em nome de Jesus, eu ordeno, Marianne, que você responda”.
“Por que não podemos simplesmente esquecer o passado? Você esquece,
eu esqueço... assim todo mundo fica feliz, Peter”.
“Marianne, você pertence ao Altíssimo...”.
“Esqueça isso, Peter!”. Uma vez mais aquele tom de voz rígido. “Não
seja tão chato. Essa é, é, é a Marianne. A Marianne real...”.
“Marianne, nos a amamos, e nós a conhecemos. Jesus a conhece. Deus a
conhece. Responda, em nome de Jesus, que a salvou”.
“Se você está pensando naquela garotinha cheia de espinhas na cara, sem
peito, e com óculos fundo de garrafa, com sua cruz prateada, e seus joelhos
calejados...”.
“Somente o amor pode salvar e curar, Marianne”. Peter via que a
confrontação estava sendo evitada, e que a voz prosseguia na afetação.
“...e aquele seu não-mãe-sim-mãe-não-pai-sim-pai-abençoai-me-porque-
eu-pequei. Esqueça isso, Peter”. O tom gutural havia retornado; mas havia
um rosnar suave misturado a uma nota de desprezo, e, Peter sentira
também, uma ponta de ameaça.
Um som atingiu o ouvido de Peter. O pai de Marianne tremia e olhava
para a cômoda. Ao longo das últimas 17 horas, aquela cômoda não estivera
nunca exatamente no mesmo lugar. Isso não tinha perturbado muito. Mas,
agora, ela havia chacoalhado para frente e para trás; os puxadores de metal
tremeram.
“Jogue um pouco de água benta nesse negócio”. Sussurrou Peter ao seu
colega. Ele ouviu uns curtos silvos, como gotas d’água caindo sobre um
fogão em brasa.
Mas logo Peter perdeu o controle da situação. Ele se distraíra pelas
reações do pai da menina e com a sua própria ordem sussurrada.
“Peter? Tudo bem?”. Ela transmitia uma solicitude escarnecedora em seu
tom de voz. O chacoalhar havia cessado. “Sabe, sobre esse negócio de Uno.
Que diferença isso faz?”.
Peter cerrou seus dentes e decidiu ser assertivo. “É o Santíssimo”, disse
ele modestamente, “é um”.
“Ah! Mas precisa completar, o Profaníssimo tem de entrar nessa
também”.
“Sujeira e limpeza não são compatíveis”.
“Sem escuridão não há luz, Peter. Não há luz”.
“O Santíssimo não pode andar junto com o Profaníssimo”.
“Errado, Peter pet, pet Peter”.
O vigor mental de Peter fraquejou por um instante, e ele sentiu as garras
da argumentação a envolver sua mente. Num erro mortal, ele deu abertura à
lógica. O aviso de Conor esvaiu-se numa espécie de clamor pela batalha
intelectual, e ele deixou escapar: “Impossível –”.
“Agora sim, estamos conversando”. Sua voz se elevou, interrompendo-o
triunfante. “Eu conheço esse seu Princípio de Contradição careta e
medieval. Esse et non-esse non possunt identificari. 13 Conheço até o latim!
Mas isso era assim no passado. Só vale para o passado. Isso pode ser
diferente”.
Peter esforçou-se para sair daquela discussão.
“Marianne!”.
“Não, Peter...”.
“Em nome...”.
“Do Profaníssimo e, se você faz questão, do Santíssimo. Não me
oponho”. E então aquela terrível risadinha. “Um dia, em breve, o seu esse e
seu non-esse se unirão, como...”.
“...de Jesus, Marianne...”.
“...um pau na boceta, como uma mão numa luva. Eu faço... eu fiz... e eu
farei...”.
Súbito, ela estremeceu e soltou um grito agudo. Seus ombros, quadril,
coxas, pés, mãos, tudo debatia-se contra as mãos daqueles que a retinham,
como uma mulher levada à loucura por carícias sexuais, mas interrompida
antes do orgasmo: “Alguém aí pode me foder? Fode o esse bem dentro do
meu cu, Peter. Enfia o seu esse em mim e me fode, me fode”. Ela concluiu
com um ganido desesperado.
O tio de Marianne engasgou, sem fôlego, como se fora golpeado à
garganta. Os tímpanos de Peter doíam depois daquele grito. Ele quase podia
sentir as lágrimas quentes dopai, que agora chorava, silenciosamente,
mordendo seus lábios enquanto continha sua filha.
Peter sabia: a fase de afetação estava se esgotando; algo iria ceder. Mas
eles ainda não estavam em vias do ponto de quebra.
Repentinamente, o corpo de Marianne amolentou. Os homens puderam
soltá-la e afastaram-se alguns passos. Suas bochechas ficaram coradas. A
voz que vinha de sua garganta soava então jovial, cheia de interesse e
calmaria, como se a recitar uma lição, fazendo desaguarem sílabas suaves.
Ao falar, sua cabeça se movia de um lado para o outro, os olhos fechados. O
sorriso-chicote fazia agora pensar que um gatinho brincava com os cantos
de sua boca, puxando-os de um lado para o outro.
“Eu estou numa busca bastante simples. Veja só. Não estou machucando
ninguém. Nem a mim mesma. Somente eu queria dar um fim a todas as
escolhas dolorosas. Mamãe e papai não podiam me ajudar. Nem meus
professores. Nem meus namorados. Todos eles estavam divididos em meios
às decisões. Todos eram torturados por suas escolhas. Amedrontados. Sim.
Vê só? Eles estavam amedrontados. Tinham temores. Como cães latindo em
seus calcanhares. Você acha isso certo? Acha que isso é a felicidade? É
possível? É impossível? Quilômetros e mais quilômetros das questões de
um bando de vira-latas. Eu sabia que se encontrasse o meu verdadeiro eu,
não haveria mais necessidade de responder às escolhas, e que portanto não
haveria mais medo de errar. Nada de culpa”.
Peter entendeu que não havia chance de impedir esse seu fluxo de
discurso. Ela o estava iludindo com um estratagema de discussão lógica no
qual ele não podia entrar sem se fazer envolver por mandíbulas de aço em
torno de sua mente. Estaria tudo acabado. Mortalmente acabado. A única
maneira de “atraí-la” para fora daquele ardiloso estágio de afetação era por
um fluxo, igualmente consistente, de um discurso em contradição direta
com o sentido daquilo que ela estava dizendo.
Por longos minutos e diversas etapas, Peter e Marianne respondiam- -se
um ao outro como se entoassem salmos responsoriais, um assumindo de
onde o outro havia parado. Mas não havia sequência ou conexão lógica
entre o que eles diziam. O único ponto no qual ele se esforçava para
assemelhar-se a ela era a sua maneira de falar. Quando ela sussurrava, ele
sussurrava. Quando ela gritava, ele gritava. Quando ela murmurava, ele
murmurava. Quando ela o interrompia, ele a interrompia. Quando ela ficava
em silêncio, ele silenciava. Se alguém tivesse observado o combate àquela
altura, a cena se lhe teria apresentado como uma surreal luta livre, na qual
os competidores combatem as sombras uns dos outros, enquanto todas as
cores e ações se esmaeciam num borrão acinzentado, e o placar era
controlado por um árbitro jamais visto ou ouvido, mas sentido como uma
presença certa e misteriosa.
“Possível e impossível”, Marianne murmurou, “tornam todos os feitos
humanos impossíveis, impondo distinções purulentas, parcos sectarismos e
frases feitas...”.
“Se alguém me ama”, Peter lia, “guardará minha palavra e meu Pai o
amará”. Ele estava a combater a confusão, o uso entorpecido de palavras
que embalavam a mente numa viagem rumo ao nada. “E nós viremos a ele e
nele faremos nossa morada...”.
“...no meio de nós e de nossas outras metades”, Marianne interrompeu.
“Dizendo ao Yin em mim: Tu não deves aceitar teu Yang. Dizendo ao Yang
e mim: Tu não deves aceitar um Yin...”.
Peter interrompeu Marianne novamente. “O ramo não pode dar fruto por
si mesmo, se não permanecer na videira”. A simplicidade mesma daquelas
palavras deu fôlego novo a Peter. Sua voz estava calma. “Assim também
vós...”.
“...fazendo do masculino a criatura de seus gânglios balangantes”, gritou
Marianne violentamente, “e da fêmea um leito ao seus ciclos, clitóris, seus
coalhos, e seus...”.
“...se não permanecerdes em mim”, disse Peter a plenos pulmões. “Eu
sou a videira; vós, os ramos. Quem permanecer em mim e eu nele, esse...”.
“...ventre tumular”. Marianne agora rosnava as palavras numa voz rouca.
“Ele fora. Ela dentro. E os dois nunca se encontram exceto em meio a suor
e gemidos. Ugh! Pois o externo está fora...”. Marianne então soprou numa
forte rajada em direção às velas sobre a mesa de cabeceira, ao pé da cama.
O jovem padre as escudou com a palma de suas mãos em abóbada.
Peter não cedia. Ele prosseguiu, trinchando aquela confusão toda,
expressão verbal do fedor que pairava no ar, usando daquelas palavras
libertadoras. “...esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis...”.
“...e o interno está dentro”, ela o entrecortou. “Esse negócio estagnado
como é se iniciou muito tempo atrás, como toda essa porcariada de senhor e
escravo, criatura e criador, deus e homem. Tudo isso é detestável, é uma
foda...”.
“...fazer”. Peter continuou, imperturbável, com seu texto. “Se alguém não
permanecer em mim será...”.
“...jogo de perdedores-e-vencedores”. Ele pausou ligeiramente por um
instante, como se estivesse ouvindo. “O camarada nesse vestidinho branco
com essa putinha acompanhante e sua vaselina. E então nós...”.
Marianne cessou. Seus olhos se abriram e ela se sentou na cama. O ex-
policial e o gerente bancário, temendo alguma violência, buscaram os
braços da jovem. Mas não houve agressividade. Pe. James pensou na antiga
litografia de Jesus e Maria Madalena que ficava pendurada no presbitério.
“Sim, meu jovem eunuco. São ele e ela”, disse Marianne, rindo e fitando
James com um olhar perverso e conspiratório.
Mas a voz de Peter convocou o atônito James de volta à realidade.
“...lançado fora, como o ramo. Ele secará e...”.
“Mãe Maria Virgindade Virgilius anunciou que o impossível não pode ser
possível”. Marianne jazia novamente de bruços sobre a cama. “Você nos diz
isso, todos nós fizemos coro para ela...”.
Peter captou o tom sardônico em sua fala. Sua voz foi dura ao cortá-la.
“...secará e hão de ajuntá-lo e lançá-lo ao fogo, e queimar-se-á. Não rogo
somente por eles, mas também por aqueles que por sua palavra hão de crer
em mim; para que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e
eu...”.
“...peitinhos murchos e lembrando de sua barriga flácida e sua feição
pálida todos os meses ao menstruar”. A voz de Marianne subia uma vez
mais ao falsete. “Se você soubesse, Mamãe querida! O impossível não é...”.
Marianne gargalhava a essa altura. Peter manteve o tom duro de sua voz,
ao retomar de onde ela o havia interrompido: “...em ti, para que também
eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste”.
Sem interromper a conversa, Marianne volta-se para o lado, relaxada.
Enquanto ela fala, o médico toma sua pulsação, como era suposto que ele
fizesse a cada quinze minutos, quando seus movimentos não dificultassem
demais a operação em demasia.
“...possível a menos que o impossível seja real. Do contrário o impossível
seria impossível. Há de ser realmente impossível, contudo. Realmente”. Seu
tom de voz era confidencial. “Quero dizer, para que o possível seja possível.
Os dois têm de existir. Há de...”.
A voz de Peter mergulhou num grave vibrante: “Este é o meu
mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amo. Ninguém tem
maior...”.
Todos gesticularam para chamar sua atenção: o corpo de Marianne ficara
rígido como uma tábua de madeira. Ela ainda falava: “...haver ambos”. Suas
palavras corriam soltas, e tomaram a dianteira contra Peter. Ele observou,
ouvindo e aguardando qualquer indício de que eles estivessem alcançando o
ponto de quebra. Ela prosseguiu, fervorosamente.
“O real é real por causa do irreal. O puro, puro por causa do impuro. O
cheio, cheio por causa do vazio. O perfumado, perfumado por causa do
malcheiroso. O santo, santo por causa do profano”. E então, num intenso
irromper de palavras intercaladas por grunhidos, no intuito de fazer-se ouvir
a força de martelar a mesma categoria de contradições seguidamente, numa
busca ímpia por tudo aquilo que pudesse vir a confundir o pensamento
humano e gerar perturbação à mente: “Doce doce, hug... amargo. O que é é,
hug... o que não é. Vida vida, hug... morte”. Cada grunhido precedia uma
oposição e soava como se Marianne estivesse levando um soco no
estômago a cada vez. “Prazer prazer hug dor. Quente quente hug frio”. E
então, numa cadeira de palavras todas coladas:
“Emcimaembaixogordomagroaltobaixoduromolelongocurtoclaroescurocim
abaixodentroforaalleachalleachalleachachchchchch...”. A voz estridente se
esvaiu ao cabo dessa longa e indigesta seqüência como se sufocando. O
esforço fora tão violento que Marianne parecia mesmo ter sido arrancada da
cama, cada parte de seu corpo, prostrado de bruços, travada para o alto.
Peter retomou prontamente sua leitura. “Já não falarei muito convosco,
porque vem o príncipe deste mundo; mas ele não tem nada em mim. Agora
é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo...”.
Ele fez uma pausa em meio à sua fala e olhou para Marianne.
Ela ainda jazia rígida, as pernas separadas, as mãos sobre a virilha. Um
leve rosnar partiu de sua garganta e entreabriu seus lábios.
Peter começou a sussurrar: “E quando eu for levantado da terra, atrairei
todos os homens a mim”. Ele parou; não se ouvia mais o rosnado.
O corpo de Marianne descontraiu-se. Ela rolou, bruscamente, para o
outro lado. Numa voz feminina, um aparente recomeçar em nova direção:
“Categorias binárias, a gente precisa delas, sabe? Simsinhor. A informática
precisa disso, por exemplo. Antes e depois. Mais e menos. Igual e diferente.
Negativo e positivo. Sempre conosco. Mas só até esse ponto: conosco. Sem
nos dividir ao meio”.
Peter não se deixaria levar nem tentaria encontrar qualquer sentido nas
palavras de Marianne. Era a mesma armadilha, aquele convite constante e
fácil à derrota. Ele retomou, uma vez mais: “O príncipe deste mundo já está
julgado e condenado. O Espírito me glorificará, porque receberá do que é
meu...”.
“Aquele que não estiver comigo”, ela retomou, interrompendo num
falsete zombeteiro e ameaçador, “está contra mim, falô o Senhor. Nenhum
homem pode servir dois mestres, falô o Senhor”. Baixando seu tom: “Já viu
duas picas, uma no cu e outra na boceta duma mulher e ela bombando pra
frente e pra trás, servindo dois mestres?”. Seu pai virou o rosto e apoiou-o
sobre o ombro do policial.
Uma vez mais aquele falsete: “Quem dizem os homens que eu sou? Falô
ele. Preto e branco, ele falô”. O falsete agora evoluiu para um uivo
perfurante, Peter e os outros respondendo com caretas e esgares. “Você está
dentro, ele falô. Você está fora, ele falô. O Senhor Deus dos Espíritos.
Ovelhas e bodes, ele falô. Andorinhas e demoninhos, ele falô. Nuvens
douradas e nuvens enxofradas. Pregar um prego no coração. Abrir uma
ferida escancarada em minha unicidade”. E então, subindo e descendo sua
pélvis ritmadamente e gritando a plenos pulmões: “Jeebum! Jeebum!
Jeebum!”.
“...o Pai possui é meu”, disse Peter calmamente, finalizando sua sentença
interrompida.
Marianne parou assim que Peter disse essas palavras. Agora ele se
encontrava em frente à janela, mas com a face voltada na direção do quarto,
observando Marianne, à cama. Ela disse, num lamento: “Tudo o que eu
quero é que parem as questões. Chega de duelos. Chega de escolhas. Chega
de sins e nãos. Nem mesmo talvezes. Chega de vós-não-deveis. No
Reino...”. E então, subitamente, num gorgolejar profundo, como um homem
que fala de dentro d’água: “...no Reino no Reino no Reino”.
Peter desejava, instintivamente, pressioná-la. Ele sentia que a afetação
estava por acabar, que a revolta de Marianne contra a possessão iria se
iniciar a partir dali, e que o mal que a ocupava seria forçado a lutar
abertamente para reter seu domínio.
Peter moveu-se discretamente até o lado de Marianne, ainda olhando para
os sinais em sua face que denunciavam seu estado. Se o ponto de quebra
estivesse próximo, então toda expressão em seu rosto se desfaria; tomaria
lugar um semblante artificial e estranhamente estriado. Na mosca!, a face
começava a se enrugar. Silêncio.
“Padre, ela sairá dessa?”. Era o pai de Marianne.
Peter ignorou a questão. Aumentou a pressão, seu instinto lhe disse:
agora! Rápido!
“Jesus, Marianne. O nome é...”.
“Jeebum! Jecus! Jeebum! Jecus! Jeebum!”. Ela uivava uma vez mais.
Peter queria desesperadamente cobrir seus ouvidos contra os silvos de dor
que penetravam seu cérebro.
“Atenção!”, ele gritou a seus assistentes ao vê-la enfiar seus dois dedos
indicadores nas narinas e começar a soprá-los pelo nariz. Ele saltou para o
seu lado novamente. “Imobilizem-na!”.
Todos os pares de mãos se amontoaram sobre ela. Eles a retiveram. Cada
um deles trazia suas próprias reminiscências de algum animal selvagem: um
tigre na jaula de um zoológico, uma hiena a dominar outra hiena, uma porca
a se debater no matadouro. As laterais da boca de Marianne estavam
retraídas – parecia que a careta se esticara até seus ouvidos – expondo
dentes, gengivas, língua. Uma espuma cinzenta borbulhou e escorreu de seu
lábio inferior, descendo pelo queixo. Seus olhos estavam abertos mas
virados em ângulo tão grande que só se via a esclera e rastros vermelhos,
sob uma camada de aquosidade cintilante. Dois dos homens ataram os
braços da jovem à cama; outros deles contiveram seu abdome; outro ainda
travou suas pernas.
Parecia que nenhum ser humano seria capaz de sobreviver àquilo por que
Marianne estava passando. O médico, a transpirar, fechou seus olhos para
protegê-los das gotas de suor.
“Segure firme, pelo amor de Deus”, disse Peter.
O zumbido abafado, a reverberar entre seus dentes abrandou-se até calar
por completo. Suas pálpebras se fecharam. “Fique aí”, murmurou o ex-
policial, “ela ainda está toda contida”. O médico abriu uma das pálpebras de
Marianne, deixando-a fechar-se em seguida.
Peter havia vencido. A fase de afetação estava vencida. Mas muitas horas
já tinham se passado desde o começo da sessão, e aquele era só o primeiro
assalto. Ele recitou a segunda parte do ritual de exorcismo; seus assistentes
ficaram olhando.
Como sempre ocorrera antes, o ponto de quebra se deu no preciso
momento em que Peter menos o esperava. Ele se iniciou com um som
difícil de descrever. Um cavalo a choramingar. Um cachorro a relinchar.
Um homem a miar. Era o som mesmo da dor. Do natural sendo violado pelo
desnaturado. Da profunda agonia. Do protesto. Do desespero. “Imagine um
cadáver que, após os gemidos finais e as contrações fisionômicas do último
suspiro, começasse a gritar por ajuda; como você imaginaria esse som?”,
perguntou Peter mais tarde, num esforço de tentar descrever esse
indescritível fenômeno. “Ou, supondo que, quando você estivesse fechando
suas pálpebras defuntas com seu polegar e indicador” (ele fez o gesto com
seus dedos) “e supondo que você esquecesse um dos olhos, e ele
continuasse a olhar para você, gélido e morto – você sabe o aspecto que isso
tem – e ele se enchesse de lágrimas genuínas. É esse o sentimento. Algo
proveniente do meio dos vermes e da carne podre, do fedor e dos fluidos
corpóreos, da silenciosa imobilidade da morte, dizendo: ‘Eu estou vivo!
Tire-me daqui! Pelo amor de Jesus, me salve!’. Essa era Marianne no início
do ponto de quebra. Um cabo-de-guerra por sua alma que quase acabou
comigo”.
Agora, Peter sentia, ele poderia chamar diretamente por Marianne e
ajudá-la. Ele começou a ler a primeira parte de um novo “texto
provocativo”, lentamente.
“Marianne. Você foi batizada em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo. Você pertence a Jesus. Foi o sacrifício de sua vida que tornou
possível o seu pertencimento a Deus. Tudo aquilo que é belo, amoroso,
bondoso, gentil que havia em você – tudo isso veio de Jesus. Ele a conhece,
conhece cada fibra de seu ser, ele é mais que um amigo, mais próximo do
que sua mãe, mais amoroso que qualquer outro amante, mais fiel a você do
que você mesma pode ser. Fale! Fale! Fale tudo! Diga que você está me
ouvindo. Fale, e diga-me que você quer ser salva em nome de Jesus que a
salvou em nome de Deus que a criou. Fale!”.
Olhando por sobre o topo de seu livro, ele podia ver que as mãos dela se
haviam relaxado e eram colocadas às laterais de seu corpo pelos assistentes.
Aquela careta que se estendia de uma orelha a outra se desfizera. Seus olhos
estavam abertos, mas ainda revirados num tal ângulo que faziam crer que
ela estava a olhar o interior de seu próprio crânio. A esclera reluzia. O
silêncio no cômodo era total. O médico tomou sua pulsação. “Ela está fria
como o gelo”. “Ok, ok” respondeu Peter ao médico, com um movimento de
sua cabeça, sem nunca tirar seu olhar de Marianne.
O corpo de Marianne estava completamente flácido, agora. Parecia
pesado, saturado. Uma coloração levemente azulada deu ar estranho a suas
mãos, braços, pés, pescoço e rosto. Tudo estava imóvel. Ele ouvia as
respirações: a sua própria, a de seus assistentes. A de Marianne, não
conseguia ouvir.
O médico reportou uma pulsação fraca. “Ela está com a pressão muito
baixa, Peter”, disse. Peter ergueu sua mão, coibindo quaisquer outros
comentários. O tempo corria. Seu pai pigarreou e esfregou seus olhos:
“Acabou, padre?”. Peter o calou com um chacoalhar de cabeça veloz, quase
rude. Ele a observava, aguardando o mais leve sinal de mudança. “Se tiver
de acontecer, será agora”, disse ele, meio para si, meio em voz alta;
“Fiquem olhando”.
Mas com a insuportável tensão do silêncio, ele sentiu os músculos de
suas costas, braços e panturrilha relaxarem. A mão que empunhava seu
livro cedeu. Sua cabeça começou a se ordenar novamente. O padre mais
jovem relaxou os braços. O som de um rádio ressoava num apartamento do
andar inferior. Pouco a pouco, o silêncio se instalou como um edredom,
envolvendo seus ouvidos e ganhando todo o cômodo. Era estranho o
sentimento que causava todo aquele silêncio, após os gritos, desavenças e
os sons letais da voz bestial que Marianne havia usado.
A dor começara a se amenizar na mente de Peter. Ainda fitando o rosto
de Marianne, ele pensou em Conor, em Roma, em Zio – agora Paulo VI –
em Nova Iorque. E cogitou dormir. Olhou de soslaio para seu relógio. Eram
9h25 da noite. A Missa no Yankee Stadium já deveria estar quase no fim.
Aquela provação toda deveria estar prestes a acabar. Em breve, tomara, eles
poderiam ir para casa e dormir... dormir... dormir.
Dormir? Em meio àquela névoa de calmaria, um pensamento se lançou à
memória de Peter. Não fora o próprio Conor quem o avisara que o sono, a
sonolência, o desejo de dormir, por vezes vinha como uma armadilha final,
geralmente precedendo uma última investida da Presença?
Mas ele estava alguns instantes atrasado. Tão logo aquela frase se
acendeu em sua memória de Peter, como um alerta vermelho: “Lembre- -se
do sono, rapaz. Lembre-se do sono! Está tudo acabado, se você esquecer a
parte do sono!”, e a coisa já estava instalada.
Foi súbito. No entanto, era como se a Presença o estivesse agarrando já
há séculos, como se já dominasse as partes vitais de seu ser. Seu corpo
estremeceu, e ele sussurrou: “Jesus! Jesus!”.
Os outros ouviram apenas um murmúrio vindo de sua boca, e pensaram
que ele havia tentado dizer algo, mas que um pigarro o bloqueara.
“Tudo bem, Padre?”, perguntou o médico.
Peter respondeu com um gesto cansado. Essa luta era unicamente sua. Os
outros seriam testemunhas inscientes.
A Presença estava por toda parte e em lugar nenhum. Peter lutou contra o
instinto de dar para trás, olhar ao seu redor ou, pior de tudo, correr dali.
“Controle sua mente!”, fora o conselho de Conor. “Concentre-a no amor.
Fique só nisso, rapaz”. Mas, Jesus! Como? A Presença o havia cercado por
completo, em seu interior e fora dele. Uma enorme armadilha, feita de
asquerosas cordas que ele não podia ver. Ele não ouvia nada, não via nada,
não sentia nada. Mas sua pele não lhe servia mais como a habitual camada
protetora da sua mortalidade. Sua pele não funcionava! Era agora uma
interface porosa que deixava a sordidez invisível da Presença penetrar por
ela. O pior de tudo era o silêncio reinante. Era tudo mudo. Subitamente, ele
havia sido atacado e tomado; e sabia que seu adversário era superior e
impiedoso, que ele havia invadido as profundezas do ser que Peter sempre
escondera dos outros, esperando que somente Deus o conhecesse e que não
lh’o mostrasse senão quando estivesse forte o bastante para suportar tal
visão.
Ele não podia discernir de onde vinha a ameaça. A confusão em sua
mente era como o melaço que escorre numa emboscada para insetos,
paralisando todo esforço que se realize e todo movimento natural. Por vezes
lhe parecia que sua vontade era feita de borracha, podendo ser retorcida de
tal ou qual forma, e em seguida lançada de volta a sua mente, como uma
toalha molhada a estalar sobre a face. Por vezes sua mente era como uma
peneira atravessada por fragmentos pontiagudos, cada qual marcado com o
nome de um tipo de ofensa: Desespero! Sordidez! Fedor! Insignificância!
Miséria! Troça! Ódio! Bestialidade! Vergonha!... Não tinha fim. Outras
vezes, ele percebeu, sua mente e vontade lhe eram unicamente saídas, canos
de esgoto; e sua imaginação era o recipiente daquilo que elas vomitavam.
Através delas, escorriam formas da real batalha que se travava em outra
dimensão de seu ser. Às profundezas? Nas alturas? Consciente?
Inconsciente? Subconsciente? Ele não sabia. Mas ele certamente tocava as
profundezas do ser. Todos os vales ocultos de seu ser padeciam naquela
agonia. Todos os altos cumes faziam-se íngremes declives de uma confusão
depressora. Cada plano, cada canto estava sufocado, oprimido, triste. Sua
imaginação era então uma latrina, abarrotando-se cada vez mais do entulho
que eram as imagens repulsivas e os temores obtusos que ali eram
despejadas.
“Estou só”, ele pensou, cobrindo sua face, com suas mãos por um
instante.
“Isso! Só! Só! Só! Só!”, foi a resposta, em meio àquele silêncio
escarnecedor.
Parecia ser ele respondendo a si mesmo, em blasfêmia tão primitiva
quanto o grito do primeiro homem a assassinar seu irmão, e tão atual quanto
o grunhir do último assaltante naquela noite de outubro, estocando sua faca
nas costas de uma vítima na Lenox Avenue.
“Oh, Deus! Oh, Jesus!”, Peter exclamou dentro de si. “Oh, Deus! Oh,
Jesus! Estou acabado...”.
E então, do mesmo modo abrupto como aquilo tudo se iniciaria, e sem
razão discernível, a Presença retrocedeu; mas não deixou o cômodo
completamente. Peter sentiu como se longas garras se estilhaçassem e se
fizessem expelir de seu corpo e mente, recolhendo-se contra a vontade.
Pequenas doses de alívio visitavam a consciência de Peter. Seus olhos
retomaram o foco. Por detrás das lentes de lágrimas, ele podia enfim vê- -la.
Ela tremia dos pés à cabeça. Parecia que tudo o que estava contido por
baixo de sua pele, cabelo e roupas se movia num ritmo antinatural,
arrítmico, mas que seu exterior permanecia de certa forma estático. Sua
boca abriu ligeiramente. Os lábios se moveram, sem pronunciar nada.
E então, pela terceira vez em sua vida, Peter ouviu a Voz.
Ela veio de lugar nenhum. Simplesmente soou; era audível para Peter e
perfeitamente presente, mas não provinha de um ponto discernível. Estava
por todo o cômodo, mas em nenhum espaço em particular. Era equilibrada
em seu tom, lenta, sem qualquer pausa para respiração, nem qualquer
hiperagudo. Não era aprofundada. Não era gutural. Nem diminuta ou nasal.
Nem masculina. Nem feminina. Sem qualquer sotaque. Controlada. Peter
vira, uma vez, um filme sobre um robô falante; quando o robô proferiu uma
vez uma palavra, cada sílaba, tal como pronunciado, fora seguida de um
remoinho de ecos murmurantes dele mesmo. Os ecos faziam confundir a
sílaba seguinte; e assim se deu com todas as sílabas de cada palavra em toda
sentença.
A Voz se parecia em algo com isso, só que inversamente: os ecos em
redemoinho precediam cada sílaba. Ao ouvinte, era uma provação entender
o que se dizia, mas impossível também parar. Era perturbador. O efeito era
como um milhão de vozes golpeando o tímpano com um clamor confuso e
nonsense, ecoando de antemão cada uma das sílabas. Se você tentasse
captar uma das vozes, veria que antes de conseguir entender completamente
uma parte, logo viria a segunda emparelhada. E assim a coisa se dava, um
desfile de vozes persistentes a provocá-lo, a confundir, a derrotá-lo. E então
a Voz pronunciava a sílaba; e sua confusão fazia-se completa com um
sentimento de frustração, pois a sílaba e a palavra vinham afogadas em
meio àquela completa Babel.
Como quase todo mundo, Peter havia adquirido a habilidade de “ler”
vozes. Todos nós desenvolvemos esse instinto e temos a nossa própria
classificação de vozes; agradáveis ou desagradáveis, tensas ou relaxadas,
masculinas ou femininas, jovens ou velhas, fortes ou fracas, e por aí vai. A
Voz não se adequava em nenhuma categoria que Peter pudesse conceber.
“Poderíamos chamá-la de inumana, suponho”, ele disse mais tarde. “Mas
era a mesma em Hoboken e em Jersey City. Com aquele toque a mais, é
claro”.
O “toque a mais” era o termo que ele usava para indicar o timbre peculiar
da Voz a cada exorcismo. Tanto em Hoboken quanto em Jersey, o timbre
transmitia um tipo de emoção chocante e violenta, e gerava medo. Mas o
timbre da Voz naquela noite de outubro era diferente. “Para o mundo
inteiro”, disse Peter, “como se o Grande Mandachuva estivesse ele mesmo a
falar, e todos os “mandachuvinhas” pronunciassem cada sílaba antes dele.
Seus precursores, por assim dizer”.
O timbre, o “toque a mais”, trazia consigo uma mensagem: de uma total e
indissolúvel unidade. Ele não atacava o ouvinte em suas emoções, mas na
mente, congelando-o com a percepção de que não havia nem nunca iria
haver a possibilidade de vencê-la; de que seu dono o sabia, e que ele sabia
que você também o sabia; e que essa superioridade não era nem suavizada
por compaixão, nem amenizada por uma só gota de amor, nem aliviada por
um só grão de complacência e nem limitada por um só toque de
benignidade para com alguém de menor estatura. “Se pode haver um som
mal, desprovido de qualquer bem humano”, disse Peter, “esse mal estava
ali”. Aquela voz trouxe-o para o limiar tênue da não-existência, face a face
com o anus mundi, o supra-sumo do pecado abjeto da auto-exaltação.
E então a balbúrdia e a confusão da Voz se dissiparam como se
distanciassem-se.
Os quatro assistentes ergueram suas cabeças; era a voz de Marianne que
se fazia ouvir com profunda ponderação, quase silenciosamente, em
comparação à barulheira anterior.
“Nenhum mortal tem poder no Reino. Todos podem pertencer a ele”.
Uma leve pausa. “Muitos pertencem”. Cada palavra vinha à tona de forma
polida, precisa, ponderada, límpida como uma moeda de um dólar recém-
cunhada, lançada sobre o balcão do bar.
Hora da investida final, pensou Peter. Seu último tiro. Seu trunfo em todo
exorcismo: a força de Jesus e sua autoridade.
“Pela autoridade da Igreja e em nome de Jesus, eu ordeno que você me
diga como devo chamá-lo”.
Peter manteve seu tom de voz ao fazer a intimação. Todas as suas
esperanças repousavam no aceite daquela intimação. Se rejeitada, só
resultaria em maiores danos a Marianne. Àquela altura, Peter sabia que não
poderia aguentar muito mais. Mas não era possível voltar. E qualquer
interrupção implicaria na derrota. Ele podia sentir o nervosismo de seus
assistentes: tudo e todos naquele cômodo refletiam a tensão do momento.
Peter sabia, e todos ali presentes também, que ele havia lançado o desafio
final.
“Você ordena!”. Agora Marianne parecia divertir-se, como se Peter
tivesse contado uma piada. Ele continuou fazendo o esforço de lembrar- -se
de que aquela não era Marianne, mas o espírito a utilizar-se de sua voz.
Ainda assim, seu coração ficou um pouco abatido. “Eu sou nós”, ele a
ouviu dizer. “Nós somos eu. Não é? Não são? O nosso nome está para além
da mente humana”.
Nós! Chamou bem a atenção de Peter o uso daquela palavra-chave.
Somente os pertencentes ao Reino a utilizavam. Peter entendeu no mesmo
instante que ele estava quase lá; ele não tinha qualquer intenção de deixar
que a Presença se identificasse uma vez mais com Marianne, então
interrompeu bruscamente.
“Não há privilégios para você e sua espécie no universo do ser”.
O cálculo e o sangue-frio, nova nota naquela intervenção de Peter, deixou
o ex-policial impressionado. Anos de experiência o haviam investido de um
sexto sentido para ameaças e ataques letais, para o ódio e o desprezo
explícito. Ele tinha ouvido muitos policiais falarem com assassinos presos
naquele tom, e muitos assassinos atrás das grades falarem de seu ódio de
um modo tão controlado quanto Peter utilizava então. Olhou para o rosto do
exorcista; estava mudado. Algo de sutilmente impiedoso havia se instalado
ali.
Peter continuou: “Você, todos vocês, são...”.
“Você, você, você não tem qualquer privilégio, meu amigo”. A ênfase de
Marianne era precisa e bem calculada. Suficientemente pesada para causar
desconforto. Leve demais para denunciar qualquer traço de perturbação ou
medo.
Um vago desconforto se instalou entre os assistentes de Peter; eles se
moveram espontaneamente para perto do exorcista. A Presença chegava até
eles. Por mais que Peter os houvesse instruído antes de o exorcismo
começar, sabia que não era possível prepará-los para o choque, o medo da
verdadeira investida.
O corpo de Marianne estava completamente imóvel, sua face pálida, seus
lábios quase fechados. Depois de uma pausa, sua voz continuou, com um
leve traço de rudeza: “Você pode até ter polido os seus joelhos num
confessionário” – disse, num tom sarcástico – “mas você não estava
arrependido, amigo. Nem sempre, pelo menos. E aí, onde está o seu
arrependimento? E será preciso dizer, padre, que sem o arrependimento,
você ainda tem os pecados? E que você! Você é quem comanda o reino?”.
Em sua memória, Peter ouvia o aviso de Conor: “O que aconteceu nas
histórias passadas, aconteceu. O registro fica. Pra sempre. Como uma pedra
num campo, exposto e manifesto. Pra todo mundo ver, meu rapaz. Incluindo
o próprio Grande Mandachuva. Não, não o negue. Assuma em toda
humildade”.
“Como nós devemos chamá-lo?”, Peter insistiu.
“Nós?”, respondeu sarcástica mas calmamente.
“Em nome de...”.
“Cala essa boca miserável...” – era, súbito, um animal a rugir aquelas
palavras. “Feche-a! Tranque-a! Cale-se! Foda-se!”.
“...Jesus. Diga-nos: como nós devemos chamá-lo?”.
Foi então que um longo e grave lamento veio dos lábios de Marianne.
Todos na sala prenderam a respiração, num esforço para entender as
palavras contidas no murmúrio da Voz. “Eu tomarei a minha parte. Tomarei
o meu quilo de carne. Todos os seus 64 quilos! Eu os tomarei comigo,
conosco, comigo!”. Silêncio completo. E então a voz de Marianne:
“Sorriso... Eu fico assim, sorrindo”.
Peter fitou seu rosto. O nome era óbvio, agora ele o sabia. O sorriso
retorcido voltara ao rosto de Marianne. Agora, percebia, ele tinha de lidar
com o mais antigo dos tentadores e inimigos do homem: o inimigo que o
ilude com um sorriso, uma piada e uma promessa.
Quanta esperteza em tudo aquilo. Como se poderia suspeitar ou atacar
alguém chamado Sorriso? Se ele simplesmente sorri para tudo o que você
faz, o que você poderia fazer? A coisa toda – Deus, o céu, a terra, Jesus, a
santidade, o bem, o mal – tudo isso se torna mera afetação. E pela alquimia
maligna nela contida, tudo se torna uma piada de mau gosto, uma piada
cósmica dirigida a homens que, por sua vez, não passam de piadas eles
próprios. E, e, e... que passam a ver toda a existência como banalidade,
desejando a não existência.
Ele desviou sua mente daqueles pensamentos e se concentrou novamente.
Aquele era o ponto culminante do caso de Marianne.
“Você, Sorriso, você deixará, você deve deixar essa criatura de Deus...”.
“O negócio já foi longe demais”. As palavras num tom misto de gracejo,
de um sorriso contracto sobreposto a certa pompa. “Marianne já fez a sua
escolha”. A reação interior de Peter era: Estamos quase lá. A voz em
Marianne prosseguiu: “Você entende melhor do que esses imbecis. No fim
das contas...”.
“...pois o amor é todo o necessário...”, continuou Peter.
“...a vida dela é curta, assim como a sua. Ela escolhe o que ela quiser,
como você...”.
“Pois o amor é todo o necessário”. Peter repetiu para si mesmo. Mas o
monólogo do Sorriso prosseguiu ininterrupto.
“...toma isso, seu arrogante”.
“E você, Sorriso, você rejeitou o amor”. Súbita interrupção naquele
intercâmbio. Por uma fração de segundo Peter esperou. “Nós viemos do
amor”, retomou. Mas não pôde passar dali.
“AMOR!!!”. A palavra foi disparada contra ele como um tiro de pistola.
Os assistentes curvaram-se na direção de Marianne, na expectativa de que
algum ato violento se seguisse àquele guincho. Peter ergueu-se, não
apreensivo, tampouco à espera de novos golpes. Conor havia dito que nunca
se deve trocar gritos com os possessores, mas deixar que os rompantes de
ira tomem seus cursos.
Mas não houve outros gritos. Peter prosseguiu, calma e diligentemente,
suportando a dor física que causara a violência dos sentimentos de
repugnância na voz de Marianne: “Sim...”. Uma pausa errática, como se
ruminasse. E então: “Ah! Sessenta e nove, hein? Que bela imagem!”.
Peter estremeceu ante o tom e a imagem que se criara em sua mente. Sua
memória esmorecia, e ele orou.
Mas Marianne prosseguiu com uma impiedade inabalável, como se
recitasse as linhas de um relatório técnico. “E primeiro a língua; sua ponta,
como um olho vermelho e úmido com uma íris branca, parte em
exploração: deslizando seu dorso por cada aresta, cada célula do epitélio,
tomando conhecimento dos músculo grácil, 14 seguindo pelos tesos adutores
longos, invocando dose suplementar de saliva para lustrar seu caminho
rumo à montanha escura, o mons veneris. 15 Sua safena magna sente
comichões com o grande fluxo de sangue”.
Uma réplica subiu à boca de Peter. Ele a conteve.
Marianne continuou. “E então, no osso púbico ele se demora, suas
papilas bem famintas, tesas, úmidas. Filiformes invocam as fungiformes,
fungiformes as circunvaladas, circunvaladas as foliáceas; ‘Vamos lá,
irmãos! Vamos lá!’”.
O médico deu um silvo por entre os dentes e olhou para Peter. Mas Peter
estava perigosamente afastado da cena por conta de sua abstração. Ele
podia ouvir os suspiros de Mae, aquele longo dia sob o sol, distando
quilômetros e décadas daquele encontro maligno; podia vê-la repousar
sobre o declive das dunas de areia, e sentir uma de suas mãos pousada
levemente sobre sua barriga. E então ele teve reavivada a imagem dela,
deitada em seu caixão, logo antes de ser fechado para sempre.
A declamação prosseguiu, inabalável. “Em meio a seus gemidos e
suspiros, os comichões em seu sacro (ah!, o Osso da Ressurreição! Esses
rabinos tinham até um nome pra ele! 16), em meio a suas coxas; o corpo
cavernoso preenchido de um espesso sangue vermelho escuro. A língua a
penetrar seu interior, e ela fechando suas pernas, contendo-a”.
Sorriso utilizava então a voz de Marianne num tom suave e factual. Ouve
uma curta pausa de alguns segundos. E então, num rompante feroz de
desprezo:
“Ele está fodendo com ela. E como a hiena com um cervo morto” – a voz
se elevou num grito – “ele passa para o seu ânus, e ela, como uma cobra
mãe, engole seu filho. AMOR?????”. Um grito penetrante, destruidor. A
voz recai, agora a zombar: “Cunni-cunni-cunni-cunni-cunni! Peter
Predador!”. E então, despretensiosamente, como se perguntasse que horas
eram: “Conte-nos, Peter. Você se arrepende? Você sente falta?”.
O pai de Marianne havia enterrado o rosto nas mãos; seus ombros se
içavam aos soluços. O ex-policial e o bancário, rúbeos, fitaram Peter. Seu
jovem colega se inclinou sobre a mesa de cabeceira, com o rosto pálido.
Aquela investida, como em uma enorme tela, havia lançado uma massa de
cores berrantes e padrões absurdos de pensamento e sentimentos sobre
todos eles.
O médico reagiu mais rápido que os outros: “Peter, podemos fazer uma
pausa?”. Ele estava apreensivo, vendo a coloração exangue da face do
exorcista e um olhar distraído em seus olhos. Peter não respondeu.
Sorriso, o piadista cósmico, que faz troça e injúria de tudo, pensava Peter
consigo mesmo, enquanto ruminava e buscava um possível próximo passo,
às apalpadelas. Sorriso, que transforma as lembranças em pura sordidez e as
destrói todas juntas. Mas ele não é sutil. Tampouco é inteligente. Peter
pensou: ou estamos numa cilada feita por ele, ou então nós é que devemos
apanhá-lo. Qual dos dois?
Ele se viu reagindo por instinto: “Silêncio! Sorriso! Silêncio em nome de
Jesus! Eu ordeno que você desista, que a deixe. Diga-me que você
obedecerá, que você a deixará. Fale!”.
Os outros homens no cômodo fitaram Peter, surpresos com a força de sua
voz. O assalto verbal os deixara abalados, com um sentimento vago de
culpa, de que haviam sido contaminados pelo mal. Previam que Peter fosse
ceder, que se deixaria vencer. Estavam tendendo a perder as esperanças.
Mas, então, puderam absorver algo de seu exemplo. Sentiram que ele
sabia algo – era possível vê-lo em seu rosto – e quase o ouviram dizer: “Eu
posso envolver-me nisso a ponto de me humilhar a mim próprio. Mas
Sorriso está igualmente envolvido e não há escapatória para ele. Aguentem
firme”.
Sorriso falou, mas como se Peter nunca tivera falado. “Bem! Aí está algo
que nunca se viu no Reino” – a voz se acalmou de novo – “uma pequena
gota de água no meio do oceano que veste uma pequena membrana sobre si,
fica definhando durante milhões de anos num litoral abandonado e vê brotar
nervos micro-sensíveis e débeis mecanismos terrenos, e ergue- -se sobre
dois membros delgados um belo dia, e diz: ‘Eu sou um homem’, e ergue seu
focinho aos céus e diz novamente: ‘Eu sou tão belo’...”.
“Silêncio! Desista!”.
“Seu sodomita repugnante! Animalzinho fétido...”.
“E deixe que a alma de Marianne mostre uma vez mais sua beleza, com a
graça de...”.
“Beleza?”. Pela primeira vez, a Voz se elevara em quase uma oitava.
“Beleza?”, agora era um grito estridente, hiperagudo e dolorido, colocando
questões desdenhosas. “Seu canalha condenado, esganiçado, vomitado,
cuspido, derrotado, cagado. Você é a escória do mundo. Você é uma privada
entupida de merda. Você é um rascunho de gente. Você é uma bolha de
urina, excremento, ranho e lama nascidos num leito com lençóis
ensangüentados, tirando a sua cabeça do meio das pernas fétidas de uma
mulher e berrando quando estapearam seu traseiro e riram das suas bolinhas
vermelhas” – o grito em altos decibéis cessou subitamente, seguido por três
sílabas pronunciadas calmamente, com um desprezo e repugnância – “Você
é uma criatura!”.
“E você também é uma. Você é criatura”. O próprio Peter ficou surpreso
com seu autocontrole: seu adversário havia cometido um erro, e Peter o
sabia. Peter também ficou surpreso com o desprezo com que ele próprio
lançou sua réplica.
Continuou: “Outrora, nada. A seguir, belo. O mais belo de todos os que
Deus fizera”. O tom de provocação amarga na voz de Peter atraiu todas as
cabeças, exceto a de Marianne, em sua direção. Ele prosseguiu seu ataque
provocativo. “E então feio, por conta do seu orgulho. E mais tarde,
conquistado. E então lançado das alturas como um archote que se apaga”.
Um rugido grave saiu da boca de Marianne.
Peter prosseguiu, inabalável; ele tinha seu adversário exatamente onde
ele o desejava: “E expelido, desgraçado, condenado, e privado eternamente,
e derrotado eternamente”.
O corpo de Marianne estremeceu.
“Segurem-na!”, ele murmurou para seus assistentes. Bem na hora. Ela se
debatia violentamente. O rugido soava agora como se um porco houvesse
sido goivado em sua jugular e dele jorrassem rios de sangue.
Peter aumentou a dose: “Você, também, é criatura de Deus, mas não
salva pelo sangue de Jesus”.
Uma vez mais o longo uivo vociferante.
Ao esvair daquele som, o corpo inteiro de Peter estava eletrizado de
medo.
Naquele instante, a Presença lançou o seu ódio novamente. Como uma
coisa física, ele o atacou. Lançou garras afiadas sobre sua mente e vontade,
perfurando o âmago de suas determinações, em seu íntimo, num local onde
viviam todos os seus prazeres e dores.
Era esse o choque que Conor havia tão bem analisado para Peter. Esse
era o clímax de sua batalha mano-a-mano. Peter fez o sinal de cruz. Ele
sabia: àquela altura, um dos dois teria de ceder, um dos dois seria vitorioso.
Ele tinha de aguentar firme. Tinha de rejeitar o desespero. Rejeitar a
descrença. Rejeitar a danação. Rejeitar o medo. Rejeitar. Rejeitar. Rejeitar.
Aguentar firme. Tudo isso lhe veio ao espírito como comandos automáticos,
endereçados ao mais íntimo de seu ser.
Seu primeiro impulso contra o desespero foi desviar sua mente rumo a
qualquer tábua de salvação – qualquer beleza ou verdade que ele tivesse
conhecido e experimentado: o grasnar das gaivotas em Dooahcarrig, em
Kerry; o padrão rítmico executado pelos ágeis pés das danças invernais; o
sorriso de Mae; a segurança da casa de seu pai; a calmaria das noites de
verão que ele passara na costa de Aran Island, olhando as montanhas do
Conamara atrás de Galway City, massas purpúreas preenchendo a dourada
abóbada de um céu enevoado.
Mas essas imagens todas se consumiam tão logo vinham à mente, como
uma gota d’água lançada ao fogo. Todas as suas imagens internas de
lealdade, autoridade, esperança, legitimidade, cuidado, gentileza, se
atrofiavam e se esvaiam. Sua imaginação queimava num desespero
incendiado e sua mente não podia ajudá-lo. Somente sua vontade
bloqueava, então, a mente e a imaginação, numa imobilidade que lhr
causava dor e agonia.
Mas, então, a Presença calou-se uma vez mais no interior de sua vontade,
num corte súbito de toda adversidade interna. Para os outros presentes,
havia pouco aque prestar atenção: nenhum som exceto a forte respiração de
Peter e o tremor de pernas de todos eles, que tentavam manter Marianne sob
controle; nenhuma sensação além da retenção do corpo da jovem com suas
mãos.
O ataque desferido contra Peter foi como uma chuva de granizo sobre um
teto fino, cobrindo-o com uma incessante saraivada que entulhou sua mente
e vontade com um monte de temor. Se pudesse respirar um pouco melhor,
pensou. Ou, se pudesse simplesmente encontrar um meio de transmitir todo
aquele sofrimento.
De soslaio, pôde ver o crepitar das velas sobre a mesa de cabeceira,
fazendo brilhar a figura crucificada sobre a cruz.
“Lembre-se, rapaz, ele é orgulhoso. Esse é o ponto fraco dele. Ele é
orgulhoso! Pegue-o no seu orgulho!”.
Com a voz de Connor em sua memória, Peter proferiu abruptamente:
“Você foi vencido, vencido, Sorriso, por aquele que não temeu figurar entre
os mais baixos e nem ser morto. Parta daqui! Sorriso! Parta! Você foi
vencido por um sacrifício de sangue. Não tente se afastar da verdade. Jesus
é o seu mestre...”.
Os presentes no quarto ouviram-no proferir aquelas palavras num coaxar
exausto, enquanto continham Marianne em seu leito. Começou um
burburinho: todos estavam afetados. A cômoda começou a chacoalhar
sonoramente, abrindo e fechando, suas alças se moviam discordantemente.
A porta do quarto abria e fechava, batendo sem cessar. A body-shirt de
Marianne se abriu ao meio, expondo seus seios e ventre. Seu jeans rasgou
nas costuras. Sua voz elevou-se em volume cada vez maior, numa série de
gritos lentos e em staccato. Grandes vergões surgiram ao redor de seu torso,
virilha, pernas e face, como se um chicote a estivesse açoitando
impiedosamente. Ela se debatia, chutava, arfava, cuspia. Estava
incontinente, urinando e defecando por toda a cama, enchendo as narinas
dos presentes de um odor acre.
Peter continuou murmurando: “Ele o venceu. Ele o venceu. Ele o
venceu...”. Mas a dor daquele combate entre as duas vontades começou a
exauri-lo; sua garganta estava seca. Seus olhos perderam o foco. Seus
tímpanos se estavam fendendo. Ele sentiu a imundície para além dos limites
daquilo que o homem pudesse vir a limpar. Estava a ponto de perder o
controle...
“Jesus! Maria!... Conor”, ele sussurrou, os joelhos se dobrando, “tudo
está perdido. Não consigo aguentar. Jesus!...”.
A 11 mil quilômetros dali, em Roma, o médico assentiu com a cabeça
para a enfermeira ao sair da sala do Pe. Conor. Disse ao padre superior que
não havia por que chamar a ambulância. O estrago era forte demais desta
vez. Seria uma questão de horas...
Era o terceiro acidente vascular encefálico de Conor. Ele esteve bem
durante toda aquela noite. E então, às primeiras horas da manhã, chamou
seu superior pelo telefone interno de seu quarto: “Padre, vou ter que lhe
causar problema de novo...”. Quando vieram a Conor, encontraram-no
caído sobre sua mesa, sua mãe direita segurando um crucifixo.
“Padre, está tudo bem. Sou eu. Está tudo acabado”.
O jovem colega de Peter o ajudou a erguer-se. Peter havia caído de
joelhos e envergado até sua testa tocar o chão. Olhando para a cama, Peter
viu que o médico estava ouvindo os batimentos cardíacos de Marianne com
um estetoscópio. Seu pai estava acariciando a mão dela, falando com ela,
em prantos: “Está tudo bem, meu bebê. Está tudo bem. Você está curada.
Você está a salvo, minha filha. Está tudo bem”.
O gerente de banco havia saído para falar com a mãe e o irmão de
Marianne. A jovem estava calma agora, respirando normalmente. A cama
estava um caos completo. O ex-policial abriu a janela, e os sons do tráfego
ganharam o cômodo. Era por volta das 10h15 da noite.
“Eu devo ligar para o Conor logo”, disse Peter para seu colega. E então:
“Eu me pergunto o que mais deve ter acontecido hoje?”. Olhou para
Marianne uma vez mais. “A visita de Zio...”.
Pe. James olhou para Peter perplexo, sem captar o fio da meada. Ele
nunca entenderia os exorcistas, pensou.
E então Peter continuou: “Será porque o amor é um e o mesmo ao redor
do mundo, e o ódio é um e o mesmo ao redor do mundo?”. Peter não
pareceu dirigir essa pergunta, aparentemente vaga, a ninguém em particular.
O jovem padre desviou-se da dor que via sobre o rosto de Peter; era mais
que o que ele poderia suportar naquele momento. “Vou pegar um café para
você”, disse bruscamente, sentindo o calor das lágrimas ao fundo de seus
olhos.
Mas Peter estava observando o céu noturno pela janela. Sua mente estava
distante, seus sentidos quase adormecidos de tanto cansaço.
Abaixo da janela de Marianne, as multidões retornavam de uma tarde no
Yankee Stadium. Zio, àquele momento, estava em alguma galeria escura do
Pavilhão Vaticano na Feira Mundial de Nova Iorque, a contemplar a Pietà
de Michelangelo: Jesus morto aos braços de sua mãe. As câmeras de
televisão levavam sua voz a milhões de pessoas naquela noite: “Nós os
abençoamos, todos, invocando sobre vocês uma abundância de bençãos e
graças celestiais”.

1 Camiseta de corte similar ao de um maiô; colante e fechado à base – NT.


2 Cidade do condado de Clare, Irlanda.
3 Cidade do condado de Kerry, Irlanda – NT.
4 Biscoito típico irlandês – NT.
5 Diminutivo irlandês de Patrick – NT.
6 Pátio, em italiano no original – NT.
7 Sigmund Freud – NT.
8 Freqüentadores; em francês, no original – NT.
9 Ed. Cultrix, 1995 – NT.
10 Tradução livre – NT.
11 Alusão ao famoso romance Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson.
A expressão denota um tipo moralmente destoante, de personalidade bipartida; no Brasil, costuma ser
traduzida para “o Médico e o Monstro” – NT.
12 “Venha! Vamos fazer um trato”.
13 “O ser e o não-ser não podem coexistir simultaneamente”.
14 O grácil (do latim gracilis, delgado), é o músculo mais superficial da região média da coxa – NT.
15 Monte púbico – NT.
16 Luz, palavra hebraica que significa literalmente “amêndoa” e que designa o osso sacro, mais
sólido do esqueleto humano, e último a desfazer-se quando da desintegração de um cadáver – daí,
possívelmente, o nexo com a ressurreição dos mortos. Ver Sl 33, 21 – NT.
Padre Ossada e Seu Natura
O casamento ia ocorrer às 8h da manhã na costa de Massepiq, nos arredores
de Dutchman’s Point, Nova Inglaterra. Era um dia claro e ensolarado já no
mês de março, às 7h30 da manhã, e os primeiros convidados começavam a
chegar. Uma brisa marinha soprando rumo à costa, como o respirar do sol
vindo do leste, formara cachos de nuvens brancas em volta do céu matinal
azulado, e encrespara o mar. A maré, quase completamente cheia e prestes a
recuar, era como um gigante disforme a inspirar e expirar. Ela enviava suas
ondas, uma após a outra, num fluxo contínuo ao longo da costa. Cada uma
delas quebrava com uma pancada sobre a areia, espalhando uma tapeçaria
nômade de águas claras acompanhadas de um sussurro ruidoso, sendo então
tragadas, e arrastando consigo areia e cascalho.
A música dessas águas e o fino silvo do vento impunham um ritmo
discreto mas poderoso de fluxo e refluxo impassível. Os convidados,
conforme iam chegando, ficavam encantados com aquilo. Era a voz de um
mundo antiquíssimo, que existia desde sempre, que sempre estivera em
movimento, e agora parecia estar colocando-os a eles, os intrusos, a par de
que: “este é o meu mundo, no qual vocês entraram. Mas como esta é uma
manhã especial para um homem e uma mulher, meus filhos, farei uma
pequena pausa. Esse é um novo começo”.
Aquele era, de fato, o tipo de manhã que Pe. Jonathan esperava. Tudo era
natural. O único perfume era o ar, vivificado por um ligeiro frio, refrescado
com o sal, radiante por conta da luz. O único santuário era aquela praia de
areia espessa, com dunas de areia ao fundo, o mar à frente, e o largo domo
do céu como teto. O único altar era formado pelos noivos, de pés descalços,
diante do mar, no ponto em que as águas renovavam seu carpete de espuma
e borrifavam água sobre seus pés. A única música era o som do mar e da
brisa. O único mistério era o início empreendido por dois seres humanos
com vistas a um futuro desconhecido.
Padre Jonathan chegou por último. Às oito em ponto ele começou a
cerimônia. Pés descalços como os noivos, vestindo uma camisa branca sem
manga, calça jeans e uma estola dourada em volta de seu pescoço, ele se
posicionou no limiar da maré, o mar à sua direita e a areia à esquerda.
Diante dele estavam Hilda e Jerome, o rapaz e a menina que se casavam,
ambos nos seus vinte e poucos anos. Ela, num vestido descendo até o
tornozelo, preso a sua cintura por um cinto tecido em palha, cabelos
partidos ao meio, recaindo sobre os ombros. Ele, vestindo uma camisa
branca e shorts azuis. Seus rostos estavam calmos e serenos, distantes de
qualquer problema.
Hilda e Jerome olhavam fixamente para os olhos de Jonathan, e ele então
começou a falar numa voz forte e exultante, a qual, possante como um
carrilhão, chegava até os ouvidos de cerca de 40 pessoas que se
encontravam a alguns metros de distância, próximos às dunas de areia.
“Aqui estamos, na areia, diante do mar, onde todos os grandes feitos
humanos sempre se iniciaram, para testemunhar mais um grande início.
Hilda e Jerome estão prestes a se prometer um ao outro, no maior de todos
os inícios humanos”.
Um agradável senso de antecipação corria pelos ouvintes. Atlético,
bronzeado, elegante, decidido em seus movimentos, mais alto do que o
casal diante dele, cabelos dourados chegando até os ombros, Jonathan
detinha um controle total e mesmo dramático da situação. Seus olhos
tinham aquele brilho peculiar que mal se pode imaginar até vê-lo realmente.
Um fogo azul parecia arder em seu interior, dando-lhes um brilho hipnótico.
Faltava neles aquele sentimento caloroso, próprio aos olhos castanhos; mas
o seu brilho impedia que se os lessem, e era isso que criava o mistério.
Somente uma coisa comprometia a aparência de Jonathan. Ao gesticular
amplamente e erguer sua mão numa benção inicial, alguns dos convidados o
notaram: seu indicador direito era torto. Ele não podia endireitá-lo. Mas
aquilo era um pequeno detalhe, engolido por aquela manhã azulada, pela
chama dos olhos de Jonathan, pela melodia da maré.
Enquanto a voz de Jonathan soava, e a natureza mantinha seu incessante
ritmo, tudo num aparente uníssono, só uma pessoa parecia destoar daquilo
tudo. Um sujeito ao fundo, ao lado dos convidados, olhando atentamente
para o rapaz e a menina, por trás de seus óculos Polaroid. Esguio, vestindo
suéter e calça, com as duas mãos guardadas nos bolsos, ele era o único
vestindo chapéu, um chapéu preto.
“Que tipo engraçado. Quem será ele?”, sussurrou o pai de Jerome para
sua mulher. Mas eles o esqueceram momentaneamente, e ninguém mais o
havia notado, quando o sermão do Pe. Jonathan chegou ao seu clímax, antes
de passarem aos votos de casamento.
“... ambos estão adentrando esse mistério. E ambos serão espelhos da
completude da natureza – seu ventre, sua fertilidade, seu leite que nutre, sua
semente poderosa, seu êxtase supremo, seu repouso aninhado, seu mistério
de unicidade, e o mistério da imortalidade que só ela proporciona – se
formarem um só com a natureza, participantes em seu sacramento de vida e
morte. Como o era o homem perfeito, Jesus, nosso modelo”.
O homem de chapéu preto se agitou, inquieto, inclinando-se para frente
para pegar cada detalhe, seus olhos sempre fixos no rapaz e na garota.
O Pe. Jonathan lançou um olhar caloroso sobre os convidados à sua
esquerda. “Muitos tentaram tomá-lo de nós, nosso supremo exemplo,
afastando-nos de seus valores humanos”. Sua voz vibrava numa profunda
emoção. “Coroar sua vida gloriosa com um final água-com-açúcar. O que é
toda essa baboseira de sua suposta ressurreição, senão uma enganação? Se
ele morreu, morreu. Completamente. Realmente. Que espécie de sacrifício,
e portanto que espécie de amor por nós ele teria se houvesse morrido para
viver de novo? Extirpar o sacrifício de seu próprio sofrimento e sua
verdadeira glória, extirpá-lo, ele e nós, de toda sua nobreza humana – não é
justamente aquela cruel piada do final feliz, que eles associaram à sua morte
heróica? Ele, o supremo herói? Fazendo da maior história já contada um
simples conto de fadas dos irmãos Grimm”.
“Vocês, Jerome e Hilda”, olhando-os novamente, orgulhoso, “vocês
amarão o mistério de unidade humana dele: e, no momento certo, como ele,
enfrentarão a morte tal qual ele o fez: humanamente, nobremente. E
voltarão à natureza, consolidando-se na eterna unicidade para a qual partiu
também Jesus, de cabeça baixa, mas triunfante”.
Àquela altura o homem de chapéu preto foi à frente da pequena
aglomeração de convidados.
Jonathan lançou a cerimônia de casamento propriamente. “Agora vejam,
Hilda e Jerome, toda a natureza irá fazer pausa, agora, durante um breve
instante, para testemunhar os seus votos”. Um gesto amplo tomou toda a
cena, o indicador curvo a golpear estranhamente o ar, em gestos tortos.
“Todas as coisas, o vento, o sol, o mar, a terra, tudo irá parar a seu modo...”.
Jonathan interrompeu sua fala; parecia estar com dificuldade para
respirar. Engoliu em seco, e seu rosto ruborizou com o esforço em
continuar. Ele conseguiu retomar, ditando palavra por palavra a Hilda.
“Com todo o meu coração, eu o aceito...”
“Com todo o meu coração, eu o aceito”, Hilda repetiu num tom claro e
confiante.
“Como meu honrado esposo...”.
“Como meu honrado esposo...”
“No mistério da natureza...”
“No mistério da natureza...”
“Para tê-lo e conservá-lo...”
“Para tê-lo e conservá-lo...”
“Na vida e na morte...”
“Na vida e na morte...”
“Como ventre e prazer de Deus...”
“Como ventre e prazer de Deus...”
“Para a glória de nossa humanidade...”
“Para a glória de nossa humanidade...”
“Como Jesus antes de nós...”
“Como Jesus antes de nós...”
“Mundo dos vivos e dos mortos...”
“Mundo dos vivos e dos mortos...”
“Amém”
“Amém”.
Hilda deslizou a aliança no dedo de Jerome. Os convidados estavam
agitados. Alguns ficaram inexplicavelmente tensos e não podiam tirar seus
olhos de Jonathan. Em seguida, alguns notaram algo como uma
desfiguração que começava a se mostrar em seu rosto.
O homem de chapéu preto, agora em frente às dunas e apartado dos
convidados, ainda assistia a tudo atentamente. Jerome olhou para Jonathan
e aguardou as palavras de seu voto para Hilda. Os olhos de Hilda fitavam
Jerome. Toda a natureza, de fato, parecia ter parado para ela. Pela primeira
vez ela se sentira unida à vida, ao mundo, ao seu próprio corpo.
Jonathan lutava uma vez mais contra alguns empecilhos. Seu corpo
estava rijo. Seu peito, inchado. Finalmente ele pôde encher seus pulmões, e
começou a ditar as palavras para Jerome.
“Com esta aliança...”.
“Com esta aliança...”, Jerome tomou suas palavras.
“Eu a tomo...”
“Eu a tomo...”
“Como minha amada esposa...”
“Como minha amada esposa...”
“Pois você me deu...”
“Pois você me deu...”
“A beleza e o mistério...”
“A beleza e o mistério...”.
Jerome esperou pela próxima linha. Mas Jonathan, uma vez mais, estava
quase roxo de tanto fazer força. Seus olhos azuis estavam agora inchados,
mostrando escleras como que movidas pelo terror. Suas mãos, até há pouco
dobradas sobre o peito solenemente, estavam agora tensas, jogadas para os
lados, abrindo e fechando convulsivamente. Ele abriu sua boca e disse, num
chiado: “De ser um só com a natureza...”.
“De ser um só com a natureza...”, repetiu Jerome.
“E-e-e...”. Jonathan gaguejava.
Hilda olhou para seu rosto, alarmada. A voz de Jonathan se afinava a
cada sílaba, alcançando um tom de histeria. Parecia que todo som externo
cessara, pois todo mundo se voltou às palavras de Jonathan.
“E – de se-ser um com Je-Jes-Jesuuus” – A voz de Jonathan irrompeu
num guincho que estourou no ar. “JESUS!”. O nome soava como uma
maldição lançada em cada ouvido. Seu rosto se contorceu com tal feiúra
que Hilda congelou de terror.
Subitamente, Jonathan se lançou sobre Hilda com os braços
escancarados, agarrando-a por baixo dos braços. Ele então avançou
carregando-a até a água, rosnando e grunhindo vorazmente consigo próprio.
Empurrou a cabeça dela para baixo, mantendo-a debaixo d’água, montado
sobre seu corpo, e Hilda se debatia desferindo chutes.
A extrema velocidade das ações de Jonathan e sua incongruência louca
haviam deixado todos imobilizados. Por um microssegundo ninguém se
dera conta do que estava se passando. E então uma mulher deu um grito,
com aquele inconfundível tom que anuncia o perigo de morte.
Dentro de poucos segundos, meia-dúzia de homens correu e apartou as
mãos de Jonathan de cima de Hilda, agarrando-o pelo pescoço, erguendo-o
e atirando-o deitado sobre a areia. Ele ali ficou, debatendo- -se por um
momento até se acalmar.
Jerome e o pai de Hilda tiraram-na da água; engasgada e ofegante, seu
longo vestido arrastando filetes de areia e água. Eles a deitaram no alto da
praia, perto das dunas de areia, sua cabeça repousando sobre o colo de sua
mãe. Aos poucos ela recuperou o fôlego, chorando incontrolavelmente.
Jerome se ajoelhou ao seu lado, atordoado, sua boca aberta, seu rosto
pálido, incapaz de dizer uma só palavra.
Mais abaixo na praia, Jonathan jazia estirado sobre a areia. Ele se
contorcia e gemia, virando-se de um lado para o outro. Então, apoiando- -se
num só cotovelo, ergueu-se e subiu, lento e desengonçado, cambaleando.
Suas costas e laterais estavam cobertas de areia. A água ainda pingava de
seus longos cabelos e de suas roupas. Os olhos avermelhados, franzindo as
pálpebras contra a luz do sol, a cabeça baixa diante dos olhares severos dos
convidados que o cercavam. Ele estava encurralado.
De início, ninguém disse nada. E então uma voz espessa e metálica
rompeu o silêncio. “Se me permite, senhor”, dirigindo-se ao pai de Hilda,
“eu me encarrego a partir de agora, senhor”. A autoridade e confiança
naquela voz atraíram todos os olhares ao falante. Era o estranho sujeito,
agora sem o chapéu preto, revelando um rosto magro, não muito jovem e
cheio de rugas, cabelos grisalhos desgrenhados pelo vento. Ele tirou seus
óculos de sol e, com um passo manco, aproximou-se de Jonathan, olhando
fixamente para ele. Disse, então, suavemente: “Você e eu temos um
encontro importante, agora, Pe. Jonathan”. Ele pausou; e então, com tom de
voz renovado, “quão antes melhor”. O chapéu preto estava uma vez mais
sobre sua cabeça. Ele estendeu sua mão a Jonathan.
Ninguém disse nada. Ninguém objetou. Talvez todos estivessem
aliviados pelo fato de alguém estar gerindo a situação.
O homem falou uma vez mais. “O sol estará a pino em poucas horas. Nós
temos trabalho a fazer, e não há como esperar. Venha!”.
Jonathan piscou por um momento. E então, tremendo, ele colocou sua
mão com o dedo torto na palma aberta do outro homem. Eles voltaram as
costas ao mar. De mãos dadas, Jonathan a cambalear, o outro homem a
mancar, eles caminharam por sobre as dunas chegando à estrada de terra na
qual os carros estavam estacionados, parando diante de uma caminhonete.
Eles ficaram ali parados por um instante. Os convidados podiam ver o
homem a falar com Jonathan. Jonathan, curvado e apoiando-se sobre a
maçaneta da porta da caminhonete, ouvia o homem, o pescoço arqueado.
Ele consentia por meio de gestos violentos com a cabeça. Os dois, então,
entraram no carro.
Quando a caminhonete se perdeu de vista e seu ruído se extinguiu,
alguém disse, quebrando o silêncio: “Quem era esse?”.
O pai de Hilda, com os olhos cheios de lágrimas, assistiu à caminhonete
que desaparecia pela estrada. “Padre David”, ele sussurrou. “Padre David
M. Tudo vai ficar bem agora”. Ele sacudiu a cabeça, como se para livrar a
mente de um pensamento desconfortável. “Ele estava certo desde o início”.

Padre David
Na época em que ele conduzira Jonathan às pressas daquele casamento
abortado à beira-mar, em 1970, o Pe. David M. (“Ossada”, como seus
alunos gostavam de chamá-lo) era um padre de quarenta e oito anos,
membro de uma diocese da costa Leste, professor de antropologia num
seminário maior, e exorcista oficial de sua diocese. Já havia conduzido
quatro exorcismos ele próprio, e assistido outros cinco. O primeiro ocorrera
em Paris, onde havia sido assistente de um padre mais velho; os outros se
passaram em sua própria diocese.
Quando David M. iniciou sua vida profissional como antropólogo em
1956, ele mal podia imaginar que, dentro de dez anos, seu conhecimento em
Antropologia e seu entusiasmo pela Pré-História seriam as razões principais
para que ele assumisse o papel de exorcista e, mais tarde, que se envolvesse
no estranho caso do padre Jonathan. Ele tampouco poderia imaginar que
aquele caso, iniciado no mês de março de 1970, o conduziria, primeiro, à
mais perturbadora crise pessoal de sua vida, e, mais tarde, ao abandono da
Antropologia enquanto estudo e profissão.
Quando David nasceu, em Coos, o condado mais ao norte de New
Hampshire, em 1922, o estado, com uma população de cerca de meio
milhão de habitantes, era ainda uma comunidade rural rústica, muito
apartada dos sofisticados centros de Boston e Nova Iorque ao sul. O
Condado de Coos, em particular, era ainda permeado da tradição ianque de
trabalho duro, frugalidade e sobriedade, e sua população estava atenta às
pregações sobre os malefícios do álcool, a sabedoria em se pagar à vista por
aquilo que se compra, em ser pró-ativo, responsável e – como pedra
fundadora de uma vida correta – sobre o valor infalível, suficiente e
iluminador da Bíblia. Até os dias de hoje, tendo as regiões central e sul
sofrido com as malícias das transformações, essa terra ainda faz pensar na
atmosfera de um reino antigo e imperturbável. Nas montanhas, lagos,
penhascos e florestas encontra-se uma paisagem tão agradável aos olhos
quanto o peso bruto do Himalaia e a face vulcânica das montanhas do Sinai.
David M. era a única criança nascida numa abastada família de católicos
romanos ianques. Ele passou seus primeiros anos na fazenda de seu pai, por
vezes visitando a cidade próxima e, vez ou outra, viajando até Portsmouth
com seus pais para um breve tempo de férias.
As imagens mais fortes que David guarda do mundo em sua juventude
são aquelas dos lagos, montanhas, florestas, penhascos, formações
rochosas, vales cobertos de árvores e escarpas e as enormes faixas de terra
que cercavam sua casa. Seus ouvidos ainda guardam as harmonias contidas
nos nomes de sua terra natal – Rio Ammonoosuc, Rio Saco, Cordilheira
Franconia, Vale Merrimack, e a magia do Lago Winnipesaukee, cujos 30
quilômetros de extensão eram revestidos de folhagem, e de cujas 274 ilhas
ele outrora aprendera e recitara os nomes de cor.
O catolicismo romano de seus pais era de tipo conservador e fazia parte
de suas vidas diárias. Seus pais, ambos, freqüentaram a faculdade; seu pai
estudara em Cambridge, Inglaterra. Ambos haviam viajado pela Europa, e
sua casa estava centrada em torno da biblioteca e sua grande lareira, onde
eles se encontravam após as refeições e onde David passava longas horas
folheando os livros de seus pais.
Muitos dos parentes de David viviam nos arredores. Seus companheiros
de brincadeiras eram, em geral, seus primos. Quanto a suas primeiras
recordações de um certo despertar intelectual, ele as atribui à influência de
seu tio que, tendo ensinado história em Boston por 37 anos, se aposentara
finalmente, para viver no campo com seu irmão e a cunhada, pais de David.
O Velho Edward, como o chamavam, personificava para David a
estabilidade e a permanência em sua casa, e influenciou profundamente o
desenvolvimento mental de David. Edward passava a maior parte de seu dia
lendo. Ele saía de casa religiosamente duas vezes por dia; na primeira, de
manhã, para caminhar ao redor da fazenda – fizesse chuva, caísse granizo
ou nevasse; uma segunda vez, após o jantar, quando ele caminhava para
cima e para baixo na penumbra do bosque a oeste da casa, fumando seu
cachimbo e falando sozinho.
David lembra-se de ir seguidas vezes com o Velho Edward ver a Grande
Cara de Pedra, “O Velho na Montanha”, empoleirado sobre o topo da Fenda
de Franconia. “Ninguém sabe como ela chegou aqui, filho”, Edward
comentava. “Simplesmente aconteceu. O homem emergiu da natureza
selvagem”. Aquilo se tornou um símbolo na mente de David, e uma prévia
do modo como ele viria a pensar, posteriormente, a origem do homem.
Sempre que David e seu Tio Edward visitavam a Grande Cara de Pedra,
o ritual era o mesmo. Uma vez diante do “Velho”, eles sentavam-se e
comiam o almoço diante de uma fogueira. Após, Edward acendia seu
cachimbo e, encarando o pustulento perfil, começava a divagar sobre a
mesma peça de conversação.
“E aí, rapaz, quem você acha que fez isso?”.
“Isso parece ter simplesmente surgido do meio da terra e das rochas,
senhor”, era a resposta de David.
Às vezes Edward trazia uma obra de seu autor favorito, Nathaniel
Hawthorne. Após ler um episódio para David, ele conversava a seu respeito
com o sobrinho. A Letra Escarlate era o texto mais freqüente.
“Por que Arthur morreu sobre o estrado, rapaz, e ainda com um sorriso
nos lábios?”, ele perguntava.
Depois de um certo tempo, David tinha a resposta esperada: “Porque,
senhor, ele sabia que devia pagar por seus pecados”.
E então: “Por que ele pecou, rapaz?”.
“Por causa do pecado original de Adão, senhor”, era a resposta de David.
Certa vez David aventurou-se a ele mesmo colocar uma questão. “Por
que Hester pôs de volta a letra escarlate sobre si, se ela era um emblema
depreciativo, senhor?”. Seu tio respondeu, saboreando a segurança em sua
própria resposta: “Ela queria ser romântica, rapaz. Romântica. É assim que
eles o chamam”. Aquele era o primeiro contato de David com o
romantismo, tema que retornaria em sua vida sob formas bastante reais e
dolorosas dali em diante. O espírito maligno que ele exorcizou em Jonathan
havia possuído o colega sob o disfarce de puro romantismo.
Quando David tinha quatorze anos, ele foi enviado a uma escola
preparatória em New England, mas suas férias eram todas vividas na
fazenda da família, no condado de Coos. Seu tio ainda vivia ali; e juntos
eles fizeram diversas viagens para Nova Iorque, Filadélfia, Chicago e
Montreal.
Foi, contudo, uma viagem a Salem, Massachusetts – feita a pedido dele
próprio – que adquiriu suma importância na mente de David. Ele tinha
dezesseis anos. Seu tio queria conhecer a casa de John Turner, a qual havia
sido imortalizada por Hawthorne em A Casa das Sete Torres. Mas David
vinha se aprofundando num exemplar da História Eclesiástica de New
England que ele havia encontrado na biblioteca de seu pai; e ele estava mais
interessado em pessoas como Elizabeth Knapp, Anne Hibbins, Ann Cole e
outras “bruxas” e “feiticeiros” da Salem do séc. XVII. Assim, ao visitarem
o Museu Peabody e a casa de Turner, eles passaram uma hora e meia na
“casa da feiticeira” onde o Juiz Corwin havia examinado os 19 homens e
mulheres condenados e executados por bruxaria em 1692.
Mais tarde, David se deu conta de que sua passagem pela “casa das
bruxas” teve um significado especial. Conforme eles passeavam por dentro
e fora da casa, seu tio comentava os julgamentos de 1962.
O tempo inteiro, David tinha uma sensação inusitada, ainda que não
desagradável; um instinto de que “olhos invisíveis”, como ele expôs ao seu
tio, ou “espíritos”, como ele expõe hoje, estavam ali presentes e se
comunicavam de um modo estranho. Eles pareciam estar pedindo algo. Era
como se uma parte de sua mente ouvisse e registrasse os comentários de seu
tio e as percepções daquilo que o cercava, enquanto outra se ocupava de
“palavras” e “percepções” outras, impalpáveis.
Por mais impressionante que essa experiência tivesse sido à época, ela
não se tornou de modo algum uma obsessão na mente de David pelos anos
seguintes. De fato, ele nunca mais se lembrou vividamente daquela
experiência em Salem até que, 32 anos mais tarde, morresse o Velho
Edwards, e depois novamente durante o exorcismo do Pe. Jonathan.
Ninguém no círculo de parentes e amigos de David ficou surpreso
quando ele decidiu ingressar no seminário em 1940. Seu pai teria preferido
uma carreira no exército para ele; sua mãe havia nutrido uma secreta
esperança em ter netos. Mas David havia tomado sua decisão.
Após sete anos, quando ele foi ordenado em 1947, aos vinte e cinco anos,
o bispo perguntou se ele gostaria de passar por mais alguns anos
complementares de estudo. A diocese precisava de um professor de
Antropologia e História Antiga. Caso concordasse, ele antes obteria um
doutorado em teologia: as autoridades de Roma eram prudentes e não
deixariam um jovem clérigo aventurar-se num campo científico sem uma
base doutrinal sólida. Poderia não ser fácil e nem prazeroso, porque Roma
não tinha os seminários americanos em alta conta. O programa inteiro
tomaria cerca de sete anos a mais na vida de David.
A despeito das possíveis dificuldades, David consentiu. No outono
seguinte ele começou a seguir uma formação teológica em Roma; e então,
no outono de 1950, seguiu para a Sorbonne, em Paris.
Como diversas pessoas naquela época, ele já ouvira muito sobre um
jesuíta francês chamado Pierre Teilhard de Chardin, mas nunca entrara em
contato com seu pensamento. Em Paris ele caiu sob a influência direta das
idéias geradas por Teilhard. Para os intelectuais do pós-guerra, Teilhard era
um fenômeno; e para aqueles de meados dos anos 1950 ele gozava de uma
reputação de Santo Tomás do século vinte, suscitando o tipo de devoção
pessoal que só um Boaventura e um Raimundo Lúlio atraíram em séculos
anteriores.
Francês entre os franceses, intelectual, asceta, herói da Primeira Guerra,
estudante brilhante, professor inovador, místico, descobridor do Homem de
Pequim (Sinanthropos), escavador pioneiro em Sinkiang, no deserto de
Gobi, Burma, Java, Caxemira, África do Sul, Teilhard tornou
intelectualmente possível, para um cristão, que se aceitasse as teorias
darwinianas de evolução e, ainda assim, se preservasse a fé.
Toda matéria, dizia Teilhard, é e sempre foi transfundida com
“consciência”, não importa quão primitiva seja ela. Atravessando bilhões de
anos e todas as formas de substância química, vegetal, animal, e finalmente
a vida humana, essa “consciência” floresceu. Ela ainda está florescendo; e
agora, nesse estágio final de desenvolvimento, ela está para eclodir numa
culminação final: o Ponto Ômega, quando todos os humanos e toda a
matéria será elevada a uma unidade que só foi sonhada pelos visionários e
santos do passado. O personagem chave do Ponto Ômega será Jesus,
afirmava Teilhard. E então todos se reunirão no todo, e tudo formará um só
no amor e no estado permanente da salvação alcançada.
Por volta de 1950, quando David chegou em Paris, Teilhard e suas
doutrinas haviam passado dos limites para as autoridades romanas. O olhar
crítico de Teilhard, sua linguagem fluida, sua lógica gaulesa, uma constante
habilidade em responder a perguntas inquisitórias com uma torrente de
detalhes técnicos, sua insubordinação intelectual e a própria ousadia em
tentar sintetizar a ciência moderna e a fé antiga – tudo aquilo assustou as
mentes eclesiásticas. Não era apenas o nariz adunco que fazia lembrar às
autoridades de seu ancestral do século dezessete, Descartes, cujas idéias
ainda julgavam ser anátema. Era, principalmente, a tentativa de Teilhard em
racionalizar os mistérios do credo católico, em “cientificizar” o divino e
tornar as verdades da revelação totalmente explicáveis em termos
laboratoriais e arqueológicos.
Teilhard: dedicado às “idéias claras e distintas” de Descartes, pai de todo
o pensamento científico moderno; movido internamente pela chama dos
ideais pessoais de Inácio – pai não só de todos os jesuítas mas de todos os
bravos e solitários; encantado pela obscuridade mística do conhecimento
celebrado por seu autor favorito, João da Cruz, cujas dores ele
compartilhava, mas cujo êxtase sempre lhe escapou; afiado e refinado em
seu intelecto pelo melhor treinamento científico do momento; Teilhard era o
sujeito com a resposta perfeita, o queridinho de uma intelectualidade
católica falida, e de milhares de protestantes acorrentados por uma
impiedosa razão; razão esta que fora celebrada, quatro séculos atrás, como a
glória mesma do homem. Teilhard era, ao mesmo tempo, deles pioneiro e
herói martirizado. Aos exaustos e desmotivados franceses e belgas, ele foi a
pedra de toque para um novo sentimento de orgulho. Ele soprou um novo ar
sobre a chama fria que lentamente consumia os cérebros dos holandeses e
germânicos, ávidos por inovação. Ele nutriu o emocionalismo dos clérigos
anglicanos, que então voavam livres dos grilhões da tradição.
Sua nova terminologia (ele era autor de muitos neologismos correntes),
seu pensamento ousado, seu arsenal científico, sua reputação internacional,
sua recusa em revoltar-se quando silenciado por meio de chicanas, sua
longa vigília, sua morte obscura, e finalmente o deslumbre de sua fama e de
sua publicidade póstumas, tudo isso lhe conferia, a seu nome e às suas
idéias, a eficácia da qual outrora gozara uma Joana d’Arc, um Francisco
Xavier ou uma Simone Weil. Se Roma não o canonizaria jamais, ele mesmo
foi canonizado por uma nova “voz do povo”. Ele era uma maravilhosa fonte
de palavras esotéricas e pensamentos intrincados para os teólogos pop
americanos.
Muito poucos perceberam que a visão de Teilhard já cessara bem antes de
sua morte. Ele só provera os cristãos de um respiro entre o longo outono do
século dezenove e o inverno que envelopara tudo ao cabo do século vinte.
Teilhard não era nem um alimento consistente que satisfizesse uma fome
verdadeira e nem um maná dos céus para um novo pentecostes. Ele era
apenas uma taça sofisticada de um vinho intoxicante.
Sob o papado de Pio XII, a Igreja Católica pós-Segunda Guerra estava
constantemente sendo purgada de “idéias perigosas”. E Teilhard entrou em
conflito com os censores. Ele foi silenciado e eLivros, proibido de publicar
ou ensinar. Não obstante, suas idéias escorreram pelo meio intelectual da
Europa e da América como mercúrio. David, assim como muitos outros,
bebeu fundos goles do vinho de suas idéias, e acreditou que o homem
estava a caminho de uma nova aurora.
David sabia, é claro, desde o início, que ele estava destinado a seguir a
carreira da Antropologia posteriormente. Em Roma, portanto, ele se
concentrou naquelas questões teológicas que tivessem um efeito direto na
antropologia. Ele estudou particularmente a criação divina do mundo
material e do homem, as doutrinas de Adão e Eva e o pecado original. Ele
viu que o ensinamento da Igreja era claro: Deus criou o mundo, se não
exatamente em sete dias, pelo menos diretamente, e do nada. Houve um
primeiro homem, Adão, e uma primeira mulher, Eva. Ambos pecaram. Por
conta de seu pecado, todos os homens e mulheres – pois todos os homens e
mulheres já existentes descendem de Adão e Eva – estavam desprovidos da
qualidade divina chamada graça. Eles nasceram com o pecado original. E
essa condição só mudava com o sacramento do Batismo.
David estava perturbado pelo fato de que as doutrinas, expostas de tal
forma, ainda incluindo todo o refinamento e as modificações permitidas,
muito dificilmente se explicavam à luz das teorias correntes da
paleontologia daquele tempo. E quão maior o impacto da ciência na mente,
mais dramática se tornava a dificuldade.
Quando todo o peso dos estudos antropológicos e interculturais passaram
a ter certa relevância na questão das origens humanas, o ser humano
pareceu vir de um passado remoto e distante durante o qual não somente
seu corpo fora formado como, também, aquilo que era chamado de mente e
instintos mais altos foram modelados. E, é claro, se você admite essas
crenças e assunções vindas de teorias “científicas” como sendo “fatos”, ou
mesmo como sendo altamente prováveis, então o tema central de todo o
cristianismo – a idéia de Deus ter criado as condições humanas e enviado
seu filho, Jesus, para salvar o homem de sua terrível situação, tudo isso se
vê falido e posto à venda.
O gênio de Teilhard era tal que sua aposta nesse campo – a de se
construir uma ponte entre um abismo tão intransponível – gozava do
mesmo valor daquelas de qualquer não católico ou não cristão. E foi em
vista dessa promessa que David, junto com toda uma geração de homens e
mulheres, adotou as formulações de Teilhard.
Mas a falha se revelou rápida e certeiramente. O deus criador dos cristãos
não mais era tido como divino. Ele tornou-se parte do mundo, de um modo
misterioso e essencial. Jesus, como salvador, não mais era o herói
conquistador irrompendo no universo humano e sustentando a história sobre
sua própria cabeça. Ele foi reduzido a ápice dessa evolução do universo,
elemento natural no universo como os aminoácidos. O impulso que
culminaria na revelação de Jesus a todos os homens era um acidente
evolutivo – uma espécie de piada cósmica – que se iniciara cinco bilhões de
anos atrás em meio ao gás hidrogênio, gás hélio e aos aminoácidos de um
espaço em transformação. Não havia alternativa àquele impulso senão
continuar a impulsionar, até dar à luz a flor culminante e fina da
“consciência humana plena” nos “últimos dias”.
Como a Grande Cara de Pedra na Fenda de Franconia, da qual David se
lembrava tão vividamente pelas visitas com seu tio, assim também Jesus,
agora, emergira da natureza. O Ponto Ômega. Somente essa seria a hora
final da glória, o Último Dia.
Nem David, nem qualquer um daqueles que falavam da “maior aventura
biológica de todos os tempos” – querendo dizer a história humana –
estavam cientes do fato que, uma vez que as antigas crenças da cristandade
fossem interpretadas desse modo, seria apenas uma questão de tempo até
que as questões principais fossem afetadas, e que conclusões
dramaticamente concretas fossem extraídas. Mas a euforia do presente
amiúde encobre os problemas futuros. A liberdade intelectual tem seus
próprios grilhões, seu próprio tipo de miopia. E um triunfo da pura lógica
parece sempre carregar consigo uma omissão tanto do humano quanto de
tudo o que seja espiritual.
Foi nesse fermento que amadureceu a mentalidade de David.
Daqueles anos passados no doutorado, David guarda duas profundas
lembranças pessoais. Ambas ocorreram quando da morte de seu tio Edward.
Foi durante a repetência de seu último ano na Sorbonne que o velho
homem, então na casa dos oitenta, começou a morrer. David acabara de
voltar a Paris de uma viagem ao campo no sul da França, quando recebeu
um telegrama de seu pai: O velho Edward não tem muito tempo; ele
perguntou por David diversas vezes.
David pegou um vôo naquela noite. À noite seguinte ele já estava de
volta ao condado de Coos, na fazenda da família. Edward declinava pouco a
pouco, emergindo de estados semi-comatosos e a eles voltando seguidas
vezes.
Por volta da meia-noite do segundo dia de estada de David em casa, ele
estava sentado no quarto de Edward, lendo. Sua família já havia se
recolhido para dormir. A única luz do cômodo vinha da luz de leitura sobre
a mesa na qual estava David. Fora dali, tudo estava quieto. Um vento
noturno soprava suavemente por entre as árvores. Por vezes um grito muito
distante ecoava dos campos ao redor.
A certa altura David ergueu sua cabeça e olhou para Edward, pensando
ter ouvido uma voz. Mas o velho homem estava imóvel, respirando com
dificuldade. David se aproximou, mergulhou uma toalha de mão numa
tigela com água, e enxugou a transpiração da testa de Edward. Ele estava
prestes a retornar à sua cadeira quando ouviu novamente – ou pensou ter
ouvido – uma voz, ou vozes, ele não tinha certeza. Olhou para Edward: ele
permanecia inalterado. Ergueu então sua cabeça e ouviu.
Ele poderia jurar que uma meia dúzia de pessoas estavam a conversar a
meia-voz na sala ao lado. Mas sabia que, exceto por seus pais e uma
empregada doméstica, ele estava a sós com Edward na casa.
Edward agitou-se, desconfortável, e tragou umas curtas goladas de ar.
Suas pálpebras palpitaram por um momento. Ele as abriu lentamente. Seu
olhar percorreu o teto até o canto mais distante do quarto, retornando até
David. “Posso ajudá-lo, senhor?”, David perguntou. Ele nunca se dirigira a
seu tio de outro modo. Edward moveu a cabeça de um modo que David
conhecia bastante bem desde há muito tempo.
Quase que imediatamente, Edward adentrou um processo curto de agonia
mortal, inspirando de forma lenta e profunda, exalando com dificuldade,
estufando seu peito, gemendo. David tocou a campainha para chamar seus
pais, ajoelhado à cabeceira da cama, e começou a rezar em sussurro.
Mas um movimento do dedo do velho homem o fez parar. Edward estava
tentando dizer algo. David curvou-se, aproximando seu ouvido da boca do
moribundo. Ele mal podia ouvir aquelas sílabas aspiradas: “... rezou por
eles... eu rezei por eles... vindo para me levar... você não ... rapaz... casa...
você não... casa...”
Aquelas vozes, David pensou. Aquelas vozes. Homens e mulheres.
Quando foi que ele esteve com Edward e outros e que Edward havia rezado
pelos tais outros e ele, David, não? Por que eles precisariam de preces? Ele
não conseguia tirar da cabeça que Edward estava falando da viagem deles a
Salem. Ele não via nenhuma conexão entre uma coisa e outra, mas não
conseguia se livrar daquela idéia.
Edward soltou um longo suspiro. Seus lábios se contorceram
ligeiramente. David ouviu ainda um débil ruído em sua garganta. E então
ele se viu sozinho naquele silêncio mortal, longo e contínuo, consumada a
morte de seu tio.
Após haverem enterrado o Velho Edward, David ficou em casa por mais
alguns dias, partindo a seguir para Nova Iorque. Ele tinha uma ou duas
incumbências a cumprir na cidade, e ainda teve a chance de encontrar
Teilhard de Chardin. Ele levou consigo uma cópia de Le Milieu Divin, 1 de
autoria de Teilhard, na esperança de ter um autógrafo.
O encontro com o jesuíta francês foi breve e pungente para David. O
amigo em comum que arranjara o encontro avisou David, enquanto eles se
dirigiam ao encontro com Teilhard, quanto a que o velho homem não
andava muito bem ultimamente. “Vamos fazer uma visita curta, ok?”.
Teilhard era muito mais magro do que David havia imaginado.
Cumprimentou David afável mas reservadamente em francês, bateu papo
por uns cinco minutos sobre sua carreira como antropólogo, e então pegou a
cópia de seu livro das mãos de David, olhando pensativo para aquele tomo.
Como se tomasse uma decisão impulsiva, ele pegou uma caneta em seu
bolso e escreveu algumas palavras na folha de rosto; fechou o livro,
devolveu-o, e olhou para David. Os lábios de Teilhard estavam contraídos
de um modo característico, sua cabeça ligeiramente inclinada para o lado e
para a frente.
David percebeu a força no queixo de Teilhard. Mas, mais do que isso, foi
a expressão em seus olhos que ficou impressa na memória de David. Ele
esperava ver aquele olhar profundo, de um homem que havia viajado longas
distâncias e pensado muito seriamente as questões mais profundas da vida.
E em lugar disso, olhando para Teilhard, por sobre a curva protuberante
daquele nariz adunco, via dois olhos bem abertos. Eles não davam indício
de memórias ou reflexões, nenhuma reminiscência das tempestades
pessoais do teólogo. Não havia qualquer sinal de uma inteligência brilhante.
O velho paleontólogo estava inteiramente presente com David, acolhendo o
olhar do padre de modo tão agradável e com uma simplicidade tão direta
que o jovem quase ficou constrangido.
Após alguns segundos, o velho homem disse: “Você será verdadeiro.
Você será verdadeiro, padre. Busque o espírito. Mas, mesmo que tudo
pareça estar perdido, tenha esperança. Esperança”.
Seus olhares permaneceram em contato por mais um instante. E eles
então partiram. Retornando ao centro da cidade, David comentou com seu
amigo, que dirigia: “Por que, no final, ou como, no final, tudo se tornou tão
simples para ele?”. Seu amigo não tinha uma resposta para oferecer.
Subitamente, David lembrou: o que foi que Teilhard escreveu na folha de
rosto de seu livro? Ele o abriu. A dedicatória trazia o seguinte: “Eles dizem
que eu abri a caixa de Pandora com este livro. Mas, eles não perceberam, a
Esperança ainda se escondia num de seus cantos”.
David continuou incomodado, por mais algumas semanas após aquele
encontro, com a incômoda idéia de que a esperança se tivesse tornado algo
difícil para o jesuíta de setenta e três anos de idade. Mas após seu retorno a
Paris, e durante o restante de sua formação na Sorbonne, a pungência
daquele incidente esmaeceu-se temporariamente no fundo de sua memória.
À época em que David retornou aos Estados Unidos, em junho de 1955,
Teilhard já estava morto havia mais de dois meses.
De volta à América, poucos dos antigos companheiros e conhecidos de
David podiam reconhecer o novo intelectual que ele havia se tornado. Ele
tinha trinta e quatro anos e um físico robusto. Seu perfil de um metro e
oitenta era esbelto e bem musculado. Seus amigos não perceberam o
aspecto prematuramente cinza, as linhas de expressão débeis mas já bem
definidas em torno de sua boca, o desaparecimento em sua face daquele
entusiasmo juvenil do qual ele estivera revestido cinco anos antes, quando
partiu para a Europa.
Um outro olhar substituíra aquele entusiasmo: era uma certa
“definitividade”, como um de seus amigos o descrevera. Os olhos de David
estavam mais repletos de sentido. Ele falava de modo tão agradável quanto
antes, mas em tom menos informal, e com uma ênfase que transmitia mais
sentido do que nunca. Quando falava sobre temas profundos, aqueles que o
cercavam sentiam que suas palavras e pensamentos vinham de um tesouro
interior de experiências e um lastro de vivências colhidas cuidadosamente,
dispostas harmoniosamente, e mantidas sempre polidas para o uso. Ele
tinha aquele aspecto de alguém “bem acabado”. E mais de um de seus
antigos colegas comentou, “Um dia, ele vai ser bispo”.
Antes de começar suas aulas no seminário, David passou um ano extra
fazendo seus próprios estudos, visitando museus e viajando para variadas
partes do mundo nas quais paleontólogos faziam trabalho de campo. Esse
ano extra lhe foi de um valor inestimável; ele tinha tempo para refletir sobre
as condições da pesquisa, colocar sua leitura em dia, encontrar-se com
colegas de profissão e examinar diversas escavações em primeira mão. E
então, em meados de setembro de 1956, ele voltou para casa, no condado de
Coos, para duas semanas de férias na fazenda com seus pais. No mês de
outubro seguinte ele começou a dar suas primeiras aulas no seminário.
Os nove anos seguintes de sua vida passaram desapercebidos. Desde o
início ele gozava de popularidade e era tido em alta conta. Os estudantes lhe
conferiram o apelido de “Ossada”, por conta dos fósseis que ele mantinha
em redomas de vidro em sua sala de estudos.
Em maio de 1965 ele se encontrava novamente em Paris, assistindo a
uma convenção internacional. Durante sua estada de três semanas ali ele foi
solicitado, certa noite, por um antigo amigo, pároco de uma diocese no
norte da França, para ajudá- lo como assistente substituto no exorcismo de
um homem de cinquenta anos.
David tinha muito pouco conhecimento sobre exorcismo. De fato, com
base em seus estudos sobre antropologia, ele tendia a olhar o exorcismo
como um resquício de superstição e ignorância do passado. Como todo
antropólogo bem doutrinado, ele podia traçar paralelos entre o exorcismo
católico romano e o esquema de ritos similares, desde a Africa até a
Oceania, passando pela Ásia.
“Não, Pe. David”, respondeu amigavelmente o pároco, quando David o
fez saber que, em sua opinião, o exorcismo e a possessão satânica
pertenciam ao mundo dos mitos e fábulas. “Não, Padre. Não é assim que as
coisas são. Os mitos nunca se fabricam. Eles nascem nas mais longínquas
gerações. Eles encarnam um instinto, um profundo sentimento de
comunidade. E as fábulas são produzidas como recipientes, moldadas pelos
homens deliberadamente para preservar as lições que aprenderam. Mas isto
– a possessão satânica, o exorcismo – bem!, venha e veja por você mesmo.
Seja como for, me ajude”.
Nesse exorcismo, David estava substituindo um jovem padre que ficara
doente no decorrer do rito. O exorcismo já tinha durado 30 horas. “Só mais
algumas horas, e será o fim”, disse-lhe o velho pároco antes de começar.
De fato, no momento em que David integrou o caso, o pior já havia
passado. Duas horas e meia depois, o pároco estava prestes a completar o
exorcismo e expelir o espírito maligno. Ele pediu a David que segurasse o
frasco de água benta e o crucifixo para ele.
Àquela altura, sem que se pudesse prever, o homem possesso enrijeceu e
gritou: “Se você os tirar dele, padre, nós não precisamos sair. Ele tem
inimigos demais. Nós não precisamos sair! Ele não os ajudou quando eles
pediram. Nós não sairemos! Nós não precisamos sair!”. E então uma risada
rouca e medonha irrompeu. O homem possesso apontou um dedo fino para
David. “Hah-hah! Tá queimado! E ele não rezou por eles... Padre do
desespero! Hah-hah!”.
Os nervos de David se retesaram. O pároco pegou ele mesmo o crucifixo
e o frasco de água benta e concluiu o exorcismo com sucesso. Após o
ocorrido, ele conversou brevemente com David. Ele acalmou o jovem, mas
acrescentou: “Você tem um problema. Eu não conheço a sua vida. Eu estou
certo de que Deus vai solucioná-lo, em casa, para você”.
Voltando a sua própria diocese, David teve uma conversa de coração
aberto com seu bispo, que comentou, sobre a mudança em David: ele não
era mais o confiante, por vezes arrogante e sempre inacessível intelectual
que o bispo havia conhecido; David estava agora questionando tudo e
buscando paz interior, trabalhando para resolver um conflito que ele não
conseguia verbalizar, mas que perceptivelmente o estorvava.
David continuou falando, contando ao bispo sobre o exorcismo de Paris e
sobre seu encontro com Teilhard, anos antes.
“Bem, você tem alguma dúvida séria quanto a sua ortodoxia enquanto
antropólogo?”, perguntou o bispo após algum tempo. “Ou melhor, talvez,
eu deveria colocar a questão em outros termos. Você sente que a
experiência do exorcismo abriu algo em você, alguma deficiência talvez, a
qual sua antropologia e seu intelectualismo só engessavam?”.
“Honestamente, eu não sei”, respondeu David. “Tem a morte do Velho
Edward. Por que eu levei suas últimas palavras tão a sério? Eu sei que elas
significaram algo pessoal para mim. Mas eu não sei exatamente o quê”.
“Olha, David”, disse o bispo finalmente, “eu vou colocá-lo em contato
com o Padre G., o exorcista da diocese. Ele tem trabalhado muito pouco,
graças a Deus, mas pode ajudá-lo de algum modo – ao menos até onde o
conflito com relação ao exorcismo pode ir”.
O Padre G. se mostrou um tipo de caráter alegre e jovial, cheio de tiradas
audaciosas e movimentos bruscos e rápidos. “Ok, Pe. David, ok”, foi seu
comentário sobre a história de David. “Você tem um problema. Eu não
tenho solução para os problemas exceto a ação. Eu não sou um intelectual.
Eu fui reprovado em todos os exames que eles me deram. Mas eles
precisavam de padres na diocese, então me deixaram passar. Eu posso dizer
uma Missa válida e batizar bebês, em todo caso, mesmo se o meu latim é
horrível. E sou um bom exorcista. Da próxima vez que tivermos um caso de
possessão, eu colocarei você na história. Só uma participação concreta no
assunto vai ajuda-lo”.
Fiel a sua palavra, o Padre G. tomou David como exorcista assistente em
dois casos de possessão no ano seguinte. Ambos foram relativamente
calmos; em todo caso, nada ligado pessoalmente a David ocorreu em
nenhum deles. David, contudo, passou por um contínuo processo de
mudança ao longo dos dois anos que se seguiram. Sua experiência com o
homem possesso em Paris e com os dois exorcismos em sua terra natal o
convencera de que, fosse lá o que estivesse em jogo na possessão e no
exorcismo, não se tratava de mito, fábula e nem de doença mental. Além
disso, ele tinha de continuar lutando para encontrar o sentido de sua história
pessoal. Ele continuou amarrando alguns fatos, tentando tirar deles algum
sentido.
Havia, antes de mais nada, a conversa com seu moribundo Tio Edward
sobre rezar por “eles” e o fato de eles irem “para casa”, e o fracasso do
próprio David em rezar por “eles”. Havia também a “esperança” de Teilhard
e suas palavras na página de rosto do livro. E, finalmente, havia as palavras
escarnecedoras do sujeito de cinqüenta anos em Paris. Exposto diante
daquilo tudo, ele nada conseguia entender, e lhe parecia haver muito pouca
relação entre todas aquelas coisas. Ainda assim David sentia seguramente
haver uma conexão, que ele desejava poder perceber...
Em algumas das férias passadas em casa, na fazenda, ele descia até o
cemitério no qual Edward estava enterrado. Sentava-se no quarto do velho
homem. Caminhava até aquele mesmo local que Edward e ele tão amiúde
visitavam, parando diante do “Velho Homem” da Fenda de Franconia. Uma
ou duas vezes após o jantar ele passeou por todo o pequeno bosque no
extremo oeste da casa, e pensou em Edward. Ele sempre se sentia calmo e
em paz naquele lugar, mas não conseguia entender por quê.
A mãe de David, que sempre fora muito próxima de seu filho e que
compreendia seus estados de espírito, disse-lhe brevemente, quando ele
partia para o seminário após uma dessas visitas à casa: “David, algumas
coisas levam tempo. Tempo. Só o tempo pode ajudar. Seja paciente. Com
você mesmo, quero dizer. E com aquilo que o está incomodando, seja lá o
que for. Lembre quantos anos Edward esperou até encontrar sua própria
paz”.
David ficou grato por essas palavras e se sentiu consolado. Era um tipo
de mensagem especial para ele. Mas, uma vez mais, havia algo de desolador
nela: o caráter consolador e “mensageiro” de suas palavras não conduzia a
nenhuma explicação racional. Assim como o efeito do bosque sobre ele, ou
o significado das últimas palavras de Edward, ou aquilo que o possesso de
Paris queria precisamente transmitir, ou então a estranheza que ele
descobrira em Teilhard. Aquele era um ponto que ele não entendia, e os
estudos acadêmicos pouco pareciam ajudar. Os significados de todos
aqueles incidentes pareciam fluir, não de seu intelecto, mas de alguma outra
fonte; eles eram estranhos ao seu conhecimento, ao seu aprendizado. E
aquilo o perturbava.
Seus alunos começaram a perceber que o tom da fala de David, e em
parte mesmo o conteúdo de suas aulas mudara. Ele continuava tão
implacável quanto antes em seus exames das doutrinas tradicionais à luz
das descobertas da ciência moderna, e não poupava de modo algum as
formas tradicionais de apresentação da doutrina da criação e do pecado
original.
Mas um novo elemento chamava a atenção. “Ossada” voltava seguidas
vezes aos dados da antropologia e paleontologia com frases que os alunos
nunca haviam ouvido sendo ditas por ele antes. “Na medida em que
mensuramos isso unicamente com nossas réguas e o raciocínio lógico, não
encontraremos nenhuma razão que justifique a esperança”, ele dizia. Ou:
“Além do olho do cientista e a sutileza do teólogo, nós também devemos ter
nosso olhar receptivo ao espírito”. Certa vez ele terminara uma aula sobre
cultos funerários na África dizendo, com efeito: “Mas mesmo que você
analise todos esses dados teologicamente e racionalmente, você deve ter
cuidado. Você pode fazer tudo isso de boa- -fé, e ainda assim deixar passar
desapercebido o único indício do espírito presente na situação”. Em alguns
momentos parecia haver uma nota de arrependimento no tom de sua voz.
Poucas pessoas, – e isso incluía seus alunos, que em geral conheciam
seus professores na intimidade – pouquíssimas eram as que sabiam que
naquele momento David fora nomeado exorcista da diocese. O Padre G. se
ferira gravemente num acidente automobilístico e não poderia nunca mais
andar.
Não foi levianamente que David aceitou seu novo cargo. Em sua
entrevista com o bispo, quando aceitou o cargo, ele tentou expressar ao seu
superior o curioso pressentimento que ele tinha. “Eu estou mudando”, disse
ele. “Quero dizer eu estou aos poucos chegando a uma compreensão
profunda, bem profunda mesmo, daquilo que eu me tornei ao longo dos
anos. Não é que eu tenha algum problema terrível. É, antes, como se eu
tivesse negligenciado algo vital e chegasse a hora de eu ter de encarar esse
algo. Os exorcismos têm o efeito de tornar essa necessidade mais aguda”,
disse ele ao bispo.
“Você, Pe. David, nunca deixará de ser útil à diocese”, foi o comentário
do bispo.
“Não. Claro que não. Digo, espero que não. Mas...”. David interrompeu e
desviou seu olhar do bispo. Ele tivera a vaga premonição. Se ao menos ele
pudesse colocá-la em palavras... “Pode ser, bispo, que ao cabo de alguns
anos...”. Ele parou novamente e olhou para a janela. Contemplou,
difusamente, as faces de duas escolhas que se erguiam. Entretanto elas não
faziam sentido para ele. Ele se virou e olhou para o bispo. “Pode ser que eu
entregue meu cargo de professor no seminário”.
“Corramos esse risco”, respondeu o bispo, afável e confiante.

Jonathan
Por três semanas em novembro de 1967, David teve dispensa do
seminário. Ele estava em Nova Iorque tratando do estranho caso de um de
seus próprios estudantes, Pe. Jonathan, nascido Yves L. em Manchester,
New Hampshire. À época de sua excomunhão da Igreja Católica Romana,
Yves havia mudado de nome. Ele era quatorze anos mais jovem do que Pe.
David. Assim como ele, viera de um lar abastado e, para efeitos práticos,
era filho único.
O pai de Yves, Romain, era católico, franco-canadense, originário de
Montreal e médico de profissão. Sua mãe, Sybil, uma convertida ao
catolicismo, era de ascendência sueca. Seu primeiro casamento, sem filhos,
havia terminado quando ela tinha 27 anos de idade, com o suicídio de seu
marido.
Sybil tinha mais de 40 e Romain tinha 55 anos de idade quando Yves
nasceu. Ele tinha um meio-irmão, Pierre, do casamento anterior de seu pai
no Canadá. A mãe de Pierre havia morrido ao dá-lo à luz. Quando Yves
nasceu, Pierre tinha 28 anos, era casado, já tinha filhos e vivia em Nova
Jersey.
Antes de seu primeiro casamento, Sybil havia ensinado numa escola
particular suíça. Ela havia sido educada na Universidade de Heidelberg,
Alemanha, e tinha doutorado em Filosofia. Ela emigrou ao Canadá com
seus pais no início dos anos 1930. A boa aparência de Yves obviamente
refletia sua ascendência sueca, e particularmente a beleza nórdica de sua
mãe.
Sua infância fora feliz. Amigos e conhecidos que conviveram com os três
durante muitos anos sempre lembram de quão unidos eles eram como
família, embora alguns tenham uma lembrança da casa como demasiado
adulta e intelectual para um garotinho. Particularmente por influência de
sua mãe, aos nove anos Yves lia vorazmente; e sete anos mais tarde, nos
exames de fim de ano, ele deixou seus avaliadores da escola estupefatos
com seu conhecimento de Inglês e literatura americana.
A mãe de Yves tinha uma personalidade ardente; sempre dava a
impressão de estar vivendo experiências profundas e sombrias em seu
interior. Como muitos convertidos, ela era mais católica que os próprios
católicos.
A religião de seu pai era de um tipo mais popular e instintivo. Sua
juventude se passara no nordeste do Canadá. Mais tarde, David descobriu
que as primeiras imagens guardadas pelo pai de Yves eram mais ou menos
como aquelas que o próprio David trazia consigo: uma natureza rude,
proporções descomunais entre o céu, as montanhas e as águas; forças
insuperáveis e freqüentemente cruéis na neve, na tempestade, no vento, e
num solo inóspito.
Os pais de Yves permaneceram sempre devotos um ao outro, mas a
expressão sexual desse amor se interrompeu quando Sybil passou por uma
histerectomia, após o nascimento de Yves. Ao que parece, ela foi tomada
por um profundo sentimento de insuficiência, de estar ferida em sua
feminilidade.
Romain, por outro lado, entrou numa crise religiosa aguda durante a
gravidez de sua mulher. Parcialmente por conta de a vida de sua esposa ter
corrido risco durante a gestação, e em parte devido a um fugaz affaire que
ele viveu naquele período, Romain desenvolveu um medo constante de que,
por conta dos pecados de seus anos passados e do caso durante a gravidez
de sua mulher, ele perderia sua fé, morreria como um infiel, e sofreria a
perda da vida eterna no Paraíso.
Yves nunca reparou nenhum sinal dessa agonia escrupulosa de seu pai, e
não percebeu senão muito mais tarde em sua vida que o amor marital de
seus pais se havia arrefecido muito cedo em sua infância. Ambos
manifestavam, exteriormente, um profundo amor em todos os sentidos.
Quando Yves chegou na adolescência, Sybil se havia tornado uma mulher
gentil, inteligente e saudável. Embora não mais se envolvesse com aquilo
que ela mesma chamava de mecanismos da sexualidade, ela tinha bastante
consciência de seu amor e sensualidade, era muito graciosa em sua vida,
criativa, mas pouco ambiciosa. Romain era um médico conhecido por sua
dedicação e habilidade, assim como seu senso de dever comunitário. Pai e
mãe tinham um pacto não escrito de companheirismo e cuidado íntimo um
para com o outro, o que criou um mundo próprio de grande confiança e de
uma paz imperturbável.
Em suma, a atmosfera na qual Yves crescera e na qual se sentia seguro
era a de um ambiente adulto permeado de valores que ele sentia
compreender muito bem. A vida em casa era inspirada por sentimentos que
ele percebia e reproduzia, mas que não expressavam, no fundo, seus
próprios gostos e inclinações pessoais. A vida com Sybil e Romain orbitava
em torna de coisas invisíveis que o imaturo Yves entendia por meio da
intuição, mas não era capaz de identificá-las. Havia uma integridade, um
estilo de viver gracioso. Havia força no amor e solidez no julgamento. Mas
o ponto de vista era estreito, demasiado estreito.
No seio daquela família os valores e laços pessoais de Yves – seus pais,
sua escola, seu ambiente paroquial, seus amigos – estavam solidamente
ancorados. Ele estudou em escolas da paróquia até os dezoito anos.
Olhando para trás, e até onde todos se lembram, não havia diferença entre
ele e os outros garotos de seu entorno. Ele era ótimo nos esportes e muito
bom dançarino; saía com garotas locais, e trabalhou duro num emprego
noturno, junto com um outro garoto, até terem dinheiro para comprarem um
carro usado.
Ele teve poucas rusgas sérias com as autoridades da escola. Nunca era
por uma questão de estudo – quanto a isso, ele era irrepreensível. Mas Yves
vez ou outra se dirigia a um professor, diante de toda a classe, de um modo
abusivo e com incontrolável raiva.
Ele sempre pedia perdão posteriormente, e seu arrependimento
claramente sincero, assim como seu sorriso conquistador, geralmente
surtiam efeito; as autoridades da escola o perdoavam com facilidade. É
provável, também, que o fato de ser o seu pai um cidadão respeitado
ajudasse na história, bem como o de sua mãe ser membro ativo da paróquia
– e, ainda, que Yves ganhava um prêmio estadual todos os anos por suas
redações de inglês, honrando portanto a escola. Ele tinha um jeito com as
palavras e um toque de poeta que ia além do comum. Isso o ajudava tanto
em seus estudos quanto em suas rusgas.
Aos dezesseis, Yves era um pintor amador, escrevia poemas para as
comemorações de eventos na escola e em casa, fora escolhido para ser o
orador na formatura de sua classe, e amava genuinamente a literatura. À
época em que ele completava dezessete anos, ele havia decidido se tornar
padre.
Uma última redação de escola, escrita por Yves ao final de seu último
ano, pode hoje ser lida como uma terrível predição. Num estudo precoce
sobre Shelley, Yves escreveu: “Mas com toda essa beleza, ninguém sabe o
que teria sido do poeta e do homem se ele tivesse vivido para além dos
trinta anos. Shelley foi pioneiro de um novo tipo de fervor religioso. Mas
isso pode ter sido – nós nunca saberemos – uma armadilha criada pelo Satã
de Jó ou o demônio de Dante”. Yves guardou essa redação consigo por
muitos anos, pois sentira que naquele escrito ele havia percebido algo de
muito profundo.
Ele devia sua decisão de tornar-se padre, em grande medida, à influência
de seus pais. O sacerdócio havia sido a primeira ambição na vida de seu pai;
e ele transmitira esse sonho frustrado ao seu filho – não como um
mandamento ou uma obrigação, mas como um ideal. Yves soube desde seus
sete anos que, aos olhos do pai, o sacerdócio era a melhor, mais elevada e
mais honrada profissão. Era isso que seu pai transmitia por seu olhar, suas
palavras e suas atitudes. A influência de sua mãe não era tão positiva. Era
mais como se, desprezando todas as outras ocupações como algo
secundário, ela enfatizasse o sacerdócio como o ideal e a meta.
O seminário em que Yves estudara era o mesmo em que, dois anos antes,
Pe. David havia sido contratado. Yves era um entre tantos outros
seminaristas e não chamou particularmente atenção da parte de David. Seus
estudos eram, como sempre, excelentes. Ele tinha uma ótima voz para o
canto; um porte admirável com as vestes cerimoniais – mais de um metro e
oitenta de altura, cabelos loiros, olhos azuis, com mãos ao mesmo tempo
masculinas e belas. Ele era marcado por uma graça cativante e uma simetria
de movimentos; e, acima de tudo, ele possuía um par de olhos que radiavam
uma espantosa luminosidade, e que tinham quase que um efeito hipnótico
sobre as pessoas ao seu redor.
Por todas essas razões, Yves era o ator ideal em todo manual do liturgista,
e o tipo para o qual todo “guia do sacerdote” fora escrito. Seu conhecimento
em inglês e seu bom estilo de escrita o ajudavam na prática dos sermões
que ele compunha e pronunciava no seminário.
Em vista desses talentos, seu interesse por arte e poesia foram
esquecidos. Na atmosfera de qualquer seminário durante os anos 1950,
havia sempre uma suspeita que pairava sobre qualquer um que se
interessasse em pintura ou literatura – especialmente poesia. O Catolicismo
Romano daquela época olhava para essas coisas como algo “perigoso”. A
Igreja sempre teve dificuldade em governar poetas e pintores; eles por vezes
eram profetas malquistos, e críticos constrangedores.
Mas Yves utilizava bem seus dons, e manteve-se dentro da mentalidade
do seminário. Ele era cuidadoso, sempre cuidadoso.
Um incidente durante os anos de seminário, de fato, perturbou as
autoridades por um breve instante. Foi em 1961. Como sempre acontece
com Yves, ele rapidamente superou o problema. A ocasião eram os exames
finais de teologia de Yves, orais, conduzidos por três de seus professores e
presidido por um quarto, que iria, se necessário, entrar em jogo para arbitrar
a disputa ou lançar um voto de Minerva quanto à atribuição dos diplomas.
Em geral, o moderador – como era chamado o quarto membro da banca
examinadora – não tomava parte nos exames, e usava o tempo para ler um
livro ou colocar a correspondência em dia.
Daquela vez o moderador era David. Num certo ponto do exame oral de
Yves, uma disputa acalorada foi travada entre um dos examinadores, Pe.
Herlihy, e ele. Pe. Herlihy o estava questionando sobre a natureza dos sete
sacramentos (batismo, crisma, casamento etc.), e ele parecia, aos olhos de
David, irritado. Mas foi Yves quem mais chamou a atenção de David – o
belo rosto, agora tenso e desfigurado, a boca amarrada numa careta
obstinada, a testa transpirando, os olhos esvaziados daquele habitual
encanto. A mudança, tão completa, tão rápida, assustou David e o
preocupou. Ele não podia ver aquela costumeira luz, mas tão somente um
ressentimento amargo nos olhos de Yves.
Yves finalmente conseguiu murmurar algo como uma resposta às
questões do Pe. Herlihy, e saiu correndo da sala de exame assim que o teste
acabou.
Preocupado, David acompanhou o Pe. Herlihy até o gabinete deste, para
discutir em maior detalhe aquilo que havia ocorrido entre Yves e ele.
Aparentemente, Yves havia insistido quanto a um ponto, de que os
sacramentos todos não eram mais do que expressões da unidade natural do
homem com o mundo ao seu redor. De acordo com a doutrina aceita, isso é
herético. Acredita-se que os sacramentos sejam meios supremos de união
com Deus. As palavras de Yves implicavam que, após sua morte, Jesus
voltou para a natureza; e que portanto os sacramentos eram o nosso modo
de sermos um com Jesus na terra, no céu, no mar, e com o universo inteiro.
Com sua costumeira atenção aos detalhes, David queria saber qual fora a
impressão exata do Pe. Herlihy quanto às palavras de Yves. “Foi essa a
parte engraçada”, respondeu o Pe. Herlihy – e David nunca esqueceu suas
palavras seguintes – “o que ele disse era somente insensato; mas foi o
peculiar sentido que ele me comunicou; eu parecia estar ouvindo algo que
não era propriamente humano – eu sei que isso soa tolo”.
Mais tarde, David teve profundos remorsos quanto à questão toda. Em
parte, ele se culpava a si mesmo: sentia que suas próprias aulas sobre a
criação e a origem do homem tinham algo a ver com a reação de Yves. Yves
poderia ter interpretado equivocadamente as doutrinas Teilhardianas
ensinadas por David. Separadas somente por uma linha frágil e tênue de
uma negação total da divindade de Jesus, os conceitos Teilhardianos eram
deliciosos joguetes mentais que podiam – e David o via com clareza pela
primeira vez – servir para exaltar o homem enquanto animal, transformando
seu mundo num zoológico encantado, reduzindo Jesus ao status de herói
cristão, tão nobre e tão lamentavelmente mortal quanto Prometeu na
mitologia grega, e retratando Deus como não mais que as entranhas mesmas
da terra, do céu e dos confins do espaço, com todas as suas galáxias em
expansão.
Aquele incidente continuou a perturbar David. O simples olhar de Yves
naquela conversa com o Pe. Herlihy transmitira uma espécie de selvageria e
ódio que David julgava desproporcionados, se comparados com o
comportamento normal do jovem. Uma quebra tão súbita e dramática nos
padrões de comportamento de Yves despertava uma suspeita instintiva em
David. Talvez fosse apenas um mau momento – e todo mundo passa por
isso. Mas se tal não fosse o caso, então aquele comportamento cativante e
apropriado que Yves geralmente demonstrava devia esconder algo mais,
alguma condição interna do espírito, uma inclinação de sua mente ainda
intocada por todo aquele treinamento do seminário.
O caso contudo parou por ali mesmo. O fim do ano escolar havia
chegado. Três semanas mais tarde, Yves, com onze outros colegas, era
ordenado sacerdote. David se programara para partir em férias na fazenda
da família, e então prosseguir à Cidade do México para uma conferência
internacional com antropólogos. O incidente ficava esquecido por ora.
Quando o verão acabou, Yves foi designado como assistente em uma
distante paróquia de Manchester. Ele estava próximo de sua terra natal e a
um pulo da casa de seus pais. Para a mãe de Yves a nova atribuição era
providencial. Há pouco naquele mesmo ano, o pai de Yves, Romain,
morrera subitamente de um ataque cardíaco. Ela teria ficado bastante
solitária se Yves não tivesse se instalado em Manchester.
As memórias de Yves quanto ao período que se estende de setembro de
1960 a janeiro de 1967 são claras e cheias de detalhes. Suas recordações de
1967 são incompletas mas ainda úteis à reconstrução do ocorrido. De abril
de 1968, quando David fez uma primeira tentativa de exorcismo, até março
de 1970, quando ele o concluiu, a memória de Yves tem grandes lacunas.
Mas suas reminiscências, as notas e lembranças de David, unidas à
transcrição do exorcismo contribuem enormemente para que dele se crie
uma imagem completa, uma fotomontagem de como a possessão satânica se
iniciou num indivíduo, ganhou terreno, progrediu continuamente até possuí-
lo por completo.
A possessão pelo espírito maligno ocorre em meio à estrutura da vida
cotidiana. No caso de Yves, ela se vale da estrutura de sua vida de
sacerdócio, manifestando-se antes de tudo no modo como ele administrava
o sacramento do casamento, a seguir no modo como ele celebrava a Missa,
e finalmente em todas as suas atividades sacerdotais.
No sacramento da ordenação, é o homem inteiro que é “sacerdocizado”.
Não é que ele simplesmente recebe uma função extra. Ele não é meramente
dotado de uma nova faculdade ou provido de uma rara permissão. É, antes,
uma nova dimensão de seu espírito, que necessariamente afeta tudo aquilo
que ele faz, corporal e mentalmente. Qualquer deformação dessa dimensão
pela introdução de um elemento antipático ou completamente estranho
implica em problemas. A dimensão do sacerdócio não pode ser removida
ou substituída; ela pode ser degredada, negligenciada, distorcida.
Yves assumiu suas funções na paróquia de St. Declan com aparente
gosto. O trabalho não era excessivo. Ele tinha muito tempo para suas
próprias ocupações. A paróquia fazia fronteira com a zona rural; por uma
das janelas de seu gabinete ele tinha vista para o sudeste, e por outra do
oeste. Ele logo se tornou popular como pregador na paróquia, como
conselheiro de seus jovens membros, e como visitante bem-vindo na casa
de seus paroquianos. Em nenhum momento se colocou qualquer questão
quanto a sua probidade; ele não tinha nenhum desejo de acumular bens; só
raramente bebia; e aqueles que o conheciam sempre afirmaram que nunca
houve o mais mínimo desvio em seu voto de castidade. “Um grande jovem
padre” eram o juízo e a impressão gerais.
Quando, após alguns meses, Yves havia estabelecido uma rotina diária e
encontrado qual era a quantidade de tempo necessária para suas funções
oficiais como assistente, ele começou novamente a cultivar seus dois
principais hobbies: pintura e literatura inglesa. Certa vez ele fez uma
viagem a Nova Iorque para falar com um editor sobre um estudo do poeta
Gerard Manly Hopkins, e voltou para casa todo entusiasmado com o
projeto.
Foi por volta do final de 1961, pouco mais de um ano após sua chegada
em St. Declan, que os primeiros indícios de mudança começaram a
aparecer.
Yves realizava, em média, de três a cinco cerimônias de casamento todo
mês. Ele parecia adicionar uma especial nota de solenidade, alegria e
celebração por sua própria presença. Seus sermões nessas ocasiões eram
proferidos maravilhosamente. E todos ficavam entusiasmados em ver
aquele jovem padre, belo e gracioso, celebrando o amor de recém- -casados
dentro dos limites da santidade da Igreja, da pureza de Deus e da majestade
de Jesus. Pois esses eram os temas sobre os quais Yves pregava seguidas
vezes, em tons melodiosos e numa linguagem poética.
Conforme o tempo foi passando, contudo, Yves foi ficando cada vez mais
insatisfeito com o cerimonial de casamento tal como prescrito no Ritual
Romano, o guia oficial que contém instruções detalhadas sobre como os
padres devem celebrar os diversos sacramentos. Ele sentia que as palavras e
gestos designados aos padres para a realização da cerimônia do casamento
não estavam apenas fora de moda, mas que não transmitiam o que os
homens e mulheres modernos pensavam e sentiam quanto ao casamento.
Acima de tudo, Yves considerava as palavras mesmas dos votos de
casamento cada vez mais repulsivas e irrelevantes. Lá estava ele, diante de
dois jovens prestes a embarcar em uma maravilhosa união e vida juntos; e,
como representante oficial da Igreja, tudo o que ele podia lhes recomendar,
em nome de Deus e da religião, era que eles “aguentassem firme”, para
ficarem juntos não importa o que acontecesse, até que eles partissem com a
morte. Era isso, precisamente, que os parceiros de casamento prometiam
um ao outro? Ele se perguntava.
De início, ele não fez mudanças nas palavras dos verdadeiros votos. Mas
em seu sermão, a cada casamento, ele começou a sublinhar aquilo que os
parceiros de casamento de fato prometiam um ao outro.
Nos primeiros sermões ele insistia quanto a que os parceiros estavam
dando um ao outro aquilo que Jesus deu a sua Igreja. Jesus era o supremo
modelo. Então, conforme pôde desenvolver o tema, ele começou a falar
mais explicitamente sobre o que foi que Jesus dera a sua Igreja.
Agora conscientemente, Yves estava se baseando naquilo que ouvira do
Padre “Ossada” no seminário, e aquilo que ele pensara por meio de suas
próprias leituras das doutrinas Teilhardianas. Misturado com tudo o que ele
dizia, havia linhas de poesia sobre Jesus, as quais ele aplicava ao noivo e à
noiva.
Nesses sermões, Jesus era descrito por Yves como o ápice do
desenvolvimento humano, o grande Ponto Ômega, que tornara toda a
natureza bela, inclusive os corpos e o amor daqueles que se casam. Jesus
estava tão empenhado em aperfeiçoar o mundo material que evoluiu ao
ápice da perfeição deste mundo. Do mesmo modo total como Jesus deu-se a
este mundo humano, a ponto de morrer como um elemento vivo entre
outros, assim também os parceiros do casamento deveriam, segundo Yves,
adaptar-se a este mundo. Eles encontrariam a perfeição primeiramente uns
nos outros, depois nas pessoas ao redor, e então na natureza, na vida, e
finalmente em suas mortes.
Tudo isso estava, é claro, distante do ensinamento normal da Igreja de
Yves, de acordo com o qual Jesus não dependia do mundo material de
forma alguma, e o casamento era um sacramento que permitia aos parceiros
viver suas vidas com graça sobrenatural e alcançar a vida eterna no céu
após a morte.
Mas a mudança nas crenças de Yves não foi a coisa mais estranha ou
dramática nesse primeiro “estágio enigmático” de sua possessão. O que é
relevante e impressionante é que Yves constantemente via que esses
pensamentos e palavras “vinham” até ele. Por vezes, tendo falado à
assembléia na igreja, ele despertava para o fato de que havia dito isso ou
pensado aquilo sem tê-lo querido, ou mesmo sem estar consciente do que
havia feito. Não era como se sua mente tivesse divagado. Era como uma
espécie de “controle remoto”.
De fato, a primeira noção clara que Yves teve quanto àquilo que
acontecia em seu interior não veio por parte de seus colegas clérigos na
reitoria, ou pela objeção de alguns paroquianos quanto a suas idéias e
expressões. Eles o fizeram, mas isso em si não incomodou muito Yves. Ele
ainda contava com seu charme e habilidade com as palavras para tirá-lo de
quaisquer dificuldades.
Era aquele “controle remoto” que crescia nele, até se tornar senhor de sua
vida – esse era o primeiro sinal de que havia algo estranho com ele. Isso se
lhe tornou aparente, em primeiro lugar, nas suas horas livres.
Em seu tempo fora da igreja e de suas atribuições paroquiais, Yves
encarava a pintura e a poesia como qualquer outro artista. Ele esperava estar
no clima para a pintura ou a escrita. Ele tinha algumas idéias de cor, linhas,
formas ou dimensões no espaço. As idéias ardiam em sua imaginação e na
sua sensibilidade por algum tempo. Ele se sentava para pintar, por exemplo,
ainda ardendo por dentro em imagens, fantasias, vôos da imaginação por
paisagens projetadas em seu interior.
Ao fazer os rascunhos iniciais na tela ou no papel, motivado por uma
atividade da imaginação nada incomum, ele experimentava, normalmente,
uma percepção interna especial, que lhe causava sempre prazer. Era, diz
Yves, sua mente e vontade se encontrando e apreciando os frutos de sua
imaginação. E ele então derramava as formas recém esculpidas, em sua
imaginação, daquilo que originalmente havia entrado por seus sentidos.
Eram essas formas que ele tentava retratar na tela ou expressar em sua
poesia. Mas mesmo quando pintava ou escrevia, Yves sentia a memória das
coisas passadas se reavivar, iluminando-se como um painel, derramando
assonâncias e sombreamentos em sua imaginação. E ele via, ao tentar
reproduzir as novas formas apreendidas nessas experiências, seu trabalho se
expandir e enriquecer.
Foi essa rotina criativa bastante corriqueira que começou a tomar um viés
peculiar; e ela sempre estava intimamente relacionada com algum problema
externo ou dificuldade que Yves tinha enquanto padre.
A situação mais significativa de que ele se lembra com clareza decorreu
de uma experiência desagradável com o assistente principal de sua
paróquia. No final de setembro de 1962, ele havia pregado num casamento.
Após a cerimônia, o assistente da paróquia, que estivera presente na
cerimônia, admoestou Yves quanto a seu sermão. “Você está fazendo do
casamento algo de puramente humano”, ele argumentou. “É um
sacramento, um canal de graça sobrenatural. O Senhor Jesus não irá evoluir
a partir da terra, nem do corpo de uma mulher e nem dos gases da
atmosfera”.
A reprimenda era potencialmente séria, mas Yves conseguiu
desconversar; o assistente era firme, mas, assim como todo mundo, gostava
de Yves. De sua parte, Yves não queria causar problemas; gostava muito de
seu cargo. Mas, mais tarde, ele sentiu uma profunda onda de ressentimento
quanto ao caso todo.
O dia seguinte era de sua folga no meio da semana. De manhã, enquanto
ele pintava, o incidente permanecia na primeira linha de seus pensamentos.
Mas havia também uma peculiaridade, quanto a qual ele foi rápido no
perceber mas incapaz no prevenir: Yves sentiu que havia duas partes dele,
ou duas funções operando ao mesmo tempo nele, cada uma delas
trabalhando em direções diferentes.
Ele seguiu pintando, segurando o pincel, escolhendo as cores,
mergulhando-o, pintando, recuando e voltando ao seu cavalete, e
continuando a pintar. O tempo todo, o mecanismo normal de seu homem
interior estava em funcionamento – imaginação, memória, mente, vontade.
Mas o tempo todo, também, um outro processo, paralelo, estava
ocorrendo. Sua imaginação estava recebendo dados – imagens, impressões
formas – vindos de alguma outra fonte que não o mundo exterior. Ele sabia
disso por conta de elas não se parecerem com nada que ele jamais vira,
ouvira ou pensara. E, além disso, parecia-lhe que essas imagens não eram
assimiladas por sua mente e vontade. Elas pareciam antes paralisar sua
mente e vontade, congelá-las para que pouco a pouco elas adormecessem.
Toda uma idéia – ele não podia nem mesmo captar seus contornos ou
detalhes -estava sendo “enfiada” em sua mente, e sua vontade estava sendo
forçada a aceitá-la.
Ele resistiu à “pressão” da idéia; mas ela acabou por invadi-lo por meio
de sua imaginação. E enfim, até onde Yves consegue rememorar, ele se
rendeu. E então aquela idéia grosseiramente estranha inundou sua
imaginação por completo, razão, lógica... tudo se viu vestido com novas
imagens. Sua mente até mesmo fornecia palavras para essas imagens e, por
vezes, ele de fato se via a si mesmo pronunciando essas palavras em frases
completas.
Após cerca de uma hora, na primeira ocasião mais vívida e bizarra desse
tipo, Yves descobriu, chocado, que ele agora estava pintando de um modo
completamente estranho se comparado ao seu modo normal. Sua tela havia
se transformado numa mixórdia sobreposta às pinceladas iniciais, nas quais
ele tinha a intenção de retratar uma cena urbana. Por cima dela havia agora
uma colcha de retalhos com outras formas e contornos – árvores sombrias,
rios, formas irregulares com pernas, quadrados com orelhas, círculos que
terminavam em algarismos.
Quando ele resistia a esse “impulso” interno de idéias vindas daquela
fonte desconhecida, sua pintura seguia o curso normal. Mas quando ele se
rendia, a mixórdia toda começava novamente. Ele parecia ter se tornado um
meio de traduzir, em imagens, alguma mensagem, instrução ou
pensamentos transmitidos à força, e não por sua própria escolha.
Yves se sentiu só e vulnerável. Estava bastante perturbado. Num impulso
ele decidiu partir para ver alguns amigos no campo. Mas não houve trégua.
Ao longo do caminho, ele percebeu que não conseguia mais se concentrar
na direção, de tão intensa e perturbadora que era a força de tudo aquilo que
o invadia. Ele teve de parar o carro no acostamento. Sentou-se e tentou
manter sua mente e vontade livres de todas aquelas imagens e formas que
lhe eram marteladas, vindas de alguma fonte que ele não conseguia
identificar
Mas ao intensificar o combate, um outro elemento veio à tona: seu
ressentimento quanto à discussão do dia anterior com o assistente superior.
Quando Yves se rendia à “pressão” da idéia que era “enfiada” em sua
mente, lhe chegava um tipo peculiar de satisfação no ressentimento.
Quando Yves resistia, o ressentimento permanecia ali, latente, e o
machucava. Nos breves intervalos entre esses ciclos internos, a mente de
Yves repousava em coisas que ele havia dito durante o sermão, e levava
suas idéias ainda mais longe. Ele encontrava intensa satisfação nisso.
Finalmente, ao parar no acostamento, tendo esquecido o plano de visitar
seus amigos, ele se viu a si mesmo rendendo-se voluntariamente à
“pressão” daquela idéia. E no momento em que ele se rendeu, sentiu
imediatamente um alívio de uma pressão interna e uma profunda convicção
de que seu ressentimento contra o assistente superior era justificado: Yves
estivera certo o tempo todo. Ele sabia o que estava acontecendo. Além
disso, ele viu sua imaginação e seus sentimentos uma vez mais repletos de
uma poderosa inspiração, a qual ele saberia verter em seus sermões,
pinturas, em sua poesia.
Yves aponta para essa experiência como o momento em que o “controle
remoto” tornou-se um elemento constante em sua vida, porque naquele
momento ele o aceitou deliberadamente. Era, por assim dizer, a
“consagração da possessão de Yves”.
Tendo aceitado-a voluntariamente – e ele insiste, hoje, no fato de que ele
sabia estar aceitando um tipo de controle “remoto” ou “externo” – Yves foi
subitamente arrebatado. Ele ainda não havia saído de seu carro. Tudo o que
havia ao seu redor era a calma paisagem do campo. Mas cada um de seus
sentidos – visão, audição, paladar, olfato, tato – era saturado por uma
miscelânea conflitante de experiências. Uma confusão de sons, cores,
odores, sabores, sensações táteis correram por ele. Ele podia perceber uma
certa pulsação ritmada em meio àquela confusão e aquele barulho. Mas ele
não tinha controle sobre aquelas percepções, nem podia removê-las por si
só. Entrementes, ele sentia um certo temor reverencial, um orgulho velado.
A tempestade em seus sentidos então se reuniu em algum lugar dentro dele,
absorvendo completamente sua imaginação e memória. Ele agora sentia
como se pensamentos tortuosos estivessem tocando os mais profundos
recônditos de sua mente, e que finas eras se enroscavam sobre cada fibra de
sua vontade.
Lentamente ele voltou a estar consciente do mundo ao seu redor. O
ocorrido durara apenas uns poucos momentos, mas naqueles poucos
instantes ele esteve totalmente absorto, emparedado dentro de si.
O som, a luz e as formas voltaram então a fluir pela reixa de seus
sentidos, fazendo dele um observador renovado do mundo. Ele ouvia
novamente os pássaros cantarem; sentia a luz do sol novamente em seu
rosto. O frescor do vento e o cheiro da grama úmida e das flores tornaram-
se vívidos. Mas, agora, cada fresta de suas sensações estava repleta de uma
presença sinuosa, serpenteando lentamente para tomar posse, e desfrutando
indolentemente da conquista de cada espaço restante nos recantos sombrios
de seu ser.
Por um breve instante, houve algum eco de resistência nele. Uma voz
antiga protestou num tom abafado mas depois cessou. Yves “deixou
acontecer”, e toda a tensão cedeu. Ele estava em paz pela primeira vez em
muitos anos, sentia-se renovado. Houve, subitamente, um relaxamento em
seu corpo, e uma calma que lhe investiu de uma sensação de poder inundou
seus pensamentos.
Ele nunca teve tanta consciência do fato de estar sendo “visitado”. E cada
imagem que já tivera daqueles que haviam sido “visitados” por “outra
pessoa” saltaram de dentro de sua memória: Moisés na sarça ardente; Isaías
avistando os serafins com brasas nas mãos no templo de Javé; a Virgem
Maria em Nazaré curvando-se diante de Gabriel, mensageiro; Jesus
transfigurado junto de Moisés e Elias no Monte Tabor e conversando com
Deus; São João em sua caverna em Patmos contemplando o Cordeiro
Místico em toda sua glória; Constantino excitado com a visão da Cruz sobre
as nuvens; Joana d’Arc na cela da prisão ouvindo suas “vozes”, aos prantos
e com profundas dores; João da Cruz na cela da prisão passando pela noite
escura da alma e abraçando o Amado; Teilhard manejando os ossos do
Sinanthropos e vendo Jesus, o Ponto Ômega, prefigurado ali naquelas
patéticas peças. Yves teve um claro sentimento de estar destinado, como
todos aqueles outros estiveram, a uma revelação especial.
Tudo isso irrompeu nele e se desfez assim que ele ergueu seus olhos,
vendo novamente o campo, as árvores, o céu. Tudo agora se movia numa
visão nova, animada por uma vida que ele já sonhara, mas nunca vira. Ele
agora sabia que era tudo um sacramento, uma grande linha de sacramentos
dispostos em conjunto como um amável colar em torno do mundo do
homem. E sua mente, sua vontade e seus sentidos estavam permeados com
um estranho e novo incenso que o consagrava ao sacerdócio de um novo ser
– como nenhuma mão de nenhum bispo jamais poderia fazer. Ele sabia:
aquilo sempre estivera tão próximo dele e, ainda assim, tão distante. “Tarde
te amei, ó beleza tão antiga e tão nova!”, ele murmurou o discreto lamento
de Santo Agostinho.
Havia um certo temor em toda aquela novidade, humildade por não havê-
la conhecido antes. E, sobretudo, um entusiasmo embebido em paixão. A
presença sinuosa se agitou dentro dele; e ele começou a devanear.
“Ei, padre! Algum problema?”. O grito assustou Yves. Era um guarda
local que havia encostado ao seu lado com o carro de patrulha. Yves
sacudiu a cabeça, irritado por ter sido interrompido, seus olhos em chamas.
Mas o simpático sorriso do guarda o tranquilizou. Eles se conheciam. “Só
estou passando uns momentos em paz, aqui, Pat”, disse, recuperando-se e
apanhando a chave no contato. “Minhas saudações carinhosas para Jane e
as crianças”.
Acenando com a mão, ele continuou seu caminho para encontrar com os
amigos.
Dali em diante, Yves tornou-se extremamente cuidadoso. Era como se
tivesse adotado uma postura defensiva. Ele sabia, por uma sinistra intuição,
quando é que algum problema o aguardava. Por vezes ele era alertado sobre
uma pessoa em particular. “Alguém” contava para ele. Noutras vezes o
aviso dizia respeito a atividades: um pedido para celebrar um casamento,
para realizar uma confissão, um convite para jantar na casa de um
paroquiano ou com seus amigos padres; poderia também ser um livro ou
artigo numa revista ou uma carta. O aviso era silencioso, mas claro e
preciso: “Evite isso!” ou “Não faça isso!” ou “Não se encontre com eles!”.
Exceto por um rompante ocasional num sermão, seus colegas não
encontravam razões para criar caso sobre suas idéias.
Mas quando ele falava em privado com os paroquianos, com um casal de
noivos prestes a se casar, por exemplo, era diferente. Aí então ele explicava
sua união muito poeticamente, demorando com insistência no caráter
particularmente terreno de Jesus. Os fiéis sempre partiam completamente
encantados com seus aconselhamentos.
O próprio Yves explica com clareza, hoje, como foi que o propósito
mesmo do casamento, seu sentido e sua razão enquanto sacramento haviam
mudado para ele. O matrimônio havia se tornado, aos seus olhos, um
sacramento da natureza. Ele havia perdido sua dimensão enquanto canal de
graça sobrenatural, exatamente como o assistente principal da paróquia
havia prevenido. Era algo que unia as pessoas com o universo natural. E
isso implicava em alguns profundos estragos na fé do próprio Yves.
Conforme o tempo passou, e Yves introduziu esse mesmo elemento
obscuro nos outros sacramentos, sua própria condição foi se tornando muito
mais extrema; e ele próprio começou a sentir mais claramente o sentido de
seu comprometimento voluntário com uma força que ele agora não poderia
controlar. O momento para uma possível resistência já havia passado.
Em 1963, a situação de Yves tornou-se crítica. A celebração da Missa era
o melhor exemplo. Os acólitos e o povo começaram a ver que ele levava
mais tempo para celebrar. Coisa peculiar, era somente uma parte da Missa
que consumia o tempo adicional: a seção mais solene, precedendo
imediatamente a consagração que começa quando o padre estende suas
mãos, palmas para baixo, dedos unidos, sobre o cálice e o pão. A cerimônia
exige um completo silêncio, quebrado apenas pelo tilintar do sino da Missa.
Yves permanecia então por um período demasiadamente longo, com suas
mãos esgarçadas – de início apenas três minutos, então dez, quinze, certa
vez trinta sofríveis minutos a mais, com a assembléia e os acólitos a olhar e
a esperar. E então mais um enorme tempo para finalizar, com as palavras da
consagração propriamente. Num ritmo normal, todas essas ações da
cerimônia não tomam mais do que três a cinco minutos.
Seus colegas pensavam que ele estava passando por um período
“místico”, ou sofrendo de “escrúpulos religiosos”, que levava a sério
demais cada prescrição oficial para as ações e palavras da Missa. Alguns
padres passam por uma fase assim; eles sabem que qualquer desvio pode
resultar num pecado venial ou mortal. Por isso sofrem com um rigor
torturante, para ter certeza de que observam todas as regras; eles voltam
seguidas vezes, repetindo as ações e palavras, para estarem seguros de que
fazem tudo corretamente, conscientemente.
Mas Yves nem era um místico e nem tampouco estava paralisado pelos
escrúpulos religiosos. Estava, sim, passando por aquilo que ele hoje
descreve como as mais sofríveis torturas em seu ser interior. Segundo seu
relato, tudo começou quando, certo dia, com as mãos esgarçadas sobre o
cálice e o pão, até o momento seguinte à consagração, o “controle remoto”
foi alterado em força e na sua “mensagem”.
“Eu briguei por cada milímetro”, Yves relata hoje, “e perdi cada
milímetro dessa briga”.
Ao invés das palavras oficialmente prescritas para a Missa e os conceitos
expressos nessas palavras, Yves agora encontrara diferentes conceitos e
palavras diferentes. Eram sempre e tão somente palavras-chave que eram
alteradas. Toda vez, por exemplo, que a palavra “salvação” ou “salvando”
era prescrita no ritual, ele só conseguia pensar e dizer “triunfo” e
“vencendo”. “Salvando” e “salvação” lhe pareciam ser palavras rabiscadas
em pedaços de papel picado, e pregados num muro fora de seu alcance.
Chegar até elas e ver-se impotente era fonte de intensa agonia e dor
lancinante.
A coisa se dava de modo similar com “amor” (que agora se tornara
“orgulho”), “morreu” e “morte” (agora “voltou para a casa na morte” e
“nada”), “sacrifício” (“desafio”), “pecados” (agora “mitos e fábulas”),
“pão” e “vinho” (agora “desejo” e “prazer”). E assim por diante.
Uma agonia suplementar se dava sempre que um sinal da cruz era
solicitado pelo ritual, momento em que Yves só conseguia mover o
indicador de sua mão direita, e só conseguia traçar uma linha vertical de
baixo para cima.
Ao longo desse processo, sua memória e reflexos o impeliam a agir de
acordo com o ritual. As palavras e pensamentos substitutos brotavam nele.
Ele reconhecia imediatamente que o sentido e intenção da cerimônia como
um todo era alterado profundamente por aquelas novas palavras e
pensamentos. Ele lutava com sua mente e sua vontade para conservar o
ritual. Mas era sempre a mesma coisa: enquanto ele lutava, um nódulo
parecia se expandir dentro dele – não em seu corpo, não em seu cérebro,
mas em sua consciência. “Era como lembrar do pesadelo da noite passada, e
reconhecer que foi aquela realidade que lhe causara medo”. Conforme o
nódulo se expandia, ele começava a reduzir de um modo sinistro a área de
seu próprio eu.
Chegando ao limite excruciante dessa dor interna, Yves começou a sentir
um ricochete físico e psicológico: a pressão do sangue se fazia notar em
seus ouvidos, e dores peculiares começaram a se manifestar – seus cabelos,
cílios e unhas do pé doíam insuportavelmente. Imagens caleidoscópicas de
sua vida inteira corriam diante de sua mente, sempre fazendo-o parecer
ridículo, desprezível, podre, um caso perdido. Ele podia ouvir-se a si
mesmo começando a formar um grito, o qual, se tivesse emergido, teria
sido: “Eu estou me afogando! Estou perecendo! Salvem-me!”.
O grito nunca emergiu. Yves parou de lutar. Toda agonia cessou. E uma
maravilhosa alegria – não sem alívio a ela misturado – o inundou. A
calmaria era quase dolorida, tamanho o contraste com a dor que a
precedera.
Veio a agonia final um dia, quando ele começava a pronunciar as
palavras da consagração. Ao invés de “Isto é o meu corpo” e “Este é o
cálice do meu sangue”, outras palavras ecoavam em sua própria voz: “Isto é
o meu túmulo” e “Esta é minha sexualidade”. Ao pronunciar essas palavras
inclinando-se sobre o altar tal como prescrito pelo ritual, toda intenção
autêntica de consagração o deixara. Seu indicador se curvou na forma de
um gancho, mergulhou-se a si próprio no vinho, e esboçou uma mancha
vermelha verticalmente sobre a hóstia branca.
Naquele momento, Yves não conseguia se recompor. Seus ouvidos eram
ocupados por dois sons diferentes. Ele tinha certeza de estar ouvindo-os de
fato: uma risada escarnecedora que ecoava, ecoava, ecoava... e um débil
lamento, uma lamúria muda, ou um choro de protesto que acabou por se
dissipar nas reverberações daquele riso odioso. Então, como se vindo do
“controle remoto”, ele ouviu a frase: “Jesus agora é Jonathan”, e “Jonathan
é agora Yves”, e “Yves é agora Jonathan e Jesus”. E, finalmente, “Tudo está
reunido no Sr. Natura”.
Fazia pouco tempo que Yves percebera que somente ele ouvia todas
aquelas profanações. Mas, que eles ouvissem aquelas palavras ou não, era a
aparência de Yves, após esses sofríveis e extensos momentos de batalha
interior, que chocava o povo a observá-lo. Quando ele se voltava,
finalmente, para distribuir a comunhão, seu rosto ficava terrivelmente tenso,
desfigurado, da cor de um giz. Seu cabelo, curto à época, parecia estar de
pé. Seus olhos, geralmente tão claros e cativantes, se reduziram a estreitas
fendas, e ele murmurava por entre dentes cerrados. A impressão que aquilo
tudo transmitia era forte e mórbida.
Ele concluiu a Missa num violento estado de tensão interna. Somente
algum tempo depois, sozinho, é que ele era novamente inundado com
aquela estranha paz e exaltação. Finalmente, quando ele se viu sozinho no
vestiário, ele voltou a sorrir, recomposto, com o mesmo aspecto que ele
sempre tivera.
A sua submissão ao “controle” durante a Missa havia efeito imediatos e
outros que iam muito além do que se poderia imaginar. Ao batizar crianças,
ele mudava as palavras latinas, as quais eram ininteligíveis aos pais e
testemunhas. Quando ele devia dizer, “Eu o batizo em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo” ele dizia “eu o batizo em nome de céu, da terra e
da água”.
Mas a mudança mais fundamental de sua performance, tanto no batismo
quanto nos outros sacramentos (extrema unção, confissão) foi a alteração
daquelas partes em que se falava de “Satã”, “Demônio” ou “espíritos
malignos”.
No batismo, ao invés de dizer (em latim), “Parte, espírito impuro” ou
“Renunciar Satã e todas as suas obras”, ou “Tornar-se um filho de Deus”,
ele agora diz “Parte, espírito de ódio do Anjo da Luz” e “Renunciar todo
exílio do Príncipe Lúcifer”, e “Tornar-se um membro do Reino”.
Em confissão, ele parara de dizer, “Eu te absolvo dos teus pecados em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”; ao invés disso, ele dizia, “eu te
confirmo em teus desejos naturais, em nome do Céu, Terra e Água”. E
quando ele administrava o sacramento dos enfermos (“extrema unção”
como era chamado antigamente), ele confiava a pessoa moribunda à
misericórdia e paz da “Irmã Terra” e à eternidade da “Mãe Natureza”.
Sempre que ele sentia uma repulsa inicial em aceitar aquilo que lhe era
“ditado” pelo “controle remoto”, aquele assustador nódulo crescia
sensivelmente, e Yves era pura dor. Ele logo obedecia, e era recompensado
sempre com uma exultação selvagem. O sol brilhava mais forte. O azul do
céu era mais intenso. O café que bebia ficava gostoso como nunca. O
sangue corria vigorosamente em suas veias. E ele sentia sua cabeça
esclarecida de um modo inédito.
Ao final de 1964, tornou-se óbvio para seus colegas que havia algo
errado com Yves, algo que eles não conseguiam explicar somente por seu
temperamento de artista, sua ascendência franco-sueco-canadense, um
período místico de sua vida ou escrúpulos religiosos. Tudo era demasiado
peculiar. Aquilo causava medo em algumas pessoas. Repelia outras. E
enfurecia algumas outras. Todos ficaram com a impressão de que havia algo
completamente estranho em Yves. E, para completar, ele começara a referir-
se a si mesmo como “Padre Jonathan”.
Mas eram sempre coisa isoladas, e ninguém nunca as colocara juntas
num padrão definido. Quando ele se virava durante a Missa (como o padre
costumava fazer quatro ou cinco vezes) para dizer “Dominus vobiscum” (“o
Senhor esteja convosco”), um de seus colegas jura ter ouvido Yves dizer
“Dominus Lucis vobiscum” (“o senhor da luz esteja convosco”). Outros não
ouviram essa palavra acrescentada, mas a mera luz débil de seus olhos
causou-lhes um choque momentâneo. Certa vez, ao tocar a testa de um bebê
que ele batizava, a criança teve um violento ataque de histeria e precisou ser
levado às pressas ao hospital para ser tratado.
Todos esses incidentes, tomados individualmente, eram passíveis de uma
explicação perfeitamente racional. Mas sua visita a um garoto que morria
de um câncer nos ossos foi o incidente final, que conduziu finalmente a sua
destituição do cargo.
O caso aconteceu no final de 1966. O garoto, filho de imigrantes
irlandeses, ruivo, com 14 anos, devia receber a unção: a morte era certa e
iminente. Antes do Pe. Yves chegar, o garoto pedira a sua mãe que lavasse
seu rosto e mãos, e que o ajudasse a colocar sua camisa e gravata favoritas.
Ele também pediu a seu pai para virar sua cama em direção à porta, pois,
disse ele, havia um negócio negro no canto da sala.
Quando Yves chegou, tudo se passou normalmente até que o padre tentou
endireitar a cama, fazendo com que o garoto encarasse novamente o canto
“negro”. O garoto começou a gritar: “Não! Padre! Não! Por favor! Mãe!”.
Quando sua mãe chegou e Yves, tendo endireitado a cama, voltou-se àquele
canto em particular, o garoto começou a chorar incontrolavelmente.
Yves não se lembra de tudo o que o garoto disse, mas se recorda, de fato,
de algumas palavras e frases: “escuridão”, “eles estão sorrindo um para o
outro”, “ele odeia Jesus”, “me salvem”, “eu não quero ir com eles”.
Finalmente o pai do garoto solicitou, constrangido, que Yves deixasse o
local e voltasse no dia seguinte. Mas sua mãe telefonou ao superior de Yves,
o reitor da paróquia. O pároco chegou uma hora mais tarde, ungiu o garoto,
e esperou pelo fim, o qual chegou rapidamente.
Aquele incidente fora a gota d’água. E agora tudo o que se sabia e
observara sobre Yves ao longo dos últimos três anos fora reunido.
O pároco e seu assistente superior nada disseram para Yves, mas
passaram cerca de três meses reunindo informação e o observando de perto.
Somando-se às peculiaridades já mencionadas, eles receberam um relato
desconcertante de tão estapafúrdio. Um homem cuja descrição correspondia
a Yves passava períodos num loft em Greenwich Village, Nova Iorque. Suas
aparições por lá sempre coincidiam com as férias de Yves e seus dias livres,
quando ele partia de sua paróquia.
Eles descobriram que o loft era conhecido como Santuário do Novo Ser;
que o homem se chamava Pe. Jonathan; que realizava diversos serviços ali:
celebrava Missa, casamentos, ouvia confissões, ordenava homens e
mulheres como padres do santuário, batizava crianças e adultos, atendia a
chamados de casas e hospitais onde havia moribundos; e que ele tinha um
outro rito específico, o qual ele chamava de Direcionamento da Luz. Os
membros iniciados no rito eram chamados de direcionadores da luz, mas
não há mais detalhes disponíveis nem quanto ao rito nem quanto aos
membros.
Logo no momento em que um relatório completo estava pronto e prestes
a ser enviado ao bispo, Yves parece ter sido alertado – ainda que tarde –
quanto às intenções de seus colegas. Por cerca de dois meses seu
comportamento, até onde se pudesse julgar, tornara-se absolutamente
normal. Ele nunca mais foi a Greenwich Village, e trabalhava duro.
E então, em meados de junho de 1967, quando todos os envolvidos
estavam prestes a abandonar todo aquele caso, julgando-o exagerado e
irrelevante, Yves sofreu seu primeiro surto de possessão de proporções
terríveis. Como se poderia ter previsto, talvez, ele ocorreu durante a Missa.
Quando Yves estendeu suas mãos, as palmas para baixo sobre o cálice,
ele subitamente começou a chorar, gemer e tremer. Uma das mãos apertou
com força o topo do cálice. A outra despencou sonoramente na hóstia. Os
acólitos chamaram o pároco. Ele e dois outros assistentes eram incapazes de
mover as mãos de Yves ou de arrastar o cálice, nem de parar o choro e os
gemidos de Yves. Ele, o cálice e o pão estavam unidos como se a rebites.
Ele teve incontinência no altar.
Àquela altura, o pároco já havia evacuado a igreja e trancado as portas.
Eles estavam prestes a chamar um médico quando Yves subitamente largou
o cálice e o pão. Foi como se ele tivesse sido arremessado para trás, rolando
pelos três degraus do altar e caindo duro no chão de mármore do santuário.
Ele estava inconsciente quando chegaram até ele.
Yves acordou cerca de uma hora mais tarde. Quando o pároco falou com
ele, Yves revelou-lhe que sua mãe tinha sido epilética, e rogou ao pároco
que não o expusesse à vergonha pública. Ele se afastaria com o objetivo de
descansar, seguir os conselhos de um médico depois de fazer um checkup, e
tudo ficaria bem.
Mas agora o pároco acreditava no pior. Aos seus olhos, o Pe. Yves devia
estar possesso. Essa conclusão se devia simplesmente a uma convicção
profunda com base em suas reações pessoais. Mas ainda assim, aquele era
um assunto sério, e ele não seria encerrado nem adiado até que o pároco
estivesse certo quanto ao caso, de um jeito ou outro. Uma discreta
investigação revelara que Sybil, mãe de Yves, não era epilética. Numa
longa entrevista num domingo, foi contada ao bispo a história toda,
incluindo os piores temores do pároco. Era o mês de junho, no qual o bispo
ordenava novos padres no seminário.
O bispo chamou o Pe. David M. para uma consulta.
Após essa consulta com o bispo, o Pe. David entrevistou Yves. Ele saiu
dessa conversa completamente desconcertado. Não somente Yves tinha sido
perfeitamente cooperativo com ele, mas tudo o que Yves dizia parecia
vibrar uma corda simpática em David. As únicas duas peculiaridades que
ele não conseguia explicar satisfatoriamente eram o uso constante de seu
novo nome, Jonathan, e a condição do dedo indicador direito de Yves.
Quanto ao nome, David podia aceitá-lo. Afinal de contas, dez anos atrás,
David havia começado a chamar-se a si mesmo, ou ao menos assinar cartas
aos seus amigos íntimos, como “Pierre” (em alusão a Teilhard de Chardin);
e seus amigos tiraram um bom sarro disso. E o nome “Ossada” pegara, em
David, basicamente porque ele, tendo ouvido o nome, passou a usá-lo
deliberadamente diversas vezes em suas aulas; ele gostava do apelido.
O dedo era uma outra questão. De acordo com o médico que havia feito
um raio-X nele, não havia nenhum osso quebrado nem qualquer nervo
comprometido. O problema não poderia de modo algum ser remetido ao
suposto histórico epilético da mãe de Yves. Havia uma calcificação em seu
dedo; mas a deformidade não poderia estar relacionada a um ferimento ou
pancada; e nenhuma calcificação podia ser encontrada em outra parte do
corpo de Yves. Descobriu-se que ele não tinha artrite.
Quanto ao resto, David não conseguia encontrar muito com que se
alarmar. Ele havia investigado a mãe de Yves: ela havia, de fato, sofrido
alguns surtos, mas os médicos que a examinaram sempre descartaram a
hipótese de epilepsia. Aquilo deixara David aliviado. Mas ele ainda ficava
confuso. Estava convencido de haver perdido algo de essencial, e se sentia
um tolo por não saber o porquê. Sua discussão com Yves tocara tanto a
doutrina professada por Yves enquanto padre como a própria espiritualidade
de Yves. Até onde David podia compreender, tanto a doutrina quanto a
espiritualidade coincidiam mais ou menos com a sua própria.
“Se Yves está em erro”, disse David ao bispo mais tarde, “então eu
também estou. O que eu faço, então?”.
O bispo fitou David de um olhar especulativo por um tempo. Então disse
suavemente: “eu suponho que se toda essa paleontologia e os ensinamentos
de de Chardin o conduzissem a um ponto em que você devesse escolher
entre a fé ou de Chardin, você escolheria a fé, Pe. David”.
Era a afirmação de um fato, com uma questão implícita. David olhou
num relance para o bispo, que agora olhava para a janela de seu gabinete,
de costas para David.
O bispo continuou. “Diga-me, Padre. Seria a evolução algo tão real
quanto, digamos, a salvação de todos nós por Jesus?”.
David encarou a questão com os já distantes ecos do pressentimento que
ele havia experimentado no dia em que o bispo o nomeara para a função de
exorcista. Hoje ele diz que sua primeira reação à questão foi de surpresa:
“Era como se eu houvesse negligenciado algo de fundamental, e chegasse o
momento de eu finalmente encarar aquilo”. No fundo de sua mente,
percebeu, ele dissera espontaneamente “Sim”.
Para o bispo, ele respondeu levantando-se e dizendo algo de um efeito tal
como “é como comparar maçãs e laranjas”. Mas o bispo, aparentemente, só
queria colocar a questão. Ele já estava velho demais, e já era sábio demais
para esperar por respostas precisas.
Após essa entrevista com o bispo, David ficou inquieto. Ele se convenceu
de que deveria ter com Yves no dia seguinte.
O que propôs a Yves foi bastante simples. Depois de muito pensar,
pareceu-lhe que eles deviam conduzir uma cerimônia na qual diriam preces
especiais pelos enfermos e contra as doenças, e na qual também passariam
pelas partes principais de um ritual de exorcismo. Ele, David, conduziria
um simples exorcismo. A idéia, disse ele para Yves, era satisfazer o bispo e
o pároco.
Yves não via nenhuma dificuldade. Gostaria de fazê-lo, disse ele.
Somente o pároco de Yves estaria presente; não se podia prever nenhum
problema.
Eles realizaram o exorcismo no oratório privado do seminário; os três
homens ajoelhados nos bancos habitualmente ocupados pelos seminaristas.
Yves respondeu num murmúrio fraco a todas as questões colocadas por
David enquanto exorcista. “Você acredita em Deus?”; “Você acredita em
Jesus Cristo, Nosso Senhor?”; “Você renuncia a Satanás, às suas pompas e
suas obras?” e assim por diante.
Yves beijou o crucifixo; e, enfiando seu indicador torto na fonte de água
benta, benzeu-se.
David e o pároco se puseram de pé ao final da cerimônia. Yves não se
moveu do lugar em que estava ajoelhado, com a face entre as mãos. Ambos
partiram silenciosamente. Deixando-o sozinho.
“É isso aí”, disse David com um suspiro de alívio.
“Eu não ouvi uma só palavra dele com clareza”, replicou o pároco, “mas
suponho que eu estaria tão deprimido quanto ele se estivesse nas mesmas
circunstâncias”.
No oratório, Yves ergueu o rosto alguns minutos mais tarde e olhou ao
seu redor; ele estava sozinho, e não conseguia se lembrar de muita coisa.
Ele se lembrava de ter chegado com David e o pároco, de ter ajoelhado e
aberto o livro do ritual. Mas era tudo. Quanto aos 15 minutos
da cerimônia de exorcismo, ele havia apagado completamente. Quando
se ajoelhou, foi como se um poderoso sedativo tivesse sido injetado nele.
Não se lembrava de nada senão de uma súbita compulsão que forçava seus
lábios a falar e seus membros a se moverem.
Ele aguardou um momento, e então olhou em direção ao altar. Tudo ali
estava normal; mas entre ele e o altar havia uma sombra volumosa e
disforme, pairando no ar e turvando a visão do crucifixo central e do vitral
atrás do altar. E então, abrupta mas calmamente, como um homem que se
lembrasse de uma decisão previamente feita ou de instruções recebidas de
um superior, Yves se levantou e saiu do oratório. Um seminarista que ele
cruzou à porta reparou em sua face: Yves ria, e tinha o rosto brilhante.
Naquela tarde, quando David se sentou em seu gabinete, ele não podia se
concentrar no trabalho que tinha em mãos. Ele deveria finalizar um artigo
para a conferência sobre o trabalho de de Chardin em Choukoutien, China,
onde o jesuíta havia desenterrado o fóssil do Sinanthropos. Mas a mente de
David continuava voltando sempre à pergunta do bispo: “Seria a evolução
tão real quanto a salvação de todos nós por Jesus?”. Questão boba, disse ele
consigo mesmo. Sem nenhum sentido. O bispo era da escola velha. Mas
aquilo ainda o incomodava.
Ele ergueu seu olhar e viu redomas de vidro nas quais seus amados
fósseis e tesouros paleontológicos eram exibidos. Seus olhos percorreram a
campânula de um crânio lascado, a coleção de ossos de tornozelo, as peças
de rochas antigas nas quais fósseis da flora e da fauna estavam cravados, e a
série de bustos reconstruídos: o Homem de Solo, o Homem da Rodésia,
Homem de Neandertal, de Cro-Magnon. Sua mente estava brincando com
ele: não somente os bustos em gesso o olhavam, ele pensou, como também
aqueles ossos humanos mortos pareciam estar falando silenciosamente.
Sua cabeça acabou se acalmando. Ele ficou bravo consigo mesmo. Havia
uma escolha a ser feita entre a evolução e Jesus? Ela deveria ser feita? Se
Jesus era a culminação daquilo tudo, não havia uma tal escolha por fazer.
Jesus e a evolução formavam uma coisa só, de um modo ou de outro.
Ele passou mais algum tempo percorrendo essas considerações. E então
num impulso súbito ele correu para o telefone da casa e ligou para o quarto
de hóspedes no qual Yves estava passando a noite.
“Alô, Padre”. Yves respondeu num tom calmo e agradável.
“Acabo de ter uma idéia, Jonathan. Digo, sobre a evolução e tudo o mais.
Supondo que Teilhard estivesse errado o tempo todo, e que toda a sua teoria
e a evolução em si fossem inconciliáveis com a divindade de Jesus, o que
você diria?”.
Houve uma pequena pausa. E então, num tom sereno e seguro, com uma
certa nota de um triunfo escondido, Yves disse: “Você parece estar se
colocando essa questão para si próprio e pela primeira vez, Pe. David!”
“Mas o que você diria, Yves – Jonathan, perdão”, insistiu David. “Agora
eu estou colocando a questão para você”.
“Nunca pode haver um tal conflito, Pe. David” – David começou a sentir
algum alívio – “pela simples razão que a evolução torna Jesus possível. E
somente a evolução pode fazer isso”. Yves se lembra muito bem daquela
conversa. O “controle remoto” estava de novo agindo sobre ele, coagindo-o
com força; ele esperou até que os pensamentos e as palavras viessem até
ele. E então ele continuou calmamente, mas com a ênfase de alguém que
possuísse um conhecimento superior adicional. “Pe. David, tudo aquilo que
eu me tornei, você que o fez em mim. Minha espiritualidade, minhas
crenças e minhas explicações, tudo veio de você. Você também sabe que a
evolução faz com que Jesus seja possível; ela torna Jesus possível para nós,
homens racionais. Não sabe, Pe. David?”.
Do outro lado da linha, David recuperava o fôlego com dificuldade.
Conforme as palavras de Yves atingiam seus ouvidos, os pensamentos e
imagens transmitidos arrastavam todas as suas salvaguardas mentais como
visitantes indesejados. David sentiu uma inédita invasão de seu próprio ser.
Ele resistiu por um momento: “Você realmente acha que...”
“Pe. David, você tem o testemunho da sua própria consciência e de sua
mente”. E então, com um terrível dolo e uma nota de dureza em sua voz que
destruíram por completo a auto-confiança de David: “No fim das contas, se
eu tiver de ser exorcizado, você também tem. Talvez precisemos nós dois de
um exorcismo. Ou então – e essa é uma idéia melhor – nós estamos ambos
para além de qualquer exorcismo”. O telefone fez “clic” e a ligação foi
cortada.
David estava estupefato. Em poucas horas, ele decidiu telefonar ao bispo.
Antes que pudesse dizer uma só palavra, David recebeu as últimas notícias:
Yves havia procurado o bispo naquela noite, renunciado ao cargo na diocese
e partido com alguns amigos para Nova Iorque.
Daquele momento até o dia do casamento à beira-mar, David não viu
mais Yves, embora ouvisse constantemente a seu respeito, agora sob a
alcunha de Pe. Jonathan.
Mas agora David tinha, ele próprio, um problema: teria ele sido de um
modo ou de outro contaminado? Teria ele se rendido ao maligno? Teria ele
voluntariamente, ainda que sob o véu da benevolência e da sabedoria,
admitido a influência do demônio em sua própria vida?
Ele voltou a pensar no exorcismo. Pensando agora no caso, Yves não fora
o único que havia murmurado as palavras em latim. Ele próprio as havia
murmurado; sua mente estivera ausente por metade da cerimônia, pensando
em outros problemas.
David não se dera conta então, mas ele não gozaria de qualquer paz até
que o exorcismo de Yves fosse concluído uns dois anos mais tarde.
Quando o Pe. Jonathan, como Yves se chamava a si próprio, chegou para
ficar em Greenwich Village, ele escolheu de início trabalhar em meio aos
habitantes do local, buscando neófitos e conversões para sua causa.
Passeava pelas discotecas e bares populares, entrava em clubes, tomava
parte em diversos dos “happenings” organizados pelos diversos grupos do
Village à época. Tornou-se famoso por aquilo que dizia ser: fundador de
uma nova religião.
Mas após um ano de apostolado, a ênfase de Jonathan mudara. Ele não
mais andava com os moradores comuns do Village, mas tinha uma missão
diferente: criar um novo movimento religioso entre as famílias abastadas da
alta Manhattan. De início ele ficou muito amigo de algumas pessoas que
conhecera por acaso. Conforme o tempo foi passando, ele alargou seu
círculo de conhecidos. Logo ele tinha contribuições voluntárias em
quantidade suficiente para aumentar e decorar seu Santuário do Loft, como
ele o chamava. E lá, todas as noites de quarta-feira, ele celebrava os
serviços, administrava os novos “sacramentos” e aconselhava os membros
de sua paróquia.
Pelo outono de 1968, ele havia atraído uma sólida congregação que
achava que Jonathan, longe de ser um iconoclasta ou um pregador de
doutrinas estranhas, parecia estar reavivando neles um senso de crença
religiosa e uma confiança no futuro. Sua mensagem era simples; ele
ensinava numa linguagem bela; ele semeava seus ensinamentos com um
genuíno conhecimento de arte e poesia. E, mais especial, ele tinha a
destreza de preencher tudo com valores estéticos. Ele podia pregar sobre o
elo perdido, por exemplo, ou sobre a imagem do homem de Neandertal, e
fazer com que a idéia toda da evolução de uma matéria inanimada parecesse
um glorioso início. Quanto ao futuro, Jonathan tinha uma perspectiva ainda
mais gloriosa. Havia um novo ser em processo de criação, dizia ele para
suas assembléias; e ele viveria num novo tempo. “Novo Ser” e “Novo
Tempo” tornaram-se seus lemas.
A perspectiva de Jonathan e sua intuição daquele sinistro “Novo Ser”
veio num tempo apropriado para preencher o vazio sentido por tantas
pessoas. O vazio havia começado a aparecer muitos anos antes da chegada
de Jonathan; seus efeitos no teatro, poesia e arte foram sentidos por toda
parte durante as décadas anteriores. Tudo – poesia, teatro e artes plásticas –
havia se lamentado constantemente do fato de que o mundo do homem
havia sacrificado cada vez mais o sentido em prol da utilidade. E na
ausência de um sentido maior, sem a possibilidade de certa transcendência,
este mundo, ainda que “útil”, deixa de nutrir o espírito dos homens,
mulheres e crianças. Sem esse alimento, o espírito do homem morre.
Na área da religião e especialmente do catolicismo romano, esse vácuo
tornou-se claramente visível no fim dos anos 1960, quando as mudanças
introduzidas pelo Concílio Vaticano II passaram a valer. As mudanças
eliminaram muito do antigo simbolismo – seu mistério e associações
imemoriais. As mudanças podem ter conduzido a algo de valor, exceto pelo
estranho vácuo que agora preenchia os católicos e as pessoas religiosas em
geral.
Seu efeito parecia súbito. Era algo anestesiante, um vácuo de indiferença:
aos ritos exteriores – palavras, ações, objetos – próprios à religião; aos
conceitos do pensamento religioso e da teologia; quanto às funções e ao
caráter das pessoas religiosas – padres, rabinos, ministros, bispos, papas –
foi aplicada sobre todos eles a norma da “utilidade”: a forma é igual à
função; mas, para além do uso prático, há o sentido. Os aspectos exteriores
da religião não mais pareciam ter qualquer significado atraente. Um número
crescente de pessoas as deixaram de lado, ou as ignoraram, ou as usavam
como meras conveniências sociais ou um guia de convenções.
A mensagem de Jonathan era simples e voltada a essa nova situação.
Toda a beleza do ser humano havia sido obscurecida, segundo ele, pela
teorização religiosa e as igrejas institucionalizadas. Mas aquele era um novo
tempo, dizia ele em sua pregação: tudo era e sempre fora realmente natural.
O bem significava aquilo que era natural. Nós não precisávamos daqueles
suportes artificiais que as religiões organizadas nos ofereciam. Só
precisávamos redescobrir o perfeitamente natural. Em toda parte do mundo
ao nosso redor havia sacramentos naturais, santuários naturais, santidade
natural, imortalidade natural, deidade natural. Havia uma graça natural e
uma fascinante beleza natural. Além do mais, a despeito do abismo que a
religião institucionalizada havia cavado entre os humanos e a natureza do
mundo, o mundo e todos os humanos formavam um, por algum tipo de
união mística. Nós viemos dessa união e pela morte a ela voltávamos.
Jonathan chamava essa união natural de “Abba Pai”.
Com efeito, Jonathan fez uma síntese perigosíssima das doutrinas
evolutivas teilhardianas com a idéia que Teilhard tinha sobre Jesus. E ele
permeava isso tudo com um profundo humanismo e tinha um olho atento ao
bocejo de indiferença que agora se estampava nos fiéis católicos
tradicionais.
Na perspectiva de Jonathan, a “crença” religiosa se tornara acessível
novamente. Num pólo, podia-se aceitar a idéia corrente (e bastante
persuasiva) de que o homem evoluíra da matéria inanimada. Em outro pólo,
não era necessário centrar-se na crença quanto a uma inimaginável
“ressurreição” do corpo. Ao invés disso, havia um retorno “ao lugar de
onde viemos”, como Jonathan costumava dizer: voltar à unicidade da
natureza e de seu universo.
Tudo isso permitiu um uso hábil de toda a gama do vocabulário e
conceitos sobre a “salvação”, “amor divino”, “esperança”, “bem”,
“honestidade” – todos eles termos e idéias que só eram reconfortantes e
familiares no seio de sua congregação. Mas todos esses termos eram
compreendidos num sentido completamente diferente daquele tradicional:
sem um deus sobrenatural, sem um homem-deus chamado Jesus, e sem uma
condição sobrenatural chamada “vida após a morte”.
A congregação de Jonathan nunca fora muito grande – não mais que
cerca de 150 pessoas. Mas ele tinha profunda satisfação com aquilo tudo;
pois, em sua mente, tudo aquilo era uma preparação para o glorioso Novo
Tempo que os aguardava, logo ali na esquina – no Santuário do Loft.
Mas houve grandes conseqüências para Jonathan. Conforme o tempo foi
passando, e a primavera de 1969 se aproximava, ele achou cada vez mais
que, no sentido literal das palavras, “ele não era, mais, um homem
sozinho”. Pessoas do exterior, seus amigos, seu rebanho – não perceberam
qualquer diferença para além do fato de ele haver deixado seu cabelo louro
crescer mais comprido, que ele vestia roupas exóticas, e que sua linguagem
se tornara muito exaltada.
Com o passar do tempo, contudo, o “movimento” de Jonathan corria o
risco de esmorecer – antes mesmo de o Novo Tempo chegar! Ele não estava
conseguindo novos seguidores. Sua doutrina e sua perspectiva não se
acomodaram aos levantes mais extravagantes de 1960. Ele não era um
revolucionário no sentido político. O Santuário do Loft estava claramente
em declínio antes mesmo de ter decolado. Era preciso algo novo.
Entrementes, Jonathan acordava no meio da noite e encontrava em sua
mente estranhos impulsos vindos daquele “controle remoto”. Ele continuou
arrumando suas malas e preparando-se para uma viagem. Ele passava
longas horas no Santuário; e mais tarde ele não sabia o que havia feito lá. O
“controle remoto” era inexorável em seu domínio. Jonathan precisava
esperar até que lhe dissessem o que fazer. Enquanto aguardava as ordens,
ele realizava casamentos e celebrações de nascimento para seus poucos
seguidores. Ele oferecia serviços semanais. Ele sonhava constantemente em
começar um novo sacerdócio e uma nova igreja que tomaria o lugar dos
católicos e protestantes.
Por volta do final do verão de 1969, as “instruções” de Jonathan
passaram a ficar sérias. Ele fora convidado a passar três semanas na selva
canadense, numa festa com amigos que anualmente iam até lá para caçar e
pescar.
Jonathan soube, no momento em que recebeu a carta de convite que a
hora havia chegado. Uma voz interior lhe dizia “Vá! Vá! Você agora
encontrará seu espelho de eternidade. A ordenação ao supremo sacerdócio
está em suas mãos!”. Quando perguntamos se ele ouviu uma voz de verdade
nessa ocasião ele diz que não. Era uma convicção interior, vinda com a
mesma irresistível compulsão, para muito além das meras palavras.
Com Jonathan, a festa de caça contava com 12 pessoas. Eles estavam
alojados num camping de base. A cada dia eles se separavam em grupos.
Cada grupo partia para dois ou três dias de caminhada na selva.
À parte um pouco de pescaria, o Pe. Jonathan se ocupava com pintura e
escrita. Mas após essa primeira semana, ele passou a aventurar-se cada vez
mais longe do acampamento de base. Ele estava em busca de algo ou de
algum lugar. Quando ele ali chegasse, ele o reconheceria, certamente. Suas
escapadas seguiam o curso de um rio em cuja margem ficava o
acampamento. Ele poderia facilmente encontrar o caminho de casa
retraçando seus passos ao longo do rio.
Foi numa dessas incursões que ele encontrou seu local – como ele passou
a chamá-lo mais tarde. Esse nome, “meu local”, tem agora um significado
macabro para Jonathan: foi ali que se deu sua imersão final na possessão
demoníaca.
Num dia, após o almoço, ele andou por cerca de três horas em direção ao
sul, ao longo do rio. O tempo todo, o curso d’água percorrera um trajeto
bastante retilíneo. Num determinado ponto, contudo, Jonathan percebeu que
o rio cortava entre dois altos montes, e que ali a água descrevia como que
um “S”. Quando Jonathan chegou mais próximo da curva em forma de S,
seu corpo e mente ficaram como que eletrizados por um sentimento de
descoberta. Ele ficou completamente imóvel, e uma palavra em latim –
sacerdos (padre) – soava como um sino em seus ouvidos. Sacerdos!
Era aquilo! Aquele era o local! Ali ele seria ordenado realmente como
padre do Novo Ser e bispo-líder do Novo Tempo. Era isso! Ele sentiu-se
enormemente grato.
O local era maravilhoso. A água naquele canto não tinha mais do que
alguns pés de profundidade. No fundo do leito do rio, um carpete de areia
tão branco quanto o sal. De cada lado, lembrando filas de monges com seus
capuzes pretos, haviam fileiras de rochas e seixos, contornadas e alisadas
pelo fluxo d’-água durante as enchentes anuais do rio. Nos cantos daquele
S, em cada margem, uma pequena praia aconchegante, um carpete de areia
pura erguendo-se de dentro d’água e sendo bordejado por um arco de
cascalhos azuis e negros, seguidos por samambaias e grama, e então os
pinheiros, amieiros, sicômoros e castanheiras. Tudo ardia sob o sol, e
sombras silenciosas cobriam as rochas, as areias e o rio, formando uma
miscelânea de tons de verde escuro sob a luz amarelada.
Jonathan podia ver uma centena de sóis veranis espelhados na água verde
escura, e cada um deles projetava um fogo que o cegava. O rio se movia
lentamente, mas não sem energia, sempre cantando uma envolvente
melodia de calma e constância.
Aquele lugar era o “espelho de eternidade” para Jonathan, uma abertura
na natureza através da qual ele podia vislumbrar a extensão do eterno, sua
doçura e seu poder purificante, e os espaços ilimitados de seu ser.
Jonathan caiu estupefato, aos prantos, na praia. Todo esticado na areia, o
rosto caído, suas mães enterradas na areia, ele gritava: “Sacerdos! Sacerdos!
Sacerdos! Sacerdos!”. Seus gritos ricocheteavam pelas rochas e árvores,
cada resposta retornando num volume mais débil, como se partissem com
seus pedidos e esperanças, até que tudo o que se ouvia era o silêncio.
A umidade da areia encharcava suas roupas, e o sol as secava em retorno.
Ele começou a sentir uma leveza em seu corpo: uma poderosa mão o
segurava com sua palma. Ele ouviu-se a si mesmo dizendo quase que em
súplica: “Faça de mim... faça de mim, por favor... faça de mim... padre...
faça padre...”. Cada palavra era dita para a areia branca sob o seu rosto.
Agora, pensamentos, emoções, imagens, tudo parecia estar sob o controle
daquela mão. E ele começou a sentir uma sensação de esvaziamento. Seu
passado estava sendo apagado; todo seu passado, o que ele lembrava e
mesmo o que ele havia esquecido, tudo aquilo que entrara na constituição
do que ele fora até aquele momento, era retirado dele próprio. Ele estava
sendo esvaziado de cada conceito, cada raciocínio lógico, cada memória e
imagem que sua cultura, sua religião, seu ambiente e suas leituras haviam
formado nele.
E então, sob um tipo de impulso interior que ele não mais questionava,
ele se levantou e caminhou lentamente até a água. Ele ali ficou na margem
olhando para o céu por um instante. Obedecendo uma voz interior, ele se
agachou; suas mãos tatearam a base de uma rocha buscando alcançar sua
terminação na água. O rio corria em redemoinho acariciando seus ombros e
costas. Seu queixo agora estava quase no mesmo nível da superfície.
“Eu estava alcançando o veio cardíaco do nosso mundo”, disse-me ele
numa de nossas conversas, “ao qual Jesus, o Ponto Ômega, evoluía, e
estava às vésperas de emergir”.
Pareceu-lhe que “apenas aquele mundo perdoava e purificava”, só ele
tinha “elementos unidos”. Ele tinha a impressão de que agora ao menos ele
havia “rompido a barreira”, e que a revelação de todas as revelações lhe
havia sido concedida: a verdade real, o deus real, o Jesus real, a real
santidade, o real sacramento, o real ser e o novo tempo no qual toda essa
novidade prevaleceria.
Ele perdera a conta do tempo ordinário, do sol e do vento, do rio e suas
margens. O vento era um grande pássaro cujas asas terminavam nos braços
verdes e marrons das árvores em cada um de seus lados. As rochas
tornaram-se coisas vivas, irmãos e irmãs dele, seus primos milenares,
testemunhando sua consagração com a reverência que somente a natureza
poderia ter. E a água ao seu redor lhe piscava com olhos cintilantes,
cantando a canção aprendida milhões de anos atrás, do turbilhão de átomos
do espaço, antes que houvesse qualquer mundo ou homem para ouvi-la. Era
um êxtase irresistível para Jonathan.
Ele começou a cantar para si próprio: “Jesus! Jesus! Jesus!”, o que logo
mudou para “Senhor da Luz! Senhor da Luz! Senhor da Luz!”. Uma vez
mais, não era ele quem controlava. Cada fibra, cada músculo de seu corpo e
mente transbordava de uma energia obscura. Agora ele cantava: “Senhor da
Luz! Senhor de Jesus e de todas as coisas! Seu escravo! Seu servo! Sua
criatura! Seu sacerdote!”.
Ele sentiu um ligeiro relaxamento em seu corpo; não havia agora mais
nenhum resquício de tensão, nenhum temor, nenhum pensamento ou
emoção apreensivos. Tudo estava envolto e contido no aqui e agora, no
presente.
Ele ergueu-se, ficou de pé, sobre a água reluzente, olhando para a
margem; suas mãos, sangrando por conta dos esforços de escavar a base
daquela rocha, pendiam para os lados. Ele olhou para os arranhões e as
lágrimas em seus dedos e palmas, apaixonado pelo brilho do sangue sob a
luz do sol, sobreposto a sua pele clara.
Ele andou lentamente até a praia. Sem motivo aparente, seu passo se
acelerou. Ele começou a trotar. Tendo passado a areia, já em terra firme,
passou a correr em ziguezague por entre as árvores, impulsionado pela
força em seu interior. O chão se inclinava para cima. Ao chegar ao topo do
morro, ainda correndo, ele não tinha mais fôlego; começou a tropeçar.
Jonathan estendeu sua mão pedindo ajuda. Mas tudo o que havia próximo
dele eram os corpos dos pinheiros, ásperos, seus troncos muito mais altos
do que ele, suas cabeças perdidas no alto do céu. Eles não ajudavam
Jonathan em nada.
Em meio a suor e cansaço, ele viu no cume do qual ele se aproximava
uma pequena árvore de tronco baixo. Ele tropeçou, caiu, levantou-se e lutou
até desabar contra o tronco daquela árvore, seus braços estendidos sobre
seus ramos. Ficou ali encostado por algum tempo, a bochecha contra a
árvore, suas axilas apoiadas sobre os galhos, tomando ar e balbuciando
fragmentos de sílabas, esperando o retorno de suas forças.
Mas Jonathan se deu conta de que sua face estava pousada contra algo
suave: aquilo não era uma casca de pinheiro nem uma pele de sicômoro. Ele
abriu seus olhos lentamente, ergueu-se, e afastou-se da árvore,
contemplando-a.
Tomado de um terror incontrolável e crescente, ele agora via em
contornos claros: um tronco de árvore descascado, cortado em um quarto de
seu tamanho original por alguma força – um raio, um machado, um
acidente qualquer. Era um tronco seco de árvore com dois braços esticados
para os lados. Havia sangue manchando a superfície alva daquelas traves e
o tronco seco.
Ele estava diante de uma cruz, pensou horrorizado. Há sangue sobre ela.
É o meu sangue? Ou de quem é? Seu sangue? De quem? As questões
vinham em gritos histéricos de medo em seu cérebro.
Ele começou a gritar. “Maldito seja! Maldito seja! Maldito seja esse
sangue! Maldito seja esse falso Jesus!”. O “controle remoto” incutia essas
palavras em seu cérebro, e Jonathan as fazia ecoar em seus lábios. “Que
seja destruída! Que se quebrem esses braços!”. As ordens se seguiam
desordenadamente.
Ele esticou suas mãos, agarrou um braço da cruz, e começou a puxar,
gritando. “Maldito seja! Maldito seja! Eu estou livre de você! Senhor da
Luz! Salve-me! Socorro!”. O ramo se quebrou. Ele então agarrou o outro
braço com as duas mãos e começou a puxar e gritar. Ele cedeu antes do
esperado, e ao soltar-se fez Jonathan voar para trás, rolando pela colina na
direção do rio; tudo agora era um túnel de luzes, golpes e pancadas, até que
ele caiu contra o tronco de uma árvore e perdeu a consciência.
A equipe de buscas o encontrou ali umas poucas horas mais tarde, logo
antes do cair da tarde. Ele estava fraco, semiconsciente, suas duas mãos
ainda retinham o tronco de árvore quebrado. Colocaram-no sentado, suas
costas ainda contra a árvore que havia interrompido sua queda. Jonathan
continuava a encarar o cume. O sol se punha, mas seus últimos raios, de um
vermelho dourado, contornavam o tronco seco lá no alto, seus braços em
cruz agora reduzidos a tocos lascados, o tronco manchado de nódoas
negras.
Jonathan levou um tempo até que sua visão recuperasse o foco e ele
pudesse perceber o que estava acontecendo. Pouco a pouco ele se deu conta
de figuras altas ao seu redor, vozes falando, mãos que colocavam um cantil
de whisky contra seus lábios, e outras mãos que tocavam seus ferimentos.
Ele ouviu os sons de ramos sendo cortados com machados. Mas seu olhar
pousou novamente sobre a árvore. Ele sentiu um ímpeto como se um alarme
soasse dentro dele; fez força para ficar de pé, com os olhos fixados naquela
árvore.
A luz avermelhada do sol foi logo caindo num crepúsculo negro azulado,
e a silhueta da árvore se dissolvia, lá, no alto do cume. Um dos homens da
equipe de buscas viu que Jonathan fazia força para se erguer e percebeu a
fixidez de seu olhar em direção à arvore.
“Não se preocupe, Padre”, disse ele, “é só um arvore. Uma árvore morta.
Está tudo bem, eu garanto. Acalme-se, por favor, Padre! É só uma árvore,
Padre”. Ele fez uma pequena pressão sobre Jonathan e o impediu de se
erguer.
Jonathan caiu para trás, cansado, e murmurou: “Só uma árvore. Só uma
arvore”. E então apagou. Colocaram-no numa maca improvisada que eles
mesmos haviam produzido e partiram em direção ao acampamento.
O fim não estava muito longe para Jonathan; mas ele não parecia se dar
conta disso. Após alguns dias de repouso no acampamento, a equipe viajou
para Manchester, New Hampshire. Jonathan foi levado à casa de sua mãe.
Ele estava extremamente fraco, sofria ataques de tontura, tinha dores por
todo o corpo. Ele tinha dificuldade em dormir à noite e não conseguia se
concentrar na leitura ou pintura. O médico da família prescrevera dois
meses de repouso.
Jonathan passou as primeiras semanas de cama sob sedação. Cuidavam
dele sua mãe e uma enfermeira. Pouco a pouco ele recuperou suas forças.
Ao final de outubro ele estava de pé e caminhava pela casa. Em novembro
ele já tinha força suficiente para caminhar pelo jardim, e começou a ler e
pintar novamente.
Sua mãe estivera em contato com o Pe. David, no seminário, por meio de
seu pároco. E quando Jonathan se recuperou (também a mãe devia adotar
seu novo nome), ela telefonou para David. Ele chegou numa tarde para ver
Jonathan.
O encontro fora perturbador para David, mas para Jonathan aquilo
pareceu ter sido uma ocasião de fortalecimento, de um misterioso triunfo
que ele gozava em meio a sua miséria. Ele se dirigia a David como “meu
filho”, usando um tom de voz paternalista que afetava David de um modo
inesperado. Era a primeira vez em anos que David, já adulto, sentia medo
verdadeiro.
Com essa atmosfera desagradável como pano de fundo da conversa,
David e Jonathan conversaram sobre o ocorrido no Canadá. O relato trazido
por seus companheiros era de que ou Jonathan fora atacado por um animal
selvagem, ou de que por alguma razão ele sofrera um ataque de pânico,
caíra de joelhos, e se golpeara a si mesmo, inconsciente, enquanto corria.
Após alguns minutos com Jonathan, David estava seguro de que algo muito
mais significativo que um mero acidente havia acontecido, mas Jonathan
não se abriria com ele.
Após uns minutos, Jonathan conseguiu transferir o inquérito de David
para longe do tema Canadá e a recente viagem. Ele começou a falar, em
lugar disso, sobre seu novo apostolado e seus planos para a “missão” de
Nova Iorque. Surpreendentemente, de um modo ardiloso, a conversa
começava a se voltar sempre para o próprio David. E uma vez mais David
viu que toda uma parte de seu ser estava em total concordância com aquilo
que Jonathan dizia. E, uma vez mais, em outra parte dele mesmo, sentia
uma profunda resistência.
Finalmente Jonathan o afrontou: “Pe. David, meu filho, no final você
também irá encontrar a luz, e sairá para pregar o Novo Tempo e o Novo
Ser”.
Os conflitos de David emergiram com toda a força em seu interior,
receptivos às portentosas palavras de Jonathan, causando forte temor. O que
ele faria, suponha-se, se não conseguisse se impedir de percorrer
exatamente o mesmo caminho que Jonathan percorrera? O que fazer, então?
David lembra-se vividamente da náusea lenta e profunda que se produziu
em seu interior quando ele estava sentado naquele quarto insalubre, cercado
pela calmaria do campo. Era de um nojo atravessado de medo. Ele já havia
vivido uma experiência similar, mas não idêntica, certa vez, descendo numa
sepultura comum na África, na tumba de um antigo capitão tribal. Sobre as
pilhas de ossos das pessoas sacrificadas para garantir uma passagem segura
do capitão à felicidade eterna, David sentira o toque de um mal livre e
soberano, quase que ouvindo a sua voz naquela escuridão fétida, a dizer
com uma voz sedosa: “Venha para o meu domínio, David! Você pertence a
este lugar!”. Sua mente voltava diversas vezes ao fato de nenhum daqueles
homens, enterrados há tanto tempo, jamais haverem ouvido nada sobre
Jesus ou o cristianismo. Algumas conclusões obscuras começaram a rondar
a cabeça de David depois da passagem por aquela tumba. Mas sua náusea
não o permitira examiná-las com clareza.
Agora, tentando sondar o mistério, ele olhou para Jonathan. Quem estava
possuído? Havia alguém possuído? Seria tudo aquilo fruto da imaginação?
Jonathan, a despeito de sua enfermidade, tinha um ar aprumado, alto, a
coloração parecia haver retornado a suas bochechas, seus olhos azuis
reluzentes, seus longos cabelos caindo graciosamente sobre os ombros. E
sua força e beleza natural pareciam restauradas. Encarando-o, David
subitamente sentiu-se fraco e insignificante, e, de algum modo, sujo. Uma
frase dita por Jonathan fez definhar ainda mais sua coragem.
“Não é por acaso, meu filho, que eu passei a me chamar Jonathan. Você é
David. E na Bíblia eles foram unidos no trabalho divino”.
David afastou-se indefeso, lutando contra os afluxos de fraqueza e medo
que o envolviam. Ele tentava se acalmar, mas a voz de Jonathan prosseguia,
triunfante, retumbante.
“O que acontece comigo acontece também com você, meu filho. Não
percebe? Está tudo preordenado. Nós entramos no Reino do Novo Tempo e
do Novo Ser”.
David se sentia no termo de sua resistência. A náusea crescia. Ele estava
encurralado. Foi até a porta, abriu-a, e falou, por sobre o ombro, numa voz
fraca:
“Jonathan, vamos esclarecer uma coisa. Se você precisar de ajuda, eu o
ajudarei. Estamos de acordo?”. Sem resposta, ele voltou-se lentamente.
“Jonathan! Nós temos um encontro no dia em que você -”
Ele interrompeu. Jonathan estava de pé no meio da sala, os olhos
fechados, o corpo balançando para frente e para trás, como se fustigado por
um forte vento.
“Jonathan! Jonathan! Está tudo bem?”.
“Padre David”, a voz resumia-se quase a um sussurro, cheio de dor.
“Padre David, me ajude... não agora... agora é impossível... longe demais...
mas no momento em que... estamos de acordo... se...”.
O resto perdeu-se numa confusão de murmúrios. Jonathan desabou sobre
a poltrona. David percebeu que a mão esquerda de Jonathan segurava seu
indicador direito.
A porta se abriu. A mãe de Jonathan entrou silenciosamente, sem pressa.
Seu rosto era inexpressivo. “Não se preocupe, Pe. David”, sussurrou ela.
“Ele vai dormir agora. E depois disso você pode voltar a falar com ele. Vá
descansar. Você precisa. Vocês dois precisam de descanso”.
Ele conversou por uns poucos minutos com ela, e então partiu. Ela o
manteria informado sobre os movimentos de Jonathan.
Em meados de dezembro Jonathan saiu de casa novamente e voltou para
Nova Iorque. Pelos quatro meses seguintes David seguiu as atividades de
Jonathan. Ele estava sempre disponível, sem nunca se fazer notar, voltando
a Nova Iorque regularmente, mantendo-se informado sobre o paradeiro de
Jonathan e suas atividades. Por enquanto, ele não podia intervir. Mas esse
momento chegaria, ele sabia.
Ele agora estava convencido de que Jonathan havia permitido que algum
espírito maligno o possuísse por completo. Ele estava quase convencido de
que ele próprio também estava afetado, mas não entendia exatamente como.
Foi só a partir daquela desastrosa cerimônia de casamento à beira-mar que
ele teve a oportunidade de ajudar Jonathan, e descobrir exatamente o que
havia acontecido com ele próprio.
Em meados de fevereiro, David ficou sabendo, por acidente, do
casamento que Jonathan iria celebrar em Dutchman’s Point. O pai da noiva,
um importante corretor, era velho conhecido de David. Ele telefonou
imediatamente para o pai e combinou de almoçar com ele em sua casa em
Manchester. David foi recebido muito calorosamente, de início; como um
velho amigo. Mas a conversa foi ficando amarga, conforme a razão de sua
visita se tornava clara: David queria ou que a noiva postergasse o
casamento ou que solicitasse um outro celebrante.
O padre Jonathan era um bom sacerdote, reclamou o pai de Hilda. E
então, contrariado, ele começou a ralhar contra todo o clero em geral,
dizendo que pelo menos o padre Jonathan fizera com que a nova geração
dissesse suas preces, acreditasse em Deus e cuidasse do meio ambiente –
coisa que os “homens de batina” geralmente não faziam. David contra- -
argumentou, apontando para seus receios e suspeitas quanto a Jonathan.
Mas foi em vão. O mundo estava mudando, ele ouviu. Que papo sinistro era
aquele de mal e de Demônio? O Pe. David não acreditava mais naquilo
tudo, não é? A única resposta de David foi uma expressão de profunda
apreensão por Jonathan e pela filha de seu amigo.
E além disso, se ele estava tão preocupado, concluiu o corretor já se
levantando da mesa, por que o Pe. David não vinha ao casamento ele
próprio? Ele estava portanto convidado. Ele veria, acrescentou o corretor,
tudo acabaria bem. Por uma vez ao menos Hilda viveria um dia glorioso de
felicidade. Ela queria as coisas daquele modo. Ela só se casaria uma vez.
“Eu estarei lá”, respondeu David calmamente. “Não se preocupe. Mas
você terá de responder pelo resultado”.
O corretor parou e olhou para David, pensou por alguns segundos, e seu
rosto se cobriu de raiva. Suas palavras tocavam David profundamente: “Pe.
David, eu sou um homem simples no que diz respeito à religião e aos
assuntos religiosos. Tudo o que acontece nessa área é culpa de vocês do
clero. Você sabe” – ele interrompeu, estudando o rosto de David e sua
expressão – “às vezes eu tenho a sensação de que vocês é que estão
perdidos. Nós, laicos, temos um tipo de proteção. Nós nunca estivemos
encarregados da religião, sabe”. Eles se despediram.
Senhor Natura e o coro de Salem
O exorcismo do Pe. Jonathan começou na primeira semana de abril e
terminou somente na segunda semana de maio. Coisa totalmente imprevista
para David, exorcizar Jonathan provou- se relativamente fácil. Era o próprio
David quem estava em perigo. Sua sanidade, suas crenças e sua vida física
corriam risco máximo. Mas graças aos sofrimentos de David, podemos
formar uma idéia mais clara dos mecanismos da possessão – ao menos de
um tipo específico de possessão: como ela começa, como progride e onde,
em última análise, a livre escolha do possesso entra em jogo.
O exorcismo de Jonathan foi gravado em fita, enquanto que, para os
detalhes da maratona de quatro semanas de David, e seu combate interno,
temos de nos basear no diário que ele mantinha meticulosamente durante
aquele período, somado àquilo que ele contou a outras pessoas sobre a
experiência e minhas próprias conversas com ele.
Quando David e Jonathan deixaram a festa de casamento em Massepiq
Beach, David logo os conduziu até o seminário, no qual Jonathan e ele
permaneceram até o início do exorcismo.
Na estrada, Jonathan colocava uma questão persistente para David: por
que era importante começar antes que o sol subisse no céu?
David foi franco: ele não sabia exatamente; talvez ele nunca venha a
saber; mas, baseando-se somente em seu instinto, David estava seguro de
que a luz solar da tarde tinha de algum modo se tornado para Jonathan um
veículo para a influência maligna. “Para você, Jonathan, ela ficou
contaminada”, disse David sobriamente.
Jonathan chorou diante das implicações das palavras de David. A luz e o
calor do sol, a coisa mais bela do mundo para Jonathan, tornaram-se maus
para ele. Ainda assim, seguindo as instruções de David, Jonathan manteve
os tapa-olhos quando estava no quarto no seminário. Ele só saía para tomar
ar fresco à noite e na madrugada. Ele evitava a luz alta do meio-dia.
Os preparativos para o pré-exorcismo, com os quais o Pe. David já estava
acostumado em seu trabalho para a diocese, foram completados no fim de
março. Algumas dessas etapas – checkup médico, exame por psicólogos,
suporte familiar – haviam sido realizadas durante a espetacular crise de
Jonathan no outono precedente. Com mais alguns detalhes, os preparativos
estavam completos. Faltava escolher um lugar, marcar um dia, e nomear
assistentes.
David estava convencido de que haveria pouca violência física, mas
muito estresse mental e uma profunda tensão em seu próprio espírito. Ele
pediu portanto a um jovem psiquiatra, amigo seu, e um médico de meia-
idade que fossem seus assistentes. Ele contou com os serviços de seu jovem
padre auxiliar, Pe. Thomas, que deveria sucedê-lo, a partir de junho, como
exorcista diocesano.
A escolha do local para o exorcismo se mostrou um problema. David
tinha uma inclinação pelo oratório ou uma sala numa ala remota do
seminário. Jonathan suplicou que o exorcismo ocorresse na casa de sua
mãe, onde ele havia nascido e crescido. Todas as suas memórias, suas
primeiras experiências e seus maiores sonhos habitavam aquela casa, que
seu pai havia projetado e construído ele próprio. Ademais, ela ficava em sua
propriedade, gozando de uma privacidade indisponível no seminário.
O bispo, sempre calmo, decidiu por eles. “O que quer que aconteça, é
melhor que se passe privada e discretamente. Não quero meus jovens
seminaristas nervosos e fugindo daqui antes da hora”, disse ele a David. Ele
acrescentou algo que David não esperava, vindo daquele homem mundano,
famoso sobretudo por seus truques financeiros: “Sem superstições, entenda,
Pe. David” – e, arqueando suas sobrancelhas: “mas o pai dele construiu a
casa e criou sua família ali. Ele também tem um interesse no caso. Seus
laços estão ali, com certeza”.
David refletiu quanto à última observação do bispo: ela vinha confirmar
aquilo de que ele já suspeitava em outros casos de possessão: havia uma
íntima conexão entre os locais definidos e o exorcismo de espíritos
malignos.
Todos concordaram que Jonathan deveria permanecer no seminário, sob a
observação de David e de seu jovem padre assistente até a véspera de
primeiro de abril, dia escolhido para o exorcismo. Conforme o dia se
aproximava, Jonathan foi ficando cada vez mais apático, comia pouco, e
necessitava de maior quantidade de soníferos para passar uma boa noite.
Às 10 da noite de 31 de março, David o conduziu até a casa de sua mãe.
Juntaram-se a eles, ali naquela noite, seus assistentes – outra precaução que
David tomara por instinto. Às 4 horas da manhã seguinte, acordado por
algum barulho, eles encontraram Jonathan completamente vestido e
procurando algo nas gavetas da despensa da cozinha. Se ele estava
procurando por uma faca para usar em si ou nos outros, ou então se estava –
como ele disse – preparando algo para comer, David jamais saberia com
certeza. Em todo caso, como todos estavam acordados, David pediu à mãe
de Jonathan que fizesse um café de manhã. Às 6 da manhã eles estavam
prontos para começar.
Os preparativos foram simples. O quarto havia sido esvaziado de toda
mobília. O piso em granito fora despido de todo tipo de carpete ou tapete.
As persianas foram fechadas. Jonathan preferiu ficar ajoelhado, o rosto
mergulhado entre as mãos, diante da mesinha em que David havia colocado
seu crucifixo, o frasco de água benta, os dois castiçais, e o livro do ritual. O
gravador de fita estava colocado próximo à janela. David vestia batina,
sobrepeliz e estola. Ele não fez uma entrada solene. De pé do lado oposto
da mesinha em que se ajoelhava Jonathan, com seus assistentes reunidos
por perto, David passou logo aos trabalhos. Ele recitou a prece de abertura,
abaixou seu livro, olhou direto para Jonathan, e disse:
“Jonathan, antes que avancemos, quero lhe pedir, diante dessas
testemunhas, que você afirme claramente que está aqui por seu livre
consentimento, e que você quer que eu, em nome de Jesus e com a
autoridade de sua Igreja exorcize quaisquer espíritos que possam estar
possuindo-o ou mantendo qualquer parte de você cativa, no corpo e na
alma. Responda- -me”. David olhou para a cabeça curvada de Jonathan. Ele
não podia ver seu rosto, somente aquele cabelo dourado, pequenas nesgas
de sua testa por entre seus dedos compridos de artista, e as graciosas mãos a
cobrir sua face.
“Jonathan, por favor me responda”, disse ele após um instante de
silêncio. David reteve seu fôlego num suspense crescente.
“Eu consinto em estar aqui” – a voz de Jonathan era profunda e
melodiosa – “querendo que quaisquer males ou erros existentes sejam
exorcizados”. David respirou seguro novamente. Mas seu desconforto
retornou quase que imediatamente, quando Jonathan acrescentou: “O mal é
sutil. A injustiça é coisa velha. Todos os males devem ser corrigidos. Isso é
o verdadeiro exorcismo”.
“Nós estamos falando, Jonathan, precisa e unicamente de Satã, príncipe
da escuridão, o anjo da luz”, David apressou-se em dizer, com severidade.
Ele percebeu que Jonathan se agitara um pouco, como se para ouvir mais
atentamente. “Nós estamos nos propondo a descobrir essa presença e
expeli-la pela força de Jesus. Você consente?”.
“Eu consinto”.
Uma pausa. E então quando David estava prestes a colocar sua próxima
questão, Jonathan começou novamente. “Pobre Jesus! Pobre, pobre Jesus!
Tão mal servido. Tão mal descrito. Desfigurado tão rudemente. Pobre
Jesus! Pobre, pobre Jesus!”.
David parou abruptamente. A voz de Jonathan ainda soava como um
sino, como prataria ressoando. David decidiu assumir uma outra conduta.
“Agora, Jonathan, pela força em mim investida pela Igreja de Jesus, e em
nome de Jesus, eu quero colocar uma segunda questão. Você já concedeu
algo, ou aceitou, ou mesmo tratou com o Maligno intencionalmente,
conscientemente, que você se lembre?”.
A voz de Jonathan voltou a seu tom melodioso e calmo. “Fazer isso
contra Jesus seria uma traição comigo mesmo, com meu rebanho, com a
bondade de Jesus, com o mundo, com a vida mesma, com nossa paz
eterna...”.
“Jonathan, eu quero uma resposta, uma resposta inequívoca para minha
questão. Isso é importante”.
“Ao contrário, Jesus veio até mim, e eu me tornei seu sacerdote. Louvado
seja Jesus! Louvado seja o Senhor do nosso mundo!”.
David teve de se contentar com essa resposta, passando então à próxima
etapa.
“Então, Jonathan, nós iremos repetir, primeiro, o Credo, e então seus
votos batismais”. David esperava por esse meio evitar a necessidade de um
rito formal de exorcismo. No fim das contas, ele pensou, se Jonathan
pudesse responder a isso satisfatoriamente, então a possessão seria
possivelmente uma coisa parcial.
David tomou as primeiras frases do Credo. “Creio em Deus-Pai, todo
poderoso, criador do céu e da terra”. Ele aí pausou, esperando por Jonathan.
Mas Jonathan havia aparentemente começado antes de ele haver terminado
as frases e tudo o que David pôde ouvir foram as palavras “da terra”. Ele
começou a próxima frase, “E em Jesus Cristo”, mas teve de interromper
porque Jonathan ainda estava falando.
“Dois ou três bilhões de anos atrás, a Terra. Cada um de nós tem 50
trilhões de células. 150 milhões nos tempos de César. 3600 milhões em
nossos dias. 200 milhões de toneladas de homens, mulheres e crianças. Dois
trilhões de toneladas de vida animal...”
“Jonathan, vamos continuar...”
“Tudo isso para que Jesus pudesse surgir. Oh, belo Ômega! Louvado seja
Jesus! Louvado seja o Senhor deste mundo no qual todos nós estamos,
todas as nossas 200 milhões de toneladas de estão”.
David parou e olhou severamente para Jonathan. Ele ainda guardava o
rosto enfiado nas mãos, e dizia:
“Oh, o que foi que eles fizeram. Judeus e cristãos. Esses judaico-
cristãos”. A voz de Jonathan agora mergulhou num murmúrio enojado. “O
pontífice da criação – foi isso que todos os homens e mulheres fizeram”. Os
ombros de Jonathan tremiam; ele estava soluçando.
Uma vez mais como antes, David sentia em si uma estranha
receptividade a cada frase dita por Jonathan. Uma parte oculta dele mesmo,
que ele não conhecia, dizia novamente e com insistência, “Sim! Sim!”.
A voz de Jonathan adotou uma velocidade e uma urgência imponentes.
“E o que começou como um primeiro arbusto, um périplo das espécies, com
as rãs, os galos e pintassilgos voando em disparada rumo ao Ponto de Jesus,
súbito se transformou e fez do planeta um seu parque de diversões, o palco
para o seu espetáculo, seu domínio”. A voz mergulhou novamente numa
oração sussurrada. “Pobre Jesus! Pobre mundo! Louvado seja o senhor do
mundo para a luz! Pobre Jesus!”.
A onda de consentimento em David começou a azedar. Que era mesmo
que dizia o Padre G.? A memória de David começou a girar. O pânico
tomou conta dele. Ele procurou desesperadamente em suas recordações,
como um homem a revirar uma pilha de antigos papéis em busca de um
documento extremamente necessário. Ele buscou no começou, nas
primeiras instruções que o Padre G. havia dado tão diligentemente. O que
era mesmo?
A voz de Jonathan irrompeu sobre ele.
“Pe. David, você não está comigo. Por favor fique comigo!”. Ele insistia.
David fitou uma vez mais as graciosas mãos cobrindo o rosto e entremeadas
pelos cabelos dourados. Jonathan parecia um anjo de Deus vestido de luz,
fazendo penitência de joelhos pelos pecados do homem. David quis dizer-
lhe: “Sim! Jonathan, não tema! Eu estou com você! Sim!”. As palavras
surgiram em seus lábios como um drinque que lhe era oferecido. Mas uma
rápida onda de desconforto o atingiu novamente; e uma vez mais aquela
questão voltara como um bumerangue: contra o que mesmo é que o Padre
G. o havia prevenido? O que é que ele havia dito? O que era mesmo? A voz
de Jonathan eclodiu novamente.
“O Padre G. já se foi e não volta mais”. David estava chocado pela
leitura que Jonathan fizera de seus pensamentos mais íntimos. “De volta ao
útero de todos nós. Deixe que os mortos enterrem seus mortos, Pe. David.
Você e eu, nós vivemos. Caminhemos na luz, enquanto ainda a temos”.
Jonathan falava, agora, misturando as Escrituras com suas próprias
palavras. David afastou-se como se repelindo uma influência que lhe
chegasse da parte de Jonathan; e sua mente fraquejava ao tentar
reconquistar o território perdido. Ele ergueu seu olhar em direção ao teto.
Sentiu-se encurralado: só havia, ali, Jonathan e ele próprio, e entre ambos
um estranho éter, um corredor invisível por onde se dava a comunicação. E,
o tempo todo, sua memória ainda estava tateando e trabalhando
anormalmente, buscando terra firme para sua mente e sua vontade. Ah!
Enfim! Era isso o que o Padre G. dizia: “O Anjo da Luz”. Era isso o que ele
queria lembrar. “O Anjo da Luz”. E o Padre G. o avisara, também: “O
perigo, no seu caso, David, é que você pensa demais. Muito trabalho do
velho cerebelo. O senhor fala no seu coração”.
Uma forte sensação de alívio atravessou David. Um espaço se abria
dentro dele – livre, sem misturas, simples, espaçoso, puro, íntimo –
intocado por aquele complicado caminho negro que se abrira entre ele e
Jonathan.
E então uma palavra cortante – seu próprio nome pronunciado como o
estalo de um chicote – atingiu seus ouvidos.
“David! David!”. Era Jonathan. Agora a voz tinha uma nota de
admoestação, o tom usado por um mestre ou superior. Os papéis foram
curiosamente invertidos.
David ouvia seu jovem padre assistente sussurrando em seu ouvido:
“David, ele está tremendo. Você acha que ele está bem? O médico está com
medo...”. David respondeu com um gesto, e olhou para Jonathan
novamente, de perto. O rosto de Jonathan ainda estava escondido em suas
mãos, mas parecia, aos olhos de David e de seus assistentes, estar sendo
torturado por angústias e tristezas.
David decidiu tentar uma outra abordagem. Ele precisaria apoiar-se em
algo. Era necessário fazer com que de algum modo Jonathan resistisse ao
espírito maligno que o possuía; ele tinha de forçar a saída daquele espírito.
E tinha de se controlar a si próprio para conseguir fazê-lo.
Olhando em retrospectiva, dada a natureza de David, sua ação era quase
inevitável. E dada a realidade de sua situação como distinta daquela de
Jonathan, o que se seguiu foi ao mesmo tempo inevitável e necessário.
Ele se aproximou de Jonathan. A compaixão tomava conta de sua mente.
Ele pousou sua mão suavemente no ombro de Jonathan e disse:
“Jonathan, meu amigo. Não ceda à tristeza. Eu nunca deixarei nem
abandonarei meus esforços. Eu não desertarei até...”
“Eu sei que você não vai...”. A voz de Jonathan parecia estar sendo
forçada numa violenta contração de seu peito e de sua garganta. “Eu sei que
você não vai porque” – Jonathan pausou e inspirou profundamente – “meu
irmão, você não pode. Você não pode”. Aquilo foi de uma aspereza terrível,
que o atingiu como um punho cerrado na mente. David começou a retirar
sua mão; e, ao fazê-lo, sentiu estranhos impulsos em sua mente: uma
convicção de que ele e Jonathan eram as duas únicas pessoas sãs naquele
quarto. Os outros, seu jovem colega, o médico, o psiquiatra, eram
manequins, modelos plásticos da realidade, heróis burlescos de uma piada
cósmica. Só Jonathan e ele próprio. Só Jonathan e David.
“Você entendeu, David!”, sussurrou Jonathan, num silvo áspero.
Quem estava no controle?
“Entendi o que?”. David mal disse essas palavras quando teve uma
espécie de intuição de alguma coisa para além das palavras, uma corrente
comum de pensamento, como se David e Jonathan estivessem
compartilhando de um mesmo cérebro ou alguma faculdade intuitiva mais
elevada, que dispensasse a necessidade de comunicação boca a boca.
“Entendi o quê?”, David disse repetidas vezes. Era uma espécie de grito,
um protesto contra o engano. Pois naqueles momentos tudo ficou claro para
ele. Ele entendeu pela primeira vez: ele próprio estava sendo lentamente
impregnado do mesmo espírito maligno que controlava Jonathan; e
entendeu que Jonathan também sabia disso.
Jonathan ergueu sua face subitamente e olhou para David. Sua mão
direita, com o dedo indicador torto, aproximou-se da mão de David pousada
sobre seu ombro. David parecia ter visto um fantasma: pálido, contraído,
olhos fixos, lábios tesos, respiração curta, suando em bicas. Pois ele vira
que o rosto de Jonathan estava enrugado e retorcido, não por sofrimento,
mas sorrindo. Ele não tremia por conta de um soluço, mas por risos
contidos. E aqueles risos então irromperam de seus lábios numa rajada
aliviada. Ele gritou na cara de David.
“Você é igual a mim, David! Pe. David!”. O assistente de David,
Thomas, se aproximou de David. O médico e o psiquiatra caíram para trás,
tomados de surpresa, olhando incrédulos de David para Jonathan e vice-
versa. David contraiu o ombro, recusando a oferta de ajuda do Pe. Thomas.
“Você adotou o Senhor da Luz, como eu fiz, seu velho idiota!”, berrou
Jonathan em meio aos seus risos histéricos. Ele livrou-se da mão de David e
pôs-se de pé. “Médico, cure-se a si mesmo!”.
Jonathan rugiu com gosto. Seu riso preenchia o pequeno quarto; ele se
contorceu de tanto rir, dando tapas em seus joelhos, as lágrimas correndo de
seu rosto. “Ha-ha! David, você é uma piada. Você é meu parceiro espiritual.
Você não acredita numa só vírgula dessa patacoada infantil”. Cada palavra
atingia David como um golpe físico. “Hoc est corpus meum! Você está tão
livre quanto eu, cara. Você pertence ao Novo Ser e ao Novo Tempo”.
Subitamente Jonathan se acalmou. “E você estava tentando me
exorcizar?”. O desprezo que tomou o lugar dos risos era tremendo. Ele se
inclinou para frente, avançando seu rosto bem próximo ao de David. Num
tom lento e ponderado, enfatizando cada palavra: “Saia daqui, seu
animalzinho insignificante! Dê o fora daqui com esses espantalhos que você
trouxe junto. Vá cuidar das suas feridas. Vá ver se o seu docinho, o Jesus,
vai curar você. S-a-i-a d-a-q-u-i!”. As últimas duas palavras, entregues
lentamente, foram carregadas de desprezo.
David era, agora, como um homem tentando se reerguer após um
violento ataque físico. “Venha, Pe. David”, o jovem padre disse silenciosa
mas urgentemente, tendo reparado o olhar de superioridade no rosto de
Jonathan. “Vamos, David”, disse o médico.
David virou-se por um instante e olhou para Jonathan. Os outros não
perceberam qualquer sinal de temor no rosto de David, só confusão e
pânico. Os olhares dos assistentes seguiram aquele de David. E Jonathan
observava a retirada deles. Sua aparência havia mudado por completo. Sua
cabeça estava erguida. Ele estava de pé, ereto. Seus cabelos dourados caíam
por sobre os ombros como um halo em torno da chama de uma vela. Seus
olhos azuis brilhavam de uma luminosidade fosca. Sua mão direita estava
erguida de tal modo que seu indicador rijo repousava sobre sua garganta. A
mão esquerda balançava ao lado do corpo.
“Vá para a escuridão, seu idiota!” gritou Jonathan num alto falsete. Sua
mão direita desceu num gesto perverso e varreu os castiçais de sobre a
mesa, caindo no chão. As velas se apagaram e o quarto caiu na penumbra
quase total. O jovem padre foi abrir a porta. Os quatro homens saíram
rapidamente. “Para a escuridão! Idiotas!”. A voz de Jonathan os perseguia.
Ao sair, eles logo perceberam que o dia já era quente; dentro, no cômodo,
eles sentiam frio.
David foi aos tropeços até a entrada e se apoiou contra a parede. Ao lado
da chapeleira estava a mãe de Jonathan, sentada numa cadeira ornamental
de costas estreitas. Suas mãos, pousadas sobre o colo, empunhavam um
terço, com os olhos fechados, a cabeça baixa. Após alguns instantes, ela
ergueu o pescoço, e sem olhar diretamente para David, falou numa voz
calma, cheia de uma tristeza resignada:
“Ele está certo. Meu filho. Escravo do demônio. Ele está certo, Pe.
David. Você precisa se purificar. Que Deus o ajude”. E então, sentindo certa
apreensão da parte de David e dos outros por sua sanidade ou sua fé, ela
acrescentou: “Eu sou sua mãe. Nenhum mal pode me atingir”. Era algo
completamente instintivo o que ela dizia. Mas David tinha certeza de que
ela estava correta.
David passou, trôpego, pela mãe de Jonathan. Ninguém olhou na cara
dela. Seus colegas retiraram David cuidadosamente, levando-o até um carro
e conduzindo-o ao seminário. Chegando em seu quarto, ele sentou-se,
cansado, com o jovem padre, por cerca de uma hora.
“O que faremos, Pe. David?”, Thomas perguntou finalmente. David não
respondeu. Ele estava agora inteiramente ocupado consigo mesmo e com a
realidade negra que descobrira dentro de si. Ele olhou para o jovem padre e
sentiu-se estranhamente deslocado. O que é que ele tinha em comum com
aquele rosto jovial, a batina preta, a gola romana e, sobretudo, aquele olhar
do jovem sacerdote? Que olhar era aquele, aliás? Será que ele, David, já o
tivera algum dia? Seria aquilo tudo uma piada? Uma simples charada ou
uma peça pregada por uma criança? Jovens padres devem crer – como as
jovens criancinhas. Eles então crescem – como as crianças. E então deixam
de ter esse olhar. Deixam de “crer”?
“Você está repleto de aspas, Thomas”, disse, confusamente, ao jovem
padre. Ele então caiu em silêncio, ainda fitando seu colega. O que diabos
era crer, afinal? Aquele olhar vazio! Que olhar era aquele! Como se tudo
fosse açucarado, meloso... como se tudo fosse gentileza, conto de fadas e
credulidade infantil. Por que aquele olhar era tão aberto, tão arregalado?
“Pare com esse olhar idiota!”. Disse David, atirando as palavras contra
Thomas. Ele então se deu conta do que acabara de fazer. “Perdão, Thomas”,
murmurou pouco convincente, vendo que o rosto do jovem estava pálido.
David começou a chorar silenciosamente.
“Padre David”, lançou Thomas numa só expiração. “Eu não tenho
experiência. Mas você precisa de descanso. Deixe-me telefonar para sua
família”. David consentiu, desamparado.
No começo da tarde David foi conduzido até o condado de Coos, de volta
a sua casa na fazenda. Seus pais estavam felicíssimos em vê-lo. Eles agora
viviam sós exceto por um empregado residente e um jardineiro que ficava
na fazenda.
Naquela noite David foi para a cama no quarto que ele ocupara durante
sua infância e adolescência. Mas em dado momento, após a meia- -noite,
ele acordou coberto de suor e tremendo como uma folha seca. Ele não sabia
por quê, mas fora tomado de uma sensação premonitória. Ele se levantou,
desceu até à cozinha e esquentou um pouco de leite. Ao retornar ao seu
quarto, parou à porta do quarto do Velho Edward. Ele ficou ali por um
instante, bebericando o leite e pensando de um modo vago e distraído. Tal
como ele o descreve hoje, sua mente ainda procurava entender a situação,
como a imagem de uma TV fora do ar, buscando a sintonia. E então, sem
nada de particular em mente senão um impulso cego, ele abriu a porta do
quarto, alcançou o interruptor, e adentrou.
O quarto estava basicamente no mesmo estado em que o deixaram na
tarde da morte de Edward, exceto por uma mudança: uma grande fotografia
de Edward, tirada alguns meses antes de ele morrer, pendia acima do
console da lareira. Ela olhava para David. Ele sentou-se por cerca de uma
hora naquele quarto. E então, guiado pelo mesmo impulso cego, ainda sem
pressa, foi até seu próprio quarto, transferiu suas roupas de cama e seus
pertences até o quarto de Edward, e foi dormir ali.
David ficou por quase quatro semanas na fazenda. De início, ele saía
todos os dias para longas caminhas e para fazer um pouco de trabalho
manual na fazenda. Às vezes ele passava pelo pequeno bosque a oeste da
casa, mas nunca o adentrava. Ele ficava ali parado por um tempo,
refletindo, e ia embora. Visitava alguns antigos amigos, e passava boa parte
de suas tardes com seus pais.
Por volta do final da primeira semana, essa agenda livre e variada
mudou. Ele começou a passar a maior parte do dia e da noite em seu quarto,
saindo apenas para as refeições, raramente deixando a casa. E então, por
volta da terceira semana, ele não mais saía de todo, exceto para usar o
banheiro. Não abria as persianas em seu quarto. Comia parcamente, e, ao
fim, vivia de leite com biscoitos e umas frutas secas que sua mãe deixava
numa bandeja do lado de fora do quarto.
Desde o início de sua estadia ele havia prevenido seus pais para que não
se alarmassem com seus hábitos. Em seu primeiro dia ali, ele partira em
visita ao Padre Joseph, sacerdote local, a quem lecionara no seminário.
Durante os últimos dez dias da estadia de David na fazenda, aquele padre
era o único ser humano que visitava e falava com David.
David manteve um minucioso diário durante essas quatro semanas; e,
exceto por certos momentos em que ele perdia controle de si (de tais
momentos ele não têm lembrança muito clara), temos uma cronologia dos
eventos mais ou menos clara – a experiência interior pela qual David
passou e os fenômenos exteriores que marcaram esse período crucial.
Durante todo esse período, em Manchester, Jonathan viveu em casa com
sua mãe.
Foi difícil estabelecer qualquer tipo de comparação entre o modo como
David e Jonathan passaram esses dias e horas específicos ao longo dessas
quatro semanas, mas há um indício claro de que alguns estados pelos quais
David passou coincidem – por vezes mesmo em horário – com momentos e
comportamentos estranhos na vida de Jonathan.
Nosso principal intuito, contudo, é retraçar a experiência de David. Pois,
em linguagem técnica teológica, o Pe. David M. estava desprovido de
qualquer crença consciente. Sua fé religiosa acabara de ser testada num
assalto que quase o tirou totalmente de campo. Mental e emocionalmente,
ele se encontrava num estado de alguém sem qualquer tipo de fé religiosa.
Nesse mesmo sentido, David, que ainda sentia sua vocação de sacerdote
como válida, havia cedido, em sua mente e em suas emoções, a uma certa
forma de possessão.
Nenhum combate teria ocorrido, nenhuma agonia, se a vontade de David
não tivesse permanecido teimosamente agarrada a sua fé. Ele teve de lutar
milímetro por milímetro, por assim dizer, em prol da sobrevivência de sua
fé contra um espírito que ele havia deixado entrar e que agora contava com
tomá-lo por completo. Conscientemente, ele vinha admitindo idéias e
argumentos persuasivos por muito tempo. Ele não havia percebido, até
então, que todas aquelas idéias motivantes e argumentos persuasivos, com
toda uma aparência de “objetividade”, continham uma dimensão moral e
uma relação com o espírito – bem e mal. Ele não tinha se dado conta,
aquele tempo todo, de que nada é moralmente neutro. Com essas idéias,
argumentos e falhas como o mais apropriado veículo, algum tipo de espírito
o havia adentrado, algo alheio a ele mas que agora clamava por controlá-lo
por completo.
Durante essas quatro semanas na fazenda de Coos, a vida religiosa inteira
de David se projetava em sua memória com enorme intensidade, como
fotografias sendo folheadas com o polegar – a infância, a época de escola,
os estudos no seminário, a ordenação, os estudos de doutoramento, as
viagens como antropólogo, as aulas, tudo o que ele havia escrito em artigos
e livros, as conversas que ele travara, em painéis que se alternavam
constantemente. Quando ele chegava ao fim, tudo recomeçava.
Camafeus. Pequenas histórias. Rostos já há muito esquecidos. Palavras e
sentenças ecoando em fragmentos. Lembranças vívidas. Cada qual com sua
própria conclusão. O dia em que ele falou à Irmã Antonio, na escola do
convento, que não era possível que Jesus coubesse na hóstia consagrada.
David tinha oito anos de idade. A irmã deu uma palmadinha em sua cabeça:
“David, seja um bom garoto. Nós sabemos o que é certo”. Eles não lhe
deram nenhuma escolha, nenhuma resposta. Nenhuma escolha. Nenhuma
escolha, ecoava no silêncio.
Sua entrevista com o bispo para ser aceito no seminário: “Se você se
tornar padre, estará sendo chamado a uma perfeição de espírito que não é
oferecida à maioria dos Cristãos”. O espírito não é elitista. Não é elitista.
Não é elitista. Não é elitista, seguia ecoando.
Os ecos soavam pelos corredores dos anos no cérebro de David, e as
“fotografias” continuavam a desfilar diante dele.
Ele lembrou do momento em que passou a estar convencido de que não
havia registros confiáveis sobre Jesus escritos durante a própria vida dele.
Nos quatro evangelhos, nos Atos dos apóstolos e nas cartas de Paulo, só
havia ensinamentos daquilo que homens e mulheres acreditavam e
pensavam saber 30, 40, 60 anos após a morte de Jesus. Ainda que eles
acreditassem saber, como poderia David estar seguro de que eles sabiam?
Ele pensava e acreditava somente no que eles pensavam e acreditavam. “Eu
não tenho registros disso. Isso parece ser ilusão”. Ilusão. Ilusão. Ilusão.
Aquela palavra era um martelo a golpear sua espiral de memórias.
E então mais um flash da memória, mais uma mudança, mais uma ponta
de maldade. Onze anos antes, David partira numa excursão pelos locais em
que Jesus havia vivido e morrido. Logo após, ele visitou Roma e passou
longos dias visitando seus monumentos, basílicas e tesouros. Ele
acompanhou as cerimônias na basílica de São Pedro. Quando ele começou
o caminho de volta para casa, rumo à América, uma questão o perseguia:
qual era a relação que poderia haver entre a vida obscura de Jesus naquela
terra sofrida, assolada pela pobreza, estéril, e aquela panóplia exorbitante,
toda aquela glória da Roma papal? Talvez ele só se desse conta agora, mas
ele havia chegado a uma conclusão velada durante aquela viagem: não
havia realmente um nexo. Agora sua memória seguia repetindo, em
dolorosos golpes: não tem nexo, não tem nexo.
Quatro anos antes, ele havia aberto uma antiga tumba no nordeste da
Turquia. Em seu interior, ele e um outro arqueólogo haviam encontrado o
cadáver de um capitão enterrado, cercado de ossos de homens e animais
sacrificados para seu funeral. Os ossos, as armas, os utensílios, a poeira e o
pathos daquilo tudo o haviam chamado a atenção. Eram homens como ele.
Eles não tinham notícia de Jesus. Como poderiam ser julgados por não
saberem nada sobre Jesus e a cristandade? Certamente David tinha uma
idéia muito reduzida de Jesus? Certamente a verdade era maior do que
qualquer dogma? Do que qualquer conceito de Jesus como homem ou
Deus, ou qualquer forma que Jesus tomasse? Tinha de ser isso. Do
contrário, nada faria sentido. Maior que Jesus. Maior que Jesus. Maior que
Jesus. Mais um eco feria sua memória.
Aos poucos foi se tecendo um fio mortífero, que reunia todos os
ressentimentos num emaranhado, todas as queixas da razão e toda a
arrogância da lógica expostas até à medula. E o tecido da fé se desfez, e
novas vestes cobriram sua mente e alma. O fio era o aceite de David às
teorias de Teilhard de Chardin. Aceitando-as, ele não mais podia tolerar a
quebra entre a natureza material do mundo, de um lado, e Jesus como
salvador, do outro. Materialidade e divindade formavam um só; o mundo
material unido à consciência e à vontade do homem, ambos emergindo da
mera materialidade, tão automaticamente quanto uma galinha de um ovo; e
a divindade de Jesus emergindo de sua humanidade, tão naturalmente
quanto um carvalho de uma bolota, tão inevitavelmente quanto a água a
correr para baixo.
Jesus – tão integrado ao universo, tão íntimo ao seu ser, tão
completamente físico – era diferente daquilo que os dogmas religiosos
diziam, ele era maior do que o credo cristão jamais o compreendeu. Jesus,
cada homem, cada mulher, eram todos irmãos das rochas, irmãs das
estrelas, “co-seres” com todos os animais e plantas. Tudo se tornara fácil de
compreender. Todo se reduzia ao átomo; e igualmente tudo derivava do
átomo. Tudo se encaixava.
Chega de Teilhard, pensou David, com amargor.
Tomado de uma angústia que ele não conseguia conter, David percebeu
as conseqüências de tudo aquilo, só naquele momento, no sofrimento
solitário e na dolorosa vigília de sua alma. Toda e qualquer reverência e
temor haviam evaporado de sua mentalidade religiosa. Para o mundo a seu
redor, ele não reservava senão um senso de uma alegre consanguinidade –
mesclado com certo temor. Para Jesus, somente um satisfatório sentimento
de triunfo, assim como para com qualquer herói antigo e amado. Para a
Missa, um sentimento indulgente, semelhante àquele experimentado ao
observar as celebrações de qualquer quatro de julho. A crucifixão e morte
de Deus eram gloriosos eventos do passado, antigas demonstrações de um
amor heróico, não uma fonte ainda presente de perdão pessoal; não uma
inabalável esperança de futuro.
Isolado em seus pensamentos e memórias, a questão que David se
colocava não era onde ou como as coisas haviam dado errado, mas como
recuperar a força de sua fé. Conforme os anos passavam continuamente em
sua memória, como diversos painéis perfilados, David parecia próximo a
eles, num escrutínio de cada detalhe.
Conforme os dias passaram, aqueles painéis panorâmicos se moviam
cada vez mais rápido, um atrás do outro, repetindo-se mais e mais vezes.
Ele ainda podia ler os detalhes. Cada frase soava e se esvaia conforme seu
painel correspondente vinha e partia. Não há escolha. Não é elitista. Ilusão.
Não tem nexo. Maior que Jesus. Irmãos das rochas.
Certo dia, no início da terceira semana na fazenda de Coos, após a meia-
noite, David pareceu subitamente estar se afastando do seu minucioso
escrutínio dos painéis cambiantes, ou então eles é que se afastavam dele,
recuando rumo a uma escuridão no fundo de sua mente que ele não notara
antes. David se deu conta de que não estava a olhar para painéis que
passavam diante dele da direita para a esquerda; ele estava próximo a uma
esfera giratória que agora se afastava. Distanciando-se dele e ainda a girar,
ela retratava todas as fases de sua vida, continuamente e sem interrupção
em volta da superfície ligeiramente convexa daquela bola luminosa.
Das profundezas oníricas vinham os sons de todos os seus anos pretéritos
– palavras, vozes, línguas, músicas, choros, risos. A esfera tinha uma certa
qualidade mesmeriana, 2 parecia um carrossel emitindo uma luz leitosa.
David parecia estar olhando para si mesmo.
Uma vozinha, contudo, continuava sussurrando dentro dele: Por que eu?
Por que eu estou sendo atacado? Por que eu? Onde está Jesus? O que é
Jesus?
Olhando para a esfera, ele soube que estar de algum modo misterioso
olhando para a pessoa mesma que ele havia se tornado. Quanto à sala ao seu
redor, o tato da cadeira na qual ele estava sentado, o atrito das roupas contra
sua pele, quanto a isso finalmente ele não estava nem indiretamente
consciente.
Agora, sem nenhuma pausa ou movimento abrupto, a luz daquela esfera
giratória começou a diminuir. Mais e mais da escuridão ao redor dela
começou a cobrir os painéis com sombras, ranhuras de escuridão, pequenas
linhas fugazes de invisibilidade. O eu que ele havia sido e conhecido estava
se volatilizando na escuridão. David entrou em pânico, mas parecia incapaz
de reagir.
Ele então teve a sensação de não mais estar olhando para fora, para o alto
ou para qualquer direção que fosse, mas de pender na escuridão.
Alimentava o seu desamparo e seu pânico a convicção de que era ele a
causa daquele vazio obscuro, e de que ele precisava daquilo. Do contrário,
assim lhe parecia, ele cairia no nada.
E então, finalmente, tudo o que ele sempre fora ou soubera de si havia
desaparecido. O eu ao qual ele agora se reduzia pendia por um fio invisível
– mas só enquanto ele pudesse manter aquela escuridão. O pânico de David
se fazia curtir numa salmoura de rancor que surgia nele, rancor por estar
desprovido da luz, da salvação, da graça, da beleza, de motivos para a
santidade, do conhecimento sobre a simetria física, de todas as percepções
da eternidade de Deus. Sua reação a esse rancor: Por que eu?
Ele esperava atento. Horas. Dias. Sua expectativa tornou-se tão intensa,
tão opressiva que ele aos poucos percebeu não mais estar esperando por sua
própria volição. A espera estava sendo evocada de dentro dele por alguém
ou algo exterior. Ainda assim, a cada vez que ele tentava imaginar quem ou
o que estava inspirando aquela espera, seu próprio esforço de imaginar
encobria tudo. A única coisa que ele podia fazer era esperar, estar pronto
para a espera, para viver na expectativa.
E então instalou-se nele uma tristeza que ele não conseguia dissipar. Ele
não sentia mais nenhuma confiança em si ou em nada por ele conhecido.
Pois tudo parecia estar reduzido a uma situação sem circunstâncias, um
padrão sem fundo, uma estrutura saturada de vazio pela qual corriam as
rajadas furiosas dessa influência estrangeira, a qual ele não podia nem
repelir e nem controlar. Ele estava desesperado. E, ao final, ele dormia,
acordando somente com a luz do dia a penetrar pela janela saliente.
De manhã, David saberia que aquilo tudo fora real: ele estava isolado de
tudo o que já fizera por si e de tudo o que já fora. Era preciso esperar. Mas,
descoberta grave, ele se deu conta de que seria naquelas condições que ele
teria de esperar. Esperar por aquilo que ele nem sabia o que era.
Uma conversa que David teve com o Pe. Joseph, no fim da terceira
semana, revela o ponto crucial de sua batalha interna, e seu estado mental
na última fase de sua experiência de quatro semanas. Era a terceira visita do
Pe. Joseph. A cada encontro ele questionava David sobre a experiência pela
qual ele estava passando, e a cada vez, ele próprio, Joseph, deixava a casa
tomado de uma tristeza insuportável. E David lhe avisara: “Não vasculhe
muito a fundo, padre. Você só irá se machucar. E venha me ver durante as
manhãs. À tarde eu fico um pouco sonolento. De noite e de madrugada, só
eu mesmo consigo aguentar”.
Dessa vez, entrando no quarto de David a partir do iluminado corredor
externo, Pe. Joseph esperou um instante até se acostumar com a penumbra.
Pequenas linhas da luz solar tocavam as bordas das persianas. No canto
oposto do cômodo, próximo à lareira, ele viu David sentado diante de uma
mesinha, debruçado diante de um escrito. Uma vela estava disposta sobre a
mesa; era toda luz que David se permitia utilizar.
David levantou-se e apontou uma cadeira com braços quando o Pe.
Joseph chegou. “Sente-se, padre”. Os olhos de ambos não se encontravam
enquanto ele falava.
Já há alguns dias David não se barbeava. Ele estava esquálido, com as
bochechas cavadas. Seu rosto tinha muito pouca cor. Mas foi a imobilidade
da face que primeiro impressionou o visitante. Suas bochechas, testa, nariz,
queixo e pescoço pareciam estar congelados, como se um excesso de
determinação interior, o excesso de uma resistência constante houvesse
resultado num total enrijecimento de sua face, configurando seu rosto num
molde sem expressão.
Seus olhos chamaram particularmente a atenção do Pe. Joseph. Eles
pareciam ter crescido, as pálpebras pareciam pesadas, as escleras mais
alvas, as pupilas mais escuras do que costumavam ser. Obviamente David
vinha chorando um bocado. Mas naquele momento seus olhos estavam
límpidos, o olhar fixo e distante.
Não havia qualquer indício de um sorriso ou qualquer emoção prazerosa,
mas tampouco havia desprazer. Nenhum medo, nenhum dor. Nem
tampouco estavam os olhos de David em branco; eles traziam certa
expressão; mas essa expressão era totalmente desconhecida de Joseph. Ele
nunca a havia visto antes nos olhos de ninguém, e era incapaz de explicá- -
la ou descrevê-la. Ele estava olhando para os olhos de alguém que havia
visto coisas das quais ele não tinha nem indício.
Joseph teve o bom senso de evitar quaisquer piadinhas, e nem mesmo
perguntou a David como ele estava. Ambos se sentaram em silêncio, cada
um deles compreendendo o que se passava na mente do outro.
Do exterior, alguns débeis sons esparsos penetravam no cômodo, um
caminhão passando na estrada, o pio de alguns pássaros, um cachorro
latindo numa fazenda distante.
“Eu não acho que o verdadeiro ataque já tenha chegado, Pe. Joe”, disse
David lentamente ao seu visitante, em cuja mente essa era, de fato, a
principal questão. E ele então acrescentou, como se respondendo a um
inquérito: “Sim, eu saberei, porque os outros virão ao mesmo tempo”.
Ambos esperaram. O visitante de David sabia, das conversas anteriores,
quem eram “os outros”. David estava convencido de que sua soltura
daquela provação só poderia se dar através dos espíritos de Salem que o
Velho Edward mencionara em seu leito de morte. Mas de um modo ou de
outro, o Velho Edward estava agora associado na mente de David com
aqueles espíritos.
Então David disse: “Tem sido difícil, mas suportável até aqui”. O Pe.
Joseph atirou um olhar discreto sobre David: seus olhos estavam abatidos e
miravam a mesa. Joseph desviou seu olhar num constrangimento que ele
mesmo não conseguia entender. A voz de David era profunda, muito
profunda, e cada palavra lhe saía como se um especial esforço fosse
necessário para formá-la.
“Não”, prosseguiu David, respondendo a mais uma questão não
verbalizada de Joseph. “Não há nada que você possa fazer. Devo lutar
sozinho. Reze. Isso é tudo. Reze. Muito. Reze por mim”.
Houve mais um longo silêncio. Àquela altura Joseph já entendia que o
silêncio entre eles transbordava de uma conversa que ele não seria capaz de
classificar. Ele não conseguia descobrir como aquilo estava funcionando ou
de que ela tratava exatamente. Joseph era um homem simples, sem
quaisquer idéias sutis ou complexidades de espírito. Seu coração e seus
instintos não haviam sido imersos no pseudointelectualismo. Ele percebia,
sim, que era uma conversa sutil e íntima que ia muito além de todas as
palavras, e de fato nem carecia delas. Ela passava entre os dois por um
outro meio. Mas Joseph recusava-se, cuidadoso que era, até mesmo a
visualizar o tal meio. Ele sentia que uma proximidade muito grande com
aquele fenômeno implicaria em que ele nunca mais seria capaz de falar com
palavras novamente. As palavras começavam a se tornar borrões crus e
vulgares de som, sem sentido, sem refinamento. David e Joseph estavam,
ambos, caminhando naquele momento para além do tênue limiar que separa
a língua do sentido, e o sentido era então uma nuvem que envelopava
ambos.
Pe. Joseph esperou até sentir, da parte de David, que era preciso que ele
fosse embora. Começou então a se levantar calmamente. David disse:
“Celebre uma Missa por eles. Eles precisam de orações. Eu falhei com eles.
Agora eu preciso da ajuda, do perdão deles”. Joseph olhou para ele com um
olhar questionador, mas conteve as palavras que irrompiam de seus lábios.
Joseph acreditava, agora, que David já havia recebido a “visita”.
Durante a semana seguinte, quarta dele na fazenda, os dias de David e a
maior porção de suas noites eram passados na cadeira em frente à janela
saliente. Perto do último dia antes do combate final, um curioso silêncio
caiu sobre ele. Não era algo que lhe amedrontasse, mas era tão profundo e
tão desprovido de qualquer movimento em seus pensamentos, emoções e
memórias que a incerteza por ele provocada tomou a forma de um
angustiante pressentimento.
Ainda assim, nenhum pressentimento poderia expressar a angustiante
realidade vivida por seus “visitantes” em suas “visitas”.
O primeiro sinal da presença deles veio por volta das onze horas de uma
noite. Durante todo aquele dia uma tempestade desabara sobre a fazenda. A
tormenta havia impedido o Pe. Joseph de fazer sua prometida visita
semanal. David havia passado o tempo contemplando as rajadas d’água e os
relâmpagos desde sua janela. E então, exceto por um distante murmúrio de
trovões e uma súbita e ocasional pancada de chuva, a tempestade
enfraquecera.
David podia sentir o manto de exaustão que sempre pairava sobre o
campo após os açoites do vento, dos raios, dos trovões e da chuva.
Geralmente a terra logo sacudia aquela calmaria toda e retomava seu ritmo
noturno, armazenando energias, respirando, rebobinando, renovando- -se,
aguardando o sol e a luz do novo dia.
Ele aguardou aquele inevitável farfalhar nos campos ao redor da casa.
Mas naquela noite o silêncio e a exaustão pareciam se prolongar. Uma mão
controladora havia interrompido o curso da natureza com o objetivo de abrir
caminho para visitantes especiais. E, na consciência de David, todas aquelas
mudanças pairavam como meros comentários de seu próprio estado de
espírito.
Mesmo a parcela mais consciente de seu ser sentia a ansiedade da
expectativa, de um sentimento de espera que se aprofundava mais e mais,
com aquele prolongado silêncio pairando por sobre a terra. Uma vez mais
David parecia debruçar-se sobre aquele vazio obscuro. A espera parecia ser,
uma vez mais, a essência mesma de seu ser, a única razão para a
continuidade de sua existência. “Enquanto eu puder esperar...”, era esse seu
estado de espírito. Esperar, perseverar, ver, ouvir.
Após talvez uma hora, ele percebeu que em algum lugar próximo dele
soava um som curioso.
De início, ao ouvi-lo, aquilo não chamou muito sua atenção. Era tão
débil, deveria ter sido o som e a sensação do sangue pulsando em seus
próprios ouvidos. Mas após alguns segundos, ele começou a distingui-lo.
Seu corpo se enrijeceu conforme o som começou a crescer em intensidade.
Ele não podia identificar o som. Dentro dele, mas de certo modo
conectado àquele som débil, pequenos punhados de memória tocavam sua
consciência brevemente, atormentando-o no saltar de uma a outra,
deixando-o ainda mais tenso. Ele parecia se lembrar. Pequenos fragmentos,
estilhaços de espelhos quebrados refletindo os fantasmas de uma vida; mas
ele não conseguia decifrar exatamente o que estava sendo rememorado.
David se deu conta de que o ato de tentar lembrar era, em si, um bloqueio
à lembrança; o ato de pensar era um obstáculo ao conhecimento. A certa
altura, o som se dissipou completamente. Ele subitamente estava só, e viu-
se a si mesmo caindo para trás, bruscamente, sobre a cadeira. Ele estivera
meio inconsciente, aparentemente, em seu esforço de ouvir aquele som. As
palmas de suas mãos e sua testa estavam molhadas. E sua ânsia de entender
parecia infinitamente frustrada.
E então o som ressurgiu. David percebeu que ele não vinha de nenhuma
direção em particular. Não vinha de fora da casa. Nem de dentro dela. Nem
mesmo se poderia dizer que ele estava vindo de todas as direções ao mesmo
tempo. Ele sentiu, ingenuamente, que de um modo ou de outro, aquilo era
um som permanente, que sempre estivera ali, ao seu redor. Ele o ouvira
desde sempre, mas nunca o havia escutado, ou nunca se permitira perceber
que o ouvia.
Ele virou sua cabeça para a direita e para a esquerda. Chacoalhou-a,
ouvindo o que se passava no interior da sala. E com uma violência súbita
ele entendeu porque o som parecia não estar vindo de direção alguma. Pela
primeira vez em sua vida ele entendeu o que era um som captado em seu
cérebro e em sua mente sem quaisquer das condições externas normais da
escuta – nada de ondas sonoras, nem de fontes externas do som ou de
funções de seus tímpanos. Ele entendeu, sem qualquer dúvida, que aqueles
eram sons reais que não podiam ser captados com os ouvidos externos.
A estranheza física daquela nova escuta continha um misterioso fervor de
realidade. Era mais real do qualquer outro som que ele pudesse ter ouvido
no mundo físico. Ela quebrava o silêncio da noite e sua vigília de modo
mais penetrante do que um tiro de revólver que fosse disparado lá fora. Era
profundamente reconfortante, pois dispersava o silêncio ao redor de um
modo íntimo e envolvente, porque vinha de lugar nenhum, e ainda assim
preenchia toda sua escuta interna. Mas intimidador, pois lhe parecia muito
pouco terno.
Aquele som era uma revelação. Ele agora entendia que ali havia um
conhecimento de coisas materiais e um modo de obter aqueles
conhecimentos – naquele caso, dos sons – que não vinha por meio de seus
sentidos. Seu medo e sua falta de confiança combatiam aquela percepção
sempre que um som brusco – o trilo de um pássaro à noite, o chilrear de
uma coruja – tocava seus ouvidos do modo normal. Aqueles sons novos,
assustadores, pareciam pertencer à substância mesma das coisas audíveis, e
a percepção deles parecia ser algo absolutamente verdadeiro. Os sons
exteriores da noite – mesmo o casual arrastar de seus pés no chão –
pareciam pertencer a um mundo fugaz, artificial, de modo algum real, mas
meramente construído por estímulos exteriores e por suas próprias reações
físicas.
A confusão de sons internos crescia, e o mundo “artificial” de sua vida
normal parecia-lhe uma frágil treliça com enormes vãos, ou uma parede
composta de fios muito distantes uns dos outros. Uma realidade crua,
estrondosa, penetrava por aqueles vãos.
Assim, David começou a entender vagamente o que significava
possessão, pois aquela confusão que o penetrava estava a controlá-lo. Ele
não podia eliminá-la, repeli-la, examinar e analisá-la, decidir se gostava ou
não dela. Ela não se abria a nenhuma reflexão ou rejeição, não propunha
aceitação, não causava nem prazer nem dor, nojo ou deleite. Era algo
neutro. E por conta de ser neutro, era sinistro. E aquela confusão começou a
turvar sua mente e sua vontade com a própria neutralidade de gosto e de
valor nela contida, mais devastadora do que um vento Ártico. Tudo de belo,
harmonioso e pleno de sentido que havia, associado em sua memória, com
os sons, começava agora a murchar. E ele sabia quais eram as perigosas
implicações disso.
“Meu Deus! Jesus!”, ele gritou subitamente para si mesmo sem nenhum
som. “Meu Deus! Se todos os meus sentidos – visão, audição, olfato,
paladar, tato – estão assim invadidos, eu serei possuído. Eu serei possuído.
Jesus! Eu serei possuído!”.
Ele tentou dizer “Jesus” alto e forte, gritar alguma prece como o Ave- -
maria ou o Pai Nosso, alguma oração que ele conhecesse e houvesse dito já
algumas milhares de vezes todos os anos, nos últimos 35 ou 40 anos. Mas
ele não ouvia nenhum som, de todo, vindo de seus próprios lábios. Ele tinha
certeza de que havia pronunciado as palavras. Mas a possessão de seus
ouvidos já tinha ido longe demais.
A confusão sonora cresceu mais e mais em intensidade, em graus ínfimos
mas implacáveis. O som em si não tinha ritmo algum, recorda David. Era
uma combinação de milhares de pequenos sons, literalmente uma babel
sonora. Ela crescia em intensidade – aproximava-se dele, nesse sentido. Os
diversos sonzinhos começaram e se harmonizar em duas ou três sílabas
específicas que ele não podia distinguir muito bem. Intensificavam-se cada
vez mais, mas se aglutinavam num ritmo tão lento, e com o que pareciam
ser pausas tão intermináveis entre cada mudança, que um novo tipo de força
passou a oprimir seu corpo e sua alma. Era a espera, a expectativa, o
pressentimento, a apreensão – tudo misturado junto com a dor pelo duro
bastão do medo. E ainda, dentro dele, um músculo forte e destemido da
alma o mantinha firme.
Conforme a amálgama de vozinhas tomava forma e ritmo, David
começou a ouvir a pulsação daquelas sílabas cada vez mais distintamente.
Conforme os ritmos pulsantes tomavam corpo, ele viu seu corpo chacoalhar
em uníssono, seus pés baterem no chão, suas mãos baterem nos joelhos, sua
cabeça e ombros sacudirem para frente e para trás. Ele ainda não conseguia
entender as sílabas, mas o ritmo pulsante animava todo o seu corpo. Seus
próprios lábios começaram a soltar uma sílaba aqui e outra ali. As vozes
continuavam crescendo em intensidade. Milhares delas. E mais milhares. E
outras mais.
Vacilante, mas com maior precisão, seus lábios buscavam os sons e
entravam em uníssono com as vozes, que emitiam aquelas sílabas num
grunhido cada vez mais forte. Sua tensão cresceu. Seus movimentos
ficaram mais rápidos. O som das vozes formava agora um uivo em seu
ouvido interno. Sua voz agora conseguia captar e reproduzir as sílabas.
Senhor Natura... Senhor Natura... Senhor Natura... Senhor Natura...
Um exército inteiro marchava por seu cérebro e sua alma, gritando,
murmurando, riscando aquelas últimas sílabas, Natura! Natura! Natura!
Natura!, e David sentiu que iria passar por uma sequência de sons malucos
a palpitar o deixariam ainda mais tenso.
No crescendo daquela zoada, David praticamente deixou que tudo
acontecesse, rendido, esperando ser desintegrado pelo som. E então uma
nota completamente nova ecoou em meio àquele ruído. Ele não mais
sucumbia, inerte. Uma parte de seu interior que não havia sido infectada
voltou à vida.
O novo som era claro; lembrava um sino. Mas ele sabia que nenhum
metal podia produzir aquele som; sabia que aquelas notas não iriam
simplesmente morrer como quando um sino soa a hora. Era um som que
cantava, mais do que soava. Ele ecoava com a promessa da permanência,
sustentado, contínuo. Era um som vivo. E embora tivesse aquela beleza
cativante da prata, falando musicalmente e sem palavras através do ar puro,
ele também vinha recoberto naquela liquidez e calor cuja mensagem é a
realização do amor.
Quanto mais o coração de David se aproximava daquela nova canção,
mais ele começava a sentir repulsa pelo canto grotesco, Senhor Natura!
Senhor Natura! Senhor Natura! Mas ainda assim ele não conseguia se livrar
de sua força violenta e sedutora. Formou-se então um vazio, um abismo, um
intransponível hiato cujas paredes eram feitas de som, cujo piso era a pura
dor. Uma parte de sua mente tornou-se um leito de uma violenta depressão;
e sua vontade afastava-se daquilo em espasmos de repulsa. Outra parte de
sua mente transbordava de calma e de uma liberdade segura, plena de
repouso, imune a qualquer nódoa de escuridão. “Entre nós e eles está
construído um grande abismo... aqueles que tentam transpô-lo não o
conseguem”. A memória de David era atingida por pequenos choques
elétricos, cada qual trazendo fragmentos de frases incongruentes.
E o som, havia sempre o som. Pesado, barulhento, impertinente,
rouquenho, pairando ao seu redor como ensurdecedores alto-falantes. E
então, refrescando aquele quadro, pairando muito distante, numa terra
ensolarada e elevada, impossível de ser alcançada mas que ainda assim o
alcançava a ele, havia uma outra nota, oposta, íntima, a jorrar com uma
doçura inimaginável que umedecia sua face com lágrimas de uma profunda
nostalgia.
Num dado ponto, toda essa imersão em opostos sonoros e contradições
ecoantes tornou-se a um só tempo diversa e intensa. O conflito pela posse
de sua audição se estendera aos outros sentidos e à junção interna de seus
sentidos. Conforme o conflito crescia e se infiltrava nele, as fontes do medo
e do desejo, da repulsa e da atração começaram a brotar até que todos os
seus sentidos passaram a ecoar sua agonia.
Ele caiu de joelhos, sua testa apoiada contra o frio cortante da janela, as
mãos cerradas em posição de oração, seus olhos escancarados e fitando a
noite lá fora, mas sem ver quaisquer outros olhos que o pudessem assistir
do exterior. Pelos próximos intermináveis minutos, a tempestuosa disputa
entre bem e mal, sempre alternando-se violentamente em nosso horizonte
humano, afunilou-se e concentrou-se naquela figura ajoelhada de David, e o
conflito o tomou por completo.
Subitamente, num dado momento, ele estava flutuando num lago
campestre de águas plácidas, em meio a maravilhosos vales atapetados com
bosques verdes e serenos relvados de flores silvestres. Diante dele um céu
de aurora, com seu fundo azul claro a bronzear-se pelo sol nascente. E
então, de forma igualmente súbita, ele estava no fosso de um desfiladeiro,
sendo carregado pelas agitadas águas de um rio no qual nenhuma luz solar
chegava. Nada parecia impedi-lo de afogar-se ou de ser perfurado e
esmagado por aquelas rochas pontiagudas. Seu corpo estava sendo
carregado entre cascadas e cachoeiras incrustadas em precipícios
vertiginosos. Em meio a essa violência, ele era perseguido pelos pesados
passos de Seu Natura, e seduzido pelas notas cadenciadas daquela outra
música soando acima.
E então, uma vez mais, sem que se pudesse prever, todos aqueles
contrastes confusos cresceram em velocidade e variedade. Ele estava preso
naquele teatro de mudanças, alternando entre terror e alívio, beleza e
brutalidade, vida e morte. Não havia nenhum sentido, nem qualquer
explicação lógica para aquilo tudo. Agora ele via delicados corpos, com
longas pernas e figurinos de seda, dançando sobre uma plataforma verde e
executando ritmos ao sabor do vento. E então, rápido como um raio, ele
passara a examinar cadáveres eviscerados, abrindo barrigas, as entranhas
pulando para fora das coxas e dos joelhos, corpos cortados dos pés às
cabeças, seios retalhados, punhados de olhos, dedos e cabelos, tapetes de
excremento. Agora eram montes de frutos pesados e maduros, envolvidos
em meio a árvores ou cobertos de musgo numa grande barragem. A seguir,
no caleidoscópio insano que era o mundo de David naqueles momentos
excruciantes, viam-se as pesadas vasilhas de urina furadas, aspergindo
olhos escancarados e bocas de cadáveres, milhares de cadáveres, homens,
mulheres, crianças, fetos, jogados caoticamente sobre uma área rochosa.
Conforme aquele perturbador conjunto de imagens se apresentava diante
de seus olhos, ele sentia estar perdendo controle sobre si próprio. Ele só
estava certo de uma coisa: duas forças estavam em contenda para possuí-lo,
e ele não podia evitar o transbordamento de seus sentidos. Ele não
conseguia se livrar nem da podridão e nem da beleza. Durante sua vida toda
ele esteve apto a se auto controlar. Agora, ele perdera o controle. A invasão
continuava.
A confusão alcançara seu paladar e olfato; invadira cada sentido e cada
nuance de seu ser que era alimentada por seus sentidos. Amargo e doce,
acre e ameno, fétido e perfumado, animal e humano, picadas e afagos,
comestível e intragável, vômito e iguarias finas, áspero e suave, sutil e
penetrante, indecoroso e polido, agitado e calmo, dolorido e prazeroso – os
contrastes excitavam cada papila gustativa e cada nervo em sua boca,
garganta, nariz e barriga.
Ele chegou ao ponto de uma quase histeria quando seu sentido do tato foi
atacado: cada centímetro de sua pele estava sendo arranhado com escamas
ásperas e acariciada com veludo, queimado por pontas quentes e afligidas
por sincelos, e a seguir massageadas por agradáveis e cálidas superfícies.
A tempestade em seus sentidos se intensificava conforme cada uma das
sensações contraditórias se acumulava em seu interior, formando um
mosaico de nonsense, confusão, ausência de sentido, desespero.
E ainda assim, mesmo com toda essa perda de controle, de algum modo
sua mente e vontade vislumbravam uma resposta à questão última. Por que
eu não consigo resistir? O que eu devo fazer para repelir isso? Que
motivação eu posso usar para expelir tudo isso? O que devo fazer? Ele
percebeu de forma clara o bastante que nem tudo estava perdido, que o seu
tempo ainda não havia chegado; que, em alguma parte dele, algo devia estar
saudável e ainda ativo. O tempo todo ele se ateve a uma coisa: quão mais
intensa a distorção se tornava e mais firme era o controle exercido sobre
ele, mais belo e glorioso tornava-se aquele som que vinha do alto.
Seu amável som estava ainda a uma distância incalculável e a uma altura
inatingível. De algum modo que ele não conseguia entender, contudo,
aquilo estava próximo dele. Ele começou a lutar para poder ouvi- -lo,
escutá-lo. Não era algo monocromático, monocórdico. Era um canto a
diversas vozes; ele harmonizava uma alegria inefável com uma vasta gama
de acordes sobrepostos e uma quantidade cada vez maior de ornamentos.
Em adágio, era ao mesmo tempo grave e feliz. Ressonante, continha em si
certa suavidade. Ele comportava, simultaneamente, todos os traços do amor
– seu apelo manso, sua comunhão, seu favoritismo. E, pulsando de seu
interior, ouviam-se os batimentos de sons como que de um órgão, soando
mais profundo do que o coração do universo mesmo, e tão alto quanto a
eterna placidez que os homens sempre atribuíram à divindade imutável.
Num momento surpreendente em meio a todo o ruído e a dor, o coração
de David se elevou. Era seu único momento de alívio e paz, que veio justo
antes do clímax de seu combate. Não era tanto uma trégua reconfortante,
que por vezes engana o sacerdote em exorcismos comuns. Era um canto
que, de algum modo, ele conhecia, cantado por vozes que ele de algum
modo conhecia. E embora ele não possa se lembrar do canto ou de quem o
cantava, ele soube que não estava sozinho. “Jesus! Não estou sozinho”, ele
ouviu seu próprio balbuciar. “Não estou sozinho!”.
Ele começou a distinguir diversas vozes naquele suave canto. Ele os
conhecia! Ele os conhecia! Ele não os podia reconhecer, mas os conhecia.
Eram seus amigos. Onde? Quando? Quem eram eles? Ele se deu conta de
que já os conhecia desde há anos, mas quem eram eles? E conforme o novo
sentimento penetrava seu ser mais íntimo e rompia com sua solidão, um
voraz sentimento como que de gangorra começou a penetrar cada vez mais
fundo em sua mente, em sua vontade e em sua imaginação. Ele viu-se a si
mesmo balbuciando frases incoerentes que eram, de início, ininteligíveis até
mesmo para ele. As frases pareciam vir de alguma faculdade interna que ele
sempre havia usado mas nunca conhecera, alguma fonte de conhecimento
que ele havia negligenciado durante todos os seus anos enquanto adulto,
enquanto intelectual profissional.
“Meu coro de Salem... meus amados...”. As frases brotavam de seu
interior por conta de alguma força própria a ele. “Meus amigos... Amigos
de Edward... Aproximem-se... Perdoem-me...”
Um pequeno redemoinho de entendimento começou a formar-se nele
conforme ele tocava as memórias dos últimos dias do Velho Edward e a
visita a Salem muitos anos antes. Aquilo vinha no momento certo. Pois ali
se iniciou o que mais tarde se mostraria a última fase da provação de David.
O terror veio agarrar-se a David imediatamente: subitamente ele sentiu
tudo, tudo aquilo ser arrancado de seu alcance; ele não podia encontrar em
si nenhuma razão consciente para rejeitar a influência opressiva do Seu
Natura. Sua mente, novamente, parecia ser um mero receptáculo. Sua
vontade – vontade na qual ele sempre confiara para sua disciplina de
estudos e suas decisões práticas – parecia encurralada novamente, e incapaz
de levá-lo à vitória.
O terror se aprofundou e sua mente foi ficando cada vez mais confusa,
sua vontade estava imobilizada por proposições perfidamente
neutralizantes. O que penetrava sua mente, preenchendo seu espírito, era
como veneno.
Uma multidão caótica de afirmações se esgoelava dentro dele. Seu
Natura urrava: Hoc est corpus meum... Hocus-pocus é Jesus, um macaco
crucificado... A verdade e o bem são as finalidades mais altas do homem.
Quão deleitoso e humano é tentar o mais inumano... Jesus, Maria e... Satã,
demônios podem foder, foder, foder... Eu lhe dou meu coração e meu... Deus
agora permitirá o mal... O bem é um mal banal, fique com ambos... Eu
desejo a salvação da Cruz... e eu espero o gosto da liberdade de
blasfemar... eu amo... eu odeio... eu creio... eu não creio... Ele criou Jesus
do lodo... e disse eis o meu filho muito amado, em quem pus toda minha
afeição... A vontade de David estava agora anestesiada, dolorida, exausta.
Sem cessar seus sentidos eram atacados e confundidos pelo mesmo conflito,
até que seu toque, seu cheiro, seus ouvidos ecoaram: O bem é bom demais
para ser verdade... O mal é mal demais para não ser verdade... O que é
verdade?
Agora, não havia solução, não havia escapatória, não havia alternativa ao
dilema, nenhum fator determinante, nenhum peso na balança parecia
possível. Perdido. Tudo estava perdido. Tudo o que David havia estudado,
todas as veredas do raciocínio, as sutilezas psicológicas, as provas
teológicas, a lógica filosófica, a evidência histórica – tudo isso se tornara
igual a tantos outros objetos, não mais parte dele, mas meras posses, lixo
que ele havia acumulado, lançado agora às chamas que avançavam na
direção do seu próprio ser. Tudo o que ele lançava naquelas chamas era
queimado, derretido, dissipado, mero combustível, incapaz de resistir ao
incêndio.
A escuridão havia obnubilado a mente de David quase que por completo,
quando ele se deu conta de algo que ainda lhe restava. Algo que dissipava a
escuridão daquelas nuvens. Algo que aflorava nele com força, de modo
independente, a cada vez que aquele canto estranho e insistente surgia. De
início, ele estava apenas consciente do som. Ele então começou a
maravilhar-se com sua força – não com sua altura, pois ele não podia ouvi-
lo sempre, mas com sua persistência em meio à dor e ao desespero. David
tentou refletir sobre aquilo com a onda de força que acabara de aflorar, mas
imediatamente perdeu toda a consciência do fato. Logo a seguir, no entanto,
o combate se instalou uma vez mais, e sua atenção se dirigiu à luta. E,
assim que ele ouviu uma vez mais aquele canto, a tal força autônoma e
estranha ressurgiu do interior de David.
De um só golpe ele entendeu o que era aquela força. Era sua vontade.
Sua vontade autônoma. Ele próprio como um ser livre para escolher
livremente.
Num só gesto mental, ele se livrou de uma vez por todas daquele edifício
de ilusões mentais sobre motivações psicológicas, estímulos
comportamentais, racionalizações, barreiras mentais, ética situacional,
lealdades sociais e cacoetes comunitários. Tudo aquilo era escória, já
engolido e desintegrado nas chamas dessa experiência que ainda podia
consumi-lo.
Só sua vontade resistiu. Somente sua liberdade de escolher aguentar
firme. Só a agonia da livre escolha permaneceu.
“Meu coro de Salem!”, ele se ouviu dizer. “Meus amigos! Rezem por
mim. Peçam a Jesus por mim. Rezem por mim. Eu tenho de escolher.”.
Agora uma agonia bastante peculiar tomava David de assalto. Ele nunca
experimentara aquilo. De fato, mais tarde ele se perguntou durante um bom
tempo quantas escolhas reais ele fez livremente em sua vida antes daquela
noite. Pois era uma agonia escolher de forma livre – totalmente livre.
Escolher por escolher. Sem qualquer estímulo externo. Sem qualquer apoio
de sua memória. Sem qualquer pressão de gostos adquiridos e persuasões.
Sem qualquer razão, causa ou motivo a decidir qual seria sua escolha. Sem
qualquer agravante de um desejo de viver ou morrer – pois àquela altura
ambos lhe eram indiferentes. Ele era, nesse sentido, como o asno que os
filósofos medievais haviam imaginado: perdido, imóvel e destinado a
passar fome por encontrar-se a uma igual distância de dois estábulos com
feno, sem poder decidir entre um dos dois para se aproximar e comer. Total
livre escolha.
O passo pesado e ritmado do Seu Natura tornara-se agora o grotesco
fundo musical de um show de horror. O corpo e o rosto de um sátiro se
exibia na imaginação de David – tão real que ele chegava a vê-lo com seus
próprios olhos. Nu. Prostrado de forma obscena. Bulboso. O nariz torto.
Dois olhos estrábicos. A boca arreganhada, retorcida, espumante. A
garganta a grunhir num riso insano. Pesados seios femininos pontuados por
mamilos de um vermelho-sangue, semelhante a verrugas, pontudos como
dois pênis. Pernas apartadas, manchadas de sangue e esperma. Um dedão
dobrado para trás, coçando a virilha com uma fricção frenética. Dedos
torcidos, irregulares, com unhas quebradas, puxando tufos de cabelo e
gesticulando grosseiramente. Coágulos de excremento seco em toda parte
das nádegas.
David sentiu o odor de estábulo e latrina aberta. Lembrou-se das figuras
gregas e papuásias do demônio. Ele sentiu o primeiro pulsar registrado na
história do coração humano. Ele o sentiu como uma antiga semente de
maldade, recebida por ele da mão de todos aqueles que vieram antes dele,
não como um dom físico de grandes proporções mas como uma
conseqüência de ter nascido de sua linhagem e, num certo sentido,
acumulado toda a maldade que eles haviam transmitido. Não atos maus.
Não impulsos maus. Nem culpas ou vergonhas. Nada de propriamente
positivo. Antes uma ausência que resultava num erro fatal. Uma falta
mortal. Uma capacidade para o ódio para consigo mesmo, para o suicídio,
não porque ele não podia viver eternamente, mas porque ele só poderia
viver se.... Aquele tentador “só se” da mortalidade, que aspira infinitamente
sem ser, em si, infinito. O fomes peccati dos latinos. O yetzer ha-ra dos
hebreus. “Vós sereis como deuses, e conhecerão o bem e o mal”, a serpente
havia dito no mito da Bíblia – sem acrescentar “mas capazes somente do
mal, se deixados por si sós”.
Ele tinha de escolher. Liberdade de aceitar ou rejeitar. Um passo que se
oferecia no escuro. O canto vindo de cima não soava. O clamor de Seu
Natura se acalmara. Tudo parecia estar esperando por seu próximo passo.
Seu próprio. Dele somente.
Mesmo manter-se neutro era uma decisão. Pois ser neutro, agora, seria
refugiar-se no cinismo, dizendo “eu não quero saber”, recusando um apelo à
verdade; estar sozinho; somente por estar.
Por um ínfimo segundo pareceu que ele devia voltar atrás, e clamar pela
consolação do demônio – ao menos ele estaria sob um controle tangível, e
possuído por aquilo que respondia a uma de suas urgências mais profundas.
Mas isso durou apenas um segundo, porque para além daquele penhasco de
decisão ele ouviu – ou pensou ter ouvido – um forte grito vindo de uma
distância infinita, não de protesto, não de histeria, não de desespero; antes
um choro de uma alma levada ao mais alto ponto da dor, da desgraça e do
abandono. Ele ouviu aquele choro tomar diversas formas: “Abba, Pai!”;
“Mãe, eis...!”; “Senhor, lembra de mim!”; “Sob este signo...”.
Era tudo o que David precisava para impulsioná-lo e, ainda que
perseguido por seus medos, transpor aquele penhasco. Ele começou a
pensar com palavras novamente, a abrir seus lábios, articulando-as sem
som.
Mas o pânico aflorou. E se tudo aquilo fosse ilusão, uma ilusão
zombeteira? Aquele pânico iniciou mais um pandemônio em seu cérebro.
Mas agora o conflito já havia sido alcançado e ultrapassado por seu violento
desejo de falar, de fazer saírem aquelas palavras. De um certo modo, ainda
que aquilo lhe custasse um último esforço, ainda que lhe custasse a própria
vida, ele precisava pronunciar aquelas palavras de forma audível. Suas
intenções não seriam humanamente reais até que ele o fizesse... a menos
que o fizesse.
Em sua agonia, ainda de joelhos e ainda de frente para a janela de seu
quarto, David permaneceu tão absorto em seu último esforço que ele ainda
não havia percebido a figura de pé fora da janela. O Pe. Joseph havia
esperado em casa pelo fim da tempestade, e então partira para a fazenda. A
única luz no local era aquela da janela de David. Agora ele estava ali fora,
tentando adivinhar o que acontecia com seu amigo dentro da casa. “Ajude-
o. Mãe de Jesus. Em nome de Jesus, peça ajuda por ele, por favor”. Ele
podia ver os lábios de David em movimento, silenciosamente, e seus olhos
turvos fitarem noite.
Joseph estava prestes a bater na janela ou acordar os outros na casa
quando ouviu David gritar alto e forte, primeiro de um modo seco e curto, e
então firme e vibrante: “Eu escolho... Eu irei... Eu acredito... Ajuda minha
falta de fé... Jesus!... Eu creio eu creio eu creio”. Joseph ficou parado de pé,
imóvel, e ouviu. Ele só podia ver o rosto de David e ouvir suas palavras.
Ele não podia entrar em sua consciência, em que o duplo cântico havia uma
vez mais soado, no mais profundo de sua alma.
Mas a coisa se dava de modo diferente para David então. Ele havia
escolhido, e o resultado era instantâneo. Ele encontrou, não destruição,
desespero e fragilidade infantil, nem a sombria escravidão da mente e da
vontade que o Seu Natura prenunciara, para lhe provocar, caso ele
acreditasse. Ao invés disso, um profundo respirar, cheio de alívio, e a
distância, a altura e a profundidade inundaram sua mente, vontade e
imaginação.
Como a escuridão e a agonia vividas por ele não eram senão um teste
transitório, os horizontes da vida e da existência se fizeram então
milagrosamente claros. O ar estava repleto de uma luz solar serena e
grandes espaços de um azul calmo.
Cada escala, medida, cada extensão de sua vida estava revestida da graça
e do prazer de uma liberdade que ele sempre temera perder mas que nunca
esteve seguro de possuir. Cada patamar que ele galgara quando jovem –
suas primeiras empreitadas no pensar, no sentir, no juízo moral, na auto-
expressão – estava agora coberto e perfumado com flores; violetas,
aqüilégias e lírios. Cada canto em que seu pé havia pisado, viajando e
sofrendo durante o início da vida intelectual, estavam agora cobertos de
grama verde primaveril.
E sua maior questão era seu novo céu, seu horizonte renovado. Ao longo
dos anos seu céu humano tornara-se uma jaula de ferro fundido – ele
conseguira enviar um apelo voando por entre as frestas. Mas seu horizonte,
em si, tornara-se uma mala de ferro; misturado com o desconhecido e com
o agnosticismo: com o “nós não podemos saber exatamente” do
pseudointelectualismo, e o “Vamos manter a mente aberta” que abre cada
argumento contra si mesmo.
Agora, subitamente, tomada a decisão, o céu de David se limpava,
ganhando em profundidade, expandindo-se no espaço. Seu horizonte era
uma vastidão a expandir-se mais e mais, sem estreitamentos, sem
obstáculos, sem limites nem empecilhos. Ele se viu a uma altura
incomensurável, livre de algemas, num zênite de desejo e volição, sem
nunca ter de olhar para trás, sem o impedimento de um sentimento piegas
de arrependimento, ou pelo roer dos ratos de sua memória em sua
sexualidade inexplorada e sua inesperada mudança de opinião.
David tinha visão total de tudo o que ele significara como ser humano e
de tudo o que ser um humano significava para ele; dos abismos milenar
fraqueza do homem, e dos cumes do poder gratuitamente concedido ao
homem para estar com Deus, para ser de Deus, e para viver eternamente.
As muitas figuras que povoaram seu passado ele agora vira no seio da luz
eterna – Neanderthal, Cro-Magnon, Sinanthropos, Homo sapiens, nômades,
sedentários, homens da Idade da Pedra, da idade do Bronze, da Idade do
Ferro, judeus, cruzados, muçulmanos, papas da renascença, patriarcas
russos, padres gregos, cardeais católicos, budas asiáticos, demônios
africanos, Satã, Darwin, Freud, Mao, Lênin, o pobre da Sicília, as figuras a
fugir em chamas nas ruas de Hiroshima, os bebês mortos de Bombaim, as
casas em Bel Air, Califórnia, as salas de aula da Sorbonne, as mansões de
Miami Beach, as minas de West Virginia, a hóstia em suas próprias mãos na
Missa, a face inexpressiva de Jonathan...
Ele estava prestes a prostrar-se em oração quando, por um instante, ouviu
os dois cantos novamente. Ele foi distraído de sua visão, retornando à
realidade de sua cadeira, à janela saliente, e à noite. O canto celestial não
era então mais do que uma única nota prolongada, tocada por um alaúde,
persistente, límpida, clara, bela. O canto áspero e dissonante do Seu Natura
se havia diluído e destruído.
Por meio de uma misteriosa procuração, David sentia as dores de uma
agonia da qual ele não era culpado. Ele sabia estar assistindo à inexorável
dor de alguns seres vivos que ele não conhecia, que ele tinha de odiar, mas
cujo fardo era desastroso, sem qualquer recurso à piedade. A despeito da
transbordante paz e da luz que lavava seu espírito, ele se encontrou-se a si
mesmo seguindo a desesperada retirada de seus adversários feridos.
Os gritos outrora vigorosos do Seu Natura se reduziram então a um
guincho agudo com trilos de terror, arpejos de agonia correndo fervorosos e
irregulares por cada nota de seu protesto. O grito persistente parecia crescer
em espiral, rodopiando, um inseto agitando suas antenas peçonhentas ao
mesmo tempo em que batia em retirada, desesperado, em busca de abrigo
no esgoto; uma cobra cujo corpo pulsasse de dor, correndo desesperada com
a cabeça em riste, fugindo da lava que fluía daquela outra nota ressonante –
nota que David sempre descreveu, posteriormente, como seu “coro de
Salem”.
E então ele começou a sentir as enormes amplitudes novamente. O
clamor do Seu Natura esmoreceu, perseguido por aquele canto do Paraíso.
Conforme aquilo tudo se enfraqueceu, David levantou-se, buscando ouvir
atento. Os dois cantos se distanciavam dele. Ele abriu com força as janelas
duplas e passou os olhos sobre Joseph, correu o olhar pelo jardim e, para
além dele, no campo, nas montanhas, no horizonte. Tendo os sons sido
reabsorvidos, em áreas não desbravadas do espaço, em meio às estrelas, ele
olhou para o céu. O centro da tempestade deslocou-se para a costa Leste,
para ser derramado sobre o Atlântico. Estava frio, a temperatura
possivelmente abaixo de zero grau. Lá no alto, entre as estrelas, ele tentou
seguir a trajetória daqueles sons. Mas os últimos débeis ecos morreram.
Tudo estava calmo. Ele tentou ouvir, olhando para o alto. Não havia som.
Seu olhar repousou finalmente sobre o Pe. Joseph, e David fez-lhe um
gesto para que entrasse. A lua já estava alta, a face brilhante, um halo cálido
e amarelado emanava de sua luz. Seu próprio silêncio era dourado, gentil e
confiante. Ele e Joseph estavam prestes a se afastar da janela do quarto
quando um mimídeo começou a cantar no bosque em que o Velho Edward
costumava passear fumando seu cachimbo, à noite após o jantar. Aquele
canto chegou até David como uma mensagem de um mundo de graça,
indício de vida sem fim; não como Jonathan e ele, David, haviam
interpretado tantos sons da natureza; não como o movimento de moléculas
reagrupando-se incessantemente, mas como de vida infinita em cada
pessoa, e de um amor sem máculas.
David afundou em sua cadeira e ouviu. Joseph permaneceu imóvel,
receoso de incomodá-lo. Ele desviou seu olhar de David, mirando o céu e as
árvores. A noite inteira, até a lua cair e as primeiras luzes do sol
irromperem do leste, primeiramente azul e cinza, depois vermelho, os dois
homens ficaram ali, enquanto somente o canto do mimídeo rompia o
silêncio. O canto parecia ir tomando o significado de uma infinita calma
imperturbada. Ele preenchia seus ouvidos e mentes. Penetrava por todas as
frestas do quarto onde eles estavam. Era surpreendente, repleto de giros
inesperados, de notas sustentadas, longas e graciosas, a oscilarem na crista
da melodia, desfazendo-se bem a tempo da chegada de novas escalas. Não
era algo triunfante. Era a celebração da calma, a proclamação da
continuidade, afirmação dos valores da vida, confirmação da beleza pela
beleza, garantia de um amanhã, bem como uma benção de todos os ontens.
Aquilo vinha como uma anunciação, e preenchia o silêncio noturno deles
com graça.
Na direção daquela aurora Joseph ouviu um débil sussurro e fitou David.
Ele estava recitando o Ave Maria no grego de Paulo, Lucas e João: “Chaire
Miryam, kecharitomene”, e repetindo aquele longo elogio que o Anjo
Gabriel ofereceu à Virgem: “Kecharitomene! Kecharitomene!
Kecharitomene!...”. Cheia de Graça! Cheia de Graça! Cheia de Graça!
Lágrimas lentas correram pelas bochechas de David.
Não havia porque, Joseph pensou, incomodá-lo agora. A paz e o silêncio
e o canto eram tudo o que ele precisava e o que ele merecia, todo o bálsamo
que ele desejava.
Eles esperaram até que o dia raiasse por completo e que o mimídeo
calasse seu trilo num corte rápido. Eles viram-no levantar vôo de uma das
árvores, voltando a cantar durante seu adejo até que dele só se visse um
mínimo pontinho entre as cores luminosas do céu matinal, alternando o
planar e o bater de asas, sumindo finalmente de vista no silêncio.
David moveu e umedeceu levemente seus lábios. Ele não olhou para o
Pe. Joseph, mas apenas disse: “Vamos fazer um café, Pe. Joe. E depois
vamos ver Jonathan, antes que seja tarde demais”. Pe. Joseph não se moveu.
Ele esperava pelo olhar de David e algumas palavras mais. David se virou
para ele, sorriu para o outro homem: “Agora eu sei, Joe. Agora eu sei”. Ele
pausou e olhou para a janela novamente. “É o mesmo espírito. O mesmo
método. A mesma escravidão”.
Um canto materno
Joseph olhou para o rosto de David enquanto dirigia. Era firme e sem
expressão, exceto pelo contorno pétreo de sua mandíbula. Suas bochechas
estavam sulcadas, mas a barba crescida enchia o rosto. Os olhos fixos.
David parecia estar sendo guiado por alguma força interna, que Joseph
sentia muito mais do que compreendia. Aquilo lhe causou um pouco de
medo. Ele sentiu vagamente um toque de crueldade, um ímpeto decidido e
pertinaz. Joseph tirou seus olhos de David; e, sem aviso, viu-se rindo
silenciosamente, num rompante surpreendente de humor irônico.
“Qual é a graça, Joe?”. Era bom ver as linhas da boca de David se
suavizarem.
O Pe. Joseph viu-se a si mesmo dizendo espontaneamente, “Deus ajude o
pobre Diabo”, vendo o olhar determinado no rosto de David. David lançou
um olhar admirado sobre seu companheiro e um sorriso escancarado. “Deus
o abençoe, Pe. Joe. Você não corre perigo nunca. Você nunca se leva a sério
demais”. Ambos riram.
Chegaram à casa de Jonathan logo após o pôr do sol daquele mesmo dia.
David decidira não escalar assistentes, pois sabia que estaria no controle
daquele caso; sabia que já havia vencido o “Seu Natura”. Ele, que levara
Jonathan tão mais longe em termos de possessão do que levara o próprio
David.
Quando eles chegaram na casa, a porta da frente estava aberta. A mãe de
Jonathan, Sybil, estava encostada à soleira, com um xale sobre os ombros.
Ela não sorria, mas não estava triste, apenas silenciosamente sóbria.
“Você era aguardado, Pe. David”, disse ela, ao entrarem os dois homens.
“Ele me disse que você estava chegando”. Então, em resposta à questão nos
olhos de David, ela explicou que até o começo daquela manhã, até cerca de
três em ponto, Jonathan estivera bem; quer dizer, ele permaneceu
inalterado. “Mas”, ela prosseguiu, “quando você se libertou, ele
subitamente ficou muito mal”.
Joseph estava surpreso; ele não podia acreditar que a ouvira dizer a
David “quando você se libertou”. Mas os olhos de David estavam repletos
de compreensão ao ouvi-la. “Eu não estou preocupada com o corpo de meu
filho. Mas com sua alma”.
Por alguns segundos David ficou olhando para ela. Joseph sabia que ele
estava de fora de tão íntima compreensão entre aquelas duas pessoas. Mas
sabia também que o preço por estar ali incluso era demasiado alto.
No console da sala, ao lado deles, já havia duas velas acesas. Ao lado
delas havia um crucifixo, o livro ritual já aberto, um frasco de água benta e
a estola.
“Ainda não deve ser tarde demais”, disse David.
“Ainda não...”, ela concordou. E então, numa careta gentil: “É só que eu
mesma não tenho mais muito tempo. E se ele precisar partir também, quero
que estejamos todos juntos”.
David consentiu com a cabeça lentamente, enquanto ela fitava a porta no
fundo da sala. O humor de David dividia-se entre apreensivo e reflexivo.
Ele voltou-se a ela, dizendo: “Vocês estarão juntos, mãe. Não tema. Vocês
estarão todos juntos. O pior já passou”.
Ele pousou a estola em volta de seus ombros, tomou o livro ritual e o
frasco de água benta em mãos. Joseph segurou os castiçais. David olhou
para as páginas abertas do ritual. A mãe de Jonathan o abrira na página em
que se inicia a prece principal. Dando um passo à frente dela, ele virou a
maçaneta e entrou no quarto de Jonathan.
As janelas estavam todas fechadas, o quarto escuro. Um cheiro artificial
acre e fétido atingiu suas narinas. Jonathan estava sentado no chão do canto
oposto, com as pernas cruzadas. A luz do corredor caía sobre seu rosto.
David leu o terror em seus olhos, mas era um terror congelado. E David
entendeu imediatamente: Jonathan não faria mais nada, não combateria
mais.
A boca de Jonathan estava aberta. Mas nem a língua e nem os olhos
estavam visíveis. Joseph colocou as velas na mesinha de cabeceira ao lado
da cama. Ao caírem as luzes sobre Jonathan, eles perceberam um traçado
curvilíneo de gotas d’água correndo de um canto ao outro da parede. Sua
mãe havia jogado água benta recentemente num semicírculo que
encurralava seu filho no canto do quarto. Uma mão pousada ao lado de
Jonathan, mas a outra, aquela com o dedo indicador torto, estava sobre seu
peito num gesto estranho. Ele estava mortalmente estático; mas seus olhos
estavam colados ao rosto de David e o seguiam conforme ele se movia mais
para perto.
Ao aproximar-se dele, David viu os olhos de Jonathan muito vermelhos,
as írises como pequenas meias-luas brilhando na direção de David.
Joseph esperava que David começasse imediatamente, mas ele não disse
nada. Ele ali ficou, em silêncio.
O dedo indicador torto de Jonathan se moveu ligeiramente, de seu peito
em direção a David. O padre exorcista olhou, sem se mover nem nada dizer.
O indicador balançou no ar, e então se retraiu rigidamente. Era um gesto de
desespero. A boca de Jonathan abriu e fechou; ele estava tentando dizer
alguma coisa.
David ainda não havia se movido nem dito nada.
Jonathan mexeu sua cabeça de um lado para o outro, seus olhos fixos em
David, como se tentando livrar-se de cordas que o atavam à influência do
exorcista. Um tremor súbito correu por seu corpo, e ele se voltou contra
David, falando para a parede. Seu corpo todo tremia. Eles mal podiam ouvir
as palavras que saíam abafadas de sua boca.
“Fale comigo, Irmão...”
“Nada de irmão, Satã! Nada de irmão!”. A voz de David era como um
pesado facão. Joseph estremeceu. David silenciou novamente.
“Nós também temos que ter uma habitação, padre....”, a voz começou.
“Sua habitação é a treva eterna. E seu pai é o pai das mentiras”. O tom
cortante e sarcástico na voz de David atingira até mesmo Joseph no ponto
em que lhe doía. David, segundo ele entendera, odiava mais do que Joseph
jamais imaginara que um homem poderia odiar.
“Mesmo o Ungido nos deu um lugar entre os porcos”.
“Como marca da sua podridão”, David cuspia as palavras, “e como sinal
de que você seria enterrado e atormentado vivo”.
“Ouça!... Ouça!”, a voz prosseguiu com um tom mortal de desespero. Era
quase um grito. “Ouça!”.
“Você irá me ouvir e você irá me obedecer!”. David não estava gritando.
Mas cada palavra explodia de dentro dele como um míssil vivo. “Você me
obedecerá de uma vez por todas! Você sairá daí! Você cessará toda
possessão dessa criatura! Você o fará em nome de Deus que os criou, ele e
você, e de Jesus de Nazaré que o salvou! Você partirá e voltará à imundície
e agonia que você escolheu. Você o fará agora. Em nome de Jesus. Agora.
Vá. Parta. Em nome de Jesus”.
E então a voz de David mudou. Ele estava falando com Jonathan a partir
de uma reserva de ternura e afeição vestida de uma força que comovia
Joseph na mesma medida em que ele ficara chocado anteriormente.
“Jonathan! Jonathan! Eu sei que você está me ouvindo. E ouvindo a mim,
você ouve as palavras de Jesus”. O corpo de Jonathan começou a tremer.
Ele começou a se esticar com o rosto no chão até que somente as pontas de
seus dedos dos pés tocassem o canto no qual ele estava caído. David e
Joseph deram um passo atrás.
“Eu sei”, David continuou, “pelo que você tem passado. Eu sei em que
você falhou. Eu sei que você estava possuído por esse espírito impuro.
Jesus pagou por todos os seus pecados, assim como o fez por mim. Mas
agora você tem de pagar. Acredite em mim, eu sei do que falo. Eu sei que
só você pode enfim consentir. Com a sua vontade, Jonathan. Com a sua
vontade. Mas você deve consentir em sofrer a punição. Você consente,
Jonathan? Você consente? Consinta! Jonathan! Consinta! Pelo amor de
Jesus, consinta com toda a sua vontade!”.
E então, para Joseph: “Jogue um pouco de água benta!”. Joseph
obedeceu. David abriu o livro do ritual e começou a recitar as preces
oficiais.
Da boca de Jonathan veio um uivo mais longo que o que qualquer fôlego
normal poderia suportar. David continuou lendo firmemente, enquanto
segurava o crucifixo diante de si. Conforme ele progredia nas preces, o uivo
crescia, entrecortado por ameaçadores grunhidos e soluços.
Mas, de repente, eles ouviram uma fina voz cantar. Ela vinha lá de fora,
no corredor. A mãe de Jonathan estava cantando um hino à Virgem – o
antigo canto gregoriano do Salve Regina. Conforme as sílabas daquele
latim medieval em sua vozinha o atingiam, o uivo e os tremores de
Jonathan começaram pouco a pouco a diminuir. David parou de ler as
preces; fechou o seu livro, e ouviu.
O timbre da voz da mãe era trêmulo e flautado. E ainda assim, para
David e Joseph, ela atravessava todas as suas reminiscências conscientes,
passando pelas amarras sensoriais de suas vidas adultas, voltando às cruas
horas, dias, meses e anos em que, vez ou outra, eles se viam vulneráveis à
miséria da infelicidade humana, e quando o amor de que eles gozavam em
casa e na família era a única – e assaz suficiente – proteção contra todas as
feridas.
A mãe de Jonathan estava quase que literalmente colocando sua alma
naquela prece cantada. Seu coração de mãe chorava diante de outra mãe. E,
até onde podia ver Joseph, somente aquelas duas mães podiam apreciar
aquilo que, naquele momento, estava em jogo. Ele nunca fora um homem
muito emotivo; mas as memórias foram se acumulando nele, e ele foi
suavemente atravessado pela nostalgia. O gozo de prazeres estéticos por
parte de Joseph sempre fora limitado por conta de sua mente simplória e
uma falta de cultura pessoal. Para com sua mãe ele nunca chegou a falar
como um adulto; ela morrera antes que ele amadurecesse.
Até aquele momento, a mulher a quem a mãe de Jonathan estava rezando
representava para Joseph uma mera luz a brilhar, e uma estrela inacessível
em seu firmamento religioso; uma judia galiléia que, sem mérito pessoal,
sem haver planejado nada ou dito uma só palavra, sem realizar uma só ação
havia sido privilegiada com uma graça que nenhum outro humano nunca,
jamais receberia – ser totalmente agradável à santidade pura de Deus, desde
o primeiríssimo instante de sua existência. Aquela era, em suma, a Virgem
Maria para o Pe. Joseph. Essa era toda sua dignidade. Ela nunca colhera as
flores do mal. Ela havia sido preservada. Uma das favoritas de Deus.
Agora, ouvindo, com David, aquele canto, ele sentiu com velocidade
quase violenta o que significava ser mãe e filho. Ele captara o misterioso
convivium, o compartilhar e a comunhão na vida humana de mãe e filho,
sua presença um com o outro. E ficou claro para ele que aquela presença
não tinha paralelo em todo o panorama do viver humano – nem entre dois
amantes, nem entre amigos, nem de um cidadão com seu país, nem do
homem para com Deus.
Agora, aquela mãe estava cantando em oração para uma outra mãe, com
uma fé e confiança que nenhum homem poderia evocar. Ele entendeu:
aquelas mães que haviam vivido um esforço esmerado em unir coração com
coração, respirar com respirar, movimento com movimento, sono com sono,
vigília com vigília, elas ambas estavam colocadas, não na periferia, mas no
luminoso centro que é o delicado começo da vida psicofísica de uma
criança; e ambas haviam visto uma criança atravessar as fronteiras do
nascimento, passando logo à consciência, cognição, mentalização, volição e
sentido.
A mãe de Jonathan terminou o Salve Regina. Por um momento houve
silêncio. Ela então improvisou uma última prece falada. David e Jonathan a
ouviram dizer: “Você era sua mãe. Você o viu morrer. Você o viu nascer de
novo. Você entende. Você poderia ter morrido de dor em cada uma das
ocasiões. Ajude-me agora”.
Joseph não pôde impedir que as lágrimas viessem aos seus olhos.
Ele foi despertado pela voz de David falando discretamente. Ele estava
ajoelhado num canto ao lado de Jonathan. Jonathan se havia sentado e
estava inclinado, não mais de cócoras agora, com suas costas contra a
parede. Suas mãos repousavam nas mãos de David.
Joseph virou-se para deixar o cômodo. Ele não havia entendido nada, ele
sentira. De todo modo, era hora da confissão.
Jonathan tinha o olhar clareado e fresco de alguém cuja face fora
atravessada pela dor e pelo pranto, aquela calma angélica e luminosidade –
uma quase alegria – que Joseph vira mais amiúde na face dos moribundos
quando, após revelia e desespero, eles finalmente aceitam o inevitável e
passam a crer e esperar verdadeiramente.
Era uma paz invejável.

1 O Meio Divino, editado no Brasil pelas editoras Vozes, Cultrix e Presença – NT.
2 Relativo à teoria do magnetismo curativo de Franz Anton Mesmer – NT.
O virgem e o “Ajeita-Moça”
De repente, a cena toda mudou naquela sala onde se passava o exorcismo,
como numa peça de teatro habilmente encenada, na qual, em poucos
segundos, o ator principal mudasse de figurino e papel, e o cenário fosse
trocado com rodas invisíveis, deslocando-se de trás para frente, de cima
para baixo e de dentro para fora, produzindo um caleidoscópio de mudanças
que deixasse o público incrédulo.
Num dado momento, o exorcista, Padre Gerald, se inclinava diante do
possesso, Richard/Rita, 1 que havia enterrado os dentes em seu próprio peito
do pé. No instante seguinte, o olhar de Richard/Rita se derreteu num
lúgubre brilho de sarcasmo de tom esverdeado. Os dentes cederam à
pressão sobre o peito do pé. Sua boca se abriu, expondo a gengiva e o fundo
da garganta, a língua sobressalente e trêmula, babando bolhas acinzentadas.
Os risos estrondosos de Richard/Rita sulcavam todo seu rosto com linhas
irregulares, em enormes rajadas de um riso escarnecedor. As gargalhadas
brotavam de um ventre a inchar-se, aprazendo-se no escárnio e no ódio
desdenhoso.
Numa fração de segundos, Gerald entendeu. O Ajeita-Moça, invisível a
seus olhos, entrara nele próprio, com duas garras que o detinham pela
cintura. Seus assistentes ouviram um riso rouco, e voltaram sua atenção
àquele som. Mas eles não conseguiam compreender a agonia de Gerald.
Tudo o que conseguiam ver eram os espasmos súbitos e violentos de
Gerald, para frente e para trás, “como se sua cintura estivesse sendo presa
num torno”; e sua batina e as roupas de baixo sendo rasgadas, deixando-o
nu do peito aos tornozelos. Todos os detalhes posteriores escapam às
testemunhas, em meio às violentas contorções e espasmos do corpo do
exorcista.
Gerald sentiu que uma das garras estava, agora, totalmente enfiada em
seu reto. Outra delas agarrava sua genitália, esticando seu escroto para
longe de seu pênis, puxando-o brutalmente. Ambas as garras eram rígidas,
cortantes como a borda irregular de uma lata de conserva, afundando-se
mais e mais, empalando-o. Ele se afastou do sofá em que estava Richard/
Rita às gargalhadas, chutando o ar e esmurrando o sofá com punhos
cerrados, num estouro ensurdecedor de regozijo.
Gerald cambaleou pelo cômodo, dobrando-se sobre si mesmo como um
canivete, gritos involuntários jorravam de sua boca. Uma das garras
agitava-se para frente e para trás dentro dele. Uma dor agonizante atacava-o
em suas nádegas, barriga e virilha. Sua carne, veias, mucosas e pele se
fendiam e se sulcavam.
Um cheiro fétido chegava em suas narinas por detrás de sua cabeça. A
voz do Ajeita-Moça martelava impiedosa seus tímpanos: “Você é a minha
porquinha. Eu estou em você. Sou o seu macho. Estou fazendo o melhor
boquete de todo o Reino em você com o meu focinho. Vai, porquinha! Abre
as pernas, porquinha! Seu macho está entrando pela sua carne, abrindo seus
cabelinhos intocados. Minha pica está tirando a sua virgindade. Você não é
garota, mas eu ajeito o seu buraco também. Eu ajeito qualquer buraco!”.
Gerald cambaleou, sofrendo espasmos, tropeçando em seus próprios pés,
contorcendo-se, tentando agarrar-se ao ar, deixando um traço de sêmen,
sangue, excremento e gritos, até bater violentamente contra a parede, e cair
duro no chão. Corria sangue de uma fina fenda vertical aberta no meio de
sua testa, subindo até seus cabelos.
Richard/Rita congelou-se, novamente, naquele olhar ardente.
O ataque havia durado algo como três segundos. Ele acabou antes que os
outros pudessem se recompor. Subitamente, os gritos de Gerald e os risos
de Richard/Rita se acalmaram, houve um momento sem som no cômodo,
como a calmaria após a tempestade. O silêncio cru depois de um barulho
rouco e ensurdecedor.
E então, um caos de vozes e de ação. O médico e o capitão de polícia
colocaram Gerald na maca que, ironicamente, havia sido trazida para
Richard/Rita. Os quatro homens rapidamente ataram Richard/Rita bem
apertado à armação de ferro do sofá. Ninguém olhava aqueles olhos. Todos
sentiam o seu brilho incandescente, decidido, triunfante, presunçoso. “Foi
como atar um esqueleto quente e fumegante”, rememorou um deles, mais
tarde.
Os dois irmãos de Richard/Rita, Bert e Jasper, com os olhos inchados de
lágrimas, os rostos amarelos de pânico, conduziram a maca para fora. Ao
deixarem a casa, os assistentes sentiram o enorme contraste entre a cena que
eles acabaram de testemunhar e o mundo exterior. No jardim próximo ao
lago, os tordos gorjeavam na primeira vaga do coro matinal que
Richard/Rita tanto amava, e que o fizera mudar-se para aquele lugar. O sol
brilhava.
Lá dentro, o padre assistente de Gerald, Pe. John, ainda vestindo sua
batina imaculada, instalou-se numa poltrona para vigiar e orar. Ele estava
atônito, sem palavras diante do ocorrido. Para garantir que nada de mal
ocorreria, ele manteve o crucifixo em uma mão e o frasco de água- -benta
em outra.
Um ano antes, na vida ordeira do seminário, John não conhecera nada
daquilo. Ele nem mesmo suspeitara sua existência. O mal não era, para
aquele jovem, senão uma definição na página branca de um manual de
teologia. E o Demônio, bem, não era mais do que um nome misterioso para
um senhor que costumávamos imaginar com chifres, um rosto verde, cascos
e uma cauda bifurcada. Agora John tinha aquele aspecto pálido e
ressequido, que só a juventude é capaz de carregar quando o cansaço e a
tensão mascaram seu frescor. Ele não tinha sequer rugas de idade para
mostrar, nem mesmo a maquiagem a perder; só umas tantas ilusões pálidas
a protegê-lo. Eram 6h20 da manhã.
Houve uma espera de quatro semanas e meia antes que Gerald pudesse
retomar e concluir com sucesso o exorcismo de Richard/Rita. O violento
resultado da primeira parte do exorcismo provocaria diversas dificuldades
para o padre. Seu próprio bispo teve dúvidas quando à competência de
Gerald. Os psiquiatras envolvidos no caso de Richard/Rita decidiram que
Gerald, leigo em psicologia, estava interferindo perigosamente na saúde
mental de Richard/Rita. A própria saúde de Gerald era um problema em
questão. E, como a experiência havia ensinado, um fracasso na realização
de um exorcismo, ainda que parcial, implicava em que sua conclusão
posterior seria duplamente dificultosa.
No entanto – se é que isso ainda era possível – Gerald tinha de completar
o exorcismo de Richard/Rita. E isso por duas razões principais. Se Gerald
não o fizesse pessoalmente, não haveria nenhuma garantia de que ele
próprio estaria imune ao assédio – ou coisa pior – do espírito maligno que
possuíra Richard/Rita. Como se viu posteriormente, Gerald não sobreviveu
por muito tempo depois do término exitoso do exorcismo. Fora isso, havia,
agora, uma grande possibilidade de que a tentativa de exorcismo por outra
pessoa também falhasse.
Gerald
A empregada de Gerald, Hannah, conduziu-me pela casa até o jardim, e
chamou pelo sujeito esguio de camisa e jeans cuidando do canteiro de flores
no fundo do jardim. Enquanto eu cruzava o gramado, ele acenou para mim:
“Oi! Venha, vamos conversar. Eu quero concluir esse serviço antes do
entardecer”. Era por volta de 5h30 da tarde. O sol estava começando a
arrefecer, mas sua luz ainda dourava tudo ao meu redor com um amarelo
caloroso.
“Aqui, em meio às minhas tulipas”, disse o Pe. Gerald com um aceno da
espátula em sua mão esquerda, “tenho uma grande beleza. E paz, é claro”.
Ainda inclinando-se sobre suas flores, ao afagar a terra: “Você fez bastante
jardinagem, Malachi, no seu tempo?”. Eu disse que havia feito um pouco.
Perguntei-lhe se poderia tomar notas de nossa conversa. Ele riu
discretamente, consentindo. Desde o início, o Pe. Gerald estabeleceu uma
atmosfera de descontração: eu era esperado ali; deveria tomar como certa
uma boa recepção.
A última coisa que eu esperava era encontrar Gerald fazendo jardinagem,
cuidando de suas tulipas. Talvez sentado, frágil, numa funda poltrona,
lendo. Ou mancando, dolorosamente, com uma bengala, para encontrar-me
com um sorriso pálido. Mas, gozar a vida e a tranquilidade com óbvia saúde
física e evidente felicidade interior – isso era quase um choque para mim.
Havia ali três canteiros de tulipas. Ele trabalhava naquele do meio. Atrás
delas, uma fila de azaléias amarelas. E então, à frente, o solo descia ao
encontro de grandes prados e montanhas distantes. Em algum ponto do céu
planava um pequeno avião.
Seu despojo era cativante. Eu lhe perguntei: “Do que exatamente você
gosta nas suas tulipas, Gerald?”. Eu estava de pé ao lado dele.
Sem olhar para cima, ele continuou trabalhando, respondendo-me
lentamente e decidido. “Nada de acusações, você vê. Elas não te acusam de
nada. Elas só estão aí. Belamente. Elas apenas são”. A ênfase sutil nessa
última palavra tinha um ligeiro eco francês. “Como você aparentemente
sabe” – agora com um sorriso pueril, brincando consigo mesmo,
provocador, mais do que brincando comigo – “eu tive certo caso com o
belo... e com a fera. Depois disso, você reconhece a beleza quando a
encontra”. Ele pausou, elevando o olhar aos longínquos cumes gêmeos das
montanhas, à esquerda. Mas os raios de sol entravam em meus olhos e seus
gestos ficaram turvos para mim. E então, concluindo seu pensamento: “E a
fera...”.
Depois de um minuto ou dois, Gerald ergueu-se com suavidade, sem
pressa, defrontando-me pela primeira vez, os braços aos lados, as costas
para o sol. Agora, quatro meses depois de ter completado o exorcismo de
Richard/Rita, aposentado, retirado aos confins de uma cidade do Meio-
Oeste, Gerald, de acordo com registros médicos, tinha mais cinco ou seis
meses de vida. Aos quarenta e oito anos ele tinha uma doença cardíaca
incurável e já passara por dois acidentes vasculares encefálicos.
Aquele homem que me olhava era ligeiramente mais alto do que eu.
Ombros magros, loiro, olhos cinzentos, ele mantinha-se de esguelha, como
se o centro de seu torso tivesse sido torcido – lembrança não dos ataques
vasculares, mas do “Ajeita-Moça”; uma cruel lembrança do exorcismo que
fez em Richard/Rita. Uma cicatriz corria verticalmente, subindo de sua testa
até a linha de seus cabelos. O que me chamou particularmente a atenção foi
a sua face, brilhando como um farol – era toda iluminada, sem qualquer
fonte visível. E havia também um comprido esparadrapo em sua testa entre
seus olhos, como um nevo. Amigos que tínhamos em comum, referindo-se
a ele, falaram-me sobre isso. “É o curativo que Jesus colocou no Gerald”,
assim eles o chamavam, com um humor carinhoso. A nova cicatriz corria
sob o esparadrapo.
Gerald, diziam, nunca olhava para você, somente em você. Só então eu
percebi o que eles queriam dizer. É como quando você olha para uma
cidade num mapa com o objetivo de descobrir onde ela está. Era o seu
contexto que interessava para Gerald, onde você estava. Eu só não sabia, à
época, o que é que ele entendia por contexto.
“Eu sei muito pouco sobre você, exceto que devo confiar em você. Seu
nome – Malachi Martin. Onde você mora – Nova Iorque. Você foi um
jesuíta no passado e escreveu alguns livros. Você quer me ver por conta do
caso Richard/Rita”. Seu tom de voz era equilibrado e baixo. Após alguns
instantes, ainda olhando em meus olhos: “Nada além disso... além de que
você parece ter paz em você, mas” – com um rápido relance em todo meu
rosto – “você me chama a tenção por parecer não ter pago todas as suas
dívidas”. Ele deve ter notado alguma reação involuntária em mim, um
protesto mudo. “Não. Não isso. Essas dívidas nós muito dificilmente
pagamos. Quero dizer: você parece ter provado a doçura de beleza, mas não
a sua grandiosidade”.
Ele parou e baixou o olhar na direção das tulipas. “Eu cuido regularmente
de meu jardim. Isso me relaxa. As tulipas – bem, eu amo suas cores,
suponho”. Mais uma pausa. O sorriso cândido de novo. “Vamos pegar
algumas tulipas para Hannah usar na mesa do jantar”.
Ele se inclinou novamente. Não houve tensão entre nós, só muito
brevemente de minha parte, quando ele me investigou pela primeira vez. E
agora a tensão havia desaparecido. Ele já estava satisfeito com aquela
investigação sobre mim.
“Eu não quero falar sobre Richard/Rita”, eu disse enquanto ele voltava ao
trabalho. “Mas meu interesse maior reside em você”. Ele trabalhou em
silêncio por mais alguns momentos. Uma brisa do início da noite fez
curvarem-se as tulipas. A luz do sol se havia reduzido a um levíssimo azul
acinzentado.
“Você percebe”, ele disse com naturalidade, como se para extirpar
qualquer tensão que eu ainda pudesse guardar, “você não conseguirá se
livrar disso, dessa vez. Não ileso, pelo menos. Digo, se você tiver de pagar
suas dívidas, vai ser agora – se você for adiante com o seu projeto”.
“Eu pensei sobre isso”.
“Não dá para levar isso na brincadeira, Malachi. Você está entrando no
terreno deles. É perigoso. São eles que decidem, se devo acreditar no que
dizem meus amigos”. Comecei a perceber seu estilo de falar entrecortado.
“Mas, eu suponho, você calculou tudo isso... Hm? E ainda assim assume o
risco. Risco há, de todo modo. Você tem a sua própria proteção. Isso eu
posso ver”.
“Eu passei dois dias com Richard/Rita”.
“Tudo indo bem?”. Ambos estávamos evitando os delicados pronomes
ele, ela, dele, dela e afins.
“Até onde posso julgar. É claro...”. Desde seu exorcismo, Richard/ Rita
vivia num território intermitente de sua mente. Havia uma preocupante
indefinição quanto a ele mesmo.
“É claro. Eu entendo. Mas Richard/Rita ao menos está limpo”
“Qual você diria que é o principal benefício que você obteve em todo
esse caso?”.
“Antes que tudo acontecesse, eu nunca soube o que era o amor. Ou o que
significavam masculino e feminino. Realmente não sabia. Ademais, eu me
livrei de um profundo sentimento de orgulho”.
Eu estava ficando mais calmo. Estava feliz em poder caminhar com
Gerald até à casa para jantar. Conversamos sem parar. E, enquanto o
fazíamos, ficou claro para mim uma vez mais que, ainda que os casos
verdadeiros de exorcismo tragam conseqüências negativas, não se trata de
simples contos de horror para assustar leitores e cinéfilos em busca de
fortes emoções. Pois durante toda aquela noite fomos nos aprofundando
mais e mais, não no horror, mas no quadro do amor que torna possível a
expulsão do horror. E o caso de Richard/Rita foi importante, mais do que
qualquer outro, exatamente porque se centrava na nossa habilidade de
identificar o amor, e no risco terrível de confundirmos o amor com o que se
pode ver em seus componentes físicos ou mesmo químicos, e nada mais.
Ficou claro que para o Pe. Gerald a importância estava centrada num
mesmo ponto. Richard/Rita havia levado a confusão até um extremo
sinistro. Mas para aqueles que chegam a conhecer e entender o caso, existe
nele uma lição a ser aprendida. Eu estava tentando entender, através de
Gerald e de toda sua experiência, tão bizarra e violenta, qual seria aquela
doce lição.
“Gerald, eu gostaria de voltar, mais tarde talvez, àquilo que você quer
dizer com ‘limpo’ – você usou esse termo ao falar de Richard/Rita antes do
jantar. Mas, agora, há alguma outra coisa na sua mente”. Nós estávamos
sentados em seu escritório após o jantar. “Tendo lido a transcrição do
exorcismo e conversado longamente com Richard/Rita, as questões que eu
quero lhe colocar giram em torno da sexualidade e do amor. Por exemplo,
por que você foi apelidado de ‘Virgem’ no seminário?”. Eu soube disso
pelos amigos de Gerald.
“Eu fui o último a saber desse apelido; só o descobri depois de ter
concluído já metade da minha formação. Quanto ao porquê, parece que eu
dava a impressão de não saber absolutamente nada sobre sexo”.
“E você sabia?”.
“Não muito. Eu tinha visto diagramas e imagens, esse tipo de coisa. Eu
podia distinguir um beijo apaixonado de um amistoso ou afetuoso nos
filmes. Mas o sexo enquanto tal permanecia uma coisa secreta para mim”.
“Mas você não tinha os sentimentos normais com doze, treze ou quatorze
anos de idade?”.
“Eu não sei o que você quer dizer com ‘normal’. Eu nunca tive uma
dessas ejaculações noturnas. Até hoje nunca tive. E, quando meus pêlos
começaram a crescer por toda parte, até um certo dia eles não estavam lá, e
no dia seguinte, assim, eles estavam”.
“Você já se masturbou?”.
“Nunca. E não era nem que eu quisesse. Eu não queria. Eu tomava as
ereções na época da puberdade e as posteriores como algo que
simplesmente acontecia em mim. Soa engraçado” – ele sorriu
candidamente – “mas não como algo sobre o qual eu tinha de fazer algo.
Constrangedor... um dia meu pai me levou para uma caminhada e me
passou o seu discurso padrão sobre sexo, que ele já havia passado para
todos os meus quatro irmãos. Ele sempre começava com a afirmação:
‘Olha, Gerry, você tem um pênis. E ele é usado para duas coisas, e para
nenhuma das duas ele funciona muito bem: urinar e copular’. Todos nós
conhecíamos o discurso de cor. E então ele explicava clinicamente o que era
cópula”.
Eu conduzi a conversa para o momento logo antes de Gerald entrar no
seminário: teria ele saído com garotas, namorado com elas ou feito qualquer
coisa de mais complexo do que isso? Aparentemente ele costumava levar as
irmãs de seus amigos da escola para assistir um filme vez ou outra,
geralmente em grupo. Ele as evitava sempre que possível; ficava
constrangido com as garotas e com as mulheres em geral.
Ele estava de pé agora. “Vamos dar uma volta no jardim. Vai lubrificar
um pouco as juntas”. Fomos para fora. Já era noite. Umas poucas nuvens
pairavam em torno das estrelas. Não havia lua. O jardim estava
parcialmente iluminado pelas luzes das casas. Ao descermos no caminho
em direção ao canteiro de tulipas, entramos numa parte mais escura.
Podíamos ver umas poucas luzes a cintilar nas montanhas ao longe. Quase
não havia som.
“Já beijou uma garota?”.
“Não. Não com paixão. Nunca”. Ele estava olhando para longe ao falar.
Agora, para mim, indagador: “Por que todas essas questões sobre minha
vida sexual?”.
“Esse é o meu modo – talvez sinuoso, mas em todo caso... – esse é o meu
modo de descobrir o que é que você agora entende por amor e
masculinidade e feminilidade, e o que você aprendeu quanto a isso”.
Ficamos por ali mais um pouco, aproveitando a calmaria da noite e as
luzes distantes. E então eu continuei.
“Deixe-me colocar a coisa assim, Gerald. Eu entendi que você entrou na
vida adulta – e mesmo na sua vida de padre – com noções muito frágeis do
que fosse sexo, e...”.
“Aí vai você, de novo”, ele interrompeu, bem-humorado. Demos mais
alguns passos em silêncio. “Eu suponho, basicamente, que eu era assim no
passado – menos experiente. Quero dizer: é claro, eu me dei conta, por
volta dos dezoito ou dezenove anos, que havia uma coisa muito poderosa
chamada sexo. Mas” – ele parou, seu olhar escapou na direção do canteiro
de tulipas – “era sempre algo que eu entendia. Na minha mente, com
conceitos. Em mim, eu sentia que havia aquele poderoso impulso. Mas
nunca dei muita margem a ele. Certa vez, uma garota tentou me beijar na
boca. Eu fiquei assustado com o – uh... o ... –” Ele procurava pela palavra
certa sem conseguir encontrá-la. “Veja. Algo me dizia que se eu desse
vazão para aquilo dentro de mim, aquilo iria me dominar”. E então,
triunfante, e erguendo sua voz: “A rudez! É isso. O beijo me pareceu algo
de rude”.
“E sujo, para você?”.
“Não. Amavelmente rude. Algo meio tumultuado e amoroso. Mas,
simplesmente, eu sabia que eu não conseguiria dar conta daquele tumulto”.
Nos viramos para retornar à casa. “Bem, em todo caso, Gerald, que
diferença fez o exorcismo nisso tudo?”.
“Suponho que o melhor modo de dizer seja o modo simples. R/R pensou
durante anos que gênero e sexo eram a mesma coisa, para todos os efeitos
práticos. E eu também vim a pensar desse modo. Não sei quanto a você”.
Estávamos a subir em direção à casa, e a luz bateu em seu rosto. “Você deve
se lembrar da transcrição. O ponto de apoio crucial do Ajeita-Moça estava
aí. [“Ajeita-Moça” era o nome do espírito maligno expulso de
Richard/Rita]. E custou-me toda aquela discussão e aquela dor até que eu
conseguisse vê-lo”.
Ele ficou de pé, olhando para as janelas, seu rosto e olhos a reluzir.
“Resumindo tudo, Malachi: do modo como eu o entendo desde o
exorcismo, quando duas pessoas – um homem e uma mulher – se amam um
ao outro, quando estão fazendo amor, eu agora entendo que eles estão
reproduzindo o amor de Deus e a vida de Deus. Isso soa banal. E pode soar
vulgar. Soa até evasivo, vago e pomposo. Mas é isso. Ou então você tem
apenas dois animais, mais ou menos desenvolvidos, a copular – a cruzar,
como você queira chamá-lo – e ao final tudo o que resta é suor, umas
poucas ilusões talvez, e uma coisa do tipo vamos-voltar-às-nossas- -
existências-normais. Faça-ou-morra. Agora-ou-nunca. Vamos quebrar tudo.
Qualquer coisa do tipo. Daria até para aprender com os cangurus, se fosse
assim”. Ele virou sua cabeça de um modo cômico e disse: “Já viu dois
cangurus se cortejando e copulando? Eu já. Num documentário. É
extraordinário. Extraordinário”. Ele balançou a cabeça.
“Bem, para além de qualquer significado prático que isso possa ter para
você agora, Gerald, você sendo celibatário e tudo o mais...”.
“E com mais uns poucos meses de vida”, ele disse amavelmente, sem
impaciência, como se para deixar claro que ele levou em conta a data- -
limite de sua vida.
“Ok. A despeito disso, talvez devamos voltar a esse tema. Mas me
explique uma coisa. Não há um estágio intermediário? Digo: o homem e a
mulher não são somente animais. Mas eles tampouco estão realizando um
ato de louvor a Deus. Ou estão? É isso o que você está tentando dizer?”.
“Aaaah! O velho negócio do ato bom e natural”. Ele estava imitando
alguém que eu não conhecia, provavelmente algum professor dos dias de
seminário. “Bem”. Essa última palavra foi dita com um acento sarcástico.
“Tal como eu agora entendo, a nós, homens e mulheres, nós passamos por
este mundo encontrando nossa via em meio a fatos, fatos e mais fatos.
Montanhas de fatos. Mas não importa o que venhamos a fazer, adquirir ou
conhecer, o tempo todo nós estamos experienciando o espírito. O espírito
de Deus”.
Ele olhou ao redor, em direção às luzes da cidade próxima. “E por vezes
é uma experiência nos pensamentos que pensamos. Ou vem em palavras
que nós ouvimos. Mais freqüentemente, trata-se de uma experiência por
intuição. Um ‘olhar para’, diretamente. Algumas dessas percepções vêm
como mensagens enviadas para você. Você ouve crianças rindo, ou vê um
belo vale sob o sol do meio-dia. Mas você está, basicamente, passivo. Por
outras vezes, você faz algo. E isso é ainda melhor. Como quando você sente
compaixão por alguém, ou perdoa alguém”.
Havíamos nos abaixado novamente para olhar os canteiros de tulipas. Ele
parou diante daquele do centro, no qual estivera trabalhando mais cedo, e
olhou para as silenciosas flores. Elas reluziam em coloridas nesgas, que
refletiam a luz distante vinda da casa. “Mas o amor e o ato sexual são o
ápice. Ambos são ação. Ambos doação. Ambos recepção. Nenhum dos dois
fica passivo”.
Nesse ponto eu fiz uma objeção, dizendo que eu não conseguia conceber
como os homens e as mulheres reproduziam o amor de Deus e a vida de
Deus quando faziam amor. Talvez possamos dizer isso de um modo remoto
e metafórico. Mas, se é assim, as tulipas fazem o mesmo. E os cangurus.
Todos eles, incluindo o homem e a mulher, podem nem saber que estão a
reproduzir a vida e o amor de Deus, metaforicamente. Mas eles o fazem. Ou
não fazem? Era essa minha questão.
Ele desviou seu olhar de mim e encarou a cadeia de montanhas. Sua voz
veio em murmúrios curtos, como se ele estivesse lendo cartões de apoio,
visíveis apenas para ele. “Você se lembra do Ajeita-Moça, e minha batalha
com ele. Lembra?”. O ponto crucial dessa batalha entre Gerald e o espírito
maligno que possuíra Richard/Rita dizia respeito ao sentido do amor e do
amar. “Bem”, ele continuou, “no campo do amor – e não estou falando do
clímax de um ato sexual apenas, mas o campo do amor em si – o homem e
a mulher estão, ambos, envolvidos num amor dinâmico. Não há passado.
Não há estagnação. Não há antecipação. Não há antes, agora, depois.
Somente o veludo negro em volta do qual todas as estrelas piscam. Não há
olvido. Tudo...”.
“Mas, Gerald, Deus – onde está Deus nisso tudo? Você começou falando
de Deus, como se os amantes estivessem trancados numa cerimônia de
participação intuitiva na vida de Deus”.
Ele se virou rapidamente para mim e disse, quase que ferozmente: “Isso é
Deus! Deus é assim!”. Virou-se para o outro lado novamente, como se
buscando inspiração. “Deus não é um quantum estático e imutável, como
entendemos essas palavras. Esse é o Deus dos livros. Mas – um dinamismo
eterno, sempre vindo a ser, que não teve começo, que não vai para um fim.
Tornando-se sem mudar. Nada de antes. Nada de agora. Nada de depois”.
Ele virou-se e começou a caminhar de volta para casa, e eu segui seu passo.
“Mas existem dois em nosso caso. Homem e mulher”.
“Ah”, disse ele, jogando sua cabeça para trás num leve gesto, “essa é a
condição em que estamos. E esse é o preço”.
“O preço?”.
“Sim, o preço. Para que possamos ter essa participação no ser de Deus,
os dois devem reproduzir a unicidade de Deus. Devem amar. Amor
verdadeiro. Você não pode fingir”.
“Mas qual parte – se podemos falar assim – de Deus um homem reproduz
e que partes uma mulher reproduz?”.
“Nenhuma. Por ele próprio e por ela própria. Ou nele próprio e nela
própria. Nada. Nada do que seja físico. Somente no amor e no amar”.
“Bem, no amor e no amar, o que eles reproduzem?”. Nós paramos a meio
caminho. Gerald olhava para mim fixamente, como se procurando por algo.
Após um instante, ele respirou fundo e disse suavemente: “Até onde eu sei,
Deus é belo, é a beleza em si. A beleza no ser. O ser que é beleza. E a
vontade de Deus possui plenamente essa beleza, esse ser. No amor humano,
o amor da mulher é esse eco do ser; e o desejo do homem é um paralelo
dessa vontade. Em seu amor, a vontade se encerra no ser. Eles simplesmente
reproduzem, conhecem, participam no amor e na vida de Deus, no ser de
Deus, de certo modo. Se não é assim, voltamos aos cangurus, aos
chimpanzés”.
“Bem, ainda aceitando tudo isso”, eu disse para ele enquanto voltávamos
a caminhar, “diga-me, o que significam masculino e feminino para você
agora, à luz de tudo isso?”.
“Lembra do ponto crucial no caso de Richard/Rita?”. Ele olhou para
mim, sabendo que eu me lembrava.
Esse tinha sido o centro da fase de Afetação no exorcismo. Richard/ Rita
havia presumido que a fonte última da masculinidade e da feminilidade era
a mesma fonte da sexualidade – o corpo, a química do corpo.
“E nem os maiores esforços de Richard/Rita, nem mesmo a operação,
funcionaram para ele. Ele não era apenas andrógino. Ninguém é, diga-se de
passagem. Nós somos, básica e imutavelmente, masculinos ou femininos. A
natureza pode até vir a nos pregar uma peça dando-nos uma genitália errada
para nosso gênero. Não importa. Exceto por uma forma mutante desse tipo,
nosso aparato sexual corresponde àquilo que nós somos – femininos ou
masculinos. Androginia é patifaria”.
Eu ri com a rima e o com a gíria. Mas eu realmente tinha dificuldade em
entender. De acordo com Gerald, o feminino – a feminilidade –
correspondia ao ser de Deus; e o masculino ou masculinidade, com a
vontade de Deus. A essência de Deus, em nosso modo humano de pensar,
seria feminina em tal caso. “Se você estiver certo, Gerald, Deus, para falar
em termos humanos, é mais feminino que masculino”.
“É claro. Mais poderoso. Criativo. O próprio ser dele é o palco – e não o
objeto – do desejo humano”.
“E quanto aos ‘eles’ e ‘deles’ da Bíblia? E Israel como mulher que Deus
ama e almeja, e tudo o mais?”.
“É só mais uma dose de chauvinismo semítico. Mais um tanto de
ignorância. E mais um tanto de chauvinismo de todos os homens ao longo
das eras. Os homens estiveram no comando desde o começo. Até mesmo no
budismo. Só pelo fato do Buda ser um homem”.
“Então o feminino é algo do espírito, essencialmente?”.
“Somente do espírito”.
“E o masculino também?”.
“Isso mesmo. Um pássaro não voa por ter asas. Ele tem asas porque voa.
Um homem não é masculino por ter um pênis e testículos, nem uma mulher
é feminina por ter uma vagina, um útero, estrogênio ou o que quer que seja.
Eles têm tudo isso – quando o tem – porque ela é feminina e ele é
masculino. Mesmo se falta alguma dessas coisas neles, ainda assim eles são
masculinos e femininos”.
Havíamos voltado ao pátio. Gerald estava prestes a abrir a porta, e eu
deveria ter partido naquele momento. Já estava tarde, eu tinha de voltar à
cidade e tomar o ônibus até o aeroporto e Gerald, sob orientações médicas,
já deveria estar na cama havia uma hora. Mas, mais importante do que isso
tudo, se eu não tivesse continuado aquela conversa, eu não teria tido, como
conseqüência de minha investigação, de suportar uma dor quase intolerável
por Gerald. Eu prossegui, ingenuamente: “Gerald, conte-me mais uma coisa
antes de eu deixá-lo em paz. Levando em conta tudo isso que dissemos,
você se arrepende, hoje, de nunca ter se apaixonado ou de nunca ter feito
amor, e do fato que você nunca fará amor com uma mulher?”.
Sempre que você comete um erro, você começa por percebê-lo
vagamente, passando logo a uma tentativa desesperada de remediar a
situação.
“Eu sei que você não se arrepende do seu sacerdócio. Sei que o seu voto
de celibato lhe é caro. Mas, deixando tudo isso de lado por um momento,
você se arrepende?”. Gerald largou a maçaneta lentamente. Sua cabeça
caída e o olhar deprimido. Eu não podia mais captar sua expressão. O súbito
silêncio que se produziu entre nós não era por uma mera ausência de
palavras. Era o abrupto rompimento de toda comunicação. Senti minha testa
transpirar.
Ele ficou por um instante ali, sob a luz do pátio, frágil, esguio, como se
um grande peso lhe tivesse sido imposto. Percebi rugas de idade e uma
magreza que me havia escapado até então. Seu rosto estava imóvel, mas a
cicatriz sob o “curativo de Jesus” tinha agora uma cor mais profunda. Ele
caminhou lentamente até o gramado, mancando, e se dirigiu a passos curtos
até as tulipas. Eu o segui e comecei a dizer algo, mas ele me calou com um
pequeno gesto de sua mão direita. A alguns metros dos canteiros ele
diminuiu o passo. Não ousei olhar para ele, e a princípio não ouvi nenhuma
palavra de sua parte. Mas sabia que ele estava chorando. Então, conforme
os minutos se passaram, percebi que não era um choro exterior, com
soluços e vozes. Ele não se mexia, mas chorava muito discreta e
silenciosamente. Suas lágrimas corriam em fluxo constante, brotando de
uma profunda tristeza, já há muito aceita, e cuja dor ele conhecia
intimamente. Simplesmente, naquela ocasião, eu havia evocado aquela dor,
aquela tristeza, para além de seu controle. Eu sabia que ele precisaria
resolver aquilo à sua própria maneira. Nada poderia consolá-lo e conter
suas lágrimas. Sêneca disse, certa vez: “Quando um homem chora, ele o faz
ou no colo de sua mãe, ou então sozinho”. Gerald chorava só.
Aquilo durou vários minutos. E então levando ambas as mãos aos olhos e
enxugando-os, ele disse simplesmente: “Eu sei que você entende o sentido
disso”. Sua voz soava estranhamente profunda e muito distinta dos tons que
ele usara durante toda aquela tarde. Antes ela vinha de alguém vivo e
vibrante à sua própria maneira, caminhando e falando próximo a mim.
Agora, ela vinha de muito longe; profunda, grave, solene. Ele falava
comigo claramente de um outro terreno no qual ele caminhava sozinho,
onde seu fardo estava decidido, e no qual seu próprio eu nunca havia
cessado de estar. Era um exorcista a falar do mundo solitário que ele
deveria para sempre habitar, sozinho, com o conhecimento de uma
realidade macabra, com a memória ferida, e com a confiança cega num
amor que tudo purificaria ao fim dos tempos.
“Não precisa se desculpar, Malachi. Não tem problema. É só que isso não
precisa ser descarregado sobre ninguém. Essas são lágrimas que devem
correr na solidão”. Ele se ergueu e pigarreou. Eu podia vê-lo mirar o
horizonte, movendo sua cabeça lentamente, meditativo, de um lado ao
outro. “Em algum lugar do meu mundo”, disse ele com força, mas como se
falando consigo mesmo, “em algum lugar, em algum momento durante os
anos que eu vivi, deve ter havido, ou ainda hoje há, uma mulher com quem
o amor teria sido possível. Eu nunca verei seus olhos, nunca ouvirei sua voz
nem sentirei o toque de seus dedos. Eu poderia ter provado a eternidade e o
êxtase divinos com ela. E eu poderia ter visto a beleza de Deus em seus
cabelos e seus seios. Em algum lugar. Alguém. Mas não. Não agora. Nem
nunca. Eu nunca poderei compartilhar do mistério divino nela contido”.
“E, você sabe bem, eu não estou chorando por causa de uma
oportunidade perdida ou frustrada. Então, entenda o que eu digo”. Ele
enxugou seus olhos novamente. “Num certo sentido, eu não sei por que
estou chorando. E, ao mesmo tempo, eu sei, sim, muito bem. Uma vez que
você toca os recônditos de uma situação como a de R/R, penso que a
terrível fragilidade do amor humano torna-se mais bela e você passa a temer
por sua segurança. Pobre R/R e seus sonhos delicados! Ele realmente,
genuinamente sonhava em ser feminino e amar como só as mulheres podem
fazer”.
Ele se virou em direção à casa. Seus olhos ainda estavam molhados e
reluziam, mas tinham um brilho renovado: “Será por isso que por vezes os
enamorados choram em seus momentos mais felizes?”. Aparentemente,
naquele momento, as lágrimas começaram a correr de novo, porque ele
desviou o olhar rapidamente em direção às montanhas.
“Muitos homens e mulheres devem ter tido o mesmo sonho de R/R”,
disse ele em meio a sua dor, “vislumbraram com a ponta dos dedos,
tentaram alcançá-lo, e o viram perder o encanto antes que pudessem tocá- -
lo”. Uma pausa. “Eu não sei por que choro por eles. Compaixão, talvez.
Pois somente Jesus pode emendar a fratura em seus espíritos”.
Esperei até que ele tivesse, aparentemente, parado de chorar. Havia uma
última questão que eu gostaria de lhe colocar, sobre Jesus. Mas ele falou
antes que eu o fizesse: “É claro que eu tenho arrependimentos. Eu seria um
mentiroso se dissesse que não. Os arrependimentos que eu tenho são
referentes a intuições que eu nunca tive. Qualquer homem ou mulher que já
conheci e que realmente amou, todos me disseram que no amor verdadeiro
o plano físico era um suporte, uma cama para um vôo das intuições. Ele não
se sentia simplesmente dentro dela ou próximo a ela. Ela não se sentia
apenas próxima a ele ou íntima dele. A coisa ia além disso e chegava a um
– como foi que aquela mulher disse? – ah – uma ‘completude’ ela disse. Ou
então, como um homem me disse, uma ‘juntidade’. Ele queria dizer:
consigo mesmo, com sua mulher, com Deus, com a terra, com a vida”.
Eu perguntei a Gerald se, misturado com seu conhecimento e seus
parciais arrependimentos, ele pensava na falta das crianças que ele poderia
ter concebido. Ele respondeu que ter tido filhos ou não era outra coisa. Eu
insisti na questão, contudo, sugerindo que talvez um ponto de bastante
sofrimento para ele no caso de Richard/Rita fosse a total incapacidade de
Richard/Rita de ter filhos. Não importava quanto amor Richard/Rita
sonhasse em viver e realizasse, nunca seria um amor capaz de conceber a
vida. Seria para sempre um sonho incompleto.
Gerald lembrou-me daquilo que Richard/Rita gritava ao fim do
exorcismo ao debater-se. Ele gritou por diversas vezes: “Vida e amor! Vida
e amor! Vida e amor!”, até que eles cobriram sua boca com fita adesiva.
“Agora”, concluiu Gerald, “assim como Richard/Rita, eu terei de esperar
até cruzar a linha para o outro lado, para poder encontrar a vida no amor e o
amor na vida. No momento presente, sou um eunuco temporário, no que diz
respeito à vida e ao amor na eternidade”. Com essa última frase o timbre de
sua voz se alterou ligeiramente.
Ele agora soava mais ou menos como o Gerald que me havia entretido
naquela mesma tarde. Começamos a caminhar de volta para a casa. Ao
passarmos pela porta de entrada, ele citou Jesus: “‘No Reino dos Céus, eles
nem dão suas filhas em casamento, nem eles mesmos se casam’. Não há
casamento por lá”, ele comentou pensativo. “Não é preciso”.
“Gerald, quanto a Jesus...”.
Ele me interrompeu. “Ele era – é – Deus. Não era necessário uma mulher,
ele não precisava fazer amor para se completar”.
“Será que nós fazemos amor, portanto, fazemos amor então por sermos
meramente humanos?”.
“Só porque somos humanos. Uma vez possuídos por Deus, não há
sentido em fazer amor. Você tem tudo o que o amor humano pode lhe dar e
muito mais. O amor em si”.
Ninguém que tivesse visto o início da vida de Gerald como um jovem
padre poderia adivinhar que ele acabaria como um exorcista condenado a
uma morte precoce. Nascido em Parma, Ohio, criado em Dijon, França, até
seus quatorze anos de idade, educado desde então em Cleveland, ordenado
padre em 1948, Gerald fora enviado como assistente de uma afastada
paróquia de Chicago.
Ali, e em algumas outras paróquias, Gerald serviu como assistente
durante 23 pacatos anos. Durante esse tempo ele adquiriu uma reputação
sólida. Ele era imperturbável até nas mais árduas situações. Por vezes o
criticavam por ser um pouco desinteressado demais pelos assuntos
mundanos – “Um tipo sem muito conhecimento do mundo”, observaria um
colega vez ou outra. Mas, sempre que surgia um problema, os juízos e as
decisões de Gerald em geral se provavam acertadas.
Um dia ele recebeu uma ligação do padre de uma paróquia vizinha,
pedindo que ele fosse até lá para uma consulta. Chegando na casa do padre,
contaram-lhe a história de um jovem rapaz, Richard O., empregado de uma
agência de seguros, que viera morar recentemente nos arredores. Ele não
era católico, mas seus dois irmãos e alguns amigos próximos procuraram
espontaneamente o velho padre em busca de ajuda e conselho. O amigo e
irmão, Richard, estava num estado que só piorava já há algum tempo. Eles
haviam tentando buscar ajuda com médicos e psicólogos, e acabaram por
convencer Richard a visitar um ministro Luterano. Mais tarde um rabino
orou por ele. Mas ele continuava a se deteriorar.
Os irmãos de Richard foram muito francos ao falar com os dois padres no
salão da reitoria. Eles deram um breve esboço da vida de Richard/Rita até
aquele momento. “Padre, nós não somos católicos. Nós não acreditamos na
Igreja Católica, ou em qualquer igreja, na realidade. Mas nós faremos
qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, iremos até onde for preciso, para
ajudar nosso irmão”. O velho padre pediu licença para sair com Gerald por
um momento. Eles foram para fora.
O pároco tinha diversas questões para Gerald. Seria o caso de Richard O.,
em sua opinião, de possessão? Gerald não sabia; ele nunca havia se
aproximado de um tal caso. Não seria melhor alertar o bispo? Gerald já
havia conversado com o “jovem Billy” (o apelido do bispo entre os padres).
Não havia exorcista oficial da diocese. O bispo não sabia nada sobre o
assunto, e queria saber menos ainda. “Vamos levar a coisa passo a passo, do
topo à base”, aconselhou Gerald alegremente.
Eles retornaram ao salão e pediram os relatórios médicos e psicológicos
de Richard aos dois irmãos. Eles poderiam obtê-los imediatamente,
garantiram. Gerald perguntou se Richard sabia da visita dos irmãos ao
pároco e a ele. Bert disse que achava que não.
“Ele precisa saber”, Gerald replicou. Ele então prosseguiu, dizendo que,
se Richard realmente estivesse possuído por um espírito mal, ele facilmente
poderia vir a saber muito mais do que os seus irmãos lhe contassem.
Essas conversas ocorreram três dias depois do Natal. Os relatórios
chegaram logo no Ano Novo. Com a permissão de seu próprio pároco,
Gerald passou a viver temporariamente na reitoria de seu velho amigo, para
poder estar mais próximo de Richard O.. No início de fevereiro, tendo
digerido os diversos relatórios e falado com os médicos e psicólogos, ele
acompanhou os dois irmãos de Richard numa primeira visita a este.
Richard/Rita recebeu-os num clima bastante agradável em sua casa.
Naquele dia ele pareceu desmedidamente feliz. Falou sobre si mesmo e não
teve dedos ao tratar de sua própria condição. Ele disse que, por vezes, como
naquele momento, via as coisas com clareza e sabia que precisava de algum
tipo de ajuda. Outras vezes, pelo que outras pessoas lhe diziam, ele ficava
“todo esquisito”. Era uma constante mudança. E aquilo era dolorido,
abrupto e imprevisível demais para que ele pudesse suportá-lo por muito
mais tempo. “Me ajude se você puder”, ele acrescentou. “Ainda que eu
mais tarde lhe diga ‘vá pro Inferno’, me ajude. Eu assinarei todos os
documentos necessários”.
De bom grado, Richard/Rita disse em resposta à proposta de Gerald que
iria a Chicago e se submeteria a testes por médicos e psicólogos escolhidos
por Gerald. No dia seguinte eles foram para Chicago juntos. Felizmente a
visita e os testes conduzidos pelos psicólogos e médicos foram concluídos
sem incidentes. O estado de sanidade de Richard/Rita manteve-se de forma
ininterrupta.
Enquanto eles estavam em Chicago, Gerald e o velho padre foram falar
com o único exorcista que eles conseguiram rastrear numa distância
razoável. Era um frade dominicano, ex-missionário, que vivera afastado
num subúrbio de Chicago. Ele sorriu sombriamente ao ouvir a história.
“Melhor vocês mesmos do que eu, rapazes”, disse ele calmamente.
“Deixe-me colocá-los em contato com o rito de Exorcismo e dar algumas
dicas pessoais para vocês e os assistentes. Eu aprendi uma coisa ou duas na
Coréia. Nem tudo foi perdido”.
O velho homem ensinou os princípios do Exorcismo. Ele preveniu
Gerald para que não tentasse tomar o lugar de Jesus. Era só em nome e sob
o poder de Jesus, enfatizou, que todo espírito maligno podia ser exorcizado.
Ele o instruiu quanto às diversas armadilhas que esperavam os desavisados:
os perigos de qualquer argumento lógico com o espírito possessor; a
necessidade de assistentes fortes e silenciosos; e os procedimentos
costumeiros de um exorcismo.
Gerald teve de voltar diversas vezes a Chicago com Richard/Rita depois
daquela primeira ocasião. Ele foi sozinho falar com alguns teólogos, com o
objetivo de obter um conhecimento mais apurado daquilo que se passava
durante um exorcismo. Richard/Rita teve ele próprio de fazer diversas
viagens ligadas ao seu trabalho no escritório. No fim das contas, foi no
início de março que tudo ficou pronto. Gerald sentiu ter tomado todas as
precauções possíveis. Os examinadores todos, intrigados como estavam
com a operação de Richard/Rita, se contentaram em dizer que ele era
médica e psicologicamente normal, tanto quanto qualquer outra pessoa, e
que ele não estava se valendo de quaisquer artimanhas para chamar a
atenção – o que fora sugerido por um dos psicólogos. O rito de exorcismo,
assim decidiu Gerald, não faria nenhum mal.
Para o exorcismo em si, ele escolheu cinco assistentes. Os dois irmãos de
Richard/Rita, Bert e Jasper, se ofereceram como voluntários para o serviço.
O velho pároco garantiu a participação do capitão da polícia e do professor
de inglês da escola da paróquia. O senhorio de Richard, Michael S., um
Greco-Americano, bom amigo do velho pároco, ouvira falar do exorcismo e
se ofereceu voluntariamente para ajudar. Gerald escolheu como seu padre
assistente um jovem recentemente empossado em sua paróquia, o Pe. John.
Uma ou duas vezes, apenas, a coragem de Gerald para realizar o
exorcismo se viu abalada. Num momento, o velho frade dominicano o
chamara de canto, quando ele e o pároco partiam após a visita. Ele
perguntou a Gerald se ele era virgem. Ele era, respondeu Gerald, mas que
diferença isso fazia? O padre dominicano respondeu-lhe um pouco sem
jeito, tentando minimizar a importância de sua questão. Não fazia diferença
alguma, ele disse; apenas que Gerald teria mais o que sofrer. Pelo menos,
era o que ele achava.
Questionado por Gerald quanto ao por quê de ele pensar aquilo, o
dominicano o olhou por um instante; e então disse, numa voz calma: “Você
não pagou suas dívidas. Você não sabe muito bem o que há em você. Mas”
– ele passou até a porta e a abriu – “Eles sabem. Agora” – apontando aonde
o velho pároco aguardava Gerald – “seus amigos o aguardam. Vá em paz. E
não tenha medo. Essa é sua sorte”. Voltando para casa, Gerald e seu velho
amigo conversaram sobre a questão toda. Estava claro para ele, disse o
pároco, que quando alguém passava anos num certo tipo de trabalho – o
pároco em sua paróquia, o velho frade em seu trabalho missionário – você
adquire um senso especial. Você não consegue compartilhá-lo com ninguém
– e nem o quer, na verdade. E o que esse senso mostra nem sempre é
agradável. Às vezes você vê as coisas de forma negra e imóvel onde os
outros só vêem luz. “É tudo muito esquisito”, disse o pároco para Gerald,
que caíra num silêncio meditativo. “Não tente entender. Você não pode
envelhecer antes da hora. Isso lhe rasgaria o coração”.
Conforme se aproximava o meio do mês de março, mais irreal tudo
aquilo parecia aos participantes, sobretudo a Gerald. E principalmente por
causa de Richard/Rita. Não houvera, nos últimos dias, qualquer sinal de
deterioração em seu estado, nenhum surto. Tudo estava calmo e normal. Ele
até mesmo os recebeu em sua casa na noite anterior ao dia marcado e serviu
um jantar cozinhado por ele próprio. Depois disso, ele ajudou-lhes a
arrumar o quarto no qual o exorcismo seria realizado e conversou com eles
amistosamente antes de partirem. Gerald trouxera a parafernália do
exorcismo consigo – crucifixo, estola, sobrepeliz, livro ritual, frasco de
água benta. Seguindo a sugestão do velho dominicano, tomou emprestado
uma maca de uma clínica local; eles poderiam precisar dela para
Richard/Rita.
Todos deviam se reunir ali às 8 horas da manhã seguinte. Para Gerald, a
partida reservou alguns segundos de uma estranha tonalidade. Ele era o
último no caminho que conduzia à rua em que ele estacionara seu carro. Ao
voltar-se para trás para fechar o trinco do portão, ele viu a silhueta de
Richard/Rita à porta de entrada de sua pequena casa. Gerald não podia,
daquela distância, ler o olhar de Richard/Rita, mas as mãos de Richard/Rita
chamaram sua atenção.
Quando o pároco e Gerald partiram, Gerald lembra com clareza, a mão
direita de Richard/Rita, com a palma aberta em direção a eles, fora erguida
ligeiramente num gesto de adeus. A esquerda permanecera sobre a
maçaneta. Mas em seguida, quando ele olhou de novo para Richard/ Rita, a
mão direita estava aberta como uma garra apontando em sua direção. A
esquerda, com a palma voltada para cima, os dedos levemente arqueados,
estava rígida. Gerald sentiu um tremor na espinha.
“Vamos, Gerald! Viu uma assombração, é?”. Era o velho pároco, bem- -
humorado, brincando com ele. Richard/Rita acenou para eles novamente e
entrou em casa.

Richard/Rita
A história de Richard O. é somente em parte, mas, não obstante, de um
modo importante, a história de um transexual. Ele nasceu fisicamente um
varão, mas com um desejo inexorável de ser uma mulher. Em sua infância,
suas idéias e desejos eram nebulosos. Na vida adulta, ele acreditava com
firmeza que cada um de nós pode ser homem ou mulher, masculino ou
feminino; que cada um tem uma dosagem quase idêntica de masculinidade
e feminilidade, anteriores à cultura, à civilização e ao ambiente social, que
nos persuadem para tornarmo-nos garotinhos e garotinhas. Ele finalmente
submeteu-se à operação de transexualização – com êxito, em termos
médicos. Ele adotou o nome Rita.
Richard tinha uma compreensão muito clara e precoce da diferença entre
feminilidade e masculinidade, e sentia atração pelo aparente mistério do
feminino, e repulsa pela inconveniência de estar restrito somente ao
masculino. Desde os dezesseis anos, o objetivo de Richard era deixar o
feminino emergir de si, para que ele pudesse suprir sua insuficiência
masculina com o auto-suficiente mistério da feminilidade.
Dos dezesseis aos vinte e cinco ele buscou ativamente, com toda a
confiança, pensar, sentir e agir “androginamente”; ele estava persuadido de
que poderia conter a união do feminino e do masculino em si. Mas o
resultado foi uma grande solitude (não, àquela altura, solidão), sem chegar a
realizar aquela desejada união. Aos 25, vislumbrou no casamento a mesma
união. Mas não funcionou; não encontrou nem a unidade e nem a união do
amor; e a convicção andrógina nele perdeu o vigor.
De seu divórcio, aos 29 anos, passando por sua operação de
transexualização aos 31, até seu exorcismo aos 33, ele se tornou um
“observador marginal”, invejoso da supremacia do feminino, fascinado pela
função essencial do masculino. O mistério da feminilidade tornou-se algo a
ser revelado; no caso de Richard, esse revelar acabou implicando em
blasfêmia e um tipo de degradação psico-moral que o assombra até os dias
de hoje. A vitalidade do masculino tornou-se uma arma para ele; ele a via
como um meio para a morte.
Ao final do verão de 1971, ele foi voluntariamente possuído por um
espírito maligno que respondia pelo nome de “Ajeita-Moça”. Essa
possessão havia se iniciado muitos anos antes. Sua violenta revolta contra a
possessão acabou por levá-lo a submeter-se ao rito de exorcismo realizado
pelo Pe. Gerald. Mas, até o fim de seu exorcismo, Richard via seu problema
como algo devido a uma substância química, a uma modificação no
cérebro, a uma adaptação cultural, nunca a um dilema do espírito.
O exorcismo foi exitoso. Ele foi libertado. Mas Richard/Rita acabou por
encontrar-se numa posição pouco invejável: nem macho nem fêmea; nem
sexualmente neutro, mas numa terra de ninguém, entre o masculino e o
feminino.
Nem todos os detalhes de sua vida são pertinentes para que se entenda o
que aconteceu com ele. Precisamos somente de umas poucas cenas e
detalhes de sua infância e pré-adolescência. É o triplo estágio pelo qual ele
passou em sua vida adulta que ilustra, até certo ponto, sua condição à época
do exorcismo.
Richard/Rita apresenta em contornos claros a confusão clássica daquele
que, embora possuído (sempre, em certa medida, com o próprio
consentimento), ainda se revolta contra a possessão mesma. Mas por que foi
que Richard/Rita, e não qualquer outro transexual de nosso conhecimento,
foi então possuído, para início de conversa?
Richard/Rita nasceu Richard O. em Detroit, Michigan, terceiro de uma
família de seis filhos (três meninos, três meninas). A família vivia em uma
casa geminada de dois andares, numa área do subúrbio predominantemente
branca e de extrato social elevado. Sua mãe era luterana, seu pai, judeu. As
crianças foram batizadas como luteranas; mas a religião não exercia um
papel importante na vida familiar. O luteranismo de sua mãe era tão
desimportante para ela quanto o judaísmo era desimportante para seu pai.
Era uma família vivendo uma condição financeira confortável, governada
com mão leve, e nem mais nem menos unida do que qualquer outra família
da mesma rua.
O pai de Richard trabalhava numa rotina comum, das nove às cinco, num
escritório de seguros, e passava a maior parte de seu tempo livre com os
garotos. Ele era um entusiasta dos passeios de barco e das atividades ao ar
livre, e viajava para pescar e atirar no Canadá durante as férias de verão.
Primeiramente, os dois garotos mais velhos, Bert e Jasper, participavam
dessas férias com ele, e mais tarde, ao completar seu nono ano, Richard
também.
Um ideal nutrido de forma mais ou menos inconsciente por cada um dos
rapazes era o de ser como seu pai – forte, atlético, esportivo. Ser um
homem. As primeiras recordações de Richard com relação a esse ideal
incluem um dia de dezembro em que ele estava no parque com seu pai,
passeando com Flinny, o cachorro da família. Ele estava lançando uma bola
para o cachorro buscar. Quando o cão disparou e agarrou a bola, voltando
correndo até eles, seu pai comentou que é assim que Richard deveria ser –
firme, pronto para saltar, correr e pegar. Os movimentos do corpo do cão
tornaram-se o padrão de força para Richard: disparar, correr, alcançar... um
bem composto quadro numa armadura de autoconfiança e resistência que
absorvesse colisões, choques, frio, calor, mudanças bruscas de direção e
súbitas eclosões de energia. “Veja como Flinny se joga com tudo!”, ele
lembra do grito de admiração de seu pai.
A nota dissonante nessa recordação vem à memória de Richard quando
ele se lembra do que aconteceu quando eles voltaram para casa. Ao ver sua
mãe e irmãs, ele sentiu um conflito dentro de si; Richard, sem entender por
quê, estava comparando seus movimentos e o som de suas vozes com
aqueles de seu pai e de Flinny. Mas o ocorrido logo foi deixado de lado.
Os três rapazes eram altos e tinham a pele parda. As garotas eram
pequenas, tinham cintura estreita, eram loiras como sua mãe. Um traço
familiar compartilhado por todos os seis filhos com sua mãe era o lóbulo da
orelha desigual: o lóbulo direito era visivelmente menor que o esquerdo.
As garotas gravitavam, nos primeiros anos, em torno da mãe, que nunca
perdeu um ar de severidade, mesmo em seu sorriso afetivo. Mas ela tinha,
igualmente, um senso de humor hilário, repleto de ironia.
Cada filho fora enviado ao jardim de infância, depois à escola pública, e
mais tarde à faculdade. No mundo deles não se tinha notícia dos
desenvolvimentos sociais que iriam marcar os anos 1960 e 1970. A
televisão em todos os lares era ainda apenas um projeto. A liberação
feminina não havia nascido. Modas posteriores como unissex e
bissexualidade ainda não haviam surgido. A homossexualidade ainda estava
dentro do armário. A permissividade sexual e a total dissolução da família
enquanto unidade eram coisa ignorada. O jovem ainda não havia sido
tomado pelas paixões radicais de 20 anos mais tarde. Não se havia
começado a viver aquele arriscado corte em que a criança passa
rapidamente para a vida adulta, sem viver qualquer infância e juventude no
sentido tradicional dessas palavras. Os rapazinhos ainda eram rapazinhos, e
as garotinhas, apenas garotinhas. Ninguém até então manifestara qualquer
dúvida quanto a isso.
Foi o próprio Richard quem sentiu as primeiras dúvidas. Ficou clara, em
sua memória, a primeira percepção de que algo nele havia mudado. Numa
tarde no fim da década de 1940, quando Richard O. tinha quase nove anos
de idade, ele começou a perceber indicações remotas de um outro mundo,
bastante diferente daquele com o qual ele estava acostumado.
Até as férias de verão daquele ano, numa pequena fazenda pertencente ao
irmão de sua mãe, a uns 60 quilômetros de distância saindo de St. Joseph,
Missouri, Richard nunca vivera um dia fora das ruas de asfalto, entre os
prédios da cidade, nas calçadas de cimento, acompanhado pelo ruído
permanente do tráfego, em Detroit, Michigan. Ele nunca vira gansos, perus
ou frangos. Nozes pretas, nogueiras, avelãs, milho doce, abóbora, coelhos,
feno de alfafa, erva-dos-prados, patos selvagens, todos os elementos do
senso comum de uma fazenda eram novidades que lotaram sua mente e
sentidos pela primeira vez. Era, acima de tudo, a imensidão daquele lugar
que parecia deslumbrá-lo – o céu claro, o rio Missouri, a visão ampla de
enormes extensões de terra.
O ocorrido se deu três dias antes de ele voltar para Detroit. Eram por
volta de cinco da tarde. Ele havia passado a maior parte do dia no trator
com seu tio semeando grãos de soja. Restava ainda um campo a ser feito.
Era um longo terreno com um morrote, em um dos ângulos, que corria até o
centro. Em uma das laterais da largura do campo havia um pequeno lago.
Do outro lado o campo fazia fronteira com um bosque que se estendia por
aproximadamente dois quilômetros. Era a vez de Richard descansar. Ele se
deitou entre as árvores, à beira do bosque, e observou seu tio dirigir o trator
em grandes círculos sobre o morrote central, de um canto a outro do campo.
Aquelas eram as últimas horas do que havia sido um dia ensolarado. Para
além do campo, na direção do lago a oeste, os olhos de Richard podiam ver
o sol se pôr lentamente sobre as falésias do Kansas. Seus olhos seguiam
preguiçosamente a luz do poente sobre as falésias, ao cabo de uns 30
quilômetros de campos e bosques que bordejavam o Missouri. O olhar
passou então a percorrer o rio, retornando em seguida àquele trecho de terra
marrom escuro em que trabalhavam. Ele ouvia o canto das cotovias à beira
do lago. Alto no céu, equilibrando-se contra o vento do sudoeste, um
pássaro planava. Dois sons, cada qual em seu ritmo particular, preenchia
seus ouvidos. O barulho do trator, de início mecânico e dissonante, tornara-
se agradável. Ele crescia em intensidade conforme seu tio passava próximo
de onde ele estava deitado, voltando a se esvair quando o trator subia,
sumindo de vista do outro lado do morrote. O ronco então voltava a emergir
quando o trator escalava o lado oposto do morrote, ressurgindo, passando
por Richard rumo ao canto direito, donde ele virava e retornava para abrir
mais um longo sulco.
O outro som era o leve vento da tarde nos ulmeiros e bordos ao seu redor.
De início ele não os havia notado. A seguir eles emergiram em sua
consciência como uma série de notas eólias a subir e descer. Quando ele se
deitava de lado e olhava para cima não conseguia ver mais do que o suave
movimento da folhagem das árvores e o céu azul, como um pavimento
malhado, para além delas.
Sem experimentar quase nenhuma interrupção em suas próprias
sensações, ele começou a tomar consciência de seu próprio corpo, deitado
entre o musgo e as samambaias à beira do bosque. O cheiro das
madressilvas e flores primaveris das macieiras se misturavam com o agudo
frescor de algumas folhas de ulmeiros que ele esmagara em suas mãos. Ele
se deu conta de que insetos, inúmeros deles a julgar pelo barulho, estavam
sobrevoando sua cabeça, entre as folhas e os ramos. Tudo parecia vivo e
caloroso; e seu corpo e emoções agora lhe surgiam como parte integrante, e
não separada, de um todo vibrante, misterioso, com suas próprias vozes
ocultas e seus próprios segredos velados.
Ele deitou-se de costas, observando o brandir das folhas a refletirem a luz
do sol, e contemplando o voejar dos pássaros de um ramo a outro, a piar e a
picar. Ele podia ouvir debilmente, ao longe, o chamado de uma codorniz
com sua melodia de duas notas. Um esquilo corria em seu campo de visão
vez por outra, apressado, passando do tronco ao ramo de uma árvore.
Seu corpo inteiro estava relaxado. Não havia tensão. Mente e copo
gozavam de uma imperturbável calmaria e integração, mas não uma
integração imóvel e silenciosa. Tudo e todos se moviam, faziam, vinham a
ser. E, tal como ele agora se recorda, ele instintivamente ouviu o vento e as
árvores como uma voz, como vozes, como uma mensagem de uma enorme
suavidade. O ronco crescente e decrescente do trator tornara-se a música de
fundo. Inexplicavelmente, lágrimas começaram a correr de seus olhos, e ele
sentia uma dor que, no fundo, lhe causa um peculiar prazer.
Anos mais tarde, e em circunstâncias muito mais críticas, ele admitiria
para si mesmo que aqueles sons e sensações, especialmente o vento, haviam
sido o veículo de alguma novidade, uma informação nova. Parecia, olhando
em retrospecto, que lhe haviam contado algo e ele só posteriormente
entendeu o significado secreto daquela mensagem. Mas ele já não podia
lembrar das palavras usadas, nem do tom ou da identidade do mensageiro.
O trator finalmente parou ao seu lado. Seu tio desceu, e ambos
caminharam lentamente de volta à casa.
Ainda faltavam dois dias antes de Richard voltar para sua casa em
Detroit. Ele passou os últimos dias passeando pelo jardim, deitando no
bosque, sentando-se à beira do lago. Ele estava tentando resgatar aquele
momento mágico da tarde anterior. Mas tudo o que encontrou foi silêncio.
Ele estava, como descreveu depois, encarcerado novamente na casca dura
de seu corpo.
Seu tio e tia tomaram seu comportamento como um sinal de
descontentamento por ele ter de voltar para Detroit em breve. E quando ele
chorou, enquanto eles saíam da garagem rumo à estrada que os conduzia a
St. Joseph e a seu trem, eles tomaram sua tristeza como um elogio: seu
sobrinho queria ficar. As férias tinham sido um sucesso. “Eu voltarei. Eu
voltarei”, Richard lembra de ter dito – para ninguém em particular. “Por
favor, me deixem voltar”.
Voltando para casa, seu bronzeado, a nova força adquirida em seus
braços, seu aspecto saudável seu conhecimento novo e detalhado sobre a
fazenda e o campo, tudo isso deixou seus familiares deslumbrados. Seu pai
estava orgulhoso: “Agora, Richard, você está se tornando um homem de
verdade!”.
Mas foram a mãe e irmãs de Richard que lhe chamaram a atenção.
Quando elas falavam, riam ou se mexiam, ele tinha sentimentos
indescritivelmente semelhantes àqueles dos momentos à beira do bosque.
Irmãs e mãe pareciam trazer em si um mistério, uma completude, uma
maleabilidade. Seus irmãos e seu pai – rápidos em seus movimentos,
decididos nos gestos, seguros no caminhar, deliberados no que quer que
fizessem – pareciam, aos olhos de Richard, estar envoltos numa carapaça.
Eles causavam-lhe repulsa. E, ao mesmo tempo, ele se sentia envergonhado
por repelir aquilo que deveria ser o seu ideal. As vozes de seu pai e irmãos
não pareciam contar, aos seus ouvidos, sutilezas, profundos sentidos,
ressonâncias sutis.
Embora ele não pudesse analisar nada daquilo à época, ele o sentiu.
Evidentemente, ele não podia mencionar aquilo nem discutir o assunto com
ninguém. Tudo o que ele podia fazer ele fez. Como se falasse com o vento,
as árvores, as cores e os pássaros da fazenda, ele pensava (talvez sentia seja
uma melhor expressão): “Eu não quero deixá-lo. Quero ser como você”.
Àquela idade, e por um bom tempo a partir dali, ele não sabia muito bem
quem era aquele “você”.
As atividades em casa e na escola passaram a ocupar todo o seu tempo.
Nos esportes ele era tão bom quanto qualquer outro garoto. Richard sempre
tirava boas notas. Após os doze anos, ele se tornou um leitor voraz. Em casa
e na escola ele era tido por um garoto normal, mais dos estudos do que das
brincadeiras ao ar livre, não excessivamente delicado, não
excepcionalmente tímido, de modo algum um “maricas” ou fracote, alguém
que com facilidade integrava os grupos e times, e excepcionalmente afetivo
e caloroso enquanto indivíduo.
Nada chegou a apagar a sua recordação quanto àquele ocorrido da
fazenda, mas ele nunca retornou a St. Joseph. As férias seguintes foram
passadas com seus pais e irmãos no Canadá. E foi só por volta do fim de
seus dezessete anos que um outro ocorrido causou uma profunda mudança
em Richard.
Ele integrara um grupo de colegas de classe que, sob a supervisão de um
ex-patrulheiro florestal chamado Capitão Nicholas, deveriam passar três
semanas acampando no Colorado. O objetivo dessa viagem de férias era
aprender algumas das artes da sobrevivência na selva. O programa deles era
cheio. Ao fim dessa experiência, eles conheceriam algo sobre escalada,
natação, práticas de resgate, obtenção de alimento, preparação de fogueira e
de comida, armadilhas, subida em árvores, primeiros socorros e tudo o mais
que o Capitão Nicholas pudesse lhes ensinar naquelas poucas semanas. Ao
fim das férias, os oitos foram convidados a passar uma última noite na casa
de campo do Capitão Nicholas e sua família.
Como parte do treino de sobrevivência, cada garoto deveria passar uma
noite sozinho a uma certa distância do acampamento base. Quando chegou
a vez de Richard passar uma noite “lá fora, sozinho”, ele recebeu e a
instrução de passar a noite numa pequena clareira, próxima a uma colina,
que dava para um lago, a cerca de dois quilômetros do acampamento. Foi-
lhe dado um apito, o qual ele deveria utilizar caso precisasse de ajuda. De
acordo com as regras do acampamento, os outros garotos e o patrulheiro se
separavam dele ao cair da noite.
Quando os passos e gritos de seus colegas começaram a se dissipar,
Richard olhou ao redor para apanhar alguns gravetos para sua fogueira. Ele
podia ver o lago desde uns 45 metros acima de sua superfície, contornado
por montanhas cobertas de florestas. A lua-cheia havia surgido sobre o aro
de montanhas e lançava um raio de luz sobre a água e sobre as silhuetas das
árvores ao redor de Richard. O cheiro de resina compunha a atmosfera, na
qual ele se sentia como um estrangeiro bem-vindo. Ele percebia muito
poucos sons além do vento a sacudir os pinheiros, a encrespar levemente a
superfície da água. O ar ainda estava quente, e um leve frio que o
entrecortava.
Ele se levantou para tomar suas marcas, e assim não se perder ao recolher
sua lenha. Mas a quietude ao seu redor pareceu, subitamente, abrir-se. Um
véu invisível pareceu ter caído, e Richard não era mais um ente separado e
distinto daquilo tudo.
Sua primeira reação foi de medo. Ele apalpou seu peito em busca do
apito. A regra era: qualquer sensação de medo ou apreensão deve ser
assinalada ao acampamento base por um silvo longo e um curto. Não havia
qualquer estigma associado a isso. Era parte do programa de treinamento
reconhecer e respeitar tais sentimentos.
Aquela primeira reação, contudo, perdeu-se quase que imediatamente
numa sensação mais profunda. Richard jura, hoje em dia, que era
exatamente como se a noite, com sua luz, sua voz ondulante sobre os
pinheiros, seus perfumes, e sua aparente imobilidade o estivesse
admoestando: “Eu sou puro segredo. E nenhum risco. Não ofereço perigo.
Eu não vou machucá-lo. Eu revelo. Não me rejeite”.
Ele deixou o apito cair de sua boca e sentou-se no barranco, tomado por
uma idéia que seguia repercutindo calmamente nele, em palavras que
pareciam ser as suas próprias: “Eu desisti. Eu estou indo contra o meu
treinamento. Mas eu quero... Eu desisti... Contra o meu treinamento...”.
Nesse instante ele sentiu-se cercado por formas e presenças que estiveram
escondidas ou dormentes até aquele ponto. Ele tinha certeza de que elas
estavam ali, embora não pudesse vê-las. O medo fora embora. Só restava a
perplexidade. O vento sobre os pinheiros e a luz sobre a água eram parte
integrante daquelas presenças. Mas havia algo mais que ele não podia
reconhecer, mas tão somente aceitar, enfrentar ou repelir. Algo que era dito
pelo vento, e refletido pela luz. Unidos, esses entes misteriosos teciam uma
rede que o cercava, cobrindo-o de uma estranha graça, e ao mesmo tempo,
calando uma parte dele mesmo, parte que deveria ser sólida e insolúvel,
mas que agora se tornava suave, flexível, difusa, fluindo num certo
mistério. Ele lembra de haver murmurado por diversas vezes: “Eu desisti...
Eu quero... contra meu treinamento...”
Então, ainda na penumbra, ele começou a reparar em alguns detalhes: as
variações de cor nas rochas ao seu redor, os diferentes tipos de frisos na
água, as diversas sombras nas árvores, notas sucessivas no vento. E, em
flashes em sua memória, ele estava de volta ao passado: à borda do bosque
em St. Joseph, ouvindo suas irmãs e sua mãe conversando, observando seu
pai dançando com sua mãe numa festa de família no inverno passado,
segurando a mão de uma namorada do colegial, ao voltarem do cinema para
casa.
E, ao sentir o seu núcleo mais profundo fundir-se, ele ouviu a voz de seu
pai numa frase freqüentemente usada com seus filhos, “Cabeça erguida,
rapazinho!”, perdendo-se numa repugnante confusão, “Nós, homens,
devemos ser fortes. Cabeça erguida, cabeça erguida rapazinho, cabeça
erguida cabeça erguida rapaz...”
Ele sentiu seu corpo estremecer como se sacudisse uma armadura. Não
chegou a amolecer e nem caiu no chão. Antes, ele parece ter se
transformado numa continuação do solo, da luz, da voz no vento, do
prateado da lua, do silêncio. Seu corpo parecia conter a possibilidade de
todas as coisas naturais de uma só vez. Ele sabia que aquilo era incrível.
Houve um último instante, no qual algo o agarrava como se o avisasse de
algo com uma voz aguda.
Mas, após uma breve pausa, ele pareceu ter deixado que a coisa fluísse,
aceitando-a deliberadamente, e o fazia numa linguagem quase poética: “eu
não o conheço. Não sei quem você é. Eu quero estar neste mistério. Eu não
quero a dureza e a força masculinas. Quero a sua completude”. Ele de fato
pronunciou essas palavras. Elas saíam de sua boca a meia-voz, incrédulas –
pois seu cérebro continuava a lhe dizer que ele estava sozinho naquela
noite, em meio às montanhas. Mas algo mais poderoso, não em seu cérebro,
continuava a seduzi-lo. Ele respondeu: “eu quero ser uma mulher... sim...
homem mulher”. Ele não entendeu o sentido daquilo que ele estava
dizendo, mas continuou a dizê-lo. E tudo, naquela noite, lhe respondia de
volta – com toda certeza, lhe parecia – e dizia: “Você será. Você pode ser.
Você será. Secreta. Forte. Misteriosa. Aberta. Você será. Você pode ser.
Mulher. Homem. Suave. Áspera. Tudo. Você será. Você pode ser”.
Richard perdeu a noção do tempo, e não acendeu nenhuma fogueira. Ele
não saiu do lugar onde estava. A lua nasceu e se pôs. O vento soprou e
calou. Uma coruja chilreava vez ou outra, e uma ou duas vezes um pássaro
gritou, surpreendido por um predador noturno. A memória de Richard se
recorda de tudo isso indiretamente. Todas essas horas, na verdade, foram
preenchidas por outra coisa: a voz, ou a sensação de uma voz que emergia e
submergia numa melodia.
Richard, hoje, sublinha duas coisas em sua recordação desse estranho
canto. Ele não tinha nenhum ritmo particular, nenhum pulso detectável.
Parecia ser plena e completamente, estritamente melodia. Coisa ainda mais
significativa, ele não dizia nada de novo, chocante ou estranho – parecia a
Richard que todas aquelas notas já estavam gravadas nele; mas elas agora
eram evocadas como ecos daquela melodia. E, ao ressoarem, elas
delineavam uma qualidade ou condição que ele sempre tivera mas de que
nunca se dera conta, nem jamais expressara em seu gosto, caminhar, olhar,
nos recônditos das palavras em que se escondem as sombras de seus
sentidos. Nem mesmo em sua percepção do mundo que o cercava.
Mas o conhecimento não mais era um impulso rumo ao exterior para se
alcançar um objetivo, para se obter a exata localização de um ponto com as
lentes da lógica – “fixando a mira sobre ela”, como seu pai, amante da
prática do tiro, costumava colocar. Sob aquela condição “melodizada”,
todos os objetos eram recebidos num delicado labirinto de sensibilidades,
emoções, reações, intuições. E, sobretudo, um senso de sacramento, de
pacto com aquilo que fazia a água, terra e ar a um só tempo fortes e ternos,
suaves e inflexíveis, masculinos e femininos. Pois esse senso das
possibilidades dos elementos naturais, simultâneos e em unidade, era agora
uma certeza interior. E ele sentia todas as coisas de um toque ágil e
movediço, com uma força suave, firme mas sem arrogância, resoluta mas
sem violência.
Aquela melodia atravessou a noite, até que, ao amanhecer, seus colegas
de classe e o Capitão Nicholas o encontraram sentado sobre o barranco,
bem disposto, sorridente, uma expressão levemente devaneadora, mas
totalmente acordado.
Somente o Capitão Nicholas notou a mudança em Richard: a peculiar
névoa no fundo de seu olhar e o modo como ele movia sua cabeça para
saudá-los quando eles se aproximavam. Após uns primeiros gracejos,
enquanto todos desciam o barranco rumo ao acampamento para tomarem o
café da manhã, o capitão tirou Richard de lado e disse: “você está bem,
menino?”. Quando Richard voltou sua cabeça ao patrulheiro, a névoa que o
Capitão Nicholas havia captado em seus olhos previamente havia partido,
como se Richard tivesse colocado um véu sobre si, escondendo seu estado
interior. Sua resposta foi normal: “Eu me diverti bastante. Eu me saí bem?”.
Uma semana mais tarde as férias chegaram ao fim. O grupo inteiro partiu
das montanhas ao fim da tarde, desceu a encosta e caminhou até a estação
do patrulheiro, à beira da estrada, onde haviam deixado a caminhonete.
Após uma hora de estrada, eles chegaram à casa no rancho, onde a esposa
do Capitão Nicolas e sua filha, Moira, os saudaram. Eles todos estavam
cansados; e após o jantar foram todos para cama.
Richard, contudo, não dormiu muito. Desde o momento em que conheceu
Moira, ele reviveu a experiência recente ocorrida na montanha.
Ainda com a lembrança daquela noite fresca em sua memória, e
totalmente envolto naquele pacto que ele acabara de estabelecer com o ar, a
água e a terra – o êxtase daquilo tudo permaneceria presente e vívido nele
por mais muitas semanas – Richard viu, em Moira, a encarnação de uma
figura secreta que ele carregava consigo em sua memória. Ela parecia ser
uma resposta à prece pronunciada nas montanhas, e o modelo que ele sentiu
que lhe fora prometido ali, à sombra daquela encosta. Ele notou uma
gravidade em seu rosto de que ela mesma não tinha consciência, a força
leve de sua figura, tão forte e tão leve quanto a figura que ele sentira ao seu
lado na montanha, naquela noite memorável; o suave embalo do caminhar
de Moira era uma expressão de sua liberdade. E todos os detalhes da
aparência dela, da sua pessoa, eram uma revelação daquilo que ele mais
desejava: os tons roucos de sua voz, unidos à graça natural dos movimentos
de suas mãos, o senso de um olhar privilegiado contido em seus olhos – ao
menos para ele –, e o suave leito de sentimentos amortecidos por suas
risadas, tão diferente das fortes gargalhadas de seus companheiros.
Um dos rapazes notou o olhar fascinado de Richard na noite da chegada
ao rancho, e encabeçou a brincadeira. “Richard quer comer ela! Richard tá
com tesão! Richard quer dormir com ela!”. Ele levou tudo aquilo na
brincadeira, mesmo quando um deles se ofereceu seriamente para “agitá-lo”
para Moira.
Moira, por sua vez, lembra-se de estar consciente da brincadeira. De
início, ela teve as reações habituais, meio risonha, meio constrangida. E eles
provavelmente nunca teriam se aproximado se ela não tivesse tomado a
iniciativa; foi na manhã antes de sua partida. Richard desceu mais cedo, e
encontrou Moira preparando o café da manhã.
Desde o início, Moira sentiu que aquele não era simplesmente um jovem
a flertar com ela. Nem tampouco alguém que agisse timidamente. Exceto
por um alegre “oi, bom dia”, ele falou pouco de início, mas começou
automaticamente a ajudá-la nos preparativos do café da manhã. Mas ela
tinha a estranha convicção de que ambos tinham um acordo, ou elo
inconsciente. O sentimento era perturbador de início; e acabou tornando-se
um surpreendente prazer.
Enquanto eles trabalhavam ela perguntou se ele tinha irmãs.
“Três”. Sua expressão era neutra, nem de prazer nem de desdém.
Eles se ocuparam com a preparação da mesa. Ele olhou para ela uma ou
duas vezes. E disse: “A viagem foi fantástica. Você já foi até lá?”. Ela fez
que sim com a cabeça, aguardando a habitual litania de eventos, feitos e
proezas de máscula resistência e força. Mas Richard prosseguiu: “Eu
descobri o que eu quero ser, lá”.
Ela perguntou se ele queria ser um patrulheiro florestal. “Não! Não!”,
Richard respondeu. Ele havia descoberto, explicou, o tipo de pessoa que ele
queria ser. Ele subiu o olhar até ela, os olhos brilhantes. Moira preparou-se
para uma declaração solene de amor eterno. Mas Richard, os olhos ainda
brilhantes, disse simplesmente: “Honestamente, Moira, eu quero ser como
você”.
O primeiro impulso de Moira foi de explodir em risos, responder com
uma piadinha e seguir em frente. Mas algo nela dizia para ter cuidado. Ela
se virou rapidamente para o forno, perturbada, com um pouco de medo. Ele
prosseguiu, falando o tempo todo.
Ele disse que sabia que aquilo soava engraçado, mas ele estava falando
sério; era difícil de explicar, mas ele queria tentar. Ela tentou interromper,
mas a voz de Richard a cortou severamente, como que censurando-a. Ela se
virou para ele, e viu que seus olhos estavam cheios de lágrimas. Eles ainda
tinham um certo brilho, mas uma estranha expressão, uma careta de
arrependimento, tocou sua boca fugazmente. “Desculpe. Não queria ter
gritado”.
“Você não gritou. Eu é que falei mais do que a boca”. Ela seguiu o olhar
de Richard que percorria as janelas chão-ao-teto da cozinha. As montanhas
cobertas por florestas se estendiam pela paisagem afora, e pareciam mais
próximas por conta da neblina matinal; como se o menino e a garota na
cozinha pudessem tocá-las ao esticarem as mãos.
“Independentemente do que seja, Richard, foi muito bonito”, ela disse
para quebrar a tensão do silêncio. “Eu espero que você alcance aquilo que
quer. Deve ser algo muito belo”.
“Você sabe, então. Você sabe”. Ele estava candidamente excitado, ainda
olhando para fora. “Eu vou conseguir. Tenho certeza, agora”.
Moira não tinha uma idéia clara do que ele estava pensando. Desde o
início de sua adolescência ela se acostumara com garotos de diversos tipos
para os quais ela utilizava nomes de uso exclusivo dela – os “massudos”
(atléticos, tipos esportivos), os os “fofinhos” (legais, mas fracos), os
“ursinhos carinhosos” (afeminados), os “doutores” (estudiosos, sérios). Eles
todos falavam sobre si mesmos e quase sempre em termos de conquistas na
escola, nos negócios, no esporte, ou com outras garotas. Ela tinha certeza,
agora, que Richard não se adequava em nenhuma daquelas categorias. A
cautela a seu respeito que ela sentira no início daquela conversa havia
cedido, agora, a uma sensação de fragilidade que ela percebia nele. Ela
sentia que Richard conhecia – ainda que ele não possuísse o instinto para
tanto – aquele intimismo fino, tão caracteristicamente feminino, e aquele
verdadeiro elo entre todas as mulheres quando comparadas com os homens.
Richard continuou falando alegremente enquanto eles finalizavam os
preparativos do café da manhã. Ele falou sobre sentimentos e sabores, sobre
tocar as árvores, as folhas, a grama, as flores, do cheiro no ar, do vento, do
silêncio e de seu desejo de estar tão “no interior” de si mesmo quanto ela
estava, e tão independente quanto seu pai era. Era um discurso entrecortado,
pontuado por pausas, em meio a garfos, colheres e copos que passavam
alegre e delicadamente. Logo antes de verem o primeiro par de pernas
descer as escadas, ele pausou; e ela, olhando diretamente nos olhos dele,
disse: “Richard, você não deveria pedir para alguém...?”.
“Nenhum deles iria entender. Você sabe disso”, ele respondeu
imediatamente, mas sem brusquidão. “Não se preocupe. Eu recebi muitos
bons conselhos, das pessoas certas. No fim, saberei como sentir as coisas,
como ser realmente um garoto e uma garota. Tudo em um”.
Moira lembra de ter protestado com severidade, tentando falar para
Richard que seu “plano” soava como a coisa mais difícil e maluca do
mundo.
“Não!”. Uma vez mais ele mudou para um tom áspero. Ela captou um
brilho por trás de seus olhos que a fez ter uma vaga lembrança de um
sujeito da Alsácia mostrando seus dentes e rosnando para ela, muito tempo
atrás, quando ela tinha três anos de idade. Agora ela estava com medo. Ele
lhe disse de forma brusca: “São poucos os que conseguem entender”. Ele
sorria, mas ela não gostou daquele sorriso. “Essa é a regra do jogo”, ele
comentou, alguns instantes depois.
Moira pensou que ele continuaria falando. Mas naquele momento a
cozinha foi invadida por sete outros rapazes, falando alto, rindo, fazendo
piadas, querendo seu café da manhã, e descontraindo uma situação que se
havia tornado desconfortável para ela. Moira viu fecharem-se os véus sobre
os olhos de Richard. Ele tornou-se, uma vez mais, o companheiro simples,
amável e sorridente que ela vira entrar em casa no dia anterior.
De volta à casa em Detroit alguns dias depois, e durante o ano escolar,
Richard continuou vivendo nas memórias de suas férias. Sem dar-se conta,
ele estava sondando as profundezas de um dos elementos mais misteriosos
da personalidade humana: o gênero. Olhando em retrospecto, hoje,
podemos ver como as peculiaridades de sua composição pessoal foram
responsáveis, em certo grau, pelo desdobramento posterior. Elas não
explicam de modo algum, contudo, o desencadear da possessão.
Após mais um ano no colegial, Richard foi para a faculdade. Durante seu
primeiro ano ali, seus dois irmãos mais velhos se casaram. Suas três irmãs
já haviam saído de casa e estavam também casadas. Embora ele passasse
um bocado de tempo se comparando a elas, Richard nunca de fato as
conheceu. Ele nunca travou qualquer conversa mais profunda com suas
irmãs, nem nunca teve nenhuma impressão clara quanto aos pontos de vista
delas quando estes divergiam dos seus.
Ele se formou em Matemática, tomando Literatura Inglesa e Francês
como créditos extra. Ele se correspondia regularmente com Moira no
Colorado, e com o tempo, uma amizade profunda surgiu entre eles. Às
vezes ele passava as férias com ela e sua família; noutras Moira vinha para
Detroit e passava um tempo com a família de Richard. Moira estava
estudando Literatura Inglesa e Jornalismo na Universidade de Denver. Ela
tinha a intenção de trabalhar na área editorial.
Por volta do final de seu segundo ano, ele teve uma conversa com seu
pai, que caiu para trás ao ver seu filho proferindo o que lhe pareciam idéias
muito avançadas e heterodoxas sobre a sexualidade. Richard havia lido toda
a obra de D. H. Lawrence, Orlando de Virginia Woolf, Indiana de George
Sand, e um monte de outros livros de que seu pai nunca ouvira falar. Ele
poderia citar antropólogos e cientistas sociais em apoio a suas visões sobre
o matriarcado e a superioridade do poder feminino bem como seu status.
Seu pai consultou o rabino da sinagoga local. E, durante as férias de
páscoa seguintes, Richard e seu pai foram ver o rabino. Este achou Richard
um rapaz bastante sensível e suas visões bastante razoáveis. Ele apontou
para Richard e seu pai que no original hebraico da Bíblia não é dito que
Deus criou Eva, a primeira mulher, a partir de uma costela de Adão. A
palavra usada nessa parte na Bíblia significa “uma das duas pranchas
idênticas”. Ele então apontou que tal relato da Bíblia é essencialmente
andrógino. “Assim, homem e mulher são, igualmente, metades de uma
mesma identidade”, concluiu o rabino, “mas a mulher é mais parecida com
Deus porque ela tem o ventre da criação em si”. Aquilo tudo foi muito
confuso para o pai de Richard. Mas Richard encontrou naquilo um ímpeto
novo para seus sonhos de feminilidade.
Ao fim de seus primeiros anos na faculdade, Richard falou com seu pai a
respeito de um emprego no escritório de seguros. Ele não tinha interesse em
se especializar em qualquer assunto em particular. A medicina e a lei não
lhe interessavam. O que Richard realmente almejava era uma situação na
qual ele pudesse realizar seu sonho.
No começo de junho de 1961, aos vinte e um anos, Richard começou a
trabalhar diariamente na agência de seguros de seu pai. Ele se provou um
aprendiz muito bem disposto. Consciencioso, aprendia com as instruções
que recebia, trabalhava por muitas horas seguidas, abria mão
voluntariamente de fins-de-semana para trabalhar em requerimentos
difíceis, e estudava direito à noite. Seu pai estava muito orgulhoso daquela
sua decisão e de seu desempenho. Sua mãe gostava de ter um filho ainda
em casa.
Em seu tempo livre, Richard continuava a ler. Ele passava muitas horas
caminhando sozinho. Desde que saíra do colégio e não mais se forçava a
participar de atividades em grupo, ele começou a trabalhar em seu plano.
Ele tinha um sonho, constante e recorrente, dia e noite. De uma vez por
todas, ele imaginava, todos saberiam que ele era uma mulher e um homem,
tudo num só. Aquilo era algo de conhecimento público, em seu sonho, e
aceito por todos com alegria e admiração. Ele vestia tanto roupas
masculinas quanto femininas, segundo a tendência e o fluxo de sua
sexualidade. Sua pele podia ser lisa ou áspera, sua voz metálica e masculina
ou rouca e profunda, seu cabelo longo ou curto, sua mente lógica e racional
ou intuitiva e sentimental, seus seios redondos e fartos com mamilos
marcados ou o peitoral liso e sem forma, sua genitália masculina ou
feminina. Mas ele era predominantemente fêmea e feminino – com uma
marca muito peculiar.
Em seu sonho ele havia, enquanto homem, atraído uma bela mulher que
possuía seus próprios rosto e corpo femininos. Ela era ele, numa forma
feminina. Quando eles faziam amor juntos, ele não era simplesmente um
macho penetrando uma fêmea. Ele era uma fêmea conduzindo um macho
em seus mistérios. Ele não apenas tinha o senso masculino da conquista e
expansão. Ele tinha o senso feminino do descortinar os véus do mistério
pelo qual a criação e as formas de mundos vibravam em suaves murmúrios
de amor.
Por vezes, em seus sonhos, tudo aquilo se passava na sua casa de Detroit,
por vezes no lago nas montanhas do Colorado, por vezes em terras exóticas.
Mas, no mais das vezes, a cena toda era vivida numa casinha cercada de
árvores, à beira d’água. Richard começou a andar sempre com os olhos
atentos, aonde quer que fosse, em viagens para a empresa: talvez ele viesse
a encontrar uma casa semelhante àquela de seus sonhos.
Sua relação com Moira tornou-se então algo maior do que uma amizade
próxima. Moira, aos olhos de Richard, era ainda a mulher de sua
experiência no Colorado e ele sentia que ela podia ser parte da continuação
de seu sonho do perfeito amor homem-mulher. E Moira estava apaixonada
por Richard. Tudo parecia perfeito – visto do exterior. Pouco a pouco foi-se
criando um consenso de que eles estavam noivos e de que eles acabariam
por se casar. Na mente de Moira, isso ocorreria quando Richard fosse
promovido em sua empresa. Na mente de Richard isso só poderia vir a
ocorrer quando ele encontrasse sua casa dos sonhos.
Em meados de 1963, a empresa de Richard o enviou para Tanglewood,
no leste de Illinois, como substituto temporário de um funcionário do
escritório local que estava doente. Richard gozava de diversas vantagens em
Tanglewood. Seu novo chefe gostava muito dele. Tudo era muito diferente
daquele estado doentio de coisas do centro de Detroit. Seu novo cargo era,
com efeito, uma promoção. O escritório de Tanglewood acabara de iniciar
sua expansão, e Richard poderia integrar os ambiciosos programas da
empresa como membro da equipe pioneira da cidade.
Acima de tudo, entretanto, Richard encontrou o que mais se parecia com
a casa de seus sonhos. Chamava-se Casa do Lago: um só andar, instalada
em meio a três acres de terra, com painéis de vidro corrediços nos fundos,
dando para um grande lago. Os proprietários originais, no fim século
dezenove, haviam coberto os três acres com árvores, castanheiras,
sicômoros, pinhos, ulmeiros, vidoeiros, carvalhos. Em sua primeira visita
de inspeção, Richard ouviu o vento bater nas árvores à beira d’água. Ele
soube que aquela era a casa. E ela estava disponível para locação.
No outono seguinte, ele se mudou para a Casa do Lago. Com a
recomendação de seu chefe, ele conseguiu transferir-se permanentemente
para Tanglewood. Ele então escreveu, triunfante, para Moira, pedindo-a em
casamento. Ela respondeu imediatamente por telegrama.
Eles se casaram em Tanglewood, em 21 de junho de 1964, e decidiram
não partir em viagem de lua-de-mel, mas passá-la em casa, na Casa do
Lago. Por escolha própria, também, eles chegaram ali sozinhos, na tarde
daquele mesmo dia. Tudo parecia perfeito. O clima tinha um leve ar de
bálsamos; o sol aquecia com seus raios, mas um leve vento que cantava
entre as árvores deixava tudo fresco e límpido. “Nossa casa é limpa, não
como os potes e panelas”, disse Moira citando imprecisamente F. Scott
Fitzgerald, 2 “mas limpos como uma lambida do vento!”.
Em todos os anos de amizade e envolvimento, eles nunca foram além de
um ou outro beijo apaixonado ocasional. Uma vez mais, como em muitos
outros aspectos de sua relação, cada um deles havia assumido para si que o
outro preferia daquele modo. A primeira noite passada juntos enquanto
pessoas casadas foi algo que Richard vivera por diversas vezes em seus
sonhos. Mas ela se provou um total desastre na realidade, e não porque
ambos fossem virgens, mas por conta do estranho comportamento de
Richard e da reação de Moira.
Eles levaram horas para ir para a cama, passeando à beira d’água e por
entre as árvores, conversando na varanda, observando silenciosamente a
noite ao seu redor.
Finalmente, lá estavam eles lado a lado. A mente e o corpo de Moira,
naquele momento, estavam totalmente sintonizados com os movimentos de
Richard, o calor de seu corpo, seu cheiro, o sentimento de urgência. Ela
olhou para seu rosto com os olhos convidativos. Richard estava deitado de
costas, o rosto voltado para os painéis de vidro abertos. Ele parecia estar
ouvindo os sons noturnos vindos do lago – o vento nas árvores, o crispar
das águas, o pio das corujas.
Ele então virou sua cabeça para ela: “Agora, querida”, ele disse,
estranhamente calmo, “agora a Casa do Lago está cheio deles. Eu estou
cheio de mim mesmo nesta noite”.
Moira não entendeu, mas não ligou. Ele já estava beijando-a e
acariciando-a, penetrando-a. E, de olhos fechados, as mãos delas sobre ele,
ela começou a sentir pela primeira vez o urgir de um êxtase de amor dentro
de si.
Ela então ouviu a voz de Richard – agora com uma nota de estridência –
dizendo: “Abra seus olhos! Olhe para mim!”.
A visão de seu rosto congelou cada músculo do corpo de Moira. Era
como uma superfície lisa, sem uma só ruga. Não havia qualquer expressão
nela. Sua boca estava fechada. Seus olhos estavam abertos, mas, sem piscar,
estáticos; eram como abismos vítreos, sem expressão, mortos.
“Você não está me vendo, Richard”, ela disse, fragilizada.
O corpo dele ficara enormemente pesado; Moira tinha dificuldade para
respirar. Ela sentiu uma súbita contração em sua barriga e virilha. Uma
película de suor brotou por todo seu corpo por conta da dor. “Richard!”, ela
tentou gritar.
Richard não estava mais com Moira. Desde o momento em que ele havia
se virado para a janela, era com seu eu feminino, somente, que ele se
relacionava. Ao penetrar Moira, uma tempestade incontrolável se apoderou
dele. Ela aumentava, nele, seu desejo sexual e seu sentimento de repulsa,
simultaneamente e numa velocidade tal que ele não podia controlar. Desejo
e nojo se entrelaçavam de uma tal forma que quanto mais repulsa ele sentia,
mais prontamente ele cedia ao desejo. E aquilo só lhe trazia mais repulsa,
de modo que repulsa e desejo formavam um só. E ambos vinham de dentro
dele próprio. Era ele a fonte daquilo tudo. Quanto mais ele crescia naquele
primeiro nível de êxtase, mais baixo ele descia no segundo nível de repulsa.
Tudo o que Richard podia ver era a bela face de seu eu feminino sendo-
lhe apartada no próprio esforço de encontrar sua paixão. Ao mesmo tempo
ele começou a sentir as mãos dela sobre ele como garras raspando suas
costas e nádegas, primeiro levemente, depois com pressão crescente até
começar a rasgar sua pele. Quando ela abriu os olhos, o azul profundo deles
estava carregado de sentimento. Ao piscar, um brilho bege fez Richard
lembrar dos olhos de um porco, mas sua fascinação por aquilo tudo só fez
crescer.
“Você não está me vendo, Richard!”, ele ouviu seu eu feminino dizer.
“Olhe para mim! Olhe para mim!”.
Ele tateou, com seu corpo, em busca do mistério interior dela, tentando
explorar cada curva e cada ranhura de sua vagina. E, ao fazê-lo, ele sentiu
em si o movimento oscilante de algo duro e anguloso. Ele ouviu a voz:
“Deixe-me levá-lo, secreto e inteiro, misterioso e inteiro, Richard” – ele não
podia saber se aquilo era sua própria voz ou a de outra pessoa – “Sou o seu
fodedor... seu fodedor. Deixe-me!”. A voz se esvaiu novamente em meio a
um forçado gemido de gozo. Ela parecia adquirir um caráter vozeado, um
som produzido na garganta, capaz de grunhir, chiar, soprar.
Seu desejo e sua repulsa alcançavam agora um clímax. Não houve
ejaculação. Em lugar disso, ele foi inchando ainda mais, inchando de desejo
até sentir sua cintura se abrir; e numa cena de um nojo que o hipnotizou, ele
viu que um corpo estranho fazia jorrar um fluido quente, pegajoso e quente.
O amor e o nojo se tornaram um. Ele começou a se debater e a se contorcer.
Àquela altura, Moira gritava de medo pressionada pelo terrível peso de
Richard sobre ela. Ela começou a se asfixiar com o próprio grito. De
repente, ele saiu de cima dela. A voz de Moira sumiu.
Richard estava próximo à parede do quarto, um abridor de cartas em sua
mão. Ele estava de pé, de costas para ela, fazendo furos na parede em
enormes golpes, fazendo cair papel de parede e gesso pelo chão,
esmurrando em seguida a parede com o punho cerrado. Um grunhido que
emergia e se esvaia era tudo o que ela ouvia dele.
As costas de Richard, as nádegas, pernas, eram um grande emaranhado
de feridas, vergões, arranhões e lesões de onde escorria sangue em diversos
pontos.
Moira temia, agora, por sua vida. Sem hesitar, ela saiu da cama e correu
para fora. Ela apanhou seu casaco e as chaves do carro, saiu correndo pela
porta de entrada e chegou até o carro. “Moira!”, ela o ouviu gritar
entrecortado. “Volte! Moira, não vá embora. Me ajude! Volte!”. Mas àquela
altura ela já estava a meio caminho em sua fuga. Ela encontrou seus pais
dormindo no seu quarto de hotel. Nunca mais voltou para a Casa do Lago,
nem reviu Richard. Dois anos mais tarde, ela obteve o divórcio.
O sonho de Richard fora frustrado. Mas havia algo diferente em seu
lugar. Ele sabia, agora, que tinha algo diferente em si, algo vivo em seu
interior, estranho a ele, mas agora familiar, e coabitando seu corpo.
Ele passou as duas semanas do que teria sido sua lua-de-mel dentro da
Casa do Lago, comendo muito raramente, recusando quaisquer visitas, sem
nunca responder ao telefone. Pouco a pouco ele voltou à vida normal. Ele
estava de volta ao trabalho no escritório no dia marcado.
Fora das horas de trabalho no escritório, e exceto quando viajava,
Richard ficava na casa do Lago. Ele nunca recebia visitas. Mesmo quando
sua família vinha visitá-lo, eles ficavam num dos hotéis de Tanglewood. A
Casa do Lago era seu refúgio e seu castelo. Nos finais de semana ele ficava
na cama, de manhã, esperando pelo nascer do sol. Regularmente, ao
surgirem os primeiros feixes de luz cinza, os pássaros começavam a cantar
nas árvores. Primeiro um só, aqui, e outro ali, então mais um e outro, e logo
dois ou três juntos, até que a casa e o jardim fossem preenchidos pelo coro
matinal dos tordos, tentilhões, carriças, estorninhos.
De noite, e sempre que possível, ele ouvia o vento cantar entre as
árvores. Aquilo ainda lhe trazia lágrimas aos olhos. E ele sempre se
esforçava para lembrar da voz por detrás do vento, e captar sua mensagem e
a identidade do mensageiro. Seu olhar ainda estava repleto de um mistério e
poder femininos. E, ele estava certo disso, o vento falava disso, e era isso
que os pássaros cantavam.
Richard estava agora no segundo estágio de seu desenvolvimento. Sua
velha idéia de um eu andrógino se havia desfeito. Em suas viagens de
negócios para a empresa, ele passava tempo regularmente com prostitutas, e
ocasionalmente tinha relações com clientes do sexo feminino e colegas do
escritório. Ele repelia quaisquer investidas homossexuais.
Depois de algum tempo ele admitiu para si mesmo que, em todas aquelas
experiências sexuais, não havia sido um desejo sexual genuinamente
masculino que o havia impelido. Era, antes, uma curiosidade invejosa sobre
o feminino e a feminilidade. Ele observava tudo aquilo com certa distância.
Nenhuma mulher nunca o procurou para um segundo encontro. E mais de
uma prostituta comentou com ele, ao partir: “Você é esquisito”.
Ele convidou certa vez uma mulher para a Casa do Lago pois queria ter
relações com ela enquanto ouvia o vento. Tudo correu bem por algum
tempo, mas algo a assustou, e ela fugiu dele tão precipitadamente quanto
Moira o fizera.
Aquilo o frustrava. Ele não podia especular sobre a experiência e o êxtase
femininos. Ele havia notado que algumas mulheres, durante o ato sexual,
gemiam como se estivessem morrendo, virando suas cabeças como se
evitando serem golpeadas ou para apanhar um sorvo de ar. E ele se
perguntou que tipo de morte amorosa poderia estar a se operar naquele
prazer e poder femininos, e que tipo de mistério velado uma mulher possuía
que lhe permitia viver e morrer repetidas vezes - pois era assim que ele via
a coisa.
Mas, entrementes, sua própria identidade – sexual, mas não só ela –
passou por um eclipse. Por três anos ele nunca ouviu ou olhou para um
outro ser humano. Ele mal os via. Ele perdeu, portanto, todo contato com
sua própria identidade. Ele não tinha percepção clara de quem ele era, o que
ele era, aonde ele estava indo, de onde ele viera. O padrão de sua identidade
estava desordenado: uma peça fundamental havia sido retirada, sem que ele
percebesse, trazendo resultados chocantes. Todos os traços anteriores de sua
personalidade, claramente definidos e agradáveis às outras pessoas, se
haviam fundido num emaranhado nebuloso. Os tons finos e os contornos
delicados de gosto e desgosto, atração e repulsa perderam estabilidade e
definição. Tudo agora eram nuvens e redemoinhos do desconhecido e
imprevisível. As diversas engrenagens de seu mecanismo interno da mente,
vontade, memória, cérebro, coração, intestino pareciam trabalhar em
sentidos contrários.
Ele estava profundamente perdido, envolto numa torrente de impulsos.
Anteriormente, via-se nele um instinto agudo e uma percepção brilhante
trabalharem em equipe com uma voz infalível vinda do coração. O eu que
Richard, de início, decidira liberar, havia se tornado algo indeterminado;
trazia agora as cores de qualquer elemento que se introjetasse nele. Ele era
um sino rachado, soando ao golpe de qualquer badalo. Um saco vazio,
deixando-se soprar e inflar por qualquer vento sem substância. Vivendo,
agora, num estado de incerteza interior incorrigível, ele agora vivia, em
realidade, o seu antigo pesadelo: uma não pessoa para si mesmo. O que ele
havia almejado como um sonho de felicidade se havia tornado uma
realidade vazia.
E isso não era tudo. Ele percebera, numa ocasião particular, que já havia
impulsos nele que ele não mais conseguia governar, e que esses impulsos
pareciam surgir de sua ambição original de gozar tanto das qualidades
femininas quanto masculinas. Àquela ocasião ele reconheceu a grande
mudança em si mesmo. O ocorrido se deu em meados de dezembro de
1968. Ele estava em viagem pela empresa. O clima estava muito ruim: neve
fundida, vento forte, avisos de tempestade. Em sua última noite naquela
cidade, ele voltava para casa de um encontro noturno com um cliente. Era
por volta da meia noite. Não havia ninguém na rua àquela hora, por conta
do clima invernal. Richard caminhava porque o vento – seu vento –, estava
soprando com um som agudo. Era quase um aviso do perigo, mas ainda
assim sedutor.
O caminho de volta para o hotel conduziu-o por diversas fileiras de casas
isoladas umas das outras. A cerca de um quilômetro do hotel, ele ouviu um
gemido vindo de uns arbustos que ficavam numa área erma entre duas
casas. Ele parou e olhou ao seu redor. Não havia ninguém à vista. A maioria
das casas próximas estavam com as luzes apagadas, seus donos
provavelmente dormindo ou ausentes. Richard caminhou na direção dos
gemidos. Atrás dos arbustos ele deparou-se com a forma de alguém
estatelado no chão. Era uma jovem negra. Ela havia sido estuprada e
esfaqueada. Ela estava praticamente nua; suas roupas haviam sido rasgadas.
Havia neve entre suas pernas e seus ombros, com nódoas escuras de sangue.
Richard estava fascinado. Ele ficou a observar a cena por um bom tempo.
Depois ergueu sua cabeça e ouviu o vento, sentido os dedos da brisa
roçando sua face. Ele deu um passo adiante, mantendo a cabeça baixa
contra o vento, e parou para assistir àquilo de mais de perto. A garota ainda
gemia; sua cabeça sofria espasmos vez ou outra.
Richard se lembra de muito pouca coisa além disso. Ele se recorda de ter
arrancado suas próprias roupas apressadamente (ele receava que ela pudesse
morrer antes de ele concluir o que desejava fazer). Ele fala, hoje, quase aos
prantos, de um desejo irresistível de ter relações com ela naquele instante,
naquele lugar. Ele se lembra do vento assobiando uma melodia em seus
ouvidos e, então, maravilhosamente, transformar aquela música em
palavras. Ele se recorda que a garota o fitou por um instante, antes de seu
olhar se apagar, completamente morto. Ele sentiu o corpo dela estremecer.
Ao que parece, ele em seguida ergueu-se, exultando e triunfante – ele
conseguira realizar o melhor experimento de observação das mulheres,
pensou. Ele estava tomado por uma grande vertigem; o vento soprava sobre
ele. E agora, pela primeira vez, ele sentiu claramente que todo aquele
pensar, desejar, sentir e imaginar o conduziam, como diversos fios, de volta
a um ponto central, no qual esses fios repousavam em mãos de um outro,
que os controlava, tanto os fios quanto Richard. Ele sentia a segurança de
estar sendo controlado e a promessa do sucesso: “Você deverá ser como
uma mulher!”.
Mais tarde, ao refletir de modo sereno sobre o incidente, ele se deu conta
de que, mesmo durante seus espasmos mortais, aquela mulher lhe mostrara
o poder feminino; sua relação sexual com ela havia sido uma revelação. Ele
sabia que uma decisão havia sido tomada por ele. Ele não imaginava, até
então, de onde viera aquela decisão. Mas ele sabia, sim, o que deveria fazer.
No ano novo, Richard foi para Nova Iorque. Nos anos anteriores ele lera
enormemente sobre transexuais e a nova cirurgia de transexualização. Ele
pôs-se sob o cuidado e supervisão de um médico que lhe assegurou que
entre 16 e 20 meses, se tudo desse certo com os testes e preparações, ele
poderia fazer a operação, remover todo resquício de sua inadequação
masculina – era assim que Richard via sua genitália – e adquirir os órgãos
de uma mulher. No final de 1970, após passar com sucesso pelos exames
psiquiátricos, e depois de se produzirem as mudanças necessárias na
química de seu corpo por meio de seguidos tratamentos, Richard submeteu-
se à cirurgia e emergiu com sucesso de sua recuperação, num estado de
alegria quase delirante. Ele voltou para a Casa do Lago. Sua mãe e seu pai
vieram vê-lo, assim como seus irmãos e irmãs. Eles tinham aceito a sua
nova condição, assim como seu novo nome adotivo: Rita. Seu pai persuadiu
o patrão na agência de seguros quanto a que Richard poderia fazer
exatamente o mesmo trabalho, e até melhor do que antes. E assim, dois
meses mais tarde, Richard estava de volta a uma vida normal de trabalho
diário. Como Rita.
O ritmo de existência interior de Richard/Rita agora estava mudado. Ele
viu suas perspectivas desdobrarem-se em duas correntes distintas. Uma era
a feminilidade esperada como resultado da operação. Ele encontrava um
grande deleite em pequenos detalhes – num pedaço de tecido, numa
história, nas cores, nas vozes das pessoas, na arquitetura. Ele não mais
buscava os contornos largos e grossos do mundo ao redor, nem tampouco se
sentia inclinado a argumentar logicamente ou engajar-se em discussões
polêmicas. Ele se sentia mais vulnerável, mais suscetível aos elogios e
lisonjas, buscando os cumprimentos do homem. Ele tinha uma vida sexual
variada: não discriminava velhos nem jovens, feios nem belos. Para Richard
bastava que ele fosse desejado, e que todos encontrassem nele algo que os
encantasse.
A outra corrente de suas perspectivas estava marcada por algumas
dificuldades pungentes que o angustiavam continuamente. Nas relações
sexuais, por exemplo, ele sentia uma grande frieza dentro de si: não havia
um sentimento posterior ao ato, de calor, união e perpetuidade. E
freqüentemente essa falta era acompanhada por uma amargura interior que
o deixava enraivecido. “Fazer amor e sentir a vida” tornara-se uma
obsessão para ele, assim como ouvir seus parceiros se expressarem em
termos similares. Mas nada do que ele fazia jamais lhe trazia esperança.
Isso até ele conhecer Paul.
Paul, de Chicago, ex-pastor que passara ao ramo dos investimentos
bancários e ações, tornando-se um milionário durante esse processo, era um
personagem muito impressionante. Alto, bem-apessoado, cabelos grisalhos,
cortês, bem vestido, educado, ótimo na conversa, Paul tinha um sorriso
brilhante. Ele e Richard/Rita gostaram um do outro desde o primeiro
momento em que se viram, durante um coquetel. Richard acabou por contar
a Paul sobre a história de sua vida. Ele estava surpreso com a reação
prosaica de Paul. O que deslumbrou Richard/Rita, mais do que isso, foi o
quão compreensivo mostrou-se Paul quanto à sua dificuldade em ter
relações sexuais, bem como o momento após o coito.
“Eu acho que algo pode ser feito quanto a isso tudo, Rita”, ele disse.
“Mas você terá de consumir um casamento cuidadosamente arranjado”.
“Casamento? Mas casamento é impossível – ou ao menos muito difícil”,
respondeu Richard.
“Não o casamento no qual eu estou pensando. Você só precisa do
parceiro certo sob as circunstâncias certas. Você não se dá conta, mas você
esteve se preparando por um bom tempo para esse casamento. Deixe tudo
comigo”.
Richard/Rita não entendera o que Paul queria dizer, até eles participarem
de uma missa negra em 21 de junho de 1971.
O convite que ele recebera de Paul era nominalmente para uma festa à
meia-noite. Era uma noite abafada, sem nem uma mínima brisa. Chegando
pelas 10h da noite, Richard/Rita ficou surpreso com a luxuosidade da
cercania. A casa, datada do século anterior, ficava numa propriedade
particular. Cerca de 80 convidados comiam e bebiam num bufê frio servido
em volta de uma piscina ao ar livre, iluminada por grandes e grossas velas.
Outros 40 convidados estavam dançando na pista de dança. A conversa, os
risos, a música e a celebração preenchiam o ar. Paul imediatamente
introduziu Richard/Rita à mesa na qual duas jovens mulheres e seus
acompanhantes estavam sentados. A alegria imperava naquele grupo. Todos
estavam excitados e felizes.
Do lugar em que estava, Richard/Rita podia ver as duas extremidades da
piscina. Em cada uma das pontas havia uma longa mesa coberta com
alimentos, bebidas, baldes de gelo e flores. Atrás de cada uma das mesas,
uma cortina muito longa bordada em vermelho, pendurada numa coluna.
Um mordomo em traje de gala negro permanecia, imóvel, atrás de cada
cortina.
Richard/Rita sentiu-se surpreendentemente em casa. Ela riu e conversou
com aqueles que estavam à mesa, e aplaudiu quando um dos membros mais
antigos lançou um amigo n’água completamente vestido.
Às 12h45, Richard/Rita percebeu um silêncio repentino. Ninguém mais
dizia nada. O aparelho de som havia sido desligado. Os dois casais que
estavam sentados à sua mesa se haviam retirado logo antes, dizendo que
queriam dançar.
Os convidados que permaneceram no local se calaram. Eles estavam
divididos em dois grupos, um em cada extremidade da piscina, de frente um
para o outro, separados pela água. Então, Richard/Rita viu seu anfitrião
fazendo sinal para os dois mordomos. Com um movimento solene, eles
puxaram as cortinas.
Quando as cortinas caíram, Richard/Rita pôde ver uma pequena mesa-
altar em cada uma das pontas da piscina. Sobre cada um dos altares estava
pendurado um ornamento na forma de um triângulo invertido. Em seu
centro havia um crucifixo invertido, a cabeça do crucificado repousando no
ângulo inferior do triângulo. Do interior da casa ele agora ouvia o estrépito
de um órgão. E alguém estava queimando incenso lá dentro, de forma que a
fumaça subia lentamente e pairava pelo ar como serpentes azuis. Os
convidados começaram então a se despir, impassíveis, cada um deles
largando suas roupas no mesmo lugar em que estavam.
Como se passando um sinal, ambos os grupos se viraram e começaram a
andar em direção às laterais da piscina, na direção de Richard/ Rita. Ele
começou a se levantar quando a mão de Paul caiu em seu ombro, gentil mas
firmemente: “Espere, Rita”. Os convidados nus se reuniram em volta dele e
ali ficaram, completamente imóveis. Ninguém dissera, até ali, uma só
palavra. E então Paul tomou Richard/Rita pelo braço para que se
levantassem. Vinte pares de braços se esticaram vindo de todos os lados;
sem pressa, calmamente, eles despiram Richard/Rita. Não era mais possível
ver seu anfitrião, Paul, presente naquele momento.
E então um dos convidados, um jovem loiro com seus vinte e muitos
anos veio até Richard/Rita. Ele trajava uma estreita estola preta ao redor do
pescoço. Havia um anel de rubi no dedo indicador de sua mão esquerda.
“Rita”, disse ele calmamente, “Eu sou o padre Samson, ministro de nosso
Senhor Satanás. Venha! Adoremos”.
Sua voz, as mãos e dedos dos convidados, o grave daquela música tocada
ao órgão, aquela noite abafada, o sentimento de leveza em seu corpo, o
cheiro lânguido do incenso, tudo isso compunha uma atmosfera de uma
suavidade que envolvia Richard/Rita. Ele caminhou, tão solene quanto os
outros, numa procissão em volta da piscina, passando pelas altas velas, até
chegar a um dos altares.
Agora ele não tinha mais dificuldade em entender o que queriam dele.
Ele aguardava, passiva e calmamente.
Eles ergueram com facilidade Richard/Rita, e o deitaram com as costas
sobre o altar. O padre Samson surgiu trazendo um cálice. Alguém colocou
um pequeno pedaço de tecido dobrado sobre os pelos pubianos de
Richard/Rita. Samson apoiou o cálice no tecido. Richard/Rita então ouviu
três vozes cantando as palavras de abertura da antiga Missa em latim: “In
nomine Patris et Filii Spiritus Sancti”, ao que eles acrescentaram um nome
extra: “et domini nostri Satanas”. Richard/Rita compreendeu. Ele sentiu-se
estranhamente exultante.
O padre Samson havia começado a ler um livro preto segurado por uma
outra convidada nua, mulher de cerca de trinta e cinco anos. Ele gesticulava
solenemente ao prosseguir com a leitura. Os outros se haviam reunido por
perto em dois círculos concêntricos: no círculo interior, só de homens, todos
colocaram a mão esquerda em alguma parte do corpo de Richard/Rita.
Aquelas do círculo externo, só de mulheres, colocaram suas mãos nas ancas
dos homens.
Logo antes da consagração, uma mulher picou uma veia no braço de
Richard/Rita, deixando caírem algumas gotas de seu sangue e misturando-o
com o vinho no cálice. Tendo o padre Samson pronunciado as palavras da
consagração (“Esse é o meu corpo...”), os convidados se reuniram em
casais, deitaram-se no chão, cada homem repousando entre as pernas de
uma mulher. O padre Samson abriu as pernas de Richard/Rita, montou no
altar, penetrou Richard/Rita completamente, tomou o cálice, sorveu-o,
segurou-o nos lábios de Richard/Rita para que ele pudesse sorvê-lo, e o
passou ao próximo casal. Enquanto esse par bebia do cálice, padre Samson
começou a ir e vir em Richard/Rita num ritmo marcado, dizendo o refrão:
“Sahh-tã!... Sahh-tã!... Sahh-tã!”, alongando as primeiras sílabas ao sair
parcialmente de Richard/Rita e atacando a segunda sílaba com dura ênfase
ao penetrar em Richard/Rita. Cada casal que bebia do cálice começava a
copular seguindo o ritmo do padre Samson, até que todos – homens,
mulheres, e o padre Samson – estavam cantando e copulando em uníssono.
Richard/Rita era o único em silêncio.
Ele permanecia ali deitado, de olhos fechados, enquanto o padre Samson
cantava montado sobre ele. Pela primeira vez, Richard/Rita sentiu um
estranho formigamento em suas nádegas, subindo até a espinha, até a nuca,
em volta de seu crânio, descendo até as omoplatas, passando pela cintura e
abdome, contornando sua vagina e descendo pela virilha até a panturrilha e
aos dedos dos pés. Parecia realmente que um fluido eletrizante jorrava nele
por meio de Samson. Richard/Rita abriu seus olhos para olhar para Samson,
mas a luz estava muito fraca, e a fumaça azulada do incenso obstruía sua
visão.
Richard/Rita podia ouvir uma pesada respiração, mas não via nenhum
rosto, somente o contorno de uma cabeça. Ele murmurou: “padre Samson...
Senhor Satã... padre Samson... Senhor” – mas foi interrompido pelo som
áspero de algumas palavras vindas até ele em meio àquela pesada
respiração. “Ajeita-Moça!... Ajeita-Moça!... Ajeita-Moça!”. Richard/Rita
não mais ouvia o canto de “Sahh-tã!”. Todos agora pareciam unir-se no
“Ajeita-Moça!... Ajeita-Moça!... Ajeita-Moça!”. O dedo indicador do padre
Samson estava agora enfiado no reto de Richard/Rita, massageando- -o,
escavando, sondando, empurrando e puxando. Richard/Rita sentiu seu
próprio sêmen se desprender e fluir; e, dentro dele, uma aguda sensação de
que um óleo quente e pegajoso corria pela parede de sua vagina, enquanto
ele arfava e se contorcia. “Possua-me, Ajeita-Moça!... Padre Satã... possua-
me... me cheire... me foda... inteira... inteira...”. A voz de Richard/Rita
cresceu até chegar num grito muito forte. As notas do órgão trovejavam e
encham o ar. Os casais de convidados, cada um deles chegando ao orgasmo,
gritavam, grunhiam e balbuciavam meias palavras: “Sat... fod.... toma...
Sat... possui... cheira... cona... pica...”.
A cena foi se arrefecendo lentamente. Quando as ondas de dor, prazer e
júbilo passaram, Richard/Rita entendeu que ele agora tinha uma sombra –
ou, pelo menos, foi assim que ele o descreveu. Ela não estava colada ao seu
corpo, nem tampouco se projetava no chão ao seu lado por toda parte em
que ele fosse. Era como um espírito gêmeo ou alma de sua própria alma. E
ela possuía seus próprios pensamentos, memórias, imaginação, desejos,
palavras.
Richard/Rita abriu seus olhos uma vez mais. Samson havia partido. Paul,
seu anfitrião, sério, grave, ajudou-o a descer do altar e indicou, por um
gesto, para que ficasse de pé, as pernas bem apertas. Um por um, cada um
dos convidados veio à frente, de joelhos. Curvando a cabeça e
pronunciando um longo “Sahh-tã!”, eles prendiam seus lábios sobre sua
vagina e sugavam, afastando-se então da área da piscina.
Quando o último convidado foi embora, Paul passou as roupas de
Richard/Rita, ajudou-o a se vestir, conduziu-o pela casa até à saída, onde
uma limusine o aguardava, o motor já ligado. O chofer abriu a porta para
Richard/Rita. “Você agora pertence a ele, Rita. Sirva-o bem”, foi a frase de
despedida de Paul.
Deitado em sua cama, mais tarde, Richard/Rita podia sentir sua sombra
próxima a ele e dentro dele. Ele se sentia seguro. Quando o sono veio, ele
dormiu profundamente, e não sonhou.
As conseqüências daquela experiência foram terríveis. Ele agora via que
toda a sua vida sexual – fosse em fantasia ou de fato – adquirira a mesma
textura e o mesmo grau de repugnância que ele sentira na noite de seu
casamento com Moira. E isso reduzia todo o encanto, prazer, beleza, alegria
e êxtase a termos sexuais que, hoje, ele caracteriza como “animalidade”.
Aquilo o fez sentir, pensar e viver como um animal no cio, um animal que
por um estranho acidente fora provido de consciência e memória – mas que
logo perderia essas faculdades e voltaria a ser um simples animal.
Richard/Rita é o único ex-possuído que eu conheço que ainda tem uma
lembrança clara e precisa da diferença entre o seu ser – mente, memória,
vontade, emoções e imaginação – antes e depois da culminação da
possessão.
O ponto de entrada da possessão, seu bastião, era a imaginação. Ao ouvi-
lo, devemos lembrar do problema específico de Richard: gênero e
sexualidade eram a mesma coisa para ele. Uma vez completado o processo
de possessão, parecia que ele dispunha de uma sombra, invisível mas
tangível, um gêmeo dele mesmo, mas ainda assim distinto dele, e que
daquele ponto em diante o auto-controle e o direcionamento de sua vida
eram exercidos por esse duplo.
Ele aponta para o fluido de efeito eletrizante que ele recebeu do padre
Samson na missa negra. Pois parece, para Richard/Rita, que em suas horas
de consciência, todos os seus pensamentos, vontades, lembranças e
sensações (e, portanto, tudo o que ele dizia e fazia do ponto de vista dos
outros) lhe chegavam de um modo muito diferente. Sua imaginação – mais
do que sua memória, seus sentidos ou razão – recebia “impressões” ou
“mensagens”: imagens, figuras, diagramas. Havia também uma outra força
ou influência que ele não podia exatamente nomear. Mas, como ele se
referia específica, direta e exclusivamente a sua sexualidade, ele o chama de
fator-S.
Quando sua imaginação recebia uma dessas “mensagens” ou
“impressões”, todo o mecanismo interno de pensar, querer, lembrar e todos
os cinco sentidos entravam em jogo. O controle exercido sobre ele era,
portanto, absoluto. Que ele sentisse um odor, que desejasse algo, que
lembrasse de qualquer coisa, que ele pensasse ou raciocinasse, tudo isso era
tornado possível por meio de uma “impressão” prévia. E,
conseqüentemente, quaisquer palavras que ele dissesse ou ações que
realizasse eram tornadas possíveis somente por aquela fonte.
O exercício de sua sexualidade – seu desejo e consumação – estava sob
estrito controle do fator-S. O desejo vinha sem aviso prévio: não era por
qualquer estimulo exterior que ele surgia.
E, coroando isso tudo, houve ainda outros momentos, horas de uma
possessão profunda nas quais o controle exercido sobre ele adquiria uma
intensidade que ofuscava tudo o mais. Nos momentos “normais” da
possessão, ele ainda tinha consciência de si mesmo, isto é, via-se a si
mesmo sob a inexorável influência dessas “impressões”, mas era ele próprio
quem pensava, lembrava, imaginava, falava, caminhava, agia. Nos
“momentos altos” da possessão, parecia que ele não fazia mais nenhuma
dessas coisas. O interior de sua alma mesma parecia estar imerso num outro
ser.
Ele próprio se sentia reduzido a um minúsculo ponto de identidade,
aprisionado na mais solitária das solidões; sua vida inteira estava permeada
por um tirano estrangeiro, uma autoridade brutal.
E, tal como ele pode relatar hoje, somente nesse microscópico campo ao
qual seu eu se reduzira é que ele se revoltava espontaneamente. Ali ele não
tinha nenhuma memória do passado – somente a lembrança de que ali
houvera uma lembrança. Ele também não podia antecipar em nada o futuro
– somente ter a consciência de que prever o futuro era impossível. Nem a
prece nem a blasfêmia, nem o louvor e nem o ultraje eram possíveis
naquela situação. O presente se apresentava infinitamente triste, com a
certeza de que ele estava cercado por uma total escuridão, pelo nada. O
próprio eu de Richard/Rita sempre recusava (embora ele não conseguisse
fazer nada para expelir) aquela sombra constante.
Richard/Rita é enfático quanto a um ponto: a estrita separação e distinção
entre a área detectável e mensurável de seus pensamentos, emoções,
memórias, ações exteriores, sensações etc., de um lado; e, do outro, o eu
que ele nunca deixou de ser. Em meio a todas essas experiências
enigmáticas, essa área detectável e mensurável variou sob influxos de
diversas intensidades, como os traços do masculino e do feminino surgiam e
partiam dele. Psicólogos descreveriam isso – o que é justificável, nos
termos deles – como uma mudança extensiva de personalidade. Mas o eu –
ainda que reduzido a um minúsculo ponto, escravo da possessão, ou livre e
em total controle do eixo de sua imaginação – esse “eu” nunca deixou de
ser o mesmo.
Ao ser consultado sobre o sofrimento próprio à possessão, Richard/ Rita
diz que a genuína dor da possessão não vem de nenhuma deformação física
– esta, na maioria dos casos, provê o possesso de um prazer e de um frêmito
selvagens e corrompidos. Mas o sofrimento repousa, sim, naquilo que ele
chama de “espelho da existência” do possesso.
Uma pessoa não possuída, um sujeito normal, está consciente do eu que
ele é somente quando este se reflete numa outra pessoa ou em coisas que
não são ele mesmo. E, sem nunca nos darmos conta, quando nos
percebemos a nós mesmos refletidos num outro alguém ou em objetos que
não nós mesmos, instintivamente comparamos esse reflexo com uma
medida ideal, que formamos mas que em geral não dizemos – por vezes
nem mesmo a pensamos. Contudo, essa medida ideal está sempre presente
em nós quando fazemos comparações de nós mesmos. Esse é o terceiro, o
terceiro oculto, necessário para toda comparação entre duas coisas. Estar
auto-consciente é estar apto a comparar-se a si mesmo com o reflexo e com
a medida ideal.
O possesso não tem consciência disso. Pois no estado de possessão, a
consciência de si torna-se solidão absoluta. Não há um terceiro oculto, não
há ideal. Metaforicamente falando, na possessão é mantido um espelho no
qual o eu do possesso se vê a si e tão somente a si, num infinito desdobrar
de imagens do próprio eu, num sem fim de auto-reflexos. E essa
consciência é, por definição, a completa e infindável solidão.
Para aqueles próximos de Richard/Rita – seus colegas de escritório, sua
família próxima, os poucos amigos que ele fez na vizinhança de
Tanglewood, houve uma notável mudança nele a partir de junho de 1971.
As lembranças quanto a essa mudança são unânimes ao apontar para a
época da missa negra – sobre a qual eles nada sabiam, é claro.
Richard/Rita agora só vestia roupas masculinas; mas as pessoas comuns,
que não conheciam sua história, não conseguiam entender exatamente se
estavam diante de um homem ou de uma mulher quando o conheciam.
Havia também o cheiro, não desagradável, mas simplesmente penetrante.
Ele foi descrito por alguns como “almiscarado”, por outros como um
“perfume esmaecido” como o que se sente ao se abrir um velho armário, e
por outros ainda como “um cheiro de animal limpo”. Ele se alastrava pela
Casa do Lago, sua sala no escritório, seu carro, suas roupas, e mesmo suas
cartas escritas à mão. As pessoas sempre acharam aquilo digno de nota;
alguns o achavam repugnante. A intensidade variava.
Finalmente, havia seus peculiares surtos. Seus olhos, normalmente de um
azul profundo, tomavam um aspecto esverdeado. Um brilho ou
luminosidade velados enfatizavam a parte inferior de sua face, do pescoço,
braços, mãos e pernas de modo que ele parecia um pouco peludo; mas
quando se olhava de perto para ele, só se via pele. Falava muito pouco,
sempre em poucas palavras e num ritmo extremamente lento, acompanhado
de uma combinação de risos abafados, grunhidos, bufadas, viradas dos
olhos e caretas com a boca que contorciam seus lábios em volta dos dentes.
Ainda assim, era a indescritível aspereza de seu tom de voz e de seu timbre
que mais perturbavam as pessoas nesses surtos.
De início esporádicos, no verão de 1971, esses surtos aumentaram em
freqüência, de modo que no fim de outubro eles ocorriam diariamente. Toda
conversa com Richard/Rita passou a comportar então um elemento de
temor – sabendo que seu emprego consistia em 80 porcento de conversação.
Quando alguém falava com ele, as palavras desse interlocutor pareciam cair
num buraco muito fundo e ali se perder. Eles sentiam que ele não havia
ouvido ou então, se ouviu, que não havia comunicação entre os dois. Então,
quando eles estavam quase desistindo ou tentando novamente, repetindo
sua frase, ele dizia ou uma única palavra, ou uma série de palavras soltas.
Elas faziam algum sentido e, na maioria das vezes, ofereciam uma resposta,
mas pareciam vir de muito longe, das profundezas daquele buraco no qual
as palavras do seu interlocutor haviam caído. Impessoal, incapaz de
comunicar qualquer pessoalidade, frio... naquele estágio algumas pessoas
tinham a impressão, por conta daquela ausência desumana de reatividade
em Richard/Rita, de estar se comunicando com um gravador de fitas.
As pessoas logo entenderam que suas respostas e conversas sempre
faziam sentido. De fato, elas eram altamente inteligentes e relevantes. Seus
juízos nos negócios estavam melhores do que nunca. Mas, ainda, aquela
atmosfera estranhíssima comunicada no tom de sua voz os perturbava. Isso,
somado a uma repentina suspeita, por parte de seus colegas, que “onde quer
que Richard/Rita esteja, há sempre confusão”, finalmente levou-o a ser
demitido do trabalho e fez com que ele perdesse seus amigos, um por um.
A tal “confusão” era um mistério. De início, ela afetava sobretudo sua
vida na agência de seguros. Mas pouco a pouco ela começou a afetar
qualquer um que entrasse em contato com ele, ainda que fugazmente – os
entregadores do armazém, farmacêuticos e lavandeiros, sua faxineira, seu
jardineiro... Uma vez ele se fez perceber até pelo policial que lhe deu uma
multa de trânsito.
Isso acabou por afetar cada membro de sua família que o visitava. A
“confusão” nos faz lembrar claramente do que aconteceu na Torre de Babel,
no relato bíblico. Homens e mulheres que se conheciam intimamente há
anos e já haviam trabalhado juntos por grandes períodos de tempo,
começaram a se desentender e a brigar. Para alguns espectadores dessa
“confusão”, era como se o que uma pessoa dissesse fosse compreendido em
viés oposto por outra pessoa, isto é, com o sentido exatamente contrário
daquele pretendido pelo falante. A “confusão” afetou somente aqueles que
se falavam e lidavam entre si. Mas logo que um observador intervinha entre
aqueles que brigavam – entrando na sua “atmosfera”, por assim dizer – ele
se fazia também afetar por aquela “confusão”; e aí se fazia mais uma fonte
de conflitos e contendas em Babel.
Incidentes desse tipo ocorriam sempre e somente quando Richard/ Rita
estava fisicamente presente. Ele parecia se divertir muito com isso, mas ele
propriamente nunca foi afetado pela tal “confusão”.
A “confusão” também afetava aqueles que escreviam ou datilografavam
em sua presença: eles escreviam ou batiam o oposto daquilo que
pretendiam, ou acabavam por escrever um completo nonsense. E todos os
incidentes desse tipo de “confusão” foram apontando cumulativamente na
direção de Richard/Rita, de modo que seria impossível explicá- -los de
forma desconectada dele.
Quando não havia nenhum tipo de surto ou de “confusão”, a doçura
habitual de Richard/Rita e sua afabilidade vinham à tona. A mudança,
nesses momentos, era chocante.
Foi algum tempo antes disso que Richard/Rita percebeu porque havia
perdido amigos, porque via as pessoas se afastarem dele, e porque ele se
tornou impopular no escritório.
Nos fins de outubro ele foi demitido. Seu irmão, Bert, veio visitá-lo e foi
falar com o chefe imediato de seu irmão. Daquilo que Bert ouviu dele e de
outros em Tanglewood, somado às suas próprias impressões, ele concluiu
que seu irmão precisava de cuidados psiquiátricos. Mas o comportamento
de Richard/Rita tornou-se um jogo de esconde-esconde. Sempre que ele
visitava o psiquiatra ele estava absolutamente normal; e não se podia
encontrar nada de errado nele, independentemente do método de
diagnóstico que ele utilizasse. De fato, o psiquiatra concluiu que a demissão
de Richard/Rita do escritório se baseava na repulsa do chefe ao fato de
Richard/Rita ser transexual; e ele aconselhou Richard/Rita a processá-lo por
danos morais, pedindo reintegração em seu emprego.
Mas as coisas tomaram um outro rumo quando Bert e Jasper vieram ficar
com ele por uma longa semana. Richard/Rita teve diversos surtos. E a
“confusão” era, uma vez mais, evidente. Agora, em seus momentos de
tranquilidade, Richard/Rita falava com eles francamente, de um modo que
inspirava pena. Ele começara a compreender, de um modo turvo e
fragmentário, algo das drásticas mudanças que ocorriam nele.
Seus irmãos ficaram com ele em casa, determinados a encontrar o âmago
do problema. Richard, voluntariamente, fez um checkup físico completo.
Os resultados foram negativos. Um posterior exame psiquiátrico foi
igualmente infrutífero.
Bert a Jasper, juntos com Richard/Rita, decidiram pedir aconselhamento
ao pastor luterano local. Ele diagnosticou Richard/Rita como uma alma que
havia negligenciado Deus e a oração. Como os conselhos do pastor não
foram úteis, eles procuraram o rabino local. Esse homem, pessoa muito
santa, consentiu em ler algumas preces na presença de Richard/Rita, além
de alguns textos do Talmud, explicando-os aos três irmãos.
Nos dias seguintes, não houve mudança no quadro geral de Richard/ Rita.
Eles então decidiram fazer uma visita ao sacerdote católico local. Os três
foram então encontrar o Pe. Byrnes, que já conhecia Richard/ Rita de nome
e de vista. Ele o ouviu, mas logo jogou um balde de água fria quanto a
qualquer expectativa de lhe oferecer ajuda concreta. Não era por eles não
serem católicos, explicou ele num tom de desculpas que lhes pareceu
sincero. Mas ele não sabia o que fazer. Claro, ele iria incluir Richard/Rita
em suas preces. Mas, não deviam esquecer, os outros fizeram o mesmo. E
que bem isso fez? Orar não parecia ser o suficiente, concluiu o Pe. Byrnes.
Bert chamou o padre em privado e fez-lhe um apelo: seu irmão estava
doente de uma maneira peculiar. Os médicos e psiquiatras haviam desistido
de tentar ajudá-lo. Será que o Pe. Byrnes não conhecia algum padre católico
que pudesse ajudar?
“Me ligue amanhã, depois do meio-dia”, respondeu o Pe. Byrnes. Ele
acabara de se lembrar do Pe. Gerald e de seu enorme bom senso.

O Ajeita-Moça
Na manhã do exorcismo, Richard/Rita se levantou cedo, tomou banho,
lavou seu cabelo, borrifou desodorante sobre seu corpo cuidadosamente, e
aplicou seu perfume preferido no pescoço, seios, pulsos e atrás das orelhas.
Colocou uma calça azul escuro, suéter vermelho com gola e sandálias. Seus
cabelos negros e longos estavam escovados, e penteados de um modo
simples. Ele não usava nem maquiagem nem jóias.
Ao vestir-se, ele saiu e deu de comer aos patos no lago, caminhou um
pouco e retornou a tempo para saudar o assistente de Gerald à porta.
Em parte por conta de seus dois irmãos serem os assistentes, aquilo era
quase como um grupo de amigos íntimos se reunindo para uma reunião ou
uma festa exclusiva. Richard/Rita colaborou, sorridente, fazendo café,
arrumando a sala para o rito de exorcismo, e de modo geral demonstrava
estar envergonhado “pelo inconveniente causado”, como ele dizia repetidas
vezes. Após alguma discussão Gerald escolheu o quarto de Richard/Rita
para o exorcismo, sobretudo porque parecia ser o lugar que ele mais queria
evitar.
Quando tudo estava pronto, Richard/Rita sentou-se com os assistentes e
esperou, por vezes falando, por vezes rezando com eles, até que se ouviu o
carro de Gerald entrando na garagem. Bert saiu, se apresentou para Gerald,
e voltou para dizer a Richard/Rita que se sentasse ou deitasse no sofá. Mas
Richard/Rita insistiu em esperar por Gerald.
Gerald entrou no quarto com o Pe. John. Ambos vestiram seus
paramentos cerimoniais. Todos, incluindo Richard/Rita, se ajoelharam
quando eles recitaram a oração ao Espírito Santo. Então, com Richard/Rita
ainda ajoelhado, os assistentes se dispuseram em volta de Gerald. Ele abriu
o exorcismo com uma oração do ritual oficial.
Richard/Rita interrompeu amável e candidamente: “Pe. Gerald, você não
acha que podemos apressar um pouco esse negócio? O que eu realmente
preciso agora é uma benção e das orações e bons votos de todo mundo”.
Ele se ergueu e atirou um radiante e constrangido sorriso de gratidão a
cada um dos presentes. O coração de Bert estava partido ao ver seu irmão
caçula. A maioria deles se sentiu constrangido – foi Jasper, irmão mais
velho de Richard/Rita, quem fez essa observação mais tarde – como se eles
tivessem vindo para prender alguém por assassinato e encontrassem, em
lugar disso, o suposto assassino e sua vítima fazendo amor. Richard/Rita
parecia muito feminino naquela manhã.
Gerald também ficou surpreso. Sua mente trabalhava rápido. Teria ele
cometido um erro? Ou eles se enganaram, ou então eles estavam sendo
vítimas de uma fraude ainda maior que o previsto. Mas não havia tempo
para reflexão ou pausas. Ele tinha de tomar uma decisão. O capitão da
polícia e o professor estavam olhando para ele como se dissessem: “Vamos
sair daqui, padre. Não vamos causar mais incômodo”. Mas Gerald sabia que
tinha de tirar a prova.
“Muito bem, Rita”, disse ele, surpreso com sua própria atuação, mas
sorrindo despreocupadamente. “Façamos isso, apenas. Aqui, John, me dê o
frasco de água benta. Jasper! Pegue meu livro de preces e coloque-o na
minha pasta. Bert, por favor faça mais café. Alguém vá telefonar ao reitor e
diga-lhe que eu deverei estar de volta para o almoço. Rita, passe-me o
crucifixo que está na mesa ao seu lado, e vamos prosseguir com a benção”.
Mais tarde, discutindo sobre os acontecimentos daquela manhã, todos
concordaram que, a partir do momento em que Gerald concluiu seu pedido
a Richard/Rita, alguma estranha mudança ocorreu na sala. Mudança
qualitativa, uma brutal e súbita mudança no perfume do ar e na temperatura
do quarto. Alguns deles, sem compreender as razões que guiavam Gerald,
começaram automaticamente a fazer o que ele havia pedido antes que ele
fizesse seu pedido a Richard/Rita. Mas a misteriosa mudança no quarto
ocorrida enquanto Gerald falava com Richard/Rita fez com que todos
parassem o que estavam fazendo bruscamente. “Era como se uma luz
vermelha tivesse começado a piscar na minha frente”, disse um deles.
“Como um alarme de emergência”, comentou outro. “Uma estranha
sensação em minha nuca”, foi a descrição do professor.
“Nós compreendemos, subitamente, que uma outra presença se fez
palpável no meio nós. E compreendemos que ela era má, muito má”,
declarou Bert mais tarde.
Todos eles se viraram e buscaram Gerald e Richard/Rita com o olhar.
Gerald estava quase na ponta dos pés, tamanha a força, a intenção contida
em seu pedido para Richard/Rita e o impacto causado por ele. Richard/Rita
sentou-se no sofá, com uma expressão perplexa. Sua testa estava cheia de
rugas. Suas sobrancelhas quase se uniam, numa expressão ao mesmo tempo
confusa e desafiadora. Sua boca estava bem fechada, o lábio inferior
agarrado ao superior. Suas bochechas estavam completamente descoloradas.
Eles não podiam ver seus olhos. Richard/Rita olhava para seu colo, sobre o
qual suas duas mãos se abriam e fechavam, continuamente, trêmula e
lentamente. Gerald ergueu sua própria mão pedindo silêncio e atenção.
“Rita”, disse ele suavemente, “passe-me o crucifixo”. Lágrimas
começaram a reluzir nos cílios de Richard/Rita e então correram
discretamente sobre sua face.
“Eu quero ser deixada em paz. Por favor” – a voz era feminina e
levemente rouca e agonizante. Mais uma onda de lágrimas, agora aos
soluços. “Tudo isso é demais – eu sei que nenhum de vocês sabe o que
aconteceu comigo. A Moira sabe – perguntem para ela. Mas isso tudo é
absurdo – eu só preciso ser deixada em paz”. Mais soluços.
Gerald olhou para Bert. Bert encolheu os ombros como se dizendo: Você
quem sabe! Gerald abriu seu ritual: “Em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, nós estamos aqui hoje para orar e pedir que, em nome de
Jesus Cristo, Senhor do Céu e da Terra, todo espírito maligno que tenha
entrado e possuído essa criatura de Deus Todo-Poderoso, Rita O.,
obedeça...”.
O resto foi abafado pelos soluços de Richard/Rita. Ele se virou
delicadamente como se estivesse ferido, e deitou-se no sofá, de costas para
Gerald. Eles todos escutavam Richard/Rita, sem mais ouvir as palavras que
Gerald estava lendo. Eles só podiam ouvir aquela voz lamuriosa e
soluçante, gemendo com uma incontrolável dor, seu corpo inteiro tremendo
a cada soluço, os sons todos atravessando sua garganta e boca como uma
terrível reprimenda a toda aquela situação.
“... e que quaisquer efeitos maus que o espirito maligno tenha causado
em Rita”, Gerald prosseguiu, “possam ser purificados pela Graça do Senhor
Jesus”, Gerald concluiu a primeira prece.
Ao mencionar o nome de Jesus dessa vez, Richard/Rita enrijeceu e
deitou-se de costas. Seu rosto não expressava tristeza como todos
esperavam, mas um profundo ódio, medo e repulsa.
“Pegue o seu Jesus e seu crucifixo imundo e essa sua água benta fétida e
seu padrezinho caduco e dê o fora da minha casa”. Seus braços estavam
bem esticados nesse momento, as palmas apontadas para Gerald, repelindo
seu olhar. “Tirem-no daqui. Eu quero ficar sozinha”.
Gerald viu Bert começar a avançar. “Bert!”, ele disse bruscamente, “fique
onde você está – só um momento”. Bert parou.
“Bert, me salve desse padre católico piolhento e essa sua bruxaria. Bert!
Bert! Me ajude!”. Bert começou a avançar novamente. Dessa vez, John, o
padre mais jovem, pegou em seu braço: “Dê mais um tempo para Gerald,
Bert”, ele sussurrou, “só mais um instante. Temos que ter certeza”.
“Bert!”, continuou Richard/Rita aos prantos, “Eu estava superfeliz até ele
começar com isso. É tudo um engano. Eu sou uma mulher, Bert. Sou uma
mulher. Como a sua Márcia [mulher de Bert]. Como a Moira. Como a
mamãe. Como a Julie [secretária de Bert]. Vê só!” – e Richard/ Rita baixou
o zíper de sua calça e abriu o botão ao topo: “Vê só! Eu tenho pelos
pubianos e uma cona exatamente como Márcia. Olha, Bert! Vem sentir!
Está quentinha e molhada. Eu posso agarrar você, Bert, posso agarrar você
melhor do que a Julie. Lembra que a gente se masturbava juntos na cama
quando éramos crianças? Agora você pode entrar em mim. Me ajude, Bert.
Eu serei sua se você me ajudar!”.
Bert caiu para trás, pálido, Gerald avançou, tomou o crucifixo, ergueu-o
diante de Richard/Rita.
“Rita, tudo ficará bem. Nós a deixaremos em paz. Você só precisa fazer o
que você fez alguns dias atrás na sala da reitoria”. Quando Richard/ Rita
viera falar com o padre acompanhado de Bert a Jasper, ele pousou sua mão
direita num crucifixo que Gerald sempre guardava em sua mesa e disse:
“Por meio desta declaração, eu juro, Padre Gerald: eu quero estar em
comunhão plena e direita com Deus”. O tempo todo, essa habilidade de
Richard/Rita em tocar o crucifixo havia deixado Gerald otimista. Isso
significava que a possessão de Richard/Rita estava ainda em estágio
incompleto. Exceto em suas etapas mais avançadas, a possessão varia em
seus efeitos e características.
Mas agora Richard/Rita estava deitado no sofá, as pernas abertas, as
mãos cobrindo sua virilha. Eles aguardaram um instante. Seu peito subia e
descia como se ele dormisse. Do lado de fora, o clima agora era de trevas.
O vento se erguia, chacoalhando as árvores em volta da casa com um
gemido irregular.
Richard/Rita enfim abriu a boca e, depois do que pareceu a todos serem
alguns minutos, ele falou, mas com uma outra voz; Era um som gutural,
áspero, lento, indistinguível quanto ao sexo – poderia ser homem ou
mulher. Era como a voz de alguém muito velho – um toque de falsete, um
resquício de baixo profundo, mas cansado e pesado.
“Eu sei que você é, supostamente, virgem, Pe. Gerald. O que você pode
saber sobre as mulheres – ou mesmo sobre os homens?”.
Gerald decidiu começar a investida. “Diga-nos quem você é”.
Richard/Rita silenciou por um momento; e então falou como se fizesse
uma piada. “Quem eu sou? Por quê? Sou a Rita, é claro. Quem mais poderia
ser? Estúpido!”.
“Se você é a Rita que nós conhecemos, sente-se e pegue este crucifixo”.
“A Rita não quer. Nah!”.
“Por que então você está contrariada, Rita? Por que não se senta e
conversa como um ser humano comum?”.
“Porque... porque... porque eu não sou comum. Ouça!”. A cabeça de
Richard/Rita se virou na direção das janelas fechadas. Seus olhos se
agitaram como se ela assistisse a uma cena que se desenrolava diante dela.
Sua cabeça se virou novamente. “Eu não sou comum”.
Gerald tinha seu livro ritual aberto novamente, e estava em vias de
começar a próxima parte do exorcismo quando um novo pensamento lhe
surgiu: se ele estava simplesmente falando com Richard/Rita, não seria
então ele, Gerald, quem estava atrapalhando as coisas? E será que
Richard/Rita, ou qualquer que fosse o espírito maligno possuindo-o naquele
momento, poderia estar realizando com sucesso um enorme faz de conta –
fingindo, de fato cooperar? Não! Ele tinha de destruir aquela fachada, se
fachada houvesse. Gerald descobria, às apalpadelas, a verdade das
observações do Pe. Conor sem ter tido o benefício de sua instrução. A
experiência crua era seu professor naquele dia.
Ele fechou o livro lentamente, agarrou o crucifixo entre suas mãos, e
começou a questionar Richard/Rita. Agora o intercâmbio entre os dois se
estabeleceu numa atmosfera mais calma, que durou o dia inteiro. A uma
dada altura Rita se calou. Depois de diversas tentativas infrutíferas de tirar
respostas dele, Gerald saiu, lavou-se, comeu algo, e retornou. O dia já
chegava ao fim. O médico monitorara a respiração e pulso de Richard/Rita.
Tudo estava normal. Quando ele retornou, todos começaram a sentir o frio
cortante no cômodo. James ligou o radiador, e chegou até a descer no porão
para ligar a caldeira elétrica. O frio persistiu.
Gerald voltou a questionar Richard/Rita. Dessa vez Richard/Rita
começou a responder. Gerald provocava, inquiria, objetava, interrompia,
preparava armadilhas, tentava de todo modo quebrar a resistência que ele
sentia em Richard/Rita. Mas para tudo o que ele fazia, Richard/Rita se
virava com longas respostas desconexas, descrições de atos sexuais,
análises do masculino e feminino, pequenos insultos, insinuações
ocasionais. Assim prosseguiram, noite adentro, até o início da manhã.
Nós não temos como saber, hoje, mas esse procedimento poderia ter se
estendido indefinidamente, até que o bom senso e os limites da resistência
humana indicaram a todos que aquele exorcismo fora um fracasso – ou,
então, que Richard/Rita nunca estivera possuído, mas simplesmente se
encontrava num estado muito anormal, no sentido mais ordinário do termo.
Após muitas horas, contudo, Gerald começou a sentir que, por vezes, ele
quase tocava algo – mas que logo em seguida lhe escapava. Por vezes,
também, os outros no quarto tinham uma forte sensação de uma presença
estranha, a pressioná-los. Ela logo amenizava e desaparecia. Todos estavam
começando a ficar inquietos. Estavam todos cansados.
O fim de toda a espera chegou inesperadamente com uma afirmação
despretensiosa de Gerald, em resposta a uma queixa de Richard/Rita.
“Mas toda mulher comum quer ser abraçada e acariciada por seu
homem”, Gerald dizia, “e, em seguida, guiá-lo por onde ele não poderia
chegar de outro modo. Mãos dadas. Caminhando na verdade. E no amor.
Sem disputar poder ou superioridade. Eles caminham sob o sorriso de Deus.
Eles reproduzem sua beleza”. Gerald estava tocando o coração mesmo
daquilo que era a obsessão de Richard/Rita desde sua operação.
Richard/Rita enrijeceu. “Por que diabos você não me deixa em paz? Você
e o seu Deus! Quem precisa do seu sorriso ou da sua beleza?”.
Gerald atentou para uma nova nota da voz de Richard/Rita. Ele não podia
identificá-la, mas sabia que era uma nova nota. Então teve uma idéia.
“Por quê? Porque eu sei que você não é Rita. Eu sei que você não é
Richard. Eu sei que Rita – Richard – ama a Deus, seu sorriso e sua beleza.
Mas você: – quem ou o que quer que você seja – por que você não sai desse
seu jogo de mentiras e farsas e nos encara de frente?”.
Foi aí que o inferno inteiro – como disse o capitão da polícia mais tarde –
se soltou. Richard/Rita se curvou, a cabeça tocando os pés, seu corpo
pulsando em espasmos. Os assistentes o seguraram e tentaram endireitá-lo.
Era impossível movê-lo; ele estava pesado como uma barra de ferro-gusa.
O sofá tremia. O papel de parede sobre a cama se descascou desde os
cantos, como se dedos invisíveis o arrancassem violentamente. As janelas
batiam provocando um estrondo. Richard/Rita começou a soltar gases e a
gritar ao mesmo tempo. Todos ali sentiam uma atmosfera ameaçadora. Eles
começaram a transpirar. Ninguém os havia preparado para um perigo tão
grande.
“Fiquem todos onde estão! Fiquem calmos!”, avisava Gerald. Ele agora
sabia que havia tocado o ponto principal do problema. Mas a questão ainda
não estava completamente clara. Ele se aproximou do sofá curvou-se sobre
Richard/Rita, que estava imóvel; mas seu corpo continuava dobrado como
antes, a cabeça apoiada sobre os pés.
“Rita”, ele disse numa voz alta e clara. “Eu lhe digo: nós continuaremos
lutando por você. Então, você, você continue lutando e resistindo”.
Richard/Rita se debateu por alguns segundos, e em seguida enterrou os
dentes no peito de um dos pés.
Gerald ergueu-se. Sua voz passou a um tom cortante, inquisitório,
imperioso: “Você, espírito maligno, vai obedecer aos meus comandos”.
Uma vez mais, a voz áspera: “Você não sabe no que está se metendo,
padre. Você não pode pagar o preço. Não é apenas a sua virgindade que
você vai perder. Nem só a sua vida. Você vai perder tudo – ”.
“Como Jesus, Nosso Senhor, suportou sofrimentos, assim eu também
quero suportar o preço de expeli-lo e enviá-lo de volta para o lugar de onde
você veio”.
Esse foi o primeiro erro de Gerald. Sem se dar conta, e num gesto que
pode parecer heróico, ele caiu numa velha cilada. Eles estavam agora num
plano pessoal: ele contra o espírito maligno. Nenhum exorcista pode
trabalhar em nível individual, por sua própria conta, oferecendo sua força
ou sua vontade, sozinha contra um espírito possessor. Ele nunca deve tentar
ocupar o lugar de Jesus, mas apenas falar e agir como um seu representante.
O custo desse erro foi alto para Gerald. Ele nunca sonhara que uma dor
física pudesse ser tão intensa. Foi só três semanas mais tarde que ele pôde
se levantar e andar em seu quarto, ainda mancando e com grande dor; esse
ataque violento se mostraria, mais tarde, letal para Gerald. Mas não foram
esses seus piores sofrimentos. Naqueles poucos segundos de uma
tempestade na qual ele foi arremessado pela sala e atirado contra a parede,
foi a sensação de violação o que mais o abalou.
Foi só aí que ele se deu conta de que, até aquele momento, e de fato
durante toda sua vida, ele gozara de uma certa imunidade. O centro de seu
próprio eu, de sua própria pessoa, nunca fora tocado. A tristeza nunca se
apoderara dele. O arrependimento nunca lhe fizera sofrer. Nem qualquer
pontada de fraqueza ou culpa jamais lhe causara dor.
A força de seu próprio eu vinha daquela imunidade. Seu celibato
vocacional e sua virgindade física eram meras expressões exteriores da
situação extremamente privilegiada, livre de preocupações, na qual ele
sempre vivera. Num certo sentido, o pecado nunca o tocara naquela região,
não porque ele assim o decidira, mas porque a escolha nunca se lhe havia
apresentado.
Mas, num golpe de narcisismo, aquela parte imune de seu ser tornou-se a
fonte de seu orgulho, assim como era fonte de sua independência. E os seus
amigos, que se maravilhavam com sua constância como padre e lhe
atribuíam uma genuína espécie de santidade, nunca poderiam imaginar –
nem tampouco o próprio Gerald poderia – que a maior força de Gerald se
faria infectar por uma grande fraqueza: a auto-confiança orgulhosa. A dor
física que afligia seu corpo durante e após o ataque era um símbolo, uma
expressão tangível de uma incontornável fraqueza e fragilidade à qual ele
estava submetido pelo simples fato de ser humano.
Ele veio a se recuperar suficientemente do ataque, mas nunca mais teve o
mesmo senso de imunidade de antigamente. Em lugar disso, nasceu nele um
intenso sentimento de desamparo. E, pela primeira vez em sua vida, ele
reconheceu sua total dependência de Deus. E sua visão do mundo se
permeou daquele pungente senso que os cristãos tradicionalmente
descreveram com a palavra humildade, tão aberta a compreensões
equivocadas. Era uma grata descoberta de que o amor, não simplesmente
um grande amor, mas o amor em si, o escolhera e amara por nenhuma outra
razão senão o amor. “Somente o amor poderia amar-me”, é o ditado de uma
antiga santa inglesa, Juliana de Norwich.
Mas, enquanto isso, Gerald teve de tomar uma decisão: proceder com o
exorcismo ou declará-lo oficialmente encerrado. Richard/Rita estava agora
num estado anormal até mesmo para ele. Era preciso que ele ficasse em
observação contínua. Geralmente ele ficava deitado no sofá, acordado ou
dormindo, ou então de pé diante da janela, aparentemente a observar o que
se passava em torno. Ele era dócil a quaisquer sugestões de seus irmãos,
mas ninguém mais podia influenciá-los. Ele comia muito pouco, tinha de
ser lavado como um bebê, e caia periodicamente num estado estranho em
que se comunicava somente por balbucios. Ele não podia ouvir nenhuma
menção a Gerald, religião ou exorcismo. Ele tampouco permitia quaisquer
artigos religiosos próximos dele ou de sua casa. Ele sempre parecia saber
quando objetos desse tipo eram trazidos. Sua faxineira, por exemplo,
costumava usar uma medalha em volta de seu pescoço; ela teve de deixá-lo
em casa. Se seus irmãos falassem com Gerald, Richard/Rita era capaz de
perceber ao vê-los. Ele faria uma cena, nunca violenta, mas desoladora,
cheia de apelos para que eles o salvassem de futuros incômodos.
Para além de seus sofrimentos físicos, Gerald passava por uma estranha
mudança em suas sensações. Ele não podia ver ou tocar, por muito tempo,
qualquer objeto material sem que essa mudança se fizesse sentir. Como ele
me disse mais tarde: “Parece que eu estou olhando para ele e ao redor dele –
não para além dele. Pois, de um modo muito peculiar, esse ‘para além’ não
está mais ali. Em lugar disso, com um olhar que não é aquele dos meus
olhos, fui levado à percepção de uma condição, de uma dimensão ou um
estado que não sei descrever com palavras. Isso – essa condição – parece
ser o mundo real. O objeto material – cadeira, mesa, parede, comida,
qualquer coisa – parecia extremamente irreal, parecia ser nada, na verdade.
E mesmo o meu próprio corpo era para mim uma casca permeada e
sustentada por essa outra condição”.
O efeito disso tudo era muito perturbador, especialmente quando ele se
encontrava com outras pessoas. O que eles viam era um sujeito magro,
pálido, curvo, apoiado numa bengala, que parecia estar fitando-os com o
olhar impessoal de alguém que lesse um mapa ou olhasse para as estrelas.
Ele ainda era afável, e mesmo brincalhão, sempre bem-humorado. Nas
conversas, parecia muito interessado pelas pessoas, não tanto nelas, mas
naquilo que elas significavam, ou onde elas se encontravam
espiritualmente. Essa era uma nova atitude da parte de Gerald. O que
Gerald agora achava era que todo homem e mulher que encontrava estava
submetido àquele mesmo “condicionamento” quanto ao olhar das coisas
materiais. Mas, diferentemente do que se passava com os objetos, uma vez
que que aquela condição invisível e subjacente da pessoa ficasse clara para
ele, sentia então um novo elemento.
Ele achava difícil expressar numa palavra ou frase esse novo elemento.
Quando tentava descrevê-lo, acabava falando – sempre com constantes
ressalvas quanto a que ele só estava usando imagens e metáforas – sobre
“luz”, “escuridão”, “presença”, “ausência”, “uma teia de sins”. Ele pode
descrever uma pessoa como: “Ele esteve dizendo ‘Não, não’”, sua vida
inteira”. Ou: “Ela nunca disse verdadeiramente, ‘Sim’ para a ‘presença’”.
Ou então: “Eles estão num contexto de muita escuridão”. Falando em
termos práticos, dizia ele, esse novo modo de olhar as pessoas o colocava
algo distante das pessoas, não importa o quanto ele as conhecesse ou
gostasse delas. Todo conhecimento quanto a elas em sua mente, e todo
vínculo a essas pessoas em sua vontade só era possível, agora, por meio
dessa nova dimensão.
O reitor de sua paróquia chegou ao ponto de consultar um dos psiquiatras
que Gerald havia originalmente consultado para o caso de Richard/Rita.
Quando o padre deixou o hospital, ainda convalescente, e voltou ao
presbitério, o dr. Hammond veio vê-lo numa tarde, acompanhado de um
colega. Ele havia investigado todas as bases de Gerald, disse ele, desde sua
infância ao momento presente. Ele e seus colegas estavam convencidos de
que Gerald sofrera um trauma severo, e que – coisa ainda mais séria –, por
conta de que Gerald não podia realmente entender a sexualidade e suas
complexidades, ele havia suscitado, involuntariamente, um estado
problemático em Richard/Rita. Na opinião deles, e pelo bem da integridade
profissional deles assim como para o próprio bem de Gerald, eles pediriam
que Gerald se submetesse voluntariamente ao controle e observação deles,
na clínica. Richard/Rita, pensavam eles, responderia à terapia normal.
Por diferentes razões, o pároco também ratificava firmemente esse ponto
de vista. Rumores quanto a estranhos resultados de um exorcismo haviam
subido até o bispo da diocese. E ele enviou um recado ao pároco, dizendo
que esperava que ele arranjasse tudo para que não houvesse mais
problemas, e que não eclodissem novos rumores. Um dos relatos dizia que
Richard/Rita estuprara Gerald. E esse não era o pior dos rumores circulando
pela paróquia.
Gerald, de início muito bravo com os psiquiatras, acabou por concordar
com eles. Ou ao menos foi isso que ele disse. Ele acrescentou, contudo, que
eles não deveriam se opor a que ele concluísse o exorcismo. Se pudesse
apenas fazer isso, garantiu, ele ficaria satisfeito.
A decisão final, é claro, dependia da família de Richard/Rita,
particularmente de Bert. Ele estava convencido de que a condição de
Richard/ Rita era obra do demônio, e que Gerald ou um outro padre católico
deveriam ter a permissão para completar o exorcismo.
Tudo era muito árduo para Gerald. Ele se sentia “como um espécime de
um museu, ou um caso médico”, como comentou para o seu pároco.
Ademais, algo nele dizia que Richard/Rita não poderia sobreviver do modo
como ele estava, e nem ele mesmo poderia deixar o exorcismo inacabado
como estava.
“Eu não tenho nenhum desejo de morrer, doutor”, disse ele ao psiquiatra-
chefe. “Mas eu tampouco tenho ilusões quanto a mim ou quanto a você. Eu
não posso por viver muito tempo – até meus próprios médicos concordam
com isso. Você não tem qualquer crença religiosa, como você mesmo
admite. A menos que fechemos um compromisso, nós ficaremos aqui,
falando, enquanto Richard/Rita vegeta e morre. Vamos então fazer um
acordo”.
O acordo foi feito. Com restrições. O dr. Hammond deveria estar
presente no exorcismo. Se ele e o médico, independentemente de Gerald,
decidissem que o ritual de exorcismo reiniciado devesse ser abortado, em
qualquer ponto, Gerald deveria abortá-lo. O exorcismo não poderia durar
mais do que um máximo de dois dias. Por outro lado, Gerald estaria em
total controle durante o procedimento do exorcismo. O dr. Hammond se
comportaria exatamente como um dos assistentes de Gerald. Havia ainda
uma ou duas condições, fundamentalmente para ajudar a avaliação e exame
profissionais pelo psiquiatra. Mas Gerald estava satisfeito. Ele havia ganho
a oportunidade de finalizar o exorcismo.
Estava claro para Gerald, agora, que foi somente quando ele tentou
revelar e separar a identidade do espírito maligno da pessoa mesma de
Richard/Rita que ele, Gerald, foi atacado. Ele retomaria então daquele
ponto preciso, no qual o processo havia sido deixado, e proceder com muito
cuidado, sem trazer a atenção para si mesmo de qualquer modo que fosse, e
esforçando-se para confiar no poder do ritual oficial e na função simbólica
de sua função.
Cedo numa manhã, então, quatro semanas e meia após a violenta
interrupção do exorcismo, o dr. Hammond conduziu Gerald até a Casa do
Lago para o prosseguimento do exorcismo de Richard/Rita. Os assistentes
já estavam lá, juntos com o Pe. John. Era um dia sombrio. Um vento forte,
novamente, curvava as árvores ao redor da casa. Começou a chover logo
depois que eles chegaram, e a chuva continuou a cair o dia todo, até à noite.
A Casa do Lago, em si, estava calma e silenciosa. Richard/Rita estava
deitado no sofá, cochilando calmamente, quando Gerald chegou. Então, em
sinal de sua chegada, ele se dobrou todo e enfiou os dentes no peito do pé,
abriu seus olhos e fixou-os silenciosamente na porta pela qual Gerald e
John iriam entrar. Bert e Jasper, ambos carregando consigo as marcas das
últimas quatro semanas em olhares exaustos e vozes graves, mantiveram-se
ao lado do capitão de polícia e do professor. Ninguém falava muito. Quando
Gerald entrou, os olhos de Richard/Rita brilharam com uma nova luz. Ele
gemeu como um cão faminto. Suas mãos se abriam e fechavam. Gerald
reuniu suas forças e sentou-se ao lado do sofá. Ele prepara cuidadosamente
sua fala de abertura. Mas antes que ele pudesse falar, Richard/Rita se
antecipou. Cedendo a mordida em seu pé, e ainda encarando Gerald, ele
disse: “Gerald, querido, porque tanta preocupação? Olhe o que você causou
para si mesmo. Você não precisa suportar toda essa dor. Você não precisa
pagar esse preço”. Era a mesma armadilha. Dessa vez Gerald estava pronto.
“O preço – seja ele qual for – já foi pago. Você obedecerá à autoridade de
Jesus e de sua Igreja. Declare o seu nome”.
Enquanto Gerald falava, a dor percorria novos caminhos de sua carne e
ossos. As partes inferiores de seu corpo, do umbigo até os dedos do pé, se
enrijeceram. Os assistentes viram os vasos de sua testa incharem. Ele lutava
para se controlar, para não perder a consciência, para continuar ouvindo.
Combatia e esperava. Richard/Rita afundou as costas no sofá, numa pose
temerosa. Olhos fechados, os braços cobrindo seu peito.
Após um instante de silêncio absoluto, durante o qual ele quase desistiu
de evocar a obediência ao espírito, Gerald começou a ouvir algo que se
parecia com uma voz, mas totalmente ininteligível. De início, ele pensou
que um grupo de pessoas chegara sem avisar no gramado dianteiro da Casa
do Lago e estava conversando por ali, próximo às janelas. Mas quando ele
se concentrava naquela direção, o som parecia estar vindo de Richard/Rita,
e então mais uma vez a fonte mudava de direção e parecia vir dos fundos da
casa. Ele conseguia distinguir diversas vozes falando ao mesmo tempo,
calando-se, iniciando uma conversação, rindo, vez ou outra grunhindo ou
mesmo gritando jocosamente. Parecia haver vozes tanto masculinas quanto
femininas, mas aquelas femininas pareciam preponderar. O palavrório então
se esvaiu como se todos tivessem partido da casa.
Gerald fitou Richard/Rita: ele estava calado, imóvel. Gerald estava
prestes a falar quando as vozes recomeçaram. Dessa vez elas estavam no
quarto, a provocá-lo diretamente: quando ele se concentrava em Richard/
Rita, elas pareciam vir por detrás dele; quando ele se virava para o outro
lado, pareciam vir de Richard/Rita. Ele começou a sentir como se
fragmentos de vozes flutuassem e se movessem pela sala. Os assistentes
não estavam preparados para eventos estranhos como aquele, pois Gerald
não tinha conhecimento nem experiência de exorcismo suficientes para dar-
lhes avisos muito detalhados. A tensão que eles sentiam se fazia perceber na
transpiração e tremores constantes.
A reação do dr. Hammond poderia ser tomada como cômica em qualquer
outra circunstância, exceto aquela. Conforme nos contou o Pe. John mais
tarde, o psiquiatra começou soltando um jargão profissional do tipo “ah,
mais do mesmo” – grave, inexpressivo, os olhos atentos, tomando notas
calmamente. Após alguns minutos, ele parou de anotar, e a expressão em
seu rosto passou do profissionalismo brando à incredulidade, passando à
impaciência como se estivessem lhe pregando uma peça, chegando
finalmente a um olhar ligeiramente pálido, de um homem que entrava em
contato pela primeira vez com algo ininteligível e estranho às suas
convicções, ameaçando sua sanidade e seu auto-controle.
A confusão e o receio de Gerald cresceram; ele agora pensava poder
distinguir palavras soltas e frases de uma voz em particular. Mas, a todo
instante, novas palavras e frases irrompiam e desordenavam sua escuta.
Tudo culminou numa grande algaravia.
E então as diversos linhas de vozes femininas pareciam fluir mais rápido,
fundindo-se num só timbre, como se, sílaba por sílaba, todas se reunissem
numa única voz principal. E as vozes masculinas começaram a desacelerar
em ataque e amplitude, até tornarem-se séries de rangidos e sonoridades
mais ou menos paralelas mas nunca coincidentes. Os dois níveis, masculino
e feminino, começaram a se misturar e soar como um só em diversas
sílabas, mas havia sempre sons harmônicos e ecos irritantes turvando a
compreensão. Gerald decidiu intervir.
“O quê ou quem quer que você seja, exijo, em nome de Jesus, que você
declare seu nome, que responda às nossas questões”.
Nisso, o barulho começou a crescer, e com ele também o temor e a
insegurança em Gerald. Ele se sentia à mercê de uma poderosíssima voz, a
brotar de uns pulmões enormes e passando por uma garganta e boca
cavernosas. Uma voz dada à blasfêmia, na qual os pecados mais secretos de
Gerald, sua má vontade, suas obscenidades, tudo era exposto, ressoando
como uma maligna provocação.
O jovem Pe. John achou os sons naquele cômodo quase insuportáveis.
Ele aspergiu água benta ao redor de Gerald e em volta do sofá. O ruído
cresceu em intensidade e em seguida se esvaiu. Richard/Rita, o tempo todo,
permanecia esticado, deitado de costas.
Conforme esse caos babélico diminuía, regredindo até um murmúrio,
Gerald recebia as primeiras investidas da fase de Choque. Ninguém o havia
preparado para ela, e ninguém lhe havia dito o que fazer. O velho frade
dominicano de Chicago só dissera que, num certo ponto, “o véio diabo”
teria de sair para a luta. Ele disse para Gerald tomar cuidado naquele ponto
– “É pior do que eu poderia contar”. E de fato era.
A maior qualidade de Gerald – a teimosia – agora havia se tornado a
fonte de sua tortura. Pois ele não conseguia sair daquela situação. Ele viu
sua vontade ser bloqueada dentro da vontade do espírito maligno. Ainda
que no caso de alguns exorcistas o Choque comece na mente, na
imaginação, ou num senso intuitivo, é finalmente na vontade que ele
encontra seu terreno perfeito. Desde o início, foi na vontade de Gerald que
se deu a batalha.
Até aquele momento ele sentira sua vontade lutando contra uma parede
de ferro. Agora a parede parecia se fundir e escorrer por toda parte,
enquanto sua vontade mergulhava até o fundo daquele líquido quente que
queimava, rasgando cada músculo, cada fibra sua, incinerando todo tipo de
proteção que a vontade humana pudesse empregar – esperança, expectativa,
recordações prazerosas, satisfação por atos de fidelidade, habilidade
consciente de mudar ou não mudar, autoconfiança, certeza de estar a fazer a
coisa certa.
Não era propriamente uma escuridão da mente, mas uma nudez da
vontade. Era o ponto de mais profunda pungência, de sofrimento mais
agudo que qualquer ser humano pudesse alcançar ainda em condição
mortal. Dante descrevera isso como o pathos da alma que não é condenada
ao inferno (e sabe disso) mas não dispõe dos meios de saber se o Paraíso
existe, e ainda deve perseverar, na esperança de que o aparente desespero
seja um prelúdio ao prêmio da felicidade.
Em seguida o Choque se materializou em seu eu físico. Um por um, seus
sentidos da audição, visão, tato, olfato e paladar foram afetados. Sua visão
ficou borrada – como quando uma fita de vídeo é lida sobreposta a outra;
ambas as imagens são suficientemente claras para serem vistas, nenhuma é
clara o suficiente para eliminar a dúvida. Em seus ouvidos iniciou-se um
tipo de dor produzida pelo som de uma britadeira; e a dor se prolongava. O
que quer que ele tocasse dava-lhe um arrepio frio na região lombar que ele
costumava sentir quando alguém friccionava uma lâmina de vidro numa
janela com o dedo seco. Sua boca tinha o gosto de leite azedo. E um odor
incontrolável, que ele não conseguiu definir, se fixou em suas narinas – não
exatamente de podridão, mas um odor cortante, que ele não conseguia
inalar sem sentir uma forte agulhada nos seios da face, boca e garganta.
Os assistentes viram Gerald começar a se contorcer. Dois deles o
contiveram, um de cada lado; fiéis às próprias instruções do padre, eles não
tentaram conduzi-lo para fora do quarto. “Você aguenta, padre?”, perguntou
o dr. Hammond. A única resposta de Gerald foi balançar a cabeça num
gesto rápido.
Ele sentia, tanto em sua vontade quanto em seu corpo, a estranha
sensação de um clímax por vir, os ferimentos recém curados voltarem a se
abrir e a sangrar, as cascas de ferida caírem, e uma dolorida pontada em sua
carne viva. Ele sentiu o sangue e o suor molharem sua pele, e entendeu que
deveria, agora, fazer um esforço supremo.
“Seu nome! Você, que atormenta essa criatura de Deus. Em nome de
Jesus, e por meio de seu poder, dê o seu nome! Agora! Seu nome!”.
Ele ouviu os últimos resquícios daquela voz agressiva se esvaírem.
Richard/Rita se debateu como se estivesse sendo aguilhoado com uma faca
pontuda, contorcendo sua cabeça, seu pescoço, suas costas. Ele grunhia. E
então todos no quarto ouviram uma voz sussurrada que, sem vacilar,
discretamente, dizia num tom grave:
“Ajeita-Moça. O Ajeita-Moça. Ajeita-Moça. A gente ‘ajeita elas’. Todo
tipo de mulher. Jovem, velha, casada, solteira, lésbica, neutras. Garotas que
querem se ajeitar. E aqueles que querem virar mulher. Qualquer um. A
gente ajeita. Ééééééééé!”. Fez ele num ganido trêmulo. “A gente ‘ajeita
elas’ direitinho!”.
O peso de Gerald sobre os braços de seu assistente cresceu enormemente.
A pressão sobre ele aumentava novamente. Mas ele conhecia seu nome
agora. “Ajeita-Moça”. Ele desvendara o enigma e sabia perfeitamente que
deveria aproveitar para não deixar aquela vantagem se perder.
“Você vai nos dizer: quantos de vocês estão aí! Quem são vocês? O que
vocês fazem? Por que vocês mantêm essa criatura de Deus escrava? Você
vai nos contar. Fale!”.
Gerald teria prosseguido, repetindo os mesmos comandos, mas o jovem
padre fez um pequeno gesto lembrando-lhe que ele estava caindo num
padrão repetitivo. Ambos aguardaram. Gerald ainda lutava contra o veneno
dentro de si. Ele sentia muita dor
“Olha você, por exemplo, padre!”. O ódio e o desprezo no tom de sua
voz eram arrepiantes. “A gente ajeitou você, não é? Sente só, amiguinho.
Tenta só fazer alguma coisa com o seu furinho, o da frente ou o de trás. Ah,
rapaz! A gente ajeitou você. Ééééééé!”.
Gerald se apoiou e tentou molhar os lábios; sua boca estava seca. Sua
visão estava perdendo o foco de novo. Ele tinha que aguentar firme. O
professor levou um copo d’água aos seus lábios. Ele tinha de aguentar
firme. Ele molhou sua língua e começou de novo.
“Diga-nos, em nome de Jesus...”.
Ele foi interrompido por um gemido grave de Richard/Rita. Sua agonia
paralisou a todos, e somou-se à dor e sofrimento que Gerald já sentia em
seu corpo, deixando-o ainda mais confuso. Todos na sala foram afetados
por aquele grunhido: a imaginação e memória de todos eles ficou
descontrolada. O capitão de polícia foi levado de volta ao campo de
prisioneiros na Coréia onde ele esteve trancado por dois anos; seu
companheiro gemia de dor, enquanto um interrogador sádico arrancava a
pele de suas costelas. O professor estava de volta a Surrey, Inglaterra, em
1941, junto a um avião alemão que havia caído e explodido; o piloto
alemão, trancado dentro do avião gritava, “Mutti! Mutti!”, 3 queimando no
fogo do avião. Os irmãos de Richard se viram diante de um lobo moribundo
no qual eles haviam atirado, dez anos antes, numa viagem de caça ao
Canadá com seu pai; o lobo grunhia como que para ameaçá-los e cuspia
sangue. O médico se viu de volta numa situação de urgência ocorrida no
inverno anterior, quando ele assistiu a um pai, curvado sobre o cadáver de
seu filho de três meses, o corpo ainda quente, soluçando e chorando a quase
sufocar-se. Todos ali se sentiam culpados, como se houvessem cometido um
assassinato ou torturado alguém. Algo ou alguém estava sofrendo uma dor
indizível, e lançando a culpa sobre eles todos.
Somente John, o padre mais jovem, não tinha nenhuma imagem terrível
ou ameaçadora em sua memória. Ele tentou concluir o comando de Gerald.
Foi um erro terrível.
“Responda”, ele disse com força, sua voz vacilando de nervosismo. “Em
nome de Jesus, responda às nossas questões...”.
“Não, John”, interrompeu Gerald rapidamente. Mas já era tarde demais.
O estrago estava feito. O gemido cessou. Richard/Rita rolou, pôs- -se de
bruços e se sentou. Fez-se uma súbita e temerosa calmaria. Os outros foram
trazidos de volta para o presente. Eles estavam prontos para saltar e conter
Richard/Rita. Mas tudo o que ele fez foi entreabrir uma fresta de um olho.
Um brilho malévolo e jubiloso focou-se sobre John.
“Ah! O moleque da alminha pura!”. Cada uma das palavras saia como
uma pasta espremida lentamente para fora de um tubo. Todos prestavam
atenção em cada sílaba. “A gente vai te ajeitar também, na hora certa”.
Gerald sentiu muita pena de John: agora ele é quem estava em apuros.
“Você vai perder cabelo. E vai sentar num confessionário e secretamente
se perguntar por que é que eles fazem as coisas que eles confessam para
você. E essas perguntas vão se transformar em curiosidade. E a curiosidade
em desejo. Você não vai admitir, mas vai acabar desejando. Desejando
matar. Roubar. Foder. Tudo o que eles contarem para você. E vai sentir o
remorso em você e vai surrupiar o dinheiro da coleta. E vai começar a virar
o copo. E mais tarde você vai deixar as mãos quentes dela apagarem o seu
fogo” – dizia ele com um sarcasmo mordaz – “e depois de se levantar, ela
vai levá-lo até o mar, o que faz bem para sua saúde, e vocês vão dar uma
rapidinha no banco de trás do carro – tudo por amor ao seu doce Jesus. E
ela vai precisar de cada vez mais desse seu amor de Deus. E mais. E mais. E
mais. E” – a voz agora crescia em intensidade, chegando aos gritos – “você
vai pegar várias esposas de vários homens, só para consolá-las. Você vai ser
o devasso do altar, seu moleque de alminha pura. E você vai ficar com
medo de se confessar”. Richard/ Rita gargalhava como se estivesse uivando,
rolando no sofá. “Talvez” – ele parou de rir e fixou John novamente com
um só olho, meditativo – “talvez, você enfie até mesmo na minha boceta”.
O capitão mantinha as duas mãos firmes sobre os ombros de Richard/
Rita, contendo-o firme mas delicadamente. Ele se calou de repente. Ele
então dirigiu seu único olho aberto ao capitão e torceu seu nariz num gesto
de desprezo: “Ele vai trepar com a sua mulher. A sua! Ela já o deseja. Um
homenzinho jovem e puro que nenhuma mulher nunca pegou”.
“Frank, segure firme” disse Gerald apressado ao capitão. Ele apertou
com força a mão de John para reconfortar o jovem padre, e agora se
mantinha de pé por sua própria conta. Ele tranquilizou a todos com um
olhar. E então, num tom de voz lento e solene, para Richard/Rita: “Seu
nome é Ajeita-Moça. Você irá responder às minhas perguntas”. Ele as listou
meticulosamente: “Quantos de vocês estão aí? Quem são vocês? O que
vocês fazem? Por que vocês estão prendendo esta pessoa que já foi salva
por Jesus?”.
Cada questão agia sobre Richard/Rita como um golpe de martelo. A cada
uma delas Richard/Rita caia para trás e se reerguia no sofá. Ele parecia
murchar como se o estivessem comprimindo. Um olhar de terror se
espalhou por seu rosto, cobrindo-o por inteiro.
Gerald continuou: “Eu faço essas perguntas em nome de Jesus. Você irá
responder”.
O corpo de Richard/Rita se descontraiu; ele estava deitado de costas, de
olhos fechados. O capitão soltou o ombro dele e deu um passo para trás.
Gerald fez um gesto aos assistentes; eles se afastaram da cama. Os dois
irmãos de Richard/Rita se olharam por um breve instante. Eles se
recordaram, mais tarde: o terror que eles sentiam era quase de mesmo grau
que a curiosidade. Que forças malignas e obscuras haviam dominado seu
irmão? Por quê? Será que ele podia ser liberado? Será que eles desistiriam?
A pressão sobre Gerald amenizou-se pouco a pouco. Ele podia sentir
pequenos focos de alívio pelo seu corpo. Sua visão começou a clarear
novamente. Seus ouvidos pararam de doer. Ele não mais sangrava. Ainda
havia uma sensação de corrosão implacável em torno de sua cintura, mas
ela não mais passava de uma dor previsível, estável.
Por alguns minutos a boca de Richard/Rita se abriu e fechou
seguidamente. Era possível ver sua língua mover-se no interior, suas
bochechas esticando e relaxando, seu pomo de Adão subindo e descendo.
Ele parecia estar formando palavras sem som.
Eles então começaram a ouvi-lo, de início muito debilmente, de uma voz
distante e sussurrada, em seguida por meias palavras, depois pedaços de
frases e finalmente sentenças inteiras, pontuadas por pausas arrastadas,
emitidas naquele tom grave que nem mesmo seus irmãos eram capazes de
reconhecer como sendo do Richard de sempre. Também o dr. Hammond se
havia recomposto, e estava uma vez mais envolvido com a observação
clínica do que estava acontecendo.
“Quantos de vocês estão aí?”, Gerald repetiu, inclinando-se para frente e
ouvindo com atenção. Pouco a pouco, ele começou a entender meios de
palavras, inícios de frases.
“...números... sem corpo, idiota... você pode não pode... numeral... espr-...
matemática negativa... só conta em potência... inteiro iremos todos e cad-...
ficar juntos... gigantesco empurrão em pequeninos pigmeus... ninguém fica
sozinho... eles por eles mesmos... nada... cada um de nós sozinho é nada,
não tem nada... entre nós, um só espírito é meramente um punhado de fibras
– vontade, mente – arrancados num serzinho doente eternamente fadado a
uma ausência eterna, um infindável vácuo... uma barriga sobre duas pernas
se debatendo indefesamente sobre o leito seco do comprovado desespero...
assim é cada um, sozinho... impossível... nada, um verdadeiro nada...
odiando, desprezando, amando o desamor e desamando... juntos ao redor de
um humano ou odiando o Grande Inimigo... oeeeeeh... o chega-pra-lá que
nós demos no Grande Inimigo, a fissura que nós abrimos lá no Reino... lá o
Grande Inimigo não domina... Denso, indiscernível, uma só massa uma
vontade, uma besta completa, um brilho emanando d’Aquele que Ousou
para todos os outros. Pra que os humanos voltem para seus cantos... tomem
a escuridão como seu fardo... a doença, a dor, a morte e a escuridão...
esfolados por todos os lados, amargurados, ferrados, mortos, enlouquecidos
pelos membros do Reino... rastejando-se pelo Reino...”
“Vocês tem todos um nome?”, Gerald interveio. “Vocês são todos iguais?
Quais são suas identidades?”.
A voz vindo de Richard/Rita tornou-se novamente um sussurro.
“Brilhante! Brilhante!”, o psicólogo suspirou, olhando para Gerald com
uma expressão de curiosidade. “Justamente a questão a ser feita!”.
“Será que é preciso ir adiante nessa linha, padre?”, perguntou Bert a
Gerald, vendo seu irmão já abatido.
“Tenha a bondade de esperar, meu caro” os olhos do dr. Hammond
estavam inflados de tanto interesse, seu rosto ficou corado de irritação com
a interrupção. “Esse pode ser um marco divisório nos casos de
personalidade múltipla”.
Gerald olhou de esguelha para o psiquiatra. Era um olhar que continha
mais pena do que surpresa. Mas não havia tempo a ser perdido.
“... redondo e gordo e vermelho e preto e macho e fêmea e o cheiro que
eles têm ou o que eles fazem ou como eles andam, humanos pigmeus...
nomes, que nomes? … um monte de pulmõezinhos que respiram... é o que a
gente faz, o que a gente é... milhões se você contar as vontades, as mentes, e
infinitos se você pesar o ódio, o ódio vivo... um em cima do outro, ninguém
é tudo, todos sob um, alguns tão próximos d’Aquele que Ousou que só o
Grande Inimigo consegue alcançar a inteligência deles, outros tão baixos
que são mesmo um cocô, um caco, a verruga no calcanhar dele, a poeira
entre os dedos do pé dele... e todos eles amantes do que é vil... de tudo o
que desfigura a beleza”.
Richard/Rita pareceu tomado por um surto de riso crepitante.
Independentemente do que ou quem estava se divertindo ali, era um
semblante assustador que Richard/Rita agora trazia: sua boca enegreceu,
seus dentes estavam expostos, suas bochechas se enrugaram com o esticar
dos lábios, o queixo subia e descia, as narinas se dilatavam e contraíam –
tudo numa horrorosa expressão de contentamento. Não era uma gargalhada,
ou um riso seco. Não era uma reação a uma piada inteligente ou a um
humor profundo. Era tão somente um guincho triunfal que se propagava em
ondas de ódio, de submissão à infelicidade, de recusa em aceitar toda e
qualquer existência senão aquela da vida na morte, da impiedade, da
perpétua banalidade exaltada como meio de existência.
Gerald falou novamente. “O que vocês fazem, vocês que vêm do Reino?
Ajeita-Moça? Vocês todos! O que vocês fazem?”.
Richard/Rita estava agora coberto de suor. Suas roupas e o topo do sofá
estavam encharcados. A temperatura da sala tinha se tornado sufocante na
última hora. Um odor acre pairava no ar. Cada um dos presentes sentia uma
dor de cabeça pulsante. Bert e Jasper voltaram a sustentar Gerald pelos
lados. Ambos os irmãos pareciam abatidos, como que drenados de todo
sentimento. Eles foram anestesiados pela compaixão que sentiam por seu
irmão, e pelo temor quanto ao seu bem-estar. O Pe. John recitava seu terço.
O professor e o capitão de polícia estavam dispostos cada um de um lado do
sofá. Ouvindo as falas desconexas de Richard/ Rita, eles pareciam ter se
reduzido a meras sombras de suas pessoas antigas, seus contornos
corpulentos visivelmente abatidos.
O único ainda ativo, frio e pensativo, vívido, deslocando-se pelo cômodo
e em aparente controle de si mesmo, era o psiquiatra. A despeito de seu
stress aparente, via-se, através do aro de aço de seus óculos, um brilho em
seu olhar, dando mostra de um comportamento tão profissional quanto
inexperiente. Meu Deus, rogou Gerald, em silêncio, poupai-o do preço de
qualquer estupidez que ele venha a cometer.
O dr. Hammond, contudo, concentrou-se na resposta de Richard/ Rita,
que agora tinha o corpo rijo no sofá. O capitão de polícia e o professor
continham-no. Jasper deixou a lateral de Gerald e colocou suas mãos nos
tornozelos de Richard/Rita. Todos eles podiam “sentir” a resistência que
estava por vir.
“Por que deveríamos responder? O Alto...”.
“Porque Jesus ordena. E sua cruz nos protege. E vocês foram vencidos
por seu sacrifício. E você irá obedecer. Responda”.
Uma vez mais o corpo de Richard/Rita amoleceu. O grunhido começou e
durou um minuto ou dois. James podia sentir o corpo todo de seu irmão
vibrar como se ondas elétricas estivessem sendo disparadas através dele em
golpes curtos e sucessivos.
“Nós... nós... deixe-nos em paz, no Reino. Você ouviu! Rita é uma de nós
agora. Para sempre. Você não pode ter Rita”.
“Rita é batizada. E está salva. E perdoada. Você não tem mais a liberdade
sobre o corpo e a alma de Rita”, bradou Gerald com uma selvageria que ele
nunca sentira antes. “Você irá nos dizer o que você faz, como você ‘ajeita’.
Responda. Em nome de Jesus”.
Por uns poucos minutos, Gerald teve a impressão de que a confusa babel
de vozes estava se iniciando uma vez mais, mas ela logo voltou a calar.
Com aquela vozinha flácida e irreconhecível, Richard/Rita falou
novamente. Era aquela voz inabitual, que o fazia um estranho diante dos
próprios irmãos.
“Oh, começa com a xota e termina na xota. Na medida em que a gente as
faz pensar que a xota é tudo, a gente ajeita. Dá pra fazer uma bela de uma
puta – com tudo nos conformes, se simplesmente... se simplesmente elas
pensarem que a xota é a mulher, mulher na xota... o maior insulto ao
Grande Inimigo, porque a mulher é cara ao Grande Inimigo. Um homem é
uma coisa. Uma mulher é um ser. A gente ajeita pra que elas pensem... é só
um pintão grosso num mar de hormônios, e cheiros, e gritos, e todos
aqueles berros e puxões e arrancadas. Amarre o pintinho na gaiola. Amarre!
Não deixem ver além. E ela irá formar o homem à sua imagem. ‘Amarrem
ele’ também...”. Richard/Rita interrompeu, virando-se no sofá. Ela
engasgou, sem ar. “Você! Padre! Nós ajeitamos vocês por...”.
“Não, Ajeita-Moça. Jesus venceu vocês. E em seu nome você irá
responder: porque você está mantendo essa criatura, Rita, sua escrava? Por
quê?”.
Gerald, em sua inexperiência, seguia uma linha de raciocínio perigosa,
embora aparentemente elementar. Parecia lógico, aos seus olhos, insistir em
buscar o porquê ou como Richard/Rita fora possuído. Mas havia o risco
constante de que sua própria curiosidade mental vencesse seu bom senso.
Ele poderia, nesse caso, avançar a um ponto em que a sua intromissão nos
negócios do mal o ferissem para além de qualquer possibilidade de
reparação.
Ao fim do exorcismo, viu-se que não foi Gerald quem sofreu as
conseqüências de uma tal intromissão.
“Nós fazemos o que Aquele que Ousou nos ordena. Rita era nossa presa,
nossa alma. Rita escolheu ter uma xota, ser uma xota, ser uma xota, ser uma
xota. Mesmo quando o Altíssimo falou, ele escolheu ter uma xota, ser uma
xota, ser uma xota”.
Gerald, por uma intuição, sentiu como se o mal ali presente tivesse
perdido fibra, ou perdido um de seus integrantes; parecia ser uma
inteligência menor que agora tratava daquelas questões.
Richard/Rita começou e se debater e a engasgar novamente. Gerald
refletiu por um instante. O que viria a seguir? Será que ele deveria ficar em
silêncio e deixar que as coisas se acalmassem? Será que deveria pressionar
para extrair mais informação? Ele se lembrou do velho dominicano
dizendo, chacoalhando a cabeça: “Se você tiver uma chance de deixá-los
sem ter o que falar, faça isso. Se você puder, pressione- os para que contem
exatamente o que aconteceu. Mas não caia numa troca de idéias como se se
tratasse de uma argumentação normal. Eles sempre irão te bater. E às vezes
uma batida é mais que o que você pode suportar”.
Gerald olhou novamente para Richard/Rita; seu corpo se contorcia para
frente e para trás em meios a espasmos; os assistentes olhavam para Gerald
esperando por qualquer ordem. Ele decidiu fazer mais uma pergunta.
“Espírito maligno, em nome de Jesus, declare a armadilha com a qual
você pegou Richard/Rita. Estou perguntando isso sob a autoridade da Igreja
e em nome de Jesus”.
A voz horrível de Richard/Rita respondeu: “Nós começamos com auto-
desenvolvimento, auto-conhecimento. Nós dissemos pra ela, dissemos pra
Rita: Primeiro, você precisa ser você mesma, encontrar-se a si mesma, saber
quem você é. Daí eles enfiam o nariz no seu próprio umbigo e dizem: eu
gosto do meu próprio cheiro! Então, uma mulher, apenas, somente uma
mulher, é a coisa que se deve ser. Ela tem tudo dentro de si, mas o homem
tem tudo balançando pra fora.
Os assistentes se afastaram do sofá e ficaram próximos a Gerald,
incrivelmente amedrontados. Bert não mais sustentava Gerald, mas se
apoiava sobre a cômoda, arqueado.
“Ser uma mulher é ser completamente independente, a gente diz pra eles.
Nada de culpa. Nem masculino e nem feminino. Completa em si mesma.
Cona e clitóris, numa coisa só. Andrógino. Livre de sentimentos de culpa,
de toda a responsabilidade do homem. Biológicoooooooooooo!”. A voz de
Richard/Rita parou nessa última sílaba, alongando-a. Seguindo um gesto de
Gerald, os assistentes voltaram e colocaram as mãos sobre Richard/Rita.
Uma pequena pausa. E então: “Livre de qualquer necessidade dos outros.
Fazemos eles pensarem que superaram toda ambição do gozo com um pau,
mas se achando totalmente sensuais porque agora podem olhar com
desprezo para o amor e todas as suas farsas; fazemos pensar que eles estão
desenvolvendo suas próprias competências; que sua própria intimidade
consigo é tudo o que há no mundo, sem a intrusão do macho; que ela está
repleta de espaços interiores em si mesma, espaços infinitos, infinitos o
suficiente para conter tudo o que ela sempre quis ser ou ter: que ela pode ser
tranquila, repleta de personalidade, multifacetada, tudo aquilo que o homem
é, mas sem as suas tolices, tudo aquilo que a mulher tem, sem a depravação
de um gato vagabundo”.
Richard/Rita parou. Só os quatro pares de mãos a impediam de se
levantar. Ela se debateu por um momento, mas logo cessou. Voltou a
grunhir, e começou a murmurar num volume quase inaudível.
“Fale, Ajeita-Moça! Deixe que a gente ouça sua voz claramente!”.
“Daí... daí... a velha armadilha de sempre. A velha armadilha na qual
pegávamos um monte deles – e ainda pegamos. Que foder é tão necessário
para eles quanto para um pássaro é necessário cantar, para a água é
necessário correr, e o fogo queimar. Somente para mostrar o quão
independente eles são. Quão superiores são. Que se eles não viverem em
função de foder – cantando e fodendo! – eles são incapazes de respirar,
chorar, cantar, amar, ou fazer qualquer coisa. Ser livre! É isso o que eles
começam a pensar. Homem, mulher, ou um menininho lascivo, ou, quando
acontece, uma menininha. E aí, quando a Rita chegar lá – oeeeeeeeeeeh!”.
Era o mesmo uivo de triunfo de outrora.
Gerald estava no comando. Não havia mais nenhum vestígio da
Afetação, agora. Mas Richard/Rita ainda estava preso por aquela coisa
maligna e selvagem, e estava literalmente estatelado no sofá, enquanto o
Ajeita-Moça seguia tagarelando.
“E, depois disso... um pênis. E então mais um pênis. E um terceiro. Um
quarto. Um quinquagésimo quarto. Uma floresta repleta deles. Estacas
pontudas. Todos iguais. Oeeeeeeh! E então o ódio em ser amada. E o nojo
no ódio. E o ódio em tanto amar. E o amor ao ódio. E o ficar à espera do
pênis. E o riso diante do nonsense. E a escravidão. Muitos de nós somos as
nádegas d’Aquele que Ousou. Cada Rita é um pedaço da merda dele...”.
Aquilo era o bastante. Gerald interrompeu bruscamente. Só havia uma
questão mais. “Em que momento Rita se entregou à possessão para você?
Quando isso se consumou?”.
“Na neve. No vento. Nós soubemos ali que podíamos encontrar espaço
nele. Mas ele já tinha nos convidado anos antes...”.
Gerald decidiu que tudo o que ele queria saber já havia sido dito. O
espírito maligno já havia sido suficientemente subjugado e humilhado.
Agora ele poderia ser expelido.
“Senhor Deus dos Céus, em nome de Jesus Cristo, vosso único filho, e
em nome do Espírito Santo, nós vos rogamos, atendei nossa súplica e
liberai esse seu servo, Richard, das armadilhas, da escravidão e da posse
desse espírito maligno”. Gerald olhava para o alto ao fazer essa prece. Ele
então baixou seu olhar para Richard/Rita, elevou o crucifixo, e preparou-se
para iniciar a prece final de exorcismo.
O dr. Hammond interrompeu, sussurrando apressadamente em seu
ouvido: “Padre, não deixe que isso se encerre aqui. Deixe-me colocar
algumas questões de cunho profissional”.
A despeito de sua antipatia por psiquiatras, e sua particular irritação com
aquele em particular, Gerald temeu por aquele profissional. Ele se virou,
com muita dor, implorando com urgência ao psiquiatra, numa voz falha:
“Pelo amor de Jesus, dr. Hammond, pelo seu próprio bem, fique de boca
fechada. Fique fora disso. Você não sabe o que você...”.
Mas era tarde demais. O dr. Hammond se colocara ao lado de
Richard/Rita, sentou-se no canto do sofá e começou a falar calmamente,
persuasivo.
“Agora, Rita, estamos perto do fim. Estamos quase encerrando. Você
ficará bem. Não há nada a temer. Responda às minhas perguntas. E depois
disso você vai acordar”.
Richard/Rita parou de se debater. Ele ficou completamente imóvel. Seu
rosto relaxou. A expressão em volta de seus lábios se amenizou. O dr.
Hammond, tenso de início, estava agora relaxado. Foi um erro da parte de
Gerald permitir que o psiquiatra fizesse aquilo. Nenhum exorcista
experiente teria permitido uma interferência tão obviamente arriscada.
Aquilo era perigoso não somente porque todo o exorcismo poderia perder-
se por completo, mas pelo risco fatal, para alguém tão ignorante, em tocar o
mal tão de perto. E assim se deu, num certo sentido, com o dr. Hammond.
Um súbito silêncio se instalou nas primeiras palavras ditas a Richard/
Rita. Depois de toda a dor, grunhidos e sofrimento, aquele silêncio era
supreendentemente estranho para todos eles. Uma por uma, cada cabeça se
ergueu. O ar profissional de Hammond – seu terno azul, seus óculos, seu
tom de voz intelectual, sua confiança ao mover-se até o sofá de
Richard/Rita e sentar-se para falar com ele, transgredindo o aviso de Gerald
com aquele comportamento – tudo isso fez com que eles pensassem, como
recorda o policial, “no fim das contas, talvez isso tudo seja mais normal do
que eu pensava”.
Mas o que Gerald sentiu não foi a partida de uma presença maligna, mas
um câmbio de presença. dr. Hammond estava caindo na mesma armadilha
em que Gerald caíra quatro semanas antes, e com meios infinitamente mais
escassos de defesa do que o exorcista. Somente Gerald e o professor
ficaram mais tensos, tendo entendido o que se passava.
Mas subitamente, quase em uníssono e como se aquela descontração toda
pudesse ser vista e ouvida, todos eles se contraíram novamente. Era
possível quase ver e ouvir o súbito cessar daquele alívio. Em meio àquele
silêncio todo, eles ouviam: algo estava mudando. Todos eles sentiam, agora,
o que Gerald e o professor haviam sentido. Uma mudança em algo ou em
algum lugar próximo a eles ou conectado a eles, àquele quarto, com Gerald,
e com Richard/Rita.
Enfim até mesmo o psiquiatra parou, abalado na sua tranquilidade
profissional. Ele tinha agora um aspecto à metade perturbado, à metade
ultrajado, de alguém interrompido no meio de uma frase. Ele olhou
rapidamente para Gerald e os outros, seus traços transmitindo um claro
espanto. Pela primeira vez em sua vida profissional, o dr. Hammond
encarava algo que ele sabia estar para além de suas categorizações. Ele já
sentia, já conhecia aquilo que começava a perceber, mas ele nunca o
reconhecera, nem nos momentos mais intensos dos seus oito anos de
análises pelos quais ele passara com êxito.
Mas sua mente científica era sua única faculdade pronta para defendê-lo,
e ele manteve a máxima em sua mente: Verificar! Colher os fatos! Testá-
los! Mas, ele sabia, não havia fato verificável. Havia uma realidade tornada
transparente para ele. Antes daquele momento, ele teria rotulado aquilo
como um produto irracional. Mas agora aquilo lhe parecia ser real para
além de qualquer razão. E ele sempre soubera disso.
Lentamente, todos começaram a ouvir com clareza. Era, no início, como
o som de uma turba – os pés batendo contra o chão debilmente, vozes a
gritar, bradar, zombar, falar, assobiar e grunhir. Não era possível saber com
certeza de que direção aquilo vinha. O professor olhou para as janelas que
davam para o lago. As árvores se moviam calmamente com o vento: alguns
patos chapinhavam na água; a tarde ainda brilhava. O som então se
aproximou, confuso como sempre, mas agora acrescido de uma nota, um
clima predominante: o luto de uma tristeza inexorável. Ouvido esse som na
gravação em fita do exorcismo, conforme ele vai crescendo em intensidade,
pode-se imaginar com convicção estar ouvindo murmúrios de pessoas
torturadas, ou os protestos desesperados de uma turba agonizante,
lamentando, profundamente arrependida, gritando e grunhindo pela dor de
uma punição e de uma pena irremissíveis, clamando, impotentes, contra a
condenação, tremendo por conta de um sofrimento bestial, um coração
mutante batendo na freqüência de uma miséria e sordidez jamais vistas,
onde a compaixão humana jamais penetrara.
Somado a todas aquelas vozes, mas surgindo e desaparecendo
constantemente no meio delas, ouvia-se o grito a plenos pulmões de uma
mulher que orquestrava todos os outros barulhos e vozes em torno dela,
dando-lhes o tom e o tema. Ela vinha em enormes curvas ascendentes e
descendentes, crescendo e diminuindo, crescendo ainda mais e em seguida
ainda menor. Regular, agitado, cacofônico, ressoando com paixão, dor e um
sentimento de esperança perdida.
Gerald notou que todos no quarto pareciam estar se curvando, baixando-
se como se temerosos de algo que se movesse na parte superior do cômodo.
Não se podia ver nada até então.
O dr. Hammond sentou-se como se estivesse preso ao canto do sofá. A
boca de Richard/Rita ficou roxa, seus olhos se abriram e olhou passou a
fitar o nada. O médico assistente moveu-se para o seu lado para tomar seu
pulso e percebeu que o corpo dele estava muito frio, o pulso constante mas
muito fraco.
“Padre, não vai dar para continuar por muito tempo”, Pe. John conseguiu
gritar para Gerald. “Já exigimos muito dele”.
“Só mais um pouco! Não vai levar muito tempo!”, gritou Gerald em
resposta. Mas o restante do que ele queria dizer permaneceu não dito. Era o
psiquiatra quem, agora, carecia de atenção. O dr. Hammond havia
escorregado para baixo do sofá e ali ficou, torto, olhando de través para
Richard/Rita, os olhos inchados de medo, o caderno de notas caído e
esquecido num canto. Ninguém, incluindo o psiquiatra, podia livrar-se da
trama de pavor que invadia aquela atmosfera.
O som dos soluços e lamúrias finalmente ergueu-se numa nota aguda e
oscilante. O rosto de Richard/Rita se enrubesceu; manchas e estrias
vermelhas faziam empalidecer seus braços e pescoço. Mesmo seus olhos
estavam corados. Ele tentava falar.
Gerald estava em alerta: algo estava por vir, e ele sentiu que deveria dar
sua investida final muito rápido.
“Em nome de Jesus, eu ordeno que você deixe essa criatura de Deus.
Você sairá de Rita e o deixará em sua forma sã...”.
O grito súbito de Richard/Rita rachou seus tímpanos. “Nós iremos, Padre.
Nós iremos”. Eram milhões de vozes turbulentas soando em uníssono,
padecendo uma dor infinita. “Nós iremos, repletos de ódio. E ninguém irá
mudar o nosso ódio. E nós esperaremos por você. Quando você morrer, nós
estaremos aqui. Nós vamos embora. Mas” – Gerald ouviu a aguda injeção
de ódio silvar em meio à tristeza – “nós o levaremos. Ele!”. As mãos de
Richard/Rita subitamente se arquearam ao redor do dr. Hammond, num
movimento rápido mas desajeitado.
Hammond saltou para trás. E Richard/Rita caiu no chão. Os assistentes
pularam para frente e o contiveram.
“Nós já temos a sua alma. Nós clamamos por ele. Ele é nosso. E você
não pode fazer nada quanto a isso. Nós já o possuímos. Ele é nosso. Não
precisamos lutar por ele”.
Richard/Rita bufava como alguém que estivesse sendo asfixiado, os
olhos inchados, os músculos do pescoço expostos, seus longos cabelos
caindo para trás, arfando, tentando colocar-se de pé. “Vocês não podem tê-
lo de volta. Ele é nosso. Ele trabalha para a gente. Ele não precisa de uma
buceta. Ele já embuceta todo mundo”.
Todo resquício de paz se esvaiu do rosto de dr. Hammond, que agora era
um retrato mesmo do pânico.
“Aqui... não podemos mais ficar aqui por muito tempo”. Era ainda a voz
de Richard/Rita, cheia de dor e uma amargura inexoráveis. “Há muito o que
sofrer aqui. Aonde nós...”. A voz desapareceu.
Richard/Rita desferiu chutes e arranhões nos assistentes que a
seguravam, e começou a gritar até desfalecer. Por toda parte, no quarto, as
últimas sílabas de suas palavras se dissipavam numa nuvem de vozes. Elas
subiram em espiral até uma nota aguda, afundando logo em seguida e
ressoando como o gemido de um touro abatido, afastando-se lentamente.
Essas diversas vozes tétricas, essa turba foi desaparecendo pouco a pouco,
como uma procissão de um funeral arrastando-se centímetro por centímetro,
pendendo para os lados, saindo da cidade dos homens, tragado pela vastidão
incógnita da noite. Aquele grito pulsante da mulher ainda soava tristemente
mas cada vez mais fraco, acima dos ecos desfalecentes da multidão em
retirada, até que finalmente não restasse mais do que um mínimo tilintar a
subir e a descer, a subir e a descer, sem nunca mais surgir depois de tocar o
silêncio.
Ao sumir do som, as convulsões de Richard/Rita foram pouco a pouco
cessando. A tensão foi deixando os presentes até que eles se deram conta,
um de cada vez, erguendo a cabeça, andando sem dificuldade, olhando para
os rostos dos outros, que eles estavam sozinhos entre si naquele pequeno
quarto, que ali havia um curioso silêncio, e que o mundo deles havia
voltado ao normal. Estava tudo acabado. Tudo estava bem.
Gerald fitou o psiquiatra. Ele estava deitado contra a parede, os óculos
em mãos, chorando despudoradamente sobre sua outra mão. “Bert, cuide
dele, sim?”, disse Gerald gentilmente.
“Me deixe. Me deixe”, murmurou o dr. Hammond, em meio às lágrimas.
E, respirando fundo: “Eu estou bem. Me deixem”. Ele caminhou lentamente
até à porta, abriu-a, e virou-se, olhando para Richard/Rita e para Gerald. Ele
tinha o aspecto de alguém que fora ferido injustamente; e seus olhos
carregavam consigo uma mensagem confusa, junto a um apelo. E então,
sem dizer uma só palavra, ele se virou e partiu. Ele conversaria com Gerald
mais tarde. Mas, no momento, ele não tinha palavras, e estava incrivelmente
cansado.
Depois de cerca de 20 minutos, eles ergueram Richard/Rita, que
começava a voltar a si, e o colocaram sobre o sofá. Ele fez um gesto com a
mão para Gerald. Ele estava obviamente fraco, mas perfeitamente
consciente. Gerald viu o sorriso em seus olhos e, fragilmente, no canto de
sua boca.
“Padre, há dez anos que eu não me sentia tão descansado e leve. Eu...”.
“Não precisa dizer muita coisa agora, Rita”, disse Gerald.
“Mas, Padre Gerald, eu... eu estou feliz pela primeira vez desde muito
tempo”.
“Nós falaremos sobre isso mais tarde”, disse Gerald, um sorriso
atravessando todo o seu sofrimento; ele sangrava novamente e sentia uma
enorme dor em sua bacia trincada. Ele se ergueu o quanto pode, e se
preparou para partir.
“Pe. Gerald!”, Richard/Rita lutou para se erguer com um só cotovelo. Ele
olhava pela janela. “Eu estou... Eu... por favor, chame-me de Richard. Eu
nasci Richard. Morrerei Richard”. E, olhando para Gerald. “O resto” seu
olhar vagava por seu próprio corpo – “quanto ao resto, deixemos por conta
de Deus e – e de Jesus”. Ele parou, e olhou o horizonte, como se tentasse
lembrar-se de algo. E então, olhando novamente para Gerald, “Padre, eles
me disseram... ou eu os ouvi dizer – não sei qual deles – que não há mais
muito tempo... você sabe...”. Ele interrompeu, sem forças.
“Eu sei, Richard”, disse Gerald tentando sorrir, mas sentindo um peso
enorme dentro dele. Em seu âmago ele sentia que uma lesma cinza
devorava seus órgãos. E em algum canto de seu coração, um caroço frio
parecia ter se instalado. “Eu sei. Eu sei já há um bom tempo. Eu sei. Está
tudo bem. Foi minha própria escolha”.
Lá fora, na garagem, o dr. Hammond estava sentado no banco do
motorista de seu carro, à espera. O motor já estava ligado.
“Vai ser uma noite muito úmida, Pe. Gerald”, disse ele. A despeito da
tensão, havia uma nota de cordialidade e respeito que Gerald não notara
antes. “Deixe-me levá-lo para casa, é no caminho para o meu escritório.
Tenho que gravar o meu relatório antes que eu me esqueça de algo. Eles
poderão transcrevê-lo amanhã”.
Gerald sentou-se ao seu lado, sentindo dores, e despediu-se com um
gesto de Jasper, que o ajudara.
“Diga-me, dr. Hammond” ele disse como leveza, enquanto rodavam na
estrada, “você acredita no demônio?”.

1 Richard O. é um transexual. Ao descrever sua vida antes de sua operação, eu me refiro a ele como
Richard O. ou simplesmente Richard. Em seguida, e até o término do exorcismo, ele é chamado de
Richard/Rita. Em conversas com o Pe. Gerald, este freqüentemente se refere a ele como R/R. Com a
permissão de Richard, refiro-me a ele durante esta narrativa com os pronomes masculinos – ele, dele.
Hoje em dia ele chama a si mesmo simplesmente de Richard O.
2 A citação em questão provém do romance The Beautiful and Damned – NT.
3 “Mamãe! Mamãe!” – NT.
Tio Ponto e o Papa-Sopa
“ Tio Ponto!”, gritou Jamsie furioso, correndo até a porta de seu
apartamento. “Tio Ponto! Dessa vez chega! Por Jesus, chega! Você vai ver!
Chega!”. Ele saiu batendo a porta. Ao descer os degraus até à rua,
atabalhoado, atrapalhando-se com as chaves do carro, ele murmurou, com
raiva: “Isso vai resolver a coisa – de uma vez por todas, hum? Isso resolve.
Vou dar um jeito em você, seu bastardo”.
Todo o corpo de Jamsie, alto e magro, tremia. Estava tomado por uma
sensação de frustração que quase o fazia perder o controle de si. Seus
cabelos ruivos e seu perfil alto sempre chamaram a atenção das pessoas.
Mas agora seu rosto cadavérico estava todo corado, seus olhos faiscavam;
sua aparência devia ser assustadora.
Em poucos segundos ele assumiu o volante. Ainda praguejando, ele ligou
o carro, deu uma meia-volta e acelerou imediatamente na direção da saída
de São Francisco.
Jamsie fervia de tanta raiva acumulada, e continuava a tremer. Havia,
entre ele e Tio Ponto, incômodos acumulados já há seis anos. Agora, já
estava farto. Embora Ponto o tivesse deixado em paz por diversas vezes, e
embora tenha dormido em paz em seu próprio apartamento até muito
recentemente – e, ainda, embora tenha apreciado a estranha companhia de
Ponto e tirado proveito dos intensos encontros com ele – apesar de tudo
isso, naquela manhã de sábado, ele perdera a paciência. Ponto quis se
mudar para a casa de Jamsie definitivamente, para ter total controle sobre
ele e sobre sua vida. Isso estourou algo dentro de Jamsie. Ele tinha que
acabar com aquilo imediatamente.
“Você não vai mais me aborrecer. Você vai parar de me encher o saco.
Você vai...”.
A voz de Jamsie sumiu. Um relance sobre o espelho retrovisor foi
suficiente: Tio Ponto estava no banco de trás, com aquele mesmo sorriso
afetado no rosto, que sempre deixara Jamsie enraivecido.
“Eu já disse para você”, gritou Jamsie violentamente contra o espelho,
“isso é um sorriso sujo. Um sorriso de porco! Sorriso grosseiro, imundo!”.
E, num repentino acesso de raiva e frustração: “Inferno! Inferno! Inferno!”.
Ele parou para dobrar numa esquina. “Inferno! Agora você pediu, Ponto.
Chega”.
Ele ficou em silêncio, respirando fundo, e voltou a dirigir. Vez ou outra
ele lançava um olhar furtivo pelo retrovisor para se certificar de que Ponto
ainda estava ali. Jamsie podia ver sua cabeça quadriforme terminando em
algo quase como um ponto, uma testa estreita com pequenas sobrancelhas
castanhas em subindo em ziguezague, os olhos grandes, bulbosos, com as
escleras tão avermelhadas que dificilmente se podia distingui-las da íris,
muito rosada. E o nariz, a boca e o queixo de Ponto – se é que se pode falar
de um queixo – sempre faziam Jamsie pensar numa batata de Idaho.
O rosto de Ponto parecia ter sido composto às cegas por diversas pessoas
trabalhando em discórdia, cada parte vindo de um rosto diferente. Nenhuma
das partes de fato se encaixava com a outra. Mesmo a cor de sua face, um
preto acastanhado, se chocava com os escassos cabelos loiros, instalados
como um pobre topete no topo daquela cabeça peculiarmente pontiaguda.
Seria algo cômico – e Jamsie por vezes dava boas risadas olhando para
seus traços – se aquela não fosse a expressão normal da face de Ponto. Pois
aquele não era, de forma alguma, o rosto de um palhaço de circo, no qual a
irregularidade e os sentimentos humanos se combinam para formar um
sentido, um pathos. Ponto tinha uma caricatura de rosto humano. Onde,
num rosto de palhaço, se poderia ler: “Riam! Mas saibam que eu espelho a
miséria de todos nós”, na face de Ponto lia-se: “Não riam! Mas desesperem-
se, porque eu espelho a real absurdidade de vocês todos”. E o que impedia
que Jamsie se divertisse com a face de Ponto eram as sutis transformações
pelas quais ela podia passar. Por vezes ela não parecia ser humana de todo.
Era alguma outra coisa, para a qual Jamsie não tinha um nome – nem
animal, nem humano, nem mesmo um rosto saído de um pesadelo nascido
nas “Noites do Terror”.
“Tudo o que eu peço, tudo o que eu sempre pedi”, Jamsie se lembra de
Tio Ponto dizer, suavemente, algum tempo depois, enquanto eles pegavam a
Highway 101, “é que você me deixe vir morar com você. Eu não vou
atrapalhar. Você precisa de um amigo como eu”.
Jamsie bufou de raiva; sua direção começou a vacilar por um instante.
“Veja”, continuou Ponto, com seu melhor tom de voz. “Veja! Você não
precisava ter ficado tão bravo. Você não é tão bom motorista quanto era o
seu pai, Ara”.
“Deixe meu pai de fora dessa”, pediu Jamsie.
A voz de Ponto era um capítulo à parte. Nunca forte, mesmo quando
Ponto gritava, ela causava dor na maior parte do tempo. Provocava uma
reverberação no ouvido de Jamsie, de modo que qualquer conversa mais
extensa com Ponto terminava com uma dor de ouvido de nocautear.
De fato, Ponto só começara a incomodá-lo muito tempo depois da
degeneração gradual de seu pai, que passou de artesão independente a
taxista em Nova Iorque, tornando-se mais tarde cafetão e traficante de
drogas. Sim, e muito tempo depois de sua mãe ter afinal se prostituído nas
ruas de Nova Iorque, na busca desesperada por meios de sobrevivência.
Deixe-os de fora disso, pensou Jamsie silenciosamente. O que havia entre
ele e o Tio Ponto só dizia respeito a eles dois.
Em poucas palavras, Jamsie estava farto do assédio de Tio Ponto. Dois
anos de aparições repentinas, de manhã, à tarde e à noite, e de intervenções
sem ter sido convidado, que arruinavam sua vida pessoal, tudo isso havia
enfim passado do limite. De início Jamsie havia mesmo recebido de braços
abertos as esquisitices imprevisíveis de Ponto. Elas proveram algum alívio
ao seu tédio. Por vezes ele se divertiu, se sentiu estimulado, até mesmo
mais bem-disposto e motivado para enfrentar várias dificuldades práticas.
E, depois de anos de temor e pânico anteriores à primeira aparição de
Ponto, anos de perseguições por estranhas, intangíveis ameaças, Ponto era,
finalmente, um alvo visível no qual ele poderia escoar o seu ódio
generalizado diante da vida e das pessoas – e de si mesmo. Mas aquilo seria
somente o começo...
Parecia que tudo continuaria do jeito que estava, sem que Ponto mudasse
de postura. Mas, após algum tempo, Jamsie começou a sentir que ele o
estava pressionando. De visita e companheiro ocasional, Ponto começara a
assumir o papel e os privilégios de um membro da família, um sócio
próximo, um amigo íntimo. Foi só então que Jamsie se deparou com toda a
intensidade da personalidade tortuosa de Ponto. E aquilo já era demais.
Eles estavam chegando em San Jose. Ponto começara a falar de novo.
Mas Jamsie já caíra nas armadilhas de Ponto anteriormente. Ele manteve
sua boca bem fechada, decidido a aplicar o velho tratamento de silêncio
com Ponto. Aquilo funcionara ocasionalmente no passado.
Jamsie já ouvira tudo aquilo antes: o que Ponto pensava a respeito de seu
pai e de sua mãe; que ele, Jamsie, deveria se afastar das mulheres e da
bebida (“Mulher é a morte”, aconselhou Ponto; “o goró deixa você
vulnerável”); quem eram os verdadeiros amigos de Jamsie nesta vida – o
próprio Ponto; ou sobre pessoas como Lila Wood, ex-namorada de Jamsie,
e o amigo de Lila, Padre Mark. Ponto continuava discursando.
Jamsie acabava de passar San José e entrar na Highway 52, e dirigia na
direção de Hollister, ao leste. A voz de Ponto assumiu um tom de suspeita.
“Você me disse que não gostava de San Benito County, Jamsie”. Uma
pausa. “Jamsie!”.
Jamsie manteve seus olhos fixos na estrada.
Ponto mudou de tom, agora lisonjeiro. “Diga apenas, ‘Sim’, Jamsie”.
Ponto quase suplicava. “Diga apenas, ‘Sim’”. Você não faz idéia... eu não
quero voltar... todas aquelas casas por lá...”. Jamsie olhou de soslaio para as
casas ponteando as encostas. “Eu não sou bem-vindo por lá, apesar de toda
a bebedeira, da putaria e do desespero deles”.
Sem qualquer reação ou resposta de Jamsie, Ponto se calou. Jamsie
olhava adiante. Mais um longo silêncio.
Algum tempo depois, quando Jamsie pegou a direção sul na Highway 25,
rumo a San Benito River Valley, um sorriso sarcástico cresceu
involuntariamente em sua boca. Eu vou mostrar pra você, ele pensava. Seu
filhadaputa. Eu vou me livrar de você com isso, de uma vez por todas.
Tio Ponto estava impaciente novamente. Estava ficando frenético.
“Jamsie, eu não estou entendendo você, agora. PARE COM ISSO! Você
me ouviu! PARE COM ISSO! Eu estou sentindo umas ondas ruins, muito
ruins. Só escuridão e névoas”.
A lembrança do amigo de Lila, Padre Mark, voltou à mente de Jamsie.
“Papa-Sopa”, foi assim que Ponto apelidou Padre Mark. Na noite em que
Jamsie o visitara, Mark lhe preparou uma sopa de cogumelos feita a partir
de uma receita própria. Depois de comer, Jamsie conversou com ele até o
raiar da manhã, contando-lhe sobre seu passado, sobre o assédio de Ponto, e
de seu profundo desespero e contínuo ódio contra a vida. Mark parecia
compreender muito mais do que parecia ser capaz de explicar a Jamsie. Mas
por diversas vezes durante aquela conversa, Jamsie sentiu-se incapaz de
prosseguir com o que Mark propunha: livrar-se do Tio Ponto. Sempre,
naquela etapa, Jamsie sentia um medo indescritível. Se Ponto não mais
existisse em sua vida, o que aconteceria? Era como se Ponto representasse
uma certa segurança ou, de algum modo, ele houvesse dado sua palavra de
honra a Ponto.
Ele olhou de soslaio para Ponto pelo retrovisor. Ponto o olhava com
malícia e contentamento. O visão daquele rasgo na boca que Ponto
chamava de sorriso suscitou a raiva de Jamsie novamente. Ele não pôde se
conter.
“Você é o filho do Pai da Mentira!”, ele gritou venenosamente para
Ponto. “É assim que Mark disse que Jesus o chamou...”.
Um grito agudo rachou os ouvidos de Jamsie. “NÃO!”, gritou ponto.
“Não menciona o nome dessa pessoa na minha presença. Não mencione
ISSO!”. O bizarro rosto de Ponto se contorceu por completo.
Houve silêncio por alguns instantes. Jamsie olhava para todos os lados.
Quão feliz ele fora ali, naquela zona rural, com seu pai, por uns poucos dias
de uma visita de infância anos antes. Na parte leste ficavam as Montanhas
Diablo – toque irônico à situação, pensou Jamsie. A oeste corriam as
montanhas Gabilan. Adiante ficava o Parque Nacional Pinnacles. Eles
deveriam chegar lá em aproximadamente uma hora.
“Tenho que superar isso”, Jamsie começou a dizer para si mesmo
repetidas vezes. Mas, conforme as memórias de sua alegria de infância
passaram diante de sua mente, ele começou a admirá-las. “Tenho que me
libertar”, ele se viu pensando. “Tenho que me livrar desse ‘espírito
familiar’, tenho que ser livre”. Mas Ponto começou a tagarelar de novo e
interrompeu seus pensamentos.
Toda vez que ele começava a pensar, a realmente pensar, Ponto o
interrompia. Era aquilo, ele se deu conta, que estava obstruindo sua
resolução de dar um fim àquilo tudo: aquele perpétuo amordaçamento de
seus pensamentos e sentimentos. Quando Ponto falava daquele seu modo
estranho, suas palavras pareciam abafar todos os pensamentos de Jamsie.
Ele não podia pensar e nem falar.
Jamsie pisou fundo no acelerador. Ele tinha de chegar até os Pinnacles.
E então, de repente, a dor bloqueou suas memórias e entorpeceu seu
pensamento. Ele sentiu uma pressão dentro de seu peito. Jamsie já havia
experienciado aquilo antes, ao tentar resistir à ação de Ponto. A coisa
começou em sua caixa torácica emergindo até sua pele; e, como acontecera
nas últimas semanas, a dor começou a incrustar-se no interior, no centro de
seu corpo. Ela parecia puxar seu cérebro, forçando-o contra sua espinha
dorsal.
Tudo em que Jamsie conseguia pensar era a estratégia de contra-ataque
que Mark lhe havia tentado ensinar naquela noite.
“Jesus”, ele sussurrou baixinho.
Ele então começou a pronunciar a palavra letra por letra. “J- E-S-U-S, J-
E-S-U-S, J-E-S-U-S”. Cerca de 20 vezes. A seguir ele soletrou o nome
percorrendo o alfabeto desde A até J, de A até E, de A até S, de A até U, de
A até S. E começando tudo de novo.
Ele não fazia aquilo enquanto prece. Ele aprendera aquilo com o Padre
Mark como um meio de bloquear a influência de Ponto.
A pressão interna começou a ceder. Ele podia respirar novamente.
“Jamsie”, disse Tio Ponto num horrível grasnido. “Você sabe que eu não
gosto disso. Eu não gosto nada disso. Você sabe muito bem. Eu não suporto
isso. Pare com isso agora mesmo, ou eu não poderei continuar. Você vai me
perder, você ouviu? Você vai me perder”.
Jamsie começou a rir, de início silenciosamente, passando a um riso
incontrolável e alto.
“Meus amigos e meus parentes não vão gostar nada disso”, grasnou de
novo Ponto, com a voz aguda, os ombros batendo contra as laterais, as
mãos se agitando no ar. Jamsie ria mais e mais. Isso era o que ele
costumava chamar de “modo pato” de Ponto.
Ao menos aquilo funcionava, ele pensou. Ele não sabia porque aquele
nome perturbava Ponto. Mas Jamsie riu de puro alívio por quase todos os
50 quilômetros seguintes. Ele até sentia dores de tanto rir. Ele estava
profundamente aliviado por ter vencido Ponto – pelo menos por enquanto.
Por vezes ele parava de rir, quando os seus pensamentos cruéis voltavam
à tona. Mas ao olhar para a cabeça pontuda de Tio Ponto, suas pálpebras
pesadas, um rosto sem queixo tomado do mau-humor típico do “modo
pato” de Ponto, ele voltava a rir.
No portão do Parque Nacional Pinnacles ele pagou a entrada ao
patrulheiro. Jamsie estacionou o carro ao lado do Monumento dos
Visitantes, comprou um mapa e uma lanterna, e começou a se dirigir ao
chaparral da Floresta Pigmy. Ele sabia aonde queria ir. Ele estava quase
exultante de júbilo. Mas, imediatamente, Tio Ponto voltou para o seu lado.
Jamsie agora não dava mais atenção para ele. Algo no ar do local cativava
sua atenção. Havia muito tempo que ele não se sentia tão livre. Ele
começou a caminhar depressa. “Reservatório, aí vou eu!”, ele cantarolava
sobre a melodia de “California, Aí Vou Eu!”. 1
Ponto começou a adulá-lo novamente. “Jamsie, sente-se um pouco. Sinta
o cheiro do azeviche, da mancenilheira, dessas flores silvestres. Sente-se e
descanse um pouco. Disseram que você precisava cuidar do seu coração.
Você é o meu investimento. Você é a minha casa. Você não vai ficar
andando todos esses 15km pra cima e pra baixo, vai? Por favor! Jamsie! Por
favor, pare e fale comigo. Por favor!”.
Jamsie prosseguiu. Ao começar a subir rumo às Cavernas Bear Gulch, ele
abriu o mapa.
“Isso não serve pra nada, Jamsie”, disse Ponto. “Eu disse, não serve pra
nada”.
Jamsie virou as costas para Ponto, procurando a direção da represa no
mapa. Mas Ponto estava pregando das suas peças de novo. Toda vez que os
olhos e os dedos de Jamsie se aproximavam do nome do local no mapa, a
palavra se alterava, passava de um lado para o outro, se esquivava dele,
corria pelo mapa em ziguezague.
Jamsie começou a ficar com raiva, e logo em seguida com medo. Ele
jogou o mapa aberto com força contra uma rocha e enfiou seu dedo sobre a
palavra “Reservatório”. Mas era tarde demais. “Reservatório” escorregara
do mapa, lançado pelo ar, pulando por cima de seu ombro.
Jamsie se insurgiu, disparando impropérios contra o céu azul no qual
dançava a palavra “Reservatório”, como uma flâmula que se ia deslocando
na cauda de um avião invisível. Ele correu de um lado para o outro tentando
agarrá-la, esforçando-se para enxergá-la. De repente, era “Reservatório, aí
vou eu” que dançava no céu. E a seguir o céu se encheu de palavras
dançantes, soletradas uma a uma – e de trás para frente: S-U-S-E-J, E-I-S-
M-A-J, S-U-S-E-J, E-I-S-M-A-J.
Jamsie parou, atônito. Ele teve mais um ataque de raiva. “Pro inferno,
você e seus truques, seu animal imundo! Pro inferno você e seus truques...”.
Mas ele só ouviu o eco de seu próprio grito, e percebeu que estava
sozinho. Ele olhou para cima. Tudo estava calmo. O céu estava azul e
limpo. Não havia o menor sinal da presença de Tio Ponto. As letras
dançantes não estavam mais ali. Ele estava sozinho.
Ele agarrou o mapa e seguiu, cambaleante. Agora ele estava decidido.
Depois de mais meio quilômetro, Jamsie entrou nas Cavernas Bear
Gulch. Estivera ali cerca de 20 anos antes com seu pai, e sua memória
começava a lhe ser útil.
Já na metade do caminho de um estreito corredor da caverna, começou a
ouvir algo mais do que seus próprios passos. De início, era o esparrinhar de
cachoeiras que ele não podia ver, e o murmúrio de rios subterrâneos. Mas
logo começou a perceber que uma voz se fazia audível. Era Ponto, claro.
“Jamsie, você sabe que eu vou ter que prestar contas de toda essa
loucura. Eu sou responsável por isso”.
A voz vinha do alto. Jamsie apontou a lanterna para o teto. Muito tempo
atrás, blocos enormes de rocha caíram sobre uma estreita fissura na parede
do cânion e ali permaneceram, tapando a luz do sol e formando uma espécie
de teto. Ponto estava pendurado entre duas dessas rochas, seus olhos
brilhando com malícia. “Oh! Estou bem aqui”.
“Mas que...”, Jamsie estava prestes a explodir; aquela luta toda o deixava
exausto. Ele subitamente se sentiu fraco, sem esperanças. Numa sorte de
desespero, ele começou a correr, tropeçando entre poças d’água e rochas,
molhando seus pés e raspando suas canelas e tornozelos. Atrás dele, sempre
próximo, vinha a voz escarnecedora de Ponto: “Isso só pode acabar mal,
Jamsie, se você continuar assim. Você tem que voltar para mim, depois de
todo esse tempo, sabe. Você não vai conseguir sem mim, agora. Não
agora!”.
Aquele “Não agora!” perseguiu Jamsie numa centena de ecos. Ele fez
crescer seu pânico e seu desejo de fugir.
Ele então avistou nesgas da luz do sol à sua frente. Correu apressado,
perseguido pela voz de Ponto a ecoar por todos os cantos. Finalmente ele
escalou os últimos degraus de pedra que conduziam para fora da caverna,
onde batia o sol. A voz de Ponto pareceu sumir no interior daquela
escuridão que ele acabava de deixar. Ele estava sem fôlego, transpirando
por todos os poros e trêmulo. Ele ferira seus cotovelos, joelhos e tornozelos.
Seus cabelos tinham caído sobre os olhos.
Mas a visão diante dele o distraía de todo aquele pânico: a represa,
calma, azul, lisa de um aspecto vítreo, sem a menor ondulação. E, refletidas
em sua face estavam os pináculos marrons, cinzas e negros que a cercavam.
Imagens imperturbáveis e imponentes, entrelaçadas com os verdes e
brancos-cinzentos da vegetação. Era um espelho perfeitamente estático no
qual o único movimento vinha dos poucos cachos de nuvens perfeitamente
brancas refletidas do céu. Não havia nenhum som vindo daquelas coisas
maravilhosas ao seu redor. As distâncias todas se reduziram. O tempo parou
para ele.
E então, numa pequena explosão interna de pânico renovada, Jamsie
notou o Vulto logo à sua direita. Um grande dedo de um penhasco marrom-
acinzentado se projetava para fora das paredes do penhasco. O Vulto
permaneceu abaixo dela, fora do alcance da luz do sol.
À sua esquerda a voz exasperada de Ponto gritava desde as entranhas da
caverna: “Bem, se você precisa fazer isso, vá em frente. Vá em frente! Vá,
Jamsie! É o lugar ideal para isso!”.
Jamsie olhou de relance para o Vulto. Na escuridão, sob o penhasco, ele
pensou ter visto um movimento, como alguém suspirando de alívio pelo
fato de o almejado fim estar próximo.
A voz de Ponto irrompeu novamente: “Vá em frente, imbecil! Pule! Eles
me disseram que está tudo ok, agora. Pule!”.
Enquanto a voz de Ponto ecoava, o Vulto movia-se sob o penhasco muito
lentamente. Ele parece ter-se inclinado levemente para a frente, para seguir
mais de perto o que Jamsie estava prestes a fazer. Seus contornos, ainda
escuros, tornaram-se mais visíveis e detalhados.
O que Jamsie achou estranho, agora, foi a sua própria falta de raiva ou
temor. Pela primeira vez em três anos, ele não sentiu nenhum dos dois. Em
lugar disso, ele sentiu aquele alívio e relaxamento do corpo e da mente, algo
parecido com o que se experimenta quando se enche os pulmões de ar, após
ter prendido a respiração até quase se sufocar. Por que eu estou calmo,
agora? Era a questão que se colocava para si mesmo.
Ele virou-se e olhou para o Vulto, como se soubesse que a resposta para
suas perguntas repousasse naquela direção. Aquela questão, assim como
outras, pulsava dentro dele. Os olhos de Jamsie penetraram calmamente a
escuridão que contornava as formas do Vulto.
Nos poucos momentos antes desse mesmo Vulto retornar à escuridão,
Jamsie teve o tempo necessário para entender. O rosto, a cabeça, o modo
como ele se mantinha de pé, todos os detalhes começaram a se encaixar em
sua memória. O Vulto era alto, anormalmente alto. E volumoso. O corpo
era coberto de dobras negras. Era possível ver dois braços erguidos, as
palmas das mãos expostas na sua direção, os dedos se abrindo e fechando.
A cabeça estava erguida, jogada para trás, num gesto como que de orgulho,
altivez. Ele podia entrever olhos, nariz, boca.
O contorno daquele rosto prendeu a atenção de Jamsie. Ele continha
todos os detalhes de uma face humana. E, no entanto, não era humana. Era
alguma outra coisa. Onde foi que ele vira aquilo? Aquela face estivera com
ele durante toda a sua vida consciente, mesmo em sua infância e durante a
adolescência. E desde o primeiro dia em seu emprego. Claro, era a face de
Ponto. Havia algo da face de seu pai ali, também, a face de Ara à noite,
quando ele estava no “trabalho”. E outros, que ele havia visto mas
esquecido. Muitos outros.
Tudo isso durou uns poucos instantes. O Vulto recuava silencioso na
escuridão, sob o penhasco, e Jamsie foi tomando consciência de um outro
elemento dentro de si mesmo. Era uma discreta voz do instinto, uma parte
primitiva ainda viva e vibrante dentro dele. Ele soube que havia visto o pai
de todos os reais inimigos do homem. O Pai da Mentira e o adversário
supremo de toda salvação, de toda beleza, de toda verdade que existe no
cosmos das obras de Deus.
Sob o penhasco fez-se pura escuridão. Os olhos de Jamsie se desviaram
do esconderijo do Vulto. Seus pensamentos voltaram à represa.
Ele olhou para aquela calma sorridente das águas, e mais acima, para o
pico de North Chalone. Lembrou-se daquilo que seu pai dissera quando eles
olharam juntos naquela mesma direção, anos antes: um dia ele iria escalar
todos os 1000 metros daquele pico. As águas e os picos eram algo de puro –
de íntegro, num certo sentido que Jamsie não podia explicar, mas que de
fato sentia intensamente. Ele não poderia, pensou consigo mesmo, ele não
poderia manchá-los com sua própria morte, com um corpo inchado a boiar
de bruços, de costas para o pico, os fluidos a poluírem a água. O simples
fato de pensar naquilo o fazia agora sentir-se um tosco, quase sacrílego.
Ele desviou rapidamente seu olhar da superfície límpida da represa.
Estava completamente paralisado. Sua mente estava vazia, seus olhos não
enxergavam mais nada. Ele não mais desejava dar um fim àquilo tudo, mas
tampouco podia pensar em retornar àquela tortura crescente que era a vida
com Ponto. “Eu não tenho mais nenhum desejo”, pensou, desesperado. E
então, como que apontando par si algo que ele não conseguisse alcançar,
repetiu seguidas vezes: “Eu estou em colapso. Eu estou em colapso”.
Ponto surgiu de repente, irritado: “Você não pode fazer nada, desejar
nada, ser nada – exceto um lixo humano prestes a se matar”. E então,
maliciosamente: “Você” – uma pausa exagerada – “está acabado” –
novamente a pausa cruel – “já está morto, mas não sabe”. Uma pausa curta.
E, soando como um tiro de revólver: “Pule!”.
Jamsie não se mexeu, nem mesmo tremeu. Ele estava seguro de que
Ponto mentia. Ele compreendeu que seu destino não estava perdido, embora
ele não soubesse o que fazer. Ele compreendeu, então, que havia nele um
desejo profundo, mais forte do qualquer outro. Sentiu lágrimas correrem de
seus olhos; e soube que as lágrimas eram geradas nele por aquele desejo
muito profundo.
Ponto falou, uma vez mais, com a voz agitada: “Jamsie! Seja homem. Vá
em frente!”.
Jamsie olhou por sobre os ombros para o local em que se escondia o
Vulto. Ele não partira. Ele parecia ter perdido sua leveza e complacência, e
estava agora rígido, enigmático.
E então Ponto começou a cantar com sua voz de eunuco: “Pula-ha! Pula-
ha! Pula-ha! Pula-ha!”.
As palavras, com seu pulso ritmado, acertavam Jamsie em cheio como
pedras de granizo em seus ouvidos. Ele buscou alguma escapatória, algum
artifício para bloquear aqueles golpes rápidos.
“Pula-ha! Pula-ha! Pula-ha!”, prosseguia a voz de Ponto num tom agudo,
acelerando em espiral.
Os pensamentos de Jamsie começaram a se turvar. O tormento causado
por aquela voz começava a ficar insuportável. Ele se lembrou do Padre
Mark e de suas instruções. O truque, é isso! O truque! Ele começou a
soletrar afoito o nome de Jesus seguidas vezes: J-E-S-U-S. J-E-S-U-S. J-E-
S-U-S. E então todas as letras juntas, como num feitiço – J-E-S-U-S- -J-E-
S-U-S-J-E-S-U-S.
Mas agora, lhe parecia, aquelas letras e sua pronunciação fragmentada
significava mais para ele do que um mero artifício. A dor causada pelo
canto de Ponto diminuiu. As lágrimas de Jamsie corriam mais suavemente,
mais por alívio do que por sofrimento.
As lágrimas borraram sua visão quando ele lançou mais um olhar na
direção do céu e da água. Ele se ouviu a si mesmo, rompendo o silêncio de
toda aquela paisagem, gritando, “Padre Mark! Padre Mark!”. Ele gritava o
nome repetidas vezes. Os ecos voltavam na sua direção vindos de todos os
lados, por cima e por baixo, Padre, Padre, Padre... Mark, Mark, Mark, e se
desfaziam sobre as rochas e os pináculos.
Ele deu um pequeno passo para trás, seguido de outro, e mais outro,
afastando-se da borda da represa. Virou-se para trás, olhando na direção da
boca da caverna, olhando em seguida para o Vulto. Ele se deu conta de que
teria de passar por ambos antes de retornar ao Portão do Monumento pelas
Cavernas Gulch Caves.
Os ecos se dissiparam. O vulto sob o penhasco se havia encolhido e era
agora quase impossível distingui-lo da sombra do penhasco. Não se ouvia
mais nenhum som da parte de Ponto.
Em meio àquele silêncio, Jamsie deu meia-volta e foi descendo aos
tropeços pela Trilha Moses Spring, agarrando-se às paredes do cânion. Ele
esteve sozinho durante toda a descida. Aquelas duas horas de folga foram
bem-vindas. Chegando ao estacionamento, ele ainda estava dizendo dois
nomes, Jesus e Mark, repetidas vezes, para si próprio.
O patrulheiro olhou por sobre a revista que estava lendo. “Precisa de
alguma ajuda, amigo? Você parece abatido”.
“O telefone. Posso usar o telefone?”.
Em poucos minutos Jamsie falava com o Padre Mark. “Fique onde você
está, Jamsie”, disse-lhe Padre Mark. “Não dirija de volta, aconteça o que
acontecer. Espere por mim”.
Naquela noite Jamsie voltou com Mark para São Francisco. Eles pouco
falaram durante o caminho. Ao se aproximarem do presbitério, Mark sentiu
uma nova inquietação em Jamsie.
“O que é? O que há de errado?”.
“Ponto. Ele não disse mais nem uma palavra. Ele não apareceu. Eu me
pergunto se...”.
“Não. Não faça isso” disse Mark com firmeza. E acrescentou, secamente:
“seu velho amigo Ponto não conseguiria entrar neste carro”.
Jamsie consentiu. Mas continuou desconfortável.
Ao entrarem no presbitério, Jamsie teve a leve impressão de ter visto Tio
Ponto no portal de entrada. As sombras lançadas pelos postes de iluminação
se projetavam nos pilares do portão e pareciam produzir rígidas formas
pairando sobre Jamsie, inclinando-se para frente numa postura inquisitória,
observando cada um de seus movimentos, esperando pelo momento de sua
decisão.

Jamsie Z.
O caso de Jamsie Z. nos apresenta um exemplo quase perfeito do que se
costumava chamar de “familiarização” ou possessão por um “espírito
familiar”, na terminologia clássica de possessão diabólica. Eu digo “quase”
porque, no caso de Jamsie Z., a “familiarização” nunca chegou a se realizar
completamente. Jamsie resistiu, foi exorcizado, e o “espírito familiar” que
pretendia se instalar foi expulso de sua vida.
A “familiarização” é um tipo de possessão na qual o possesso não se vê,
em geral, submetido às condições de violência física, odores e
comportamentos repugnantes, aberrações sociais e degeneração da
personalidade que caracterizam as outras formas de possessão.
O espírito possessor, na “familiarização”, busca “chegar e viver com” o
sujeito. Se aceito, o espírito se torna um companheiro constante e
continuamente presente na vida do possesso. As duas “pessoas”, o familiar
e o possesso, permanecem separadas e distintas. O possesso tem
consciência de seu familiar. De fato, nenhum movimento do corpo, nenhum
dor ou prazer e nenhum pensamento ou memória ocorrem sem ser
compartilhado com o familiar. É retirada toda a privacidade do sujeito; seus
próprios pensamentos são conhecidos, e ele sabe, o tempo todo, que o
espírito familiar os conhece. O sujeito possesso pode, inclusive, beneficiar-
se de alguns dons de presciência e insights de que goze o familiar.
Embora houvesse uma conexão definida entre certos eventos e traços de
sua infância e a experiência que culminou em seu exorcismo, foi só depois
dos trinta anos de idade que ele foi propriamente visitado por um espírito
“familiar” a oferecer sua “familiaridade”. Dos trinta e quatro anos em
diante ele esteve sujeito a múltiplas formas de persuasão por parte do
espírito que se autodenominava Tio Ponto. O caso de Jamsie ilustra muitos
dos traços de “familiarização”, e os perigos inerentes ao caso de se
consentir, ainda que num gesto mínimo, à “familiarização”.
Jamsie nasceu em Ossining, Nova Iorque. Seu pai, Ara, era descendente
de armênios; sua mãe, Lydia, descendente de gregos. Ambos eram
americanos de terceira geração. Ara trabalhava como carpinteiro, e tocava
clarinete em seu tempo livre para ganhar um dinheiro extra. Lydia pertencia
a uma família de Boston cuja enorme fortuna fora construída nos mercados
de artigos para navios e de ações.
Lydia conheceu Ara numa pequena apresentação noturna em Glen Ridge,
Nova Iorque. Por improvável que pudesse parecer para sua família, ela se
apaixonou por Ara naquele mesmo instante. E Ara se apaixonou por ela. No
aniversário de dezoito anos de Lydia eles se casaram, sob violenta objeção
da família dela. Mesmo a ameaça de ser deserdada e desligada de toda a
fortuna da família não pôde parar Lydia.
Jamsie nasceu um ano mais tarde, em 1923. A família viveu em Ossining
por mais cinco anos. Mas em 1929 Ara e Lydia decidiram se mudar para
Nova Iorque. Ele não estava ganhando dinheiro suficiente em Ossining. A
mãe e o pai de Lydia a importunavam para que ela deixasse Ara e
retornasse à família com seu filho. Nova Iorque, Ara e Lydia pensaram,
proveria mais trabalho e um maior anonimato para os três. Ara tinha uma
carta de recomendação para o dono de uma frota de táxis. Ele e Lydia
tinham grandes esperanças de sucesso naquela cidade.
Em outubro de 1929 a família se mudou para Nova Iorque, levando
consigo alguns lençóis, utensílios de cozinha, o clarinete de Ara, e um velho
símbolo da Virgem pertencente à família de Ara, que seu pai deixara com
ele em seu testamento. Eles viveram, de início, num apartamento de três
quartos num prédio sem elevador na Penn Street. Um ano depois eles se
mudaram para um apartamento de dois quartos na Lexington Avenue com
25th Street. Ali eles viveram até que Ara morresse em 1939.
Lydia, uma vez mais vivendo numa grande metrópole, escreveu uma
mensagem de recordação de sua chegada, em grandes letras negras, e a
pendurou ao lado do velho ícone, na parede da sala de estar: “Hoje, nosso
primeiro dia em Nova Iorque, George Whitney ofereceu 204 pela U.S.
Steel”. 2 Ela ficou ali pendurada ao lado do ícone por anos; e esses dois
objetos formam o centro das primeiras recordações de Jamsie.
Mas a época de ouro de Nova Iorque, iniciada ao cabo da Guerra Civil,
acabava de chegar ao seu fim, embora poucos esperassem o colapso
iminente. O prestígio e a força de Nova Iorque como fonte de fundos e
lideranças para a nação fora estabelecida naquele período de 64 anos:
grandes fortunas se formaram; famosas casas nova-iorquinas foram
construídas na cidade pelos Brokaw, Dodge, Carnegie, Stuyvesant,
Whitney, Vanderbilt, Frick, Harkness; os maiores distritos financeiros foram
criados para vender ao país todo tipo de serviços. Depois da 1ª Guerra,
muitas das energias de Nova Iorque se voltaram para a Europa. Mas a
antiga liderança havia desaparecido, e a manufatura de Nova Iorque,
declinado. Como colocou certo escritor, a alma financeira de Nova Iorque
“foi se tornando uma grande bolha de lucros em papel, até colapsar”. Ara e
Lydia chegaram logo no momento daquele colapso.
Apesar disso tudo, os primeiros sete anos em Nova Iorque foram
relativamente felizes. Ara não utilizou sua recomendação com o dono da
frota de táxis imediatamente. Ele antes trabalhou como carpinteiro e em
outros serviços braçais, de início em seu próprio bairro, e mais tarde
aventurando-se por Washington Square chegando até Yorkville. Lydia, de
início, permaneceu em casa com seu filho. Mais tarde, quando Jamsie
entrou na escola paroquial, Lydia começou a trabalhar em tempo integral
numa lavanderia armênia.
Na opinião deste autor, a Nova Iorque que Jamsie conheceu em seus
primeiros anos tem algo que ver, de forma intangível mas bem definida,
com sua experiência posterior de tentativa de “familiarização”. Entre 1820 e
1930, cerca de 39 milhões de pessoas imigraram para os Estados Unidos, e
um bom sexto dessas pessoas ficou em Nova Iorque. O principal ponto de
concentração desses “pobres remanescentes” era o bairro de Lower East
Side.
Nova Iorque era então uma cidade com cerca de sete milhões de
habitantes, 25 línguas estrangeiras sendo faladas diariamente e 200 jornais e
revistas em língua estrangeira para satisfazer as necessidades de sua
população tão heterogênea. “Só é possível se tornar um americano pela
graça de Deus”, escreveu I. A. R. Wylie no início dos anos 1930. E, para os
protestantes ianques já há muito estabelecidos nos EUA, Nova Iorque,
composta em setenta porcento de italianos, judeus, alemães, irlandeses,
húngaros, armênios, gregos, russos, sírios e outros estrangeiros, não era
americana. A sensível diferença entre o establishment e os recém-chegados
era mais do que étnica. O establishment não adotara nenhum dos deuses
ancestrais do Novo Mundo; eles importaram sua cristandade, que não tinha
raízes na história pré-colombiana. Os milhões de imigrantes
(principalmente cristãos, com minorias judaicas e muçulmanas) vinham de
terras nas quais suas religiões tinham profundas raízes pré-cristãs. Os
instintos pagãos do cristãos europeus e médio-orientais nunca chegaram a
ser extirpados; eles foram adotados, sublimados, purificados, transmutados.
Naquela velha bagagem de valores morais, práticas rituais, costumes
folclóricos, tradições sociais e familiares, os novos americanos traziam
consigo as sementes e traços de forças antigas e distantes, e de espíritos que
outrora dominaram o Velho Mundo.
A infância de Jamsie, até os nove anos, passou sem quaisquer distúrbios
sérios. A vida em casa era ordeira e segura. De manhã e à noite ele comia
com seus pais. Em muitas noites, Ara pegava seu clarinete e tocava para sua
esposa e filho. Todas as noites, ainda pequeno, Jamsie se ajoelhava diante
do ícone da Virgem com sua mãe e dizia as preces noturnas que ela o
ensinara, enquanto ele olhava para os olhos bem abertos da Virgem.
Seu pai o levava para assistir a jogos de bola e lutas de boxe. Em alguns
domingos, eles andavam de patins pela Wall Street; noutras vezes iam ao
zoológico, ou faziam um passeio agitado no ferryboat da Staten Island; e
duas ou três vezes por ano ele levava Jamsie para nadar numa piscina de
hotel. Nos meses de verão, eles sempre tiravam um dia para passear em
Coney Island.
Os três só saíram de Nova Iorque uma vez. Foram férias de uma semana
em São Francisco, possibilitadas por um presente em dinheiro dos pais de
Lydia. Jamsie nunca se esqueceu dos passeios daquela viagem com seu pai,
das refeições no Fisherman’s Wharf e do dia em que eles visitaram o Parque
Nacional Pinnacles.
Conforme o tempo passava, Jamsie ia conhecendo a Costa Oeste, e
acabou por gostar de sua mistura étnica, seus cheiros, sons e paisagens. De
manhã ele pegava o ônibus para a escola e passava por apartamentos onde
as pessoas ainda dormiam, via todas aquelas escadas de incêndio e as
janelas de onde pendiam montes de roupas de cama. Ao caminhar de volta
para casa, seus ouvidos se enchiam com a miscelânea de dialetos utilizados
pelos vendedores ambulantes em suas carroças e donos de vendas –
toscano, sérvio, iídiche, ruteno, siciliano, croata, cretão, macedônio.
Jamsie estava com dez anos quando seus pais começaram a notar um
problema que o acometia de tempos em tempos. Às vezes, em meio à
bagunça dos santinhos de gesso, panelas de latão, roupas de segunda mão,
cigarrilhas dos Bálcãs, mezuzás, e outras bugigangas que abarrotavam as
janelas das lojas, Jamsie captava o olhar do que ele dizia ser “uma cara
estranha” ou “um sujeito de cara engraçada”. Ele era então tomado por um
medo violento e literalmente voava para casa, ofuscado pelo pânico. Ele
costumava chegar em casa pálido e tremendo ao lado de Lydia. Ela sempre
entendia o que havia se passado – ou Jamsie assim achava – e conseguia
acalmá-lo e aplacar seus medos.
Conforme ele foi crescendo, os incidentes com a “cara engraçada” foram
se tornando raros, mas eles nunca desapareceram por completo. Quando
criança, ele nunca pôde descrever aquele “rosto” para seus pais. Eles,
sabiamente, nunca insistiram pedindo detalhes. Mas pelo que puderam
entender, parecia que o terror da criança era causado, não por uma feiura
particular no “rosto”, mas sobretudo por conta da curiosa convicção de que
aquele “rosto” o conhecia pessoalmente. “Ele fica me olhando, e ele me
conhece. Ele me conhece!”, costumava dizer, aos soluços, para sua mãe.
Pouco a pouco Jamsie foi estabelecendo sua própria geografia pela
cidade. Ele fez alguns amigos entre os húngaros que viviam entre a 82nd e a
73rd Street. Seu pai tinha alguns parentes distantes morando ali; e, cerca de
uma vez por mês, Jamsie os visitava e era alimentado à base de patê de
fígado de ganso, repolho recheado e frango com páprica. Ele pulava a
vizinhança dos Bohunks (tchecos e eslovacos), que moravam logo abaixo
dos húngaros. Pois era mais abaixo, naquela mesma Lexington Avenue,
entre a 30th e a 22nd Street, em meio aos armênios, e com os gregos na 30 e
40 West, que ele se sentia em casa. Ele falava um pouco das duas línguas.
Seus amigos de infância estavam ali, e ele nunca sentia medo quando em
meio aos gregos e armênios. Ele nunca via aquele “rosto esquisito” quando
estava entre eles.
No final da primavera de 1937, quando Jamsie tinha quatorze anos de
idade, Ara tomou uma importante decisão que acabou para sempre com os
dias felizes da infância de Jamsie. Ara não estava ganhando dinheiro o
bastante como carpinteiro, de modo que utilizou aquela recomendação
antiga, que ele ainda guardava consigo, para falar com o dono da frota de
táxis. Pouco tempo depois ele se tornou um dos cerca de 25 mil taxistas
licenciados na cidade. Ele dirigia um Y-Model Checker com dois anos de
uso, para a Burmalee System, Inc. Jamsie ficou muito orgulhoso, de início,
com o táxi de seu pai, com seu teto prateado e a faixa xadrez percorrendo a
lateral da carroceria amarela.
Ara trabalhava por um período de 12 horas, dirigindo aproximadamente
80 quilômetros por dia e servindo entre 12 e 15 chamados. Num bom dia
ele conseguia trazer $3.00 para casa pelas corridas e $1.25 em gorjetas. Não
era suficiente. O fato de ficar constantemente sentado ao volante, além das
guerras constantes com os policiais de Nova Iorque, que estavam se
esforçando para eliminar táxis, o cansaço ao fim de cada dia, os ganhos
módicos conseguidos com todo esse labor, tudo isso produziu uma mudança
em Ara que o distanciou de Lydia e assustou Jamsie.
Ele não tocava mais clarinete para eles à note; Ara trancou seu “taco
velho”, como ele o chamava, numa gaveta do escritório. Não havia mais
saídas em família. Ao invés das partidas ocasionais de cartas com amigos,
ele ficava fora de casa até tarde bebendo com outros taxistas. Ele
desenvolveu uma úlcera, passou duas semanas no hospital com um
problema nos rins em novembro de 1938, e teve um problema de coluna no
final daquele mesmo ano.
Por algum tempo, Jamsie só foi capaz de perceber esse novo estado pelo
linguajar de seu pai, mais grosseiro; “palooka” (uma tarifa baixa), “agente
alto” (uma corrida cara), “rasgão” (corridas a mais de $2) entre outras novas
expressões de seu pai. Mas as coisas pioraram. De início, Jamsie e Lydia
começaram a acompanhar Ara em turnos nas suas longas jornadas no táxi.
Quando Lydia começou a achar que Ara havia caído no dinheiro fácil do
lenocínio ocasional, conduzindo clientes de fora da cidade para hotéis e
salões em troca de uma porcentagem da “paga”, ela proibiu Jamsie de
acompanhar Ara nas noites. Mas Jamsie, agora um rapaz muito obstinado,
desobedecia.
Vez ou outra, sentado ao lado de Ara em seu táxi, Jamsie ficava
impressionado por certos traços no rosto de seu pai. Certa vez, quando ele
estava no táxi, tarde da noite, e seu pai batia papo no meio fio com um
cafetão e duas de suas garotas, Jamsie pensou ter visto esse mesmo traço
em todos os quatros rostos, ao rirem juntos de uma piada.
O “olhar” não o assustava, mas lhe causava repulsa, ao mesmo tempo em
que o fascinava. Conforme o tempo passou, Jamsie passou a buscá- -lo
deliberadamente. Ele descobriu, contudo, que só podia percebê-lo quando
não estava buscando por ele. Expressão esquiva, não era possível dominá-la
ou capturá-la.
Por vezes esse “olhar” adquiria uma terrível intensidade. Dois incidentes
ocorridos em 1938 ficaram gravados na memória de Jamsie e ilustram esse
caráter.
Ele, seu pai e alguns amigos partiram para ver os Brooklyn Dodgers
jogarem. Johnny Vander Meer, do Cincinnati Reds, estava fazendo história
no baseball ao vencer seu segundo jogo sucessivo por um no-hit no-run.
Próximo ao final do jogo, Jamsie gritava como todos os outros e olhava ao
redor para a multidão excitada. E, do interior daquelas faces, saltou sobre
ele aquela “cara esquisita”. Ela o observava. Ela sabia, ele pensou. Ele ficou
paralisado, em silêncio, e desviou seu olhar, em pânico. Ao olhar de soslaio
uma vez mais para o mesmo ponto, ela já havia partido. Tudo o que podia
ver eram os torcedores gritando e pulando.
Exatamente uma semana mais tarde Jamsie estava sentado com Ara no
táxi, tarde da noite, ouvindo a luta entre Joe Louis e Max Schmelling.
Conforme a peleja chegava em seu clímax, o rosto de Ara se contorcia mais
e mais. Nos últimos momentos que conduziram à vitória de Louis, Jamsie
viu, no rosto de seu pai, uma expressão muito intensa, que logo evoluiu até
aquele “olhar estranho”. Havia algo de desumano nele, uma vez mais; e ele
não conseguia captar nenhum traço do que ele sempre associara com o rosto
de seu pai amado. A cada golpe de Louis em Schmelling, e conforme
crescia a excitação na voz do narrador, o “olhar” ficava mais aparente no
rosto de Ara. Ao soar do gongo, na vitória de Louis, a tensão se desfez. O
estranho olhar desapareceu rapidamente, e Ara voltou ao normal. Mas
Jamsie não pôde esquecer aquele incidente.
Conforme passou o tempo, seu medo daquele “olhar” começou a
diminuir, mas a curiosidade aumentava. O que era aquilo? E como pode ser
que ele o tenha visto no jogo de baseball e depois no rosto de seu próprio
pai, desmanchando a doçura e o amor que Jamsie reconhecera durante toda
sua vida até ali? E que relação havia entre tudo aquilo e o “olhar” ou o
“rosto esquisito” que ele costumava ver quando criança?
Àquela época a família tocava o mais baixo de sua fortuna e bem- -estar.
Ara passava por um sério problema com o álcool, e quanto mais ele bebia,
menos dinheiro trazia para casa. Lydia, de início inquieta com as
necessidades da casa, acabou por fechar-se em si mesma, recalcada e
melancólica. Seu filho começava a crescer. Ela começou a se sentir distante
dele e de Ara.
Jamsie já havia sido contratado como contínuo na NBC. Ele deixou a
escola para assumir o cargo, em parte para trazer mais dinheiro para a casa,
em parte com a intenção de seguir uma carreira no rádio. Nos primeiros
dias do rádio, a NBC contratava jovens rapazes como contínuos para um
contrato de aprendiz de dois anos, graduando-os a seguir como guias,
treinando-os mais tarde em algum setor do fecundo meio radiofônico.
Na família as coisas iam de mal a pior. Não havia mais comida suficiente
em casa. Lydia estava sempre com o aluguel atrasado. Então, sem que
Jamsie soubesse mas com o consentimento de Ara, Lydia tomou uma
decisão. Jamsie descobriu, tarde numa noite de março, quando ele voltou
para casa do trabalho às 11h da noite.
Em casa, para a sua surpresa, ele encontrou sua mãe vestida em suas
melhores roupas. Seu rosto tinha maquiagem pesada. Ela estava sentada na
sala de estar, olhando pela janela silenciosamente. Ao chegar, ela não se
virou nem lhe disse uma só palavra, mas Jamsie sabia que ela tinha algo a
lhe dizer. Enquanto ele esperava, seus olhos foram atraídos na direção do
velho ícone pendurado na parede, logo atrás de Lydia. Ela havia coberto a
imagem com um tecido preto. Ele caminhou com o olhar, do ícone para sua
mãe e de volta ao ícone, por diversas vezes, até entender que ela iria se
tornar uma das prostitutas que ele vira seu pai introduzir aos clientes.
Lydia então se levantou como se tivesse ouvido os pensamentos de seu
filho. Ela entendeu que ele sabia o que estava acontecendo. “Chegarei tarde
hoje, Jamsie. Não me espere acordado”. Ele não disse nada.
Quando ela partiu, Jamsie sentou-se, e ficou ali, pensando, durante cerca
de duas horas. Ele sabia sem nenhuma dúvida o que sua mãe tinha em
mente. Estava escrito nela mesma. Mas havia algo mais que ele agora sabia:
embora ele estivesse sozinho em casa, já que seu pai e sua mãe estavam
fora, ele tinha a estranha sensação de estar na companhia de alguém.
Finalmente ele olhou ao seu redor, contemplando a sala de estar, e enfim
olhou a cidade pela janela.
Ao deitar-se para dormir, ele ainda se sentia abandonado por seus pais,
mas alimentava um segredo dentro de si que ainda não conseguia entender.
Lydia tornou-se uma entre 5.000 prostitutas da cidade de Nova Iorque.
Após algumas semanas trabalhando como uma “loba-solitária”, ela
conseguiu entrar para a lista de um salão de encontros na 40 West. Jamsie
acabou por aprender sua rotina. Ela dormia durante o dia, acordava por
volta das 5h da tarde. Se até as 10h da noite não houvesse ligações para ela
vindas de sua cafetina, ela saia para a noite. Lydia trabalhava na Madison e
na Quinta Avenidas, entre a 43rd e a 56th Streets. Ela passava nos melhores
bares, caminhava em frentes às lojas fazendo um óbvio “banho de vitrines”
só em busca de clientes. Por vezes ela ligava para algum cliente. Ela
trabalhava desse modo até o amanhecer. E então voltava para dormir.
Após alguns meses ela se tornou membro do salão Polly Adler no Central
Park West. Naquele período, também, ela havia estabelecido sua própria
lista de clientes pessoais para os quais ela ligava regularmente. Quando a
Polly Adler passava por problemas com as autoridades, Lydia simplesmente
transferia seus clientes fiéis a alguma outra casa na West 50s.
Ao acordar todas as manhãs e olhar para sua mãe antes dela partir, Jamsie
começou a perceber que a expressão em seu rosto mudava ao longo dos
meses. Em lugar do olhar que ele sempre pudera ver, Jamsie encontrava
agora diversos traços daquela “cara esquisita”, o terror de sua infância. Mas
agora ele não tinha medo. Ao contrário, ele começava a sentir uma estranha
afinidade por aquele olhar.
Passado algum tempo, Lydia notou a diferença no trato com Jamsie, e
eles estabeleceram um novo tipo de respeito um para com o outro.
Enquanto isso, Ara, ainda dirigindo para a Burmalee System, Inc., tentou
estrear como dirigente de jogos de dados na 49th Street e região da
Broadway. Mas o território já estava controlado, e os donos da área o
fizeram entender, de um modo nada indireto, que ali não haveria lugar para
ele. Ele então passou a investir pesado no jogo dos números 3 e nas apostas
ilegais em cavalos. Naquele tempo, cerca de um milhão de apostas ilegais
eram feitas todos os dias em Nova Iorque. Havia muito dinheiro a ser
ganho. Como agente do jogo dos números, ele ficava com 10% do montante
de cada aposta passada ao coletor. Depois de algum tempo ele próprio virou
coletor, entregando as apostas num banco central.
Finalmente Ara encontrou uma fonte de dinheiro fácil no tráfico de
drogas. Havia entre 20 e 25 mil viciados em heroína em Nova Iorque nos
anos 1930; e os antros de ópio floresciam na Mott e na Pell Streets, assim
como no Harlem, Times Square, e San Juan Hill. A heroína diluída era
vendida por entre $16 e $20 uma onça. 4 Um “brinquedo”, ou uma latinha
de ópio, era vendido por cerca de $10 na rua. Baseados chegavam a 50
centavos cada, ou dois por 25 centavos no Harlem. No começo Ara
simplesmente comprava baseados no Harlem e os revendia no centro da
cidade com algum lucro. Depois ele virou vapor, transportando pequenos
pacotes amarrados entre suas axilas. Houve períodos, durante esses meses,
em que Ara – e, menos freqüentemente, Lydia – ficavam tão mudados em
seus rostos, e tão “estranhos” em sua expressão aos olhos de Jamsie que
alguns de seus velhos medos ressurgiam momentaneamente.
Ara começou a criar uma clientela em torno de si e ganhar algum
dinheiro no tráfico de narcóticos quando ele subitamente começou a ter
crises nervosas. Ele ficou magro, esquelético. Seus humores eram
incontroláveis quando ele tinha ataques de raiva ou depressão.
Certa vez, numa tarde chuvosa de sexta-feira em dezembro de 1939, Ara
chegou em casa encharcado. Ele estivera acordado por três dias e três
noites. Seus dentes tremiam. Ele bebia mais do que de hábito. Ele tossiu
sangue durante a noite. Na manhã seguinte, Lydia não voltou para casa, e
Ara estava com uma febre alta. Toda a tensão dos últimos sete anos eclodiu
repentinamente.
Jamsie acabou por ligar para o velho Dr. Schumbard. Ele disse que Ara
estava morrendo de tuberculose. Ara recusou-se a ir ao hospital. Não havia
nada que Jamsie pudesse fazer.
Os dias seguintes foram um pesadelo. Lydia não voltou para casa durante
todo o fim de semana. A febre de Ara não baixava. Ele delirava com
freqüência e bebia quando não delirava. Jamsie finalmente saiu para
vasculhar em todos os antros até finalmente encontrar sua mãe. Juntos, eles
velaram ao lado de Ara, esperando por seu fim.
Numa tarde, sentado ao lado da cama de Ara, depois de Lydia ter saído
por um tempo, Jamsie teve novamente o sentimento de que alguém estava
perto dele. Não era algo incômodo, e de modo algum assustador. Ele se
lembra desse sentimento como algo mais ou menos aprazível, como se um
amigo ou confidente viesse estar com ele quando ele não podia contar com
mais ninguém. A sensação não durou o tempo todo, e variava em
intensidade.
Cerca de oito dias após o colapso, Ara subitamente sentou-se na cama
numa manhã e começou a gritar a plenos pulmões: “Eu quero meu velho
taco! Vocês ouviram?! Todos vocês! Meu velho taco. Só mais umas frases
animadas! Quero meu taco velho!”. Sua face estava imersa naquele “olhar”.
Jamsie e Lydia tentaram contê-lo, mas Ara lutou contra eles. Ele saiu da
cama aos tropeços, seu pijama manchado de sangue, foi mancando até à
sala de estar, destrancou a gaveta na qual ele escondera seu clarinete. Ele o
tirou da caixa e atarraxou o barrilete.
“Só mais uma sopradinha antes de eu bater as botas, hein?!”, gritou Ara,
salivando pelos cantos da boca. As tarrachas prateadas da clarineta
refletiam a luz do sol.
“Meu taco velho!”, Jamsie ouviu-o murmurar.
Ara soprou umas notas sem muita segurança, arriscou algumas escalas,
passou para alguns compassos no registro agudo, depois no grave,
ganhando em riqueza de tom e segurança.
Ara começou a tocar um pouco de blues ad lib diante de Jamsie e Lydia
que lhe assistiam. Ele caminhava desajeitadamente pela sala, tropeçando no
carpete, batendo contra os móveis. Pausou por um momento em frente ao
bilhete escrito à mão por Lydia e gargalhou diante dele. E então, voltando a
tocar, ele vagueou mais um pouco, retornando ao mesmo lugar, e olhado
para o velho ícone, ainda coberto por um tecido preto. Sua face ficou séria.
Houve silêncio por um segundo. Jamsie se lembra de ter segurado a mão de
sua mãe, os dois angustiados ao observarem Ara.
Ara então tocou os primeiros compassos de um velho hino armênio para
a Virgem. De repente ele começou a pender para frente e para trás. Lydia e
Jamsie correram para ajudá-lo, mas foi tarde demais. Interrompendo sua
canção ao meio, ele se dobrou sobre si, tossiu violentamente e caiu para
frente, tentando agarrar-se ao ar. Suas mãos apanharam o tecido negro sobre
o ícone, que caiu de sobre a imagem, pousando sobre Ara.
Quando eles o alcançaram, ele lá estava caído de costas, uma mão
agarrando o tecido preto, a outra segurando o clarinete. Acima dele, o ícone
brilhava sob a luz matinal com suas cores douradas, azuis e marrons. Pela
primeira vez em muitos anos, Jamsie olhou para os serenos olhos da
virgem.
Ele então contemplou o rosto de Ara, e percebeu que um peso foi tirado
de cima de seu pai. Com a morte, o “olhar” havia partido. Os traços de Ara
retornaram a algo parecido com o que eles haviam sido três anos antes.
Jamsie nunca esqueceu aquela mudança ocorrida com a morte do seu pai.
Ele ainda não podia entender o “olhar”, mas ele estava feliz por Ara, pelo
fato de ele ter partido. Ara foi enterrado em Brooklin’s Greenwood,
repousando com as outras 400 mil pessoas que já lá estavam.
Na semana seguinte Lydia disse para o seu filho que ele, agora, vivia por
sua própria conta. Exceto por duas visitas, Jamsie nunca mais esteve com
ela até a morte dela em 1959. Enquanto ele caminhava pela Broadway
naquele dia de partida, tudo o que ele ouviu foram as palavras de Lydia:
“Você está por sua própria conta, agora”.
A old el 5 fora demolida; e agora eles começavam a construir o metrô da
6th Avenue. Jamsie ficou por um bom tempo a observar os operários. Um
ressentimento transbordante tomou conta dele. Eles estavam gastando $65
milhões naquele metrô, ele lera no jornal. Mas seu próprio pai estava morto,
sua mãe era uma prostituta velha, e ele fora incapaz de mudar qualquer uma
dessas coisas. Nada daquilo fazia sentido.
Um curioso sentimento se formava dentro dele. Sem se mover, sem ver
nada de diferente ou ouvir nenhuma voz etérea, ele sentiu como se uma
alternativa a sua miséria solitária lhe estivesse sendo oferecida. Ele vinha
acompanhado de medo, mas experienciava também a estranha sensação de
uma companhia presente ao seu lado, como na noite em que soube que sua
mãe se tornaria uma prostituta. Ele estava só, mas não realmente só. Ele
sentia profundamente a ausência de seu pai. Ele estava muito apreensivo
quanto ao bem-estar de sua mãe. E no entanto ambos os sentimentos
deslizaram para o fundo de sua mente. À frente, agora, estava aquele
sentimento novo, inquietante mas afinal bem-vindo, de sentir-se desejado,
de não estar totalmente sozinho.
Naquele momento, pela primeira vez, ele teve certeza de que havia, de
fato, uma presença – alguém ou algo presente com ele – e que aceitá- -lo
significava renunciar a qualquer amor genuíno por seu pai e sua mãe tal
como ele o havia entendido durante sua infância e sua primeira juventude.
Em 1940 Jamsie foi promovido a guia na NBC. E então, por convite de
um amigo muito próximo de seu pai, ele foi viver e estudar em Oklahoma
City. O amigo o provia de dinheiro suficiente para seguir cursos de
jornalismo e radiodifusão; ele trabalhava em meio-período para
complementar sua renda.
Os anos em Oklahoma City foram tranquilos para Jamsie. Ali não houve
recorrências do “olhar esquisito”. Raramente tinha a sensação de uma
presença estranha, e fez algumas amizades sólidas.
Jamsie voltou para Nova Iorque em 1946, aos vinte e três anos de idade,
e começou a construir uma carreira no rádio. Fora do trabalho, vivia uma
vida discreta; passava a maior parte de seu tempo em casa ouvindo discos e
lendo, ou passeando pelas ruas do centro da cidade e baixa Manhattan.
Ele sempre guardava a esperança de poder encontrar sua mãe. Ninguém
nos antigos antros em que ela esteve sabia de seu paradeiro ou o que
acontecera com ela. Mais tarde, ele acabou descobrindo por meio de um
antigo amigo de família que ela estava morando em Flushing. Ele esteve
uma vez por lá, para uma longa visita.
Lydia estava num estado bastante deteriorado. Havia ainda um
sentimento profundo entre eles; mas ambos sentiram e decidiram
tacitamente que, exceto em caso de alguma crise pessoal grave, eles só
deveriam se ver raramente. Os encontros eram muito dolorosos.
Ao mesmo tempo, Jamsie estava também envolvido numa busca de tipo
muito diferente. Ao se reinstalar em Nova Iorque, ele captou alguns
vislumbres daquele “olhar” – no metrô, em meio à multidão, em cima dos
letreiros em neon, nos cinemas, e por vezes, tarde da noite, antes de ele ir
para a cama, quando ele ficava olhando as luzes de Manhattan pela janela.
Sentia agora algo novo e reconfortante à sua própria maneira: uma
poderosa convicção de que ele sempre soubera o que “aquilo” era. Seu
antigo medo transformou-se numa sede insaciável de recordar-se. Se ele
pudesse simplesmente lembrar o que era “aquilo”...
Por vezes, em momentos descontraídos, ele parecia estar prestes a
compreender o que “aquilo” era, a lembrar-se do local e do momento em
que lhe contaram sobre aquilo. Ele não conseguia se livrar da idéia de que
“aquilo” já lhe fora explicado.
Mas seus esforços acabavam sempre sendo frustrados. Sempre que os
nomes e lugares estavam a ponto de irromper em sua mente e em seus
lábios algo acontecia dentro dele, e ele perdia o controle sobre seus
pensamentos. Sua frustração com aquela contínua derrota começou a causar
certa raiva.
Jamsie teve um último encontro com Lydia. Ela havia se mudado de
Flushing para a baixa Broadway. Durante essas poucas horas passadas com
ela, toda raiva e frustração se dissiparam. Lydia, vivendo então num
alojamento social de igreja, lhe falava lenta e calmamente sobre seu pai e
seu próprio futuro. Essa foi a última experiência de ternura humana que ele
viria a ter por muitos anos. Mais tarde ele deixou seus dados na
administração e com as autoridades da igreja que ajudavam Lydia,
prometendo mantê-los informados sobre qualquer mudança de seu
endereço. Ele manteve essa promessa.
Foi durante esse período da vida de Jamsie que seus colegas na estação
de rádio começaram a perceber que ele falava sozinho; coisa ainda mais
estranha, ele tinha ocasionais ataques solitários de raiva. É claro que no
momento em que Jamsie se dava conta de que havia outras pessoas
observando, ele se tornava um homem muito amável e sorridente, para
compensar qualquer impressão desagradável que ele pudesse ter passado.
No entanto, por diversas vezes, ele era visto caminhando sozinho nas ruas,
nos corredores da estação de rádio ou parado no banheiro, os olhos
arregalados, as narinas inchadas, mordendo os lábios como se fizesse um
enorme esforço interno para conter suas emoções.
Após dois anos em Nova Iorque, Jamsie foi transferido para Cleveland.
Ali ele teve sua primeira experiência paralisante, coisa que acabou por se
tornar corriqueira em sua vida alguns anos depois.
Certa tarde, ele caminhava pela Euclid Avenue em direção a sua casa. O
dia inteiro sua mente estivera se abrindo e fechando com aquele enigma
incessante: quando e onde ele ouvira falar sobre “aquilo”, sobre aquele
“olhar”? Desde sua chegada em Cleveland, todas as aparições daquele
“olhar” haviam cessado. Mas aquilo só parecia aumentar sua curiosidade e
sua necessidade de conhecer a resposta. Naquela noite, parecia, ele estava
muito perto de se lembrar exatamente.
Enquanto ele caminhava, memórias e palavras começavam a se
encontrar, saindo das escuras profundezas de suas memórias e tomando
forma lentamente. Ele estava prestes a se esticar para pegá-las diante de si,
espiando dentro de si com profunda intensidade. Excitado, ele percebia com
cada vez mais convicção de que aquele era o momento.
De repente, quando ele estava prestes a ver aquelas imagens e dizer
aquelas palavras, todas elas – tal como ele descreve – parecem ter se unido
num movimento longo e veloz, “voando como a luz” pelo topo de sua
cabeça em direção ao céu. Escaparam de novo!
Ele pulava na calçada de frustração, olhando para o céu noturno com
lágrimas nos olhos. E então, quando ele não podia mais ver nada senão
nuvens, ele deu meia-volta e caminhou, abatido, em direção ao pequeno
restaurante no qual ele geralmente jantava.
Diante da porta do restaurante, ele parou, atônito. Aquilo era demais! Lá,
no fundo do salão, entre a multidão de mesas ocupadas por pessoas
conversando, ele viu um rosto com aquele “olhar”. Jamsie atravessou o
restaurante, empurrando os garçons e as mesas. Mas quando chegou no
lugar em que estava o “rosto”, ele encontrou duas pessoas sentadas, um
homem e uma mulher idosos, jantando em total silêncio. Eles o olharam
rápida e desinteressadamente, e continuaram a comer.
Daquele momento em diante, Jamsie ficou convencido de que alguém ou
algo estava brincando de esconde-esconde com ele, mas não conseguia
descobrir como aquilo era feito e nem por quê. Tornou-se freqüente em sua
vida diária que palavras e memórias se comportassem daquele modo,
flutuando e “voando” para fora de sua cabeça. Por vezes ele as via de perfil
contra o céu antes que desaparecessem, bem alto, próximas às nuvens; por
vezes elas subiam tão rápido que ele não podia vê-las de todo.
Durante seguidos anos e diversas estações nas quais ele trabalhou
(Detroit, 1951; Nova Orleans, 1953; Kansas City, 1955; Los Angeles,
1956), a história foi sempre a mesma. Ele tentou uma vez explicar isso tudo
para um psiquiatra em Los Angeles, mas a sessão lhe pareceu improdutiva e
irritante.
Jamsie fez amizade com uma mulher em Kansas City, que poderia ter se
transformado num relacionamento sério. Mas, certa noite, poucas semanas
depois de eles terem começado a se encontrar, Jamsie a tratou com uma
raiva tão incontrolável por conta de uma crise de ciúmes que ela rompeu
com ele naquele instante mesmo.
Logo após um ano de sua transferência para Los Angeles ele teve seu
primeiro encontro face-a-face com a fonte de sua perturbação. Ele vivia em
Alhambra àquela época, e dirigia todos os dias até a estação de rádio.
Numa noite, enquanto dirigia de volta para casa no cair da tarde, Jamsie
sentiu novamente aquela curiosa presença pela quarta vez em sua vida. O
rádio do carro tocava um medley de canções. De repente, enquanto soava
“California, Here I Come!”, as palavras pareciam se emoldurar no céu
diante dele. Ele já vira um monte de coisas malucas como aquela em sua
vida, e enquanto ele pôde ignorá-las, fora possível lidar com aquilo.
“California, Here I Come!” continuava a se projetar diante de Jamsie, ao
que ele desligou o rádio.
E então algo chamou sua atenção pelo espelho retrovisor. Era um rosto.
Como acontecia com diversas das coisas estranhas que seguiam
acontecendo com ele, Jamsie não sentiu nem medo nem surpresa. Ele
parecia estar esperando por aquilo; parecia saber que ele sempre estivera
ali. Os olhos naquele rosto fitavam Jamsie e ele entendeu – sem saber como
– que conhecia o dono deles.
Não houve mais palavras voando ou emolduradas diante dele. Jamsie
desacelerou, esperando o tempo todo em silêncio. Mas não havia nenhum
som e nenhum movimento vindo do banco traseiro.
Ele olhou de novo para o espelho: os olhos grandes, bulbosos, ainda o
encaravam. Ele não conseguia acreditar que eles eram realmente vermelhos.
Devia ser o reflexo das luzes da rua, ele pensou. O rosto tinha um nariz,
orelhas, boca, bochechas, um queixo engraçado, estreito demais se
comparado ao resto da face, uma testa como que abaulada que terminava
numa cabeça algo pontuda. A pele era escura como se por exposição
excessiva ao sol. Ele não conseguia dizer se era uma pele de alguém branco
ou negro.
Mas algo que estava para além do poder daquele rosto o intrigou – a
ausência de algo. O rosto estava certamente vivo – os olhos reluziam e
transmitiam uma expressão quase sorridente. A cabeça se movia
discretamente vez ou outra. Mas faltava algo, algo que ele esperaria de um
rosto, mas que não encontrava naquele.
Ao virar lentamente para entrar na garagem de sua casa, ele ouviu uma
voz, num tom repreensivo e familiar, com um timbre agudo que ele só
esperaria ouvir da boca de um eunuco: “Oh! Por Pete, Jamsie! Pare de agir
como um bobo. Nós estivemos juntos por anos. Não vá dizer que você não
me conhece”.
Jamsie percebeu que aquilo também era, de um modo ou de outro,
verdade: eles estavam juntos já há um bom tempo. Tudo, até mesmo aquela
situação, continha o mesmo sentimento de uma curiosa familiaridade.
Ao parar o carro na garagem, ele ouviu a voz novamente: “Bem, até
mais, Jamsie! Vejo você amanhã. Espere pelo seu Tio Ponto!”.
Jamsie entrou em casa e pensou ter sentido um estranho odor. Naquele
momento ele não o conectou de modo algum com o Tio Ponto. Foi uma
coisa momentânea e ele logo a esqueceu.
Tudo aconteceu numa tarde de segunda-feira. Ele não conseguiu dormir
naquela noite. E, embora, não o soubesse naquele momento, as visitas de
Ponto se multiplicariam rapidamente até que, por seis anos, ele estivesse
lidando com Tio Ponto quase diariamente.
No sábado seguinte Jamsie estava percorrendo um pequeno trajeto de
carro, rumo a Pasadena, quando viu, na janela à sua direita, a cabeça de
Ponto que descia desde o tejadilho. Ele olhava para Jamsie de ponta cabeça
pela janela. Ponto movia sua mão esquerda como se apanhasse uma bola, e
cada um de seus gestos parecia lançar uma palavra, uma frase, ou uma
sentença inteira no céu, onde ela ficava por algum tempo, dispersando-se
em seguida no horizonte.
“BEM-VINDO AO JAMSIE MEU AMIGO!”, dizia uma mensagem. “O
MAIOR FURO NA MENTE!”, trazia uma outra. “PONTO! JAMSIE!
CAMARADAS! ALEGRIA! PASADENA AÍ VAMOS NÓS!”.
E assim por diante. Conforme Ponto lançava cada mensagem no céu, ele
se virava e olhava para Jamsie com um sorriso forçado. Jamsie perdeu a
rota do carro por conta daquela distração, ao que Ponto estalou os dedos em
reprovação e lançou um “DEIXE-ME GUIÁ-LO!” no céu. Ele então
desapareceu.
Aquele foi o extravagante início da participação de Tio Ponto na vida de
Jamsie: Tio Ponto, o espírito que viria a molestá-lo durante anos a fio,
acabaria por reivindicar o status de um “familiar” na vida de Jamsie, e duas
vezes o levaria às beiras do suicídio.
Pouco a pouco Jamsie entendeu qual era a aparência geral de Ponto. Mas
ele nunca o viu por inteiro, dos pés à cabeça, ao mesmo tempo. A face de
Ponto, sua nuca, mãos, pés, olhos, eram todas partes que ele via uma de
cada vez. Aos olhos de Jamsie, de algum modo acostumado previamente
com todos aqueles acontecimentos bizarros, Ponto não era alguém
disforme, embora Jamsie soubesse que ele dificilmente tivesse as formas de
um ser humano normal. E havia também aquela curiosa falta no rosto de
Ponto. Algo estava faltando.
Sua cabeça era grande e pontuda demais, as pálpebras pesadas demais, o
nariz e a boca sempre contorcidas numa expressão que Jamsie não podia
relacionar a nenhuma emoção ou atitude que ele conhecesse. A pele era
clara demais para que ele fosse um negro, escura demais para ser branco,
avermelhada demais para um amarelo, amarelada demais para alguém
bronzeado. Suas mãos pareciam mais garras mecânicas. Seu corpo – visto
sempre em partes – parecia ter a flexibilidade de um gato, e ser mais fino do
que sua enorme cabeça pontuda. Suas pernas eram arqueadas e
desproporcionais – um joelho parecia ser mais alto que o outro. Os pés de
Ponto eram espalmados como os de um pato, e os dedos do pé tinham todos
o mesmo tamanho.
Jamsie tinha certeza de que Ponto não era um humano. Para além disso,
ele não tinha certeza de nada, a não ser que Ponto era real – tão real quanto
qualquer objeto ou pessoa ao seu redor. As coisas que ele fazia eram reais e
concretas. E portanto, para Jamsie, ele tinha de se real. Ao mesmo tempo,
Jamsie seguidas vezes se perguntava por que ele não sentia com medo de
Ponto. E por vezes, de fato, ele se perguntava se Ponto era um espírito ou
um ser vindo de outro planeta. Mas, no começo, cada aparição de Ponto só
fazia incendiar sua curiosidade.
Depois de algum tempo Jamsie se deu conta de que ele podia prever as
aparições de Ponto pelo estranho cheiro que ele havia sentido na primeira
noite; e, quando ele desaparecia, o cheiro perdurava por cerca de uma hora.
Não era um cheiro ruim, como de um esgoto ou de comida estragada. Era
apenas muito forte; havia um traço de almíscar, mas envolto em certa
acidez. Jamsie só conseguia descrevê-lo como “o cheiro que o vermelho
teria, se ele pudesse ter um cheiro”.
Esse odor sempre fazia Jamsie sentir-se a sós com algo de esmagador.
Em outras palavras, o efeito do cheiro não era sentido primeiramente em
seu nariz, mas na mente de Jamsie. Ele não era repulsivo nem atraente, não
era nojento nem fascinante. Ele fazia com que Jamsie se sentisse muito
pequeno e insignificante. E aquilo o incomodava mais do que qualquer
outra coisa.
Até onde ele conseguia calcular, Ponto media cerca de 1,40 metro. No
entanto, sempre em suas visitas, ele parecia ser a imagem refletida de algo
gigantesco pairando acima de Jamsie. E, de algum modo muito confuso, o
cheiro estava ligado intimamente com aquela sensação opressiva. Se Jamsie
sentia-se ameaçado naquele estágio, era por conta dos efeitos daquele odor.
Ao final de suas “visitas”, e logo antes de desaparecer, Ponto costumava
lançar um olhar questionador sobre Jamsie do canto de seu olho, como se
dizendo: “você não vai perguntar nada sobre mim?”; Jamsie, teimoso por
natureza, decidiu não perguntar, e nem mesmo notar esse gesto de Ponto –
tanto quanto ele conseguisse fazê-lo.
Ponto continuou aparecendo nos locais mais inusitados. Desde aquelas
primeiras reprimendas a Jamsie, e com exceção das palavras que ele lançara
no ar, emoldurando-as no horizonte, Ponto nunca disse nada nessas
primeiras visitas. Ele aparecia no banco de trás carro, sentado sobre o
aquecedor da sala de estar, dentro do elevador, balançando sobre um dos
viadutos pelos quais Jamsie passava na auto-estrada, em restaurantes, em
cima de caixas registradoras, sobre a mesa de Jamsie no estúdio, sobre o
estirador, olhando-o de frente na sala de transmissão da rádio.
Ponto empurrava as portas vaivém na direção oposta àquela de Jamsie.
Ele colocava dinheiro no balcão da delicatéssen para pagar pelas suas
compras, rasgava os sacos da lavanderia, abria torneiras, tirava a chave da
ignição do carro, ligava os faróis, e por milhares de outros meios marcava
regularmente – embora, nos primeiros meses de 1958, com pouca
freqüência – a sua presença diante de Jamsie.
Durante os primeiros meses de 1958 Ponto não interferiu no trabalho de
Jamsie, raramente aparecia em seu apartamento, e nunca o incomodava à
noite. De fato, Jamsie descobriu que podia dormir a noite inteira sem ser
perturbado. Ele tinha a sensação de que Ponto estava em algum lugar
próximo, observando-o – talvez vigiando-o; não sabia qual dos dois. Depois
de algum tempo, as palhaçadas começaram a deixar Jamsie exausto,
testando sua paciência e autocontrole muito a fundo. Jamsie ficou
convencido de que havia visto Ponto em algum outro lugar, ou que havia
conhecido alguém muito parecido com Ponto nos anos anteriores, embora
ele certamente não pudesse esquecer uma figura tão estranha quanto aquele
sujeitinho!
Finalmente Jamsie perdeu a paciência, e sua curiosidade – certamente
compreensível sob circunstâncias tão fantásticas – o levou a cometer seu
maior erro com Ponto. Ele cedeu a um impulso, certo dia, e perguntou para
Ponto o que é que ele queria. Ponto, naquele momento preciso, balançava a
luminária do escritório de Jamsie para frente e para trás.
“Oh, apenas estar com você, Jamsie! Eu pensei que você não iria
perguntar nunca! Na verdade, eu quero ser seu amigo. Você já conheceu
alguém tão fiel e presente em sua vida quanto eu?”.
E desapareceu no nada.
A inocente questão de Jamsie abriu as comportas de um dilúvio. Ele se
tornou objeto de uma contínua investida de Ponto, sem trégua por alguns
anos.
Ponto começava a falar no momento em que Jamsie saía do apartamento
para dirigir até o trabalho. A maior parte de sua conversação era inofensiva
e fútil, por vezes involuntariamente engraçada, no mais das vezes ridícula, e
muito freqüentemente de um caráter que causava nojo em Jamsie.
Durante um bom tempo Jamsie manteve o controle da situação; mas
perdeu a paciência com Ponto pela primeira vez quando ele salpicou uma
de suas conversas com observações escarnecedoras sobre Lydia e
comentários vulgares sobre as hienas fêmeas. Jamsie espumava de raiva de
Ponto, dizendo-lhe, com uma série de insultos e blasfêmias, que deixasse
sua mãe de fora da conversa e dar o fora dali.
“Ok, Jamsie. Ok!”. Disse Ponto resignado. “Ok. Como você quiser. Mas
nós pertencemos um ao outro”. Ele desapareceu.
Aquela experiência deixou Jamsie tremendo de raiva. Mas, após algumas
horas, ele se reintegrou no mundo normal de seu trabalho, e, pensando com
mais calma, ele começou a se perguntar a si próprio se ele não estaria a
imaginar tudo aquilo. Ele estava sentado diante de seu microfone,
esperando pelo fim de um anúncio publicitário e o sinal de seu engenheiro
de som para retomar a transmissão.
Como que respondendo a seus pensamentos internos, Ponto apareceu e
começou a emplacar pequenas palavras sobre a lousa que o engenheiro
utilizava para passar mensagens em silêncio para Jamsie quando ele estava
no ar. “PERDOADO!”, dizia. “VOLTAMOS LOGO! AGÜENTE MAIS
UM POUCO, AMIGO!”. Contra sua própria vontade, Jamsie viu o humor
ambíguo daquela situação toda – embora duvidasse que Ponto fosse
suficientemente inteligente para ser tão engraçado de propósito. Ponto
estava fazendo simplesmente o que lhe vinha naturalmente. Jamsie viu-se
sorrindo para o engenheiro, que, tomado de surpresa por aquela
demonstração de afabilidade, sorriu de volta timidamente.
As conversas de Ponto, exceto por alguns pedaços soltos que me foram
ditados por Jamsie, escapam à sua memória agora. Elas eram quase sempre
inconseqüentes e só por vezes irritantes ao ponto de fazer com que Jamsie
caísse num surto de raiva. Mas, como ele respondia a Ponto às vezes ou
fazia comentários sobre seu comportamento – sempre com uma voz muito
contida – as pessoas na estação de rádio aceitaram o fato de que Jamsie Z.
“fala sozinho com freqüência” e, como alguém colocou, “é meio lunático
em certos pontos – mas quem não é?”.
A despeito de tudo isso, as coisas iam bem na carreira de Jamsie. De fato,
ele era um bom apresentador e sua audiência era alta.
Em agosto de 1959, Jamsie recebeu a notícia de que Lydia morrera
dormindo. Ele retornou para Nova Iorque e ali ficou por alguns dias para
cuidar do caso. Lydia fizera um testamento segundo o qual Jamsie, único
herdeiro, receberia dois bens: o velho ícone e o bilhete escrito à mão sobre a
oferta de George Whitney de 204 dólares pela U.S. Steel. Jamsie os levou
ambos para Los Angeles e os colocou num armário dentro do qual Ponto
costumava se acomodar. Ponto fez uma objeção muito forte quanto ao
ícone, mas Jamsie foi intransigente.
“Ok, amigo. Ok, ok.”, disse Ponto. “Mas um dia a gente vai se livrar
desse lixo inútil, não vai, chapa?”.
No outono de 1960 Jamsie recebeu a oferta de uma emissora de rádio em
São Francisco e a aceitou. Ele se mudou de Los Angeles, e depois de se
instalar em seu novo apartamento, Jamsie combinou de encontrar seu novo
chefe.
“Jamsie, a hora de tomar uma decisão está se aproximando”. Ponto, é
claro, viera para São Francisco. Ele estava pendulando, naquele momento,
sobre a saída de incêndio no exterior do apartamento, e falava pela janela.
Jamsie não disse nada.
“Jamsie! Prometa para mim! Sem sexo e sem birita! Ouviu? Jamsie!
Prometa para o seu velho Tio Ponto. Vamos, chapa, prometa!”.
Curiosamente Jamsie nunca mais tocara uma mulher desde seus dias em
Cleveland. De algum modo era como se todo desejo o tivesse deixado desde
aquela primeira experiência de palavras que escapavam como focos de luz
por sua cabeça.
“Na verdade”, Ponto deu uma risadinha ridícula, “eu não espero muito
problema vindo de você quanto a isso. Hi hiii!”.
Jamsie olhou para ele por um segundo, e continuou com seus
preparativos para sair.
Foi no que Ponto disse a seguir que Jamsie pôde captar a estranha nota de
urgência que por vezes transbordava naquela sua voz de eunuco.
“Veja, todos nós temos que ter o nosso lugar, ouviu? E eu não posso
aparecer com tanta freqüência quanto eu gostaria, e com a mesma
freqüência que eu aparecia no passado. Eu tenho meus patrões, também,
sabe. Você pode não acreditar, mas eu tenho”.
No caminho para a rádio, Ponto, de carona no banco de trás, parecia
tomado por um surto de histeria. Ele falava cada vez mais rápido e de uma
forma cada vez pior. Finalmente nada do que ele dizia fazia nenhum
sentido. Ele tagarelava sobre lasers, frangos assados, whisky e a lua. Jamsie
só guardou frases como “Júpiter roda a cada 9 horas e 55 minutos”.
“Carícias no carro, masturbação e boas notas”. “Viva a Golden Gate, mas
não vá perto da água!”; “Seu ânimo racha”.
Jamsie estacionou, saiu do carro e começou a caminhar até a entrada da
rádio. Ponto seguiu com ele, murmurando incoerentemente durante todo o
caminho. Jamsie soou a campainha do portão frontal, mas ninguém
respondeu. Ele caminhou até os fundos. Ponto ainda falava das suas
palavras completamente sem sentido. Jamsie tentou abrir a porta dos
fundos. Estava atrancada. Ele estava prestes a voltar para a frente quando,
subitamente, fez-se silêncio. Ponto desaparecera. Olhando em retrospecto,
Jamsie agora está certo de que toda desaparição repentina de Ponto
significava a aproximação de alguém que Ponto temia.
“Você está procurando por alguém?”. Um homem calvo com seus
cinqüenta e poucos anos, alto, magro, usando óculos sem aro, havia saído
por uma porta lateral que Jamsie não notara antes, e ficou olhando para ele
com a cabeça inclinada para um lado.
“Eu vim trabalhar aqui”, Jamsie respondeu com tranquilidade. “Estou
procurando o gerente da rádio”.
“Você deve ser Jamsie Z.”, disse o homem. “Eu sou o gerente da rádio.
Beedem é meu nome. Jay Beedem”.
Jamsie apertou sua mão e reparou em seu rosto. Ele pensou por um
segundo já tê-lo visto antes, mas não conseguia saber onde.
“Entre, vamos nos conhecer melhor”.
Sentados um diante do outro no escritório de Beedem, Jamsie examinou
seu novo chefe, tentando categorizá-lo. Enquanto isso Beedem colocou
algumas questões para Jamsie e em seguida prosseguiu com uma explicação
sobre seu futuro trabalho na estação. Ele era claramente um homem de
muito rigor, e o esmero com sua aparência era tanto que quase chegava a ser
um defeito – uma cabeça calva brilhante, os cabelos laterais
cuidadosamente arrumados, roupas imaculadamente limpas e de muito bom
gosto, gestos ligeiramente afetados, bons dentes, mãos masculinas com
unhas tratadas em manicure. Seu rosto tinha um formato oval, com poucas
rugas para sua idade. Mas seus olhos e boca chamaram particularmente a
atenção de Jamsie.
Após cerca de quinze minutos de conversa, Jamsie concluiu que os olhos
de seu chefe estavam completamente fechados para ele. Jay Beedem ria,
observava, comunicava significados e o questionava com seus olhos, mas
tudo isso parecia revelar tanto quanto as imagens correndo numa tela de
cinema. Não havia nenhum sentimento ali, pensou Jamsie consigo mesmo.
Nenhum sentimento verdadeiro. Pelo menos eu não vejo nenhum. Cada
sorriso e risada estavam somente na boca de Beedem. Ele não parecia estar
realmente sorrindo e nem rindo.
Até hoje, Jamsie não chegou a nenhuma resposta satisfatória a respeito
de Jay Beedem. Olhando em retrospecto, ele ainda diria que aquela vaga
impressão de já ter visto seu rosto antes de conhecê-lo face a face vinha dos
traços daquele “cara esquisita” que se fazia refletir no rosto de Beedem. De
fato, um importante elemento desse exorcismo, gravado em fita, tem a ver
com a estranha face de Beedem e o “olhar”.
Ponto sempre se ocultava quando Beedem estava com Jamsie. E sempre
que Jamsie se aproximava de Beedem para uma conversa, ou então para
pedir ajuda ou encorajamento, ele saía do encontro tão atormentado quanto
nos piores momentos em companhia de Ponto. A tônica desse sentimento
de tormento era o pânico; pânico de se encontrar numa armadilha, de ser
traído.
Ainda que se trate apenas de especulação, pode-se ver em Jay Beedem
um ótimo caso de possessão perfeita, alguém que em algum momento de
sua carreira tomou a decisão clara e definitiva de aceitar a possessão, e que
nunca voltou atrás nessa decisão de nenhum modo, submetendo-se ao total
controle de um espírito maligno. Foi com base nessa suspeita que, durante o
exorcismo, Pe. Mark sentiu que deveria tentar entender se havia alguma
relação entre Beedem e Ponto que fosse prejudicial para Jamsie.
Mas quando Jamsie deixou Beedem naquele primeiro dia, todos os
problemas sobre os quais ele ainda especula hoje em dia só existiam no
futuro. Durante os dias e semanas seguintes ele se estabeleceu com muita
facilidade em sua rotina diária. Amava São Francisco e gostava de seu novo
posto. Ele se deu bem com seus colegas de trabalho; eles respeitavam suas
habilidades e ele nunca os decepcionou profissionalmente. Ele tinha uma
agradável relação com Cloyd, seu produtor, e com Lila Wood, a repórter-
chefe da equipe de Cloyd. Com Jay Beedem suas relações eram corretas e
formais. Mas Beedem escondia cada vez menos, com o passar do tempo,
seu descontentamento crescente e preocupação com as peculiaridades de
Jamsie.
Seus colegas, notando o mal-estar entre os dois, julgaram que se tratava
de uma diferença de temperamento entre ambos: eles só não se davam
muito bem um com o outro. Todo mundo perdoava com facilidade as
idiossincrasias de Jamsie, pois ele desenvolvera todo um estilo próprio de
transmissão radiofônica, “e aquilo era bom para os negócios”. Jamsie não
levou muito tempo para reconhecer que ele devia muito daquilo a Ponto.
Tio Ponto ficava rodando em volta dele no estúdio dizendo coisas
irrelevantes que só Jamsie podia ouvir. Ele produzia estatísticas, figuras,
fatos, e dados que Jamsie incorporava automaticamente em suas falas na
transmissão, em meio a um incrível fluxo de gracejos. Era brilhante,
divertido, uma conversa alegre, repleta de irrelevâncias acerca disso, aquilo
e mais aquilo outro, tudo amarrado num mesmo discurso por “mas”, “ao
passo que”, “lembrando que”, e “como disse a atriz ao bispo” 6 e “deixe-me
contar uma coisa antes que você se esqueça completamente que eu existo”,
até que, depois de cerca de uns três minutos, ele lançava um slogan sobre
um produto que os patrocinava, uma partida que ele estava narrando ou
alguma notícia nacional que a estação queria enfatizar. Esse estilo se tornou
sua assinatura, muito conhecida e valorizada no ar. Nos primeiros meses em
São Francisco, portanto, Jamsie valorizava, em segredo, a presença de
Ponto.
Foi só depois de um longo período que ele viu o primeiro sinal de
problema. Voltando para casa certa noite, Ponto, no banco de trás do carro,
disse: “Jamsie, vamos nos casar”.
Tomando isso como apenas mais uma das frases sem sentido de Ponto –
das quais havia um montão naqueles dias – Jamsie pensou que Ponto
mudaria de assunto se ele simplesmente ficasse calado. Mas Ponto estava
falando sério, e ele o disse.
“Jamsie! Estou falando sério. Vamos nos casar”.
Jamsie sentiu um arrepio nos braços e pernas. Pela primeira vez, Jamsie
começou a sentir medo de verdade de Ponto. Continuou dirigindo em
silêncio, mas sua mente agora estava tomada de apreensão.
No dia seguinte, no café da estação de rádio, Lila Wood, repórter de
Cloyd, sentou-se à mesa com Jamsie. Lila, como os outros, notara a
profunda depressão de Jamsie naquele dia. Mas, como ela diz, sentiu
também uma ponta de medo correndo dentro dele.
Evitando tratar diretamente do problema de Jamsie, ela disse
despretensiosamente, ao se levantar depois do almoço: “Quer comer um
bife comigo e um amigo hoje à noite?”.
Era a primeira vez desde há muito tempo que alguém se aproximava dele
de modo tão casual. Ele se acostumara com pessoas evitando-o socialmente.
Ele olhou para Lila incrédulo. Mas Lila soube como lidar com a situação.
“Ok”, ela disse ao partir, sorrindo. “Vejo você às 5h30”.
Jamsie fitou-a. Sua voz, ou algo em sua voz, o afetara. Como ele disse
mais tarde, “era como um breve acorde harmônico, soando em meio aos
berros de 200 gatos brigando e dez britadeiras funcionando ao mesmo
tempo”.
Mas seu devaneio durou muito pouco tempo. A voz de Ponto irrompeu
com aspereza renovada. “Eu ouvi isso tudo. Ouvi tudo. Essa putinha fedida.
Você conhece o amigo dela? Você vai conhecer. Eu conheço! Um porco
calvo. É isso que ele é. Não é nem homem suficiente pra enfiar no meio das
pernas dela”.
Por uns poucos instantes Jamsie sentiu-se imune às colocações corrosivas
de Ponto, e isso foi um grande alívio. Ele simplesmente sorriu. O rosto de
Ponto se contorceu de raiva; ele deu uma espécie de salto para trás e para
cima, e desapareceu.
Imediatamente Jamsie sentiu uma agonia crescer dentro dele. Aquilo era
algo novo, iniciado em alguma parte próxima à cintura, deslocando- -se até
à espinha. Uma pontada de dor tocou seu cóccix, uma outra atravessou seus
testículos, uma terceira atingiu sua coluna vertebral; e de sua nuca ela
pareceu se alastrar em duas direções. Uma das correntes invadiu seus
pulmões. Ele ficou sem ar e teve uma vertigem. Outra corrente atingiu seu
crânio e tomou seu cérebro, como que o comprimindo. Ele permaneceu
sentado por alguns minutos, a mão no queixo, esperando. E passou.
Ao levantar-se, ele ouviu a voz de Ponto. “Vê só, chapa! Vê! Você já
pertence a mim em grande parte. Você vai ver hoje à noite!”. Ponto não
estava visível, mas era possível sentir seu cheiro.
Naquela noite Jamsie foi para casa com Lila. Ela acabara de preparar três
bifes quando seu amigo soou a campainha. Jamsie abriu a porta e deu com
um homem gorducho, completamente careca, cujos olhos azuis o olhavam
com uma expressão de bom humor.
“Sou o Pe. Mark, amigo de Lila. Você deve ser o Jamsie. Ela me falou
sobre você. Prazer em conhecê-lo”.
Jamsie entendeu, pois, que Lila tinha um motivo oculto para aquele
convite. Antes do fim da noite, Jamsie conversava abertamente o padre.
Mark parecia conhecer tudo sobre o comportamento de Ponto. A única
coisa que ele não sabia era seu nome; e quando Jamsie lhe disse, ele deu
uma risadinha curta e disse: “Bom Deus! Eu pensava já ter ouvido tudo.
Mas – Ponto! Deus!”.
Os dois homens marcaram um encontro para a tarde seguinte. Mark até
mesmo prometeu que faria sua sopa especial de cogumelos, pela qual ele
era famoso entre seus amigos.
Depois daquela sopa de cogumelos servida no jantar, no presbitério onde
morava Mark, Jamsie contou a Mark sua história de vida, sem nada omitir.
Mark ouvia em silêncio, pitando um comprido cachimbo churchwarden que
fedia a alcatrão, e interrompendo vez ou outra para fazer uma pergunta.
Já passava da meia-noite quando Jamsie acabou. Mark pousou seu
cachimbo, refletiu um pouco em silêncio, e olhou para Jamsie meditativo. O
silêncio não era confortável para Jamsie. E então Mark passou a hora
seguinte contando para Jamsie o que ele achava de tudo aquilo.
Jamsie, de acordo com Mark, era alvo das investidas de um espírito
maligno. Havia centenas – e, por tudo o que Mark conhecera, talvez
milhões ou mesmo trilhões – de espíritos diferentes. “Não se contam os
espíritos como se contam os seres humanos”, Mark lhe contou. Ele explicou
que, segundo sua já considerável experiência, parecia que cada tipo de
espírito tinha suas próprias características e técnicas de abordar os
humanos. Contudo, um certo tipo de espírito – um não muito importante –
sempre buscava tornar-se o “familiar” de algum ser humano, homem,
mulher ou criança. Raramente – mas acontecia – um espírito “familiar”
tentava possuir um animal.
O que era um “familiar”? Jamsie quis saber. Mark explicou que a chave
da “familiaridade” que um tal espírito busca obter está no seguinte: a pessoa
em questão consentia num total compartilhamento de sua consciência e de
sua vida pessoal com o espírito.
Mark deu um exemplo: normalmente, quando você está caminhando,
comendo, trabalhando, se lavando, falando, você está consciente de si
mesmo como alguém distinto dos outros. Agora, suponha que você
estivesse consciente de si mesmo e de mais uma outra pessoa o tempo todo,
como gêmeos siameses, mas dentro de sua própria cabeça e consciência. E
suponha que os dois, por assim dizer, compartilhem da sua consciência. É a
sua autoconsciência, e ao mesmo tempo é a consciência desse outro. Ambos
ao mesmo tempo. Não há como separar os dois. Os pensamentos “dele”
usam a sua mente, mas eles não são seus pensamentos, e você sabe disso. A
mesma coisa com a imaginação “dele”. E a vontade “dele” também. E você
está constantemente ciente disso, tanto quanto está consciente de si. Era
dessa familiaridade que Mark estava falando.
Jamsie estava horrorizado. “Meu Deus”, ele disse, “Eu já entrei nessa via,
pelo menos uma parte dela. Eu não sei o que fazer. Eu estou perdido!”.
Mark respondeu ao pânico de Jamsie. Ele não estava perdido. Ele nunca
consentira na possessão completa do espírito “familiar”. Ele apenas fora
invadido, mas sofreria cada vez mis pressão para aceitar a completa
“familiaridade”.
O que poderia acontecer? Jamsie perguntou.
“Você pode se desgastar muito”, disse Mark calmamente. “Você pode ser
tomado, como qualquer um de nós. Você está lidando com uma força mais
poderosa do que você jamais sonharia ser”.
Mark então olhou para Jamsie direto nos olhos e perguntou-lhe
diretamente se ele queria se submeter ao exorcismo.
Estranhamente, Jamsie ficou sem palavras. Ele então perguntou,
lentamente, muito preocupado: “Isso significaria que Ponto não voltaria
nunca mais?”.
Mark disse que, se o exorcismo tivesse êxito, Ponto iria embora para
sempre. Ele prestava atenção em cada movimento e reação de Jamsie. Só
agora ele começava a medir a extensão do poder de Ponto sobre ele.
“Bem”, ele disse finalmente, com um grande esforço em parecer
relaxado, “como vai ser? Você acha que precisamos ir tão longe?”. Ele não
queria deixar Jamsie partir apavorado.
Jamsie estava confuso. As memórias de sua solidão e abandono pelos
pais povoavam sua mente. Será que esse caso com Ponto era tão mal quanto
Mark fazia parecer? Não seria possível manter Ponto a uma certa distância,
e ainda desfrutar do caráter exótico daquela relação? Além disso, será que
ele não perderia um pouco da sua verve como radialista, que era agora seu
grande trunfo?
Mark conversou um pouco com Jamsie sobre isso. Ele serviu mais um
drinque para ambos. Jamsie não estava pronto para aceitar o exorcismo.
Mark teve de esperar por Jamsie.
Num tom muito sério, Mark deu a Jamsie alguns avisos práticos. A
questão principal, ele disse, era como resistir à invasão. “Desfrute – se essa
é a palavra certa”, disse Mark ironicamente – “das palhaçadas de Ponto e
seus estímulos, mas resista à invasão”, insistiu Mark. Por exemplo, se
Jamsie sentisse uma estranha pressão em sua mente, memória e imaginação,
e não conseguisse resistir a ela, ele deveria adotar um truque simples para
contrabalançar a tal “pressão”: pronunciar o nome de Jesus letra por letra,
repetidas vezes. Era esse estratagema que, mais tarde, iria salvar Jamsie do
suicídio na represa.
Quando Jamsie perguntou se ele poderia usar qualquer outro nome, Mark
disse com um riso que ele poderia, mas que veria que só aquele nome era
eficaz. Mark explicou a essência do exorcismo – o que ele significava, e
seus efeitos no possesso. Finalmente ele disse a Jamsie que ligasse para ele:
“De noite ou de dia. Onde quer que eu esteja, onde quer que você estiver, a
qualquer momento, eu virei imediatamente. Mas não adie, se você optar por
fazer o exorcismo”.
Quando Jamsie chegou em casa naquela noite, ele não conseguiu dormir.
Mas Ponto não apareceu.
Cerca de um mês mais tarde, quando Jamsie foi fazer seu checkup
médico anual, o médico disse que tudo estava bem exceto por seu coração.
Ele devia tomar cuidado com emoções excessivas. O médico prescreveu
alguns comprimidos, regulou sua dieta, e perguntou-lhe se ele estava
preocupado com alguma coisa. Havia algo atormentando sua mente? Jamsie
ficou surpreso com a agudeza do médico. Sim, ele admitiu, ele estava muito
preocupado com assuntos pessoais. O médico recomendou que Jamsie
considerasse consultar um psicólogo – simplesmente para conversar sobre a
vida, aliviar um pouco a tensão. Ele deu o nome de um homem que ele
recomendava.
Jamsie pensou no assunto por cerca de uma semana. Ele não podia
aceitar a conclusão de Mark quanto a que Ponto deveria ser expulso – não
porque ele não acreditasse que Ponto fosse um espírito desencarnado, ou
“em todo caso parcialmente desencarnado”, ele pensou com ironia, mas
porque ele não podia encarar a vida do dia a dia sem as perturbações de
Ponto.
Foi então que ele começou a se perguntar por que gostava dessas
perturbações. Talvez porque a possessão de Ponto já estava avançada
demais? Foi o que Mark pensou. Ou porque, como ele preferiu pensar,
Ponto trazia alívio em meio a um horizonte ermo e sem vida – e um
maravilhoso estímulo para seu trabalho? Ou seria essa exatamente a
armadilha que Ponto preparava para ele? Todas as linhas se entrecruzavam
de um modo confuso. E essa confusão só piorou quando ele começou a
nutrir todo tipo de dúvidas sobre o juízo e as intenções de Mark. De todo
modo esses padres estavam sempre procurando converter as pessoas, ele
pensou. E no entanto Mark soava tão sincero... Talvez, no fim das contas,
uma conversa com um bom psicólogo pudesse ser útil.
Durante toda aquela semana, Ponto não apareceu.
Foi enquanto ele se dirigia para seu primeiro encontro com o psicólogo
que Jamsie ouviu Ponto pela primeira vez em oito ou nove dias.
“O cura-cuca é legal, Jamsie. É um bom homem; e você vá e faça o que
ele diz. Mas se você só ouvir a mim e fizer o que eu quiser, não vai precisar
de nenhum cura-cuca”. Jamsie continuou seu caminho mesmo assim.
O psicólogo recomendado pelo médico transferiu Jamsie para um colega
psiquiatra. Jamsie passou mais de 18 meses em terapia, mas os resultados
foram terrivelmente decepcionantes.
O terapeuta começou por avisar Jamsie quanto a que sua condição
psicológica era de fato precária. Ele precisava de um tratamento extensivo.
Mas, depois de cerca de seis meses, ele reverteu seu julgamento. Disse que
não conseguia encontrar nenhum genuíno desequilíbrio psicológico,
nenhuma anormalidade em Jamsie. Todos os relatos de Jamsie sobre Ponto,
disse o terapeuta, eram totais criações, invenções deliberadas. Era tudo um
embuste, e ele não achava aquilo nada engraçado. Jamsie finalmente
persuadiu o homem de que aquilo não era um embuste, e prosseguiu
seriamente com a terapia por mais um ano. Mas finalmente, quando ficou
claro que não havia nenhuma mudança notável para melhor, Jamsie desistiu
da psiquiatria.
Durante esse período de terapia Ponto aparecia regularmente e
comportando-se como de hábito, mas sem nunca afligi-lo realmente. De
fato, Jamsie ficava feliz em ver Ponto. Ele parecia mais real do que o
terapeuta e todas as suas análises. E, como Ponto observou um dia, “Você e
eu, Jamsie, somos um, verdadeira carne e verdadeiro sangue; mas esse cura-
cuca só vive na cabeça dele. Agora, eu pergunto: qual deles você prefere?”.
Chegando ao fim do tratamento de Jamsie com o terapeuta, a impaciência
de Ponto parecia crescente, como se ele tivesse um prazo a cumprir em seu
caso. Cada vez mais, Jamsie achava os pensamentos, reações, sentimentos,
memórias e intenções de Ponto presentes em sua consciência, mesmo
quando Ponto não estava visível. Ele começou a experienciar dois tipos de
pensamentos e sentimentos – os seus próprios e aqueles de Ponto. Ele
sempre sabia qual era qual, mas ele literalmente não tinha nenhuma
privacidade em sua mente.
Surpreendentemente, exceto por um conflito ocasional com Jay Beedem,
que sempre tratou Jamsie com uma pronunciada frieza, tudo continuava
indo muito bem em seu trabalho. Mas em novembro de 1963, interiormente,
a vida de Jamsie começava a se tornar insuportável.
Jamsie se lembra claramente que foi a partir de dezembro de 1963 que
um novo tipo de desespero começou a tomá-lo. Ponto não dava mais folga.
Ele continuava inventando novas palhaçadas e criou o hábito de aparecer no
apartamento de Jamsie ao fim do dia e não desaparecer até que Jamsie fosse
para a cama. Ele tagarelava sem parar, geralmente instando-o a fazer algo:
largar seu emprego, viajar, odiar tal pessoa ou tal coisa – mas, mais
freqüentemente, para que “deixasse Ponto entrar”.
Jamsie se lembra com clareza de um certo incidente. Ele voltara para
casa muito tarde certa noite. Ponto apareceu na mesa de sua sala de estar e
passou cerca de uma hora fazendo malabarismos com palavras, frases e
fragmentos coloridos de som – ou assim parecia para Jamsie – no ar. A
seguir, cada vez mais animado, ele começou a elaborar um cântico que
arranhava os ouvidos de Jamsie, uma espécie de “grunhido ritmado”. Ele
repetia uma mesma palavra diversas vezes com um pequeno grunhido
rítmico a seguir. “Deixe-me entrar”, ele dizia. E então, repetidas vezes:
“Deixa-ha! Deixa-ha! Deixa-ha! Deixa-ha! Entra-há! Entra-há! Entra-há!
Entra-há!”.
Aquelas pulsações em staccato eram uma tortura para Jamsie. Ele
finalmente gritou para que Ponto parasse com aquilo.
Nos meses que se seguiram, Ponto fez reprises desse mesmo tipo de
performance, por vezes semanais. A cada vez, Jamsie explodia em gritos
para fazer calar Ponto. Os vizinhos se queixavam com freqüência do
barulho.
Tarde da noite em dezembro de 1963, depois de ter seus nervos testados
uma vez mais por Ponto, Jamsie mal pôde acreditar quando Ponto se calou.
Ele desfrutou com gosto daquela tão necessária tranquilidade.
Mas ele logo começou a ouvir um novo som. Ele escutava atentamente.
Era possível ouvir claramente a voz de Ponto, mas ela parecia estar envolta
numa babel de outras vozes similares àquela sua.
Ele não podia entender o que estava sendo dito. Havia muitos risos e
diversas exclamações. Mas a coisa toda o fez pensar em vezes em que ele
ouvia o rádio em sua casa, nos anos 1930, e não captava nada senão um
fluxo de estática ascendente e descendente, junto com vozes muito distantes
e indistinguíveis.
Jamsie esforçava-se para entender o que era aquilo. Pausa. A voz afetada
de Ponto vinha da cozinha: “Jamsie, você se importa se alguns dos meus
associados e minha família se juntarem a nós? Afinal, nós vamos nos casar,
não vamos? E logo, né?”.
A babel de vozes se iniciou novamente e pareceu aproximar-se da porta
da sala de estar.
Jamsie ficou paralisado por um segundo; então, tomado de pânico, ele se
levantou e saiu pela porta da frente, entrou no carro, e acelerou o tanto
quanto pode rumo à ponte Golden Gate. Sua mente estava tomada de
névoas, suas emoções agitadas. Ele sentiu-se odiado, perseguido,
desesperado; não era mais possível aguentar aquilo; era preciso sair daquela
situação. Ele parou no meio da ponte.
“Não adianta, Jamsie”.
Jamsie conhecia aquela voz. Deus! Ele poderia ter gritado. Lá estava ele,
apoiado no maldito parapeito.
“Não adianta, meu amigo. Você e eu ainda temos muito o que fazer antes
de sua vida acabar. Por que você acha que eu vou ser seu familiar? Para que
você morra jovem? Não seja idiota!”.
Jamsie recuou. Pela primeira vez ele teve o sentimento de estar sendo
vencido por Ponto. Ele voltou lentamente para casa. Não havia pressa. De
todo modo ele não sabia o que fazer. Ele pensava continuamente em Mark.
Mas, que diabos, o psicólogo não conseguira ajudá-lo; o que Mark poderia
fazer por ele?
Ponto não apareceu novamente naquela noite, mas a pausa foi muito
curta para Jamsie. O período da noite fora sempre uma ótima fonte de força
e recuperação para Jamsie; e embora Ponto estivesse avançando um pouco
mais a cada dia, restavam sempre algumas horas da noite, durante as quais
Jamsie ficava sozinho, relativamente em paz, podendo descansar. Ponto
nunca ficara uma noite inteira sem pedir o consentimento de Jamsie.
Mas agora Ponto havia insistido: eles tinham que se tornar íntimos. O que
ele queria dizer com aquilo, Jamsie nunca teve certeza. Mas com certeza
significava que ele passaria as noites no apartamento de Jamsie. E, o que
tinha um significado que escapava a Jamsie, Ponto queria seu
consentimento. Eles iriam se casar, não iriam? Eles iriam oficializar a coisa
toda, não iriam? Disse Ponto, com um sorriso arreganhado à sua própria
moda.
Após semanas de importunação, Jamsie estava pronto para tomar uma
decisão drástica. Qualquer coisa seria melhor do que aquela tortura. Deveria
ele interromper aquilo tudo com o suicídio? Ou seria melhor telefonar para
o Padre Mark? Ou ele deveria simplesmente ceder, aceitando Ponto e vendo
como as coisas se arranjavam?
A pior de todas as cenas de tormento com Ponto ocorreu em 1 de
fevereiro. Ponto se instalou no quarto de Jamsie. Jamsie passou a noite
andando de um lado para o outro da sua sala de estar, fazendo café para
permanecer acordado, discutindo em altos brados com Ponto, chorando o
tempo todo, fumando e bebendo alternadamente. Ele não conseguia se
livrar de Ponto. E não conseguia tomar uma decisão. Ele precisava de
tempo. Era a pressão de Ponto sobre ele, para que ele se decidisse, que
estava a esmagar seu espírito.
Finalmente ele decidiu dar um tempo para analisar aquilo tudo. Ele
pediria demissão ou um afastamento da rádio. Durante sua ausência ele
poderia examinar todos os eventos dos últimos anos, consultar-se com o
psiquiatra novamente, ver o Pe. Mark e recuperar um suficiente controle de
si para tomar alguma decisão quanto à melhor via de ação.
Quando ele chegou na estação, cedo na manhã seguinte, e foi ter com Jay
Beedem para pedir alguns dias de afastamento, suas dificuldades tomaram
uma nova forma.
Beedem falou sem erguer os olhos das notas que ele estava lendo.
Beedem notara o comportamento cada vez mais peculiar de Jamsie ao longo
das últimas semanas. Ele não pensava que um afastamento temporário seria
a solução. É claro, Jamsie tinha alguns dias de férias que lhe eram devidos.
Mas Beedem sentia que, se Jamsie continuasse criando tensão entre os
outros empregados da estação, não haveria alternativa senão demiti-lo.
O tom de sua fala não foi nem amigável nem hostil, mas neutro. Muito
frio. Impessoal.
Jamsie ainda pensou que ele poderia resolver a situação com Beedem se
simplesmente conseguisse lhe passar uma idéia da dimensão do problema
pessoal que estava a torturá-lo. Mas, ao tentar fazê-lo, Beedem
interrompeu-o lenta e enfaticamente: “se você não consegue tomar as
decisões certas nos seus assuntos pessoais, você não é confiável para os
assuntos que envolvem seus clientes e nossos ouvintes”.
Beedem então ergueu sua cabeça pela primeira vez desde que Jamsie
entrara no escritório. Jamsie buscou alguma luz, qualquer coisa que pudesse
lhe trazer esperança. Os olhos de Beedem estavam como que vazios.
Realmente em branco, literalmente. Eles podiam bem ser feitos de vidro
colorido, exceto que, diferentemente do vidro, eles não refletiam o
escritório, os objetos ao redor e nem a luz das janelas.
Jamsie entendeu, então, que era inútil tentar convencer Beedem. Ele disse
algo sobre recuperar os dias de férias que ele havia perdido. Beedem
curvou-se novamente sobre suas notas.
Ao fechar a porta, saindo da sala, Jamsie lançou um rápido olhar para
trás: Beedem estava sentado ereto em sua cadeira, os olhos fixos em Jamsie,
encarando-o fixamente. Beedem o atravessava com aquele olhar, Jamsie
pensou. Seria um olhar de ódio e desprezo nos olhos de Beedem? Ou
simplesmente a reação natural de um assoberbado gerente de rádio diante
de mais um problema pessoal de um empregado?
Descendo pelo corredor até seu escritório, Jamsie tentou lembrar de
algumas partes da conversa após o jantar com Mark. Ele parecia ser a única
pessoa que Jamsie conhecera que entendia completamente seu problema e o
que deveria ser feito. Mas nada mais estava claro para Jamsie, agora. Ele
sentou-se diante de sua mesa, e tentou espairecer. Quis reconstituir tudo o
que acontecera com ele desde que assumira o trabalho na rádio. Sua mente
era um redemoinho só. Ele não conseguia pensar logicamente. Palavras
como “bem”, “mal”, “Satã”, “Jesus”, “Ponto”, “casamento”, “possessão”,
“livre-arbítrio” rodopiavam dentro de sua mente, ele não conseguia pará-
las. E então “Beedem” começou a surgir em sua mente. Beedem? Simples
assim, com uma nota interrogativa. “Jay Beedem? Jay Beedem? Jay
Beedem?”.
“Jamsie, estou com o cronograma do mês que vem pronto”. Era seu
produtor, Cloyd.
Jamsie olhou para ele, atônito: “Jay Beedem?”.
“Ah, ele já viu. Está ok. Estamos todos de acordo. Você quer dar uma
olhada?”.
Jamsie pegou o cronograma, mas não estava conseguindo se concentrar.
“Eu ligo para você depois, Cloyd”, foi tudo o que ele conseguiu dizer.
Uma vez sozinho, ele tentou novamente. Foi inútil. Ele podia ver o rosto
de Mark, o rosto de Jay Beedem, de Ponto, seu próprio rosto, o de Ara,
Lydia, Cloyd. E de Jay Beedem novamente, com aquele olhar de desprezo e
ódio. Mas eles todos traziam pontos de interrogação agora.
Jamsie foi se acalmando aos poucos; e tentou resolver, pelo menos,
algumas questões. Será que Mark estava certo, e ele estava sendo convidado
a se fazer possuir? Será que ele já estava possuído? Será que Mark era só
mais um padre tentando converter mais um para o seu time? Ou talvez em
algum ponto o psiquiatra estivesse certo? Será que ele estava paranóico ou
esquizofrênico? Inventando tudo aquilo?
Ainda inquieto, seus pensamentos retornaram a Beedem. O que era
aquele sujeito afinal? Só mais um idiota sem coração? Não, aquele cara
tinha algo mais. E num altíssimo grau. Até hoje, quando acontece de Jamsie
olhar para trás, ele não lembra de nenhum momento em que Jay Beedem
tenha demonstrado uma emoção. Nada que viesse de seu interior. Ele nunca
o vira sequer dar uma risada.
Ele começou a pensar mais sobre Beedem enquanto pessoa. O que
Jamsie sabia sobre ele? Beedem era um vendedor nato. Ele podia falar
10mil linguagens e com entonações diferentes, por assim dizer, quando
queria vender algo. Ele tinha uma inteligência sagaz, e podia se voltar
contra qualquer um subitamente, cortando-o impiedosamente em público.
Ele freqüentemente usava um palavrão como que para garantir peso e
autoridade naquilo que ele dizia. As mulheres no escritório o evitavam.
Algumas dormiram com ele por uma noite – mas ninguém nunca repetira a
dose. Ele era ou temido ou desprezado, mesmo quando fazia as pessoas
rirem.
Tio Ponto nunca havia aparecido quando Beedem estava por perto. Ponto
aparecia por toda parte, droga, pensou Jamsie com amargura. Por que nunca
quando ele estava com Jay Beedem? Por que não hoje, quando ele poderia
ter usado um pouco daquele seu apoio loquaz?
Algo estranho em Beedem preocupava Jamsie. Ele estava bravo, é claro.
Mas não era só isso. Ele simplesmente não conseguia juntar as coisas em
sua cabeça.
Subitamente Jamsie se distraiu de seus pensamentos sobre Beedem. Fazia
muito tempo que ele estava preocupado com aquilo, mas agora ele sentiu
que tinha de resolver o velho enigma do “olhar”, o “rosto esquisito”.
Ótimo! Como naquela noite maluca em Cleveland, ele estava seguro de que
agora estava prestes a descobrir o que é que “lhe fora dito”. Pela primeira
vez em anos ele tentou desesperadamente unir todas as memórias, para unir
os fragmentos e com eles compor um esboço.
Seguidas vezes, quando ele sentava à sua escrivaninha, ele pensava ter
encontrado a resposta. Os nós dos dedos ficavam brancos com a pressão
com que ele agarrava braços de sua cadeira. Mas toda vez as peças caíam
fora de ordem. Ele sentou curvado em sua cadeira, trabalhando em seu
rascunho mental; e, lentamente, pouco a pouco, os fragmentos começaram
finalmente a cair no lugar e permanecer estáveis.
Depois de algum tempo, Cloyd passou pelo escritório de Jamsie
novamente. Ele encontrou Jamsie num extraordinário esforço de
concentração, grunhindo e gemendo sozinho. Sem conseguir chamar a
atenção de Jamsie, ele correu por ajuda, assustado. Ele encontrou dois
engenheiros da rádio, e juntos os três foram ver Jamsie, perguntando-se o
que deveriam fazer.
Jamsie estava completamente absorto em seu esforço. Ele sentia estar
tocando um limite extremo. Mas, de uma só vez, todos os fragmentos se
espatifaram por uma longa linha irregular, ao fim da qual estavam os olhos
nada sorridentes de Jay Beedem. E então, novamente num flash, a fila de
fragmentos pareceu correr por seu ouvido direito, saindo pela janela e
desaparecendo no céu azul do meio-dia. O último traço que ele viu daquilo
tudo foi o rosto de Jay Beedem, atravessado por um inédito sorriso de
orelha a orelha, sumindo na cauda daquela linha fugitiva.
Jamsie bateu as mãos contra os ouvidos e gritou; um berro gutural; um
protesto raivoso.
Finalmente ele ouviu a voz de Cloyd vindo de muito longe: “Jamsie!
Jamsie! Está tudo bem? Jamsie! Acorde!”. Ele sentiu três pares de mãos
sobre si, e olhou para os rostos assustados de Cloyd e dos dois engenheiros.
“O que está acontecendo aqui?”. Era Jay Beedem, calmo, frio,
incomodado e entediado, tudo ao mesmo tempo. Ele parou na porta e fez
um gesto com sua mão para que os outros saíssem. Ele disse para Jamsie,
num tom quase paternal, que ele deveria tirar o resto do dia de folga.
Jamsie sentiu-se completamente abalado. Ele não conseguira resolver
nenhuma das questões. Não entendera nada. Que idiotice, aquelas coisas
todas voando para fora de sua cabeça de novo. E ele nem mesmo
conseguira um afastamento. O resto do dia livre! “Muito obrigado”, ele
pensou.
Ele se levantou, curvado, quase aos prantos. Jay Beedem abriu passagem.
Jamsie saiu do escritório cambaleando, atravessou o corredor e chegou até o
estacionamento. Era o último dia de Jamsie na rádio. Ele nunca mais veria
Jay Beedem. Mas, naquele momento, Jamsie não conseguia pensar nem nos
próximos cinco minutos de sua vida.
No instante em que ele entrou em seu apartamento, ele percebeu que
Ponto estava ali. Lá estava aquele cheiro...
“Então, não fique bravo, Jamsie” a voz vinha do armário da sala.
“Eu vou me afastar de você até que você me chame. Não fique bravo. Só
esfrie um pouco sua cabeça”. Jamsie se sentiu levemente desanuviado. Mas
a fadiga o venceu. Ele caiu na cama, e em cinco minutos já estava
dormindo.
Era por volta de cinco horas da manhã do sábado quando acordou,
tranqüilamente. Teve a certeza de que fora acordado por algum som.
Escutou o os sons do ambiente por alguns instantes, e logo ouviu um som
de algo sendo raspado, vindo do armário em que Ponto estivera na noite
anterior.
Jamsie ficou tenso e desconfiado. O que tinha acontecido com Ponto? Ele
foi até o armário na ponta dos pés, ouviu por alguns instantes, e correu a
porta do armário para o lado. O que ele viu ali causou-lhe um nojo e um
espanto que ele nunca sentira antes, nem mesmo nos piores momentos com
Ponto. Ele estava sentado em cima do velho ícone, arrancando os pedaços
do mosaico que compunham a face da Virgem. Os olhos viraram dois
buracos cegos, e Ponto estava trabalhando agora na destruição da boca.
Ao perceber que Jamsie o olhava, Ponto parou calmamente, a unha de
um dos dedos cravada num dos fragmentos do mosaico.
“Não vamos mais precisar desse lixo, Jamsie. Vamos? Você e eu?”. Ele
sorriu confiante. O cheiro penetrou as narinas de Jamsie. “E afinal de
contas, eu não posso passar a noite com essa coisa do meu lodo, posso?”.
Ponto deu um sorriso esgarçado.
Jamsie ficou vermelho de raiva. Todo o ressentimento acumulado dentro
dele desde os primeiros anos de sua vida – sua raiva por sentir medo, sua
frustração por conta daquele “rosto esquisito”, sua decepção com seu pai e
sua mãe, seu desejo de se livrar de Ponto e de suas importunações, sua
perpétua solidão – tudo aquilo explodiu em seu interior, enchendo sua
mente com a náusea de não entender mais nada sobre a vida. Naquele
momento ele se decidiu com firmeza: a morte seria a única solução, a única
esperança de alívio e repouso.
Por alguns segundos ele ficou andando de um lado para o outro do
cômodo, com a cabeça doendo. Ele então saiu correndo, com uma raiva
desesperada a impulsioná-lo, como um selvagem, xingando tudo e todos em
altos brados, correndo pela escada da entrada até chegar no seu carro.

O Papa-Sopa
Não havia nada de muito incomum na infância do Pe. Mark A. e nem em
sua família. Mark é um nova-iorquino nativo. Seu pai, ainda vivo, é um
ianque do Maine que se instalou em Nova Iorque depois da I Guerra
Mundial. Sua mãe, já falecida, chamava-se Kelly, vinda do Tennessee. Sua
família viera da Irlanda para a América no final do séc. XVIII. Ela fora
educada em Kansas City. Ao chegar em Nova Iorque para ficar um tempo
com alguns parentes, ela conheceu seu marido. Ele trabalhava numa grande
firma de contabilidade.
Mark era o terceiro de cinco filhos. Seus dois irmãos ainda vivem em
Nova Iorque. Uma de suas irmãs se casou com um artesão suíço e vive em
Zurich. A outra irmã, freira missionária, estava nas Filipinas quando a II
Guerra Mundial eclodiu. Ela sobreviveu num campo de concentração
japonês, mas ficou profundamente fragilizada com essa experiência e
morreu em Manila depois do fim da guerra.
Ninguém imaginaria que alguém com um passado não normal e pacato
quanto Mark seria a única pessoa não só a acreditar, mas também a entender
a dificuldade de Jamsie. Nem tampouco que a profissão algo prosaica do
pai de Mark, um contador, ofereceria um feliz elo para completar a cadeia
de circunstâncias deste caso.
Quando jovem, depois de um ano e meio de faculdade, Mark entrou no
seminário diocesano. Sete anos mais tarde, em 1928, junto com oito outros
homens, ele se tornou padre. Mark passou dez anos como assistente em
quatro paróquias da diocese de Nova Iorque. Ele ficou conhecido como um
padre eficiente, que trabalhava duro. Sujeito mais prático do que místico,
um ativista décadas antes dessa noção entrar em moda, e alguém que
dificilmente perde sua motivação. Aqueles que o conheceram lembram dele
como uma pessoa animada – quase em excesso –, com olhos azuis claro,
gestos rápidos, palavras prontas, explosões de temperamento e arroubos de
bom humor igualmente súbitos.
O próprio Mark conta como, nesses primeiros anos, a vida sempre
parecia ser feita de “enredos”. Cada situação era composta de pessoas e
objetos. Você avaliava as pessoas, tinha de entender os objetos e traçar seu
plano de ação – seu “roteiro” – para aquela situação. Mark evitava
quaisquer idéias batidas quanto a “motivações ocultas” ou quaisquer
“realidades místicas”. Para muitos de seus contemporâneos ele parecia ter
uma abordagem rasa, frágil da realidade. E, de fato, Mark hoje admite que
naqueles primeiros anos era como se seu eu interior estivesse coberto por
uma dura casca protetora que nada conseguia atravessar. Ele estava
insensível a qualquer apelo emocional; e não se deixava levar por aspectos
intangíveis das situações vividas.
Quando Mark estava para ser transferido para sua quarta paróquia, seus
superiores eclesiásticos lhe ofereceram uma escolha: uma paróquia nos
subúrbios, ou uma outra no centro de Manhattan. Mark escolheu, sem
hesitação, trabalhar no coração da cidade. E durante os dois anos seguintes
ele experimentou um novo conjunto de problemas, totalmente diferentes
daquele que ele enfrentara nas paróquias afastadas onde ele já servira.
Naquele momento de sua história, logo antes da II Guerra Mundial, Nova
Iorque era uma espécie de meca de menor proporção, e não apenas para
aqueles com interesses financeiros e econômicos. Servida por 21 túneis, 20
pontes, 16 ferry-boats, 6 grandes linhas aéreas, Nova Iorque recebia
115.000 visitantes num dia comum, e adicionais 270.000 membros de
comitês convidados para 500 convenções anuais. Por grandes ferrovias,
rodovias, linhas aéreas, eles choviam na cidade e, como calculou um
estatístico da época, todas as noites os lençóis de hotéis utilizados seriam
capazes de cobrir os 340 hectares do Central Park.
Os visitantes podiam ficar em um dos 460 hotéis com um total de mais
de 112.000 quartos, custando desde 25 centavos por noite no Bronx a $50
no Ritz. E, contando ou não com a ajuda cortês e paciente das oito jovens
do Serviço de Informações Macy’s City, eles encontravam o caminho para
um dos 9.000 restaurantes de Nova Iorque, onde pediam seus pratos
preferidos, desde ensopado irlandês, sukiyaki japonês e gumbo crioulo ao
bufê sueco, salame de Budapeste e ovgalemono da Cefalônia.
“Nova Iorque é um ovo que se cozinha em três minutos” dizia uma
propaganda rapsódica da Secretaria de Convenções e Visitantes. Os
visitantes logo descobriram a gema macia daquela maravilhosa cidade. Mas
Mark também descobriu, nessa mesma cidade, um odor de sofrimento
humano e degradação.
A paróquia de Mark ficava no centro da área turística e hoteleira. Em
meio a camareiras, carregadores de malas, caixas, mordomos, gerentes,
garçons, garçonetes e auxiliares de cozinha, Mark calculava que havia
50.000 a 75.000 homens e mulheres trabalhando em jornadas longas e
irregulares. Eles iam para a cama quando a maior parte dos serviços da
igreja estavam começando. Muitos tinham dois trabalhos ao mesmo tempo.
Não havia nenhum modo desses homens e mulheres manterem a religião
como uma parte de sua vida de trabalhadores de hotel. Mas aquele era um
problema tão oculto – ou pelo menos sobre o qual ninguém pensaria
normalmente – que era praticamente esquecido por todas as igrejas.
Algo que aumentava o fardo e o risco na vida dessas pessoas ignoradas,
aos olhos de Mark, era a rede de crime organizado – sobretudo o tráfico de
drogas, prostituição e jogos de azar – nos quais muitos acabavam caindo
ingenuamente. De simples chofer de turistas a agente de prostituição para
uma das diversas cafetinas e seus prostíbulos; de simples coletor de apostas
a agente do jogo; de simples entregador de drogas a vendedor e
distribuidor; o caminho, em todos os casos, era fácil de ser encontrado e
atraente demais para ser recusado. Mesmo com a investigação de Seabury
em 1930 e o posterior o desmantelamento do sindicato de Luciano por
Thomas Dewey algum tempo depois, 7 não houve verdadeiramente um
cessar dessa dinâmica de crime e vício.
O pai de Mark, como contador registrado, cuidava das contas de alguns
importantes hotéis em Nova Iorque. Quando Mark assumiu o novo cargo,
seu pai o apresentou para alguns de seus amigos e clientes da área. Era
exatamente a introdução de que Mark necessitava para poder conhecer as
condições nos hotéis e restaurantes e falar com o pessoal freqüentemente e
com facilidade. Sua mente prática se focou nos elementos mais evidentes, e
sua experiência e instinto como padre lhe indicaram o que poderia ser feito
para suprir as necessidades religiosas dos trabalhadores de hotel e
restaurantes.
Quando chegou o momento de considerar sua próxima missão, dois anos
mais tarde, ele já tinha uma idéia mais ou menos clara do que gostaria de
fazer.
Em agosto de 1938 ele teve a sua chance. Numa longa conversa com seus
superiores, ele apresentou uma proposta simples: encarregar-se de uma
missão especial como capelão extraordinário dos trabalhadores de hotel e
restaurantes em Nova Iorque. Ao expor seu plano, Mark deve ter soado
como se pedisse para ser um missionário em terras selvagens. Os superiores
ficaram impressionados com sua análise da situação. Não foi difícil
persuadi-los. A decisão foi tomada, e Mark foi morar num presbitério de
uma paróquia do centro da cidade. Ele estava liberado de todas as funções
naquela paróquia, que seria apenas a sua base.
Sua nova paróquia se encontrava, na verdade, em cada hotel de
Manhattan e do Brooklyn Heights. Ele dividia essa paróquia em seis, com
base num agrupamento primário dos hotéis. A área de Grand Central se
centrava no Commodore e no Biltmore. A área de Penn Station tinha o New
Yorker como seu ponto central. A Times Square era relativamente
independente. A East Side era dominada pelo Waldorf-Astoria. O grupo do
Central Park estava funcionava em torno do Plaza e do Sherry Netherlands.
A zona de Brooklyn Heights se centrava sobretudo no St. George, com
2.641 quartos.
Mas o foco de Mark não eram apenas os hotéis, e sobretudo não eram
aqueles de primeira classe. Ele conhecia restaurantes, casas noturnas, clubes
de suingue, bodegas, hotéis de segunda, terceira ou nenhuma classe. Ele era
tão conhecido no Paradise Cabaret da Broadway ou no Cotton Club da 48th
Street quanto seus freqüentadores o eram (neste último, ele lembra “50
garotas morenas, enormes” dançavam ao som de Cab Calloway). Conhecia
o Casino de Paree, do Bylly Rose, e era bem conhecido nos clubes de
suingue como o Onyx, o Famous Door e o Hickory House.
Não é de surpreender que Mark tenha conhecido alguns dos melhores
chefs de Nova Iorque (e alguns dos piores!). Em parte como um meio de
ajudá-lo a alcançar os corações e mentes de alguns de seus “paroquianos”,
Mark começou a interessar-se pela cozinha. Um dia, até mesmo constatou
ter talento genuíno para cozinhar, um real interesse por aquilo.
Não levaria muito tempo até ele descobrir que aquela não era a única
novidade que passaria a fazer parte de sua vida para sempre.
Mark estava atendendo a um chamado noturno – coisa comum em sua
nova “paróquia” – quando ele teve seu primeiro confronto com uma força
que se tornaria, mais tarde, o foco de todos os seus esforços. Foi ao leito de
morte de uma jovem prostituta que fora encontrada sangrando e
inconsciente num terreno baldio próximo à 9th Avenue com 43rd Street.
Essa área e o Sugar Hill no Harlem, onde os mulatos faziam seu comércio,
eram as zonas de prostituição mais barata e perigosa. Mark nunca ia para lá
exceto em chamados de urgência.
Quando ele entrou na escura sala onde jazia a garota, sua mãe estava ali.
Ela indicou a pequena maca sob a penumbra, num canto da sala. A garota
gemia de dor. Em meio às sombras, ao pé da maca, Mark pôde ver a figura
de um homem vestindo chapéu e sobretudo, as mãos enfiadas no bolso. Ao
aproximar-se da maca, o homem tirou uma das mãos e a ergueu-a num
gesto para detê-lo. Mark parou.
“Quem é esse?”, Mark perguntou à mãe da garota num sussurro.
Ele balançou a cabeça. “Eu não sei, padre. Ele costumava estar com ela
de vez em quando. Ele chegou há alguns minutos. Eu pensei que ele...” –
ela se calou, desamparada.
Mark agora estava perto o suficiente para ver os olhos da garota sob a
penumbra. Eles estavam abertos e fixos no homem ao pé da maca. A pouca
luz lançada pela única lâmpada no quarto mostrava a mais estranha das
expressões em seus olhos. Veio à memória de Mark um rápido flash de um
coelhinho que ele tivera quando garoto. Um dia ele o encontrou
encurralado, tremendo diante do gato que rondava sua gaiola. O brilho
horrível nos olhos do gato – sua superioridade, sua misteriosa atração pela
presa, sua crueldade e desdém – tudo aquilo hipnotizara o jovem Mark. O
medo que paralisava o coelho era horrível, patético.
“Ela não precisa de você”.
As palavras vieram do homem parado ao pé da maca. Sua pronúncia era
normal. O tom era autoritário. Não havia indício de hostilidade, somente de
uma absoluta intransigência.
Mark vasculhou o bolso em busca de seu crucifixo e da garrafinha de
água benta que ele sempre trazia consigo. Ele decidira, naquele instante, dar
uma benção à garota e partir. Ele não estava procurando confusão. Talvez
ela nem mesmo fosse católica.
“Já chega”.
A mesma voz novamente, mas dessa vez o tom era de ameaça. Havia um
“ou então...” implícito naquelas duas palavras.
Mark estava atônito. Talvez o homem não tivesse entendido. Ele se virou
e encarou o vulto escuro. Ele parecia retirar-se ainda mais fundo na
penumbra.
“Mas eu...”, Mark começou, tentando se explicar.
Ele nunca chegou a terminar essa frase. O “roteiro” todo que ele
imaginara até aquele momento se desfez. Tudo ficou claro para ele. Era
como se escamas caíssem de seus olhos; ele ficou totalmente sensível ao
que estava por trás do “enredo” diante dele – a garota, o homem, a velha
senhora, a sala sombria, e a peculiar atmosfera que envelopava todos os
três. Ele imediatamente tomou consciência das múltiplas relações que se
estendiam, como laços invisíveis, entre todos os presentes.
Ele recuou, quase em choque com o que acabava de compreender. Ele
percebeu que a garota estava de algum modo subjugada àquele homem. E
ele sabia que se tratava de algo para muito além da mera servidão de uma
prostituta a seu cafetão. Por alguma razão aquele homem podia afirmar sua
posse com uma autoridade brutal.
A mãe da garota tocou o braço de Mark. Eles saíram do cômodo. Lá fora,
a conversa foi breve.
“Não, padre” ela respondeu a sua questão. “Ele não é o cafetão dela”. Ela
olhou-o com olhos cheios de desespero. “Eu pensei que você chegaria antes
deles”.
“Eles?”, repetiu Mark com uma nova sensação de choque. A mãe fez que
sim com a cabeça e olhou fixamente para ele. Ele fez um gesto para que
voltassem.
“Não”. Ele pousou uma mão em seu braço, gentil, mas firmemente.
“Não. Você ainda é jovem. Você não sabe contra o quê está lidando. Você
não pode lidar com algo assim. Ainda não”. E então, já se afastando de
Mark, dirigindo-se à porta do apartamento. “Salve-se, padre. Ela já está sob
o poder deles”.
Ela abriu a porta, fechando-a antes que ele pudesse colocar quaisquer
outras questões.
“Você não pode lidar com algo assim”.
Ele nunca esqueceu as palavras daquela mulher. Mas foram necessários
alguns meses e muitas experiências antes que ele começasse a entender que
esteve, por mais de uma vez, diante de um caso de possessão. Por vezes as
situações eram parecidas com aquela da garota moribunda, mas nem
sempre.
No fim do ano, Mark foi ter novamente com seus superiores e pediu para
falar com o exorcista oficial da diocese. Não havia nenhum, responderam,
naquele momento. Mas, disse o vigário-geral com quem Mark falou, se
surgisse algum caso de possessão, eles chamariam Mark para participar. Ele
disse isso com aquele tom jocoso que tão freqüentemente sinaliza a total
ignorância do assunto. E além disso, o vigário acrescentou, depois de tudo
pelo que Mark passara, que se as suspeitas de Mark estivessem certas, ele já
teria acumulado mais experiência no ramo do que qualquer outro padre que
ele conhecesse.
O tom do vigário-geral pode ter sido ligeiro, mas o resultado dessa
conversa foi sério. Mark se tornara, agora, exorcista oficial de sua diocese.
Com quebras intermitentes em sua rotina e algumas viagens a outras
partes do país e ao Canadá, o ministério de Mark em Nova Iorque durou 24
anos. Durante esse período ele desenvolveu seu conhecimento e habilidades
na lide com casos de possessão (reais e falsas; ele sempre dizia que dentre
uma centena de chamados, encontrava-se talvez um caso genuíno). Mas,
coisa mais importante, ele conheceu todo um mundo do espírito sobre o
qual ele nada aprendera no seminário, e que parecia florescer como um
obscuro submundo da vida de sua querida Nova Iorque.
Mark ainda causava a impressão de ser alguém confiante e desenvolto.
Mas agora ele trazia também, em seu interior, uma profunda consciência e
astúcia. E ele estava aberto e sensível aos mais mínimos indícios de
diabolismo, e, ao mesmo tempo, muito cético diante de toda alegação de
domínio diabólico.
Seus parceiros mais próximos ficavam espantados por ele não seguir a
via da maioria dos exorcistas. Alguns anos de ministério de exorcista
bastavam para que a maioria empalidecesse, por assim dizer: eles pareciam
minguar, sob diversos aspectos; alguns por doença, outros por
envelhecimento precoce; outros ainda por parecerem ter perdido a vontade
de viver.
“Muitos de nós saímos de cena rastejando, e vamos morrer
discretamente”, disse Mark quando conversávamos, certa noite. Eu sabia
que ele estava certo.
“E por que com você não foi assim, Mark?”.
“Bem, você veja”, começou Mark, num tom jocoso, “eu tenho esse meu
grande camarada do andar de cima, e quando eu começo num desses
negócios de exorcismo, ele chega junto e segura na minha mão”. Mas no
fim da frase, os olhos de Mark se desviaram por sobre a minha cabeça e sua
expressão não era mais nem um pouco jocosa. Era luminosa, fixa sobre
algum objeto ou pessoa que eu não conseguia identificar.
Uma pessoa com quem eu conversei fora amigo próximo de Mark desde
os tempos do seminário. Sempre trocaram confidências; mas tudo tinha
mudado. Ele me disse já ter há muito percebido que a vida interior de Mark
havia sido invadida por uma dimensão que ele pouco conhecia e podia
apenas conjeturar.
Mark pareceu, de repente, muito mais velho e cansado para seu amigo.
Para a maioria dos padres, assim como dos leigos, o mundo do exorcismo é
algo totalmente desconhecido. O preço que se paga ao adentrá-lo é
incomunicável e pode passar despercebido por anos, mesmo das pessoas
mais próximas ao exorcista.
Mas naqueles dias Mark era ainda um rapaz jovem. Ele perdeu quase
todo o cabelo antes dos trinta e cinco – mas o mesmo se deu também com
seus dois irmãos. Sua saúde permanecia excelente. Ele exercia sua função
com freqüência, e raramente parecia ser afetado adversamente por seu
trabalho. Durante duas ou três semanas após seu primeiro combate com um
espírito maligno, ele pareceu recolher-se dentro de si mesmo e estar envolto
em pensamentos muito profundos. Mas ele logo saiu desse estado. Quando
ele se deparou com seu primeiro caso de um espírito “familiar” (o sujeito
era um cafetão, preso por assassinato múltiplo), ele ficou completamente
confuso, tal como ele hoje admite. “Era muito difícil detectar o mal”, ele
relembra. “E eu tinha dois psiquiatras me dizendo que aquele era um caso
clássico de múltipla personalidade”. A despeito da opinião dos psiquiatras
(que aliás parecia ser um pouco confusa, recorda Mark) e sua própria
perplexidade diante do caso, Mark decidiu tentar exorcizar o sujeito por
conta de quatro “sintomas” principais: os distúrbios físicos que sempre
ocorriam nos ambientes em que o cafetão estava presente, a reação física
violenta e incontrolável do cafetão diante do crucifixo, do nome de Jesus e
da água benta.
O único tipo de possessão que produzia uma estranha e inabitual tensão
em Mark era o que ele veio a classificar como “possessão perfeita”. Seus
colegas aprenderam sobre tais casos com Mark apenas porque, de tempos
em tempos, eles sentiam uma tensão muito incomum nele. E às vezes eles
lhe perguntavam, pensando que ele sofrera um acidente, ou que estava
passando por algum perigo ou problema no qual eles pudessem ajudar. O
que eles viam em Mark, nesses momentos, como eles ou alguns deles
vieram a entender, não era uma tensão nervosa, mas antes uma
circunspeção, um estado de vigilância profunda que, assim o sentiam seus
amigos, se dirigia até mesmo a eles. Nessas épocas ele dava a impressão de
uma extrema distância. Falava muito pouco, observava tudo com um olhar
penetrante, breve e seco em suas conversas. Quando eles, enfim,
conseguiam fazer com que Mark falasse, e ele lhes passava uma idéia da
condição daqueles que, segundo ele, estavam sob perfeita possessão, seus
colegas ficavam surpresos com sua atitude totalmente negativa. Pois isso
também era muito incomum em Mark.
Para todas as questões quanto ao porquê de não haver espaço para a
misericórdia ou vontade em tais casos, Mark tentaria contar algumas de
suas experiências com os perfeitamente possuídos. Mas na maioria dos
casos ele refletia sobre a realidade dessa experiência com um olhar de uma
tal dureza, e tão concentrado em suas percepções, que ninguém conseguia ir
adiante na conversa com ele.
Aos sessenta anos, Mark pediu permissão para retirar-se num período
sabático. Sua saúde ainda era boa, mas algo nele estava mudando. Os anos
acumularam em seu interior uma pilha de descontentamentos e questões
não resolvidas que nem ele podia mais ignorar.
Sua escolha para uma locação temporária foi São Francisco, onde ele
tinha muitos amigos e conhecidos. Em abril de 1963, ele estava residindo
por lá. Foram-lhe dados pouquíssimos deveres na paróquia onde ele ficava,
e ele passava a maior parte do tempo ao ar livre.
Mas sua compaixão e seus interesses profissionais foram despertados
novamente quando Lila Wood, uma de suas conhecidas, descreveu em
detalhes a situação de Jamsie Z., que ela conhecera recentemente no estúdio
de transmissões em que trabalhava, e que não só parecia profundamente
perturbado, como também era evitado por todos, de formas mais ou menos
polidas.
Mark fizera muitas perguntas a Lila, até que ela lhe deu um bom retrato
do estranho comportamento de Jamsie. Mesmo por essa fonte secundária,
ele estava bem seguro de que, no caso de Jamsie, tratava-se de um espírito
“familiar”.
O que mais afligiu Mark em sua primeira longa conversa com Jamsie foi
a forte impressão de que, a não ser por um milagre ou por um exorcismo,
Jamsie Z. estava em vias ou de completar o processo de possessão por
aquele “familiar” insistente, ou de se suicidar como um meio mais fácil de
se livrar de uma vez por todas daquela miséria. Mark conhecia seus
sintomas. E, mais importante, ele adquirira ao longo dos anos um instinto
para o ponto crítico da possessão “familiar”. O instinto era como aquele
desenvolvido por pintores com relação às cores, matizes e intensidades
cromáticas. Essa habilidade não podia ser ensinada, mas somente aprendida
por meio da experiência.
A pessoa assediada pelas investidas do “familiar”, nos estágios extremos
de assédio e logo antes do desenlace final, geralmente começa a entrever
relances de uma figura – ou uma força – mais potente, como uma sombra
maior, lançada pelo “familiar” – sendo este último menos poderoso – ou
que acompanha a presença do “familiar”.
Após a inequívoca experiência de Jamsie Z. na represa, Mark entendeu
diversas coisas: para ele, não havia dúvidas de que Ponto era totalmente
real; não havia dúvidas de que ele, Mark, estaria cometendo um erro mortal
se desprezasse o estorvo de Jamsie, muitas vezes bizarro e inacreditável, ou
se reduzisse seus ataques de raiva a um comportamento psicótico; e não
havia dúvida de que Jamsie havia alcançado o ponto crítico.
Faltaram, no exorcismo envolvendo Jamsie Z. e Tio Ponto, muitos dos
elementos violentos, escatológicos e pornográficos que acompanhavam os
outros tipos e casos de possessão. O combate se deu num nível diferente,
envolveu um gênero diferente de espírito, e tratava de um tipo de possessão
cuja intensidade máxima já fora alcançada há muito tempo.
Mark descobrira por experiência que o grau de inteligência e
conhecimento que em geral parece caracterizar os “familiares” é muito
baixo, por vezes próximo ao nível de uma criança com retardamento
mental. Os “familiares” parecem dispor somente de uma mínima
quantidade de conhecimento factual e muito pouco poder de antevisão ou
antecipação. Eles parecem estar submetidos a regras muito precisas e sob
estrita dependência de uma inteligência “superior” sobre a qual eles falam
freqüentemente e à qual Ponto, por exemplo, precisava recorrer a cada
crise.
O “familiar” dá a impressão de ser um frágil reflexo no espelho, por
assim dizer, de um outro espírito maior. Sua dependência é tão grande que
ele nunca enfrenta diretamente o exorcista.
Esse atributo do espírito “familiar”, em particular, complicava os
trabalhos de Mark. Isso significava que ele estava trabalhando por
procuração, ou numa dinâmica indireta, de segunda mão. Jamsie era o único
capaz de ver e ouvir Tio Ponto, e Jamsie tinha de verbalizar tudo para Mark.
Ponto podia ver e ouvir Mark, mas era somente quando o “superior” de
Ponto assumia que Mark lidava diretamente com o espírito maligno.
Ao escolher os excertos do exorcismo de Jamsie, minha escolha caiu
primeiramente sobre as conversas que nos fazem observar dois pontos:
primeiro, o processo de possessão de Jamsie, e, segundo, as relações
extremamente complexas vividas nesse tipo de possessão – a relação de
Ponto enquanto “familiar” de Jamsie, de um lado, e, de outro, a relação
tanto de Jamsie quanto de Ponto com o espírito “superior”.
A experiência de Mark com possessões por espíritos “familiares” o
ensinara uma diferença principal entre o exorcismo de um “familiar” e
aqueles de outras espécies de espíritos. Outros tipos de possessos se
encontram quase que completamente desprovidos de sua liberdade. Eles são
salvos somente por um influxo da graça, canalizados pelo ministério do
exorcista. Mas a vítima do espírito “familiar” está quase-possessa pelo
“familiar”, até que dê o consentimento final ao “familiar” e a um
“compartilhamento” de si mesmo. Mesmo aí, a perda de controle sobre o eu
não se mostra profunda a ponto de o contato com o exorcista tornar-se, para
todos os efeitos, impossível para ele, como freqüentemente ocorre em
outros tipos de possessão em que o espírito maligno se “esconde” atrás da
identidade da vítima e responde em lugar desta. Nesse tipo de possessão, é
quase como se o espírito “superior” se “escondesse” atrás do “familiar”.
Estando a vítima relativamente livre, portanto, e não apartada do contato
com o exorcista, a vítima do “familiar” deve estar ativa em seu próprio
exorcismo. Ele, de fato, deve ser a fonte final de sua própria libertação, pelo
aceite da cura e da salvação de Deus. E, nesse sentido, o exorcizado, em tais
casos, é quem permite ao exorcista que se complete o trabalho.
Mark passou um bom tempo explicando a Jamsie essa peculiaridade do
exorcismo que iria ocorrer. Jamsie, como tantos outros, nunca havia
refletido acerca de sua liberdade. O livre-arbítrio era para ele apenas um
termo vago e abstrato. Foi preciso um bom tempo de explicação para que
Jamsie entendesse que ele deveria exercitar um poder de escolha. Aquela
era a opção fundamental do livre-arbítrio. Mark somente poderia indicar a
Jamsie quando ele deveria fazer aquele tremendo esforço da vontade. Só
Mark estaria em posição para saber o momento preciso no qual Jamsie
poderia com mais eficácia exercer aquela escolha.
Uma peculiaridade desse exorcismo diz respeito a um estratagema de
Ponto, tão pernicioso quanto tantas outras excentricidades que tanto
desgastaram Jamsie. O exorcismo só podia ser realizado depois de o sol se
pôr. E ainda assim, nem sempre era possível começar logo depois do pôr-
do-sol; Ponto podia não responder, e ficar sem aparecer por um bom tempo.
E não era possível continuar o exorcismo depois do nascer do sol. Mark não
considerava esse como um traço típico desse tipo de possessão – apenas
uma marca de malícia da parte de Tio Ponto e seu “superior”. A noite
causava terrores em Jamsie dos quais ele se via livre durante o dia. Essa era
uma vantagem para Ponto e seu “superior”.
Por outro lado, durante as horas em que havia luz do dia, Mark dispunha
de um bom tempo para consultar o psiquiatra que havia lidado com Jamsie.
Ele também fez Jamsie passar por uma completa séria de exames com um
médico de sua escolha.
O psiquiatra seguia inabalável em sua conclusão de que Jamsie não sofria
de paranóia nem esquizofrenia. E finalmente, durante o próprio exorcismo,
Mark descobriu que o Tio Ponto que Jamsie via e ouvia o informava com
precisão sobre coisas que Jamsie não poderia nunca saber ou sequer
imaginar. Cada sessão do exorcismo ocorreu num porão do presbitério,
onde não havia virtualmente nenhuma probabilidade de interrupção pelo
mundo exterior. Jamsie sentou-se numa cadeira de cozinha diante de uma
mesa, exceto durante a última parte do exorcismo. Os assistentes eram
quatro: um padre mais jovem que Mark convocara para assisti-lo, dois
jovens amigos seus que trabalhavam juntos numa firma de advocacia, e um
médico local em cujo juízo Mark sentia poder confiar.
O exorcismo de Jamsie durou cinco dias.
Mark começava cada uma das sessões com o Salve Regina, prece à
Virgem Maria, e finalizava com o Anima Christi, prece para Jesus. Somente
nas duas últimas sessões houve objeções violentas, expressas através de
Jamsie, àquelas orações.
As primeiras três sessões do exorcismo foram repletas de discursos
irrelevantes de Tio Ponto (todos eles verbalizados por Jamsie). Mark
ofereceu todo o tempo de que dispunha, e estava certo de que era possível
esperar. Ele sabia que cedo ou tarde Tio Ponto iria ceder e que seu
“superior” teria de intervir.
Foi o que aconteceu na quarta sessão.

Tio Ponto
Eram 4h15 da manhã, só faltava uma hora para o nascer do sol. Mark
iniciara a quarta sessão pouco depois da meia-noite. Ele havia triturado
Ponto com questões através de Jamsie por quatro horas, mas Ponto as
rebatera todas com murmúrios e nonsense.
Àquela altura da sessão, Mark viu Jamsie levantar-se da cadeira e olhar
para o lado. Para Mark aquilo era óbvio: Jamsie, agora, podia ver alguém
além de Ponto. Aquela fora a primeira falha, o primeiro sinal de fraqueza, o
primeiro indício de que o “superior” de Ponto deveria estar chegando em
seu auxílio.
A mente de Mark percorreu em retrospectiva suas mais recentes questões
e investidas contra Ponto. Ele só conseguia pensar em uma coisa que pode
ter invocado o “superior” de Tio Ponto. Em resposta a uma enxurrada de
comentários nonsense da parte de Ponto, Mark disse num tom de profundo
desprezo: “Nós agora chegamos ao fim da sua inteligência. Você não tem
mais defesas e nem mais explicações para o fato de ter tomado essa alma
humana como sua “familiar”. Você está se repetindo. Você não é nada, e é
mesmo pior do que nada diante do poder de Jesus. Em seu nome eu lhe
digo: você tem de partir, você tem de deixar essa pessoa e voltar àquele que
o enviou. Você e ele foram vencidos por Jesus”.
“É o Vulto, padre”, Jamsie estava olhando, quase paralisado. O patético
olhar da jovem prostituta, cerca de 30 anos antes, fitando o homem na
penumbra ao pé de seu leito, pareceu presente na face de Jamsie por um
instante, de tão similar que era o seu olhar.
Mark prosseguiu, imperturbável. “Você está completamente subjugado
por Jesus, você e todos os seus associados. Jamsie, contudo, está protegido.
Você não tem superior, ninguém que o ajude em sua estupidez”.
Ele olhou para Jamsie: “O que foi, Jamsie? Me diga! Rápido!”.
Mark receava que Jamsie ficasse paralisado de medo, ou por conta de
alguma força que Ponto exercesse sobre ele, ou – como ocorrera em outros
casos parecidos – que Jamsie ficasse inconsciente antes de poder explicar a
situação para Mark.
“Ele está falando bobagens, padre”, Jamsie respondeu com dificuldade.
A respiração de Jamsie se encurtou, como se respirar se tivesse tornado
algo difícil. Ele começou a se retrair. Suas mãos pararam atrás do pescoço
como se para suportar o peso de sua própria cabeça. Seu rosto ficou
vermelho. O médico olhou para Mark, sem fazer ainda qualquer sinal. Os
dois jovens assistentes se agitaram, prontos para saltar em auxílio a Jamsie.
Mark os acalmou com um gesto, e prosseguiu.
“Nós pensamos que é melhor para Jamsie morrer sob a benção de Igreja
do que viver numa tal condição”.
“Não! Não!”, era Jamsie, repetindo para Mark o que Ponto dizia, mas
com muita dificuldade. “Eu não posso falhar. Eu preciso ter um lar. Eles
não vão deixar essa Pessoa...”; Jamsie interrompeu sua fala; ele estava
ficando asfixiado.
Mark prosseguiu. “Nós pensamos que Jesus, o Senhor de todas as coisas,
vem para expulsá-lo, ser desprezível e imundo. Expulsá-lo e enviá-lo de
volta, desamparado, patético, para o lugar de onde você veio. Não é
possível se opor a Jesus”.
Mark parou. Os olhos de Jamsie se haviam fechado. Suas mãos caíram
para os lados num gesto desamparado. Ele começou a escorregar pela
cadeira até o chão.
“Rápido!”, disse Mark aos assistentes. “Coloquem-no na maca”.
Ao deslizar pela cadeira, o corpo de Jamsie ficou bloqueado entre a mesa
e a cadeira, sem tocar inteiramente o chão. Seus punhos estavam cerrados
em volta de seu pescoço, sua cabeça enterrada no peito, os ombros caídos,
os joelhos dobrados, os dedos do pé espalmados e rígidos. Seu corpo estava
reduzido a uma massa disforme de ângulos rígidos e curvas grosseiras. De
inícios, os assistentes e Mark pensaram que Jamsie simplesmente ficara
emperrado num ângulo entre a cadeira e a mesa. Mas depois de uns
instantes de esforço e algum exame, eles perceberam que não conseguiam
mover seu corpo. Ele pesava mais do que qualquer coisa que eles pudessem
mover. Eles arrastaram a mesa e a cadeira para longe. Jamsie caiu duro no
chão como se atraído por um ímã invisível. Seus olhos estavam abertos, seu
olhar não tinha foco.
Transpirando, desnorteados, os assistentes ergueram o olhar a Mark.
Ele levantou o crucifixo e, de uma voz potente, disse: “Eu ordeno, Ponto,
eu ordeno em nome de Jesus! Deixe essa criatura de Deus. Pare de prendê-
lo ao chão. Deixe-o, eu ordeno!”.
O corpo de Jamsie subitamente se relaxou. Sua cabeça pendeu para o
lado, seus olhos viraram para cima até que só as escleras podiam ser vistas,
suas mãos se descerraram e seus braços rolaram para o lado como um peso
morto.
Depressa os assistentes o levantaram e pousaram sobre a maca.
“Amarrem-no”, disse Mark. E então, para o médico: “Dê uma olhada,
Tom. Só para ter certeza, pode ser?”.
O médico checou o pulso de Jamsie e olhou para Mark apreensivo.
“Pegue leve, Mark. Ele está muito mal. Eu não tenho como saber quão mal
ele está sem mais um exame mais completo. Pegue leve”.
Mark consentiu com a cabeça. Ele sabia estar próximo a uma quebra na
resistência de Ponto. Ele fez um gesto para que todos se afastassem. Tomou
o frasco de água benta do jovem padre e, erguendo sua mão, encarou Jamsie
deitado sobre a maca.
Mark aspergiu água benta em Jamsie em três gestos repletos de intenção
– ele parecia um homem a lançar uma granada de mão a cada um dos
gestos. E a cada vez ele pronunciava, numa rápida sequência, palavras do
mais profundo desprezo e exprobração. Ele se dirigia ao “superior”.
“Embusteiro covarde. Traidor imundo. Rebelde derrotado. Venha, saia de
trás de seu miserável secundo, seu adulador. Saia. E envergonhe-se uma vez
mais. Uma vez mais seja derrotado por Jesus. Seja lançado à cova”.
Seus assistentes viram, naquele momento, que Mark estava
completamente mudado. Até aquele ponto, ele falara calmamente,
cautelosamente, cada palavra e expressão saindo de sua boca após uma
ponderada pausa. Agora ele parecia estar alguns centímetros mais alto. Ao
mesmo tempo ele parecia estar arqueado. Seu rosto estava rígido; sua boca
mal se abria quando ele falava; e, na gravação, nota-se a súbita presença de
um sentimento de violência e um ódio feroz na voz de Mark.
Em resposta a Mark, veio um lento e débil murmúrio de Jamsie. Ele foi
gradualmente se intensificado em velocidade e volume, subindo nos agudos
e ressoando nos graves. O corpo de Jamsie tremia e vibrava entre o couro
das cintas que o atavam à maca.
“Ou então você também é um secundo de Jesus?”, Mark continuou
naquele mesmo tom lancinante. “Um verdadeiro secundo de seu triunfo?
Traidor e Pai da Mentira, promitente de vãs vitórias? Será que você também
foi vencido pelo...”.
Mark não prosseguiu. Suas provocações já haviam atingido o alvo. Pela
boca aberta de Jamsie, todos os presentes no cômodo podiam agora ouvir
palavras distantes e débeis, cada uma delas se desprendendo de uma
garganta acidulada, tangida por uma língua insolente, e lançadas
vagarosamente sobre seus ouvidos como pontudos dardos de desprezo.
Todos eles sentiam esse sentimento de repulsa. E estavam todos com medo.
“Montes de lodo seco. Filhotinhos da foda de animais. Bestas falantes.
Rezando por uma ponta e excretando pela outra. Dependentes da
misericórdia. Mendigando o perdão...”.
O sentimento de desdém naquelas palavras era como um ácido corrosivo
a todos os que ouviam.
“...cheirando a esterco. Apodrecendo num suculento cadáver. Silêncio!
Saiam daqui! Deixem esse animal conosco, o Altííííííssimo...”. A sílaba
prolongada dessa última palavra foi dita com uma longa nota que trazia um
tom de lamento. Mark notou-a, e tomou a única via possível para sair
daquela situação: o ataque.
“Declare quem é você, em nome de Jesus!”. Uma longa pausa. O rosto de
Jamsie estava pálido. O jovem padre estava prestes a dizer algo quando a
voz falou novamente.
“Nós nunca nos rendemos a nenhum poder. E nós nunca iremos...”.
“Então nós iremos iniciar o exorcismo. Nós o amaldiçoaremos, e o
expulsaremos, você e todos vocês, em nome de...”
“Nã-ã-ã-ão!”. Novamente, aquela longa nota de lamento. A voz perdera
seu tom de desdém. Havia um caráter de urgência nela, e uma nota de
covardia.
Mark viu que conseguira abrir uma trincheira com aquele seu ataque, e
pulou dentro dela com os dois pés.
“Seu nome!”. O comando de Mark veio antes que o longo “Não”
terminasse.
“Nomes são para...”.
“O seu nome! Pela autoridade da Igreja de Jesus, seu nome! Diga!”.
Mark não gritava, e no entanto sua voz ocupava todo o cômodo.
“Nós somos...”; uma vez mais a nota lamuriosa, mas dessa vez com uma
ressonância semelhante à de um rosnado. “Nós todos pertencemos ao
Reino. Nenhum homem pode conhecer o nome. Nós somos todossss...”. O
“s” ecoou por muito tempo até se esvair.
“Como devemos chamá-lo então?”, Mark insistiu. “Em nome de Jesus,
por qual nome você atende? Em nome de Jesus, por qual nome você
atende?”.
“Multus-a-um. Magnus-a-um. Grosso-grosseiro-grossista. Setenta vezes.
Legião de setenta e sete. Tudo...”.
“Multus? Você deverá atender por esse nome, em nome de...”.
Mark foi interrompido por Jamsie. Ele acordara subitamente, os olhos
escancarados e vermelhos, o corpo se debatendo contra as tiras de couro,
suas pernas dando chutes.
“Sentem sobre as suas pernas”, disse Mark. Os dois assistentes
obedeceram.
“TIO PONTO! TIO PONTO!”, Jamsie gritava a plenos pulmões, com um
desespero que deixou todos perplexos. “TIO PONTO! NÃO VÁ
EMBORA. SE VOCÊ SE FOR, O QUE ELES VÃO FAZER COMIGO?
TIO PONTO! TIO PONTO!”.
Mark recuou e tentou pensar rápido.
Jamsie continuou falando sem parar, de forma incoerente. E, num tom
mais grave, como se cansado por conta seus últimos esforços: “Sim...
pensei que você estivesse atrás da minha... não, por favor... não faça isso e...
noite... rádio com o Jay Beedem...”.
Mark estava pensando. Ele se virou de costas. Os outros podiam ver seu
rosto tomado de um ar introspectivo. Por uns poucos segundos ele pareceu
estar em outro lugar, como se houvesse abstraído completamente aquela
situação. Subitamente, então, ele se virou, como um golpe de chicote, com
uma voz raivosa e forte.
“Multus! Multus! Responda em nome de Jesus. Responda! Responda!
Dispense Ponto! Responda!”. Mark esperou mais um momento e repetiu o
comando.
“Responda! Dispense Ponto! Responda!”.
Os olhos de Jamsie se turvaram, sua cabeça caiu para trás, seu corpo
ficou flácido. Mark teve sua resposta. Ele sabia: Ponto, em termos práticos,
tinha saído de campo; Mark lidava agora diretamente com o “superior” de
Ponto. O objetivo do padre, agora, era obter toda informação que ele
pudesse da parte daquele “superior”, e descobrir tudo o que fosse possível
quanto às emaranhadas linhas daquela tentativa de possessão. Assim ele
abriria caminho para uma expulsão exitosa do espírito maligno. Multus,
como todos os espíritos malignos, não podia suportar a luz da verdade.
O médico abriu um dos olhos de Jamsie à força, tomou seu pulso, e fez
um gesto com a cabeça lentamente, em aviso a Mark.
Mark disparou uma série de questões.
“Quando foi que você começou a se ocupar de Jamsie?”.
“Ele foi escolhido antes de nascer”.
“Quando ele soube que vocês estavam atrás dele?”.
“Ele já sabia desde muito antes de saber que sabia”.
“Como vocês conseguiram entrar nele?”.
“Ele o quis. Quanto àqueles que tentaram ensiná-lo algo diferente, nós os
corrompemos. Mas ele optou por ser tomado. Somente uma pessoa se opôs
a nós”.
“Quem?”.
“Ele nunca o conheceu”.
“Quem?”.
“O pai de seu pai. Ele recebeu essa função de...”. A voz se esvaiu com
aquela mesma nota lamuriosa.
“De quem?”, Mark insistiu. Nada de resposta.
“De quem?”, Mark repetiu a questão, e acrescentou: “Ou eu devo dizer-
lhe quem foi?”
“Por essa Pessoa que está para além do nosso alcance. Pelo
Reivindicador de toda adoração. Por aquele que nunca recebeu nem nunca
receberá nossa adoração...”.
“Foram vocês quem provocaram as visões dos ‘rostos esquisitos’ para
Jamsie?”.
“Não. O seu protetor. Nós nunca o assustaríamos. Nós somos mais
poderosos do que isso. Era o seu protetor tentando alertá-lo”.
Agora o tom mudara. Uma nova truculência o tomou. Mark ouviu aquilo
e empalideceu. Ele havia suposto coisas demais. A voz continuava a soar
com um timbre arranhado. Era como se o dono daquela voz tivesse visto a
frustração em Mark. Uma enxurrada de questões muito perspicazes desabou
sobre seus ouvidos, e sua mente começou a vacilar sob o peso das imagens
que elas evocavam.
“Você pensa que escapou de nós, Papa-Sopa? Você acha que nenhuma
dessas putas imundas mudou você? Quantas vezes você não as desejou?
Lembra da casa do Harlem e a menina de dezessete anos? Lembra quando
ela encostou a boceta dela contra você, e você viu seus cabelos negros
reluzindo contra aquelas coxas bronzeadas? Lembra que você ficou durão?
Ha! Ha! Padre! Padre do caralho! Seu pauzinho em chamas! Ha! Ha! Suas
preces não serviram pra nada, afinal. E a sua Virgem, com a concepção
carola dela, não serviu de nada. Ou você se lembrou de amarrar um terço
em volta ‘dele’ pra não deixar subir? Lembra! Lembra? Lembra dos seus
sonhos úmidos? Nós lembramos. Nós sim. E você também! Você não acha
que um pouco de você pertence a nós? Paaaaaaaaaaadre!”.
Mark foi vencido temporariamente. Ele cambaleou para trás. Ele olhou
para Jamsie: os olhos bem abertos, sua boca esgarçada num enorme sorriso
congelado a mostrar os dentes. Ele estava ouvindo e rindo. Mark entendera
a mensagem. Ponto e seu “superior” estavam partindo.
O jovem padre deu um tapa no ombro de Mark e apontou para a janela.
Feixes finos da luz do sol penetravam o quarto. Mais um dia claro e quente
começava.
Mark deu um suspiro. Mais meia hora, ele pensou, e ele teria acabado
com o “superior”. “Ok. Vamos encerrar por enquanto, até hoje à noite”. Ele
recuperara seu tom frio. “Nos encontramos às 10 da noite em ponto.
Descansem um pouco. Hoje à noite vai ser a noite”.
Eles então fizeram o que haviam feito todos os dias antes daquele. Mark
recitou o Anima Christi. Em seguida subiu as escadas e disse sua Missa. Os
quatro se revezaram vigiando Jamsie. Cerca de uma hora mais tarde, ele
acordou sem nenhuma lembrança do que ocorrera na noite anterior.
Na última noite do exorcismo, Mark teve um plano para precipitar os
eventos caso Ponto demorasse muito a chegar. Ele guardava uma carta na
manga. Havia certo risco em usá-la; e com isso ele incorria em risco tanto
para ele quanto para Jamsie.
Mas a alternativa era quase inevitável. Jamsie estava cada vez mais fraco
em sua resolução de submeter-se ao rito do exorcismo, a resistir, a
sobreviver. Ele poderia colapsar completamente a qualquer momento. Ele
poderia, de fato, cair num estado comatoso como prelúdio a uma morte
prematura – Mark conhecera casos assim – ou emergir num estado de
colapso total. Em nenhuma das condições Jamsie estaria “acessível”. E o
próprio Mark ficaria para sempre em dúvida quanto ao destino de Jamsie.
Não haveria meio de saber se ele fora perfeitamente possuído, imune a
qualquer toque terapêutico, isolado de qualquer intervenção salvadora,
atado, mumificado, trancado pela força do mal que o possuiu perfeitamente.
Ou então se ficara insano num senso estritamente psicológico da palavra.
Em qualquer um desses casos teria sido impossível saber em que medida
ele podia perceber o mundo exterior, ou se ele podia orar e exercitar sua
crença, e assim cooperar com a graça de Deus em prol da salvação última.
Mark desejava fervorosamente evitar o caráter dúbio e perigoso de um tal
desfecho para o caso de Jamsie Z.
Esse trunfo de Mark dizia respeito a um fato que emergira durante seus
inquéritos no procedimento com Jamsie quanto a seu passado.
Jamsie fora batizado em casa por sua avó sob a pia da cozinha. Ele
nascera numa situação de muita fragilidade. O médico responsável havia
perdido esperanças quanto à sua sobrevivência, e sua avó, armênia muito
piedosa, o batizou, por temer que o padre chegasse muito tarde. Pelo que
Mark podia entender, havia uma dúvida razoável quanto à validade do
batismo de Jamsie.
A avó de Jamsie falava muito pouco inglês e ele certamente não conhecia
as palavras do batismo em inglês. Foi ela quem derramou água sobre a
cabeça do bebê. Mas, pelo que parece, a parteira irlandesa que estava
assistindo Lydia, mãe de Jamsie, no processo de parto, pronunciou as
palavras do batismo.
Se de fato foi assim, então o batismo havia sido inválido. É a mesma
pessoa que derrama a água quem deve pronunciar as palavras, do contrário
o batismo não tem validade. O bebê não está batizado, não se tornou um
cristão.
Para aumentar ainda mais as dúvidas, o padre da paróquia, que
finalmente chegara muito tempo depois, nunca se preocupou em corrigir a
dúvida e batizar Jamsie sob condição. Um “batismo condicional” é
realizado em tais casos. Mas, por alguma razão, isso não foi feito.
Agora Mark propunha a Jamsie que isso fosse feito. Instintivamente,
como exorcista, Mark sabia que a “rejeição” do espírito maligno implicada
no batismo de um adulto era algo que um mero espírito “familiar” não
conseguiria suportar. O “superior” teria de intervir de algum modo novo
para poder proteger o interesse comum, tanto do “familiar” quanto do
próprio “superior”.
Era então o objetivo de Mark atacar o peculiar vínculo entre o “superior”
e seu espírito “familiar”. Se isso fosse feito, Mark não teria mais de lidar
com o espírito por procuração; ele teria o “superior” às claras – não
temporariamente, como nas sessões anteriores, mas como “parte
responsável”, por assim dizer. Dali em diante Mark poderia conduzir as
coisas como num exorcismo “normal”.
Tendo esperado, então, uma hora pela chegada de Ponto, Mark deitara
Jamsie na maca, à qual os assistentes o ataram para sua segurança. Ele
então procedeu com o batismo, Jamsie respondendo a todas as perguntas
que são postas a uma pessoa adulta que deva ser batizada, recitando o credo
e fazendo outras profissões de fé.
Tudo seguiu com relativa calma, até que Jamsie teve uma crise no meio
de uma frase. Sua voz mudou, e ele disse rapidamente para Mark: “Ele está
voltando. Ele está num estado terrível”.
Tio Ponto estava obviamente ali com Jamsie. O plano de Mark havia
funcionado até ali. Ele e seus assistentes ouviam uma das extremidades de
uma conversação bizarra (Jamsie) e tentavam imaginar o que estava sendo
dito pelo outro extremo (Tio Ponto).
“Eu não vou mais tê-lo em minha vida”. Jamsie olhava para a porta do
cômodo. Ele ficou em silêncio por alguns segundos, e falou num tom
irascível. “O que acontece em Júpiter e o que eu poderia fazer com muito
dinheiro – milhões e milhões – isso é tudo um nonsense. Quero que você
me deixe...”.
Agora Jamsie olhava para o teto, logo em seguida para a janela, e em
seguida para a porta uma vez mais. “Isso não vai ajudar no...”. Seu rosto foi
tomado de raiva. “Mas por que eu deveria ter medo de morrer? Outros já
tiveram que partir”.
Mark e os outros continuaram a ouvir em silêncio. Era evidente que
Ponto estava num péssimo estado.
Jamsie mudou o tom de sua voz: “Mark diz que Jesus disse que você é
um mentiroso desgraçado e...”. Interrompido, Jamsie olhou para o canto e
franziu as sobrancelhas. “Eu vou falar sobre o que eu bem entender, porra, e
você me ouça!”.
E então algo de muito inesperado aconteceu. Os olhos de Jamsie
cresceram, as escleras reluziram. Sua face pareceu desmoronar, perdendo
uma força substancial. Ele deu para trás na cama e se contorceu.
Mark correu para o seu lado e pousou sua mão sobre Jamsie. Era um
sinal combinado entre os dois. Jamsie teve o tempo de apertar levemente os
dedos de Mark, e começou a chorar e soluçar.
“É inútil”. Seus dedos deixaram a mão de Mark. “É inútil. Eu estou
perdido. Ele voltou. Eles todos voltaram”.
Mark tomou o crucifixo e começou imediatamente. Jamsie então pareceu
ter caído num sono súbito, sua mandíbula ficou flácida, e a saliva escorreu
por seu queixo.
“Multus!”.
“Papa-Sopa!”. As palavras eram pronunciadas com uma suavidade de
veludo, mas com frieza gélida.
“Multus! Responda-nos. É você quem está aí, e ninguém mais?”.
“Papa-sopa, seu pigmeuzinho ridículo. Nós temos a nossa marca em
você. Toda essa sua feitiçaria não vai livrar nem Jamsie nem você dos
nossos domínios...”.
“Multus! Responda!”. O espírito estava na posição que Mark desejava.
“O ‘familiar’ de Jamsie é Ponto. Por que você diz que ele pertence a vocês?
Quem são ‘vocês’ afinal?”.
“Vocês, seus fétidos, ficam andando em corpos de lodo, lama e esterco.
Você diz um, dois, três, quatrocentos, sete milhões, um trilhão. Ha! Ha-
Ha!”.
“Multus! Tio Ponto está com você? Você é o Tio Ponto?”.
“Somos espíritos. Não existe um, dois, três, quatro, cem, sete milhões,
um trilhão. Nós somos tipos e espécies. Nós somos espíritos! Forças.
Dominações. Centros. Mentes. Vontades. Forças. Desejos”.
“Responda em nome da Igreja. Responda às questões sob autoridade de
Jesus. Você é o Tio Ponto?”.
“Sim! Ha! Ha! Não! Ha! Ha!”. Aquela risada congelou o sangue nas
veias dos assistentes. Era de um desprezo sarcástico, sem nenhum ar de
gozação, sem humor algum. “Ponto é o que nós somos, sem a inteligência
do Requeredor”.
Havia uma armadilha pronta para pegar Mark. Mas Mark preferiu não
perguntar quem era o Requeredor. Requeredor, Mestre, Príncipe, Líder –
tudo conduzia a um só ser: a inteligência suprema do mal, que conduzira e
que conduz todas as inteligências revoltadas contra a vontade de Deus.
Mark nunca sentira, em toda sua vida, nenhuma vontade de contenda direta
com essa personagem. A intuição profunda de suas próprias limitações o
mantinham afastado de dar um tal passo.
Em lugar disso, Mark prosseguiu sua busca urgente para descobrir a
relação entre Tio Ponto e o Vulto. “Mas Tio Ponto usa sua própria
inteligência por sua própria conta”.
“Nunca”. A resolução no dizer daquela palavra chocou a todos.
“A inteligência de Ponto é subordinada à sua”.
“Sempre”. A resposta veio como uma pedrada. Imperiosa. Brusca.
“E a vontade de Ponto?”.
“Aqueles que aceitaram, aqueles que aceitam o Reclamante, querem o
que ele quer. Somente a vontade dele. Somente a vontade. Somente a
vontade. A vontade do Reino. A vontade da vontade da vontade da vontade
da vontade...”. A voz mudou de tom, passando do autoritário ao lamurioso,
submisso, um sussurro sem fôlego, e se esvaiu. Mark detectou um súbito
influxo de medo.
O jovem padre assistente também captou aquela nota de temor, e, como
que num grito de vitória, ele se inclinou para frente tomado de entusiasmo:
“Acaba com eles, Mark!”.
Mark se virou para ele, seus olhos em chamas: “Cale a boca!”.
“Isso mesmo!”, fez a vozinha débil. “Isso mesmo, exatamente! Mas a
nossa briga é com você, padre! Nós ainda temos anos para lidar com esse
virgenzinho e mostrar...”.
Mark interrompeu. “Você falará quando questionado. E só então. E você
nos dirá em nome de Jesus”, Mark vociferava; ele canalizara sua cólera
contra o erro do jovem padre para o trato com o espírito, “você nos dirá: Jay
Beedem consentiu em se submeter a vocês?”.
Fez-se um silêncio total. Só a respiração de Jamsie podia ser ouvida.
Mark nunca encontrara Beedem, mas notou que ele sempre figurava de uma
maneira estranha nas histórias de Jamsie, e Mark podia farejar algo de
estranho ali, ainda que à distância. Ele precisava saber se havia uma
conexão essencial entre Beedem e Ponto ou com seu “superior” que
afetasse Jamsie.
“Jay Beedem”, insistiu Mark. “Você nos dirá quando...”.
“Não”. A resposta foi sumária e definitiva. “Nós não diremos nada,
padre”. Silêncio de novo.
“Pela autoridade da Igreja e em nome de Jesus, você...”.
“Essa Igreja e essa Pessoa não têm autoridade sobre Jay Beedem. Ele é
nosso. Nosso. Nosso. O Reino. Nosso”.
Mark respirou fundo. Aquilo não era novidade, mas ele sempre ficava
abalado ao descobrir que alguém contava com a proteção do mal supremo,
protegido até mesmo do toque da graça. Ele preferiu não ir adiante naquele
assunto. Uma vez, cerca de dez anos antes, ele o tentara. E o ataque
violento que decorreu daí interrompeu o exorcismo (o qual teve de ser
retomado e concluído por uma outra pessoa), e deixou Mark literalmente
surdo e mudo por cinco semanas. Algo vital havia praticamente morrido em
Mark naquela ocasião. Ele desafiara o espírito maligno em seu próprio
terreno.
Ele passou para uma outra pista. “Seu rosto esquisito: qual era o
propósito disso?”.
“O rosto esquisito não era coisa nossa. Nós não assustamos aqueles que
sondamos”.
“Qual efeito era provocado ao mostrar aquele rosto para Jamsie?”.
“Era assim que seu protetor tentava familiarizá-lo com o rosto que todos
adquirem ao passar ao nosso domínio...”.
“Foi isso”, Mark parou, quase sem querer, “que parou Jamsie na represa?
Aquela face?”. Não houve resposta imediata.
Mark teve um levíssimo indício de algo estranho ocorrendo aos outros no
cômodo. Ele olhou para o jovem padre; seu rosto transpirava. Mark parou.
De repente todos os quatro assistentes lançaram suas mãos sobre os
ouvidos, os rostos contorcidos numa expressão de dor.
“Mark, pelo amor de Deus, faça com que eles parem esse apito!”, o
médico gritava a plenos pulmões. “Isso vai nos deixar malucos”.
Ele e os outros três começaram a gemer de dor, gritando, se agitando de
um lado para o outro, afastando-se da maca diante da qual Mark permanecia
ao lado do corpo inerte de Jamsie.
Mark deu um passo na direção deles, mas logo recuou. Ele tentou uma
vez mais, e novamente recuou. Cada vez que ele dava um passo para fora
de um certo círculo invisível ao redor da maca, seus ouvidos eram tomados
de assalto por uma chuva de sons em altíssimos decibéis.
Os quatro assistentes de Mark se contorciam e se afastavam lentamente,
olhando para Mark e implorando por ajuda. Ele indicou com grandes gestos
que eles deviam continuar se afastando. Eles o fizeram até que, a
aproximadamente um pé de distância da parede em que se encontrava a
porta do cômodo, todos os quatro pararam de agonizar. Seus rostos
perderam as linhas de dor e sofrimento.
Eles olharam para Mark finalmente como se tivessem cruzado uma
enorme distância, chegando enfim a um lugar calmo e coberto de névoas.
Embora Mark pudesse vê-los claramente, não era possível ouvi- -los de
todo. Já eles podiam somente ouvir Mark e ver seus lábios se movendo e
suas mãos gesticulando de um modo distorcido. Era como olhar através de
um vidro fosco para uma sala iluminada; eles viam tudo, mas sem clareza.
Colados à parede do lado oposto da sala, foi por esse estranho meio que
seus quatro ajudantes assistiram ao encerramento do exorcismo de Jamsie
por Mark. Foi um verdadeiro filme de terror para eles.
Eles viram a imagem de Mark virar-se parcialmente na direção do corpo
de Jamsie sobre a maca. Viram-no erguer o crucifixo; viram seus lábios se
movendo, mas não ouviam nada. E então, muito distante e em meio a um
barulho grave, como uma contínua avalanche, eles começaram a ouvir sua
voz.
“... como nós ordenamos, porque é em nome de Jesus que ordenamos que
você nos responda. Foi a face quem refreou o suicídio de Jamsie?”.
Uma outra voz, aquela que pronunciava as palavras de um modo afetado,
irrompeu num tom gutural, áspero, decidido, frio, hostil. “Você está
interessado naquele rosto esquisito, padre? Gostaria de vê-lo por si
mesmo?”.
“Responda a nossa questão”, foi como Mark rebateu aquele convite à
curiosidade. “Responda!”.
“Sim, Si-i-i-i-i-i-i-i-i-im”. Os sons se arrastavam com muita má vontade.
“Foi aquela face. Nós sempre estamos presentes quando os inferiores estão
prestes a matar”.
“Então sempre que você estava presente, o protetor de Jamsie tentava
fazê-lo ver aquela face?”. Não houve resposta a essa pergunta.
Mark passou para um outro ponto. “Por que você deixou que Jamsie
visse... o… o Vulto?”. Mark titubeou com essa, mas logo retomou sua
compostura. Houve momentos em sua própria vida em que ele esteve
prestes a tomar uma importante decisão e, ele agora se dava conta, uma
espécie de vulto se fizera presente. Ele sempre atribuía essa sensação a
alguma outra coisa. Mas os fragmentos da memória vinham perturbá-lo
agora. Aqueles momentos se passaram durante seus dias de alegria, os dias
de “enredo”, quando tudo tinha de ter uma causa lógica e descritível, e tudo
era muito simples.
“Nós não deixamos. Nanananananão”. A palavra veio como um murro,
repleto de dor e arrependimento. Mark sentiu o impacto. Mas ele
prosseguiu, pressionando com suas questões, e sempre mantendo o
crucifixo erguido.
“Por que existia um olhar comum entre o Vulto, Tio Ponto, Jay Beedem,
o cafetão e tantos outros; por que havia um olhar comum?”.
Mark podia ver uma mudança em Jamsie impossível de ser percebida por
seus quatro assistentes através da névoa que os separava. Jamsie estava
agora perfeitamente acordado, mas seus olhos não fitavam Mark. Eles
estavam voltados à esquerda. Mark teve o cuidado de reparar nisso, mas
continuou olhando firmemente para Jamsie. Ele repetiu sua pergunta.
Estava chegando perto.
“Por que o olhar comum? Isso faz parte também da sua maldade
estúpida?”.
“Está para além do seu controle”. As palavras saíam com dificuldade.
“Nós também... devemos submeter... nas coisas materiais, nós... também
limitados... Pessoa para além do desprezo detém... detém... detém...
detém...”. A vos começou a se arrastar. “De-e-e-e-et-é-é-é-é-é-m-m-m-m- -
m”. A voz se perdeu num ruído até que não se pôde ouvir mais nada.
“Por que o olhar comum?”, Mark continuava olhando para Jamsie,
buscando qualquer pista ou indício em suas reações.
Ainda pregados à parede oposta, os assistentes de Mark foram tomados
de horror. Eles gritaram em advertência a Mark. Ele não podia ouvir, e
continuou olhando para Jamsie.
A tal coisa que eles viram parecia vaga de início, um perfil volumoso,
elevando-se por trás de Mark, parecendo-se muito com um gato que se
ergue desajeitado em suas pernas traseiras, as patas dianteiras erguidas,
unhas expostas, orelhas aplainadas e a boca aberta pronta para um silvo.
Eles ouviram o ressoar da voz de Mark que prosseguia com o exorcismo.
Não havia nada que eles pudessem fazer além de observar e orar.
“O que você coloca nesses seres humanos para que eles tenham esse
olhar?”.
E a voz respondeu num tom grave, monocórdio, áspero: “Obediência ao
Reino. Eles nos dão sua vontade. Nós preenchemos suas almas. O que está
no interior acaba saindo, quer queira quer não...”.
Jamsie, ainda atado à maca, erguera sua cabeça para olhar a forma
ameaçadora atrás de Mark. Ela se movia constantemente para frente e para
trás, passando da esquerda à direita como se buscasse algo. Mas para
Jamsie ela se parecia menos com um gato e mais como um homem
enfaixado em bandas escuras e pesadas. Mark, concentrado em observar
Jamsie, não seguiu a direção de seu olhar.
“Você tem de ir embora”. Mark lançava seus golpes finais contra o
espírito. “Você tem de se manifestar e deixar esse ser humano. Em nome de
Jesus!”.
Os assistentes, todos ainda confinados no canto da sala, podiam ver
ambos os rostos – o de Jamsie e da figura negra – contorcer-se naquele
momento. “E não somente você, mas o seu escravo, seu Tio Ponto. Ele e
todos os que estejam com ele. Fora! Eu digo: saiam, vocês todos! Para
fora!”.
Os assistentes de Mark estavam agora em pânico. Tudo o que eles
podiam ver naquele momento era a ameaça que pairava por trás de Mark.
Eles tentaram mover-se para frente contra aquela excruciante tempestade de
som.
“Nós não descansaremos nunca até nos vingarmos de você”, a voz dizia,
“nós vamos deixar essa bola miserável de lixo morta quando sairmos
daqui”.
“Nem a vida nem a morte são seus para que vocês as dêem ou as tomem.
Elas pertencem a Jesus”.
Jamsie começou a gritar histericamente naquele instante.
Os ouvidos de Mark foram pegos em cheio por aquele grito; ele manteve
o crucifixo erguido e rezou em voz alta, usando apenas duas palavras:
“Jesus! Misericórdia! Jesus! Misericórdia! Jesus! Misericórdia! Jesus!
Misericórdia!”.
E então os gritos agonizantes de seus quatro assistentes alcançaram seus
ouvidos: eles haviam deixado seu refúgio-prisão contra a parede oposta,
penetrado o espaço entre a parede e a maca na qual Mark estava ao lado de
Jamsie, e estavam uma vez mais se contorcendo sob o impacto daquela
força que torturava seus tímpanos.
Mas mesmo em meio ao estrondo dos gritos de Jamsie e de seus
assistentes, acrescentados à sua própria voz que orava em cânticos, Mark
ouviu um som que o reconfortava e lhe dava esperança.
Era o ruído daquela avalanche de pedras que nunca cessara realmente,
mas que agora se apresentava com maior definição. Era um tumulto de
vozes, sem palavras definidas e com sílabas sem sentido, todas correndo e
se chocando umas às outras em fragmentos, interrompendo, fragmentando,
alterando-se umas às outras, uma miscelânea indiscernível de dor,
arrependimento, agonia, agouros. Ela prosseguia em ondas crescentes e
decrescentes, e então começou a crescer sem parar.
Mark captou a pista: era a confusão sonora da derrota. Ele urrou as
palavras com toda a força.
“Em nome de Jesus! Vocês têm de partir! Seres imundos! Não há lugar
para vocês aqui! Não há morada neste ser humano. Pois Jesus ordenou:
Vão! E vocês vão! Vão! Vão!”.
Mark lembra-se claramente de ter parado nesse ponto. Ele pensou rápido.
Naquele momento o espírito maligno possessor devia estar suficientemente
enfraquecido, e o controle de Ponto sobre Jamsie suficientemente diluído
para que Jamsie tomasse sua decisão fatal; a mais importante de todas elas.
Mark se inclinou diante do ouvido de Jamsie, falando num tom de voz
gentil e firme. Ele se lembra de tudo, quase que palavra por palavra; era a
escolha a que sempre se chegava de algum modo. “Jamsie! Jamsie! Jamsie!
Ouça-me: Agora! Você tem de escolher! Você tem de fazer uma escolha!
Ou você dá um passo em direção à verdade e renova sua fé, sem pensar
duas vezes, veja, sem pensar duas vezes. Ou agora você se rende a Ponto e
a todos os amigos de Ponto. Jamsie! Todos eles, Jamsie! Em nome de Jesus,
escolha! Escolha agora, Jamsie!”.
Jamsie, por sua vez, despertou do meio de toda aquela confusão ao seu
redor. Aos poucos, seu olhar foi ficando mais definido e ele começou a
discernir figuras ao lado do Vulto atrás de Mark, e viu gestos em
ziguezague, o teto e as paredes do quarto; ele sentiu a pressão das tiras de
couro em seu peito, cintura e pernas. Ele se lembra de estar com a boca
seca, mas respirando com facilidade.
Mais distante do leito, ele não podia ver nada além de um fundo negro
indistinto – a comparação mais próxima que Jamsie pode nos dar para
descrever esse fundo turvo é o que ele viu quando experimentou, certa vez,
os óculos-fundo-de-garrafa de um amigo quase cego. Tudo ficou borrado ao
mesmo tempo e pareceu tornar-se mais escuro.
Mais próximo dele era possível ver as figuras dos assistentes tapando os
ouvidos com as mãos e lutando contra aquele barulho ensurdecedor. Um
deles cambaleava. Dois estavam caídos no chão. Um outro estava de pé e
ereto, movendo-se lentamente e agonizando.
Ainda mais próximo dele ele podia discernir duas ou três figuras, juntas
com uma multidão de contornos e formas. Tio Ponto estava ali, mas a uma
distância infinita. Jamsie não conseguia entender aquilo: Ponto estava
próximo, e ainda assim distante. Ele parecia estar todo comprimido, como
se seu corpo estivesse sem ossos e alguém o tivesse espremido, afunilando
seus membros, fazendo seus olhos incharem. E seu olhar não era mais algo
de simplesmente pernicioso, mas tinha algo de sórdido, sentiu Jamsie;
sórdido e amargo, odioso, desesperado, tudo ao mesmo tempo.
A agonia de Ponto pareceu multiplicar-se por todo um rio de formas e
contornos – torsos sem cabeças, cabeças sem corpos, braços e pernas sem
tronco, dedos sem mãos nem pés, barrigas sem corpo, genitálias flutuando
sozinhas, longas tranças de cabelo loiro e grisalho – tudo aquilo
serpenteando irregularmente, sem rumo, ao redor de Ponto.
O mais próximo a Jamsie de todos eles, exceto por Mark, era o Vulto. Ele
pairava por detrás de Mark, com uma estatura sobre-humana. Ele não era
negro, nem cinza e nem branco, mas de uma amálgama indefinível de tons
ambientes, como a fumaça de carvão úmido – nunca estável, mas em
constante transformação. Cabeça, ombros, mãos, boca, olhos, pés podiam
ser percebidos com clareza, mas não de forma clara o suficiente para serem
descritos.
Jamsie ouviu a voz de Mark novamente, gentil, firme, conclusiva.
“Jamsie! Agora é hora de escolher. Lembre-se! Eu lhe disse. Você! Você
escolhe. Você tem de escolher. Por sua livre e espontânea vontade”.
A voz de Mark conseguia chegar aos ouvidos de Jamsie de algum modo,
a despeito do barulho todo e de toda a movimentação e distrações
provocadas por todas aquelas formas.
“Escolha! Escolha! É sua a escolha. Agora!”. Essas palavras ficaram
gravadas na memória de Jamsie.
Jamsie não podia ver o rosto de Mark pois ele estava curvado para falar
em seu ouvido, mas os traços do Vulto eram claros. Um caleidoscópio de
expressões transitava em sua face. Jamsie começou a lembrar-se, de
maneira ainda vaga. Onde é que ele tinha visto aquela expressão? Esta
expressão? Aquela outra? A última? Todas elas pareciam diferentes, e no
entanto todas pareciam ser a mesma.
E então Jamsie se deu conta de que as várias expressões cambiantes
estavam se repetindo seguidas vezes, indo e vindo, retornando num
carrossel repleto de gritos, ruídos e estrondos.
“Escolha! Escolha!”.
Era a voz de Mark novamente. Jamsie se virou. Ele tentou enxergar o
rosto de Mark, mas não conseguiu. Da testa ao queixo, Mark parecia não ter
uma face. Mas ele ainda ouvia a voz de Mark.
Sua memória então começou a clarear. As expressões se tornaram mais
familiares. Sim... sim... Aquele era o rosto de seu pai, Ara... e aquele outro
era Tio Ponto... o cafetão... Jay Beedem... Jay Beedem?”.
“Escolha! Jamsie! Escolha!”.
E então, intercaladas com as faces cambiantes, Jamsie começou a ver as
outras faces esquisitas que ele vira em todos aqueles anos de sua infância,
1960, 1958, 1957, 1949, 1941, 1940, 1939, 1938, 1937, 1933. E ele
começou a ver que o seu medo, durante todos aqueles anos, havia sido uma
forma de fascinação, e que mesmo quando ele fugia dos “rostos esquisitos”,
ele os esteve convidando, que ele quis ser encontrado por eles!
Dentro de seu mais profundo ser iniciou-se um movimento, para além de
sua disposição. O desejo de se livrar daquele fascínio. Mas havia ainda o
medo e a dúvida agonizantes. “Se eu parasse de olhar para aquele
carrossel”, descreve Jamsie, hoje, recordando de seus sentimentos durante o
exorcismo, “eu sentia que eu deixaria de existir. Que eu iria morrer,
morrer”.
E, depois de alguma hesitação, ele desviou seu olhar fascinado daquele
carrossel de faces por um segundo, e olhou para Mark.
Mark não aparecia mais sem rosto para Jamsie. Ele não tinha os traços
que Jamsie sabia serem aqueles de Mark. Mais, ainda assim, eles
pertenciam verdadeiramente a Mark. Eis mais um enigma para Jamsie.
Ele entrevia Mark, e conseguia perceber seus olhos, nariz e a boca. As
cores de seu rosto começavam a brilhar com um tom dourado envelhecido,
um prateado manchado, um azul esmaecido, marrom e amarelo. Jamsie
chegou a temer encontrar algum estágio do “rosto esquisito” em Mark, mas
não encontrou nenhum. E ele não sentiu medo algum. Uma outra emoção,
outros pensamentos surgiam em Jamsie.
A voz de Mark tocou seus ouvidos novamente. “Você deve escolher,
Jamsie”.
Jamsie olhou uma vez mais para o Vulto. Havia, naquele seu corpo
enorme, em cada curva de seu rosto e seu perfil cambiantes, um certo
temor. Jamsie podia ler os sinais da hesitação nele, ainda que em meio
àquelas mudanças que tanto lhe fascinavam.
Jamsie começou a olhar alternadamente para o Vulto e de volta para
Mark, retornando ao Vulto, lento de início, e em seguida mais rapidamente.
E o insistente “Escolha. Faça sua escolha, Jamsie!”, vinha de novo e de
novo.
De repente ele entendeu. Ele era livre. Ninguém iria forçá-lo. Ninguém
poderia. Ele era livre – para se enfiar no mundo dos horrores cambiantes do
Vulto, ou para olhar para Mark e fazer a escolha oposta.
Ele começou a olhar fixamente para Mark; e, naquele olhar, o padre
entendeu que ele estava escolhendo.
Nenhuma palavra saiu de seus lábios. Ele não tinha nenhuma frase em
seu cérebro, nenhum conceito em sua mente a respeito daquela escolha. Ele
estava escolhendo, simplesmente porque optou por escolher; e, escolhendo,
portanto, ele estava sendo livremente.
E conforme o impulso de sua escolha ganhava força dentro dele, ele
começou a reconhecer as novas linhas e tons no rosto de Mark: todos os
traços de bondade, alegria, liberdade e acolhimento que ele sempre vira nos
outros – em Lydia e Ara anos antes, em Lila Wood, no velho ícone da casa
de Nova Iorque – todos estavam ali como diversos quadros, como espelhos
refletindo uma imensa beleza, alegria, paz e uma eternidade inabalável.
Aos poucos os traços de Mark ficaram claros – os traços sólidos de Mark,
tensos e graníticos, seus olhos fechados, sua mão ainda erguida segurando o
crucifixo. O Vulto estava recuando como a fumaça de um cigarro que se
dissipa no ar. E com ele todo o barulho se esvaia, dando lugar ao silêncio.
Mark trazia agora o sofrimento estampado no rosto feito uma gaze
apertada. Jamsie estava tomado de compaixão. Mark dissera para ele: “Se
nós nos livrarmos do Inimigo, Jamsie, eu serei o último a sentir a chicotada
da sua cauda”.
Mark perdeu Jamsie de vista naquele momento. Ele estava passando por
suas próprias dores, sua própria agonia, pagando com sua própria dor.
Foi o jovem assistente quem descreveu a mudança em Jamsie. Não havia
mais nenhum sinal de sofrimento. Uma grande calma pareceu tomar o rosto
de Jamsie. A voz de Mark ainda ressoava, embora o barulho já tivesse se
dissipado. Mark estava repetindo novamente as duas palavras:
“Jesus! Misericórdia!”.
O jovem padre compreendeu que Jamsie estava enfim livre. Ele
desafivelou as cintas que prendiam James à maca.
“Mark!”, Jamsie gritou ao exorcista ao levantar-se da maca. “Padre
Mark! Eu estou livre!”. Jamsie tocou Mark no braço. “Padre Mark!”. Ele
tomou a mão de Mark e sentiu o frio glacial daqueles dedos. Esperou por
alguns instantes.
Mark finalmente baixou o braço que empunhava o crucifixo. Seus olhos
perderam aquele aspecto vítreo; ele piscou, e Jamsie viu que um olhar
desperto retornava aos olhos de Mark. E Mark viu nos olhos e na face de
Jamsie uma expressão de paz e esperança viva, que nunca estivera ali desde
que o conhecera.

1 “California, Here I Come!” composta por Buddy de Silva e Joseph Meyer para o musical Bombo
(1921) – NT.
2 Referência ao episódio da Grande Depressão, de 1929, em que Whitney compra a U.S. Steel por
um preço acima de qualquer expectativa, num esforço temporariamente exitoso de conter a crise –
NT.
3 Espécie de loteria ilegal típica dos bairros pobres americanos – NT.
4 28 gramas – NT.
5 Ferrovia elevada – NT.
6 Said the actress to the bishop – Expressão que sugere duplo sentido involuntário no que acaba de
ser dito por um interlocutor – NT.
7 Trata-se do “Sindicato do crime”, nome dado pela imprensa à associação de criminosos de origem
predominantemente italiana e judaica que atuou nos EUA a partir de 1929 – NT.
O Galo e a Tartaruga
Atorre do relógio na Piazza della Liberta de Udine marcava 6h da manhã
em ponto quando o grupo de oito americanos deixou o hotel em duas
limusines. Todo o timing daquela viagem havia sido planejado nos mínimos
detalhes.
Era dia 23 de julho, e já se podia sentir o forte calor do verão. Em 15
minutos, eles já haviam percorrido as estreitas ruas em meio a arcadas e
pórticos, saindo da cidade, caindo na estrada ondulada em direção à planície
costeira. Vez ou outra, ao alcançar o alto de uma colina, eles podiam ter
vislumbres de uma faixa azul brilhante do mar Adriático no horizonte. Ao
extremo norte ficavam os Alpes, brancos de neve, a vigiá-los.
Seu destino final era o vilarejo de Aquiléia (população: 1.500 habitantes),
a uns 20 km ao sul pela costa. Para Carl, líder da viagem, aquela era uma
volta para casa: durante muito tempo ele vivera, sofrera e triunfara em
Aquiléia. Para os sete companheiros de Carl, aquela era uma peregrinação
para um santuário venerado.
Os dois homens viajando com Carl na primeira limusine eram seus
amigos e associados: a mulher, Maria, fora sua assistente durante quatro
anos. Os quatro universitários na segunda limusine eram graduandos e
assistentes de Carl. A viagem, além de ser um ponto alto em suas vidas de
estudos, era também uma celebração mística.
Na primeira limusine, Carl conduzia a conversação num tom jubiloso:
“Nós estamos prestes a descobrir como era o cristianismo antes de ser
distorcido pelos gregos e romanos”. Ele era um homem atarracado, com
seus quarenta e tantos anos, com barba e cabelos negros cortados rentes;
maçãs do rosto rosadas sob uma testa alta, e os olhos não apenas negros,
mas de um negro brilhante, como ágatas polidas. Tinha um nariz romano,
longo, estreito, ligeiramente arqueado no meio. Os lábios carnudos
assentados sobre um maxilar forte. Estava bronzeado e tinha um ar
saudável. Sobre a camisa aberta, vestia um blazer.
Ao falar, gesticulava discretamente para enfatizar o sentido do que dizia.
O anel em seu indicador direito refletia o sol matinal. Era um aro largo,
todo dourado, adornado com uma imagem em ouro de uma tartaruga. Ele
brincava com dois emblemas de um deus romano antigo, Netuno, um
golfinho e um tridente, que pendiam numa corrente em seu pescoço.
Carl era um psicólogo qualificado, como graduação em Física. Seus
estudos o conduziram à parapsicologia e à pesquisa envolvendo os estados
não-ordinários da consciência humana. Sob o impulso de seus dons pessoais
enquanto médium, ele fizera experimentos com viagem astral e
reencarnação.
Depois de 11 anos de trabalho intenso, ia para Aquiléia acompanhado de
associados e alunos. Pois, naquele lugar, como ele e os outros haviam
descoberto alguns meses antes, durante um de seus transes, Carl vivera
1.600 anos antes, durante uma antiga existência enquanto um notário
público chamado Petrus. Naquele transe, que ocorrera sob condições
laboratoriais controladas, Carl descreveu com precisão não apenas a antiga
Aquiléia – seu anfiteatro, seus fóruns, banhos públicos, palácios, portos,
cemitérios, arcos triunfais e lojas, mas deu uma descrição detalhada de
como os cidadãos de Aquiléia no quarto século reerigiram uma estátua
pública de Netuno que uma seita religiosa havia derrubado no século
anterior. Algumas semanas depois dessa sessão, vieram notícias de
Aquiléia, independentes do estudo de Carl, contando exatamente de uma tal
estátua e de uma inscrição latina que confirmava as indicações de Carl.
Carl também dera detalhes sobre um piso em mosaico que fazia parte de
uma capela cristã do séc. IV. E ele acrescentou um detalhe mordaz, que
fascinou seus associados e alunos: uma descrição de um ritual muito antigo,
que costumava ser realizado por Petrus e seus companheiros num ponto
preciso sobre aquele piso em mosaico.
O objetivo da presente viagem era reencenar aquele ritual em 23 de julho,
o festival de verão do deus Netuno.
Agora, na primeira limusine, Carl estava descrevendo novamente aquele
local preciso da capela e o ritual. O ponto era um medalhão em mosaico
representando uma luta entre um galo vermelho e uma tartaruga marrom.
Aparentemente Petrus e seus companheiros – “cristãos do tipo original”,
comentava Carl – costumavam vir e dispor-se em fila à direita do medalhão.
A seguir, um por um, eles pisavam sobre o galo (símbolo do orgulho
intelectual e da sede de poder imperial que “corrompera o cristianismo
genuíno e original”), e se ajoelhavam. E, olhando, para a Tartaruga
(símbolo da imortalidade e eternidade), pronunciavam a fórmula latina: Ave
Dominus Aquae vivae! Ave Dominus immortalis qui Christum fecisti et
reduxisti! (Ave, Senhor da Água Viva! Ave, Senhor Eterno que fez Cristo e
o tomou de volta!).
Era esse aspecto religioso de correção nos experimentos e pesquisas de
Carl que haviam atraído o interesse e a atenção de muitos – em particular,
do grupo que o acompanhava naquela manhã.
Norman fora criado como luterano, mas no fim de sua adolescência se
rebelou contra o tradicionalismo e as crenças conservadoras de sua igreja.
Ele se convenceu de que Lutero era um rebelde sem causa, e o luteranismo
uma mera invenção do séc. XVI que tinha muito pouco a ver com o
ensinamento original do Cristo e dos primeiros cristãos.
Albert, segundo associado de Carl, era um ex-padre da igreja episcopal.
Depois de três anos de ministério, ele fez estudos em psicologia,
convencido de que sua igreja não mais falava a linguagem do povo
moderno e que não mais oferecia a mensagem original de salvação que o
Cristo pregara.
Dos quatro graduandos em psicologia, do grupo viajando na segunda
limusine, dois eram católicos – Donna e Keith; um deles, Bill, era judeu.
Charlie fora batizado na igreja presbiteriana, mas havia se convertido ao
judaísmo há dois anos. Todos os quatro haviam sido educados com a idéia
predominante de seu tempo, a saber que a cristandade ocidental era um
produto da filosofia grega e do legalismo e organização romanos, e que as
igrejas eram fraudes e representantes falsos da genuína igreja de Jesus.
O plano do grupo naquela manhã era muito simples. Sem causar alarde,
eles planejavam dispor-se em volta de Carl enquanto ele reencenava aquele
antigo rito sobre aquele medalhão no antigo piso da catedral. Eles tinham
um gravador em fita e uma filmadora. Norman, associado próximo e de
longa data de Carl, além de colega psicólogo, atuaria como monitor: a cada
estágio ele iria anunciar no gravador o que estava acontecendo durante a
visita, mesmo enquanto tudo estivesse sendo filmado. Eles como que
esperavam que Carl pudesse revelar outras evidências de Petrus e seus
antigos companheiros de culto. Enquanto psicólogos, Carl e seus
companheiros esperavam obter alguns novos insights sobre parapsicologia
extraídos da experiência direta.
Sete quilômetros ao sul da estrada que liga Veneza a Trieste, eles
entraram em Aquiléia. Tudo estava banhado na luz ofuscante do sol. Todas
as cores estavam fundidas no brilho do dia. As circunstâncias eram
favoráveis para Carl, naquela manhã em Aquiléia. Todos os indícios de vida
e atividade modernas pareciam dormentes. Naquele festival de verão de
Netuno, deus do mar, enquanto eles se encaminhavam lentamente em
direção à catedral, todos os viventes dormiam, escondidos, como se Netuno
tivesse lançado sua rede sobre eles. Mesmo os cães e galinhas ainda
dormiam. Um gato solitário lambia-se em cima do telhado, à sombra de
uma chaminé.
Maria tocou a mão de Carl, sorrindo. Ele respondeu à sua expressão de
satisfação com um sorriso breve, mas não disse nada. Todos olhavam para
as ruas do vilarejo enquanto rodavam pela praça. Casas, tavernas e lojas
tinham seus contornos distorcidos pelo hálito quente da luz e do calor. Para
aqueles com olhos para ver, o século vinte agora transparecia feito uma
janela no tempo. Na fervura daquele silêncio, eles sentiram a presença de
antigos deuses, o silvo de espadas, e de todos aqueles que outrora
caminharam por ali, carregando consigo toda sua honra, sua tristeza, seus
amores e derrotas.
O vilarejo era dominado de forma quase incongruente pela enorme
catedral e seu campanário cônico. Aquiléia, cidade de 2 mil anos de idade,
fora outrora a quarta cidade romana mais importante, depois da própria
Roma, Cápua e Milão.
Comunicando-se, à época, com o Mar Adriático por seis canais, aquela
era a única cidade fora de Roma com o poder de cunhar suas próprias
moedas. Capital de uma província estratégica e economicamente vital, ela
era famosa por seu teatro e seus festivais religiosos, suas celebrações de
mistérios e suas águas curativas. Era o ponto de encontro de imperadores
romanos, papas, sínodos; residência de seu próprio patriarca; apreciada por
reis germânicos e austríacos; disputada por eslovenos, hunos, ávaros,
gregos, francos, ingleses, escandinavos.
Aquiléia era agora uma pequena comunidade rural obscura, isolada,
vilarejo esquecido e sem importância, que não era visto em grandes mapas,
e descrito sarcasticamente por alguns clérigos de Roma como “a catedral
com algumas ruas em anexo”.
O grupo de Carl seguiu direto para a catedral; eles tinham um combinado
com o guardião. Quando chegaram à porta, os assistentes começaram o
“experimento”. Donna ligou a filmadora, e Bill o gravador. Tudo estava
pronto. Estavam todos tensos e cheios de expectativa. Um certo ar de
alegria pairou sobre eles.
O objetivo agora era entrar na catedral, passar por sua nave central, virar
à direita no santuário e descer nas ruínas da capela do séc. IV.
O comportamento de Carl mudou no instante em que eles pisaram fora da
limusine. Ele não estava mais sorridente e descontraído. Ele tinha agora
aquele “olhar” que seus associados já tão bem conheciam – as pálpebras
pesadas, quase fechadas, a cabeça erguida, mãos pendendo dos lados, e um
brilho especial no rosto, um ar absorto e reverente associado com seus
transes. Havia sinais de êxtase e alegria nos cantos de sua boca. A calma
total de um arrebatamento parecia ter descido sobre ele: sua testa e
bochechas estavam profundamente relaxadas, sem quaisquer rugas ou
linhas, como se a pele tivesse rejuvenescido repentinamente ou sido
esticada por uma mão invisível.
Mas a expressão geral de seu rosto, como um todo, era de uma ausência
pálida. Não havia nenhum indício de expressão pessoal, nenhum sinal de
uma palavra prestes a ser pronunciada ou de uma paixão prestes a eclodir,
nenhuma confidência, medo, abertura de espírito... nenhuma amostra de
compaixão e nem da expectativa de compaixão.
E ao redor de seus olhos, de tal modo que nenhum de seus associados e
estudantes pôde jamais explicar, havia aquilo que eles vieram a chamar de
“torção” – algo de disforme, de malfeito, como se os contornos naturais de
seu crânio, testa, olhos e ouvidos tivessem sido bagunçados por uma força
sobre-humana residindo nele temporariamente e tremendamente poderosa.
Era deselegante, feio, mas aceito por aqueles que o cercavam como algo
inevitável. Carl sempre se referia a isso como “meu sofrimento divino”.
Pois sua teoria – ou, melhor, sua crença – era de que durante os transes
psíquicos um ser humano com uma “alma aberta”, como ele costumava
dizer, era “arrebatado”, era “possuído” pelo sobre -humano. A simples
estrutura física desse ser humano era arrebatada – e, nesse sentido, padecia
– pelo irromper de uma divindade silente. A fina barreira de realidade que
separava o divino e o humano era temporariamente violada, e o humano era
“banhado” no divino.
Agora todos aguardavam. Carl tinha de se mover e falar algo. Não podia
haver nenhuma interrupção exterior, nenhum estímulo externo. Os minutos
se passavam. Eles ainda não tinham passado a entrada. Os lábios de Carl se
moveram, mas não se ouviu nada. Ele então mudou de posição, formando
lentamente um semicírculo, primeiro na direção do mar, a 10 km de
distância, e em seguida na direção de Veneza, ao sudoeste. Ao virar-se, foi
possível ver uma expressão questionadora em sua face. Ele parecia estar à
espera de algo.
Eles ouviram fragmentos de palavras e sentenças: “... o quarto canal...
Via Póstuma... tem de conter o número integral do...”. Mas sua voz se
esvaiu completamente no momento em que ele passou a olhar na direção de
Veneza. Em seu rosto havia agora um olhar tempestuoso. Seus lábios se
moviam furiosamente como se numa discussão calorosa. Mas ninguém
ouvia nada. Novamente ele se virou, face à porta da catedral.
“Agora são 8h”, gravou Norman. “Carl está entrando na catedral. Sua
mão direita está erguida num gesto de saudação, a palma virada para fora”.
A face de Carl estava calma novamente. Seus lábios pararam de se
mexer. Eles adentraram um enorme mar de silêncio, em tons de marrom e
dourado, banhado pela luz do sol, sobre o qual se arqueavam as costelas em
rocha de um teto que se prolongava a perder de vista.
Carl então passou direto pelos 35 metros da nave. Com 20 metros de
largura, o piso era um oceano repleto de mosaicos ladeado por sólidas
colunas de cada lado, e dava para uma abside semicircular diante da qual
ficava o altar. Os raios do sol penetravam pelas janelas da nave e caíam por
toda a extensão do edifício em veios alternados de luz e sombra. A poeira
tremulava nos focos de luz, listrando o ar com cores dos mosaicos e das
paredes: vermelho, amarelo, ocre, roxo, laranja, verde.
O pequeno grupo caminhou por três quartos da nave de forma solene e
firme, sobre aquele piso mágico, repleto de desenhos de guirlandas,
pássaros, animais, peixes, antigos romanos, tudo aquilo brilhando em
matizes intensos e formas sofisticadas.
Carl fez um só desvio: Ao chegar num certo medalhão disposto no chão,
ele parou. Seus lábios se mexiam de novo: “... fraqueza... preferir a morte à
força... prostituindo a humildade desse fraco...”. Ele então passou a repetir,
num sussurro seco, as antigas palavras romanas evocando a força cruel de
Roma: “Virtus, virtus, virtus...”.
Norman olhou para o medalhão: “Carl está contornado o mosaico do
Bom Pastor”, ele gravou.
A voz de Carl foi se perdendo gradualmente naqueles seus tons
sussurrados: “... burro que zurra... o deus de Alexandre... burro que
zurra...”.
Depois disso, Carl caminhou calmamente até alcançar uma ampla faixa
de mosaico depois da qual eles viram uma imagem composta do mar. Os
antigos artistas haviam retratado barcos, pescadores, peixes de todos os
tamanhos, serpentes do mar, golfinhos, e um tema recorrente: Jonas, figura
do Antigo Testamento, na boca de uma baleia.
O comportamento de Carl tornou-se errático a partir desse momento, e
seu rosto uma vez mais transmitia uma raiva mesclada à confusão e ao
desprezo. Ele recuou e expirou, com o corpo quase de cócoras. Em seguida
ele balançou sua cabeça de um lado para o outro, como se procurando uma
saída em meio a perigosos espinhos.
Norman gravava, com a voz vacilante, ao seguir o percurso instável de
Carl: “Carl está caminhando para a esquerda. Lentamente... agora para o
centro, agora para a direita – não, ele está indo para a esquerda de novo,
pisando sobre um medalhão de Jonas”. E então, num aparte para Donna,
que ainda filmava todos os movimentos de Carl, “Passe à frente dele,
Donna, passe à frente, por favor”. Donna assim fez.
Carl subiu os degraus do santuário, parecendo sentir dores, com paradas
repentinas e passos cautelosos. Ao registrá-lo na câmera, Donna viu que
seus olhos estavam arregalados e ardentes de uma raiva que ela jamais vira.
“Carl está voltando”, Norman continuava gravando. “Ele está indo em
direção à porta do túnel”. Esse túnel conduzia à capela do séc. IV sobre a
qual a presente catedral havia sido construída no séc. XI.
Donna foi a primeira a tocar o piso retangular da antiga capela. Ela
fotografou a chegada de Carl, Norman e outros. Carl agora caminhava sem
hesitar, sempre adiante, mas virava sua cabeça por diversas vezes como se
constatando presenças que os outros não pudessem perceber.
O piso era mais uma massa elaborada de mosaicos romanos – faisões,
mulas, frutos, figuras e cenas pastorais, flores. Carl não parou até chegar a
uma larga faixa de mármore laranja que corria por toda a largura da capela.
“Carl está parado sobre a faixa laranja”, Norman continuou sua gravação.
“À frente dela há diversos desenhos geométricos”.
Após cerca de 30 segundos, o comportamento de Carl mudou. Seu rosto
se iluminou. Sua cabeça se ergueu. Suas duas mãos estavam abertas. Ele
caminhou pela banda laranja e foi direto na direção de um medalhão que
ficava logo depois dos desenhos geométricos. Aquele era o ponto no qual os
rituais antigos deviam ser realizados. O medalhão mostrava a Tartaruga
erguendo seu olhar ao Galo.
Os companheiros de Carl se reuniram ao redor do medalhão. Dona ficou
de frente para Carl, com a câmera apontada direto para ele. “As mãos de
Carl estão unidas, uma palma sobre a outra, contra seu peito”, Norman
sussurrava no microfone. “Seus olhos estão fechados. É agora”.
Tão logo Norman terminou de dizer isso, Carl abriu totalmente seus
braços para os lados; ele ergueu sua cabeça, dirigindo seus olhos para o alto
por detrás das pálpebras fechadas. Seus companheiros começaram a ouvir
meias-palavras e sílabas daquele antigo encantamento que ele recitara:
“...aquae viv... immortalis...”. Mas ele parecia gaguejar ao chegar na palavra
“Christum”. Ele nunca a pronunciava inteiramente. Ela vinha como
“Christ... Christ... Christ...” (soando muito parecido com grist). 1 E,
gaguejando sempre nessa primeira sílaba, sua voz ficava cada vez mais
forte, e sua respiração se acelerava.
“Aqui, Bill, pegue o microfone”, disse Norman rapidamente, “mas
segure-o de forma que ainda possamos pegar meus comentários e as
palavras dele”. Ele fora instruído por Carl, caso houvesse qualquer
dificuldade ou imprevisto, a tomá-lo delicadamente pela mão e guiá-lo para
sobre o Galo.
Carl balbuciava: “Christ...Christ...Christ...”. Donna percebeu, em sua
câmera, a espuma branca começando a se formar nos cantos de sua boca.
Norman conseguiu pegar a mão direita de Carl. “Deus!”, ele exclamou num
sussurro muito forte, “suas mãos estão um gelo”.
Carl começou a se debater e parou de falar. Ele parecia um homem
lutando para caminhar contra um forte vento. Sua mão tremia na mão de
Norman, e seu corpo todo vibrava no esforço de seguir em frente, de
caminhar sobre aquele Galo representado no medalhão em mosaico. Seus
lábios se esconderam atrás de seus dentes nesse esforço. A pele em seu
rosto se contraiu e embranqueceu, e embora não mais falasse, um gemido
grave começou a sair de seu interior, como se ele estivesse tentando
transpor um obstáculo.
Norman sentiu aquele frio gélido entrar em seus próprios dedos e mão,
amortecendo todas as suas sensações, fazendo-o perder o contato com Carl.
O gemido crescia em volume, passando a soar como um rosnado, e
intensificando-se ainda mais até tornar-se um grito em meio a seus dentes
cerrados. Norman largou a mão de Carl naquele momento e passou para trás
do grupo, perturbado. Os outros recuaram alguns passos, apreensivos,
depois dessa inesperada mudança no rumo dos acontecimentos. Carl estava
agora sozinho, ainda diante de Donna, sobre o medalhão.
No auge desse estranho grito abafado de Carl, uma mudança pareceu se
operar nele; e o choque foi forte demais para Donna. Subitamente, aquilo
que parecia estar rondando Carl cercou-o como um casulo invisível.
Correntes invisíveis se cerraram em volta de todo o seu corpo, espremendo-
o, atando-o de modo a entortar seu corpo, curvá-lo e pressioná -lo contra o
chão. Ele pareceu ter diminuído em tamanho. A expressão de esforço e
raiva em sua face foi substituída por um olhar de desespero quase infantil.
Era o olhar de alguém tentando comprimir-se no menor diâmetro possível
de seu próprio corpo.
Donna ainda manteve a câmera ligada, mas sussurrou, em pânico:
“Alguém me ajude! Por favor! Rápido!”. Ninguém se mexeu; eles não
conseguiam tirar seus olhos de Carl. Ele gemia em crescendos e
decrescendos, como se a dor e o sofrimento o estivessem esvaziando. Era
um protesto contra a agonia. Tudo aquilo foi demais para Donna. A câmera
escorregou de seus dedos e caiu no chão. E o último plano que se vê de Carl
o mostra inclinado para frente, as mãos travadas sobre seu peito, sua cabeça
entortada para o lado, os olhos fechados, a língua entre os dentes, e uma
expressão de resignação, derrota e repouso em sua face – aquela mesma
expressão já vista por muitos no rosto de pessoas estranguladas ou
afogadas. Era um olhar esvaziado.
O barulho da queda da câmera de Donna rompeu aquele momento de
fascínio estático dos outros. Bill e dois estudantes finalmente correram para
ajudar Donna. Norman e os outros ergueram Carl. Ao fazê-lo, seu corpo
relaxou, e ele foi carregado, já inconsciente e com o corpo flácido, para fora
dali.
Todos estavam tremendo e transpirando. O corpo de Carl estava frio. Eles
derramaram algumas gotas de whisky sobre seus lábios, e ele começou a se
recompor. Depois de algum tempo, ele voltou a respirar normalmente e
abriu seus olhos.
“Carl”, disse Norman em voz baixa, “Carl, vai ser melhor se nós formos
para Veneza agora”.
Pouco mais de uma semana depois, de volta a Nova Iorque, Carl ainda
não passava nada bem. Mesmo depois de alguns dias de repouso em Veneza
e Milão, e do longo vôo de volta para casa, Carl ainda estava numa
condição de perturbação que nenhum de seus associados conseguia
entender. Ele não mais era o líder autoconfiante, senhor de si mesmo,
dominante que ele fora. Ele comia e dormia esporadicamente, falava muito
pouco e cancelou todos os seus compromissos.
Carl parecia reviver por diversas vezes a cena de Aquiléia, sempre do
mesmo modo: ele murmurava e falava, por vezes caminhava pela casa e
pelo jardim a passos largos, revivendo cada passo daquela manhã
desastrosa. E, sempre no momento crucial, ele caía no mesmo estranhíssimo
arrebatamento. Foi Donna quem notou, um dia, que ele parecia estar
tentando superar o incidente de Aquiléia e aquele difícil momento sobre o
medalhão.
Norman e Albert enfim entraram em contato com os pais de Carl em
Filadélfia. Carl foi levado para casa. O médico da família prescreveu um
longo repouso.
Ninguém suspeitava que Carl estivesse possuído ou em processo de
possessão, até a noite em que Carl e seus pais dormiam sós na grande casa.
Seu pai acordou subitamente. Carl estava ao lado de sua cama, chorando
discretamente. Ele falava com muita clareza, embora nem toda sua fala
parecesse coerente para seu pai. Ele evidentemente queria a ajuda de um
padre. Ele deu o nome do sacerdote: Padre Hartney F., que vivia em
Newark, Nova Jersey. E Carl queria que seu pai ligasse para o padre
naquele mesmo instante. Já passava da meia-noite, mas seu pai ficou
suficientemente alarmado para contatá-lo. Ele não estava em casa, disse sua
empregada; ela lhe daria o recado quando ele voltasse.
O pai de Carl mal desligara o telefone e logo se deu uma das tantas
aparentes coincidências que marcaram o caso de Carl V.. O telefone tocou.
A voz do homem do outro lado da linha era calma e agradável. Ele se
apresentou como sendo o Padre F.. Sim, ele gostaria de ver Carl; era por
isso que ele estava ligando. Não, ele não estava em Nova Jersey; ele estava
na Filadélfia. Não, ele não fora contatado por sua empregada.
“Senhor V., eu devo pedir-lhe que confie em mim como homem e como
padre. Eu tenho algo a dizer ao seu filho que só deve passar pelos ouvidos
dele”. Seu pai olhou para Carl e passou-lhe o telefone. Carl parecia ouvir,
aos prantos, com o rosto pálido. Tudo o que ele disse foi “sim” umas tantas
vezes; e enfim um “amanhã. Tudo bem” pronunciado lentamente. Ele
desligou e, sem olhar para seu pai, virou-se lentamente e deixou o quarto.
Carl passou três semanas em Nova Iorque com o Padre F., para uma
primeira bateria de testes pré-exorcismo. Ele estava de volta em casa no fim
de agosto. Durante os meses de setembro e outubro ele transitou bastante
entre Filadélfia, Newark e Nova Iorque. No início de novembro, foi
iniciado o exorcismo.
Carl V.
Embora muitas pessoas no campo da parapsicologia lamentem o
desaparecimento de Carl V. desse meio, poucos são os que sabem das
circunstâncias nas quais ele renunciou a toda pesquisa e estudo desses
ramos bastante modernos do conhecimento. Carl já era um psicólogo
brilhante quando voltou-se à parapsicologia. Muitos dos que o conheciam,
tanto ele quanto seus dons, consideravam-no o homem certo no lugar certo,
fazendo exatamente aquilo que precisava ser feito. Eles só podiam ver o
término precoce da carreira de Carl, portanto, como uma lamentável perda à
causa do verdadeiro humanismo.
Carl não era apenas alguém muito inteligente. Ele aparentemente possuía
alguns dons psíquicos num grau considerável; dons que são muito
valorizados em nossos dias e objeto de muitas pesquisas, como a telepatia e
a telecinésia. Ele encontrou, ademais, um ambiente acadêmico adequado no
qual podia exercer e estudar esses dons. Dentro dessa atmosfera ele estava
cercado de homens e mulheres de talento, estudantes habilidosos e
perspicazes. E, para coroar todo esse potencial, ocorreram em sua vida
pessoal dois ou três acontecimentos de importância maior que o tornaram
um tipo único.
Em primeiro lugar, ele teve uma visão quando adolescente. Houve,
também, mais tarde, um apoio inesperado às suas idéias principais quanto à
parapsicologia por parte de um grupo renomado, com o surgimento do livro
de Aldous Huxley As Portas da Percepção em 1954. Além disso, o próprio
Carl gozou de estados alterados de consciência, em diversos níveis, por
cerca de dez anos (1962-71). Já em 1965 ele começou a ter constantes
percepções da “aura” circundando os objetos – a “aura da não-coisa”, como
ele a chamava. Ele finalmente conseguiu viver sua primeira “exaltação”
(termo adotado por ele próprio) em 1969.
Olhando em retrospecto, o próprio Carl assume que, ainda que sua
“exaltação” tivesse um caráter psíquico bem definido, ela era, em suma, a
porta de entrada à possessão diabólica.
Mas, nesse meio tempo, o que concedeu uma particular distinção à
carreira de Carl foi o escrutínio de seus colegas, admirados, que estavam
aplicando seus princípios científicos precisamente nos fenômenos como os
estados alterados de consciência, visões, viagens astrais, telepatia,
telecinésia e reencarnação.
O que acrescentava uma nova dimensão ao caso de Carl e a seu próprio
trabalho era a autêntica inclinação religiosa de sua mente. Carl V. de fato
buscava encontrar a verdade sobre a religião – o cristianismo em particular.
E a combinação de dons psíquicos, o extraordinário progresso do que
pareciam ser seus poderes pessoais, e sua propensão religiosa, tudo isso fez
dele uma figura de peso no fim da década de 1960 e início de 1970. Pois em
meio à decadência da religião institucional e organizada, as pessoas
começaram a transferir seu interesse ativo à parapsicologia enquanto
possível fonte de conhecimento religioso e mesmo de sabedoria.
De fato, até onde alcança o julgamento humano, só podemos supor que
Carl teria tido muito sucesso em seu campo de atuação, não fosse a
perturbação causada pela possessão diabólica e o exorcismo subsequente.
Pouca coisa distinguia Carl de seus dois irmãos bem como de seus
colegas de escola durante sua primeira infância. Sua família tinha muito
dinheiro e gozava de uma considerável influência na Filadélfia, sua cidade
natal. Protestantes de tipo tradicional, eles freqüentavam a igreja episcopal.
A infância de Carl não foi particularmente difícil.. Sua família não foi
acometida de nenhum infortúnio ou tragédia. Nem a Grande Depressão e
nem a II Guerra Mundial causaram muitas adversidades. Carl ia bem na
escola e nos esportes. Ele viajou um bocado com sua família, visitando a
Europa, a América do Sul e o Havaí por diversas vezes.
As primeiras manifestações de quaisquer dons psíquicos extraordinários
vieram lentamente, e foi só pouco a pouco que seus pais perceberam que
Carl tinha capacidades para além das ordinárias. Quando Carl estava em
seus sete ou oito anos, eles começaram a perceber que quando, por
exemplo, seu pai ou sua mãe estavam a procurar por algo – um jornal, uma
caneta, um copo d’água – com muita freqüência Carl surgiria
imediatamente trazendo o objeto buscado.
De início eles trataram tudo como fruto de coincidências. Mas isso
tornou-se tão freqüente e, por vezes, tão estranho, que eles decidiram
investigar se aquilo era ou não mera coincidência. Após algumas semanas
de observação próxima e discreta, concluíram que Carl sabia por vezes, de
algum modo, o que eles estavam pensando.
Eles poderiam ter deixado até mesmo isso de lado se, contudo, não
tivessem visto seus irmãos pedindo que Carl entortasse alguns pregos. Carl,
amavelmente, retorceu dois pregos de 3 cm, apenas “sentindo-os” com seu
indicador e polegar.
O pai de Carl consultou um psicólogo. Uma longa série de discussões se
seguiu. Carl foi levado por seu pais a esse psicólogo, depois a um outro, e
enfim a um psiquiatra. O resultado unânime, após alguns testes, era de que
a criança tinha dons incipientes de telepatia e telecinésia. Eles sustentaram
que ele não deveria se sentir como alguém fora do comum. Seus pais
deviam se esforçar para fazer com que ele reconhecesse seus dons como
não-ordinários e restringir seu uso.
As dificuldades decorrentes de toda essa tomada de decisões, realizada
pelas costas de Carl, escaparam totalmente aos seus pais, e mesmo aos
psicólogos. Pois, sem se dar inteiramente conta, Carl sabia tudo o que eles
estavam pensando, e conhecia a decisão deles. Num momento de recesso de
sua mentalidade infantil, ele decidiu consentir com o plano todo. Mas
daquele dia em diante, iniciou-se nele aquela “solidão” que o marcou em
sua vida adulta.
Carl obedeceu à sugestão de seus pais de não mais entortar pregos, não
dizer às pessoas o que é que elas estavam pensando, e não mais tomar
iniciativas com base em qualquer conhecimento telepático que ele tivesse
dos desejos alheios. Aos onze anos, até onde seus pais podiam ver, toda
manifestação de poder psíquico parecia ter cessado em sua vida exterior.
Mas, em realidade, Carl tinha agora um controle sobre esses poderes
interiores do qual ninguém se dava conta, o qual ele guardava ciumenta e
quase que secretamente. Falhava raramente, apenas. Numa eclosão de
sentimentos, ele podia quebrar um copo em outro cômodo ou gritar um
insulto pueril contra um colega que estava prestes a lhe insultar.
A despeito dessa contínua conivência de sua parte, a excelente relação de
Carl com seu pai e sua mãe era algo genuíno. Mais tarde, depois do
divórcio de seus pais, Carl permaneceu mais próximo do pai.
Como filho mais velho, Carl era visto por seus dois irmãos, Joseph e Ray,
com um sentimento que beirava o temor reverencial. Os três tinham uma
intimidade e abertura entre si que durou para além da infância. Foi nesse
contexto de intimidade infantil que ele contou para Joseph e Ray de sua
visão, aos dezesseis anos.
Segundo seus relatos e as memórias de Carl, parece que a visão ocorreu
na biblioteca de seu pai, numa tarde enquanto Carl preparava seu dever de
casa. Ele olhou para o relógio. O jantar era servido pontualmente às seis da
tarde todos os dias. Ele viu que faltava um minuto para ter de partir, só o
tempo suficiente para encontrar um volume específico da Enciclopédia
Britânica e abri-la no artigo que ele precisava para sua redação.
Depois de ter encontrado a informação que ele estava procurando, sua
consciência sofreu uma peculiar alteração. Ele não estava amedrontado;
antes, a mudança colocou-o no que descreve como uma grande quietude.
Não mais via o livro em sua mão ou as prateleiras diante dele. Não mais
sentia sequer o peso do volume em sua mão e nem o piso sob seus pés. Mas
tampouco sentia falta deles; nada disso parecia necessário.
Ele não mais percebia nenhuma dessas coisas diretamente. Somente na
periferia de sua consciência ele estava ciente das mudanças perceptivas e da
ausência de qualquer necessidade de sentimentos físicos ao seu redor. Sua
atenção estava presa a outra coisa, algo totalmente diferente, mas, de um
modo misterioso, também intimamente ligado a toda experiência que vivera
até aquele momento de sua vida.
Tratava-se, de início, de uma atmosfera. Havia muita luz, mas, diz ele,
uma luz negra. Mas essa escuridão era tão brilhante que nenhum detalhe lhe
escapava. Ele não estava olhando para algo ou para uma paisagem; ele
estava participando dela, tamanha era a clareza de cada detalhe mostrado e
comunicado a ele. As coisas que via não tinham dimensão: não havia “ali”,
nem “cima” ou “baixo”, “pequeno” ou “grande”. E no entanto era um lugar.
Os objetos estavam naquele local, mas o local não estava em nenhum lugar.
E os objetos localizados naquele espaço não podiam ser encontrados por
meio de coordenadas, ou vistos pelos olhos, ou sentidos pelas mãos. Ele os
conhecia, tal como eles eram, pela participação no ser deles. Ele os
conhecia completamente. Portanto, ele sabia o que eles eram e onde eles
estavam. E embora eles se relacionassem com Carl e entre si, não era uma
relação de espaço, distância, e tamanhos comparáveis.
Não apenas as dimensões normais do espaço estavam como que
suspensas num tempo não mensurável. Não era como se o tempo parecesse
estar suspenso. Não havia tempo, não havia duração. Ele não estava a
observar os objetos por um curto ou longo período – não poderia ter sido
por segundo. Tampouco poderia ter sido uma infinidade de horas ou anos.
Não havia senso de duração. Era algo atemporal. E no entanto ele percebia,
sim, claramente, ainda que indiretamente, um tempo. Mas era, uma vez
mais, um tempo interno e parecia se tratar da existência total de seu próprio
eu e de todos aqueles objetos sem começo perceptível ou possível de ser
traçado, e sem um fim, ou pelo menos um fim do qual se aproximassem.
Carl só conseguia descrever esse cenário e os objetos dentro dele de
modo vago. Era uma “terra”, dizia ele, um “plano”, uma “região”. Ali havia
tudo que se pudesse imaginar – montanhas, céu, campos, plantas, árvores,
rios. Mas nesses objetos não havia aquilo que Carl chamou de
“obscuridade” de seus correspondentes no mundo físico. E, embora ali não
houvesse aparentemente casas ou cidades, ela era “habitada”: estava repleta
de “presenças habitantes”. Não havia som ou eco, mas a ausência de som
não era silêncio, e a ausência de eco não era ausência de movimento.
Parecia, para Carl, pela primeira vez, que ele estava livre da opressão do
silêncio, liberto da nostalgia que se produzia em seu interior pelos ecos do
passado.
Ao absorver isso tudo, ou ao ser envolvido em tudo aquilo – ele não pôde
nunca distinguir exatamente qual seria o jeito mais adequado de descrever
essa situação – houve nele um desejo súbito. Esse desejo tinha uma pureza
e uma imunidade sagrada que o libertava de toda dor, e não implicava um
“querer”, pelo menos não do modo como nós normalmente entendemos.
Era um chamado sumário, mas sem insistência. Era um desejo enquanto
confirmação de si próprio, esperança substancial e confiança voltada a si
mesmo. E no entanto aquilo era um desejo. Ele o descreveria por vezes
como um “Mostre-me!” ou “Me dê!” ou “Me leve!” ou “Me conduza!” a
brotar no interior dele. Mas, dizia ele, nada disso expressava o cerne desse
desejo. E, acima de todo o seu desejo e de seu eu desejoso, pairava uma
aceitação e aceitabilidade plena e satisfatória.
A seguir, seu foco mudou por completo. Era o ponto alto de sua visão.
Ouvia uma vozinha e via um rosto que não consegue descrever. Ouvia
palavras e via expressões que não consegue colocar em linguagem. Seu
traço dominante foi depois expresso por ele pela palavra “Espere!”. Ele não
sabia o que é que esse “Espere!” queria dizer, ou pelo que ele deveria
esperar. Mas a idéia toda era intensa e profundamente agradável.
Carl não sabe dizer se a visão teria “durado” e carregado-o para mais
longe ou não, ele foi subitamente arrancado dela. “Você tem exatamente um
minuto para terminar”. Era o pequeno Ray. “Se apresse!”.
Uma imensa tristeza brotou em Carl naquele momento, e um indescritível
sentimento de perda. Ele viu aqueles livros frios, as prateleiras longas e
duras, e o rosto de seu irmão mais novo. Sentiu o tomo em suas mãos e o
piso sob seus pés. Olhou para o relógio; faltava um minuto para as seis.
Ele correu para a mesa, com lágrimas em seus olhos. Mas, depois disso,
ele não conseguiu entender se eram lágrimas de dor ou gratidão. Ele nunca
veio a saber.
Antes de ir para a cama, ele confessou o ocorrido a Joseph e Ray:
“Talvez fosse a vovó contando algo para você”, sugeriu Ray prestativo. A
avó deles morrera no ano anterior. “Não”, disse Joseph, “era de Deus. Eles
disseram na escola dominical que Deus envia essas coisas para mostrar o
que vai acontecer”.
Carl freqüentemente se indagou sobre esse evento único em sua vida. O
que é que ele devia esperar? Quem ou o que estava falando com ele? O que
era aquilo que ele tanto desejou naquele momento? Mas, a despeito desses
questionamentos, a visão permaneceu em sua memória com uma doçura
que nada podia dissipar. E isso tudo provocou uma sutil mudança nele, que
todos notavam mas poucos entendiam. Em sua própria mente, aquilo o
separava de todos os outros. Ele nunca se sentia exatamente “com” os
outros, nunca se sentia inteiramente unido a eles. Nas festas, jantares,
encontros, aulas, ele se via a si mesmo essencialmente separado dos outros,
sempre à margem.
Ele estava, de fato, à espera de algo. Só muitos anos mais tarde ele veio a
entender o que lhe fora anunciado e o que ele deveria esperar.
Carl entrou em Princeton em 1942, obteve seu diploma de pós-graduação
em psicologia em 1947, seu doutorado em 1951 e passou mais seis anos
estudando e fazendo pesquisas. Quatro desses anos foram vividos nos
Estado Unidos e dois na Europa. Ele só retornou em 1957, para assumir um
cargo permanente como professor num campus universitário do Meio-
Oeste. Nesses 15 anos, de 1942 a 1957, algumas mudanças fundamentais
ocorreram nele.
A primeira, e provavelmente uma das mais importantes, foi devida à
influência de seu colega, um tibetano de nome Olde, que Carl conheceu em
1953. Olde introduziu Carl em primeira mão à “alta oração”, como ele a
chamava.
Olde nascera no Tibete, crescera ali até os dez anos de idade, e fora
educado na Suíça e Alemanha, vindo mais tarde aos Estados Unidos para os
estudos do doutorado. Ele afirmava ser um membro de uma antiga ordem
religiosa tibetana, a Gelugpa (“Os Virtuosos”) e que ele mesmo, como seu
pai antes dele, era um dos sprulsku ou lamas reencarnados.
A primeira conversa pessoal entre os dois ocorreu quando Carl pôde
ouvir Olde lendo um resumo da tese que estava escrevendo. O tema era a
relação entre Yamantaka, o deus da sabedoria, e Yama, o deus do Inferno.
Carl perguntou, com toda a inocência, por que estátuas de Yamantaka
sempre mostravam o deus com 34 braços e 9 cabeças. A resposta de Olde,
um aparente nonsequitur, causou um estranho impacto em Carl. Carl nunca
esqueceu essa resposta:
“Quanto maior o número de braços e cabeças com que Yamantaka é
visto, maior é sua visão do outro. E só o outro é real”.
O outro? O outro? O outro? Ele não sabia... quem era o outro? Quem ou
o que era o outro?
Carl olhou para Olde, e entendeu sem esforço: cada braço extra, cada
cabeça extra existia não com o sentido de um braço e de uma cabeça,
literalmente, enquanto coisa real. Qualquer coisa, um braço, uma cabeça,
uma cadeira, uma folha, qualquer coisa em si era desimportante, e só tinha
significado e realidade por conta de uma outra, do outro. A “coisicidade”
era, em si, uma negação. Só a não-coisa importava, porque só a não-coisa
era real. E parecia ser também por isso que, desde o dia de sua visão, ele
tinha uma tendência a se esconder, a permanecer à margem, alheio ao
envolvimento com as coisas, retirado do estar plenamente ocupado com
suas coisicidades.
Carl sentiu surgir dentro de si, suavemente, a mesma tristeza que o havia
tomado quando o pequeno Ray irrompeu na biblioteca anos antes,
interrompendo sua visão abruptamente. “Aquele [o momento com Olde] foi
o instante que mais me fez amadurecer em minha vida até aquele ponto”,
medita Carl ao olhar em retrospecto. Pois sentiu novamente nele mesmo
não só aquela tristeza, mas o seu antigo desejo infantil, sentiu todas as dores
da nostalgia como o mais aceitável dos sofrimentos, e ao mesmo tempo
ouviu novamente, nos corredores de sua memória, aquele tranquilo e
reconfortante “Espere!”, pleno de sua promessa e da garantia de uma
realização.
Carl e Olde se viam com freqüência. E Olde logo estava iniciando Carl
na “alta oração”. Com sua própria família e na escola dominical, Carl
aprendera os modos ordinários de oração. Eles consistiam de orações
definidas, hinos e eventuais preces espontâneas de expressão pessoal,
usadas durante a ação de graças nas refeições ou quando alguém orava em
privado.
Olde revirou todas as idéias e hábitos de Carl. Palavras, ele disse, e, ainda
mais importante, conceitos, impedem a “alta oração” e toda verdadeira
comunicação com o que Carl, enquanto cristão, chamava de “Deus” e que
Olde chamava de “Todo”. Carl, disse ele, deveria se aperfeiçoar para fazer a
“alta oração”.
Todos os dias Carl se sentava com Olde, que o treinava para adquirir as
atitudes básicas do corpo e os “tons” mentais necessários. As condições
corporais eram simples de se aprender. Silêncio (cedo de manhã antes do
sol nascer ou tarde da noite, quando nenhum som perturbava o campus),
eliminação de qualquer distração – sentar-se numa posição confortável,
roupas confortáveis no corpo, o mínimo de luz possível... Mas tudo isso, e
os passos ainda por vir, eram meramente preparatórios ou temporários. Olde
explicou que, se Carl progredisse, ele venceria definitivamente todas as
dificuldades físicas para alcançar a “alta oração”. E ele seria capaz de
“orar” mesmo quando cercado por 20 britadeiras trabalhando numa sala
com paredes de cobre. (Essa era a imagem usada por Olde).
Carl rapidamente atingiu a quietude e concentração físicas requeridas. Os
próximos passos levaram mais tempo – e eles conduziram Carl ao limite da
parapsicologia. Como Olde havia explicado, Carl deveria livrar-se de
qualquer “coisicidade”. Era fácil para Carl entender como esvaziar sua
imaginação, como fechar sua memória para que nenhuma recordação
passasse diante de sua mente, e como eliminar até mesmo a mais periférica
imagem de sua consciência quanto à posição de seu corpo, das roupas, do
calor ou do frio da atmosfera ao seu redor, de sua própria respiração. Mas
durante um bom tempo, ele ficou empacado no último estágio. Olde o
instruiu dizendo que, naquele ponto, ele poderia ficar andando eternamente
em círculos e nunca ir adiante. A maioria das pessoas, de fato, fazia
exatamente isso.
O último passo seria eliminar a consciência – e portanto os conceitos,
imagens e sentimentos – quanto a sua própria condição naquele momento
de oração. Por um bom tempo, ele não conseguiu controlarse
suficientemente a fim de evitar a percepção de que estava tentando se
esvaziar; também não tinha controle sobre sua vontade, com a qual
continuava desejando esvaziar a mente. Tudo aquilo parecia um círculo
vicioso. Você disciplina a sua mente para pensar em não pensar, sua
imaginação para não imaginar, seus sentimentos para não sentirem. E você
fazia isso por meio da vontade. Mas então, assim parecia a Carl, sua mente
estava cheia da idéia de que “eu não devo pensar”. Sua imaginação seguia
buscando imagens de si mesma despida de imagens. Ele continuava
sentindo que não deveria mais sentir nada. E assim ele rodava, dando voltas
e mais voltas, até emergir, cansado, tenso e desapontado.
“Não desista”, consolou-o Olde. Ele lhe disse que poderia ser pior, e que
ele tinha certeza de que Carl encontraria um dia o segredo – um ajuste
simples, quase imperceptível. “Quando você encontrá-lo, você vai saber”.
Ele repetia essas mesmas palavras seguidas vezes para Carl.
Mas, por um bom tempo, Carl cometeu o erro sumário de tentar fazer o
“ajuste”. Ele não sabia e não podia saber que, uma vez que tivesse feito o
peculiar “ajuste”, então estaria feito. Não com sua mente, não com a
vontade, não com sua imaginação ou memória, mas enquanto ser que pensa,
quer, imagina e se recorda. Toda a sua “coisicidade” torna-se, subitamente,
uma transparência pela qual a não-coisa, o outro, surge com clareza. E uma
vez nesse estado, você entra numa região da existência sem sombra, sem
forma, sem coisa onde só a realidade reina, e sua irrealidade, sua
“coisicidade” não tem vez, não tem papel, exceto enquanto contraparte do
todo.
No momento em que Carl alcançou essa condição de “oração alta”, Olde
abruptamente cortou o laço de amizade entre eles. “Agora, quando você
quiser orar, realmente orar”, disse Olde, concluindo suas instruções, “você
saberá como fazer”.
Era o último ano de Carl em Princeton como estudante de doutorado. Ele
ainda tinha alguns longos anos de estudo e pesquisa à frente antes de
assumir um cargo universitário. Ele estava ávido para seguir na mesma
direção de Olde: e como Olde ainda permaneceria naquela universidade
enquanto professor e pesquisador, Carl não conseguia ver qual seria o
problema em continuar.
Mas Olde não daria mais nada a Carl. Por quê? Essa foi a questão que ele
fez a Olde enquanto eles caminhavam pelo campus de manhã. Por quê?
Olde falava muito pouco. Ele admitia ter introduzido Carl à Vajrayana,
“o relâmpago”, um meio de poder místico. Mas nenhuma força persuasiva
no mundo faria com que ele conduzisse Carl mais adiante na Mantrayana,
um meio de feitiços místicos. “O que eu fiz já basta”, murmurou Olde. E,
após refletir mais uns segundos: “o que eu fiz já é perigoso o suficiente”.
Carl ainda não conseguia entender. Ele insistiu, pedindo a Olde que lhe
explicasse, ou, se ele não pudesse explicar, que ao menos indicasse uma
direção para ele.
Finalmente, um dia, Olde pareceu não ter mais respostas. Toda alma,
disse ele, que se volta à perfeição do todo é, no início de sua busca, como
uma flor de lótus com as pétalas fechadas. Sob a direção de um mestre ou
guia, ele abre suas oito pétalas lentamente. O mestre simplesmente auxilia
essa abertura. Quando as pétalas estão abertas, a pequena urna prateada de
sabedoria verdadeira é colocada no centro da flor de lótus. E quando as
pétalas se fecham novamente, a flor toda se torna um veículo desse
conhecimento verdadeiro.
Desviando o olhar de sobre Carl, Olde disse com uma irritação quase
hostil: “A urna prateada nunca pode ser colocada no centro da sua flor. O
centro já está tomado por uma negação auto-reprodutiva”. Pausa.
“Impureza. Materialidade. Lodo. Morte”.
Carl ficou estupefato, literalmente mudo por um instante. Olde se afastou
dele, ainda sem olhá-lo. Já a alguns passos de distância, Carl entrou em
choque. Tudo o que ele conseguiu fazer foi gritar até perder o fôlego:
“Olde! Meu amigo! Olde!”.
Olde parou, de costas para Carl. Ele estava perfeitamente calmo, imóvel,
mudo. Carl então ouvi-o dizer numa voz grave e não precisamente voltada a
ele: “Amigo é sagrado”. Carl não entendeu o que ele quis dizer.
Olde então virou-se lentamente. Carl mal reconheceu a expressão em seu
rosto. Não eram mais os traços suaves de seu amigo. A testa de Olde não
era mais a vastidão sem rugas de até então, e seus olhos ardiam com uma
luz amarela. Linhas secas se entrecruzavam em sua boca e em suas
bochechas. Ele não estava bravo, mas hostil. Aquela imagem de Olde ficou
gravada na memória de Carl. Olde disse essas poucas palavras, que Carl
não poderia nunca esquecer: “Você tem Yama sem Yamantaka. Preto sem
branco. O nada sem o algo”. Aquela foi a última vez que ele falou
diretamente com Carl.
Quando Olde partiu, Carl teve um súbito revertério. Ele pareceu por
alguns instantes ser absorvido em “alta oração”. Sua onda de frustração e
raiva cederam a um sentimento de desprezo e nojo para com Olde. Ao olhar
para as costas de Olde em partida, ele sentiu-se tomado por um temor que o
alertava quanto a Olde e aquilo que ele representava. De algum modo Olde
era o inimigo. De algum modo ele, Carl, havia criado um “nós” com um
outro alguém, ao qual Olde não poderia pertencer.
“Inimigo!”, ele se ouviu a si mesmo gritando contra Olde.
Olde parou, olhando de esguelha, sem se virar para Carl. Sua face voltara
à forma habitual. Sua testa, bochechas e boca estavam sem rugas. Seus
olhos estavam calmos, bem abertos, contendo uma luz impenetrável em
suas profundezas, como sempre. A compaixão em seus olhos acertou Carl
como uma chicotada. Ele não queria a compaixão de ninguém. Ele deu um
passo para trás, tentou falar, mas não conseguia fazer sair nenhuma palavra
de sua garganta. Deu mais um passo para trás, insinuando um virar-se de
costas, e então mais um passo, até que ele literalmente viu-se a si próprio se
afastando. Carl disse a si mesmo que era ele quem estava a recuar, mas no
fundo ele sabia que ele havia sido repelido, que havia sido virado e
empurrado no sentido contrário ao de Olde.
Ao que parece, Olde também tinha seus próprios protetores.
A associação com Olde teve importantes efeitos na vida de Carl. Dados
seus dons psíquicos, era quase inevitável que a introdução de Olde ao
mundo do misticismo oriental, com sua ênfase na parapsicologia,
conduzisse Carl à estrada da pesquisa nesse então novo campo da
parapsicologia e dos elementos paranormais da consciência humana.
O mais importante resultado desse período em que Carl esteve próximo a
Olde foi que ele afiou sua habilidade extra-sensorial em perceber os
pensamentos de outras pessoas. Antes de suas lições com Olde, Carl nem
sempre podia ler todo e qualquer pensamento daqueles ao seu redor. De
modo mais geral, ele sabia com muita precisão qual era o seu estado
anímico – preocupação, alegria, medo, amor, ódio e assim por diante; e,
ocasionalmente, ele entendia precisamente quais eram os seus pensamentos.
A disciplina de Olde tinha elevado a percepção extra-sensorial de Carl a um
nível mais alto de uso e controle. Ele via-a funcionar mais freqüentemente e
com todo o mundo. E logo, Carl já a exercitava segundo sua própria
vontade.
Depois de seu “treinamento” com Olde, havia aparentemente apenas duas
pessoas, ao longo da carreira universitária de Carl, que lhe permaneciam
peculiarmente “opacas”. Ele nunca conseguia ler seus pensamentos, e ele
raramente sabia de suas condições internas. A primeira foi uma
exnamorada, Wanola P. A segunda foi o Padre Hartney F. (“Hearty”),
sacerdote enviado por seu bispo para estudar parapsicologia.
Em 1954, um ano depois de seu rompimento com Olde, Carl conheceu
Wanola P., uma estudante de graduação em psicologia. Garota alta, loira,
atraente, vinda do Meio-Oeste, Wanola era boa esportista e bastante
popular. Curiosamente, não era nada disso que causava atração em Carl,
mas antes um misto de sua inteligência incomum, seu ponto de vista quanto
ao trabalho de Carl com a religião e a psique, e, acima de tudo talvez, a
própria inabilidade de Carl em obter qualquer percepção extra-sensorial
daquilo que ela pensava ou sentia.
Quando eles começaram a namorar, Wanola conheceu um pouco dos
dons psíquicos de Carl. Ela ficou fascinada com eles, com seus novos
conceitos, e suas brilhantes abordagens quanto a diversos problemas e
questões de psicologia. Mas, ao conhecê-lo melhor, seu fascínio
transformou-se em compaixão, e em seguida em temor, tanto pela sanidade
mental de Carl, quanto por conta de suas crenças religiosas. Era como um
curioso eco da reação de Olde no ano anterior, mas tudo ocorreu muito mais
rapidamente dessa vez. E sua breve associação com Wanola deixou Carl
perturbado.
Por vezes Wanola conversava com Carl sobre alguns comentários,
aparentemente improvisados, que ele fazia acerca de “encontrar” o
cristianismo em seu estado “verdadeiro” ou “original”. Ela notou que ele
estava cada vez mais convicto de sua opinião quanto a Jesus ser um simples
pescador da Galiléia que havia sido poderosamente transformado pela ação
de Deus. Mas ela acabou por se sentir incomodada com a ambição de Carl
em sujeitar o próprio espírito da religião à experimentação laboratorial
controlada.
Um dia, finalmente, voltando de um curto período de férias em sua casa
no Meio-Oeste, Wanola veio direto do aeroporto à sala de Carl. Ela trazia
um modesto buquê de flores comprado antes de pegar o avião.
Curiosamente, Carl se lembra de cada detalhe dessas flores, embora diga
que no exato momento em que Wanola entrou em sua sala e começou a
falar com ele, seu interesse e atenção estavam em outra parte. Ele de fato se
lembra de gencianas azuis, violetas dente-de-cão, estrelas d’alva e laços de
rainha.
Mas quando Wanola foi em sua direção, Carl não lhe deu nem sequer um
sorriso ou um “olá”. Ele agitava um pequeno livro em sua mão que acabava
de ser publicado: As Portas da Percepção, de Aldous Huxley. Ela se lembra
dele a bradar o título do livro, dizendo “Huxley sabe tudo a respeito do
assunto! Mescalina! E eu não preciso de mescalina!”.
Wanola ouviu seu longo sermão sobre Huxley e logo em seguida partiu,
levando o buquê de flores consigo.
Carl fizera uma escolha delicada; ele dera um passo na direção contrária
da ternura humana. Isso é algo que ele só veio a entender depois do
exorcismo. Wanola entendeu naquele exato momento. Ele ligou para ela
algumas vezes depois daquele dia, mas, para sua surpresa, eles nunca mais
se veriam novamente.
A excitação de Carl com os livros de Huxley era enorme. Ele pegou
imediatamente o ponto central que estava sendo anunciado por Huxley: que
a mente e a psique eram capazes de um conhecimento e de uma amplidão
de experiência com a qual os homens de nossa civilização raramente
sonharam. Vivendo em nossa sociedade urbana, a psique humana aprendeu
a afunilar todas suas energias em uma só direção – lidar com o mundo
material, com as coisas tangíveis. Huxley fazia, em seu livro, um apelo em
prol do desenvolvimento de uma droga psicodélica (literalmente: um
abridor da psique), não viciante e inofensiva em seus efeitos colaterais,
pelos quais os homens e mulheres poderiam liberar suas energias psíquicas
e gozar de todo o seu potencial.
Carl, no meio de seus estudos sobre a dupla personalidade, logo
encontrou em Huxley uma janela aberta para um novo horizonte. Talvez,
ele se perguntou, o que é freqüentemente chamado de problema de múltipla
personalidade fosse na verdade um caso de psique libertada – ao menos
parcialmente – das amarras sociais? Talvez ao menos alguns dos chamados
esquizofrênicos fossem realmente pessoas iluminadas para quem o choque
da iluminação havia sido forte demais? E talvez essas pessoas vivessem
num estado alterado da consciência, pelo qual eles podiam transcender o
mundo material e tangível ao redor delas, transpor as barreiras do espaço e
do tempo, e gozar de uma genuína liberdade do espírito?
Esse foi um importante momento no desenvolvimento de Carl. O que
Huxley tentara fazer, com a ajuda da mescalina, alcançando-o pouco a
pouco, Carl agora almejava alcançar por meio do controle de seus próprios
dons intelectuais.
Pensando em retrospecto, como ele por vezes fez, sobre a visão que ele
tivera quando garoto no escritório de seu pai, ele entendeu então essa visão
como um antegosto daquilo que ele podia e devia conquistar: uma
percepção do espírito, uma participação na existência não espacial e
atemporal alcançada pela via parapsicológica. O objetivo de todas as
instruções de Olde agora pareciam para Carl ser uma simples liberação da
mente e da vontade de um envolvimento com as experiências sensoriais e
com os entraves materiais. Não era de impressionar que o desaparecimento
de Wanola de sua vida pessoal não lhe tenha feito nenhuma falta. Com
efeito, ela tinha que partir, ele concluiu. Não havia espaço em sua vida para
um vínculo pessoal que envolveria emoções e a presença física de um outro
ser humano.
Embora o estudo de parapsicologia de Carl tenha se iniciado em 1953 por
meio de sua associação com Olde, foi cerca de cinco anos mais tarde que o
seu interesse assumiu um caráter mais consistentemente religioso. Depois
de dois anos de estudo e pesquisa na Europa, ele voltou aos Estados Unidos
no final de 1957, com o objetivo de assumir um cargo como professor no
Meio-Oeste, no início de 1958.
Carl recebera um convite atraente: teria ali um campo bastante amplo
para pesquisa. Encontrou um pequeno apartamento, não muito distante do
campus, e foi-lhe dado todo o espaço necessário no departamento de
psicologia. Era ali que sua vida iria se concentrar. Ele tinha uma sala de
recepção, um gabinete próprio, e, ligado ao gabinete, uma sala ampla o
suficiente para seminários, conferências privadas e experimentos.
No ano seguinte Carl já estava bem instalado, e havia atraído um
pequeno e entusiástico grupo de assistentes em meio a seus melhores
estudantes.
Numa tarde, sozinho e inesperadamente, Carl viveu pela primeira vez
aquilo que, mais tarde, ele e seus associados chamariam de “transes”. Ele
acabara de voltar ao seu gabinete de um jantar na casa de um colega. Era
por volta de 7h30 da noite. Sentia-se muito tranquilo e confiante.
Ao entrar em seu gabinete pela sala de recepção, seus olhos pousaram na
direção da janela de face oeste. O sol ainda não se havia se posto, e havia
riscas e manchas incandescentes que podiam ser vistas no céu. Todo o
espaço da janela parecia um quadro em duas telas, pintado em tons de
vermelho, laranja, azul acinzentado, branco e dourado.
Carl caminhou até a janela, e ao olhar o pôr-do-sol, fez-se uma suave e
rápida transformação nele. Seu corpo ficou imóvel, como se contido numa
mão gigante invisível. Ele estava congelado, mas sem sentir frio nem
paralisia.
E aquela cena viva do exterior assumiu, aos seus olhos, o mesmo aspecto
estranho de imobilidade e congelamento. Em seguida, partes da cena
começaram a desaparecer. De início, tudo no espaço contido entre a janela
em que Carl estava parado e o pôr-do-sol desapareceu: o pátio, os prédios,
gramado, a estrada, as árvores e os arbustos. Não era como se elas tivessem
simplesmente passado à periferia de sua visão. Tudo isso cessou de existir
para ele. Ele entendeu que se ele as procurasse com o olhar naquele
momento não seria possível encontrá-las. Tudo parecia ter sido arrancado
de seu lugar. E seu desaparecimento parecia, para ele, algo mais normal do
que sua permanência diante de seus olhos. Por um momento ele sentiu-se
muito tranquilo diante da estranheza de tudo aquilo que estava acontecendo.
E, é claro, a distância entre ele e o pôr-do-sol era agora um vácuo
disforme. Não havia nada “entre”, nem mesmo uma lacuna, nem mesmo o
vazio. Ele não estava fisicamente mais próximo do pôr-do-sol, e ainda
assim, agora, o conhecia mais intimamente.
E finalmente a própria janela desapareceu. Carl, enquanto isso, olhava
cada vez menos para as cores e matizes do sol que partia; e, quando o
caixilho da janela desapareceu, ele estava “olhando simplesmente para o
sol”, embora não fosse possível expressar claramente em palavras a
diferença entre esses dois sinais ou a óbvia importância que isso tinha para
ele naquele momento.
Finalmente a visão – aquilo que ele estava vendo – pareceu crescer cada
vez mais em sua consciência, e ele próprio pareceu diminuir em igual
proporção. Menor. Cada vez menor.
Subitamente ficou em pânico com a possibilidade de também
“desaparecer” de sua própria consciência, assim como a paisagem acabava
de sumir. Aquilo, bem o sabia, significaria o nada para ele. E, conforme sua
visão se agigantava de um modo estranhamente não-físico, mais miserável e
dispensável ele se sentia.
Ao tocar o limite mais baixo de seus sentimentos, Carl experimentou o
primeiro contato com aquilo que ele posteriormente veio a chamar de “meu
amigo”. Ele sempre insistia quanto a que seu “amigo” era um ente pessoal –
uma pessoa, mas não uma pessoa física. “Era uma presença pessoal”, ele
sustentava. Ela não parecia “vir” até ele, mas sempre haver existido ali; e no
entanto ela era inesperada, e ele nunca a havia notado antes daquele
momento.
Nenhuma palavra era trocada “entre” Carl e seu “amigo”, nem qualquer
conceito ou imagem que ele pudesse captar. Mas ele sabia, com absoluta
certeza, que lhe estava sendo “dito” que, a menos que ele “consentisse” ou
“desse sua aprovação”, seu avanço no nada se consumaria, se tornaria um
fato.
A angústia causada por essa possibilidade era terrível. E, no entanto, um
certo aspecto dessa presença pessoal parecia ser “deficiente”, parecia
deixar-lhe a opção de dizer não. Ele teve um breve, estranho impulso de
desafiar aquela demanda impositiva de consentimento que agora lhe era
feita. Mas uma rápida confusão, tão estranha quanto todo aquele incidente,
amorteceu seu poder de lutar: ele não sabia como confrontar, como desafiar
essa força. Em nome de que poder ele iria “falar”? Em nome de quem ele
suportaria as conseqüências, e como ele poderia sobreviver a elas? Ele diz,
hoje, que durante muito tempo ele não nutriu nenhuma idéia quanto a ajuda
ou salvação, e ele não tinha “nada nem ninguém a quem recorrer”. Ele
havia sido conduzido a um estado próximo à solidão total, de fato, à beira
do nada.
Facilmente, então, e aliviado, “consentiu”. Carl deu sua aprovação
interior. Ele ainda não sabia exatamente o que aquela aprovação significava.
Imediatamente o sentimento de estar sendo reduzido ao nada cessou. A
sensação de alívio inundou sua consciência. Quase simultaneamente ele
ouviu uma voz chamando-o desde muito longe:
“Carl! Carl! Você está bem? Carl!”.
A janela “ressurgiu”, bem como o horizonte. O pôr-do-sol “ressurgiu”, e
sua visão voltou ao normal.
Ele se mexeu e olhou ao seu redor. Albert, um de seus jovens assistentes,
tinha a mão sobre seu ombro. Nenhum deles disse nada por um instante.
Eles esperaram que o sol se pusesse por completo. E então, enquanto Albert
ouvia, Carl se sentou e ditou ao gravador.
O que emergiu ali surpreendeu até mesmo Carl. Ele falou de todo o
transe como sendo uma manifestação de Deus, como uma experiência
religiosa. Voltando-se para Albert a certa altura, e ainda gravando, declarou
que agora via que a missão de sua vida era encontrar o verdadeiro espírito
da vida e um conhecimento preciso de Deus e sua revelação – tudo por
meio da pesquisa parapsicológica.
Estava determinado o percurso de Carl. Pelos cinco anos seguintes ele
trabalharia incessante e metodicamente, construindo suas teorias, testando e
desenvolvendo seus próprios poderes psíquicos, nutrindo um grupo de
estudantes e assistentes ao seu redor.
Em 1963 Carl conheceu a segunda pessoa, ao longo de sua carreira
universitária, que restava “opaca” às suas percepções psíquicas. O Padre
Hartney F. surgiu na vida de Carl quase dez anos depois de Wanola P.,
quase onze anos depois de Olde.
Foi no semestre de outono. Carl acabava de ser nomeado professor
titular. O Pe. Hartney F. (ou “Hearty”, como era chamado por seus amigos)
era o único membro da nova classe que Carl não conseguia compreender ou
“pegar”, psiquicamente falando. Como fora o caso com Wanola P. uma
década antes, a inabilidade de Carl em obter qualquer “percepção interna”
de Hearty o intrigava.
Hearty, contudo, parecia um sujeito completamente normal, e mesmo
inócuo. Homem grande e magro, já perdendo seus cabelos muito rápido
naquele momento de sua vida, e usando óculos de lentes espessas, Hearty
sentava na segunda fila, olhando atentamente para Carl e tomando notas vez
ou outra. Ele sempre usava gola romana e um fato preto impecavelmente
limpo. Durante as aulas ele raramente se movia, olhava ao redor ou fazia
perguntas.
Depois do primeiro trabalho de fim de curso de Hearty, que não era nem
melhor nem pior do que a média, e não teria, normalmente, provocado um
interesse especial, Carl aproveitou a ocasião para entrevistar seu “estudante
opaco”.
Ele descobriu no padre um homem muito simples, com uma memória
melhor do que a média, saúde robusta, uma sólida base quanto aos
princípios da psicologia, e a ambição de estudar a parapsicologia com
aquilo que ele chamava de “propósitos pastorais”. Aparentemente ele
convencera seu bispo de que o conhecimento da parapsicologia seria
particularmente útil no trabalho com seus correligionários e para entender
um pouco de seus problemas.
Hearty mencionou também – diga-se de passagem, bem a propósito –
alguns casos de possessão diabólica. E também falou de exorcismo. Aquilo
pareceu suscitar muito pouco interesse da parte de Carl naquele momento.
Ele deixou o tópico de lado na sua mente, por assim dizer, fazendo algumas
observações sobre a necessidade de se atualizar as crenças e ritos na Igreja.
Tendo aparentemente observado tudo o que era possível – ou o que lhe
interessava –, em pouquíssimo tempo Carl encerrou a entrevista, depois de
umas breves críticas quanto a alguns pontos técnicos no trabalho de Hearty.
Mas Carl permaneceu intrigado, e não se mostrou antipático à idéia de
seus estudantes, Bill e Donna – que mais tarde partiriam com Carl até
Aquiléia – de convidar Hearty para um grupo de estudos especial que Carl
formara. O argumento deles era que o grupo necessitava de um
representante de alguma comunidade cristã, porque um dos principais
objetivos do grupo era fazer experimentos com os poderes e dons psíquicos
de Carl para sondar o passado do Cristianismo. Hearty era então o único
clérigo entre os estudantes do departamento, e tinha já algum treinamento
em teologia.
Carl decidiu fazer mais uma entrevista com seu clérigo opaco antes de
convidá-lo para o grupo de estudos. Ele pediu a seus dois assistentes, Albert
e Norman, junto com os estudantes membros do grupo especial, que
estivessem com ele.
Hearty era um sujeito muito agradável, afável, e que demorava para se
deixar convencer de algo. Albert e Norman, ouvindo as questões de Carl e
as respostas de Hearty, começavam a achar que Carl não estava chegando a
parte alguma. Hearty não resistia. Ele nem sequer estava sendo evasivo ou
vago. Simplesmente, a despeito de suas respostas perfeitamente francas a
todas as questões que lhe eram colocadas, Hearty parecia estar imune à
persuasão de Carl. E a razão disso não era nenhuma oposição mental da
parte de Hearty, nem qualquer disputa verbal entre os dois homens; mas
algo para além disso.
Todos os presentes teriam reduzido o problema aos termos de uma
diferença fundamental de temperamento entre os dois, não fosse pela infeliz
virada no rumo da conversa, quando Hearty pareceu ter assumido o
comando da entrevista. Ele queria entender quais eram as bases para se
assumir, como Carl obviamente parecia fazer, que o conhecimento psíquico
e a atividade psíquica conduziam inevitavelmente ao espírito.
Albert admitiu que aquilo fosse um pressuposto; mas um pressuposto
aceitável.
Hearty então quis saber se isso queria dizer que o conhecimento psíquico
e a atividade psíquica estavam sob a direção do espírito.
Novamente, a resposta foi sim.
Bem, então, parecia que Hearty tinha novamente mais um problema: a
menos que eles reivindicassem um conhecimento prévio – e eles não o
fizeram (claro que não, eles todos reconheceram; não era por isso mesmo,
afinal, que eles tinham um grupo de estudos: para descobrir aquilo que eles
não sabiam?) –, como eles poderiam ter certeza de que eles estavam sob a
direção ou influência de um bom espírito? Ou então eles presumiam que
todos os espíritos eram bons? E, se sim, baseados em quê?
Essas questões traziam uma dúvida tão fundamental para as posições que
Carl compartilhava com seu grupo que a paz daquele encontro se viu
abalada. Como rememorou um dos presentes, até aquele momento do
encontro “nós não sabíamos quão permeadas estavam nossas mentes por
um ponto de vista muito específico [aquele de Carl]”. Foi, para Albert e
Norman, como se um convidado tivesse insultado o anfitrião.
Todos começaram, então, a lançar questões sobre Hearty ao mesmo
tempo. Carl ergueu sua mão pedindo silêncio. Ele estava perfeitamente
calmo, mas seus olhos brilhavam e seu rosto estava muito pálido. A
“opacidade” de Hearty se tornara transparente para Carl, somente naquele
momento e só durante aquele momento. Hearty se opunha totalmente, Carl
agora entendia, a tudo aquilo que Carl sustentava.
Mas Carl estava calmo; ele manteve sua compostura e o autocontrole.
Todos os estudantes eram livres, ele admoestou seus assistentes. E todos os
pontos de vista eram permitidos. Além disso, o Padre F. (ele enfatizava o
“Padre”) tinha um viés profissional para sua opinião.
Hearty calmamente interrompeu-o dizendo que também ele, Carl, tinha
um viés profissional que embasava sua opinião. Fez-se um silêncio
inesperado. Naquele momento, um pouco da opacidade da psique de Hearty
se dissipou, mas Carl não conseguia ao certo entender o que ele estava a
perceber vagamente em Hearty. O padre então “fechou-se” novamente. Ele
se tornara “opaco” uma vez mais.
Carl deu um sorriso depreciativo e fez um pequeno gesto, como se fosse
prosseguir e explicar o viés profissional da opinião de Hearty. Mas ele
parou e franziu as sobrancelhas. Cada um dos membros do grupo sentiu
uma nova tensão contida naquele silêncio. Hearty olhava fixamente para
Carl.
Carl se recompôs e olhou amigavelmente para Hearty. “E qual é, padre”,
disse Carl finalmente, “o seu viés profissional? Em poucas palavras, quero
dizer”.
“Jesus. Jesus Cristo, senhor. Enquanto Deus e enquanto Homem”. E
então, sem pausa, Hearty perguntou com leveza: “E a sua, professor?”.
Carl desconsiderou a pergunta. Talvez, disse ele, o Padre F. venha a se
tornar assunto para o grupo de estudos, como ele, Carl, já fora também.
Entrementes, eles iriam preterir por ora sua moção de entrada no grupo de
estudos.
A tensão se dissipou.
Vez ou outra durante os dois anos restantes dos estudos de Hearty, Carl
quebrava a cabeça com o caráter “opaco” da psique de Hearty. O que
tinham Hearty e Wanola em comum? Suponha-se, de fato, que houvessem
de fato espíritos bons e maus? Mas assim que ele se colocava essa questão o
panorama inteiro de sua vida inundava sua mente; e ele sempre terminava
com aquilo que era, para ele, uma alternativa inaceitável. Uma dúvida
quanto a um ponto fundamental – o tipo de espírito que o estava guiando –
implicaria uma total revisão de seu trabalho. Como ele poderia fazer isso?
Essa revisão poderia até mesmo implicar a renúncia a sua cadeira de
professor e à pesquisa em parapsicologia.
Em junho de 1964, depois de seus exames e monografias finais, Hearty
teve uma rápida conversa de despedida com Carl. Ele disse que gostaria de
permanecer em contato. Foi um momento agradável para ambos. Carl
sentiu-se bem por seu aluno que partia, a despeito de seu fracasso em
penetrar a psique de Hearty.
Quando Hearty foi embora, Carl descobriu que não podia mais trabalhar
naquele momento. Algo que Hearty havia dito ou, talvez, feito – Carl não
conseguia dizer muito bem – havia tangido um acorde incomum em sua
alma. Ele afundou seu rosto entre as mãos e viu-se chorando
incontrolavelmente. Ele ficou soluçando por cerca de dez minutos, e sentiu
um alívio intenso.
E em seguida um fio frouxo em sua mente subitamente voltou a se
retesar. Ele sentou-se ereto em sua cadeira. Suas lágrimas secaram. O velho
estado de espírito estava de volta. Havia trabalho a ser feito.
Quase dez anos se passariam até que Carl e Hearty se encontrassem
novamente.
Nos oito anos seguintes, Carl experimentou um estado de consciência
alterada quase permanentemente. Ele teve percepções similarmente
alteradas do que ele chama de aura da “não-coisa” (aquilo que Huxley
classificaria como aura do Não-Ser) cercando todos os objetos. Ele passou
por diversos transes. E, mais importante, ele passou por sua “exaltação”.
Nas primeiras vezes em que Carl percebeu a alteração de sua
consciência, atribuiu-a a um complexo de causas físicas. Certo dia, no qual
sentiu uma mudança, certamente a atmosfera fora a causa; havia chovido
durante quatro dias, e depois se seguiu um vento muito forte. Noutra
ocasião, sentiu, a nova sensação deveu-se a um grande bem-estar físico e
profunda satisfação com o rumo que alguns de seus experimentos haviam
tomado. Em mais outra ocasião, ele atribuiu a causa a uma discussão
acalorada com alguns colegas.
Pouco a pouco, contudo, ele reconheceu discretamente, consigo, que
alguma alteração profunda estava ocorrendo dentro dele mesmo.
Em primeiro lugar, aquilo estava relacionado com os seus sentidos –
aquilo que ele via, ouvia, tateava, cheirava – mas a novidade e surpresa em
tudo o que ele sentia realmente repousava no fato de aquilo parecer se
originar e alcançar algo “além” de seus sentidos. Era “trans-sensorial”. Em
segundo lugar, era algo relativo a pessoas, animais, plantas e objetos
inanimados. E, mais importante para Carl, era algo teofânico. Ele
sustentava que aquilo era uma manifestação da divindade. (Carl, naqueles
dias, nunca falava em “Deus” ou “a divindade”, mas somente de “divino” e
“divindade”).
Os primeiros estágios foram simples, mas muito impressionantes. Ao
caminhar na rua, em meio à multidão de pessoas que faziam suas compras,
por exemplo, ou em caminhadas mais solitárias fora da cidade, ele de algum
modo tinha a suas percepções transferidas, afastando-se dos olhos, mãos,
árvores ou do chão que o circundavam. Um enorme complexo de arabescos,
padrões e sentidos emergia, e se tornava o ponto central de sua consciência.
Na rua, em meio à multidão, ele subitamente parava de ver olhos, faces
ou roupas; ele via, em lugar disso, uma espécie de padrão formado pelo
conjunto de todas aquelas pessoas, ao moverem suas cabeças em sua
direção, ou afastando-se atrás dele, ou passando na mesma direção dele.
Mas a sensação era rápida, escapadiça como o mercúrio. De início,
quando ele tentava apreendê-la com toda sua atenção, ela se esvaía. E então,
quando ele retornava às suas ocupações, ela se fazia empurrar de volta para
dentro de sua consciência.
Depois de um bom número de experiências, Carl começou a constatar
que os arabescos, os padrões que ele via não eram cabeças a balançar ou
galhos de árvores a pender, e ele não estava vendo aquilo com seus próprios
olhos. Estava assistindo a algo com sua consciência, apenas, e nada mais. E
o que viu foi a flutuação, a fluidez e o livre fluxo de energia do espírito.
Simplesmente espírito, sem prender-se às correntes da fisicalidade.
Após uma dessas experiências, Carl voltou correndo para seu laboratório
e rabiscou uma nota do evento com bastante excitação: “É a teofania! Eu
consegui! Eu encontrei a relação entre psique e espírito, entre a consciência
e a crença, entre divindade e seres humanos. Eu encontre! Eu encontrei! É a
teofania!”. Essa nota está datada de março de 1965.
Nos dois anos seguintes, a freqüência e intensidade de tais experiências
aumentou. Por vezes eram os olhos das pessoas, noutras o movimento de
seus pés ao avançar, e noutras ainda suas cabeças. O sentido em cada um
dos casos era diferente; mas todos esses sentidos convergiam numa
maravilhosa totalidade.
Os olhos tinham um padrão particular. Para além de suas cores, brilho ou
embotamento, forma, expressões individuais, todo par de olhos parecia
constituir um reflexo de uma visão total, um olhar animado e vivificado. E
todos os pares de olhos que ele via eram um reflexo unificado dessa
totalidade, e ao mesmo tempo completamente individuais. O padrão que
eles descreviam não era de um só grande olho, mas de um olhar, de uma
visão.
Era de igual modo que ele via, no avançar dos pés, o poder daquele ser
particular que andava – ele agora chamava-os de “espírito” em suas notas.
No trabalho das mãos – segurar, gesticular, acenar, apontar – era a sutileza
do espírito. No som das vozes não era o sotaque, a pronúncia ou a altura das
vozes que lhe causavam atração. Era o que chamava de “tonalidade”. Cada
voz refletia uma certa harmonia total, como a água que, sem se tornar luz,
reflete a luz; ou as paredes de uma encosta, sem se tornarem som, refletem o
som de um grito; ou as cores, sem se tornarem um sentimento, refletem um
sentimento; cheiros, sem serem palpáveis, refletem superfícies e substâncias
que nós tocamos.
No início do ano seguinte, Carl começou a notar dois novos elementos
em seu estado constantemente alterado de consciência. Havia um forte
sentimento de “estar com”, de “estar junto”. Quanto àquilo “com que” ele
estava “junto” nessas ocasiões, não ousava pensar claramente, porque sabia
que isso provocaria a morte daquilo tudo. Mas era um “estar com” uma
presença pessoal. Aquilo “com que” ele estava era inteligente, livre,
supremo de um modo deslumbrante, mas não amedrontador. Lentamente,
após um certo período, ao tomar notas ou gravar em seu aparelho, ele
passou a se referir a isso como “meu amigo”.
O segundo elemento percebido foi o fato de os acessos, os inícios de suas
experiências terem cessado. Agora tudo parecia estar amalgamado. Todos
os padrões e arabescos, todos os aspectos de sentido, significado e
existência pareciam ter-se tornado um só. Ele se deu conta, depois de uma
breve epifania, que todos os arabescos sempre haviam sido um só. Mas
também se deu conta de que só pôde alcançar o conhecimento dessa
unidade através daqueles acessos e surtos iniciais. Acontecimentos
teofânicos então se tornaram uma constante teofania, e tudo, agora, era
visto por ele como unidade. Tudo era um aspecto de um só ser.
E então sutilmente, de início como mera suspeita, Carl começou a sentir
algumas diferenças básicas entre o que ele chamava de “meu amigo” e esse
ser uno, esse espírito livre que tudo penetrava, que se movia livremente e no
qual todas as coisas estavam, mas que não era, ele, só mais uma entre todas
as outras coisas.
Sempre que ele “percebia” o mais leve resquício de diferença entre o
“amigo” e o “uno”, uma tristeza incontrolável o penetrava. Ele sentia-se
novamente prestes a ser deixado naquele mesmo estado dos dezesseis anos,
ao cabo de sua primeira visão. Ele passou a tomar notas ainda mais
copiosas e fez longas gravações com o objetivo de reter tudo quanto ele
pudesse.
Nos últimos dias de 1965 Carl começou a perceber o que ele chamou de
aura da “não-coisa” nos objetos e pessoas a seu redor. Até aquele momento,
e mesmo quando ele era absorvido por essa totalidade do ser na qual todas
as coisas pareciam agora estar banhadas, Carl ainda via tudo, sempre, como
coisas. A “coisicidade” era ainda uma característica simples.
Muito cedo numa manhã, ele percorria o curto trajeto de seu apartamento
ao escritório no campus. Ainda havia um pouco do frio noturno no ar, mas
um vento vívido movendo as árvores e a grama prometia um daqueles dias
ensolarados e cheios de energia de que Carl tanto gostava.
O último trecho do percurso era um caminho acompanhado de uma
fileira de álamos à sua esquerda. À direita havia uma grande extensão de
gramado cobrindo cerca de 200 metros do terreno, até tocar uma linha de
prédios usados pelo departamento de estudos agronômicos. Atrás dos
prédios havia um alto morro.
Ao caminhar, Carl olhou para a direita, na direção do cume, seus olhos
vagando lentamente pelas árvores, arbustos, prédios e gramado, recebendo
a luz fresca que se alastrava por todas as coisas.
Ele estava tão concentrado em suas próprias percepções que notou,
imediatamente, uma mudança qualitativa. Cada coisa continha algo mais do
que a mera “coisicidade”. Era o fato de cada coisa existir no limiar de um
abismo próprio àquela coisa, um vasto precipício de “nãocoisa”, daquilo
que cada coisa não era.
Essa experiência era muito mais envolvente do que o próprio Huxley
havia declarado em sua descrição lírica do “não eu”; e sua beleza era mais
autêntica e preenchedora do que qualquer coisa que se expressasse em cada
objeto físico.
Essa “não-coisicidade” era, verdadeiramente, uma aura ao redor de cada
objeto. Era algo opaco, superficial e pálido quando se se aproximava do
objeto. Mas quando os olhos de Carl se afastavam, essa aura se mostrava
em maior profundidade de aparência e sentido.
Ele sentou que nada, nenhum objeto, jamais voltaria a ser banal: nunca
mais um objeto seria meramente ele mesmo, teria apenas o seu próprio ser,
para Carl. A aura da não-coisicidade, o seu “Não-Ser” sempre brilhava e
fazia a coisa ser possível. Carl fez a sutil descoberta de que, na aura de cada
coisa, não havia diferença entre aparência e sentido.
Conforme seus olhos passeavam e a “não-coisicidade”, o “Não-Ser” de
cada objeto reluzia e significava para ele, começou a ouvir um coro cada
vez mais vasto de vozes mudas, e a ver uma multidão cada vez maior de
participantes de uma adoração. Cada lâmina da grama entoava seu
silencioso “Santo! Santo! Santo!”. Cada árvore se arqueava e oscilava em
obediência à supremacia de toda a existência, e cada construção se
mantinha em reverência diante do mistério do todo.
Nada disso produziu espanto em Carl. Ele nem sequer parou de caminhar,
e parecia estar pronto para aquilo tudo. Ao percorrer o caminho até seu
escritório, ele sentiu, em sua mente, um desejo: ser enfim elevado, exaltado
– ainda que por pouco tempo – para poder ver e conhecer essa existência
suprema de todas as coisas, e ver a santidade de seu mistério que dava
sentido a todas as coisas.
A exaltação viria a ocorrer para ele, mas somente quatro anos mais tarde.
Foi em maio de 1969 que a possessão pareceu ter-se estendido mais
profundamente do que nunca na vida de Carl. Essa possessão foi efetuada
por meio de seus interesses profissionais. Sua atenção, durante praticamente
os dois anos antecedentes, se concentrara em dois aspectos do
desenvolvimento psíquico: viagem astral e reencarnação. Ambos estavam
em relação direta com o objetivo final de Carl de “encontrar” o
“cristianismo verdadeiro e original”.
Por meio da viagem astral, esperava transcender as fronteiras do espaço e
do tempo, e então “revisitar” os locais onde a cristandade existira antes de
ser corrompida. Por suas pesquisas sobre a reencarnação – coisa na qual ele
acreditava completamente –, Carl esperava ser capaz de reviver algumas de
suas próprias experiências ancestrais, possivelmente próximas à época de
nascimento da cristandade.
Em suas pesquisas, estudos e experimentos com viagem astral, Carl tinha
adquirido, por volta de 1969, alguma proficiência em sua capacidade
psíquica, mas suas conquistas não saíam do comum. Ele por vezes podia ter
a visão de seu próprio corpo inerte e de locais que ele conhecia em sua vida
física. E de algum modo ele permanecia ligado ao quadro temporal do
momento presente. Seu objetivo imediato, agora, era encontrar um modo de
sair daquele quadro. Tinha de haver, ele sustentava, algum “portal” pelo
qual ele poderia passar à liberdade.
Com seus dois associados mais próximos, Albert e Norman, e os
estudantes que integravam seu grupo de estudos especial, ele agora
procedeu com o lançamento de uma série de experimentos. Ele próprio
seria a cobaia; e, toda vez, seus transes se tornavam ponto de partida para o
experimento. Carl, aparentemente, tinha um enorme fundo de energia
psíquica, e estava imune aos danos sofridos por outras pessoas nesses
mesmo tipo de experiência.
Os experimentos ocorreram no pequeno auditório de seu escritório no
campus. Ali ele havia instalado várias máquinas para a gravação de voz e
de ações, e para o monitoramento de suas funções vitais – coração, pulso,
respiração e atividade cerebral.
Albert trabalhava como monitor chefe, e Norman como sua assistente
imediata. Albert fazia perguntas para Carl nos pontos-chave de cada
experimento. Carl respondia apenas questões de tipo sim/não colocadas por
Albert, até que se alcançassem os últimos estágios do experimento. Os
outros membros do grupo assumiam a operação das máquinas.
O Melhor momento para os transes de Carl era cedo de manhã, cerca de
uma hora antes de o sol nascer. Ao fim de cada sessão de transe, os
assistentes se retiravam, seguindo ordens de Carl, que era deixado sozinho
para se recompor. Os períodos de recuperação podiam variar entre dez e
quarenta minutos, dependendo da duração da sessão e da condição psíquica
de Carl. Quando os assistentes voltavam, eles geralmente encontravam Carl
sentado à mesa gravando suas lembranças – sensações, pensamentos,
sentimentos e intuições.
Pela repetição dessas experiências, começando sempre com um dos
transes de Carl, eles descobriram que a viagem astral não podia ser
realizada numa única etapa. Não se tratava de um, mas sim de três
“portais”. Ele os nomeou “portal baixo”, “portal médio” e “portal alto”.
Carl tinha de passar por todos eles para poder alcançar com sucesso a plena
liberdade da viagem astral.
O portal baixo era, por assim dizer, a condição inicial do transe: uma
ausência de toda reação sensorial e sentimental da parte de Carl. O portal
médio implicava que Carl não sentisse mais nenhuma relação com seu
corpo; mas, ainda assim, o portal médio ainda implicava “imobilidade” por
parte de sua psique. No portal alto, Carl supunha, sua psique escaparia
daquela peculiar “imobilidade” do portal médio e partiria “livremente” na
viagem astral. O resto estava ainda por ser descoberto.
A verificação da passagem de Carl ao portal baixo e ao portal médio foi
realizada por uma série de experimentos conduzidos com muito esforço,
repetidas vezes, até que todos pudessem afirmar, objetivamente, que Carl
havia alcançado essas diferentes posições. Para ajudar-nos a compreender
como esses experimentos ocorreram, temos filmes, gravações em fita e as
minutas dos registros de laboratório, junto com as gravações que o próprio
Carl fez depois de cada sessão. Alguns membros do grupo também
contribuíram contando suas memórias do que aconteceu.
Uma vez que Carl entrava em transe e todas as sensações físicas (por
exemplo uma alfinetada na sola de seu pé) tinham resposta negativa, os
assistentes procediam com a mudança de objetos ao redor do corpo inerte
de Carl. Eles introduziam objetos que ele nunca vira – geralmente cartazes
com inscrições feitas por seus assistentes em outra sala, posicionavam-nos
para cima e para baixo, e os moviam pelo cômodo. Eles então procediam
com uma série de experimentos, testando Carl até que estivessem seguros
de que suas respostas, ao identificar os objetos que ele antes ignorava, eram
corretas e tipicamente oriundas de uma posição de portal baixo.
Como Carl o registrou, na posição do portal baixo ele estava
perfeitamente consciente, mas não por meio de seus sentidos. Ele observava
desde uma posição externa a seu próprio corpo, a partir de todos os lados,
por baixo e por cima dele, bem como da cama na qual jazia esse corpo.
O portal médio era o próximo objetivo. Em todas as posições do portal
baixo persistia, sempre, uma relação algo instintiva entre Carl e seu próprio
corpo inerte, quando ele o via “desde fora”. Eles entendiam que essa
relação instintiva era uma “tendência” das condições humanas normais. O
objetivo era livrar-se dela.
Todos sabiam que havia um risco envolvido em se suprimir algo tão
básico e instintivo quanto o senso do próprio corpo. Que garantia tinham de
que se podia, depois disso, voltar a ele? Como era possível que se
“retornasse” à vida normal do corpo? Seria possível simplesmente escapar
dessa relação, vivendo-a sem conseqüências, e então retornar aos limites do
corpo? Ou então, ao deixá-lo, se o destruiria? Ninguém sabia. “Mas nós
precisamos descobrir”, insistia Carl.
No final de 1968 Carl teve as primeiras experiências no portal médio: nos
seus transes, agora, a relação com seu corpo se enfraquecia; e, conforme
progredia o enfraquecimento, uma condição estranha, adimensional da
mente, começava a preencher sua consciência. Os assistentes e Carl tinham
enorme cuidado nesse estágio. Carl permitia um certo nível de
enfraquecimento desse laço instintivo, e então retornava à imersão plena em
seus sentidos corporais. Ele em seguida repetia a operação diversas vezes,
até sentir-se seguro de possuir toda a energia psíquica e os recursos que o
permitissem voltar à normalidade psíquica, e, descendo ao portal baixo,
retornar à normalidade física. Mais tarde, no início do verão de 1969, ele
atingiu perfeitamente o portal médio.
Ao final do verão, ficou decidido que eles deviam almejar o portal alto.
Era uma manhã de sábado. Todos procederam do mesmo modo ordeiro e
controlado adotado no início. Carl passou pelo portal baixo e, sem muita
demora, pelo portal médio. Àquela altura, de acordo com os planos feitos
nas noites preparatórias anteriores àquele encontro, havia uma pausa
regulatória de três minutos enquanto eles esperavam que Carl atingisse o
controle de sua energia psíquica para o seu difícil próximo passo.
Passados os três minutos, eles retomaram o trabalho. Mas Albert logo
descobriu que não era possível ter nenhuma resposta ou reação de Carl.
Depois de uma súbita aceleração, o pulso, o ritmo cardíaco e a respiração
desaceleraram e voltaram ao ritmo “normal” do portal médio. Fisicamente,
Carl estava “na normalidade”. Norman e Albert se olhavam um para o outro
e para o resto do grupo; não havia nada a ser feito senão esperar e continuar
monitorando os sinais vitais de Carl. Carl insistira quanto a que queria
correr aquele risco, e todos haviam concordado.
Quando Carl atingiu o portal médio e Albert parou de interrogá-lo por
conta da pausa regulatória, o progresso de Carl não parou. A diminuta
relação com seu corpo se havia reduzido a nada. E ele subitamente passou
para um outro plano, um outro estado: nem próximo nem distante de seu
corpo, nem leve nem pesado, seu ser inteiramente transparente para ele,
sem desejar nem a morte e nem a vida, sem lembrar ou esquecer de nada,
nem entender nada novo ou ignorar nada antigo. Naquele estado ele não
tinha nem passado e nem futuro. Ele havia passado do portal médio à
posição do portal alto.
Albert, Norman e os outros estavam seriamente preocupados, de início,
quando as máquinas de monitoração cessaram de registrar qualquer
atividade cerebral no corpo de Carl. Mas Carl havia avisado quanto a isso,
também, e disse-lhes que talvez, no limiar do portal alto, e muito
provavelmente durante a posição de portal alto, haveria uma aparente
ausência de atividade cerebral, certamente nenhuma atividade que pudesse
ser captada por máquinas. Mas Carl não fora capaz de prever nada além
disso. Os assistentes não tinham nenhum indício de qual era a experiência
sendo vivida por Carl naquele momento.
Rápida e simultaneamente ele vislumbrou todo o panorama que se
apresentava diante dele. Segundo o que diz, era uma miscelânea de faces,
lugares e animais que já vira anteriormente, fosse na vida real ou em livros.
Rostos como o da colossal estátua de Ramsés II em Abu Simbel no Egito,
uma deusa minóica do séc. VI a.C., um alaudista da antiga cidade de Tiro;
locais como o templo de Atena Nice, os banhos públicos de Mohenj-Daro,
as antigas construções de Jericó, camadas de terra cobertas de gelo,
pântanos, gases que emanavam, escuridões profundas; objetos tais como um
sicômoro na Tebas Faraônica de séc. XVIII a.C., os altos picos de Machu
Picchu.
Não era uma questão de imagens ou de figuras; tratava-se dos lugares
reais e dos próprios objetos. E uma peculiaridade que se acrescenta à
situação é que eles não chegavam a Carl sozinhos, um depois do outro ou
separados no espaço e no tempo. Carl pairava muito acima deles, e eles se
lhe apresentavam simultaneamente.
As gravações feitas durante essa parte da seção são silenciosas, exceto
pelos sussurros de seus associados. Carl ficou em silêncio durante todo o
portal alto.
Depois de 25 minutos, Albert e os outros começaram a ficar
preocupados, quando a monitoração do pulso e do ritmo cardíaco começou
a marcar um passo mais rápido. Carl deve estar “retornando”, revivendo,
eles pensaram. Ele estava começando a responder aos comandos e às
sugestões diretas de Albert. Dez minutos depois tudo estava acabado. Carl
abriu os olhos lentamente e piscou ao olhar para a luz elétrica.
Eles todos partiram, deixando aquele costumeiro tempo para sua
recuperação. Quando voltaram, 15 minutos depois, Carl estava ditando no
gravador o tanto quanto conseguia se lembrar daquela viagem astral de
portal alto. A exaltação do grupo ao ouvi-lo foi grande, o que é de se
compreender. Eles ainda tinham de inventar algum método para verificar os
dados de sua viagem, mas eles tinham plena confiança quanto a que tais
controles poderiam ser criados com repetidos experimentos.
Albert, Norman e Carl foram os últimos a deixar a sala do experimento.
Atravessaram o campus até o refeitório. Discutiram no caminho os pontos
salientes do transe de Carl. Norman tinha certeza de que dois ou três pontos
da viagem astral de Carl eram únicos, mesmo nos estados de portal baixo e
médio. Ele mencionou especialmente o momento em que Carl pareceu
mover-se durante o transe, e comentou sobre a experiência incorpórea de
Carl em certos momentos de sua experiência: Carl não apenas sentiu como
se estivesse olhando para o seu próprio corpo inerte, mas como se estivesse
definitivamente separado dele.
Enquanto eles conversavam, Albert e Norman estavam “tomados” ou
“totalmente dominados, como eles mesmos disseram, por uma certa
dimensão psíquica de Carl.
Carl estava simplesmente explicando a ausência de distância durante a
viagem astral. Ambos se lembram dele dizendo: “Tome, por exemplo,
aquela colina lá adiante”. Ele indicou o alto cume que flanqueava seu
caminho favorito. “Você o vê como uma dimensão vertical, como uma
distância de você, em seu plano horizontal”.
Ali, a percepção que eles tinham da própria colina não mais era a de um
obstáculo em seu horizonte. A colina estava ali tanto quanto estivera no
momento anterior a essa mudança peculiar. Mas agora eles não estavam
mais nem distantes e nem próximos dela, nem mais acima e nem mais
abaixo dela. Eles não tinham, em outras palavras, nenhum senso de
distância. Segundo o que eles descrevem, eles tiveram uma experiência
parecia com aquela de Carl na noite em que toda distância desaparecera
entre ele e o pôr-do-sol visto pela janela de seu gabinete.
A mesma mudança afetou a relação de um com o outro e com Carl. Sem
qualquer percepção de distância ou espaço entre si, eles estavam “com” ele,
um “com” o outro. A única relação material que restava era aquela da
presença: eles estavam presentes um para o outro.
Eles também estavam conscientes de outra mudança, dessa vez em Carl.
Ele estava presente para eles, e eles para ele. Mas ele estava mais presente,
mais “unido” com outro algo ou alguém. E eles, os alunos, não estavam tão
presentes ou “juntos” com esse algo ou alguém com o qual Carl estava. Eles
testemunhavam seu “encontro” com esse outro ser, tal como ele era, e
ouviam estranhas palavras de uma conversa que eles não entendiam. Por
vezes parecia que Carl estava “falando” com mais de um, com duas ou três
“pessoas”. Eles não podiam saber exatamente quantos. E, enquanto a
emoção dominante tanto em Norman quanto em Albert era de medo e
nostalgia de uma postura física e psíquica normal, Carl parecia estar em
êxtase e totalmente absorto em seu “encontro”.
As memórias dos assistentes tornam-se confusas a partir deste ponto.
Eles lembram de conversas, mas de um modo totalmente não deliberado,
como se alguma força neles estivesse produzindo as palavras que
pronunciavam. Por diversas vezes disseram as mesmas coisas
simultaneamente, unidos em coro, noutras vezes falavam de um modo
atravessado, como se tratando de assuntos diferentes. Lembram-se de terem
de fato ouvido um ao outro dizendo: “Certamente, nós temos de fazer um
lugar especial, aqui, para Carl e seus companheiros”. E eles só têm
memórias muito frágeis de quem ou o quê eram esses companheiros, ao
longo dessas experiências. Eles não guardam nenhuma lembrança de
formas humanas.
A certa altura, a visão deles foi turvada por uma escuridão que eles não
conseguiam entender e nem penetrar com o olhar. A audição deles foi
diminuindo. Depois disso, dizem Albert e Norman, eles parecem ter ficado
anestesiados ou sonolentos, e essa anestesia se alastrou nos dois,
debilitando seus sentidos.
Cada um deles sentiu então uma mão pousando sobre seu ombro e
ouviram a voz de Carl, num tom normal.
“Albert! Norma! Vocês me ouvem? Acordem!”.
Albert, ao descrever sua reação, diz ter aberto os olhos. A descrição de
Norman é de uma escuridão que dissipou toda sua visão. Tudo o que ambos
viram foi Carl, diante deles, uma mão sobre o ombro de cada um, olhando-
os normalmente, como sempre. Ele sorria e contava-lhes, por aquele
sorriso, que sabia o que eles tinham acabado de experimentar. Ninguém
disse nada. Mas Carl apontou para a colina.
Eles a observaram. A colina agora estava banhada pela luz do sol, e
também assim os prédios e toda a extensão do gramado verde entre eles e a
colina. Voltaram o olhar para Carl.
Ele disse apenas: “A exaltação é algo que as pessoas não entenderão com
facilidade”.
Ambos consentiram. Eles próprios passariam horas discutindo e tentando
entender aquilo que acabara de acontecer.
Essa experiência fez uma diferença enorme na vida de Carl. Depois de
alguma discussão, foi decidido que eles comunicariam a todos os membros
do grupo de estudos especial o que Albert e Norman experienciaram
naquela manhã. Todos agora aceitavam Carl como guia e guru. Eles se
referiam ao fato de ele ser um guru abertamente, quando falando com outras
pessoas sobre seus estudos, embora todos tivessem concordado em não
mencionar publicamente a “exaltação” de Carl, como ele a chamava, até
que suas descobertas fossem publicadas. Mas a partir daquele momento, até
o incidente em Aquiléia, Carl passou a ser reverenciado por cada membro
de seu grupo especial, não somente como um parapsicólogo, mas como um
guia pessoal em seus progressos espirituais e na busca de uma verdadeira
religiosidade.
Foi inevitável que a notícia se espalhasse para além do grupo de estudos.
E logo Carl passou a ter um grupo muito maior de seguidores. Ele alcançou
uma particular notoriedade depois de uma conferência proferida logo após
sua “exaltação”. Ela tratava de religião e cristandade. Carl anunciava o
objetivo de seus estudos e pesquisas como sendo o de redescobrir o que o
cristianismo realmente significava, qual era o verdadeiro objetivo de Jesus
antes que sua mensagem fosse corrompida por outros homens.
Conforme o tempo passou, o número de seguidores de Carl foi crescendo
enormemente. Mais e mais pessoas vinham em busca de guiamento em suas
vidas espirituais. E, mesmo com o crescimento do grupo em número, a
influência de Carl sobre esse mesmo grupo também se tornou mais
profunda. Ele impunha exercícios muito severos para cada um dos
participantes, disciplinando suas imaginações e ensinando-os a controlar
seus processos mentais de um modo e num grau muito superior àquele em
que Olde o introduzira anos antes.
Carl começou a conduzir sessões especiais de crescimento espiritual para
o seu grupo crescente. Elas eram realizadas na grande sala de seu gabinete
privado, onde também organizava seminários e fazia muitos de seus
experimentos.
Durante essas sessões, Carl ficava num dos cantos da sala, enquanto
todos os “participantes” ficavam sentados no chão num semicírculo ao seu
redor. Ele falava lenta e decididamente, instruindo seus ouvintes. Parecia
estar no auge de suas habilidades psíquicas durante essas sessões. A cada
sentença o seu controle parecia tornar-se mais concentrado, e todos
gradualmente caíam num estado de grande calma corporal e mental,
permanecendo contudo despertos.
Finalmente todos parecem ter sentido não somente uma presença especial
ali “com” eles, mas uma irresistível inclinação interna a se “inclinarem”
(ou, como disse um deles, “se aniquilar”) diante dessa presença. Uns tantos
participantes acabavam por se retirar do grupo em um momento ou outro
porque, dizem eles, a presença estranha que estava “com eles” lhes parecia
“fria”, “não-humana” e “desamorável”. A maioria, contudo, perseverou. Os
poucos que falaram comigo sobre essa presença sentida durante as sessões
de crescimento espiritual de Carl enfatizaram o peculiar controle, como
uma “garra” que eles viam deter seus próprios sentimentos. Aquilo não os
assustava, mas não transmitia a mínima impressão de ser algo benigno ou
amoroso. Aquilo intimidava, como um deles comentou; mas intimidava
tanto quanto um enorme arranha-céu pode intimidar alguém próximo à sua
base, contemplando toda sua extensão. Intimidador, ela anestesiava os
sentimentos. E, ao anestesiá-los, parecia controlá-los.
Foi precisamente ao fim de uma dessas sessões de crescimento espiritual,
em setembro de 1971, que os primeiros sinais de possessão se tornaram
exteriormente aparentes em Carl. Ninguém, contudo, no entorno mais
imediato de Carl estava equipado para ler esses sinais tais como eles se
mostravam. Todos eles os interpretavam como deslumbrantes manifestações
do que eles chamavam do “outro mundo de Carl; um mundo mais real”.
Nessa ocasião particular, Carl acabara de fazer sua preleção, e os
participantes na sessão estavam todos voltando ao seu estado normal de
consciência, lentamente se liberando daquele “controle” entorpecedor.
Ao voltarem à percepção ordinária das coisas ao redor, eles perceberam
que Carl estava tendo dificuldades em respirar e se manter de pé. Ele estava
estranhamente curvado. Com os pés ainda em contato com o chão e os
joelhos flexionados, a parte superior de seu corpo, até seus ombros, estava
curvada, como se ele estivesse caindo para trás. Seu queixo estava afundado
em seu peito na tentativa de se levantar. Somente sua cabeça se movia
naquele esforço todo.
A regra para todas as sessões sempre fora clara: jamais encostar em Carl
durante a sessão. Assim, ninguém se moveu para ajudá-lo, mas todos
observaram.
Norman e Albert, que conheciam Carl mais intimamente que os outros,
sentiram que Carl estava passando por uma dificuldade. Algo estava errado.
Trocando um olhar de consentimento, eles atravessaram rapidamente a sala
e sussurraram aos participantes que se levantassem e deixassem-lhes a sós
com Carl. Quando eles todos partiram, Norman abriu as cortinas, deixando
entrar a luz do dia.
A face de Carl estava claramente tomada de medo e raiva. Ele
murmurava algumas palavras como “último”, “verdadeiramente”, “não”,
“vontade”, “fiel”, “eternamente”, “primordial”. Mas eles só podiam
discernir uma massa de palavras que não expressavam nenhum sentido.
Pouco a pouco Carl se reergueu. Inspirou fundo uma ou duas vezes,
tentando ganhar fôlego, cambaleou até uma cadeira, sentou-se e cobriu sua
face com as mãos.
“Deixem-me”, Norman e Albert ouviram-no dizer numa voz abafada.
“Falo com vocês mais tarde”.
Eles o deixaram sozinho.
No dia seguinte, quando os três se encontraram, Carl estava recomposto,
sorridente e forte como sempre, até Albert ter mencionado os
acontecimentos do dia anterior. A face de Carl se obscureceu. Ele não
olhava mais para nenhum dos dois, e disse apenas: “Nós também temos
nossos inimigos. Nosso inimigo. O Último” (ele deu uma ênfase especial a
essa palavra) “perturbará toda harmonia da psique e da realidade, da mente
e do corpo”. Repetia essas frases seguidas vezes como uma litania, até
começar a tremer e transpirar.
Quando Norman sugeriu que eles cancelassem a sessão daquela tarde,
Carl foi veemente. Postergar era ceder ao Último. Eles deviam seguir a todo
custo, disse Carl. Estavam prestes a fazer uma descoberta histórica.
A “descoberta história” se deu no fim do outono de 1972.
Tendo Carl atingido a primeira proficiência no nível astral, seu próximo
objetivo era utilizar aquela habilidade para entrar em contato com ao menos
uma de suas antigas encarnações.
Carl considerava a reencarnação, definitivamente, como uma realidade.
Ele acreditava que a psique de cada pessoa tinha múltiplas “camadas”. Cada
“camada” evoluía durante diversas vidas sucessivas, e cada ser humano era
composto por tais “camadas”. Ele também acreditava que o fator unificador
de todas essas “camadas” era uma “camada” em particular, na qual a pessoa
em questão recebera uma luz direta da “divindade”. Pois, naquele precioso
momento, a psique reencarnada torna-se perfeitamente humana. E, para
Carl, ser perfeitamente humano significava ser indestrutível. A isso ele
chamava de “camada unificadora” ou “camada alfa”.
Carl prosseguia sua teorização e dizia que, na liberdade do nível astral,
aquela camada alfa emergiria; mas somente a ação veemente da vontade do
sujeito, estimulada pelas questões inteligentes de um monitor, podiam fazer
com que isso tudo aflorasse. Se não houvesse nunca existido uma camada
alfa na evolução da psique, então uma tal psique simplesmente gozaria da
viagem astral, mas obviamente nunca atingira a reencarnação no sentido
pleno da palavra.
O progresso de Carl na busca de sua camada alfa ou encarnação principal
era relativamente lento. Ele começou por estudar o áudio e as fitas de suas
sessões de viagem astral. Ele buscava indícios nas suas palavras e ações.
Uma linguagem específica, nomes e locais específicos, gestos que tivessem
uma conotação cultural, étnica, religiosa ou mesmo geográfica –podiam ser
pistas para a camada alfa emergente que ele buscava.
Ao olhar para algumas imagens fragmentárias de seus assistentes,
tomadas vez ou outra acidentalmente pelas câmeras enquanto elas
percorriam a cena toda da sessão em panorama, Carl detectou indícios do
que ele sentiu ser um fenômeno espantoso: por vezes, um ou outro de seus
assistentes fazia, inconscientemente, um gesto ou adotava
momentaneamente uma atitude que correspondia às próprias palavras e/ou
ações de Carl naquele ponto particular da sessão. Alguns de seus próprios
ambientes físicos estavam, obviamente, afetando aqueles que
testemunhavam e assistiam à sessão. Ele não sabia o que isso significava,
mas aquilo tudo contribuía para o estudo, com novas indicações de onde ele
deveria buscar sua camada alfa.
Foi pela coordenação de todas essas pistas que Carl finalmente descobriu
sua própria camada alfa: uma encarnação remontando aos primeiros dias do
cristianismo nos tempos romanos. Sua própria mente e memória eram como
uma joeira pela qual pedaços de percepção estavam sendo sacudidos e
peneirados; todos tratavam de cenas, nomes, objetos, ações e eventos que,
durante a análise em grupo das sessões, foram identificados como
remontando ao período romano e italiano antigos. A maioria das palavras e
frases que ele murmurava durante a sessão eram em latim clássico.
O nome Petrus retornava diversas vezes. De início, eles pensavam que
ele se referia a Pedro, o Apóstolo e bispo de Roma. Mas, embora Roma
viesse, de fato, em conexão com Petrus, e junto a outros nomes
historicamente conexos com Pedro, ficou claro que o Petrus em questão
tinha mais a ver com a Roma italiana, com o oriente e com o mar.
O que intrigava Carl e os outros, conforme eles revisavam as fitas depois
de cada uma das sessões era que, sempre que o nome Petrus era
mencionado por Carl, um de seus assistentes – aparentemente sem se dar
conta – faria uma dentre essas duas coisas: ou ele ergueria sua mão por um
instante no gesto de saudação da Roma antiga (braço esticado, mão erguida,
dedos unidos apontado para cima, a palma voltada para fora) ou então ele se
agacharia por um instante, como se estivesse em vias de se colocar de
quatro.
Pouco a pouco, Carl e seus associados refinaram o método de condução
das sessões. Albert, monitor chefe, desenvolveu uma técnica de inquirição.
A capacidade de rememoração de Carl, ao fim de cada sessão, cresceu. Eles
estavam mais aptos a entender as fitas das sessões. Era somente uma
questão de tempo e de encontrar a ocasião certa, Carl continuava dizendo-
lhes. Um dia eles acertariam o alvo.
Um comentário despretensioso de um colega, que perguntou como seu
trabalho andava, deu a Carl uma pista, pequena, porém valiosa. Ao final da
conversa, o colega brincou dizendo que, se sua santa avó irlandesa estivesse
viva, ela lhe teria dito para realizar sessões especiais no dia da festa de
Finados. Ela sempre dizia que as almas dos mortos voltavam à terra naquele
dia. Carl tratou esse comentário de seu amigo como uma “mensagem”
vinda do mundo dos espíritos.
Em 2 de novembro de 1972, Carl realizou uma sessão inabitual de seu
grupo de estudos especial. Com a ajuda de Albert e Norman e de seus
associados mais próximos, ele faria mais uma tentativa astral de contatar
uma de suas encarnações – aquela rumo a qual ele sempre parecia tender,
mas que ele nunca conseguira alcançar com sucesso.
Como de costume, o grupo se encontrou na sala de conferências uma
hora antes do dia nascer. Carl parecia em plena forma, e tinha um olhar
tranquilo e alegre ao saudar cada um dos membros de seu grupo
afetuosamente. Ele estava em perfeito comando da situação. Deitou-se no
divã de couro e foi conectado às várias máquinas de monitoração. O áudio e
os gravadores de vídeo foram ligados. Todos então recitaram as preces que
Carl havia escrito.
As falas de Carl ao longo dessa sessão foram quase todas ditas em latim,
com algumas palavras ou frases ocasionais em grego, e certas expressões
numa língua que eles mais tarde descobriram ser uma forma de copta.
Carl aparentemente não teve dificuldades em atingir o portal alto nessa
sua jornada astral. Tendo passado a esse patamar, a apreensão entre os
observadores foi extrema. Eles sentiam que aquela era uma das raras
ocasiões em suas vidas em que eles poderiam testemunhar uma genuína
descoberta científica. Eles já sabiam, àquela altura, que em suas antigas
encarnações Carl pertencera ao mundo romano antigo, nos primórdios do
cristianismo. Mas ele ainda não descobrira, até aquele ponto, qual o lugar
em que havia vivido, a identidade que assumira naquela encarnação e os
eventos que haviam marcado sua vida naqueles dias passados.
Na medida em que Carl continuou buscando, ao longo dos meses, por sua
camada alfa através de excursões astrais de portal alto, seu corpo passou a
levitar durante as sessões, mas somente quando em associação com a antiga
encarnação romana, que agora buscava deliberadamente. Seu corpo se
elevava do divã com cada vez maior leveza; ele permanecia suspenso no ar
sem tocar o divã, e voltava por conta própria à superfície, quando Carl
retornava à normalidade. Não havia regularidade na ocorrência desse
fenômeno de levitação, exceto pelo fato de estar associado às excursões
fortuitas na Itália romana, e nunca havia quaisquer efeitos colaterais
aparentes para o bem-estar de Carl.
A fita de vídeo gravada nessas ocasiões em particular mostra Carl
deitado, imóvel, sobre o divã. Donna e Bill estão sentados ao pé do divã;
ambos têm um olhar atento a maior parte do tempo. Mas as mesmas
mudanças se passam em suas faces, assim como nas dos outros em volta do
divã – Albert e Norman sentados à cabeceira, Keith e Charlie do lado
oposto, e os dois técnicos que assistiam as máquinas de monitoração.
Alguém que não os conhecesse poderia ter o impulso de dizer que eles eram
irmãos e irmãs; pois a intensidade das emoções expressas em seus rostos
resultava numa enorme similaridade entre seus olhares, como se uma tinta
invisível os tivesse tornado membros de uma mesma família.
Com a passagem de Carl ao portal alto, todos se inclinaram para frente,
os olhos bem abertos, ansiosos, completamente absortos e concentrados no
rosto e nas palavras de Carl. Quando o corpo de Carl, ainda deitado de
costas, se erguia ligeiramente do divã, todos afundaram em suas cadeiras,
uma expressão de assombro e reverência tomando seus rostos por completo.
A voz de Albert assume a cena, conduzindo as perguntas. “Quem é
você?”.
Uma breve pausa. Carl então responde. “Pedro, um cidadão romano”.
“Onde você vive?”.
“Em Aquiléia”.
“Que dia é hoje?”.
“A festa do Senhor Netuno”.
“O que vocês estão fazendo hoje?”.
“Estamos celebrando o mistério da salvação”
“Quem está com você?”
“Aqueles do sacramento”.
“Que sacramento?”.
“O sacramento”.
“Por que aqui?”.
“Foi neste lugar que a Tartaruga enfrentou o Galo”.
“Onde?”.
“No oratório secreto”.
“Como vocês celebram o mistério?”.
“Nós adoramos a Tartaruga. E amaldiçoamos o Galo”.
“Por quê?”.
“O Galo corrompeu a salvação”.
“Como?”.
Não houve resposta de Carl, mas a expressão em seu rosto mudou por
diversas vezes. Algo parecido com indignação, dor, raiva, medo e alegria
atravessou seu rosto. Seu pulso e seu ritmo cardíaco aceleraram. Albert
aguardou cinco minutos, e tentou novamente.
“Onde vocês estão agora, e o que está acontecendo?”.
“Ao lado do Galo, diante da Tartaruga”.
Pela primeira vez o corpo de Carl se moveu – sempre muito
discretamente, ainda em levitação. Donna percebeu-o imediatamente. Ela
olhou para Norman, que balançou a cabeça: não era necessário se
preocupar, ele indicava. O corpo todo de Carl então começou a vibrar. A
expressão em seu rosto era de esforço.
Albert refletiu por um instante, e tomou uma decisão.
“Vocês estão continuando o rito do sacramento?”.
Carl não respondeu. Ele estava relaxado e calmo. Seu pulso e ritmo
cardíaco voltaram ao normal. Seu corpo baixou delicadamente,
imperceptivelmente, retornando ao divã. Ele estava retornando ao portal
alto, era óbvio, e a sessão estava para acabar.
Quando isso ficou claro, cada um deles fez o seu papel. As máquinas de
monitoração e os gravadores foram desligados. Como de hábito, todos se
levantaram e partiram. Norman, o último a passar pela porta, parou para
desligar a luz, e saiu, fechando a porta delicadamente.
Ele a fechou e estava prestes a alcançar os outros quando seus nervos
congelaram. Todos ouviram uma gargalhada, um grito sarcástico, um
estrondo vindo da sala de conferências.
Eles se entreolharam incrédulos, completamente persuadidos de que
aquilo não podia ser verdade, de que devia haver alguma explicação. O tom
daquela risada era tão gritantemente distante da atmosfera na qual eles
estavam envoltos naquele momento, de reverência e gratidão, que todos
responderam com uma expressão de nojo e uma ponta de medo.
Quando as últimas notas daquele urro derrisório se esvaíram, Albert
girou a maçaneta da porta e a abriu. Todos olharam para a escuridão da
entrada da sala. Donna, mais próxima de Albert, esticou o pescoço por
sobre o ombro dele. Não havia nenhum som, nenhuma luz. Com alguma
dificuldade, Albert pôde distinguir a forma inerte do corpo Carl. Ele ainda
estava adormecido. Albert deu de ombros, estarrecido, e puxou a porta,
fechando-a suavemente.
Donna nada comentou, mas enquanto a porta estava aberta, ela notara um
estranho odor vindo da sala. Ela olhou para Albert, e finalmente lhe
perguntou se ela estava louca ou se alguém mais sentira aquele cheiro,
também.
“Não há com que se alarmar”, disse-lhe Albert. Ele e Norman notaram o
cheiro antes de diversos experimentos e conversaram com Carl a esse
respeito. Eles ainda não entendiam o que era aquilo. Mas era por isso, disse
ele, que eram cientistas – para descobrir o que acontece e entender o porquê
do acontecido.
Donna ainda tem uma lembrança clara daquele cheiro. Não era
desagradável, mas estranho. Não era um cheiro de animal, nem de planta
alguma, e nem de qualquer produto químico que ela conhecesse. Uma
memória sensitiva profunda permaneceu nela por muitas semanas.
Entre esse momento e o exorcismo de Carl, um ano mais tarde, Donna
viria a sentir esse cheiro por mais diversas vezes. Parte de suas angústias
posteriores vinham do fato que, à época em que o exorcismo se iniciou, ela
já havia começado a gostar do tal odor.
Duas coisas ficaram óbvias com os dados das sessões: a antiga
encarnação de Carl se encontrava em algum local particular na cidade
italiana de Aquiléia; e o ponto alto de cada ano nessa vida passada era a
festa do antigo deus romano Netuno. Esse dia de festa nos calendários
modernos seria 23 de julho. Eles resolveram, portanto, estar em Aquiléia
em 23 de julho do ano seguinte.
Durante os meses que separaram a festa de Finados e a viagem à Itália,
Carl passou a usar dois emblemas de Netuno, o golfinho e o tridente, numa
corrente em volta de seu pescoço. Ele também ficou mais distante do que
nunca de seu entorno físico e passava uma boa parte do tempo ouvindo
repetidamente as gravações de seus transes. Ele tentou, em diversas
ocasiões, escrever sobre tudo isso, mas nunca conseguiu passar de uns
poucos parágrafos. A palavra que lhe fora dita em sua visão de
adolescência, “Espere!”, parecia ser seu lema.
Enquanto isso, ele fez mais um avanço no campo da psique. Ele afirmou
por diversas vezes ter adquirido um novo poder: a capacidade de estar em
dois lugares ao mesmo tempo por conta, segundo ele, de um “duplo”
psíquico que ele podia projetar, através de muito esforço, na realidade
visível de algum local a centenas de quilômetros de onde ele se encontrava.
Durante esses meses, as direções de Carl para a vida pessoal de seus
associados tornaram-se muito mais dogmáticas e absolutistas em seu tom.
“As coisas eram assim e pronto” observou um deles, Carl não lhes dava
mais nenhuma alternativa. Não havia nenhum “e/ou”. Todos eles tinham de
se “purificar”, dizia Carl. Eles tinham de ser limpos de toda mancha
impregnada em suas mentes e vontades, manchas que vinham do fato de
eles haverem aceitado, previamente, mentiras sobre Jesus e a cristandade.
Muitos dos seguidores achavam o regime estabelecido por Carl algo
saudável. Eles dormiam melhor, estudavam com maior concentração, e
pararam de se deixar distrair com questões desimportantes.
Vez ou outra, alguns deles sentiam estar abdicando uma parte íntima de
seu ser. Alguns se sentiam vagamente perturbados, mas era difícil definir
essa perturbação. E, de todo modo, a aventura com Carl era excitante e
nova, e prometia conduzi-los para além do horizonte previsível de suas
existências ordinárias.
Carl não impôs nenhuma dificuldade quando chegou o Natal de 1972; e
todos eles voltaram para suas casas para celebrar as festas. Mas quando a
Páscoa se aproximou, ele insistiu quanto a que eles deveriam passar aquele
momento com ele.
Eles não foram a nenhuma igreja ou serviço religioso. Ao invés disso, na
noite do sábado de Páscoa eles todos se encontraram ao pé da colina em que
se via o caminho preferido de Carl. Dali eles observaram o sol se pôr,
enquanto Carl tecia um longo comentário sobre o “verdadeiro espírito”.
Ele escolhera o tema a eternidade do espírito. E, usando os símbolos da
tartaruga para a eternidade do espírito e do galo para o sol nascente e poente
do intelecto humano, ele pregou veementemente contra a “corrupção mental
que destruiu a beleza da palavra de Deus”. O sol, ele disse, se ergueria no
amanhã e se poria no amanhã. E o mesmo valia para cada ressurreição
humana. Era um constante erguer-se e cair. Só o espírito permanecia para
sempre, como o oceano, como a tartaruga, como o céu, como a vontade do
homem. Houve mais coisas nessa mesma linha, tudo muito místico e
exultante.
Em seguida, ele os deixou e voltou ao seu escritório. Ninguém ousou ir
com ele. Ele estava num desses “estados” que eles todos veneravam.
Em 15 de julho, com a viagem planejada o mais cuidadosamente
possível, o pequeno grupo deixou o campus de carro rumo ao aeroporto.
Cerca de uma hora depois da partida, Pe. Hearty chegou ao departamento
de psicologia. Ele procurava por Carl. Não, ele disse à secretária de Carl,
ele não tinha agendado um encontro previamente com o professor, mas ele
tinha uma mensagem mortalmente importante para ele e seus
companheiros.
Levou algum tempo até que ele fosse informado quanto à partida de Carl
e a visita a Aquiléia. Ele correu atrás de Carl num taxi até o aeroporto, mas
só chegou lá quando o avião já taxiava na pista para a decolagem.
Hearty ficou olhando o céu noturno que engolia o avião de Carl. Quanto
ao estado mental de Carl, ele só podia imaginar... Mas ele sabia muito bem
como toda aquela aventura de Aquiléia iria terminar, e não era só pela
imaginação...

Padre Hartney F.
Quando Hartney F. nasceu no País de Gales, em 1905, seus pais já viviam
ali há aproximadamente 18 anos. Ele era um filho tardio. Sua mãe era
galesa; seu pai era inglês, vindo de Northumberland.
A cidade natal de Hartney, a qual ele chamava Casnewydd-ar-Wysg, mas
que é mostrada nos mapas ingleses como sendo Newport, fica às margens
do rio Usk em Monmouthshire. Ele foi batizado na igreja da paróquia St.
Woolos.
Quando Hearty tinha um ano e meio de idade, seu pai, médico da velha
guarda da clínica geral, recebera uma substanciosa herança paterna. Àquela
época a família batalhava para fechar seus meses sem dívidas. Então, com
aquele aporte repentino, seu pai largou o consultório e a prática
profissional. A família se mudou para fora da cidade, num pequeno vilarejo
próximo à confluência dos rios Usk e Severn.
Ali, Hartney passou os doze anos seguintes. Seu pai mantinha uma
pequena clínica privada. Em sua casa no Severn, suas primeiras idéias e
emoções foram formadas por sua mãe, com a ajuda do ambiente da tradição
de Gales na qual toda a cercania – seu povo, história, monumentos e vida
comunitária – estava imersa. Aos seis anos ele foi enviado à escola
primária. Sua língua do dia a dia era o galês, mas seu pai lhe instruíra no
inglês desde os sete anos de idade.
Àquela época, sua mãe, uma ardente nacionalista galesa, radical em sua
defesa da história e literatura galesas, não permitia jamais que se falasse
inglês na presença de seu filho. Somente após seus quatorze anos foi que
ela consentiu em enviá-lo à escola pública britânica, onde ele adquiriu uma
sólida base em inglês e desenvolveu um profundo interesse pela ciência.
Mas seu inglês nunca chegou a perder a cadência e sotaque galeses.
Seus pais eram metodistas e freqüentavam os cultos todos os domingos
na pequena capela de seu vilarejo, feita em pedra. Entre a fixação de sua
mãe quanto à alma ou espírito galês, a beleza e atratividade dos hinos
metodistas que eles cantavam, e sua imersão no folclore do vilarejo e do
campo, a mentalidade de Hartney logo se preencheu daquele aspecto
peculiar de todos os povos celtas, o qual os galeses desenvolveram em grau
tão particular.
O melhor nome para essa peculiaridade é estilo. Estilo enquanto algo
distinto de todas as outras qualidades ou poderes humanos importantes, e
não submetido e nem igualado à inteligência, astúcia, arte, dinheiro terras
ou sangue.
A alma celta tem uma característica comum que lhe é particular: tudo na
vida e no mundo é interpretado em termos de luz e sombra. Mas essa
tendência inata de generalização em suas almas nunca permitiu aos celtas
ter sucesso em conquistas militares, possessões imperiais, construção de
grandes fortunas ou num predomínio cultural. Antes em sua história, eles
estavam confinados às extremidades da França (Bretanha), da Inglaterra
(em Gales e na Escócia) e da Irlanda como o tipo mais excêntrico do
continente europeu, dominado por romanos, vândalos, francos, ingleses,
normandos, dinamarqueses e outros.
Os celtas desenvolveram a única força que lhes restava: a expressão
verbal e uma correspondente agilidade do espírito, de um temperamento
mercurial. Um oralismo, portanto, em contraposição ao mentalismo, é a
marca do celta. O aspecto desse estilo peculiar que se tornou mais célebre
foi a notável expressão verbal de suas emoções.
Nesse ponto, pois, os celtas se destacavam. Os irlandeses voltaram seu
estilo para expressar o crepúsculo celta: os dois lusco-fuscos de nascimento
e morte. Os escoceses concentraram-se no jogo instável de luz e sombra,
nunca claramente felizes, nunca indubitavelmente tristes. Os bretões se
refugiaram na sombra enquanto disfarce para seu caráter perseverante.
Mas o galês tomou a luz como seu estilo, e desenvolveu as distintas cores
de seu cantar num pindarismo todo próprio; e a clareza, o brilho de sua
linguagem tornou-se um fator mais poderoso de identidade do que seu
nacionalismo ou sua religião. Eles guardavam as sombras celtas como um
plano de fundo secreto, no qual depositavam suas preciosas emoções. A
grande premissa do espírito “galista” era de que o mundo material era uma
mera roupagem, um ornamento lançado sobre o coração vivo da bela e
sublime realidade.
Esse estilo peculiarmente galês de pensar, sentir e se exprimir, marcou
profundamente a personalidade de Hartney, distinguindo-o ao longo dos
vários estágios de uma vida passada longe de sua terra natal.
Os poderes psíquicos de Hartney eram parte integrante de seu “galismo”.
Entre seus conterrâneos não havia nada de curioso ou estranho quanto às
habilidades mentais – “metade das pessoas que eu conhecia as tinha, a outra
metade pensava tê-las”, comentou Hartney certa vez. Tampouco havia
qualquer mistério relacionado a elas. Conseqüentemente, ele não cresceu
com um sentimento de ser anormal ou extraordinário. Isso lhe concedeu um
sentimento distinto de segurança.
Foi somente quando passou a freqüentar a escola pública, e mais tarde,
em Cambridge, que Hartney se deu conta de que seus poderes psíquicos
eram uma raridade, e geralmente vistos como uma anormalidade, algo de
que as outras pessoas desconfiavam. Os ingleses, embora tolerantes com
relação às suas próprias emoções e peculiaridades, tendem a ver as emoções
ou habilidades psíquicas das pessoas não inglesas como evidência de uma
condição primitiva.
As percepções psíquicas latentes em Hartney eram misturadas, na sua
infância, com três influências primordiais, as quais ele nunca esqueceu: o
folclore de seu povo, a paisagem de seu país, e a fé metodista de sua
família.
Antes que conhecesse uma só regra da gramática inglesa ou entendesse
como usar um tubo de ensaio, sua memória já estava cheia do profundo
folclore galês, que o colocava numa linha de continuidade com o “espírito”
ou a “alma” dessa terra e desse povo. Sua memória estava repleta de nomes
de príncipes galeses românticos como Rhun ab Owain, Llewellym, Owain
Glyn Dwr, e poetas como Tudur Aled, do séc. XV. Sua mãe recitava as odes
de Taliesin e Aneirin, do séc. XVI. E a fala de Hartney foi modelada de
acordo com as formas métricas da Idade Média galesa, o cywydd e o englyn.
Ele aprendeu a evitar a menção do ano de 1536 (quando o infame Ato de
União aboliu a independência nacional galesa).
Os campos de Gales, que acabaram por compor a vida interior de Hearty,
eram e ainda são especiais. Havia uma magia viva em suas casas caiadas,
suas capelas de pedra, o toque intimista da luz sobre as águas correntes, a
solidão das montanhas e dos vales, a perpetuidade dos pastos, as minas –
ventre impiedoso em que os homens ficavam pretos e fracos ao trabalhar
sob a terra, mas retornavam para cantar nas capelas e voltar para casa, ter
com mulher e filhos. “O espírito de Gales nasceu numa fazenda na
montanha, na casa de campo perto do córrego, na casa do mineiro”.
Hartney via todo esse complexo natural como algo vivo, e se assombrava
diante dele. Anos mais tarde, nas florestas de Burma e no pósguerra no
Japão, quando ondas de nostalgia do Vale do Usk o atacavam – ou pelo lago
Bala, ou pelas cataratas de Swallow, o Llyn Idwl, ou pela praia norte de
Tenby Bay, onde ele passava as férias de verão durante sua infância e
adolescência – Hearty via-se uma vez mais nos chalés de palha com
pequenas janelas, sentindo o cheiro de fatias de bacon estiradas na mesa da
cozinha, comendo um “hot shot” – bolo de farinha de aveia com leite. Essa
memória lhe era tão mística quanto um poema sobre o vale de Avalon, e tão
feérico quanto a canção “cuckoo em Merion”.
A fé metodista era a terceira grande influência no desenvolvimento de
Hartney. O objetivo do metodismo era o alcance do sagrado. Não que a
capela fosse sagrada, ou que o canto fosse sacro. (De fato, o ministro
inclusive costumava pregar dizendo que era o cemitério ao lado que tornava
a capela santa, e não vice-versa). Mas esse sagrado tinha uma forma de
expressão: o hinário. O louvor de Deus a Cristo, realizado seguindo regras e
uma característica regularidade e ritmo metodistas. Essa expressão era
sagrada por que se cria uma conversa com o espírito do Cristo e de Deus. E,
mais de uma vez em sua juventude, quando Hartney acompanhava seus pais
na entoação dos cânticos, o teto da capela, com seu telhado de duas águas,
deixava de ser um escudo contra o céu, tornando-se, para ele, um cume de
uma montanha sagrada, abrindo-se na direção do céu, pelo qual os cantos
dos anjos desciam, vindo de Deus aos homens e retornando para Deus.
A extensão do poder psíquico de Hartney tornou-se clara para ele ainda
com pouca idade. Ele tinha intuições bastante claras – às vezes literalmente
precisas – daquilo que as pessoas, tanto próximas quanto distantes,
pensavam e – em raras ocasiões – o que sofriam. Foi, pois, dentro de uma
clareira numa floresta birmanesa, no fim de 1943, que ele soube, na hora
exata, quando ambos seus pais morreram em Londres, durante a investida
alemã.
Em 1924 Hartney resolveu seguir aulas de física em Cambridge. Uma
vez na universidade, ele passou a se interessar pelo catolicismo romano.
Quando ele se graduou em 1929, já havia sido recebido na Igreja Católica e
acabou optando por tornar-se padre.
Ordenado em 1936, serviu numa série de paróquias na área de Londres,
até integrar o exército britânico como capelão em 1941. Pouco depois sua
unidade partiu para a Índia e poucos meses depois de sua chegada ele foi
enviado às selvas birmanas para investir contra as forças japonesas. Durante
essa parte de sua carreira Hartney foi apelidado de “Hearty, o Lutador” por
seus homens. A forma curta do apelido, Hearty, pegou para sempre.
Ele teve seu primeiro contato com a possessão por um espírito maligno
durante a campanha na Birmânia. A pequena força com a qual ele viajava
havia parado para passar a noite numa pequena clareira. Tudo estava calmo
e silencioso. Mas Hearty acordou por volta das duas horas da manhã com a
sensação de que outras pessoas moviam-se por perto, ao redor do
acampamento. Tentou pegar no sono novamente, mas aquela impressão não
o deixava.
Enfim, ele se sentou e ficou alguns minutos a ouvir. Rastejou até o
comandante de sua unidade, acordou-o e contou-lhe de seus temores. Não
era a primeira vez que Hearty tinha aquelas experiências. E ele sempre
estivera certo. O comandante esperou um pouco, falou com as sentinelas em
vigília e decidiu enfim enviar uma rajada de morteiros na direção indicada
por Hearty. Após cinco minutos, sem fogo adversário em resposta, ficaram
em vigília pelo resto da noite.
Ao nascer das luzes do novo dia, batedores foram enviados ao local dos
disparos. Um deles retornou em poucos minutos. A rajada de morteiros
havia atingido o alvo em cheio. O disparo noturno havia pego uma unidade
hospitalar japonesa de surpresa. Quando Hearty e os outros chegaram ali,
todo o pessoal japonês, exceto por um soldado apenas, estava morto; o
único sobrevivente estava inconsciente. O comandante da unidade de
Hearty quis vê-lo para um interrogatório. Ele foi levado de volta para o
acampamento, e suas feridas foram tratadas. Quando ele recuperou a
consciência algumas horas mais tarde, o comandante da unidade viu que ele
não viveria por muito mais tempo. O pobre sujeito foi interrogado por seus
oficiais de inteligência.
Tarde naquela noite Hearty foi ter com o prisioneiro. Ele queria descobrir
se ele era cristão, ou mesmo um católico. Se ele o fosse, Hearty gostaria de
dar-lhe os últimos ritos da Igreja.
Foi durante o curto crepúsculo birmane que o padre se aproximou dele.
Hearty estava muito cansado das batalhas, assim como todos os membros
de sua unidade. Ele não trazia nenhuma credencial consigo indicando ser
um capelão. Ao aproximar-se do prisioneiro, os olhos deste se arregalaram;
ele olhava para cima, na direção das folhagens que pendiam, e do céu.
Hearty esperava um olhar de temor misturado ao ódio surgindo em seus
olhos. Mas não foi nem medo e nem ódio que ele encontrou ali. Era uma
outra emoção que ele não conseguia reconhecer; hostil, sim, mas com um
traço suplementar que ele não conseguia captar imediatamente.
Ainda interpretando tudo aquilo como uma reação natural ante a visão de
um uniforme inimigo, ele se aproximou. O homem moribundo ficava mais e
mais agitado; seus membros e seu tronco tremiam; seus olhos rolavam nas
órbitas; mesmo seu cabelo bem aparado pareceu se arrepiar. Ele tinha a
exata expressão de um animal indefeso que se eriçava para se defender.
Hearty parou, e esperou.
Ele começara a receber uma mensagem “mental” muito incomum. Ele já
havia se aproximado de prisioneiros japoneses antes, e conhecia a
mentalidade deles. Hearty não falava japonês, mas a diferença de língua
entre eles não criava nenhuma barreira para a comunicação mental; mas,
naquele caso específico, a comunicação não se dava com palavras, fossem
verbais ou mentais. A mentalidade daquele moribundo tinha algum traço
peculiar que Hearty captava pela primeira vez num ser humano.
Anos antes, quando ele e seu pai, com alguns caçadores locais,
encurralaram uma raposa que vinha atacando as criações de galinhas nas
fazendas de Severn, Hearty matou o predador. Ao carregar a arma, prestes a
puxar o gatilho, seus olhos captaram o ar desafiador do animal, que rosnava
para ele. Agora, naquela clareira no meio da selva, olhando para aquele
prisioneiro, ele teve uma sensação parecida.
Ainda pensando que ele talvez estivesse sendo mal interpretado, Hearty
tirou um pequeno crucifixo de seu bolso de peito e o ergueu para que o
moribundo pudesse vê-lo. O efeito foi instantâneo e catastrófico. Naquele
momento, um dos oficiais de inteligência, que falava japonês fluente, se
unira a Hearty. Ele e o padre ouviram estranhos sons guturais saírem da
boca do homem.
“Meu Deus! Padre, ele está amaldiçoando sua cruz”, disse o oficial. Mas
Hearty já havia “captado” o recado. Sua mente ficara completamente
perturbada; e a mensagem sem palavras era clara: vá embora. Leve tudo o
que você significa para longe de nós. Você serve aquele que nós odiamos.
“Pergunte uma coisa por mim, capitão”, disse Hearty ao oficial.
“Pergunte-lhe por que ele odeia a Cruz”.
Tão logo o oficial colocou a pergunta o prisioneiro começou a se
levantar. Ele lançou sua mão direita sobre os curativos que cobriam as
feridas em seu peito, rasgando-os num movimento convulsivo.
“Himiko! Himiko!”, era tudo o que Hearty conseguia captar de seu grito
antes que aquele homem caísse para trás. O oficial de inteligência não
conseguia entender aquela curiosa palavra, mas achou que poderia se tratar
de algum nome. Em uma questão de poucos segundos, os olhos do
prisioneiro se abriram com aquele olhar cego próprio aos mortos. O sangue
correu de suas feridas por algum tempo, estancando logo em seguida.
Foi só mais tarde que Hearty descobriu o que significava Himiko. Mas,
ali na selva, ele só pôde intuir que o homem que acabara de morrer se
dedicara a alguma força espiritual da qual vinha o ódio pela cruz. De forma
obscura, sem contornos ou definições, Hearty entendeu os elementos
primários da possessão.
Ao final da guerra, em 1946, Hearty se ofereceu como voluntário para
uma vaga de capelão no Japão, ora sob ocupação. Ele foi enviado à cidade
de Kyoto, e se instalou em suas novas dependências em abril daquele
mesmo ano.
Intocada pela guerra e deliberadamente preservada de bombardeios pelos
aliados, Kyoto fora a capital do Japão imperial até 1868. Era a única cidade
do Japão disposta geometricamente, numa forma retangular, com cada rua
correndo de norte a sul ou de leste a oeste. No Japão do período pós-guerra,
Kyoto mergulhou cada vez mais fundo em seu próprio passado tradicional,
atraindo políticos e pensadores radicais. Seus santuários budistas e
xintoístas eram magníficos, e Hearty passou seu tempo livre a visitá-los.
Foi durante uma conversa em 1947 com um professor chamado Obata,
em Ruykoku, a escola budista, que ele aprendeu o que significava Himiko.
Himiko fora, ao que parece, uma rainha xamã de muito antigamente, e ainda
havia uma seita moderna que a louvava como uma deusa-demônio. Eles
acreditavam que ela vivia e reinava desde os picos nevados nos arredores de
Kyoto.
Hearty e Obata se tornaram bons amigos. Obata se formara na Sorbonne
em 1938. O campo escolhido por ele fora o misticismo; sua tese consistia
de um estudo comparativo entre o conhecimento dervixe e a iluminação
budista. Com os fatos que ele pesquisara sobre a dança e os ritmos dos
dervixes, e seus próprios conhecimentos nativos relativos ao budismo,
Obata pode transmitir princípios bem sistematizados a Hearty, de um tipo
de conhecimento humano que não se baseava apenas em fatos científicos
controlados e verificados.
O alicerce científico de Hearty começou a ruir diante de uma nova
perspectiva. Ele começou a perceber o sentido do misticismo em sua
própria religião. E muito cedo, também, ele sentiu que suas próprias
habilidades psíquicas, independentemente de quais fossem elas, deveriam
ser tomadas com cuidado, e entendidas como algo distinto do plano
espiritual e sobrenatural. Pois essa era a lição central dos credos e práticas
budistas e dervixes.
(Eis aqui a distinção que Carl V. nunca chegou realmente a entender – ela
lhe escapou quase que desde o início de sua carreira parapsicológica. Se
existe um fator na composição mental de Carl que contribuiu
preponderantemente para sua possessão foi esse. Sem perceber essa
distinção vital, Carl, inevitavelmente, tomou o espírito, ou a alma, e
atividade psíquica como uma só coisa. Qualquer mudança produzida na
psique era tomada por ele como uma mudança no espírito; e qualquer ilusão
imposta à psique era tomada como uma verdade última da alma).
Com a ajuda de Obata, Hearty explorou as idéias básicas da telepatia e
telecinésia bem como da bilocação; tudo isso era prática corrente já cerca
de cem anos antes de as palavras “parapsicologia” e “percepção
extrassensorial” serem sopradas num campus ocidental.
Obata usava expressões simples e alguns termos correntes para instruir
Hearty. A psique de Hearty, dizia ele, era uma “tela” na qual um poderoso
mensageiro psíquico podia disparar imagens. Hearty tinha, contudo, uma
“mordaça censora”, uma faculdade com a qual ele podia tornar sua psique
opaca ao teste psíquico de qualquer “leitor de mentes”.
Obata via Hearty como um “receptor”. E, concluindo uma de suas
discussões sobre o assunto, ele acrescentou, “seja grato por isso”. Ele só
grunhia umas frases bem-humoradas, à moda japonesa, quando Hearty
perguntava por que ele deveria ser grato pelo fato de não poder também
“enviar” mensagens ou mover objetos por telecinésia.
Hearty só teve uma pista, mas de dramaticidade suficiente, quanto a por
que seria melhor assim. Certa vez, voltando para casa depois de uma
caminhada matinal, os dois passavam próximos ao Geon, o famoso distrito
das gueixas de Kyoto. Obata indicou isso para Hearty, e eles pararam ali por
um instante. E, de repente, Obata caiu de cara no chão e rolou para o lado.
Ele se ergueu num segundo, os olhos tomados de apreensão.
“Hearty-San, eles não gostam que eu esteja com você aqui. Corra!”. Sua
testa sangrava com um corte.
Hearty estava demasiado abalado por aquela bizarra experiência para
dizer o que quer que fosse. Mas quando Obata o deixou à porta de casa, ele
disse-lhe, uma vez mais com bom humor mas com um discreto tom de
ameaça: “Você vê meu amigo, é melhor que você seja apenas um receptor.
Mas cuidado. Eles já o descobriram. E eles saberão disso para sempre,
daqui em diante”.
Foi só ao refletir sobre esse incidente que Hearty começou a entender por
que era melhor não estar apto a “enviar” mensagens ou mover objetos a
distância. Dispor dessas habilidades, aparentemente, abria o sujeito, de
algum modo misterioso, ao ataque dos outros – seres humanos ou espíritos
– que gozassem de poderes similares. Estar no mesmo plano que eles era,
de algum modo, estar vulnerável a eles.
Quando o serviço de Hearty como capelão chegou ao seu fim em 1949, o
incidente do Himiko na selva, assim como a queda de Obata no Geon
passaram para o fundo de sua memória. Ele já se inscrevera e recebera a
permissão para uma transferência aos Estados Unidos. Um bispo da costa
leste estava mais do que aberto para receber Hearty em sua diocese.
Hearty já trabalhava e vivia em Newark, Nova Jersey, há dois anos
quando o bispo o chamou e pediu-lhe para assistir o exorcista diocesano em
um caso. Não haveria nada de mais, o bispo lhe garantiu. Hearty tinha
nervos de aço, e o bispo sentia que, de todo modo, 90% de todas essas
coisas “eram simplesmente problemas nervosos, má-fé ou ambos”.
O exorcismo mostrou não ser algo nem da ordem dos nervos e nem da
má-fé. Até onde Hearty podia ver, o exorcizado – nesse caso, um homem de
meia idade – estava afligido por um distúrbio peculiar, e uma angústia que
cessou assim que o rito de exorcismo foi concluído. Ele se reportou ao
bispo, pedindo para ser chamado no caso de futuros exorcismos. O bispo
protestou: ninguém, absolutamente ninguém, quer se envolver com esse
tipo de coisa. “Bem, eu quero. E eu não sei por quê. Mas eu quero”, fora a
resposta de Hearty.
Nos seis anos seguintes, Hearty foi assistente de mais de 17 exorcismos.
Quando o exorcista diocesano morreu inesperadamente, após um
exorcismo longo e exaustivo, Hearty era, claramente, o homem mais forte e
mais experiente para substituir-lhe. Quando o bispo o procurou, ele não
hesitou nem por um instante.
Naquele mesmo ano ele tirou suas únicas férias: duas semanas em sua
terra natal. Passeou uma vez mais pelos campos que tanto amava, visitou os
chalés de gente simples, comeu enormes pratos de bacon, batatas, coalhada,
queijo e bolos de farinha de aveia. Ele passou noites lembrando dos bons
tempos com antigos amigos, ao redor de fogueiras e saboreando o fogo do
cwrw, o licor nacional galês.
Durante os seis anos seguintes depois desse seu retorno a Gales, Hearty
serviu como padre assistente com diversas atribuições na diocese.
Continuou sendo exorcista diocesano. Em 1963 o bispo lhe ofereceu uma
paróquia própria. Hearty aproveitou essa importante ocasião para sentar-se
com o bispo e conversar longamente com ele. Com seis anos de exorcismo
em suas costas, somados a sua experiência do dia a dia com os problemas
normais de uma paróquia, Hearty começara a notar uma mudança sutil, mas
já penetrante.
Havia, disse ele para o bispo, uma nova situação que se desenvolvia
rapidamente, e que a Igreja ainda não reconhecera. Ela dizia respeito a uma
nova direção tomada pela psicologia e pela psiquiatria; mas parecia, para
Hearty, que ela também envolvia a devoção e a piedade populares. Por
diversas vezes, ao submeter os candidatos a exorcismo a testes psicológicos
e psiquiátricos ele via os especialistas falarem sobre parapsicologia. Eles
pareciam esperar ansiosamente por algum dia no futuro em que todos os
fenômenos religiosos poderiam ser facilmente tomados como produtos da
psique humana, tendo essa psique de um certo modo passado a estados
alterados de consciência outrora ignorados. Aquilo o incomodava um
bocado, disse ele ao bispo, porque aquele novo tipo de estudo, a
parapsicologia, tendia a se sobrepor à religião como um todo, e esvaziá-la
de seu significado.
Havia um período sabático à espera de Hearty. Se tudo desse certo com
seu bispo, ele poderia tirar dois anos de repouso e fazer algumas pesquisas
privadas sobre o assunto. Ele iria, é claro, manter sua atividade como
exorcista da diocese; por nada ele voltaria para casa, com um assunto
daquela magnitude a ser estudado. O bispo deu-lhe seu consentimento e
prometeu a Hearty o apoio financeiro necessário. Só mais tarde foi que
Hearty lhe contou de sua intenção em seguir cursos numa universidade.
Hearty então foi estudar no campus em que Carl V. já gozava de renome.
Naquele ponto de sua vida, no momento em que Hearty começou a assistir
às aulas de Carl, o padre já desenvolvera um instinto muito poderoso nos
assuntos referentes ao diabolismo. Ele percebeu quase que imediatamente
que Carl V. estava em apuros. Em que nível de profundidade, isso ele não
podia saber de início. Mas depois de três semestres e várias conversas com
Carl e seu grupo, Hearty estava convencido de que Carl estava em via de ter
sérios problemas e que, possivelmente, já estava nos primeiros estágios da
possessão diabólica.
Nos últimos meses de sua estada na universidade, Hearty esteve algo
perplexo com o efeito de Carl sobre ele mesmo. De um lado, Carl não se
esforçava para esconder dele e dos outros que ele via a profissão sacerdotal
de Hearty como um obstáculo ao seu pleno potencial enquanto
parapsicólogo. Por outro lado, por diversas vezes seguidas, Hearty
“recebeu” “mensagens” sutis de Carl, mensagens que eram pedidos de
ajuda.
O processo de receber “mensagens” sempre seguia um padrão. As
“mensagens” vinham sempre como fragmentos de conhecimento que
subitamente surgiam na consciência de Hearty, sempre precedidos por um
curto período de vazio no qual, assim parecia a Hearty, sua mente parava de
pensar mas permanecia consciente. Imediatamente após, ele descobria algo
sem saber o quê. E então ele tinha uma súbita realização do que foi que ele
descobrira; surgiam-lhe imagens, e em seguida ele anexava palavras às
imagens.
Hearty finalmente se deu conta de que, se parte de Carl já estava sob o
domínio de um espírito maligno, não obstante uma outra parcela ainda
estava livre da possessão. Era essa parte profunda do ser de Carl que
suplicava ajuda. Num momento algo desconcertante, Hearty percebeu que
Carl devia saber que ele, Hearty, sabia da possessão.
Isso aconteceu pouco antes de Hearty se acostumar com a idéia de uma
tal fissão numa personalidade humana com a qual ele estava em contato
diversas vezes ao longo da semana. Mas Hearty já aprendera o suficiente,
ao longo dos anos, para perceber que os espíritos malignos nem sempre
sabem tudo – eles podem nem mesmo conhecer em profundidade o quanto
eles já possuem da alma de uma pessoa. Mais de uma vez Hearty fundou
suas esperanças nesse fato mesmo.
As últimas três “mensagens” que Carl lhe enviou foram transmitidas com
certo intervalo, tanto de tempo quanto de espaço. Uma delas lhe chegou no
dia de seu adeus a Carl, ao final de seus estudos. Ao olhar para trás, vendo o
prédio em que ele acabara de se despedir de Carl, a mensagem tocou a
psique de Hearty com toda a força: “Me ajude! Venha quando eu estiver
prestes a ser tomado por completo”. Hearty passou na capela do colégio e
recitou algumas preces. Ele tinha de crer e confiar que chegaria a tempo
para aquele momento em que Carl estaria prestes a ser “tomado por
completo”.
A mensagem seguinte lhe chegou numa manhã, em Newark, em 1972:
Carl estava prestes a dar seu último passo; ele precisava agora ser puxado
de volta, mas estava desamparado. Deixado à sua própria sorte, ele teve de
seguir em frente e executar o ato final de sua submissão ao espírito que o
possuíra. Hearty veio o mais rápido que pôde ao campus da universidade,
mas não conseguiu alcançar Carl, nem no campus e nem no aeroporto.
A última mensagem lhe veio ao final de julho daquele mesmo ano. Ele
sabia que Carl estava de volta a Filadélfia e que precisava dele. Uma vez
mais Hearty partiu sem mais tardar para alcançar Carl. Hearty não perdeu
tempo e começou a fazer os exames e estudos necessários para avançar no
esperado exorcismo.
Sua primeira empreitada era se informar sobre a vida de Carl e testar a
validade de seus supostos poderes psíquicos. Ele falou com todos aqueles
que conheceram Carl intimamente. Ele rastreou tanto Olde quanto Wanola
P., procurando-os em diferentes partes do país. Ambos vieram ter com
Hearty; e Olde, em particular, foi enormemente prestativo. A mãe de Carl,
agora divorciada de seu pai e em um segundo casamento, vivia em Malta.
Mas seu pai e dois irmãos deram a Hearty toda a ajuda que puderam.
O melhor parapsicólogo que Carl conhecia, um alemão nascido na Suíça,
estava em Nova Iorque para uma série de conferências. Carl e Hearty
passaram três semanas por lá; e o parapsicólogo complementou o exame do
caso de Carl, em meio a seus compromissos de conferencista. Seu veredito
quanto a Carl: positivo. Ou seja, o homem possuía poderes extra-sensoriais
extraordinários, mas estava sofrendo de algum tipo de trauma profundo para
além do alcance da parapsicologia. Nem a hipnose e nem o tratamento
farmacológico lhe eram úteis.
Hearty e Carl retornaram a Filadélfia, mas Hearty ainda não estava
satisfeito. Ele não confiava em parapsicólogos.
Ainda mantendo base em sua própria diocese em Newark, ele ia para
Nove Iorque diversas vezes com Carl. Após um exame físico aprofundado,
Carl passou pelas mãos de dois psiquiatras que o submeteram a uma bateria
de testes. Em substância, o veredito deles era igual ao do parapsicólogo:
Carl V. era normal e são para qualquer padrão aceitável da profissão deles.
Ele sofrera, disseram eles, por um bom tempo de tensões nervosas ao longo
do verão anterior. Mas eles não conseguiam descobrir nenhuma
anormalidade.
Um deles urgia em voltar a Aquiléia e finalizar o rito iniciado. Hearty
vetou essa sugestão.
O outro sugeriu mansamente que Carl “pegasse leve com esse lance de
religião” por alguns anos, para se dar uma chance de recuperar o solo
perdido e ganhar auto-confiança. Quando Hearty estava saindo de seu
consultório, esse segundo psiquiatra foi ainda mais ousado. Achava que
muitas pessoas ficavam loucas por conta da religião. Toda aquela culpa...
“Leve-o para sair e visitar alguma estância de águas, padre. Isso resolverá a
coisa”.
“Deus abençoe águas tão salutares, doutor”, disse Hearty, ajeitando seu
chapéu ao sair.
No progredir de suas investigações ao longo das semanas e meses,
Hearty estava cada vez mais certo. Carl tinha de ser exorcizado. Durante
esse tempo todo, até o momento do exorcismo, Carl esteve completamente
dócil. Pedia que Hearty se apressasse. “Eu não tenho muito tempo, Hearty”,
costumava dizer, lamentoso.
Mas o padre sentia que precisava ser forte. Ele nunca estivera envolvido
num exorcismo de uma pessoa tão psiquicamente dotada quanto Carl, e
desconhecia como esse elemento incomum poderia ser usado, mesmo
contra a vontade de Carl, como uma poderosa arma contra ambos. Ele
insistiu em cobrir cada centímetro do terreno percorrido por Carl na
parapsicologia, desde seus tempos de estudante. Somente dessa forma
Hearty estaria minimamente bem equipado para prosseguir e lidar com
quaisquer reviravoltas pelas quais Carl pudesse passar durante o exorcismo.
Além disso, Hearty tinha uma séria dúvida. Pela primeira vez ele antevia
a possibilidade de que, no exorcismo, o exorcizado pudesse morrer ou
perder sua sanidade mental.
Hearty tinha quase certeza quanto a algumas coisas: que aquilo que Carl
afirmava ser a percepção da aura da não-coisa, assim como seus supostos
transes em viagem astral e seu conhecimento quanto a antigas encarnações
eram ilusões induzidas pelo espírito maligno. E ele supunha que a única
prova concreta para saber se o espírito fora mesmo expelido seria o cessar
desses efeitos em Carl.
Hearty sentia que, se ele estivesse correto em suas análises básicas, então
o perigo derradeiro, e possivelmente o maior, para Carl, estaria na sua
reação à súbita revelação de como ele fora enganado seguidas vezes, e
consentira com cada uma dessas ilusões. Seu mundo cairia. Ele conseguiria
suportar esse impacto? Uma decepção tão profunda quanto aquela poderia,
como Hearty descobrira por meio de seus estudos e experiência, deixar um
ser humano não só catatônico, mas, em casos extremos, propenso ao
suicídio.
Até o último instante, a despeito de que todo teste que ele pudesse aplicar
mostrasse que Carl era forte e resistente, Hearty não conseguia se livrar
dessa idéia de um extremo perigo para Carl. Enfim ele deu a Carl a opção
de se retirar ou seguir em frente. Ele o avisou quanto ao que lhe pareciam
ser os riscos caso ele optasse por seguir em frente.
Carl insistiu em proceder com o exorcismo. “Se eu permanecer vivo
como estou, irei morrer de uma real morte da alma. Se eu morrer durante o
exorcismo, posso ser salvo. Se eu ficar louco, talvez Deus leve isso em
conta ao me julgar”.
A escolha do local do exorcismo foi fácil. Carl queria que ela ocorresse
em sua casa de infância, nos arredores de Chestnut Hill, entre as colinas do
planalto Piedmont, e no local em que ele tivera sua primeira visão quando
jovem – a biblioteca de seu pai.
Hearty, procedendo de maneira contrária a diversos exorcistas que ele
conhecia, não removera nada do local, exceto os objetos quebráveis como
luminárias de mesa, vasos, cinzeiros, mesas de luz, copos, estatuetas e
quadros. O carpete fora retirado. Os livros e as prateleiras ficaram onde
estavam.
Ele tinha um motivo para tanto, que fazia parte de seu complexo de
suposições. Ele desconfiava – com razão, como se viu mais tarde – que toda
dificuldade em desmascarar o espírito maligno em Carl viria do fato de sua
possessão ser muito sutil e diretamente relacionada as suas forças psíquicas.
Carl de fato possuía um poder telecinético. Era possível, teoricamente,
que essa força fosse usada para dificultar ou mesmo impedir o exorcismo.
Mas Carl, valendo-se daquela parte ainda intacta em si, com a qual ele
havia sinalizado que precisava da ajuda de Heart, afirmou que ele poderia
conter o uso daquele poder telecinético. Hearty sentiu-se seguro, portanto,
de que se houvesse quaisquer perturbações telecinéticas durante o rito, elas
se dariam como sinais do descontentamento do espírito maligno. E nesse
caso, o padre poderia seguir por essa pista, buscando uma ulterior vitória e
finalmente a expulsão do espírito.
Hearty foi habilmente ajudado no exorcismo por quatro homens que ele
treinara ao longo dos anos como assistentes. Eles nunca deixaram de vir em
seu auxílio quando era preciso realizar um exorcismo. Um deles era
médico; dois eram homens de negócios; o quarto era capataz de uma
fábrica.
O exorcismo de Carl V. durou cinco dias. Foi bastante atípico, já que
amplamente determinado – e Hearty já estava certo de que esse seria o caso
– pelos dons psíquicos que Carl possuía. Hearty teve de lidar com Carl não
só enquanto possesso, mas enquanto médium no sentido psíquico. De fato,
houve breves momentos de silêncio ao longo do exorcismo, no qual
somente os olhares de Hearty e Carl indicavam aos assistentes o que estava
ocorrendo. Nesses momentos, a rápida alternância entre desafio, ameaça,
comandos e insultos entre Hearty e o espírito maligno que possuía Carl se
dava no plano telepático. As anotações de Hearty nos servem muito bem
para preencher essas lacunas verbais.
Um problema perigoso somado a essa situação era que Hearty nem
sempre conseguia determinar se era Carl ou o espírito possessor quem
estava produzindo os efeitos psíquicos. Nesse caso, mais do que em todos
os outros da carreira de Hearty, todo cuidado devia ser tomado. Não havia
atalho. Enquanto exorcista, Hearty tinha de alcançar o cerne da possessão e
assegurar-se de que o mal fora expelido em sua essência.
Hearty também sabia dos perigos que ele mesmo corria num tal
exorcismo. Ele estava trabalhando num plano psíquico muito escorregadio,
no qual pensamento, memória e imaginação se viam peculiarmente nus e
vulneráveis. Seu amigo em Kyoto lhe mostrara isso, muitos anos antes. Ele
tivera a oportunidade de compreender aquilo na prática novamente desde
então.
Curiosamente, a única grande vantagem de que Hearty gozava no
começo do exorcismo era, precisamente, o poder de Carl enquanto médium.
Como Carl estava disposto a ajudar, Hearty teve pouca dificuldade em
investigar quem era o espírito maligno e impeli-lo a se identificar. Portanto,
o confronto direto com a Tartaruga (como o espírito se chamava a si
mesmo) foi alcançado rapidamente. Mas, na mesma medida, a etapa de
Choque entre Hearty e a Tartaruga foi imensamente dolorosa.
A cooperação de Carl com Hearty foi interrompida abruptamente quando
o confronto entre Hearty e a Tartaruga se instaurou. Carl ficou desesperado
e não o ajudava mais. Em sua batalha solitária, Hearty foi ferido
sensivelmente em sua mente e em sua vontade; um ataque para muito além
das palavras e irreparável.
Ao escolher os excertos da transcrição do exorcismo, portanto, foram
escolhidas passagens referentes à identificação do espírito maligno, o
desmascaramento das fraudes em que Carl havia acreditado, e o efeito desse
desmascaramento em Heart e no próprio Carl. A transcrição contém muitos
detalhes mais (omitidos aqui nesta obra) sobre a suposta reencarnação de
Carl, e sobre os próprios poderes psíquicos de Carl desde sua adolescência.

Tartaruga
“Você está se sentindo bem, Carl?”, a voz de Hearty no início do
exorcismo está carregada de sentimento. Mas Carl está perfeitamente
calmo.
“Sim, padre. Não se preocupe mais. Vamos prosseguir”.
Carl está deitado no sofá da biblioteca de seu pai. Os quatro assistentes
de Hearty estão ajoelhados em volta do sofá. Hearty, acompanhado pelo
padre assistente ao seu lado, está ao pé do sofá. São 4h30 da manhã; é o
início do primeiro dia de exorcismo.
Hearty pronuncia as palavras de abertura do rito. Seu canto pára depois
das três primeiras sentenças.
Ele olha para Carl. Ele está imóvel. Algo preocupa Hearty.
“Carl! Carl! Responda-me! Não se vá, Carl! Responda-me!”.
Carl se agita e fala com dificuldade. “É difícil, padre. É difícil”.
“Carl, o que está acontecendo?”.
“Portal b-b-ba-baixo...”. Carl se cala.
“Carl, antes que você passe ao portal alto, diga-me. Antes de você passar,
só me diga isso. Você me ouve? Carl! Você me ouve?”.
“Si-i-i-i-i-i-im, pa-a-a...”; a voz de Carl desaparece.
Hearty continua por mais um minuto ou dois com seu cântico
monocórdico das preces de exorcismo, e logo em seguida pára de cantar. A
boca de Carl está a abrir e fechar. Seus punhos estão cerrados.
“Alto-o-o-o-oo...”. Hearty mal pode ouvir sua voz.
Ele faz um sinal para que os assistentes segurem as pernas e braços de
Carl. Hearty diz:
“Espírito do Mal, você foi condenado em nome de Jesus: não obstrua a
mente de Carl. Não escravize sua vontade. Não deve haver mais enganação.
Em nome de Jesus, pare”.
Hearty olha para Carl: seu rosto se descontrai; seus punhos se abrem.
Após alguns instantes, Carl fala lentamente sem, abrir seus olhos.
“Eu não agüento, contra eles... ele... eles, padre. Eu não consigo agüentar
muito tempo. O hábito já está muito...”. Sua voz é interrompida.
“Em nome de Jesus...”, Hearty investe uma vez mais. A tensão nos rostos
e braços de seus assistentes era um sinal alarmante para ele. O corpo de
Carl está fazendo força para se erguer.
“Fale, Espírito Maligno! Fale e se apresente!”, ordena Hearty.
Ele lança um pouco de água benta e ergue o crucifixo. Carl se debate por
cerca de um minuto. Silêncio no cômodo, exceto pelas pesadas respirações
em meio ao combate.
Finalmente, todos os sinais de vida somem do rosto de Carl. Seu corpo
cessa todo movimento. Seus lábios se abrem. Hearty ouve a voz de Carl,
mas suave, sedosa, num tom insinuante, sem qualquer acentuação; ele fala
por meio de curtas sentenças entrecortadas. É como um disco tocado em
velocidade reduzida. Carl tornou-se, claramente, um simples meio para o
espírito maligno.
“Eu sou o espírito. De Carl. Nós estamos subindo. Ao portal alto. E para
além dele. Eu sou o espírito. De Carl. Estamos subindo. Ao portal alto. E
para além. Eu sou...”.
Hearty decide interromper. “Você não é o espírito de Carl. Você é o
espírito de Satã, o espírito maligno que o possuiu. Em nome de Jesus, cesse
toda essa mentira. Apresente-se. Quem é você? Qual é o nome que você
utiliza? Por que você está possuindo Carl, essa criatura de Deus? Em nome
de Jesus, fale. Pela autoridade de Jesus e de sua Igreja, eu ordeno. Fale!”.
Todos os presentes notaram, então, uma súbita mudança no corpo de
Carl. Parece que ele encolheu de algum modo, em massa ou tamanho. O
padre assistente o descreveu mais tarde como “se seu corpo tivesse
desabado sobre si mesmo”. Os cabelos de Carl perderam todo brilho,
mesmo seus cachos perderam o volume e pareciam estar chatos. A pele de
seu rosto se esticou. Era possível ver os tendões e veias em seu pescoço
com clareza. Parecia que seu tronco, braços e pernas tinham um enorme
peso apoiado sobre eles, pressionando-os para baixo, mas sem achatá -los.
Não havia som. O silêncio se havia tornado opressivo.
Hearty decidiu falar novamente. “Espírito do Mal, você recebeu uma
ordem. Em nome de Jesus, fale!”.
Seguiu-se o silêncio. Todos estavam atentos ao mais mínimo som – a
respiração dos outros, o roçar de um sapato no piso de madeira, o som de
alguém que engolisse em seco, um suspiro. Mas Hearty segue obstinado.
Era a Tartaruga que oprimia Carl; e o progresso de uma tartaruga é lento,
porém constante. Hearty estava plenamente confiante. Ele esperou.
E então, sem que ninguém pudesse prever, uma pequena perturbação:
todos os livros nas prateleiras que cobriam três paredes do cômodo
começam a tombar desordenadamente pelo chão, as páginas se abrindo, as
capas voando, livro atrás de livro desabando sem qualquer ordem, páginas
se esvoaçando, tomos desabando e produzindo baques surdos e sons de
folhas rasgadas. Era como se dois pares de mãos atacassem cada prateleira
simultaneamente. Aquele som causou um nervosismo súbito num dos
assistentes; um pouco assustado e surpreso, ele deu um grito contido.
Hearty nem sequer movera seus olhos. Eles estão presos ao rosto de Carl.
Sua aposta fora lançada. A única coisa que Hearty fez foi erguer sua mão
pedindo calma; ele sabia exatamente o que estava acontecendo. A Tartaruga
estava “se aproximando”.
Silêncio uma vez mais. Eles aguardam. Carl ainda está afundado em si
mesmo.
Hearty resolve recitar mais algumas preces de exorcismo, mas, antes
mesmo de começá-las, percebe as primeiras pressões internas. Ele passa a
sentir uma dificuldade crescente em guardar seus olhos sobre a face de Carl.
Sua visão vai se esvaindo e sua mente se enche de imagens curiosas.
“Jesus, Senhor Jesus”, diz Hearty silenciosamente em oração. “Me salve.
Ajude-me agora. Eu não posso resistir a isso se você me deixar sozinho. Eu
creio. Senhor Jesus, me ajude”.
Os outros compreendem, pela aparência de Hearty, que algo estava
acontecendo com ele. Seus olhos piscam constantemente. Seus pés vacilam
um pouco. Os nós de seus dedos que empunham o crucifixo empalidecem.
O padre assistente compreende. Hearty o havia instruído bem; e ele,
também, já havia trabalhado com freqüência em exorcismos com Hearty.
Ele fecha sua mão sobre aquela de Hearty que segura o crucifixo. Com a
outra, ele faz o sinal da cruz na testa do exorcista, dizendo com força:
“Senhor Jesus, tende piedade desse seu servidor”. Os quatro assistentes
pegam a deixa e repetem a mesma prece.
Logo a imaginação de Hearty se clarifica. Mas a dor é, agora, sua
adversária. Sua cabeça é atacada por uma enxaqueca lancinante. Cada olhar
que ele dirige a Carl lhe causa uma dor nunca antes sentida. Essa primeira
crise passa, mas como todo ataque sofrido num exorcismo, ela deixa suas
marcas.
Ao voltar a falar, a voz de Hearty passou de um som grave e vibrante a
um tom tenso e asfixiado. Sua cadência galesa se turvara.
“Em nome do Salvador, o Senhor Jesus, você vai se apresentar, Espírito
do Mal!”.
Todos olharam para Carl. Sua cabeça se mexeu. Sua boca se abre e eles
ouvem uma voz que, dessa vez, não se parece em nada com aquela de Carl.
É como um fino falsete produzido por um homem de voz muito grave a
tirar sarro de alguém. Soa falso, mas também bastante intimidador. Uma
voz irritante e amedrontadora.
“Nós não obedeceremos ninguém a não ser o amigo de Carl. Nós iremos
responder ao...”.
“Você irá responder em nome de Jesus”, Hearty rebateu veementemente,
sua voz quebrando por conta de seu esforço.
“Ouça, então, nossa voz, e veja se você, pedaço miserável de lodo com
duas pernas, pode dar ordens ao Senhor do Conhecimento, o
Inconquistado”.
Antes que Hearty viesse com uma resposta, a voz de Carl mudou. Hearty
olhou rapidamente para seus assistentes: “Se segurem, rapazes! Isso vai ser
duro para todos nós”.
Um som toma seus ouvidos por completo. Do pouco que eles podiam
concentrar sua atenção em Carl, parecia-lhes que o som vinha de seus
lábios. Mas a força e a peculiar qualidade daquele som logo os distraiu. Eles
não conseguiam olhar para Carl ou para qualquer outra coisa, tamanha era
absorção de suas atenções. Carl começou a se agitar com força. Os
assistentes mal conseguiam conter seus braços e pernas.
O problema com esse som não estava tanto no quão alto ou penetrante ele
era. Era a qualidade daquele som, isso sim, o problema. Pois, como eles
descobriram ao comparar suas anotações mais tarde, o som era adaptado
aos sentimentos, às experiências e ao caráter de cada um deles. Cada um
deles é tratado com uma reprise de todas as dores passadas tornadas mais
agonizantes agora do que no momento em que foram vividas. Cada um
sente a dor de cada choro desolado, de cada tom de voz solitário, de cada
má noticia recebida no passado. O médico ouve novamente a respiração
moribunda do primeiro paciente que ele perdera – uma jovem mãe em
trabalho de parto que gritava antes de morrer, “Deixem-me ver meu filho!
Deixem-me ver meu filho!”. E, junto com isso, seu próprio grito enquanto
criança; e o grito de um homem que fora abatido e morto diante de seus
olhos um ano antes. Outro ouvia o último choro de seu próprio filho, que
morrera de um tumor cerebral; um outro, a traição por parte de seus
empregados num encontro privado com uma empresa concorrente. E assim
com todos eles. Aquela voz reproduz, para cada um deles, sons de dor,
arrependimento, culpa, desespero, sofrimento, nojo e angústia que
compõem a soma de suas experiências de sofrimento e de fraqueza humana
em suas vidas.
Ao escutar a fita dessa parte do exorcismo, tudo o que se pode ouvir é
uma série inconstante de grunhidos e suspiros.
A experiência de Hearty é diferente. A voz não afeta sua imaginação. Ela
parece, sim, distorcer sua mente. Ele é tomado por um comentário a
atravessar discretamente sua alma: frases inteiras se precipitam em sua
mente – “O Senhor do Conhecimento deve ser adorado... Com o
conhecimento podemos estar seguros... A segurança só vem com uma visão
clara... A visão clara vem de um pensamento claro... Os sentimentos e
crenças são uma caricatura... O Senhor do Conhecimento nos dá a posse da
terra... A terra é um só ser...” – um palavrório que parecia não ter mais fim.
Hearty não se lembra de tudo. Quando aquilo finalmente parecia chegar a
um fim, era tão somente para retomar do início, acelerando cada vez mais,
repetindo-se mais e mais vezes.
Hearty não consegue pensar em nenhuma palavra, verbal ou mental, por
si só. Mas, instintivamente, ele pressiona o crucifixo sobre seus lábios e o
guarda nessa posição. O gesto é, aparentemente, suficiente. Cessa a
opressão em sua mente. Aquela contagem regressiva lógica se encerra. Ele
está livre uma vez mais.
“Em nome de Jesus, o Salvador, ordeno que você se apresente
claramente. Fale, Espírito do Mal!”
Os assistentes de Hearty se recuperam. Eles retomam o controle do corpo
de Carl.
Carl, por sua vez, está imóvel. Mas seu rosto recuperou a cor. Ele parece
estar mais vivo, melhor disposto, como alguém deitado de olhos fechados e
falando calmamente. Não era, contudo, a voz de Carl que se ouvia. Todos
ali presentes ouviam-na, mas as descrições diferem entre si. Todos
concordam quanto a que ela era calma, de um tom quase altivo, nem lenta e
nem rápida, com um leve toque de sarcasmo. Mas um deles ouvia uma
pessoa jovem falando, outro um homem muito velho, outro uma voz
mecânica, e outro ainda ouvia essa voz como um eco muito distante. Na
fita, hoje, o sexo do falante é indiscernível – ele poderia ser homem ou
mulher. Para este autor ele traz memórias do tom de voz usado pelos
anunciantes dos cafés-concerto de 1930: afetado, declaradamente artificial,
sempre com uma nota de ridículo, carregado de sugestivas segundas-
intenções.
“Nós viemos em nome da Tartaruga. Tartaruga. Chame-nos Tartaruga.
Nós temos a eternidade do Senhor do Conhecimento”.
Hearty sentiu-se recompensado: ele havia ganho um ponto. Mas quase
que imediatamente ele se arrependeu dessa ligeira distração.
A voz falou novamente. “Está feliz, é? Você não sabe que nós nos
preparamos contra você, amante do Galo? Amante do pintinhão?”. Hearty
se concentrou novamente, contendo seu impulso de perguntar o que ele quis
dizer com aquilo. O espírito maligno pode ser forçado a um confronto; mas
qualquer abertura que ele, o exorcista, conquiste pode ser invertida num
piscar de olhos a favor do espírito de uma forma irreversível. Hearty insiste
em sua principal pergunta.
“Tartaruga –”.
“Sim, amante do pintinhão –”.
“Você só falará em resposta à questão que lhe é colocada, em nome de
Jesus”. Nada de réplica dessa vez, mas Carl tenta se virar e ficar de frente
para Hearty. Os assistentes o seguram firme. Ele se debate um pouco, e logo
desiste.
“Todos os poderes psíquicos de Carl eram devidos a sua intervenção, ou
ele era assim dotado por natureza?”.
“Os dois”. Com essa resposta, Hearty retomou sua concentração. Uma
força o atacava em sua mente, que agora parecia uma porta trancada sendo
esmurrada insistentemente por mãos fortes.
“Tomemos sua reencarnação, por exemplo, suas supostas reencarnações.
Isso foi obra sua?”.
“Nós, pertencentes à Tartaruga, existindo em sua eternidade, temos todo
o tempo diante de nós como um só momento incessante”.
“Mas Carl falava com pessoas já mortas há muito tempo. Ele conhecia
seus pensamentos e o contexto em que elas viviam”.
“Os vivos estão cercados por seus mortos. Os mortos que nos pertencem
cumprem suas ordens. Todos no reino cumprem ordens”.
“E aqueles que não pertencem a vocês –”.
“O Último”. Essa palavra saiu como um rosnado, mas também, sentiu
Hearty, com uma certa nota de covardia. Esse tom de medo impressionou
Hearty. Uma vez mais ele se distrai, e uma vez mais ele paga o preço por
isso.
“Você também, amante do pintinhão! Padre! Você também vai ficar com
medo quando vir o que o espera”. A porta da mente de Hearty estava se
abrindo. Aquela força o estava atacando. Ele vacilou por um instante, e logo
recuperou sua concentração com um esforço imenso. Ele prosseguiu com
suas questões.
“As viagens astrais de Carl? Foi você que as engendrou?”.
“Sim”.
“Como você o fez cair nessa farsa?”.
“Uma vez que se confunde espírito e psique, nós conseguimos fazer com
que qualquer um ouça, veja, toque, saboreie, saiba, deseje o impossível. Ele
era nosso. Ele é nosso. Ele pertence ao Reino”.
Carl não se mexe; seu corpo inteiro repousa naquela posição esmagada.
O pathos daquele seu estado de refém deixa Hearty nervoso. Ele ora em
silêncio, “Jesus, dê-lhe força”. Ele então tenta continuar seu interrogatório,
mas a voz o interrompe, dessa vez gritando com um desespero
inacreditável.
“Nós não vamos ser expulsos. Nós fizemos nossa casa nele. Ele nos
pertence”. Hearty aguarda que o grito se dissipe. A garganta de Carl está se
movendo.
“Você é o autor da aura do Não-Ser?”.
“Não”.
“Como você utilizou a aura do Não-Ser no caso de Carl?”.
“A aura está aí para qualquer um que consiga percebê-la. Só os humanos
aprenderam a não vê-la. Se eles a vissem continuamente, eles morreriam”.
“Como você a utilizava?”.
“Nós não a utilizávamos”.
Hearty agora lança questões concisas, muitas das quais carecem apenas
de um sim ou não como resposta. Seu objetivo é expor o espírito maligno,
fazer com que ele revele suas próprias trapaças.
“Carl conseguia vê-la?”.
“Sim”.
“Você a tornou clara para ele?”.
“Sim”.
“Por quê?”.
“Ele quis assim!”.
“Foi ele quem pediu?”.
“Nós oferecemos”.
“Ele sabia quem você era?”.
“Ele sabia”.
“Com clareza?”.
“Claro o suficiente”.
“Ele tinha o poder de bilocação?”.
“Não”.
“O que acontecia, então?”.
“Nós lhe dávamos o conhecimento de locais distantes como se ele
estivesse lá”
“Ele tinha um duplo? Um duplo psíquico?”.
“Nós lhe demos um”.
“Como?”.
“Nós lhe demos o conhecimento que um duplo teria”.
“Quando você começou a agir com Carl?”.
“Na sua juventude”.
“Foi você quem forjou sua visão de juventude?”.
“Não”.
“Você interferiu nela?”
“Sim”.
“Por quê?”.
“Ele queria que nós o fizéssemos”.
“Como você sabe?”.
“Nós sabemos”.
“Mas por qual sinal?”.
“Nós sabemos”.
“O que ele fez que o levou a saber?”.
“Nós sabemos”.
“Em nome de Jesus, eu ordeno: diga-me como você sabia”.
Houve uma longa pausa de cerca de dois minutos. Hearty espera
pacientemente, olhando o para Carl o tempo todo, guardando sua mente
concentrada nessa questão.
E vem então a emboscada.
“Não há palavra para isso”.
“Há um pensamento para isso?”.
“Sim”. Hearty, absorto em seu interrogatório, não consegue ver a
armadilha que se preparava diante dele. Ele pergunta simplesmente:
“Que pensamento é esse?”.
E imediatamente ele e seus assistentes percebem a mudança em Carl. O
olhar abatido e sem vida se desfaz imediatamente. Seu corpo relaxa entre as
mãos dos assistentes. Ele respira fundo e se estica como um homem
acordando prazerosamente de um sono profundo. Seus olhos começam a se
abrir. Ele move sua cabeça calmamente de um lado para o outro. Suas
bochechas recuperam sua cor, seus lábios mostram um sorriso, e seus olhos
transmitem um bizarro bom humor.
Todos ficam surpresos com o inesperado dessa cena. Os assistentes que o
seguravam com muita determinação e medo, até ali, se sentem
envergonhados. Carl não está nem sequer ofendido. Ele parece estar se
divertindo.
“Ei, rapazes, posso me sentar? Está tudo bem. Está tudo bem”.
A voz é a de Carl. Seu comportamento é normal.
Hearty é o único que percebe o que aconteceu. Mas era tarde demais! Ele
foi pego. Está recebendo o “pensamento”. Antes que pudesse sentir toda a
força daquela invasão em sua mente, ele vê os quatro assistentes, de pé,
olhando-o à espera de alguma explicação ou instrução. Carl sentou-se no
sofá, com uma perna para o lado, descontraidamente. Ele também está
olhando para Hearty. Todos os cinco trazem a mesma expressão estupefata:
eles parecem surpresos com o comportamento de Hearty.
O padre assistente também se voltou para observar Hearty. Ele, também,
tinha um olhar questionador. O olhar é um apelo a Hearty, mas o exorcista
está totalmente indefesso nesse momento.
Seu principal sentimento é de terror: terror com aquilo que ele vê
acontecer, terror com o próprio aprisionamento de sua mente. O
“pensamento” está agora claro pare ele, de um modo que ele jamais
sonhara: ele o vê concretamente, em seus quatro assistentes e em Carl.
Todos estão completamente calmos, a única emoção que eles sentem é pelo
fato de Hearty não estar completamente clamo. Ele quer gritar-lhes:
“Cuidado! Cuidado! Eles mexeram com o desejo de vocês para que vocês
se comportem normalmente. São eles que estão fazendo tudo isso parecer
normal para vocês”. Mas ele não consegue abrir sua boca nem produzir
nenhum som.
Crescendo seu desamparo, ele vê com ainda maior clareza o que está
acontecendo. Ninguém quer crer no mal, realmente, acima de tudo, nem
num ser maligno, num espírito maligno. Todos querem abolir essa idéia.
Admitir a existência do mal implica uma responsabilidade, e ninguém quer
assumi-la. É a partir dessa abertura que a Tartaruga entra sorrateiramente,
apaziguando todas as suspeitas, fazendo com que tudo pareça normal e
natural. É esse o “pensamento”, a ignorância por parte do ser humano
comum, que nos inclina a não crer no mal. E, se você não acredita na
existência do mal, como poderá vir a crer ou mesmo entender o que seja o
bem?
Dentro de sua mente, essa compreensão começa a se inflar como uma
bexiga, e conforme ela incha cresce também o sentimento de fragilidade
trazido pela compreensão dessa nova realidade.
Agora todos ao seu redor o olham sorrindo, inclusive Carl. Tudo o que
vêem é o rosto de Hearty, longo, ossudo, os lábios entreabertos com uma
expressão que julgam ser uma careta de constrangimento. E quanto mais
esforço ele faz, mais feia parece sua careta.
A tortura pela qual passa Hearty chega a seu auge, e seu poder de
suportá-la chega ao fim, quando o padre assistente percebe uma coisa:
Hearty está apertando o crucifixo contra a lateral de sua cabeça. O jovem
padre se dá conta de que algo deve estar errado. Algo deve estar errado. Do
contrário, Hearty não estaria numa pose curiosa usando o crucifixo. Hearty
nunca faria isso, nem durante um exorcismo nem em qualquer outra
situação. O que poderia estar errado?
Voltando-se aos outros, o padre assistente diz: “Há algo de errado com
Hearty. Vejam!”.
É Carl quem responde, mesmo com um aparente bom humor. “Olhe para
você padre... Ele está tentando se crucificar a si mesmo. Um Cristo calvo e
de óculos”. E ele explode em risos.
O efeito dessa fala é bombástico. Todos param subitamente. Algo de
muito estranho acabara de acontecer. Cinco cabeças se viram e cinco pares
de olhos observam Carl, incrédulos.
O padre assistente assume: “Em nome de Igreja e de Jesus que a
fundou...”.
Mas ele é interrompido. Carl começa a protestar, aparentemente ainda
com um bom humor. “Padre, olhe!”.
“Segurem-no firme!”, ordena o padre aos quatro assistentes. E então,
para Carl: “Em nome de Jesus, eu ordeno que você se renda!”.
Essa curta pausa era tudo de que Hearty precisava. A pressão se abranda;
o “pensamento” que ocupava sua mente se esvai. Ele está livre uma vez
mais. Quase perdera, mas pôde aprender duas coisas com isso. Passou a
conhecer o estratagema da “normalidade” que esse espírito usara para
operar em Carl para que fosse aceito, passo a passo, anos a fio. Passou a
conhecer o “pensamento”. E, segundo, entendeu com certeza, então, que os
poderes psíquicos de Carl, e os seus próprios, seriam usados contra ele ao
menor vacilo. Todo aquele cauteloso preparo, anterior ao exorcismo, poderá
ao menos ajudá-lo em sua defesa.
Carl está deitado agora, perfeitamente acordado, sob o controle dos
assistentes uma vez mais, os olhos estreitos como fendas, sua face branca
de ódio.
Hearty, ao olhar para Carl, se lembra: em algum momento ele tocara um
ponto nevrálgico. De alguma forma ele quase chegara a encontrar a
fraqueza central do espírito que se chama a si mesmo de Tartaruga. Ele tem
de prosseguir nessa linha. Sua próxima questão é peremptória:
“Aonde você queria conduzir Carl?”.
“Ao conhecimento do universo”. Essas palavras saíram por entre os
dentes cerrados de Carl.
“Que conhecimento?”,
Nenhuma resposta de início. E então, lentamente, as palavras vieram num
murmúrio. “O conhecimento do fato que os humanos são apenas uma parte
do universo”.
“O que você quer dizer com uma mera ‘parte’?”.
“Que eles são partes de um ser físico maior”.
“Qual ser?”.
“O universo”.
“O universo da matéria?”.
“Sim”.
“E das forças psíquicas?”.
“Sim”.
“E que foi isso que criou os humanos?”.
“Sim”.
“Uma pessoa criadora?”.
“Não”.
“Um criador físico?”.
“Sim, também”.
“Um criador psicofísico?”.
“Sim. De fato, é isso”.
“Por que você conduziu Carl por esse caminho?”.
“Porque assim ele conduziria outros”.
“Por que conduzir outros por essa via?”.
“Porque eles pertencem ao Reino”.
“Por que pertencem ao Reino?”.
Os que olhavam para Carl começaram a sentir que ele estava prestes a
explodir. As palavras saíam de sua boca com uma grande aspereza. Ele
respirava fundo quase que a cada palavra emitida, de modo que cada uma
delas saía numa explosão de ar. Seus braços, pernas e tronco se contorciam
cada vez mais. Os assistentes o agarram, mas não conseguem contê-lo.
Agora, com aquela última questão, todos anteviam a explosão por vir. Ela
começou a se construir com a resposta de Carl à última questão de Hearty.
“Por quê, Padre? Por quê? Você fica aí com a sua cabeça calva, seus
testículos murchos, suas roupas fedorentas, seus dentes amarelados, suas
entranhas fétidas, e você me pergunta por quê? Por quê? Por quê? Por
quê?”. A palavra vinha em ondas de gritos cada vez mais fortes.
“POR QUÊ?”, gritou enfim com toda sua voz, erguendo sua cabeça para
encarar Hearty. “Por quê? Porque nós odiamos o Último. Nós odiamos.
Odiamos. Odiamos. Nós odiamos aqueles manchados com seu sangue. Nós
odiamos e desprezamos aqueles que o seguem. Nós queremos nos distinguir
dele em tudo, e queremos todos no Reino, onde ele não pode alcançá-los,
aonde eles não podem ir com ele. E nós o queremos, você, lá, Padre!
Porque nós já temos Carl. Ele é nosso. E nenhuma força poderá desfazer
isso. Nenhuma força. Nenhuma força!”.
Carl cai para trás, os olhos esbugalhados, o suor correndo por seu rosto e
seu corpo.
Hearty permaneceu imóvel esse tempo todo. Ele precisa, agora, manejar
o espírito rumo à fase do Choque direto.
Hearty agora utiliza o seu trunfo; ele se dirige a Carl.
“Carl, em nome daquele que o salvou e que o salvará, eu ordeno, ouça-
me”.
O corpo de Carl começa a esfriar. Os assistentes informam Hearty. Ele
faz um gesto de consentimento com a cabeça e prossegue.
“Carl! Nós sabemos que você está aprisionado. Sabemos disso. Mas uma
parte de você é livre e nunca foi tocada. Fale conosco. Comuniquese
conosco”.
Hearty está apostando naquele mesmo poder telepático em Carl que lhe
pedira ajuda, contando com sua capacidade de alcançar um novo ponto na
cooperação com o bem, um sinal de sua mais profundo de sua vontade de
repelir o mal.
“Carl, eu nunca lhe contei durante todos os meus anos de estudante. Eu
nunca lhe disse. Eu sou um receptor. Eu posso receber. Eu posso me
comunicar com você, agora. Por favor. Nós precisamos da sua cooperação.
Um só esforço claro da sua parte e tudo estará encerrado. Por favor, Carl!
Por favor!”.
O corpo de Carl está, agora, bastante calmo, sua cabeça caída para trás,
apoiada no sofá, seus braços e pernas flácidos, seu corpo encharcado de
suor. Hearty olha para ele, aguardando, esvaziando sua própria mente,
esperançoso.
A mensagem então começa a chegar. Ela se esboça na “tela” de Hearty,
de início em ondas indefinidas, e logo em contornos mais claros. É uma
experiência de emoções e idéias emotivas que ambos estão a comungar. Ela
invade a psique de Hearty, ocupando todos os recônditos de sua
consciência. Ela não se parece com nenhuma mensagem que ele pudesse
imaginar. Ele está sendo submetido aos sentimentos e às desolações de
idéias que povoam uma mente exilada numa terra sinistra, sem calor, sem
amor, sem união, sem lar, sem sorriso, só o movimento automático de seres
controlados. Animais congelados por uma luz ofuscante ou tombando em
seus próprios abismos, nos quais os gritos de suas quedas livres nunca
encontram seus próprios ecos, e cujos desejos nunca encontram realização.
Aquela é a mensagem de Carl, sua imagem de como é sua prisão. Ele se
encontra face ao suicídio daqueles que se negam a continuar vivendo pelo
amor, ou que negam terem sido feitos para amar. É uma história de tristeza
imediata no viver, e miséria eterna no morrer.
Carl fez o que era preciso. Traduzindo em palavras, ele estava dizendo
para Hearty: “Veja! Esse é o meu exílio do amor, minha submissão a um
psiquismo degradante, e a minha precipitação última na solidão do Inferno,
para sempre”.
“Jesus pode salvá-lo, Carl”, começa Hearty. “Jesus...”.
Ele não prossegue. A “mensagem” é cortada abruptamente. Hearty
sacode sua cabeça. O padre assistente está dizendo algo que faz com que
Hearty volte sua visão para Carl. Ele abrira seus olhos e estava a sussurrar
algo gentilmente para os dois assistentes que o seguravam pelos braços.
Aparentemente ele lhes pedia, com uma voz bastante normal, que o
deixassem sentar-se e “observar o padre”. Os dois soltam seus braços. “Sua
voz soava tão normal”, disse um dos assistentes mais tarde, arrependido.
Carl fixa seus olhos em Hearty, com um lento grunhido de deleite. Hearty
não lhe é mais “opaco”. Pela primeira vez, ele está lendo a mente de Hearty.
Olhando em retrospecto, parece agora para Hearty que aquela liberdade
mínima de Carl e sua comunicação telepática com ele, enquanto ainda não
estava totalmente livre da possessão, abriu-lhe uma via perfeita para um
ataque direto sobre o exorcista.
Carl deverá ser usado, agora, como meio para o Choque final. Contra a
Tartaruga, Hearty não tem mais nenhum aliado. Ele vê o propósito da vida
de Carl. Ele o conhece. Ele o apóia.
A primeira descoberta assustadora de Hearty é de que seu filtro “censor”
foi retirado: ele não consegue bloquear pela força de sua vontade, como
sempre conseguira até ali, qualquer mensagem vinda do exterior ou
qualquer percepção externa em sua mente e em sua condição interna.
Agora, pela primeira vez em sua vida, ele é um “receptor” involuntário. Isso
era algo que ele não previra. Pensara que, na medida em que sua vontade
estivesse livre, seu filtro censor estaria à sua disposição. Mas ele não tinha
mais proteção. Ele está nu. E cada parte de seu eu interno é invadida,
confiscada e poluída. Uma inteligência malévola está sondando os
recônditos de seu próprio ser. O ataque finalmente eclode dentro dele.
Hearty é tomado por uma sensação repugnante que ele não consegue
controlar. Ele começa a fazer força como se para vomitar.
No confronto entre sua vontade e o espírito maligno, ele é açoitado com
uma ferocidade nunca imaginada. A tortura de Hearty vem dele próprio: ele
parece ser um observador externo de sua própria punição. De acordo com a
gravação e os relatos de seus assistentes, essa crise de Hearty dura entre três
e cinco minutos. Para Hearty, pareceu durar anos. Ao olhar nos olhos de
Carl, ele não mais vê cor, forma ou expressão. Carl é, em todos os sentidos,
um meio de ação do mal. Hearty torna-se alguém passivo, um
“observador”. Ele “deixa de ver” naquele momento e “é visto” apenas.
Essa etapa de Choque se sustenta sobre um forte espírito de ameaça.
Desde o início, foi comunicado sutilmente a Hearty que, se ele se
submetesse, se ele renunciasse sua oposição ao espírito maligno, tudo
ficaria bem; o ataque cessaria. Em caso contrário, ele seria destruído.
Agora, num só instante, ele vê toda uma fraqueza revelada: a lógica vã
que ele recebera em seu treinamento filosófico, os fatos teológicos tratados
de forma arrogante e ignorante, sua piedade auto-indulgente e hipócrita, o
orgulho vão quanto ao seu sacerdócio – tudo aquilo era nonsense, um monte
de lixo humano que se desfaz sob o fogo daquele olhar que o penetrava
mesmo nos recônditos mais escuros de sua fraqueza.
“Pelo tempo que aquilo durou”, relata Hearty, “posso dizer que foi uma
brutal possessão parcial. Só o que permaneceu livre, finalmente, foi minha
vontade. E mesmo isso...”. Hearty deixou esse pensamento sem conclusão.
O olhar perscrutador prosseguiu, como uma mão maliciosa, arranhando
cada uma de suas faculdades. Até mesmo sua vontade é tocada e despida
dos motivos sobre os quais ela sempre se baseara. Sua vontade é o último
bastião. Ela se mantém. Mas agora ele vê toda a sua aparente força rasgar-
se, como um monte de papelão que cobrisse um precioso tesouro: seu
entusiasmo estético pelas belas cerimônias, sua estima das boas pessoas,
sua compaixão pelos doentes e desamparados, seu orgulho em ser um padre
e um homem, sua satisfação com sua cultura galesa, sua confiança na
aprovação de seus pais, professores, superiores, seu bispo, o Papa, a
consolação na prece e a submissão à lei. Tudo aquilo foi rasgado
brutalmente e posto de lado. E só o seu eu volitivo restou, despido de todos
os suportes e razões recolhidos durante toda uma vida, perscrutados pelo
olhar de uma inteligência elevada, desprovida de amor e incapaz de amar.
“E isso era tudo, aliás”, Hearty explica naquele tom despretensioso,
próprio aos sobreviventes de terríveis sofrimentos ao tentarem descrever
esses momentos. “O objetivo era impossibilitar minha livre escolha”.
O único sinal exterior de sua experiência é visto por seus assistentes pelo
modo como Hearty segura seu crucifixo entre ele e Carl: seus dois braços
esticados diante de si, os olhos ao nível da barra horizontal do crucifixo, de
modo que ele está a olhar para a cabeça e por sobre os braços do
crucificado. No início da agonia de Hearty, o crucifixo encara Carl. Após
cerca de dois minutos, Hearty vira o crucifixo de modo que o crucificado
encara o próprio padre. Só podemos imaginar que é aí que sua verdadeira
crise irrompe. Ela dura um curto instante, um infindável instante no qual ele
desconhece qualquer tempo, e o sofrimento parece eterno.
Enquanto isso, para os observadores externos, Carl parece não mudar em
nada. “Seus olhos estavam como cavidades ocas”, disse um assistente. E
vários dentre eles se lembraram, ao olhar para Hearty, de antigas estátuas,
nas quais os olhos desalmados da antiguidade se voltam à banalidade da
vida num olhar estéril.
Hearty está reduzido a esse olhar, e luta para sobreviver, atendo-se
ferozmente à sua vontade. O pior ainda está por vir. Sua mente, imaginação
e memória estão agora fora de controle. Ele pensa, se lembra, ele imagina
aquilo que os “outros” querem que ele pense, lembre e imagine. Ele é agora
tratado de um modo humilhante. Ele vê o seu mundo como um globo
repleto de terras e mares, com cidades, casas e povos, coberto com
vegetação, areia e animais, tudo pairando sob uma atmosfera; e “sobre” ela,
de algum modo, “Deus” ou “Jesus” ou o “Céu”, com pequenas linhas
tênues correndo na direção de cada ser humano lá embaixo. Tudo ali parece
tão risível, infantil, desprezível e tão supersticioso – isso lhe é transmitido
como sendo uma piada cósmica imposta por uma inteligência superior que
o despreza.
E, nessa mesma tonalidade ele vê todo o sentido de sua vida escorrer de
suas mãos num nada insignificante. Aquilo que almejara ser, o que se
tornara, os valores pelos quais vivera – tudo agora parece uma horrenda e
inútil comédia de erros. “Eu nunca signifiquei nada, nunca consegui nada,
nunca fui nada”. A mente de Hearty repercutia essas palavras.
E o que agora parece o centro dessa visão infantil é o modo como ele
sempre havia visto a Terra, como uma coleção de coisas, de pequenos
objetos separados e díspares, homens, animais, plantas, pedras. “Errado!
Errado! Errado!”, é o que ecoa em sua mente. “Errado e infantil desde o
início”. A tristeza e a dor contida nessa imagem de fraqueza e infantilidade
chegam ao máximo do que ele pode suportar, quando então a visão se altera
e uma nova série de imagens lhe é apresentada, sob uma aura não de
ridículo, mas de aprovação e de aplausos. É a aura da falsidade.
É o globo terrestre que ele vê, novamente, junto com todos os objetos
nele existentes – homens, mulheres, animais, plantas, cidades, oceanos. Mas
agora tudo existe num sistema organizado. Tudo está interconectado.
Realmente não há diferença entre uma coisa e qualquer outra delas. Desde a
mitocôndria das células, que convertem oxigênio em energia, até a maior
das massas de terra, o mais complicado dos sistemas sociais. Tudo lhe é
mostrado. E tudo, terras, oceanos, animais, humanos, plantas são um só
organismo vivo, envolto pela cobertura da atmosfera. As forças psíquicas
unem tudo, como um sangue etéreo correndo nas veias de um gigante
inimaginável. Uma só coisa, autocriada, autoprotegida, autodesenvolvida.
Um único ser. A terra como mãe, como ventre, como deus, como tumba,
como uma unidade protegida em sua própria concha e com sua própria
força, enquanto a totalidade daquilo que há.
Vez o outra os contornos desse globo assumem a forma de um caracol ou
de uma tartaruga envolta em sua própria carapaça protetora. Essa visão
inunda a mente de Hearty de uma satisfação intelectual, e veste sua
imaginação com imagens de harmonia, liberdade, verdade.
Sua memória está em suspenso. Ele está apenas no momento presente, e
é incapaz de antecipar o futuro. Suas forças não conseguem resistir – exceto
sua vontade, sempre de pé. Nu e vulnerável, sozinho, à sombra de seus
próprios desejos frustrados, seu eu volitivo permanece preservado –
vacilando, hesitante, mas ainda assim preservado –, ele ainda não fora
comprometido.
Somente um elemento nessa visão da vida humana o impede de aceitá -
la. É a ausência de amor. Algo dentro dele continua gritando “eu preciso de
amor. Eu não aceito menos do que isso”. No último bastião de seu eu livre,
Hearty permanece, rejeitando o ultimato, a ameaça que lhe era lançada por
meio daquela imagem.
Mas, imediatamente, uma força física começa a operar nele sob a forma
de uma série de dores que atacam seus músculos dos braços e pernas. É
algo insuportável. Seus dedos estão perdendo o controle do crucifixo. Ele
não mais o sustenta rigidamente com o crucificado diante de si. Ele o deixa
pender e balançar um pouco para a esquerda, um pouco à direita. A luz faz
brilhar a cabeça de metal do crucificado e o pequeno letreiro em que está
marcado “INRI” (“Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”).
No mundo de Hearty, naquele instante, não existe algo como um
acidente. O aparente brilho acidental do metal desperta um instinto
profundo dentro dele. Ele começa a dizer, de início internamente, e então
em voz ala: “Jesus... Jesus... Jesus... Jesus... Jesus... Jesus...”.
Quando suas palavras se tornam audíveis, ele já superou o pior. Uma
nova força atravessa sua mente e imaginação, reduzindo a nada toda a trama
de desamor lançada sobre ele como sendo sua garantia de paz. Hearty sente
por um instante uma dor arrasadora dentro de si: no decorrer de sua vida ele
sacrificara algo – ele ainda não sabe o quê –, uma certa alegria íntima em
ser um humano, um certo desejo ou inclinação pessoal, uma certa
indulgência para com a graça da beleza e simetria humanas, uma certa
alegria que ele, de outra forma, teria podido sentir de forma legítima em sua
existência humana. Alguma parte profundamente pessoal da fibra de sua
vontade se tornara insensível.
A transição no ponto de atenção de Hearty, passando de si próprio a Carl,
é instantânea e “assassina” – termo usado por ele próprio – em seu intento.
Ele agora quer matar aquilo que detém Carl. Os assistentes vêem sua cabeça
erguer-se e seus olhos queimarem de raiva e ímpeto. “Honestamente, eu
cheguei a pensar que ele havia ficado louco”, relata o padre assistente com
franqueza.
As primeiras palavras de Hearty após o Choque ainda soam perversas
hoje, ao ouvirmos a fita.
“Assassino! Seja morto agora! É a sua vez!”.
Carl cai no sofá. Os assistentes o seguram, mas o combate de Carl, agora,
não é físico. Com uma voz fraca e patética ele diz apenas: “Opaco...
opaco... opaco...”
“Espírito Mal”, prossegue Hearty, “você sairá dessa criatura, Carl. Você
irá cessar a possessão de alma e do corpo dele. Em nome de Jesus, você a
cessará. Agora”.
Ele então se volta a Carl: “Carl, você tem de pagar o preço. Mas Jesus
está com você. Você irá renunciar, com tudo aquilo em você que ainda não
foi tomado pelo mal. Ponto por ponto, você renunciará a cada um de seus
antigos consentimentos. Cada um deles”.
Carl treme horrorizado. Ele começara a transpirar, sem dizer nada.
“A visão, Carl! Você a verá novamente. Você a verá”.
Os olhos de Carl agora estão fixos em Hearty. Eles se arregalam de medo
e aversão.
“Você vai vê-la. Você vai rejeitá-la!”.
“N-n-n-n-não!”, Carl gagueja, subitamente. “Não. Por favor! Não...”. As
palavras na fita se esvaem incoerentemente.
“Renuncie, Carl”, diz Hearty bruscamente, “ainda que você não consiga
dizê-lo em palavras”.
Carl começa a balbuciar, mas pára. Uma espuma começa a escorrer de
sua boca.
Hearty prossegue sem dó.
“Carl! Seus poderes psíquicos! Carl! Renuncie àquela parte neles que é
produto do Maligno. Em nome de Jesus, Carl! Renuncie!”.
Carl não olha mais para Hearty. Ele virou sua cabeça para o lado e ficou
olhando para a parede do canto esquerdo.
“Virem a cabeça dele”, ordena Hearty secamente. Os assistentes
obedecem. A cabeça de Carl está banhada em suor e fervendo de tão
quente.
“Agora, Carl! Pela renúncia final. Olhe para a Tartaruga, Carl!”. Os
assistentes sentem, dali em diante, que estão ouvindo a descrição verbal de
uma cena invisível. Somente Hearty e Carl parecem enxergá-la; ambos
estão olhando na direção da parede do cômodo.
“Olhe para o Maligno, Carl! A Tartaruga, o seu tudo, o seu amigo, seu
mestre, seu demônio, sua morte, esse Maligno está prestes a ser destruído
por Jesus, pelo seu bem”.
Hearty pára. Os outros vêem-no virar a cabeça de lado, como se ouvindo
algumas instruções; eles vêem uma onda de uma luz renovada brilhando em
seus olhos. Ele então olha firmemente para Carl uma vez mais.
“Você verá esse Espírito Maligno tal como ele é, Carl!”.
Hearty pausa abruptamente como se interrompido. E então: “Não! Não
em nome de qualquer outra pessoa, de alguém que simplesmente vive e
morre”. Mais uma pausa. E então: “Somente em nome de alguém que vive,
morre, e vive novamente. Somente em seu nome, Carl”.
Os olhos de Carl estão agora absortos numa cena que só ele vê. Ele não
está focando seu olhar em Hearty. E está claro que, embora olhando
diretamente para Carl, Hearty está enxergando algo para além de seu
exorcizando. Os assistentes não podem senão supor a identidade desse
“algo”, mas estão certos – tão certos quanto alguém que observe a audiência
de um teatro – de que ambos vêem algo que eles, assistentes, não
conseguem ver.
A dada altura Hearty se aproxima do sofá. Ele fala num tom grave e
confiante; está orando:
“Senhor Jesus Cristo, que disse, ‘Eu e o Pai somos um’, aja agora para
purificar seu servo, Carl, e salvá-lo do abismo e de todos aqueles que
caíram na morte eterna”.
A atitude de Carl mudou. Ele relaxou. A tensão se esvaia de sua face. Um
débil sorriso de reconhecimento se estende por sua boca e olhos.
Hearty se inclina diante de Carl e sussurra em seu ouvido: “Carl! Carl!
Ouça-me, se você puder”.
Há um curto instante de espera. Carl então volta sua cabeça e seu olhar
para Hearty. Seu olhar é cálido. E ainda que seus olhos estejam vermelhos e
cansados, Hearty pode ler por meio deles um olhar pessoal.
“Carl, repita essas palavras comigo. Quantas vezes você puder, quão
depressa você puder. Coloque todo seu coração nelas. É o último apoio
antes da batalha final”.
Carl olha-o firmemente. Heart diz rapidamente, pausando após cada
frase, para que Carl possa repeti-las:
“Senhor Jesus, se eu tiver de morrer, deixe-me morrer. Se eu viver, será
por sua vontade. Se eu permanecer vivo, deixe-me estar na sua presença,
tão completamente que, a despeito de meus pecados e de meu inimigo,
quando eu morrer, eu passe simplesmente da sua presença para sua
presença. Amém”.
Carl repete cada palavra. Mas no “Amém”, seu olhar se perde. Seu rosto
se enrijece. Sua cabeça despenca para trás.
“Segurem sua cabeça”, diz Hearty aos assistentes.
Ele se levanta e assume seu posto ao pé do sofá, segurando o crucifixo
diante de si. Essa é a última etapa do exorcismo.
Hearty, hoje, detesta contar os detalhes daquilo que Carl e ele viram
naquele momento. Pelas fitas, está claro que se trata de uma visão da
Tartaruga, mas não tal como o medalhão em mosaico de Aquiléia, e não
simplesmente como o animal de quem o espírito havia adotado o nome. O
que de mais próximo Hearty pôde me dar quanto ao grau daquilo que os
dois viram foi isso: que foi somente pelo fato de algo na alegria humana ter
sido nele cauterizado é que ele foi capaz de ver a Tartaruga, e, usando suas
palavras, “não ter um ataque cerebral ou uma parada cardíaca”.
Aparentemente, foi uma visão da Tartaruga como uma massa de
sofrimento e punição, iluminada e refletindo um brilho de ódio e perversão.
Era a Tartaruga enquanto um anjo, que havia sido condenada à dor eterna
pelo amor mesmo, e que crescia no ódio contra o amor conforme sua dor
crescia no sem fim da eternidade. “Uma danação sem nenhum alívio”,
comentou Hearty em um de nossos encontros.
Hearty via a Tartaruga como um inimigo ameaçador, mas Carl agora via
a Tartaruga, seu mestre, que o detinha em sua atual condição de miserável
condenado.
Após um tempo de espera, Hearty falou com uma evidente urgência.
“Essa é a Tartaruga, Carl, seu amigo e seu mestre. Esse é o mundo que
nosso inimigo quer que aceitemos”. Ele parou.
Carl não tirava os olhos de Hearty nesse momento.
“Aprisionado e calado, dentro de sua casca dura, Carl. Aprisionado no
Inferno. É o mesmo. O único –” Carl interrompe com um som asfixiado.
Hearty prossegue: “Não fazendo outra coisa senão multiplicar sua própria
forma numa sucessão infinita, numa sucessão de assassinatos de almas,
banal como as tumbas que vão se enfileirando, Carl”.
Carl começa a tremer novamente. Hearty tranquiliza os assistentes com
um olhar, e continua:
“Esse é nosso inimigo, Carl. Aquele que o possui e lhe causou tanto
fascínio. Ele quer que você morra a morte do abismo”.
Carl, ainda que ouvindo e absorvendo tudo aquilo, está longe de parecer
amedrontado. Seus olhos estão cheios daquele antigo fogo. Há um traço em
sua face que faz Hearty pensar nas “torções”, ou no olhar obtuso que Carl
costumava assumir durante seus transes, no auge de suas atividades
psíquicas.
A voz de Hearty assumiu um tom especial. “É tudo ilusão, Carl. E tudo
isso está prestes a ser destruído”.
Hearty é interrompido por um som forte que o abala. Carl explodira em
prantos. Naquele instante, Hearty se lembra, “senti-me a pessoa mais rude e
cruel que já existira. Eu estava machucando um bebê, me pareceu”.
Ele se forçou a prosseguir
“Ele tem de ser destruído, Carl. E a sua aura do Não-Ser, a sua
nãocoisicidade, suas vozes, suas visões, tudo deve ser lançado no Abismo
do Esquecimento com essa Tartaruga”.
Carl começa a se debater entre as mãos dos assistentes.
Hearty cerra os dentes e investe um último esforço. Ele estivera de pé ao
longo das últimas 21 horas. Suas pernas estão cansadas. Ele está sentindo
dores lancinantes em suas costas. Seu peito está enrijecido. Seus braços e
dedos doem de tanto segurar o crucifixo. Sua voz está rouca. A dor de
cabeça se alastra por toda a parte frontal de seu crânio. Dentro dele, aquela
estranha ferida começa a sangrar. Toda sua dor física é um simples
acompanhamento, um plano de fundo de sua agonia interna, tão aguda, tão
presente e íntima a ele. Ele só viria a se recuperar dessa ferida muito tempo
depois.
Carl tenta se levantar e esticar seus braços.
“Nada pode salvá-lo, Espírito Maligno. E não há o que fazer contra o
poder de Jesus. Assim como você assumiu a forma da Tartaruga com essa
criatura de Deus, igualmente como Tartaruga vá embora, e precipite-se no
lugar ao qual você pertence, com sua aura do Não-Ser, com suas farsas,
suas mentiras, sua morte”.
Hearty faz o sinal da cruz sobre Carl lentamente e carregado de intenção,
por três vezes.
“Afunde no lodo primordial de sua punição no qual Deus o enterrou
depois de sua própria rebelião. Vá dissolver-se na lama, nas águas, no ar e
no fogo daquele Inferno do qual Jesus salvou Carl e todos os seres
humanos. Vá embora!”. Hearty para. E, num forte grito: “Vá! Espírito
impuro! Em nome de Jesus, saia. Vá!”.
“NÃO VÁ!”, grita Carl. “Não me deixe agora. Eu não posso viver sem
você. Não vá! Por favor! Meu amigo! Mestre!”.
A voz de Hearty irrompe bruscamente.
“Olhe aqui, Carl! Olhe para essa cadeira!”.
Carl erra com o olhar pelo cômodo, virando a cabeça. Começa a grunhir:
a cadeira, ele vê, não tem aura. O brilho do Não-Ser se esvaiu. A cadeira
está ali. E aquilo é tudo. Ela simplesmente está ali. Em todo seu ser. Só uma
coisa. Só uma cadeira. Olha freneticamente pelo cômodo. Tal como ele o vê
hoje, todas as luzes se apagaram. Coisas. Coisas. Coisas. Coisas. Em meio a
outras coisas. Um teto amarelado. Um papel de parede cor-de-rosa. Uma
porta e o peitoril em carvalho, assoalho de tacos. A mesa com velas e o
crucifixo. Os corpos dos assistentes e de Hearty. Seis coisas brutas. Torrões
de carne num mundo escuro, repleto de objetos estúpidos.
Carl grita sem parar até a escuridão e a inconsciência o sufocarem.
Ao forçar Carl a olhar para os objetos ao seu redor – cadeiras, janelas,
piso, pessoas – Hearty já sabia ter vencido a Tartaruga. Como se dá em
qualquer crise que carrega consigo, ao seu fim, a ameaça da morte, houve,
no final, uma sensação abrupta de “retirada de um peso sufocante; é o
mesmo alívio súbito que Pe. Gerald e seus assistentes descrevem quando o
Ajeita-Moça foi vencido e Richard/Rita libertado. Algo similar à sensação
tão amiúde recordada por aqueles que estavam em Londres na manhã em
que todos esperavam a onda final do ataque de Hitler que destruiria toda
Londres. Nas semanas anteriores, a chuva incessante de bombas causara
destruição sem fim, morte, mutilação e desespero crescente. Mas, naquela
manhã de um já esperado terror, o céu estava limpo e tranquilo ao leste. A
ameaça não se concretizou. Fez-se o som do silêncio. Estava acabado. Eles
se defenderam, perseveraram e sobreviveram. Eles entenderam.
Hearty entendeu.
E quando ele forçou Carl a ver, o restante dos temores que Hearty nutria
por Carl se justificaram novamente. Quando Carl gritou ao enxergar as
coisas mostradas por Hearty na sala, o padre sabia que, junto com a
Tartaruga, os elementos mais espetaculares que ornavam as reais
habilidades psíquicas de Carl haviam partido também. A aura do “NãoSer”
fora embora, como Hearty sabia que aconteceria.
Com isso, Hearty tinha certeza, foram embora todos os elementos que a
Tartaruga – sob o incansável interrogatório de Hearty durante a
Confrontação – admitira ter produzido: viagem astral, bilocação e todo o
resto. Sobraram somente aqueles talentos mais modestos, que Carl possuíra
desde sua primeira infância e que ele ainda possui até os dias de hoje.
O medo de ver partirem todos esses privilégios e toda a estrutura de vida
construída em torno deles era tão desesperador para Carl que ele chorou de
dor diante da partida daquele puro mal. Ele gritava de horror ao ver se
desfazerem todas aquelas coisas que ele passou a acreditar serem
“normais”. Ele via, uma vez mais, somente o que todos os outros viam. Carl
soube, naquele momento, com seu coração e sua alma, que todos os avisos
dados por Hearty estavam corretos. Ele ouvira os avisos de Hearty,
anteriores ao exorcismo, com um espírito despreocupado, porque com sua
vontade ele escolhera seguir os fascinantes segredos que a Tartaruga ofereça
compartilhar com ele.
Agora, com a Tartaruga expulsa e a verdade de sua identidade demoníaca
exposta com clareza e admitida por ele, um assustador sentimento de
desilusão corria por Carl com a velocidade de um choque elétrico,
queimando todas as suas memórias. Era quanto a esse choque que Hearty
tentara avisar Carl; choque do qual ele não tinha certeza que Carl poderia
sair em sã consciência, talvez nem mesmo com vida.
O médico que assistira o exorcismo prosseguiu no caso de Carl. Ele
permaneceu inconsciente por muitas horas mais. Ao acordar, ele não
conseguia falar, mal reagia a quaisquer estímulos e estava aparentemente
alienado daquilo que acontecia ao seu redor. Ele parecia não reconhecer
ninguém. Mas não havia qualquer indício de violência.
Carl foi transferido para uma clínica privada, onde ele permaneceu por 11
meses. De início, ele era completamente incapaz de se cuidar sozinho. Ele
passava o tempo todo de cama, imóvel e aparentemente sem se importar
com nada. Pouco a pouco, ele recuperou a consciência daquilo que
acontecia ao seu redor. Mas, mesmo com o retorno de sua consciência,
ficou logo evidente que, ainda que ele não tivesse perdido sua memória, ela
estava turva e incompleta.
Durante os primeiros poucos meses de sua convalescência, Hearty passou
muitas horas sentado à cabeceira de Carl. Por vezes ele lia excertos do
jornal do dia, um capítulo de algum livro sobre os acontecimentos recentes,
ou preces de um livro ritual. Noutras vezes, Hearty falava com Carl,
precisamente como se o doente estivesse ouvindo e entendendo cada
palavra, embora Carl tenha passado muito tempo sem dar o mais mínimo
sinal de resposta.
Durante esse tempo todo, enquanto ele lia ou conversava ao seu lado,
Hearty sondava Carl em busca de alguma agitação psíquica, qualquer
quebra na imobilidade que agora envelopava seu espírito, algum
movimento em meio a toda aquela passividade mortal que mantinha Carl
cativo, agora que ele estava livre da Tartaruga. A cada vez que ele deixava o
aposento, Hearty carregava consigo a imagem daquele rosto imóvel e
enfermo de Carl, e essa memória o assombrava em suas horas de vigília.
Certa noite, ao fim de uma visita breve, ao abrir a porta do quarto para
partir, Hearty voltou-se para dar tchau ao homem que todos os dias era
deixado ali, inerte, impassível em sua cama. Mas o que ele viu então o fez
parar na soleira da porta. Carl movera sua cabeça. Ele estava respondendo
ao olhar de Hearty. Seus olhos brilharam com um sentido, expressando
reconhecimento e uma intenção.
Hearty ficou imóvel por mais alguns segundos, recebendo os primeiros
indícios, frágeis mas certeiros, de que Carl se iria recuperar. Ele passou a
celebrar a Missa no quarto de Carl a cada dois ou três dias depois disso. A
fala e o movimento voltaram pouco a pouco. Em poucas semanas ele já
podia receber a Santa Comunhão. E foi só muito tempo depois que ele pôde
se aventurar ao ar livre.
Hoje Carl passa bem, mas tão alterado em aparência, e tão frágil, que
ninguém que o tenha visto naquela rota ensolarada rumo a Aquiléia o
reconheceria facilmente.
“Eu quero lhes contar a verdade tal como agora eu a vejo”, escreveu Carl
2
mais tarde a seus alunos e colegas. “Eu estava errado nas instruções
pessoais que lhes dei referente às vidas de vocês”.
“Durante toda minha infância e minha juventude, eu tive uma afinidade
com Deus. Especialmente após minha primeira visão.
“Estou certo de que Deus estava ali. Em alguma parte. Mas aí veio
Princeton. Stanford. Tubingen. Cambridge. Londres. Depois disso, veio
minha atividade como guru e o aflorar dos meus dons. Eu fiquei confuso.
De algum modo eu perdi Deus. Ao mesmo tempo, eu queria ajudar os
outros. Realmente ajudar. Ser útil. Por toda parte ao meu redor eu podia ver
imagens de dor, de putrefação, de doença, de corrupção e decadência. Eu
via pessoas estranhas que não ligavam para nada. Por favor, liguem para
alguma coisa, eu dizia. Elas tomavam o nome de Deus em vão. Como eu
fazia. Elas eram brilhantes, duras e frias como um frigorífico. Elas
gostavam do mal gratuito e sufocavam toda manifestação de inocência.
“Eu assinei um contrato moral para mudar tudo isso. Eu era jovem, um
trabalhador incessante. Estava determinado em ter sucesso. Muita
ansiedade, vocês irão dizer. Eu queria ser um bom psicólogo, um servidor
do gênero humano, honesto, compreensivo e consciente. Servidor. Não
escravo. E, mais tarde, eu queria ser um bom parapsicólogo. E, mais tarde
ainda, eu queria ser um perfeito guru.
“Eu buscava, e até mesmo rezava, e nunca recebia um não como
resposta. E então encontrei esse mentiroso tão lírico, que é o Demônio.
“Eu sabia com quem eu estava lidando, é claro. Mas, de início, o
Demônio não era o Demônio pregado pelas igrejas. Não havia espaço, em
meu universo, para um responsável principal do Mal. Não àquela época de
minha vida. E, eu pensava, o laço e contrato entre eu e ele seria, poderia ser
apenas temporário. Mas é claro que não poderia ser assim. Mas quando o
orgulho assume o controle da sua mente e coração, fica difícil enxergar
essas coisas com clareza.
“Em caráter solene, e por minha própria e livre vontade, eu gostaria de
reconhecer, conscientemente e livremente, que eu entrei num processo de
possessão por um espírito maligno. E, embora esse espírito tenha vindo até
mim sob o disfarce de alguém que me queria salvar, me aperfeiçoar, ajudar-
me a ajudar os outros, eu sabia o tempo todo que ele era mal.
“Após minhas conversas com o Padre F. [Hearty], eu passei a questionar
todas as minhas perspectivas intelectuais. E eu devo atribuir minha
libertação, ou, mais precisamente, meu desejo de querer ser libertado
(porque não me era permitido nem mesmo um simples desejar ser livre) eu
devo atribuir tudo isso àquilo que o Padre F. chama de graça de Deus e
salvação de Jesus.
“Eu nunca vivi uma viagem astral-corporal, mas somente a ilusão dela.
Eu nunca experimentei o privilégio de ter um duplo de mim mesmo – se é
que isso é um privilégio. A bilocação nunca aconteceu, nunca foi um fato
em minha vida. Eu era incapaz de ver coisas acontecendo a centenas de
quilômetros de distância, ler o futuro, ver o passado, penetrar as mentes das
pessoas em detalhe. Eu só conseguia dar a impressão disso tudo ao ser
impelido por alguém que era, ela sim, capaz de ver desde uma grande
distância, ler o futuro, ter um conhecimento detalhado do passado e penetrar
as mentes das pessoas. Qualquer idéia de reencarnação que eu tenha
defendido era uma tentativa de trapaça. Eu não era um feiticeiro. Eu era um
embusteiro.
“Eu nunca quis me livrar da possessão até o dia em que o Padre F. me
explicou o erro básico acerca da consciência e do espírito.
“Meu erro principal, ao um só tempo intelectual e moral, dizia respeito à
natureza da consciência humana ordinária. Como tantos antes de mim, e
muitos outros hoje em dia, eu achava que, por meio de um treinamento
rígido e especializado, eu poderia atingir um estado fascinante de
consciência: uma ausência completa de qualquer objeto em particular (em
minha consciência). Eu achava que seria possível atingir uma permanência
nesse plano de consciência. Isso finalmente se tornou um ambiente
constante para mim durante minhas horas de vigília, não importava o que eu
estivesse fazendo. Parecia se tratar, para mim, de algo puro e portanto isento
de qualquer pecado, indiferenciado e portanto universal, simples e portanto
sem partes – e portanto incorruptível e imutável, e portanto eterno.
“Meu erro começou quando eu tomei a condição psico-biológica da vida
como a vida do espírito. Consciência significa, basicamente, estar ciente de
algo, estar alerta. E uma tal ciência pode ser medida por certos dados
fisiológicos. Pode ser descrito em termos fenomênicos, porque é um
fenômeno.
“Se não fosse por um outro erro ulterior, esse erro inicial poderia, creio
eu, ter-se corrigido com o passar do tempo – simplesmente porque o
imperativo científico teria prevalecido ao final, e nos forçaria a encarar os
fatos de frente.
“Com o passar do tempo, eu comecei a experimentar um estado superior
de consciência. É difícil colocá-lo em palavras. Antes disso, eu estava numa
espécie de estado de suspensão. Estava ciente do fato de estar ciente. Um
dia, eu me dei conta, por meio de uma faculdade que eu não conseguia
identificar, que havia uma outra atividade ocorrendo em mim, tão refinada e
sutil que, nos momentos em que eu estava pouco desperto, não sabia
absolutamente nada sobre ela – o que ela era, onde se encontrava, o que ela
fazia, se tinha um começo e um fim, ou, caso sempre tivesse existido, se
existia continuamente e continuaria existindo – independentemente da
minha consciência.
“Aquilo estava para além do alcance de qualquer capacidade que eu
tivesse desenvolvido. Era algo completamente transcendente. De fato, essa
era sua marca; e foi assim que eu percebi sua diferença com relação aos
meus outros níveis de consciência. Eles estavam todos sujeitos, finalmente,
aos meus sentidos – ou ao menos às representações em imagens a partir do
que eu vivia pelos sentidos – não importava o quão sutis eles fossem. Esse
estado superior da consciência não estava sujeito a eles.
“Mas isso era, para mim, indício suficiente, eu pensei. Eu interpretei isso
como o estado absolutamente espiritual do meu ser. Tomei como ponto
pacífico que, religiosamente falando, eu estava para além da noite escura da
alma descrita por João da Cruz, e já dentro daquilo que alguns místicos
orientais chamaram por diversos nomes, como satori e samadhi. O fato que,
ao menos em reflexões posteriores, eu pudesse medir e quantificar esse
estado da consciência nunca me chamou a atenção. E isso foi um erro
grosseiro de minha parte. O que me confirmou nesse erro foi que eu
recusei-me a levar em conta o fato de que esse estado estava em total
desunião com todas as religiões históricas – e não havia qualquer
possibilidade de articulá-la com um uma religião histórica. Era, em outras
palavras, puro subjetivismo. E, daí em diante, a porta foi aberta para
qualquer influência e distorção. E o Espírito do Mal, a Tartaruga, entrou
rastejando por essa porta.
“Eu de fato alcancei partes de uma verdade sobre o espírito – a parte
inferior, a parte negativa. Mas essa era a única parcela por ela explicada em
todo o conjunto da vida do espírito. Pois não é que eu seja parte animal,
parte humano. Eu não sou um animal humano. Eu sou um espírito humano.
Nós somos o espírito em sua existência fluida, inestática, não quantificável.
E, em matéria de espírito, o baixo e o alto, o mal e o bem são termos que se
referem à proximidade ou distância da fonte única de todo espírito.
“Eu fui submetido às mais brilhantes ilusões: ilusão de que o espírito era
um quantum estático, de dimensões mais ou menos determinadas; que as
autoridades cristãs haviam obscurecido a verdade quanto ao espírito; e que
somente pela parapsicologia e os dons sobrenaturais se poderia alcançar a
verdade.
“A verdade é que durante todo esse tempo, a despeito de minha carreira
triunfal até o episódio de Aquiléia, desde o advento da possessão eu vivia
uma tristeza da qual eu não conseguia me livrar. Uma tristeza muito
profunda. Eu buscava a felicidade em toda parte, e vivia sob uma escuridão
invernal que fazia de todos os meus dias uma matéria morta.
“Meu conselho a todos aqueles que se envolvem no estudo e na busca do
universo parapsicológico é simples, mas de uma importância vital: não
confunda efeitos com causas, ou sistemas com aquilo que mantêm os
sistemas. Não pense que uma fotografia Kirliana da aura é uma fotografia
do espírito. Não aceite as proezas dos médiuns como resultados do espírito
de Deus. Mas tampouco, por outro lado, trate o fenômeno parapsicológico
como se você pudesse experienciá-lo sem poder submetê-lo, em última
instância, ao espírito. Você não pode. E esse fato irá, dependendo daquilo
que você fizer, contribuir para o seu aperfeiçoamento ou deterioração – no
espírito.”.

1 Grão utilizado na produção de farinha – NT.


2 A carta aqui apresentada é um condensado de sua versão original. Foram omitidas algumas das
longas discussões técnicas com seus estudantes e colegas, bem como referências pessoais que só
dizem respeito a eles. Quanto ao resto, o condensado está completo e mantém o sentido e intenção da
versão completa.
MANUAL DE POSSESSÃO
O bem, o mal e a mente moderna
O efeito mais certo da possessão sobre um indivíduo, o mais óbvio e
chocante, observado em todos os casos – seja no decorrer do exorcismo,
seja à parte dele – é a grande perda da qualidade humana, da humanidade.
Por incrível que pareça, a dificuldade de se falar em possessão nos dias
hoje, bem como de descrever sua evolução e seus efeitos sobre as
respectivas vítimas, não se deve aos acontecimentos estranhos, bizarros ou
mesmo “inimagináveis” que possam vir a acompanhá-la.
Tal dificuldade advém, na verdade, da insistência por parte dos atuais
formadores de opinião em que a perspectiva religiosa de Bem e Mal estaria
ultrapassada; que a personalidade de cada homem, mulher e criança se
constituiria tão somente de um conjunto de particularidades reveladas pelo
nosso desempenho em testes psicológicos; e que o nosso comportamento
seria mais pura e verdadeiramente modelado a partir dos “animais
inferiores” e do “homem natural” – uma invenção mítica jamais existente e
que nem sequer podemos imaginar.
Essa mesma dificuldade é agravada por alguns fatores adicionais. Insiste-
se em que a religião cristã seja banida das instituições públicas, bem como
quaisquer formas de culto e todos os ideais abertamente fundados na
moralidade cristã, e que isso seria “objetivo” e “democrático”. Em nosso
entretenimento de massa – cinema, televisão, novelas, teatro –, não há lugar
para figuras heróicas ou para os conceitos de certo e errado, de bem e mal.
A vida humana nos é apresentada como a alternância entre uma desolação
árida e uma luta desesperada contra forças banais, na qual contamos apenas
com nós mesmos e nossos próprios recursos.
Não obstante, a perspectiva cristã ainda é a da maioria. Ela afirma que
sejamos, cada um de nós, pessoas inteiras, e não pacotes de reações avulsas,
que podem ser submetidos à análise estatística e ser levados para além dos
limites de nossa resistência, num mundo de pernas para o ar.
No centro da perspectiva cristã sobre o indivíduo, homem ou mulher, está
o fato de que a nossa humanidade – nossa essência e valor como parte e
como todo – é estimada e protegida pelo espírito de Jesus. Com efeito, é
para restaurar essa humanidade que o exorcista se apresenta
voluntariamente em nome e com o poder de Jesus: ele se deixa fazer refém
na batalha pela humanidade de uma pessoa, assim como fez o Cristo por
cada um de nós. Essa batalha, ele a vencerá somente pela força de sua fé,
toda a fibra de sua vontade comprometida com a salvação de Jesus.
A distinção entre ser humano e humanidade é algo corrente no senso
comum. Há um consenso universal quanto à aparência e à capacidade
funcional que caracterizam o primeiro: determinada forma física, derivada
da de outro ser humano; determinadas funções (comer, dormir, andar, falar,
rir, pensar, querer, morrer), determinadas aptidões (aprender, crescer,
inventar, planejar, simpatizar); e assim por diante. Uma ou mais podem se
apresentar em estado reduzido ou mesmo estar em falta, mas, presentes em
certo número, permitem-nos descrever seu detentor como um humano.
Como demonstram alguns dos casos relatados neste livro e tantos outros
casos conhecidos, pessoas possuídas podem e, ao menos por certo tempo,
de fato desempenham com razoável eficiência suas funções no trabalho e na
vida em sociedade. Na verdade, quanto mais perfeita a possessão, menor a
sua interferência sobre o funcionamento normal em nível humano. Jay
Beedem, em quem o Padre Mark parece ter descoberto uma perfeita
possessão, era um modelo de serena eficiência.
Mas, entre essa condição de ser humano e o que, na falta de termo mais
preciso, chamamos humanidade, não hesitamos em fazer uma distinção.
Incluímos na humanidade qualidades que dizem respeito ao ser interior e
estão interconectadas a um modo exteriormente perceptível de viver e de
agir. Essas qualidades, tomadas em conjunto, perfazem uma aura
reconhecível, um cenário, uma configuração cativante e valorativa de toda a
pessoa. Em alguns de nós, a humanidade alcança uma impressionante
plenitude, e então nossa comunicação com os que nos cercam é como que
investida de uma cintilante auréola tonal. As demais pessoas sentem, na
presença desse indivíduo, um temperamento caloroso, simpático a valores
muito frágeis, mas intimamente preciosos.
A humanidade é uma graça. Não necessariamente graciosa, mas nunca
feia; não necessariamente santa – no sentido doutrinal da palavra –, mas
nunca obscena; não necessariamente sofisticada pela “alta cultura”, mas
sempre dotada de um refinamento próprio; não necessariamente dominante
ou predominante, mas indômita em si mesma. Ela faz de seu detentor um
ser humano conectado, amável para com alguns, vivaz para com todos os
outros, e sempre soberano de si mesmo; ele tem amor próprio, mas está
livre do egoísmo torpe que o cegaria quanto aos outros; ama aos outros,
mas está imune à auto-depreciação que o tornaria um escravo ou joguete
dessas mesmas pessoas.
A humanidade é sempre vista como uma qualidade variável. Às vezes
nos parece que nem todos a possuem. Alguns parecem possuí-la em
quantidade muito pequena. Todos os que a possuem apresentam-na em
diferentes graus, são irregulares e, de tempos em tempos, falham
completamente. Mesmo quando fazemos “o melhor possível” e consolamos
a nós mesmos dizendo que “dadas as circunstâncias, não poderíamos fazer
melhor”, sentimos quão melhor, quão mais aperfeiçoáveis nós somos, e
quão mais perfeitamente poderíamos agir.
Para a cristandade, a fonte da humanidade em todos os indivíduos, no
passado, no presente e no futuro, é Jesus de Nazaré. Todas as formas de
possessão, daquela parcial à perfeita, são claramente reconhecidas como um
ataque simultâneo à fonte da humanidade, Jesus, e à humanidade de um
indivíduo, homem ou mulher. A possessão de um indivíduo consiste num
processo de erosão da humanidade conferida por Jesus.
Para explicar como progride a possessão, faz-se portanto necessário
responder a algumas perguntas. O que é o Espírito do Mal em relação a
Jesus e a nós todos? Em que consiste a humanidade de Jesus? Como Jesus
confere humanidade a todos os indivíduos? Como isso se aplica a todos os
homens e mulheres que viveram historicamente antes e depois dele?
Concretamente, como os homens e mulheres comuns conquistam ou
perdem a humanidade de Jesus? E, afinal, como se erode essa humanidade
– em outras palavras, como se dá a possessão diabólica?
Algumas das grandes mentes de nossa história se colocaram e meditaram
essas perguntas. E algumas delas avançaram consideravelmente no sentido
de respondê-las – justiça seja feita, tanto quanto avançaram as mentes na
ciência no sentido de responder a questões próprias ao seu domínio.
Muito embora nossa abordagem sobre essas questões deva ser breve por
causa das limitações de espaço, não buscamos mero conforto em clichês ao
fazer a seguinte observação: o que os profetas contemporâneos e
apocalípticos modernos são capazes de fazer com essas questões parece ser,
no máximo, ignorá-las e nos recomendar que façamos o mesmo. Não há
como prová-las falsas, mas tão somente reforçar seu próprio engodo para
nos convencer disso. E, em face de seus grandiosos esforços, nada podem
fazer para reparar o dano que causam à nossa humanidade.
O espírito humano e Lúcifer
Há, na história do exorcismo, constantes referências a espíritos do mal: a
Satanás (ou Lúcifer), como cabeça ou chefe desses espíritos, e a todo um
mundo do ser habitado por eles.
Nos cinco exorcismos anteriores, esse mundo habitado por espíritos
malignos é geralmente descrito como “o Reino”. Omitida ou negada a
crença nesse mundo habitado por espíritos do mal, e a cristandade se
tornaria incompreensível. O Novo Testamento e a tradição cristã
apresentam a salvação por Jesus como uma vitória sobre a inteligência
sinistra de um ser incorpóreo, nunca como a mera sujeição de forças
materiais cegas ou simplesmente como o estabelecimento de modelos éticos
e regras de moral. E o “Reino de Deus” é sempre justaposto ao “Reino do
Mal” ou de Satanás.
Não se pode falar propriamente da “história” desses espíritos, pois que
suas existências não se restringem ao continuum de espaço-tempo em que
se inscrevem os eventos históricos. Mas deixa claro a tradição que toda a
existência e sorte desses espíritos mantêm íntima e intrincada relação com o
universo humano que habitamos.
A tradição fala de um pecado primordial de rebeldia, cometido para com
Deus por alguns desses espíritos, sob a liderança de um deles, chamado
simbolicamente de Lúcifer (“o Filho da Aurora”, indicador de qualidades
supremas) ou Satanás (indicador de seu papel como principal antagonista de
Deus). Pelo que indicam as esparsas informações contidas na Bíblia, as
menções feitas por Jesus no decorrer de sua vida e a contínua tradição
cristã, a “história geral” desses espíritos e a sua relação com Jesus e com o
nosso mundo é tal como se segue.
A decisão de Deus de criar seres inteligentes (espirituais e humanos,
livres tanto para amá-lo quanto para rejeitá-lo) ligava-se intimamente à de
tornar-se humano.
Mas, ao falarmos dessa decisão de Deus, é preciso fazer uma distinção
entre o modo como nós a compreendemos e abordamos e como Deus a
tomou e a realizou.
Nossa compreensão e abordagem dessa decisão deve se dar passo-a -
passo. Primeiro, a criação dos espíritos. A seguir, a rebelião. A seguir, a
concepção e o nascimento de Jesus. A seguir, o sacrifício e a ressurreição de
Jesus e, por conseguinte, a salvação da humanidade. E, a seguir, as vidas de
homens e mulheres acossados pelos espíritos revoltos. Temos que pensar
assim. Mas isso por uma limitação de nossa parte.
Não houve nem há passo-a-passo para Deus. Por assim dizer, Ele não
decidiu primeiro criar os espíritos e, depois de refletir um pouco, os seres
humanos e então, depois de mais reflexão, fazer-se homem. A Criação não
ocorreu como na história de Topsy. 1 Foi uma só decisão, englobando os
espíritos, os seres humanos e Deus-feito-homem; tomada fora do tempo, na
eternidade. Deus nunca esteve indeciso.
Isso significa que essa decisão foi integral em causa e efeito desde o
princípio. Sua visão do que seria feito por todos é idêntica ao que foi, é e
será feito por todos até o final de todo tempo e espaço. Essa visão foi
sempre completa. E a decisão, em cada detalhe, tomada integralmente da
eternidade em vista de cada ação, reação e resultado possível.
O pivô dessa decisão foi a escolha do próprio Deus de se fazer homem.
Como Sua própria divindade voltava-se, humanamente falando, nessa única
direção, todas as peças de Sua decisão (inclusive os espíritos) foram assim
criadas e ordenadas. Deus estava para entrar em íntimo contato com a
matéria (lugar, tempo, objetos, humanos).
Também Suas criaturas, os espíritos foram criados e ordenados de modo
a estar em íntimo contato com a matéria. O destino, os poderes, os
interesses pessoais de tais espíritos, sua própria existência, estiveram e
estarão para sempre, em seus mais profundos instintos e desdobramentos,
focados nesse universo humano, em tudo que ele contém e, sobretudo, em
Jesus, fonte do seu significado.
A tradição cristã portanto atribui a esses espíritos o papel de
intermediários. Eles eram e são incorpóreos, como Deus. Eram e são
criaturas, como os humanos. Na aplicação gradual da decisão integral de
Deus através do tempo e do espaço, e nas mentes e corações de bilhões de
seres humanos rodeados por entes materiais, foram-lhe atribuídas funções
sobre as quais só podemos conjeturar. Tais funções concerniam ao universo
humano e à decisão de Deus de tornar-se membro desse universo.
A essa altura de nosso entendimento sobre o espírito, somos como que
amparados por observações de Jesus. Ele falou uma ou duas vezes, um
tanto misteriosamente, mas com clareza sucinta, sobre a figura mais
importante em meio àqueles espíritos revoltos: Lúcifer.
Ao confrontar-se com aqueles que o assediavam pelas ruas de Jerusalém
e lhe tratavam por homem vil, Jesus vociferou: “Vós tendes como pai o
Demônio e quereis fazer os desejos de vosso pai. Ele era homicida desde o
princípio e não quis permanecer na verdade, porque a verdade não está
nele. Quando diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e
pai da mentira [grifo meu]”.
Na boca de um judeu daqueles tempos, o termo “homicida” não tinha o
caráter legal que a ele atribuímos. Tinha mais a conotação de “blasfêmia”
ou “sacrilégio”.
O segundo aspecto da revolta de Lúcifer, acrescenta Jesus, era a
falsidade. De novo, na boca de Jesus, a palavra não se referia tanto a mentir
com palavras, a lorotas, mas àquilo que chamamos “pretensão”, “trapaça”,
“falso testemunho”.
A ênfase de Jesus não deixa dúvidas. Lúcifer era e é o progenitor de toda
blasfêmia e trapaça no universo de espírito criado por Deus – a ponto de
estarem todos os trapaceiros e maiores blasfemos apenas reproduzindo o
apetite de Lúcifer por falsidade e blasfêmia. Misteriosamente, de algum
modo eles participam e incrementam a falsidade e a blasfêmia de Lúcifer.
“Vós tendes como pai o Demônio”.
Jesus acrescenta mais alguns detalhes. “Desde o princípio” parece indicar
que a revolta se deu no mesmo instante em que foi criada a inteligência de
Lúcifer. Não houve fração de sua existência em que Lúcifer optasse por
Deus. Ademais, Lúcifer é “mentiroso”. É-lhe “natural” trapacear e
blasfemar. Esses são termos secos e eficazes, usados por Jesus para
descrever o mal total – não apenas um ser que é inteiro mau, mas um ser
que é fonte de todo mal no mundo dos homens.
Com isso podemos apenas conjeturar sobre a natureza da revolta de
Lúcifer, em que o seguiram outros inúmeros espíritos. Envolveu blasfêmia e
trapaça. Concernia a Jesus como Deus e salvador da humanidade e a
homens e mulheres como participantes de sua plenitude.
Teria Lúcifer afirmado falsamente ser maior, mais nobre que o Jesus
homem? E, ao fazê-lo, teria ele, um espírito incorpóreo, o anjo supremo,
blasfemado por considerar-se maior que Jesus, que, como todo humano, era
parte espírito, parte matéria? Ele, um anjo, prestar reverência a um bebê
chorão em Belém, e a um meio-animal agonizante no Calvário?
Ou teria Lúcifer se revoltado porque ele e os outros anjos estavam
destinados a ajudar a elevar os seres humanos, transpondo o meramente
humano e material, e superando mesmo o status dos anjos, compartilhando
mesmo do convívio com Deus?
Ou teria Lúcifer rejeitado integralmente a decisão de Deus? Isto é: teria
ele rejeitado a decisão de Deus de ordenar e relacionar tudo – Seu próprio
ser e os espíritos que Ele criara – a um universo humano? E, se assim fez,
teria sido por rejeitar seu principal atributo, um universo de seres –
humanos – que necessitassem de compaixão, misericórdia, amparo e
suporte? Os espíritos haveriam de servir a essa compaixão e dar suporte à
imerecida glória daquelas criaturas.
Ou teria Lúcifer, com inteligência angélica, previsto um destino ainda
fora do nosso campo de visão – que, passadas eras de desenvolvimento, o
espaço sideral já colonizado, a raça humana progrediria e evoluiria em
espírito até um ponto desconhecido, em que homens e mulheres se veriam
livres da matéria e ainda capazes de gozar da beleza deste mundo material?
Inveja? Ambição? Orgulho? Desprezo? Só nos resta especular.
O que quer que tenha sido, Lúcifer blasfemou contra a divindade única
de Deus e levantou falso testemunho. A punição foi imediata. Fazendo clara
referência às suas memórias pessoais dessa revolta, Jesus falou do terrível
instante de degradação e castigo de Lúcifer e dos espíritos que o seguiram.
Disse: “Vi Satanás cair do céu com um raio”. De novo, temos no estilo de
Jesus uma evocação direta da brilhante inteligência de Lúcifer, clarão
repentino no límpido céu da manhã da Criação; então, o breve momento de
sua suposta glória; e, finalmente, a humilhação imediata da absoluta derrota
e rejeição de Deus, o despencar da claridade e brilho do amor, da beleza
intocável, cruzando a fronteira da felicidade para cair no poço do exílio
eterno, à margem de todo bem e de toda santidade.
No desdobrar de toda essa revolta e punição, a orientação natural de
Lúcifer e dos espíritos que com ele participaram se manteve. Estavam, por
sua própria essência, intimamente ligados ao universo humano. Não tinham
poder suficiente para se libertar disso. Seus poderes de vontade e
inteligência se preservaram. Simplesmente aquelas vontades e inteligências
se haviam deturpado pela revolta, condenando-se irrevogavelmente. Seu
amor por Deus, por Jesus e conseqüentemente pela raça humana tornou-se
ódio. Sua necessidade de agir em um universo humano e de se relacionar
com a matéria permaneceu, mas transformada em necessidade de perturbar,
de macular, de destruir, de tornar feio, de deformar.
Seu conhecimento da verdade tornou-se apenas o meio para distorcê -la.
Sua reverência tornou-se deboche e desprezo. Seus desejos amáveis
tornaram-se rudes ameaças. Toda a sua luz tornou-se uma confusa
escuridão. E seu destino primordial de ser auxiliares de Jesus se tornou um
ódio sinistro e vivaz por Jesus, por seu amor, por sua salvação e pelos
homens que a ele pertencem.
Eles estavam, em outras palavras, cada vez mais condicionados pelo
toque diabólico, essa existência ao contrário, disjunta, torpe, coberta por
enganação e falsidade que sempre detectamos na pessoa de má índole, no
mundo de guerras de um Michael Strong e no mundo assustador, às avessas,
de todo ser humano possuído.
O mais próximo que conseguimos chegar da medida da maldade de
Lúcifer está no tom daqueles que, completamente loucos, riem
descontroladamente de suas próprias desgraças – sua violência espástica,
sua imundície, sua auto-mutilação. Apiedamo-nos deles por estarem fora de
si, inconscientes de sua tragédia. Mas podemos detectar neles e em cada
largo sorriso de nosso próprio sarcasmo um eco dos próprios acentos de
Lúcifer, sua assinatura, aquele acesso de riso incontrolável e irracional de
deboche a seu estado auto-ilusório de ódio absoluto, escolhido
deliberadamente.
O “bem” e o “mal”, tal como aplicados apenas aos seres humanos,
portanto, devem nos levar a uma relação direta, diária e prática com as
influências de Jesus e de Lúcifer. Ademais, o “bem” e o “mal” aplicados
somente aos seres humanos, devem nos levar a um reconhecimento direto
de nossas próprias vontades. Pois, sejam lá quais forem os convites de
Jesus, sejam quais forem os agrados oferecidos por Lúcifer, cada um de nós
faz suas próprias escolhas, assim como Jesus, assim como Lúcifer. Nós
escolhemos.
Tendo como base aquilo que conhecemos ou conseguimos reunir acerca
de suas origens, muito do que sabemos por nossa própria experiência com
os espíritos do mal se encaixa naquilo que poderíamos esperar.
O aspecto mais notável e, para muitas mentes modernas, contraditório de
tais espíritos é que, embora eles não existam fisicamente, cada um pareça
ser um ente pessoal e inteligente. Esse é um dado constante e primário da fé
cristã no tocante a tais espíritos e é corroborado por evidências obtidas em
exorcismos.
Na psicologia moderna, os termos “personalidade” e “pessoa” têm sido
associados à consciência psicofísica. Toma-se a “personalidade” como um
complexo de atos psicofísicos (emocionar-se, ter vontade, sentir desejo,
pensar, imaginar, lembrar) e de ações externas motivadas ou influenciadas
por tais atos “internos”. Todos são quantificáveis. Uma “pessoa” é alguém
dotado de um complexo mais ou menos consistente e qualificável de tais
atos e ações.
Deste modo, uma “pessoa” de “personalidade” desequilibrada é alguém
cujo complexo de atos e ações não apresenta o tipo, a tensão ou a
freqüência normalmente observada e socialmente aceitável. É claro, não
terão o menor cabimento quaisquer considerações sobre espíritos pessoais e
incorpóreos caso aceitemos essa terminologia moderna como abrangente e
correta, já que, nessa terminologia, “pessoa” e “personalidade” são
materiais, fracionadas, dimensionais, mensuráveis e, por fim, deterioráveis.
O pensamento e a fé cristã clássicos sobre “pessoa” e “personalidade”
são muito diferentes, e ecoam a convicção natural da maior parte dos
homens e mulheres.
“Pessoa” é, no pensamento cristão, um espírito. Como tal, é indestrutível.
Pode querer e pensar. É irrestritamente responsável por aquilo que pensa,
quer e faz. E ainda é capaz de autoconsciência. No pensamento cristão,
“personalidade” é outra palavra para a individualidade total da pessoa. A
alienação ou redução desse centro interno e autoconsciente de
responsabilidade do sujeito a um punhado de divisões arbitrárias – algo
chamado “pensar”, algo chamado “querer”, algo chamado “agir” etc. – é a
loucura propriamente dita, porque esses conceitos de “pessoa” e
“personalidade” se aplicam a Deus e a espíritos incorpóreos assim como se
aplicam a seres humanos.
Em nossa condição humana, o espírito individual e pessoal se destina a
exercitar sua vontade, pensamento e todo o seu poder por meio de
atividades psicofísicas, raramente ultrapassando essa arena quantificável.
Os espíritos do mal em questão não são pessoais nesse sentido.
Incorpóreos, suas identidades individuais não dependem de uma identidade
física. O ensinamento cristão diz que eles pensam, querem, agem, são
autoconscientes e exercitam seu poder pura, simples e diretamente, sem
atividade psicofísica.
Experiências com espíritos do mal em exorcismo comprovam isso. Em
virtualmente todos os exorcismos, há um ponto crucial em que o espírito
possessor refere-se a si próprio como “eu” e “nós” alternadamente, variando
igualmente entre “meu” e “seu”. “Eu o levarei” “Somos fortes como a
morte”. “Idiota! Somos todos o mesmo”. “Há apenas um de nós”. Tudo isso
foi atirado contra Michael Strong pelo espírito em Puh Chi, em Nanquim –
“eu”, “meu”, “todos”, “um”, “nós”. Não opera aqui a individualidade em
qualquer sentido humano nem mesmo em qualquer sentido remotamente
corpóreo.
O fato de que os espíritos descritos nos exorcismos deste livro tenham
finalmente respondido a nomes (“Ajeita-Moça”, “Sorriso”, “Tartaruga” etc.)
não é indicador de identidade separada. São nomes assumidos
aparentemente em vista dos meios ou estratégias utilizadas pelos espíritos
ao possuir a pessoa em questão. Quando o Pe. Mark pressionou o
“superior” de Ponto para revelar seu nome, teve como resposta “Somos
todos do Reino”. “Homem nenhum pode saber o nome”. Quando Mark
insistiu, o espírito respondeu: “Multus, Magnum, Bruto-brutal-brutíssimo.
Setenta vezes. Legião de setenta e sete”. Os nomes que ele deu são
claramente ad hoc e, por tudo aquilo que sabemos, podem variar para o
mesmo espírito em vítimas diferentes. “Em nome de Jesus, por qual nome
você atende?” foi, nesse sentido, a pergunta crucial de Mark.
Não obstante, o comportamento dos espíritos, em infindáveis variações,
exorcismo a exorcismo, sugere alguma identidade comum, coagulante, do
tipo que, embora os unifique, os mantém distintos em suas personalidades e
faz de todos eles, com efeito, um só em responsabilidades e intenções.
A óbvia gradação de inteligência que se pode observar em diferentes
espíritos possessores está de alguma forma relacionada, íntima e
construtivamente, com a personalidade desses espíritos. O “familiar” de
Jamsie, Tio Ponto, por exemplo, era claramente menos inteligente que a
Tartaruga, possessor de Carl, ou do que Sorriso, que manteve Marianne
cativa. Os truques de Ponto não foram além de um cômico grotesco. Ele
nunca demonstrou a sutileza de Sorriso ou a sofisticação da Tartaruga. Estes
se valeram de argumentos sagazes e jogos intrincados para favorecer seus
propósitos e tinham, de modo geral, uma penetração mental que faltava a
Ponto.
Embora Ponto tenha sido extremamente submisso a seu “superior”, tanto
o Ajeita-Moça, possessor de Richard/Rita, quanto o Seu Natura, possessor
dos dois padres, David e Yves, também mostraram uma marcada deferência
para com “superiores”.
A certa altura do exorcismo de Marianne, quando Sorriso já perdia a
batalha, Pe. Peter começou a sentir a mudança no nível inteligência de seu
inimigo, quando “outro” (para usar um termo humano que evoque a idéia de
separação) espírito veio somar forças para o ataque final contra ele.
Pe. Gerald sentiu o oposto no exorcismo de Richard/Rita. À medida que
seu êxito era cada vez mais evidente, Gerald percebia que algo no mal
perdia fibra, e o exorcista, sem mais nem menos, passava a lidar com uma
inteligência inferior.
Num confronto como esse, o mais íntimo de todos, mente contra mente,
vontade contra vontade, uma mudança abrupta na inteligência do adversário
é evidente, mais ainda do que seria num confronto explícito com palavras.
Essa diferenciação de inteligência entre espíritos parece culminar na
fidelidade mais estranha e servil ao “Senhor de Todo Saber”, como
autodenominava-se Tartaruga. “Aqueles que aceitaram, aqueles que aceitam
o Reclamante querem o que ele quer”, disse o superior de Tio Ponto,
Multus, a Pe. Mark. “Apenas a vontade. A vontade do Reino. A vontade da
vontade da vontade da vontade da vontade”.
O servilismo fiel a Lúcifer por parte desses espíritos do mal só é menos
intenso do que o medo covarde e o ódio que têm por Jesus, que é livre e
descaradamente demonstrado a qualquer menção de seu nome ou visão de
coisas e pessoas a ele associadas.
Um espírito possessor, seja qual for sua habilidade e inteligência,
pronunciará repetidamente o nome de seu líder, podendo assim passar a
impressão de que obedece, teme e reconhece uma superioridade
inquestionável. No entanto, nenhum espírito do mal parece suportar o nome
de Jesus. Ele será chamado de “O Outro”, “O Último”, “Aquele”, “O
Inominável” ou de algum dentre tantos outros nomes dessa obscura
ladainha.
Do mesmo modo, nenhum espírito do mal ouvirá o nome de Jesus sem
revoltar-se. O exorcista pode fazer disso uma de suas principais armas,
tendo em vista que o espírito do mal, no afã de não ouvir mais de uma vez
as palavras da fé absoluta, “Em nome de Jesus”, ver-se-á forçado a
responder a perguntas ou dizer seu “nome”.
A curiosa qualidade unitária, quase como um coágulo, que às vezes se
acredita vislumbrar no terreno da personalidade e inteligência dos espíritos
do mal, abre-nos também uma interessante perspectiva sobre outra
constante entre espíritos – seu apego ao lugar.
De novo, a experiência deixa claro que espíritos possessores buscam
encontrar um “lar” (como dito simplisticamente por Ponto) na pessoa
possuída, mas isso nada tem a ver com a solidão e desabrigo de um espírito
em particular. Para os espíritos possessores, o “lar” ou pessoa pertence a
toda a sua “família” – a turba coagulada de espíritos do mal, encabeçada e
governada por seu líder sombrio, o “Reclamante”. É uma versão macabra
da hospitalidade de tipo “mi casa, su casa”, há muito refletida nas palavras
de Jesus: “Quando o espírito impuro sai de um homem, ei-lo errante por
lugares áridos à procura de um repouso que não acha. Diz ele, então:
‘Voltarei para a casa donde saí’. E, voltando, encontra-a vazia, limpa e
enfeitada. Vai, então, buscar sete outros espíritos piores que ele, e entram
nessa casa e se estabelecem aí”. Sete é a fórmula bíblica para expressar
qualquer multidão.
Teremos sempre muita dificuldade em compreender intelectualmente a
noção de uma personalidade ou inteligência sem cérebro, de uma voz
quando não há garganta, ou de uma bola no ar sem uma mão que a atirara.
Mas essas questões serão duplamente problemáticas enquanto prevalecer a
mentalidade moderna, com sua insistência sobre a materialidade de tudo o
que existe.
De modo geral, por exemplo, aborrece-nos a impossibilidade de falar
sobre esses espíritos como se tivessem gênero, sexualidade ou
individualidade idêntica à dos seres humanos. Individualidade por si só é
um problema terrível para a sociedade da era digital. A identidade, para nós,
está sempre ligada à separação física. Se contamos 217 milhões de
americanos nos Estados Unidos, queremos dizer 217 milhões de corpos
separados e, portanto, distintos.
No entanto, pelo que sabemos, parece óbvio que tentar contar ou estimar
um número de espíritos com base na separação corporal não nos levará
muito longe e que, ao negar a existência de espíritos por conta de eles não
se prontificarem a (literalmente) “levantar a mão e esperar sua vez”,
aparentemente não os impressionamos.
Mesmo que superássemos todas essas dificuldades e então pudéssemos
começar a pensar nas identidades dessas criaturas incorpóreas, haveria
outro problema. Tendemos a pensar nas bizarrices e na violência dos
exorcismos como sendo de algum modo o espírito do mal. Em nossa
compreensível fascinação pelos gritos e objetos voadores, pelos odores,
pelo papel de parede rasgado e pelas portas batendo, tendemos a tomar
esses eventos como o próprio espírito. Isso é mais ou menos como
confundir a bola de beisebol com o lançador.
As melhores tentativas de se descobrir a identidade dos espíritos
individuais parecem se basear em sua característica mais marcante: a
curiosa e inconstante hierarquia de inteligência e força de vontade que liga
o mais reles “familiar” a Lúcifer em pessoa.
Por causa dessas diferenças de inteligência e vontade, os espíritos se
diferenciam em suas atividades. Unificam-se, como dissemos, em suas
responsabilidades e intenções. Subordinam-se, sempre, à “vontade da
vontade da vontade da vontade da vontade”. Suas atividades – o modo
como agem – parecem, no entanto, diretamente ligadas a níveis distintos de
inteligência e às diferentes potências de suas vontades concentradas.
Tal diferença em atividade se comprova dramaticamente através dos
cincos casos relatados neste livro. Em cada um se verifica a inclinação ou
falta de sutileza, o grau de inteligência predatória sendo posta a prova, e o
grau de resistência da vontade que contenda com o exorcista.
Paulo de Tarso se referia a esse tipo de diferenciação quando adotou
conceitos e terminologia dos gnósticos alexandrinos e teósofos, falando de
“poderes”, “principados”, “tronos”, “domínios” e, de novo, ao se valer de
termos bíblicos como “querubim” e “serafim”.
Toda essa informação, obtida às custas de sofrimento, detalhada e
complementada ao longo de anos de experiência no oferecer-se a si mesmo
como refém, é de sumo interesse aos exorcistas. Mas, o fato mais
importante sobre os espíritos do mal consiste em que nenhuma de suas
faculdades ou poderes sejam divinos. Os espíritos do mal estão
permanentemente banidos da vida de Deus, bem como da visão de Sua
verdade.
Seu conhecimento e previdência se baseiam, portanto, apenas no que
podem saber por sua inteligência inata. Não se trata, com efeito, de seres
sobrenaturais, mas de seres meramente preternaturais. 2
Na acepção tradicional, “sobrenatural” significa divino: de Deus. O
sobrenatural é, portanto, totalmente separado, superior e independente em
relação ao que é criação – ou, nesse sentido, ao que é “natural”.
Apenas Deus é propriamente sobrenatural. Ele pode agir com poder
sobrenatural sobre todas as coisas e seres “naturais” (isto é, criados por
Ele). Ele pode transmitir sua vida e poder sobrenaturais e, assim, elevar
toda a criação. Mas a distinção entre o que é criação e o que é sobrenatural
sempre permanece.
O poder sobrenatural pode afetar tudo o que esteja à disposição do
preternatural, mas com a diferença essencial de que pode, ao contrário dos
espíritos do mal, desconsiderar os modos naturais de operação. O
sobrenatural pode agir diretamente no espírito. Não precisa passar pelos
sentidos ou pelos poderes internos da imaginação, do raciocínio e da
vontade para atingir a alma de um ser humano.
Somente Deus e aqueles que participam de Seu poder sobrenatural são
capazes disso.
O poder preternatural é superior ao poder humano em suas habilidades.
Isto quer dizer que os espíritos do mal, por conta do poder preternatural,
não se sujeitam às leis da natureza e da matéria que governam todo o
exercício de nosso poder humano nas ordens física e psíquica. Parecem, no
entanto, estar sujeitos a outras leis da natureza (por serem também
criaturas), para além das quais não exercem qualquer poder.
Não sabemos de toda a extensão do poder preternatural, mas
conhecemos, sim, algumas de suas habilidades e limitações.
Por causa do poder preternatural, os espíritos do mal são capazes de
manipular fenômenos e produzir estados psíquicos, ou seja, dispõem de
poderes psíquicos. Tais capacidades (telecinésia, telepatia, viagem astral,
bilocação, premonição etc.) não configuram por si só o preternatural (assim
como a bola de beisebol não configura por si só o lançador), nem muito
menos o sobrenatural.
Os espíritos do mal são portanto capazes de provocar efeitos fascinantes
no campo de nossa percepção e comportamento. Podem não ser e
provavelmente não são responsáveis por todos os fenômenos psíquicos. No
entanto, mais que peritos em tais manobras, são capazes de instigar a
imaginação humana por meio de uma admirável paleta de engodos. Carl,
que quase perdeu a sanidade e a vida nesse campo de batalha, disse em
carta a seus ex-alunos que nunca chegou a dominar a viagem astral ou a
bilocação, “mas apenas um simulacro delas”; e que estava consciente de
serem apenas ilusões. Mas estava fascinado demais para admitir essa
realidade, e a guardou num canto longínquo de sua consciência.
O ponto é que o Espírito do Mal pode nos excitar e atrair pelos sentidos e
pela imaginação com imagens psíquicas maravilhosas, tão facilmente
quanto com imagens de sexo ou ouro. Qualquer uma funciona. Ele é
incapaz, porém, de produzir em nós algo que já não estivesse ali atualizado
ou em potência.
Deus pode, por exemplo, “conceder-nos” graça, a qual não provém de
nós mesmos. O Espírito do Mal pode agir somente sobre o que encontra e
apenas dentro dos limites de seu conhecimento.
O poder preternatural não permite aos espíritos do mal controlar ou
interferir diretamente no comportamento moral dos seres humanos, por
exemplo. Eles podem produzir uma pilha de moedas de ouro por qualquer
um dentre muitos meios psíquicos e a qualquer momento, mas não
poderiam forçar uma pessoa a aceitá-las. Não podem interferir em nossa
liberdade de escolher ou rejeitar, porque essa liberdade é concedida e
garantida pelo divino.
A inferioridade do poder preternatural dos espíritos do mal ante o poder
sobrenatural de Jesus é clara e definitiva em muitos de seus efeitos. Há uma
opacidade que refreia e até mesmo detém o Espírito do Mal – sua
capacidade de agir e conhecer – por onde quer que passe o poder
sobrenatural de Jesus, por onde quer que se tenha optado por Jesus, por
onde quer que o sobrenatural envolva os objetos, lugares e pessoas.
Um desses efeitos é o poder dos símbolos do sobrenatural (um crucifixo
por exemplo): eles podem proteger o bem e repelir ou controlar o mal.
Objetos usados ou intimamente associados ao culto (água benta), exorcistas,
qualquer pessoa em estado de graça sobrenatural (um exorcista-assistente
absolvido de seus pecados), até mesmo casas, áreas inteiras têm sua
essência protegida da atividade desenfreada do Espírito do Mal. Assim, essa
limitação do preternatural, e por conseguinte do Espírito do Mal, atinge
outra importante esfera, porquanto o alcance de seu conhecimento acaba
severamente limitado. Um espírito do mal não pode, por exemplo, prever e
se antecipar à intenções de um exorcista que aja em nome e com a
autoridade de Jesus.
Quando Pe. Gerald deu um passo além da proteção de Jesus para
confrontar o Ajeita-Moça em seu próprio nome, foi de imediato atacado
terrivelmente, tanto física quanto emocionalmente. Mas, mesmo com todo o
sangue, dor e horror, não houve vitória da parte do Ajeita-Moça. O espírito
não foi capaz de atingir a mente ou a alma de Gerald. A vontade de Gerald
se manteve firme. Todos os esforços do Ajeita-Moça foram precisamente no
sentido de afetar a mente, a vontade e, em última instância, a alma de
Gerald – a qual o possessor não podia acessar diretamente. O Ajeita-Moça
falhou e, ao falhar, passou para a defensiva. Richard/Rita estava finalmente
livre para fazer sua escolha entre o bem e o mal.
Espíritos do mal têm o poder de saber sem pensar, de lembrar do quanto
lhes seja possível da eternidade e de usar esse conhecimento para
influenciar, bajular, amedrontar e afetar por outras vias as mentes e
corações de homens e mulheres, para que desertem o plano de Deus e
somem seus esforços na revolta contra o bem. Seu conhecimento diz
respeito a toda ocasião em que uma escolha é feita em detrimento do
sobrenatural. Ao gritar os pecados dos presentes durante um exorcismo,
eles estão tocando o limite daquilo que seu poder natural lhes permite.
Por fim, aqueles que são escolhidos como alvo de uma possessão têm
algumas possibilidades quanto a seu destino. Eles podem se submeter mas
retratar-se rapidamente; podem também se deixar envolver em grau muito
profundo, só se libertando com grande dor e risco; ou podem então ser
completamente – perfeitamente – possuídos. Permanece de todo incerto, no
entanto, por que a uma pessoa e não a outra se destina um ataque tão direto
e obstinado.
Tio Ponto disse a Jamsie, quando seguiam por uma estrada perto de São
Francisco: “Todas aquelas casas lá em cima... Eu não sou bem-vindo por lá,
apesar de toda a bebedeira, da putaria e do desespero deles”.
Mas por que não? Seria porque aquelas pessoas – tal como Jamsie, Carl,
Marianne, David, Yves e Richard/Rita – haviam também sido “convidadas”
e, a despeito de todas as suas pequenas escolhas pelo mal, recusaram o
convite final? Qualquer pessoa é um alvo em potencial? São apenas alguns
os “escolhidos” para receber o “convite”? Não há como ter certeza.

1 Topsy é personagem do livro Uncle Tom’s Cabin, de Hariet Beecher Stowe. Menina sem pai nem
mãe que “simplesmente cresceu”, “sem que ninguém notasse” – NT.
2 Entenda-se, aqui, preternatural enquanto algo para além da natureza. O sobrenatural extrapolará
igualmente essa mesma natureza, mas em sentido necessariamente ascendente, ou seja, divino – NT.
O espírito humano e Jesus
O Espírito do Mal visa a atacar e destruir a humanidade de cada ser
humano. Essa humanidade não é uma condição uma física, nem psicofísica,
mas uma capacidade espiritual concedida a cada homem, mulher e criança.
É tão somente essa capacidade que nos permite acreditar em Deus e
alcançar a felicidade eterna em nossa condição pós-morte. Somente por essa
capacidade percebemos a beleza e a verdade no universo humano e assim
tornamo-nos capazes de reproduzi-las em nossas ações e produções. A
possessão diabólica anula essa capacidade.
A razão de termos essa capacidade espiritual é Jesus de Nazaré. Até onde
se pode calcular, ele viveu como homem por não mais de 50 anos. Mas
todos os seus feitos se realizaram enquanto Deus feito homem. Esses feitos
são portanto atemporais e afetam tanto os primeiros de nossa espécie quanto
todos os outros seres humanos até o final dos tempos. Cada homem e
mulher, cada ser humano já concebido sempre teve, tem e terá essa
capacidade espiritual possibilitada por Jesus. Desta forma, somos todos
capazes de ser humanos.
Sabemos dessa humanidade tão somente pela vida mortal de Jesus. À
medida que vivemos, sabemos apenas que, sozinhos, ficamos cada vez mais
desamparados em todos os sentidos, que o amor humano que tanto
desejamos parece tornar-se algo vão e frágil, e que todos nós, com todas as
nossas aspirações e esperanças, havemos de acabar na escuridão silenciosa,
no segredo entorpecedor da morte. Jesus superou o desamparo e aceitou o
amor humano. E morreu bem. Dessa tríade de desamparo, amor e morte
depende toda humanidade.
Experimentando cada um desses três componentes, e pelo modo como
ele encarou os respectivos desafios (eis seu mistério central), Jesus tornou
possível a qualquer outro ser humano responder bem às mesmas provações
no desenvolvimento da humanidade individual. Tal foi o instrumento com
que Deus permitiu desde o princípio que criaturas ordinárias, presas aos
seus corpos físicos, superassem suas patentes limitações de tempo e
corporeidade e partilhassem, cada uma, da vida sobrenatural. Isso requer
não só o desejo, mas a participação, a ação efetiva, a escolha – em suma, a
vontade – de cada um, assim como foi com Jesus.
Embora não haja dúvidas quanto a Jesus ter passado a vida aperfeiçoando
sua humanidade, vemos que os registros históricos condensam os passos
definitivos de sua conquista nas semanas anteriores a sua execução. As
variações entre os diferentes escritos nos levam a estimar o período crucial
em torno de quatro semanas, conquanto seja perfeitamente possível que
todos tenham se dado na última semana de sua vida.
Em nenhum outro ponto do Evangelho a vitória de Jesus sobre o
desamparo se faz tão clara quanto na ressurreição de seu amigo Lázaro
dentre os mortos.
Jesus demonstrou ao longo de toda a sua vida, tal como registrada,
exercer constante domínio sobre pessoas, eventos e coisas. Nunca houve em
suas ações qualquer vacilo ou hesitação. Ele agia em seu próprio nome,
com uma autoridade que jamais cheirava a autoritarismo ou arrogância,
mas, ao mesmo tempo, não dava margem à negação. “Amém! Amém! Eu
vos digo”. Sempre resoluto. Dava comando a homens e mulheres, a
espíritos do mal, a amigos e inimigos, aos elementos. Quando confrontado
com indivíduos comuns ou autoridades públicas, seu comportamento era
sempre o mesmo: ele não reconhecia ninguém como superior a ele mesmo;
exaltava, admoestava e condenava conforme lhe parecia adequado, nunca
recuava diante de ninguém. Ninguém era seu mestre, ninguém maior do que
ele.
Sempre que operasse milagres ou ditasse a alguém o que fazer, suas
palavras eram claras, concisas, supremamente seguras e diretas: “Deixa este
homem”. “Esteja limpo!”. “Levante-te e anda!”. “Mostra-te aos
sacerdotes!”. “Esteja curado!”. “Fica de pé e anda!”. “Escuta!”. Foi apenas
na ressureição de Lázaro que Jesus veio a demonstrar dependência,
insegurança, dúvida – só ali ele se reconheceu desamparado.
Ao túmulo de Lázaro, como nos mostra a Bíblia, Jesus experimentou
uma torrente de desamparo. Seu comportamento ante o chamado de Marta e
Maria, irmãs de Lázaro, foi, com efeito, tão atípico que se poderia
considerar indeciso. Era como se ele estivesse à espera, como se vivesse um
lapso de incerteza e apreensão que nós, humanos, chamados de dúvida.
Primeiro, declarou abertamente que “o fim da enfermidade de Lázaro não é
a morte”. Depois, que “nosso amigo Lázaro está dormindo, mas devo ir e
acordá-lo”. Finalmente, que “Lázaro está morto”. E então passou mais dois
dias viajando.
Ao chegar a Betânia – onde ficavam as propriedades de Lázaro, Marta e
Maria –, Jesus encontrou o amigo já sepultado e, desde logo, portouse de
maneira nada usual. Ele estava agoniado e, ao encontrar as irmãs aos
prantos, suspirou e chorou às abertas. Diante da tumba, ele declarou
publicamente confiar e depender pessoalmente de Deus – algo que,
aparentemente, se lhe revelou necessário naquele momento.
Disse em voz alta, olhando para o céu: “Pai! Agradeço-te porque me
ouviste. Sei bem que sempre me ouves, mas falo por causa das pessoas que
me rodeiam, para que creiam que tu me enviaste”.
Só podemos imaginar o sofrimento de Jesus, ainda que por comparação
com nossa própria sorte. Ele, que nunca hesitara, hesitou. Ele, que
comandava em seu próprio nome, teve de esperar por aprovação. É possível
que momentos assim já tivessem ocorrido na vida de Jesus, mas a
experiência diante da tumba de Lázaro é o único registro que temos em que
o exercício do poder divino na ordem humana não lhe foi concedido sem
um breve, porém intenso, desamparo.
A ressureição de Lázaro ofereceu a Jesus, sem prejuízo para sua
divindade e tão somente em prol da conquista de sua humanidade, o cume
humano dos medos e das probabilidades. Ele tinha naquele momento as
mesmas alternativas que todos temos em certos momentos cruciais ao longo
da vida. Uma delas nos diz: “fique com seus medos, com as probabilidades.
Fique com sua impotência. Aceite-as. É assim que as coisas são. É a vida”.
A outra diz: “assuma o seu desamparo, sua incapacidade, e peça ajuda para
transcendê-los. Diga: ‘estou desamparado. Ajude-me! Incerto que estou,
ajude-me a ter certeza!’”.
O segundo elemento-chave da plena humanidade de Jesus, garantido
como uma capacidade em cada um de nós que o escolhemos, é o amor
humano: sua aceitação, sua candura, sua celebração, sua partilha.
À primeira vista, é como se não houvesse quem fosse incapaz de amar
humanamente, como se isso configurasse uma “segunda natureza”. Diz a
experiência, no entanto, que tão difícil quanto amar é ser amado, pois o
amor humano nunca tem a ver com conceitos lógicos ou cruzamento de
dados. Não implica intencionalidade. Nunca é um quid pro quo controlado.
O exercício do amor envolve aqueles que se amam numa atmosfera
transcendental em que, não obstante permaneça a distinção entre
indivíduos, não se enfatiza um mais que outro.
O exorcista de Richard/Rita, Pe Gerald, chegou a uma fúlgida verdade
sobre o amor humano em sua lida com o espírito do mal, cujo método de
desumanização era a própria degradação do amor. Na longa conversa que
tivemos passeando em seu jardim, meses antes de morrer, Gerald esboçou-a
para mim: que a nossa necessidade de sexualidade no amor resulta de não
possuirmos Deus – o amor em si –, e que a sexualidade só é enobrecedora e
humanamente válida enquanto um esforço e uma expressão do amor que
queremos alcançar.
Nossa dificuldade reside em nossa incapacidade de imaginar uma relação
amorosa, íntima e pessoal entre homem e mulher que não se baseie nem se
expresse finalmente em sexo. Mas essa é uma limitação da nossa
perspectiva, não uma deficiência em Jesus.
Jesus, que é Deus, não precisou do veículo da sexualidade, como também
não precisaram aqueles que o amavam. Mas quem pode duvidar do amor
tátil e caloroso daquela Maria que derramou sobre seus pés “uma libra de
bálsamo de nardo puro” e os enxugou com os longos cabelos? Seu próprio
gesto implicava uma afeição carinhosa por Jesus, acompanhada da
convicção de que ele entenderia, aceitaria e, a seu modo, retribuiria o que
quer que fizesse. Plena do poder que o amor confere, ela cativou os
convidados ao redor com a solenidade do amor expresso, tão certamente
como o perfume do bálsamo que enchia “toda a casa”, como nos diz a
Bíblia.
Essa é a única ocasião de que se tem registro de uma mulher que tenha
ofertado a Jesus a beleza e a doçura íntima do amor humano, e Jesus tenha
feito questão de recebê-lo. “Deixa-a!”, disse ao queixoso Judas Iscariotes.
Jesus sabia que o amor e a beleza humanos eram a própria santificação, por
serem graças tangíveis, concedidas apenas por Deus. Insistiu, portanto, em
recebê-las – despojadas de tudo, exceto da graça que lhes é inerente.
A Bíblia deixa claro que, durante os últimos dias, enquanto esperava pela
Páscoa, Jesus esteve freqüentemente em companhia da família de Lázaro,
Marta e Maria. Fica a cargo de nossa imaginação o retrato de suas horas em
comunhão, da alegria de estar entre amigos e de seu objeto de amor em
comum, das conversas leves e interessantes que tiveram, da proximidade,
do entusiasmo, da celebração de seus corações em unidade e da ternura da
total aceitação.
Provando de tal amor, Jesus, como ensina o cristianismo, tornou-o
possível a cada um de nós. Humanamente possível. Se o escolhermos.
É fundamental, para uma compreensão cristã do fato de Jesus ter
alcançado a plena humanidade, vermos que, ao superar o desamparo,
aceitando o amor humano, ele estivesse preparando sua alma para a vitória,
não sobre o mero falecimento, mas sobre a morte.
Pois só lhe foi possível vencer o desamparo porque ele confiara e contara
com o poder de Deus, porque depositara suas esperanças em algo para além
de seu domínio humano. E se ele consentiu em amar e ser amado, foi
porque reconhecera e aceitara a garantia divina de que todo amor humano,
não obstantes seu páthos e sua fraqueza, poderia tornarse eterno e divino.
Em outras palavras, para ser humanamente vitorioso nessas três
circunstâncias, Jesus confiou no mais-que-humano, naquilo que instância
humana alguma poderia lhe dizer ou fazer.
Morrer era, para Jesus – como é para nós – a última e única certeza. Nem
ele próprio escapou à morte, nem permitiu a qualquer outro ser humano,
inclusive sua mãe, que o fizesse.
A morte se apresentava a Jesus como se em duas cores opostas. De um
lado, seu receio natural e a morte como o mal sumário, algo que daria fim a
sua integridade humana. De outro, a devoção ao propósito de sua vida,
realizável apenas pela morte.
Misteriosamente, Jesus foi feito para sofrer do mesmo medo agonizante
de morrer que todo humano tem por natureza. A idéia da morte o
entristecia, quase o perturbava, mesmo muito antes da chegada de sua hora.
“Um de vós há de me trair”, revelou a seus seguidores à ceia privada.
“Então não pudestes vigiar um hora comigo?”, queixou-se aos três
companheiros que haviam adormecido. “Afasta de mim esse cálice”, orou
no Jardim de Getsêmani enquanto tremia e suava, prostrado, em absoluta
apreensão e aversão diante da idéia de sua morte.
Confrontando-se com Judas, com seus captores, com Caifás, Pilatos,
Herodes, o bom ladrão, a mulher de Jerusalém, com Pedro ou com sua mãe,
Jesus esteve sempre no comando. Ele estava claramente consciente.
Guardava-se firme em sua missão.
Apenas a mão negra e as impiedosas redes da morte assustavam Jesus,
pois, para romper as amarras da própria humanidade, ele deveria cumprir
sua missão sob a identidade de homem. “Meu Deus! Meu Deus! Por que me
abandonaste?”. Nada de queixa. Trata-se simplesmente de uma exclamação
humana, feita no auge da tortura. Pela primeira vez, uma névoa
entorpecedora lhe enegrecia e embotava cada ato psicofísico. Ele não
enxergava mais, nem ouvia muito bem. Ia perdendo o controle sobre a
imaginação. Sua memória funcionava aos estalos até que se apagou.
Ao passar por tudo isso, ele deixou de existir fisicamente, preservando
sua esperança e sua fé. “Pai! Em tuas mãos entrego meu espírito”. Todas as
suas faculdades corporais – memória, imaginação, sentimentos, sensações –
estavam então comprimidas sob o peso da dor. Ele já não conseguia
respirar. Seu coração doía pelo esforço que fazia, até que parou de bater.
Não havia mais sangue em seu cérebro. A breve deslocação que
denominamos, de forma curta e grossa, morte, o arrebatou.
Jesus não nos contou sobre a agonia física diante desse enorme impacto,
de quando ele perdeu a audição, a visão, o paladar; de como, num piscar de
olhos, o próprio humano que ele fora até então passou a uma outra
dimensão, em que tudo era claro, onde não havia mais dúvidas, onde estava
livre de doenças materiais, onde sua alma humana existia na perfeita
harmonia de Deus. Morreu, como há de ser com todo ser humano. E
sobreviveu em espírito, como há de ser com todo ser humano, agora, por
causa de Jesus.
Na condição de primeiro ser humano a morrer perfeitamente, Jesus tinha
de se levantar dos mortos. Tinha de viver de novo como um ser humano.
Sua morte e seu retorno à vida, ambos em corpo, são duas fases do um
mesmo ato integral. O que os cristãos chamam desde sempre de
Ressurreição não implica, portanto, apenas viver de novo, mas também
falecer e sobreviver à morte física.
A mensagem de Jesus está clara nos relatos bíblicos da Ressurreição: não
apenas aceitem que sobrevivi à morte, pois essa não é uma idéia cristã.
Acreditem que transformei a sua morte, fazendo dela uma via à ressurreição,
à ascensão e à entrada de cada homem e mulher no Reino de Deus. Por isso
as testemunhas de sua Ressurreição não deram mais atenção à aparência do
seu corpo ou às marcas da morte do que à sua pessoa, sua identidade e sua
presença.
A verdadeira salvação de nossa miséria humana, portanto, implica não
somente que se nos tenha tornado possível viver para sempre, mas também
que conheçamos e persigamos esse objetivo de modo a podermos extrapolar
tempo e espaço. Devemos saber disso com absoluta segurança. E tal
segurança chama-se fé.
Jesus fez com que nosso ato de acreditar nos possibilitasse um
conhecimento dele, Jesus, e de nossa salvação; e que, por esse ato de fé,
escapássemos do confinamento em nosso mundo material e em nossa
própria consciência. E também fez com que, tão logo consentíssemos em
crer, fluísse tranqüila a certeza quanto a cada indivíduo enquanto homem,
enquanto mulher, e quanto a Deus enquanto pai, salvador e fonte de alegria
eterna.
Porque Jesus alcançou a plena humanidade no que se refere ao
desamparo, amor e morte, cada um de nós é capaz de superar o desamparo,
de alcançar o amor genuíno e de viver para sempre. Essa é a capacidade
que Jesus conquistou para cada indivíduo, capacidade que estabelece as
linhas mais gerais do que seja a humanidade, existente em potência em cada
um de nós. Nesse enorme quadro estão pintados todos os detalhes menores
daquilo que podemos realizar em nossa humanidade individual.
Essa capacidade, nosso potencial de humanidade, coloca cada homem e
mulher em relação direta com Jesus. Não se trata apenas de medirmos por
ele nossa aspiração, nosso amor e nossa morte, nem de recebermos de suas
mãos doses de força para que o imitemos – no mesmo sentido em que,
consciente ou inconscientemente, imitamos heróis, heroínas, ídolos e ideais.
Jesus não nos ajuda do mesmo modo que por vezes dizemos que tal ou qual
palavra inspiradora de um grande homem ou mulher nos ajudou.
Trata-se de uma relação muito mais íntima. Se escolhemos aspirar e amar
e morrer na esperança de viver, então nossa aspiração, nosso amor e nossa
morte são a aspiração, o amor e a morte logrados por Jesus tão
perfeitamente, de uma vez por todas e por todos os seres humanos. Quando
escolhemos alcançar essa humanidade, estabelece-se entre a nossa própria
humanidade e aquela alcançada por Jesus um paradigma de identidade.
Não uma identidade física, mas uma assimilação em espírito. A capacidade
limitada de cada mortal se torna uma pequena participação na plenitude
divina e no transbordamento do espírito divino de Jesus. Cada indivíduo se
destina a tornar-se “Jesus” em algum grau: a ser alguém provido da
humanidade de Jesus.
Era essa a função primordial de Jesus que Paulo de Tarso sintetizava ao
referir-se ao antigo mito judaico de Adão, o “primeiro homem” ou “cabeça
da raça humana” no tocante à geração física e derivação biológica. Paulo
chamou Jesus de “segundo Adão” e “cabeça de todos os homens e
mulheres” quanto ao ser espiritual. Cada um deles se torna, na linguagem
clássica da devoção e fé cristãs, um alter Christus, um outro Jesus,
integrando-se à plenitude do bem que Deus previu e permitiu a nosso
universo humano.
Para os cristãos, tudo isso é assim porque Jesus é Deus feito homem.
Todos os seus atos humanos, ele os praticou enquanto Deus; seu valor e
significado se inscrevem na eternidade e total perfeição de Deus. Seu
primado nessa eternidade lhe assegura a ubiqüidade, a prioridade sobre
todos os quadros da história humana no eixo do espaço-tempo. Ainda que,
como homem, ele tenha vivido em lugar e tempo determinados, Jesus
coexistiu e coexiste em humanidade com todos os seres humanos, sendo
fonte e garantia de toda e qualquer humanidade que cada um de nós venha a
conquistar.
Mesmo assim, Jesus foi também um mortal, um judeu que viveu por
certo tempo na Palestina e arredores, que tinha seus limites de pensamento,
cultura e experiência da vida. Não pôde, enquanto mortal, despertar toda a
humanidade possível, em seus bilhões de indivíduos separados por
ambiente, idioma, cultura, gênero e civilização. Para tanto, Deus escolheu
necessitar da participação de homens e mulheres.
Jesus é, portanto, para os cristãos, a chave para a plenitude de nossa
humanidade, por tê-la conquistado para nós em potência. Essa plenitude
deve se atualizar em cada homem e mulher, e só pode ser alcançada por
meio da escolha individual entre o bem e o mal, nas ações pessoais tomadas
por cada um; e isso, quer tenhamos ouvido falar de Jesus, quer não.
E a chave para a plenitude do mal (o que nega, trucida a humanidade e
antagoniza o plano de Deus) é Lúcifer, o anjo de luz que escolheu
livremente separar-se de Deus, mas, por ser Sua criatura, não pôde separar-
se do universo humano.
O processo de possessão
Nunca saberemos em detalhe como os espíritos do mal selecionam um alvo
específico para a possessão, ou como procedem de início em sua sinistra
tarefa. “Quando foi que você começou a se ocupar de Jamsie?”, perguntou
Pe. Mark ao superior de Ponto. “Ele foi escolhido antes de nascer”, foi a
resposta aterradora.
Podemos, no entanto, traçar em linhas gerais como se dá a possessão e
esboçar os estágios de desenvolvimentos e completude da possessão em
uma vítima.
Em vista dos cinco casos deste livro e de inúmeros outros, é justo dizer
que o verdadeiro processo de possessão geralmente se inicia muito antes de
o alvo ou seus pares o perceberem. Nos casos aqui relatados, os primeiros
contornos do “convite” remontam à infância. A exceção é o caso dos dois
padres, Yves e David, no qual vemos os primeiros sinais do ataque
diabólico somente em sua vida adulta.
Geralmente, os princípios da possessão só se rastreiam depois do fato
consumado, na memória da única pessoa que pode nos contar sobre eles – o
possuído. Às vezes, durante um exorcismo propriamente dito, o exorcista
pode extrair do espírito possessor detalhes explícitos sobre a entrada do
Espírito Maligno e a efetivação da possessão. Pe. Mark, em especial –
comparado aos outros exorcistas deste livro – acreditava fortemente no
esforço de arrancar tais informações. É, talvez, por conta disso que temos a
impressão de que Mark tinha um grande “tino” para a lida com espíritos do
mal e com o exorcismo. Ficou claro que ele havia compreendido
consideravelmente e em detalhes o impasse de Jamsie, e isso com base em
uma única e longa entrevista, anterior em quase dois anos ao chamado que
o levaria a realizar o exorcismo desse mesmo caso. Mas Pe. Conor, que
tanto ensinou ao Pe. Peter durante seus meses em Roma, ainda é, dentre os
exorcistas que conheço, quem demonstrou mais ampla compreensão sobre
os estágios e riscos do real processo de possessão e do exorcismo. O que
temos abaixo é um esquema geral do processo de possessão tal como
descrito por Conor.
Primeiro, o ponto de entrada propriamente dito. É o ponto em que o
Espírito Maligno penetra um indivíduo, e uma decisão tomada pela vítima,
por mais tênue que seja, permite que o espírito entre.
Vem a seguir um estágio de juízos equivocados em matérias vitais,
resultado direto da presença do espírito possessor e aparente preparativo do
próximo estágio.
Terceiro, a rendição voluntária do possuído a uma força ou presença tida
claramente como estranha a ele mesmo, resultante da perda do controle
sobre sua vontade e, conseqüentemente, sobre suas decisões e ações.
Assegurado o terceiro estágio, o controle continua a se estender e pode
vir a atingir a completude – a possessão perfeita.
Esses quatro estágios se intersecionam e se sobrepõem diferentemente
em cada caso individual. E, embora possa se dar rapidamente, o processo
geralmente parece levar anos para se completar. “Nós temos a eternidade do
Senhor do Conhecimento”, disse a Tartaruga a Hearty, arrogantemente.
A cada novo passo e em cada momento da possessão, é necessário o
consentimento da vítima. Do contrário, a possessão não tem sucesso. O
consentimento pode ser verbal, mas sempre envolve liberdade de ação e,
uma vez dado o consentimento inicial, fica cada vez mais difícil de
retroagir. No caso de Jamsie, intensas dores físicas o acometiam sempre que
ele pensava em se livrar de Ponto. Carl, quando hesitava, era ameaçado com
imagens vívidas de sua própria extinção. Mas qualquer que seja a dor ou
ameaça, será deflagrada como um meio de preservar o consentimento do
possuído para a continuidade do poder e a presença do espírito
preternatural.
Mais do que sinais do grande poder dos espíritos preternaturais, essas
ameaças são evidências de suas limitações, pois que não podem atacar ou
assumir o controle sobre a vontade diretamente. Podem operar apenas sobre
os sentidos (a dor de Jamsie) ou sobre a imaginação (o medo de Carl foi
gerado por um ataque em sua imaginação) para assegurar a continuidade do
elemento mais básico da possessão humana: o consentimento voluntário da
vítima.
O primeiro estágio, a própria entrada do espírito do mal e o princípio de
sua influência pessoal por dentro de uma pessoa, parece sempre se dar por
meio de um traço de caráter, interesse pessoal ou hábito da vítima, o qual
seja conhecido pelo espírito do mal.
Foi o caráter obstinado de Marianne que parece tê-la colocado em
posição de receber o convite. Assim se deu também com o incomum gosto
pela feminilidade de Richard/Rita, a solidão de Jamsie, os dotes físicos de
Carl, o intelectualismo de David, os instintos estéticos, o carisma e a
vocação sacerdotal de Yves. Em todos esses casos, a entrada se deu pelo
conhecimento desses traços e interesses – nem bons nem maus em si
próprios, ou por si mesmos – e por um apelo sagaz e especialmente
relacionado a eles.
Todos os exorcizados aqui mencionados admitem, ao olhar em
retrospecto, que sabiam – de modo vago (como Marianne) ou explícito
(como Carl) – que a ajuda oferecida não vinha de um ser humano, nem de
uma fonte religiosa. Essa fonte era sempre vaga, sempre reconfortante. Ela
sempre os alienava daquilo que os cercava e de quem os cercava. O
sentimento geral era de que “coisas boas poderiam acontecer” (Yves), ou de
que eles “se desenvolveriam ainda mais” (Richard/Rita), ou de que teriam
“sucesso” (David) se “dessem ouvidos” (Jamsie), “pensassem de um tal
modo” (Marianne) ou “aguardassem” (Carl). Parece nunca ter havido nesse
estágio inicial uma clara sugestão contra a religião ou a fé religiosa. Chega
um momento em que cada pessoa escolhe considerar a oferta que lhe foi
feita. Os exorcizados destes relatos concordam, todos, quanto a terem feito
tal escolha e então se sentido como que violando suas próprias
consciências, embora, no momento mesmo e em alguns casos, aquela
parecesse uma violação insignificante.
Também lugares, objetos e mesmo animais são usados para despertar a
atenção e o interesse da vítima (neste livro, Jamsie é um exemplo notável;
também Carl, em estágio mais adiantado do processo e de um outro modo.
E, também de uma maneira, Richard/Rita). No entanto, mesmo quando o
ataque demoníaco se inicia com alguma ação ou com objetos, lugares ou
animais, o alvo é, em última instância, um ser humano: impressioná-los,
assustá-los, subjugá-los, fasciná-los, operar sobre seus sentidos e
imaginação de modo a finalmente arrancar-lhes o consentimento.
Dado o consentimento inicial, segue-se um período em que a vítima faz
uma série de juízos pessoais de ordem prática que a alteram profundamente
e a preparam para o próximo estágio crítico, em que ela desejará se render.
Esse é o estágio em que se fazem juízos equivocados de natureza altamente
pessoal, começando geralmente – uma vez mais – pelas áreas por que o
indivíduo tenha maior estima e um senso de expertise e liberdade. Por esse
processo, a força, a beleza e o idealismo originários do indivíduo são lenta e
gradualmente virados de ponta-cabeça.
Assim, a idéia original de Jonathan – a de um novo ministério que viesse
ao encontro das novas necessidades dos anos 1960 – o levaria a adaptar, um
a um, os ritos e ensinamentos de sua Igreja até que finalmente tivesse
transformado o significado sobrenatural do sacramento em celebração
social.
O primeiro juízo equivocado de Richard/Rita dizia respeito a sua
androginia: ele a tomava como algo real. Disso decorreu toda uma série de
juízos sobre o ato sexual, sobre as mulheres, o casamento e o sentido da
vida, que transformou o significado de cada uma dessas coisas em um
pesadelo à moda de Alice no País das Maravilhas, e levou Richard/Rita a
profanar a feminilidade que ele tanto apreciara.
Os juízos de Marianne eram de ordem primariamente intelectual, mas
tinham, todos, uma aplicação concreta. Ela se convenceu de que liberdade
de pensamento significava libertar-se de todas as obrigações morais para
com Deus e para com a autoridade, assim como evitar todos aqueles que
ainda professassem essas obrigações. E, por uma rápida sucessão, que os
outros eram tolos; que liberdade significava imunidade ao aconselhamento
de quem divergisse dela; que essa imunidade significava encontrar-se a si
mesma; que encontrar-se a si mesma significava isolarse; que isolar-se
significava recolher-se em si mesma; que recolher-se em si mesma
significava total falta de iniciativa, passando simplesmente a ser alguém;
que tal condição de “meramente ser” era o mesmo que “não ser” (duas
facetas da mesma coisa); que nessa condição ela estaria aberta a um segredo
jamais ouvido, o qual seria revelado pelo “Homem”; e assim por diante.
Pode-se traçar progressão similar nos juízos de David, baseados em seus
estudos antropológicos e na metodologia de sua ciência. Ele havia
finalmente chegado ao ponto de aplicar as normas do método científico aos
dados de sua fé religiosa.
Nesse sentido, Carl foi o caso mais desastroso, o mais luciferiano. Cada
um de seus brilhantes dons se tornou uma avenida para o engano que ele se
recusava a reconhecer. E, até o fim, Carl padeceu da ilusão de que estava
prestes a “redescobrir” a “versão verdadeira do Cristianismo”.
Se a vítima, já parcialmente possuída a esta altura, não retirar seu
consentimento e não conseguir se libertar com alguma ajuda ou por sua
própria força, chegará a um ponto decerto crítico, encarando uma crescente
e finalmente incessante pressão para que se permita ser “controlada
internamente” por uma força estranha. Esse controle afetará pensamentos,
emoções, atos de vontade, intenções, gostos e desgostos.
Todos os nossos exorcizados passaram por isso. Cada um sentiu uma
“pressão” amedrontadora para que permitisse que “outro alguém” lhes
desse diretivas; e que esse “outro alguém” estava de algum modo “dentro”
deles. Tal pressão não era física, assim como não o era a presença dentro
deles. Resistir a essa pressão trazia, no entanto, resultados físicos.
Uma vez rendidos, eles passavam a receber “instruções” – juízos e
atitudes prontas, e mesmo palavras em seus lábios e movimentos em seus
membros lhes ocorriam. Jamsie parece nunca ter passado desse ponto. Ele
aparentemente se recusou a deixar-se controlar, rejeitando a presença
permanente de Ponto dentro de si.
A rendição de David foi sutil, mas ele, afinal, se rendeu. Havia nele uma
mentira profunda e velada sobre seu consentimento em deixar-se controlar.
No entanto, justamente por essa sutileza, a qual indicava certa vacilação em
seu consentir, a possessão não chegou a ir muito longe.
Yves se rendeu à mais intensa pressão por “controle remoto”, ainda que
tenha buscado alívio desse controle quando viajou para visitar seus amigos.
Richard/Rita parece ter se rendido ainda jovem, quando passou sua primeira
noite sozinho no bucolismo de um acampamento. Marianne experimentou
quase que fisicamente o início do controle, sentada num banco em frente ao
“Homem”. Podemos reconhecer o primeiro passo da rendição de Carl no
momento em que ele, adolescente, “concordou” em “esperar” – com todas
as implicações futuras –, mas a pressão mais intensa veio quando ele
admirava um pôr-do-sol pela janela de seu escritório. A Tartaruga havia
bem preparado sua vítima, porquanto, mesmo que pensasse em resistir, Carl
já não dispunha mais dos meios para tanto. Ele consentiu completamente e
com uma consciência fora do comum.
Por todas as promessas de sucesso e felicidade, por todas as visões de
liberdade que possam levar à rendição, uma vez entregue o controle,
virtualmente todas as liberdades pessoais se acabam. Essa é mais profunda
escolha pessoal. Significativamente, a opção por renunciar a toda liberdade
de escolha recai sobre a própria liberdade que Deus garante a quem escolhe
ser livre. Essa escolha só pode ser feita pela pessoa, e nunca para ela. Se
ela escolhe renunciar a essa liberdade da vontade, então a possessão terá se
consumado em seu aspecto mais essencial. Essa escolha implica, ao mesmo
tempo, a negação de Deus, de Jesus e da humanidade que Jesus tornou
possível. A luz divina passa a não mais pertencer-lhes. Abre-se um vácuo
de qualquer conhecimento profundo que sustente essa humanidade. Toda a
luminosidade da alma se apaga. E, nesse vácuo, o Espírito Maligno derrama
sua própria luz e próprio conhecimento.
Quando a possessão é consumada, o controle diabólico se expande
dramática e rapidamente. A luz e o conhecimento do Espírito Maligno têm
seus próprios efeitos, contundentes, imediatos e autoprotetores. Colocam o
possuído sob sua proteção contra circunstâncias, pessoas, lugares e objetos
intimamente relacionados a Deus e a Jesus, e o levarão a evitar situações
que constituam ameaça ao poder possessor do Espírito do Mal. A pressão
de Ponto para que Jamsie ficasse longe das mulheres e do álcool, e o modo
como sua influência tornava praticamente impossível qualquer
relacionamento normal com outro ser humano, tudo isso não só aumentava
a solidão e a necessidade de Jamsie em ter a companhia de Ponto, mas isso
o mantinha distante de qualquer amor humano – pois o amor é um bem
necessário a nossa humanidade.
Alguns dos efeitos dessa luz diabólica podem ajudar o possuído em seu
trabalho. Ponto melhorou o estilo radialista de Jamsie; o carisma de Yves
aumentou com a ajuda de Seu Natura; a reputação de Carl no ramo da
parapsicologia decolou com a ajuda da Tartaruga. Não raro, o possuído é
prevenido de alguma ameaça comum de ordem física (Marianne pôde
afastar o assaltante por conta dessa proteção); é esclarecido sobre
oportunidades para alcançar satisfação ou prosperidade individual, ganha
um peso adicional, informações novas, energia mental e poder entre as
pessoas.
Mas o efeito mais contundente da luz e do conhecimento do Espírito
Maligno é a mudança extraordinária, dramática, que ele opera sobre os
juízos, princípios e aparência do possuído, somado a uma sensação de perda
do autocontrole sempre crescente – até o ponto de perder a consciência
sobre as próprias ações.
“Eu sempre soube, daquele ponto em diante”, lembra Carl hoje, “que me
submetera a um rígido controle, e que eu passaria a pensar, dizer e fazer
coisas sem saber o porquê, e sem qualquer motivo ou razão prévia”.
E embora ele se lembre da cena com a garota agonizante na neve,
Richard/Rita se recorda, ao mesmo tempo, de estar totalmente alheio a si
mesmo. Ele não estava propriamente ciente do que fazia. De fato, os
incidentes mais chocantes neste livro estão no caso de Richard/Rita, e
servem como um contraponto trágico ao que ele tão sinceramente buscava
em seu consentimento à possessão: o amor mais doce e a compreensão do
significado de masculino e feminino, de masculinidade e de feminilidade.
Apesar de sua busca genuína e sincera, a feminilidade se tornou odiosa
para Richard/Rita. Tornou-se um poder sinistro a ser conquistado, mesmo
que por necrofilia. Seu corpo se tornou um meio de profanação na Missa
Negra.
Parece que esse “controle” mudou todos os juízos, princípios e aparência
de Marianne. Todos os símbolos do bem e da beleza se tornaram motivo
para pânico e fuga: a cruz no General Building, a Missa, a sexualidade, seu
próprio corpo, seus pais. Ela escolheu ser totalmente livre e auto-suficiente,
mas acabou completamente escravizada – exceto por aquele sopro de
resistência que lhe permitiu ser ajudada quando Peter interveio.
Para Yves, os sacramentos e o seu próprio ministério vieram a se tornar
valores meramente materiais, sem referência a Deus, a Jesus ou ao
sobrenatural. Mas ele também parece ter preservado um sopro de
resistência, ao qual pôde se apegar quando seus amigos deram início ao
exorcismo.
Se se permite que o controle extensivo continue, se o consentimento total
é alcançado, então a possessão total (ou perfeita) está consumada. Pe. Mark
tem certeza de já ter encontrado mais de um caso como esse – embora
apenas por acaso, pois que não se consideraria o exorcismo para tal pessoa;
e, mesmo que se tentasse exorcizá-la, sem ao menos parte da sua vontade
provavelmente não haveria sucesso.
Apesar de nunca ter encontrado Jay Beedem, Mark estava certo de que
ele tivera parte nos problemas de Jamsie de um modo importante, ainda que
discreto. Mark seguiu sua suspeita no exorcismo, mas Multus, o “superior”
de Ponto, não lhe dizia absolutamente nada. “Não”, respondeu Multus
peremptoriamente. “Essa Pessoa não tem autoridade sobre Jay Beedem. Ele
é nosso”.
No caso de Richard/Rita, também deve se ponderar se o psiquiatra, Dr.
Hammond, não estava ele próprio a caminho da possessão perfeita. “Ele é
nosso! Não precisamos lutar por ele!”, gritou o Ajeita-Moça. “Você não
pode tomá-lo de volta. Ele é nosso”.
Em cada caso de possessão que chega ao ponto do exorcismo, o sujeito
terá atingido uma encruzilhada. Restam-lhe poucos recônditos ainda
preservados, alguns lampejos ou recordações da luz de Jesus ainda brilham.
O possuído guarda um resquício de controle contra a irrefreável ocupação
de todo o seu ser por aquela primeira criatura caída de Deus. Há ao menos
um pequeno ponto de revolta que se levanta contra a concessão original. Os
possuídos se tornam rebeldes. E, na medida em que se revoltam, são
atacados cada vez mais ferozmente pelo espírito invasor, que, por sua vez,
luta contra qualquer tentativa de despejá-lo de seu “lar”.
Possuídos que foram exorcizados com sucesso costumam relatar como,
em determinado ponto, começaram a se esforçar para controlar seus
pensamentos, suas vontades, suas memórias.
Estranhamente, essa terrível batalha entre a vítima rebelde e o espírito do
mal que a confronta é o que começa a dar origem aos eventos repulsivos,
perturbadores e aterrorizantes, tão geralmente associados aos possuídos, e
que levam suas famílias ou amigos a procurar ajuda.
Muitos exorcistas acreditam que a maioria dos parcialmente possuídos
que se rebelam dessa forma não chega a ter auxílio sacerdotal. Eles são
levados a médicos e psiquiatras, que nunca conseguem ajudá-los. Por meio
de medicamentos, pode se alcançar uma “remissão” temporária (um
arrefecimento da violência), geralmente a custo de alguma perda em termos
de agudeza mental e energia física. Os sujeitos, crêem esses exorcistas,
podem passar tempos em instituições psiquiátricas e, lá, piorar
progressivamente enquanto sua terrível batalha continua.
Quando a revolta do possuído leva ao exorcismo, então declara-se a
batalha mais amarga. O exorcista literalmente se oferece como refém. 1 Luta
pelo possuído numa batalha que é incapaz de travar sozinho – sua única
arma é um bizarro grito por socorro.
Os três principais envolvidos, exorcista, exorcizado e espírito invasor,
correm perigo. O possuído deve resistir ao excruciante e exaustivo
esfacelamento de seu corpo, mente e emoções; e sua vontade, por pouco
que lhe pertença, não pode vacilar.
O exorcista sofrerá toda a dor e todos os reveses inimagináveis já
descritos aqui, os quais nos são vividamente detalhados por cada exorcista
neste livro.
Pode-se reconhecer a angústia do espírito possessor no lamento
ensurdecedor e revoltado que tão freqüentemente prende a atenção do
exorcista, quando o espírito é impelido a deixar seu “lar” humano.
Certamente um eco da agonia eterna experimentada por Lúcifer de uma vez
para todo o sempre: a dor irremediável da amargura vivida pela mais
brilhante das inteligências criadas, uivando novamente pela voz de Sorriso,
de Seu Natura, de Ponto, de Multus. “Para onde iremos? Onde nos
esconderemos da vingança de Deus?”.

1 Em inglês, hostage, termo que também tem a acepção de “penhor” – o exorcista, de certo modo,
dá-se como penhor – NE.
O FIM DE UM EXORCISTA
Michael Strong
— conclusão
Trouxeram o Pe. Michael de volta de Hong Kong para a Irlanda em inícios
de julho de 1948. Por cinco meses, ele ficou numa casa de repouso com as
Irmãs Médicas da Missão, no condado de Meath. Em dezembro, sentiu-se
forte o suficiente para ir até sua cidade, Castleconnell, no condado de
Tipperary, onde tinha um punhado de sobrinhas, sobrinhos e primos. Ali
viveu até sua morte, em outubro do ano seguinte.
Michael falava pouquíssimo de si mesmo, mas o povo do local foi
descobrindo, pouco a pouco, alguns fatos sobre sua condição e seu passado
recente. Eles o acolheram sem demora, como um filho que volta para casa
depois de tempos vividos no “mundo lá fora”, onde, como diziam, “aqueles
bolcheviques de olhinhos-puxados deram trabalho para o Pe. Michael”.
Michael nunca se arriscava pelas ruazinhas de Castleconnell, e raramente
saía ao jardim que cercava sua casa. Sua empregada abria as janelas
francesas de manhã e ao cair da noite, para que o velho homem pudesse se
sentar à varanda e, das sombras, observar a grama, as macieiras e as cercas
de treliça. De vez em quando ele cuidava da trepadeira-davirgínia de que
tanto gostava, ou se distraía com os rabanetes, cebolas e cenouras brancas
que cresciam no pequeno canteiro dos fundos. Tinha sono leve e dormia
pouco durante a noite, lia apenas o jornal de domingo e parecia absorto em
pensamentos e devaneios na maior parte do tempo.
Um jovem pároco rezava a Missa em seu quarto todos os dias às seis da
manhã. Cerca de uma vez por mês, o próprio Pe. Michael rezava a missa,
mas isso lhe tomava quase duas horas. Era obviamente um esforço
demasiado. As visitas eram raras e curtas: um sobrinho ou sobrinha com os
filhos aos domingos, um velho amigo do seminário, o bispo... Nenhum
deles, no entanto, jamais chegou a saber precisamente pelo que ele passara
e qual a razão da calma, do silêncio sereno em que Michael claramente
viveu seus últimos anos. Ele parecia esperar por algo.
Meu tio era clínico geral residente em Castleconnell e eu, como jovem
seminarista, tinha ouvido falar de Pe. Michael meses antes de afinal
encontrá-lo pessoalmente e começar a visitá-lo de tempos em tempos. Vinte
e cinco anos já se passaram desde então e minhas memórias ainda estão
frescas. Certas frases e algumas palavras permanecem indeléveis em mim,
junto com suas entonações e expressões. Quando o conheci, tive a
impressão de uma grande fragilidade. Homem grande e ossudo, ele
claramente perdera muito peso.
Mas a fragilidade não era primariamente efeito de sua magreza, de sua
cabeleira grisalha, suas mãos ossudas ou bochechas vazias. Era o semblante
de uma sobrevivência delicada, como se a distância entre a vida e sua
desaparição tivesse a largura de um fio de cabelo. Havia em seu rosto e em
sua figura uma transparência que o revestia de uma discreta tensão. Parecia
estar sempre em andamento, dentro dele, um diálogo silencioso, imaginário
ou não, entre Michael e um mundo que eu, ignorante e mundano que era,
não conseguia perceber – apenas suas ressonâncias registradas em algum
lugar dentro de mim, prevenindo-me de qualquer movimento brusco ou tom
mais agressivo na fala.
Ele falava com gosto da China e do trabalho que por lá fizera. Todos, em
seu pequeno círculo de confiança, conheciam o grosso da história. Sobre
Thomas Wu, no entanto, ele falava pouco e com dificuldade, raramente em
detalhe. Primeiro pensei que fosse por causa de alguma repugnância em
lembrar daqueles momentos, mas depois, quando conversamos sobre seu
passado recente, passei a desconsiderar essa possibilidade. Quando lhe
perguntava do exorcismo de Wu, ele começava a se recordar e a responder,
mas acabava saindo dos trilhos como se ainda esperasse por uma
explicação, um desfecho, uma última linha a ser escrita nessa história.
Havia um calmo silêncio de dez ou quinze minutos. Ele se ajeitava em
sua cadeira e finalmente dizia “Bem, tudo ao bom tempo de Deus... O vidro
há de desembaçar. Deve desembaçar...”, ou algo parecido...
Eu aprendi que, nesses momentos (e não antes), o que se faz é levantar e
deixar Pe. Michael sozinho com seus pensamentos e suas presenças
permanentes.
Ele tinha gestos característicos: a palma da mão direita à testa, as costas
do punho a coçar o queixo, a mão esquerda a segurar os dedos da direita. E
o olhar compenetrado a todo tempo – não como quem sonha, não apenas
desperto nem vazio, absorto em lembranças; mas repleto de minúcias, como
se diante de um quadro invisível aos demais. Por isso, os poucos habitantes
locais que o viram disseram “pobre Pe. Michael. Claro que está esperando
pelo bom Deus.”.
Esperar foi a tônica de sua personalidade durante aqueles meses, como se
esperasse “o vidro desembaçar...”. Quando, vez ou outra, ia até o portão
para se despedir de uma visita, seu ar era o mesmo. Parecia examinar a
estrada, o horizonte, o céu, esperando por algo ou alguém que ele
reconheceria assim que aparecesse. Um velho conhecido, pensei de início.
Um mensageiro. Nunca se sabe.
Tive a mesma impressão quanto às suas longas vigílias na varanda e suas
horas sentado no escritório, coluna ereta, olhando para a porta ou para a
janela.
Meu primeiro avanço no sentido de colher alguma informação sobre o
exorcismo de Thomas Wu se deu em meados de 1949. Um habitante de
Castleconnell, John Gallen, matara seu vizinho, Jim Cahill, com uma faca.
Tinha sido apenas mais um episódio numa longa contenda entre famílias:
um Gallen e um Cahill morriam violentamente a cada geração.
Michael me falava sobre Caim e Abel de um jeito algo evasivo. Então
virou a cabeça e me perguntou de supetão “John Gallen tinha alguma coisa
no queixo?”. Emendou: “Enfim, o que você poderia saber disso? Graças a
Deus. Por você”.
Mas senti que ele tinha revelado alguma coisa e que tal coisa valia ao
menos uma pergunta. “Thomas Wu tinha algo no queixo, Pe. Michael?”.
Ele olhou vagarosamente ao redor. Seus olhos, normalmente azul-claros,
queimavam: “Meu jovem, há coisas que só se sabe mesmo quando
acontecem consigo.”.
E então um dos longos silêncios. Esperei.
Finalmente, inquieto, ele disse, para minha surpresa: “Bem... agora que
você já tem uma suspeita, acho melhor que saiba um pouco mais. Mas não
hoje. Num outro dia”. E depois de uma pausa, o fatal “Se Deus quiser”.
Não fui ver Pe. Michael novamente até meados de julho. Era uma
daquelas longas noites de verão, raras naquela parte da Irlanda, sob o céu
limpo depois de um dia longo, seco e quente. Quando cheguei, tinha partido
já toda a claridade. Restava aqui e ali apenas a luz tênue dos riscos de
bronze refletidos no oceano ao Oeste, onde o sol se punha. Uma brisa
começava a refrescar o calor do dia.
Michael estava próximo às treliças, catando folhas da trepadeira-
davirgínia. Avermelharam-se prematuramente. Uma a uma, ele as colocava
com cuidado entre as páginas da Bíblia.
“Fico feliz que você tenha estado longe por tanto tempo”, disse. “Tempo
é necessário”. Fechou a Bíblia na última folha e voltamos à varanda
caminhando devagar.
Conversamos um pouco sobre as últimas do lugar. Então lhe perguntei
sobre a marca no queixo de Thomas Wu. Ele foi insistente: era uma marca
pessoal, “como a que um oleiro poria no fundo de um vaso que fizesse, ou
um pintor num quadro seu, do tipo Satan me fecit”. E acrescentou mais
alguns detalhes. Parece que Wu passara alguns anos no Japão, inícios da
década de 1930. Quando voltou a Nanquim, tinha mudado completamente:
ferozmente antijaponês, ferozmente anti-Kuomintang, falava
constantemente sobre os líderes comunistas no norte da China, e algo nele
era totalmente estranho aos olhos de seus amigos.
Wu, acrescentou Michael, tinha se entregado de corpo e alma àquela
força muito antiga, que levou Caim a matar seu irmão, Abel, aquela que
tentou impedir que Deus criasse o mundo dos homens. A mais antiga. A
mais forte. Para todos eles. “Eles”, na boca de Michael, eram os japoneses,
os chineses, russos, americanos... Todos eles agiram como se a morte fosse
o último juiz e o mais forte aliado em todo o universo. O pai de Caim foi
homicida desde o princípio, como disse Jesus pela primeira vez na Bíblia.
Eu queria saber da condição de Michael em 1948, quando o trouxeram de
Hong Kong de volta para casa. Mas, ao ouvir “casa”, ele me interrompeu
dizendo que ainda fora para casa. Disse que não poderia, não sem antes
terminar o que começara no exorcismo em Puh-Chi. Notei as lágrimas por
trás de seus olhos e desviei o olhar.
O vento tinha ficado mais forte. Podíamos ouvir o mugido das vacas pelo
caminho e o latido dos cães que as conduziam ao celeiro para ali passarem a
noite. Michael pediu uma manta de lã para envolver sua cintura e seus
joelhos.
Houve outro de seus lapsos de quinze minutos, cortado no momento em
que a empregada trouxe seu jantar numa bandeja. Ele comeu em silêncio.
Quando terminou, o sol estava mais baixo que as árvores, e o campo à
meia-luz do crepúsculo. Longe a noroeste, um bando de gansos selvagens
rumava depressa para casa, os pântanos e bosques de Connemara. Michael
ajeitou a manta em seu colo e abasteceu seu cachimbo.
“Em casa. Sim...”. Sua voz sumiu entre os dentes por mais um minuto ou
dois. Então continuou como se não tivesse parado.
As lágrimas que eu tinha visto não eram de arrependimento nem de
revolta, disse, mas apenas de saudades de casa. Ele estava sozinho no
escuro desde 1938. Qualquer outra pessoa podia ir para casa, mas ele tinha
de esperar.
Olhei para ele. Seu cabelo grisalho e sua face pálida se desfaziam nas
sombras. Somente seus olhos, repletos de luz, pareciam claros, e miravam o
fundo de jardim.
“Acredite em mim, uma vez que você se mete com o exorcismo, e
sobretudo se você falha, algo em você o deixa. E o resto de você anseia por
partir também”.
Não me parecia um bom momento para vasculhar aquela sua “espera”
para “partir”. Perguntei então sobre seu confronto com o Espírito Maligno
em exorcismos. Como era? Que efeitos tinha? Era uma reunião, disse, uma
reunião profissional. O exorcista se confrontava com algo existindo num
estado em que a realidade mais importante, a única realidade importante,
era um “vívido não”.
Quis parar e pensar um pouco, mas ele continuou falando de uma
realidade que não é bela, não é verdadeira, não é santa, não é aprazível, não
é clara, não é quente, não é vasta, não é alegre, não é nada de positivo.
Começava a dizer que tudo aquilo soava como o Inferno, ou como era
usual descrevê-lo. “Não”, interveio com distinção e firmeza. “Isso é o
Inferno. É estar absolutamente sozinho e irrecuperavelmente sem amor.
Para sempre”. O exorcista sabia que aquilo a que se opunha existia em tal
estado. Sabia, apenas.
“E o efeito disso tudo?”, perguntei-lhe ainda hesitante, sem querer
agravar-lhe qualquer dor. “Você se sentia como numa caixa? Ou como
numa cela? Aquilo lhe causou desalento e perda de iniciativa?”.
Os efeitos foram bem mais profundos, disse. Anos antes, no seminário,
ele era apaixonado por música, flores, um bom livro. Podia rir mais alto que
todo mundo; gostava de nadar, jogar tênis, de um bom prato, e por aí vai.
Amava as crianças. Elas o faziam feliz apenas com suas vozes. E muitas
outras coisas – cantar e dançar, fazer longas caminhadas, o som das ondas
quebrando, cheiros como o do feno recém-cortado, das flores e da grama
molhada, uma fogueira de manhãzinha. E dormia feito pedra. Acordava
sempre pronto para o mundo, fizesse chuva ou fizesse sol.
Tudo mudou depois do exorcismo de Thomas Wu. Não, não era a idade,
ele respondeu à pergunta implícita. Era algo mais.
Apareceu a empregada, e Michael acenou para ela. Era hora de se deitar.
Ela saiu.
Perguntei: “O que isso realmente significa?”.
Agora ele estava de pé. A lua tinha se levantado por sobre o muro detrás
do jardim. Olhamos os dois para cima.
“Nunca mais se está de fato em casa nesse mundo humano depois de um
exorcismo”, disse devagar. Sentou-se novamente e explicou.
Depois de um exorcismo, o sacerdote ouve, vê, pensa e fala como sempre
fez, mas passa a perceber em dois planos. O espírito está por toda parte.
Carne e matéria são apenas “nossa imagem” do que lá está. E nem tudo é
bom. Há mal e bem ocultos nessa “imagem”.
Depois de um exorcismo, você sempre sabe, se é que já não sabia: anda
agora com uma dupla visão, uma clarividência, como diziam os antigos.
E o exorcista nunca dorme de verdade, não como costumava. Ele cochila.
Algo lá dentro está alerta, sempre alerta, e não quer que nada escape nem
por um segundo. Dormir é sempre deixar escapar, e ele sabe que isso lhe é
impossível.
Ele come, deve comer para se manter vivo. E respira. Seu coração bate.
Mas tem sempre uma terrível alternativa: não respirar, deixar que seu
coração pare.
Ao entrarmos na casa, ele disse calmamente: “Volte em algumas
semanas. Estou chegando ao fim. Não há muito tempo”.
Estive com Pe. Michael mais duas vezes antes de sua morte – ocorrida no
mês de outubro seguinte. Uma delas foi no começo de setembro. A outra,
minutos antes de ele morrer.
“Você vai ver que o padre mudou”, sussurrou a empregada quando
cheguei, em setembro. “Ele não sai mais de casa”.
Michael estava em seu escritório, sentado numa poltrona em frente à
porta. As janelas estavam fechadas e a única luz vinha de duas velas que
queimavam retamente sobre a cornija. Ele não olhou para mim quando
entrei, mas me saudou erguendo a mão.
“Quer que deixe entrar um pouco de sol e de ar fresco?”, perguntei
depois de cumprimentá-lo. Fui em direção à janela. Um minuto de silêncio.
“Se você abrir a janela”, disse pacientemente, como um professor que
explica um problema ao aluno, “vai ofuscar a única luz que tenho. Venha,
sente aqui e fique um pouco comigo”.
Não havia agitação ou irritação em sua voz; era suave e precisa. Voltei-
me e me sentei diante dele. A luz das velas batia diretamente em sua cabeça
e seu rosto.
A mudança era devastadora. Sua face se contraíra, não para dentro, mas
para cima. Toda sua forma e caráter pareciam apagados; a linha do queixo,
a boca, os lábios e o nariz reduzidos a uma linha invisível que lhe cortava a
maçã do rosto. Não havia expressão definida em sua boca. O maxilar e o
queixo tinham perdido a firmeza, a configuração própria de Michael. Agora
eles poderiam pertencer a qualquer outra pessoa, ou a uma estátua sem vida.
Notei, então, claramente, um tom amarelado nada normal. Era muito
transparente, muito lustroso. As palavras “imóvel” e “imobilidade” me
ocorriam incessantemente.
O olho direito permanecia entreaberto como uma persiana. Ambos os
olhos estavam revestidos de uma fina camada de líquido que escorria
discretamente pelos cantos. Havia neles pouca ou nenhuma expressão.
Por trás da aparente imobilidade dos globos oculares, eu podia ver ou
sentir uma presença viva, afiada, uma inteligência alerta e consciente. Sua
testa estava lisa, sem nenhuma ruga. Michael tinha uma cabeça abobadada,
e seu cabelo começava numa linha que jamais recuara. Sua cabeleira
grisalha estava rente à cabeça. Ele estava bem barbeado.
Breeda, a empregada, tinha me falado para não puxar muita conversa.
“Pe. Michael, como vai?”.
Ele disse que passava bem. Que tinha um pedido a fazer e que eu deveria
lembrá-lo disso antes de ir embora; mas ele queria primeiro dizer algo mais
sobre os efeitos do exorcismo nele próprio. “Falar sobre isso tudo me
ajuda”, explicou.
Era a dupla visão. Disse que não a tinha definido propriamente. Esperei,
pois um ar de tristeza lhe tocou a face. O véu da imobilidade se levantou
por um instante, e logo caiu novamente. Por aquele breve segundo, eu pude
ver uma carga de dor e pesar emolduradas por uma esperança leve e
resoluta. Toda a sua expressão dizia: não abrirei mão de confiar, embora
nada tenha com que contar senão com tal confiança.
Ele então prosseguiu na descrição da dupla visão. Não se tratava de ver
outra mesa além da mesa real, nem outro muro além do muro real. Não se
tratava de ver com os olhos, de ouvir com os ouvidos ou de tocar com as
mãos. Tratava-se de outro nível da realidade. Um exorcismo aguça a
consciência dessa realidade, disse. Conhece-se o que fica por trás, ao redor,
abaixo e acima de tudo o que é visível e palpável. A trama do espírito
aparece em todo lugar. Bom e mau espírito. Beleza e feiúra. Santidade e
pecado. Deus em tremenda majestade. O mal pessoal em sua força
formidável. Nada escapa a essa trama.
Ele se calou a essa altura. Depois de uma pausa, não pude me furtar a lhe
perguntar diretamente sobre seu fracasso no exorcismo de Thomas Wu.
Teria ele sido responsável por algo referente a essa dupla visão?
“É claro”. A dor e aflição contidas nessa resposta me fizeram calar. Uma
vez pronunciada, pairou no ar entre nós dois como símbolo silencioso de
seu sofrimento.
“Agora posso odiar. Posso escolher odiar”, disse secamente. Antes do
exorcismo de Wu, ele nunca havia sequer cogitado odiar. Odiar era agora
uma opção viva para ele. Antes do exorcismo, ele nunca sequer imaginara
como seria realmente desesperar-se. Agora, aquela era uma opção real.
“Real”. “Real”, ele repetia. A idéia de rejeitar Jesus, como um charlatão,
agora se lhe apresentava como uma escolha possível.
Todas essas escolhas e muitas outras, indescritíveis, eram como pratos de
comida continuamente dispostos diante dele. Sua dor era que tivesse sido
forçado a considerar cada uma delas enquanto possibilidade. Antes, ele as
banira todas juntas, jogando-as num baú e sumindo com a chave. Agora, ele
tinha que experimentar cada uma delas. Devagar. Realisticamente. Ele
parou a certa altura, buscando uma imagem. Era como se a um lobo faminto
fosse permitido fungar, cheirar e fuçar seu corpo desnudo, sempre
ameaçando mordê-lo e destruí-lo – disse finalmente. Curvou-se e pousou a
cabeça nas mãos. Foram uns cinco minutos de pausa.
E toda a espera, perguntei finalmente, por que toda aquela espera? Ele
fracassara no exorcismo, mas não aceitara Satanás, nem o mal e nem o
ódio. Por que, então, a espera perpétua?
“Em poucas palavras, meu jovem amigo”, disse sério, “o mal tem poder
sobre nós, algum poder. E mesmo quando derrotado e enxotado, ele deixa
marcas ao passar. Se você não o derrota, ele cobra a taxa da mais terrível
agonia. Ele talha o espírito com uma garra imunda, e um pouco de seu
veneno penetra as veias da alma. É um preço. Uma lembrança. Uma lição.
Um aviso de que ele vai voltar”.
Era hora de ir. Levantei-me. Ele nada disse. Toquei-lhe a testa levemente.
Estava frio.
Enquanto saía, Breeda me disse: “Agora, meu jovem, não se preocupe
com Pe. Michael. Ele sabe o que faz”. De algum modo, aquela senhora
entendia o que eu jamais entendera.
Então ouvi sua voz me chamando: “Malachi! Ao final, esteja seguro e
leia São Paulo, primeira aos Coríntios, capítulo 15, do versículo 50 ao 58.
Leia tudo”.
Voltei depressa ao escritório, mas ele me dispensou com o aceno
silencioso de sempre.
Era o início de outubro quando Breeda me telefonou. O céu estava
carregado e chovia sem parar. Uma tempestade vinha do Atlântico. Michael
recebera a extrema-unção, disse-me.
Quando cheguei à casa, tudo era silêncio. O médico o vira naquela
manhã, partira e estava de volta. Era um velho amigo de Michael, dos
velhos dias na escola de Castleconnell. Os parentes de Michael vieram e já
haviam partido. O bispo mandara um monsenhor com uma benção especial.
Restavam ali apenas Breeda e o médico.
Em seu quarto, à luz de duas velas, Michael se recostava em travesseiros
sobre a cama, com o corpo levemente virado para o lado. Era como se ele
tivesse despencado de uma certa altura. Tinha um crucifixo entre as mãos.
Os olhos fechados. A boca aberta, esforçando-se para respirar.
Seu rosto ainda tinha aquele aspecto devastado. Mas agora, conforme eu
cruzava o quarto nas ponta dos pés, ele parecia-me torto, como se alguém
lhe tivesse deslocado as linhas gerais e arruinado a simetria. A testa era um
emaranhado de rugas; a linha das sobrancelhas estava torta; uma das
pálpebras parecia mais bulbosa e fofa do que a outra; as narinas se
dilatavam irregularmente; o nariz e a boca estavam finos e pareciam mal
angulados.
Quase imediatamente após minha chegada, houve uma mudança em
Michael. Sem emitir qualquer som, ele começou a virar-se para frente. Seu
corpo se enrijeceu. Respirando com dificuldade, tomou fôlego.
Seus lábios se moviam e, curvando-me, pude ouvi-lo murmurar: “Ali. No
canto. Perto da janela. A vela. Por favor...”.
Coloquei uma das velas em cima de um estantezinha de livros e voltei
para o lado dele.
“Está tudo muito escuro, meu amigo”, sussurrou enquanto eu me
curvava, “isso... arde”.
O resto se perdeu num gemido entredentes. Ainda curvado, abri a
primeira epístola de Paulo aos Coríntios e comecei a ler os versículos que
ele me pedira, recitando de memória enquanto o observava e dando uma ou
outra olhada no texto.
“Todos seremos transformados... num abrir e fechar de olhos... os mortos
ressuscitarão incorruptíveis... que esse corpo mortal se revista da
imortalidade...”.
Michael ainda gemia como se tivesse sobre si um grande peso, o qual o
mantinha indefeso.
“...então se cumprirá a palavra da Escritura: A morte foi tragada pela
vitória... o aguilhão da morte é o pecado... Graças sejam dadas a Deus, que
nos dá a vitória por nosso senhor Jesus Cristo...”.
Parei e esperei. O peito de Michael se enchera ao aspirar uma grande
quantidade de ar. Ele parecia segurá-lo nos pulmões, como se tivesse medo
de soltá-lo.
“Vou abrir a janela”, disse o médico. E o quarto foi invadido pela luz
acinzentada do céu. Havia uma corrente de ar frio, somado ao tamborilar da
chuva sobre as árvores, a grama, o caminho de pedras no jardim e o telhado,
além do som típico da água correndo pelas calhas. Um clarão quebrou a
penumbra. A tempestade não estava muito longe e se movia rapidamente
em nossa direção.
Michael, ainda prendendo a respiração, claramente no ápice de sua
agonia, estava como que tentando tirar alguma coisa da garganta ou do
peito. Toda sua estrutura vibrava sem sair do lugar. Sua cabeça balançava
energicamente para cima e para baixo num curto sinal afirmativo. Ele
levantou sutilmente a mão direita, e apontou para o canto oposto do quarto:
a vela tinha se apagado com o vento.
Corri para reacendê-la, mas estava a poucos passos de Michael quando
ouvi um som penetrante como o ranger de uma porta. Ele soltava a
respiração; e ao fazê-lo, seu expirar ressoava com cada vez mais força em
seu peito e em sua garganta. O som que ele emitiu fez um pequeno
crescendo. Não era como um berro, um grito, nem apenas como um
vazamento de ar. Foi um pronunciamento trêmulo, o mais próximo que um
som sem palavras poderia estar de uma frase. Um cântico de morte entoado
com as poucas notas que o desfalecimento lhe concedeu.
Voltei e me ajoelhei ao seu lado “A vitória Dele, Michael. A vitória Dele.
Acredite! A vitória Dele!”. Sussurrei.
O som de sua respiração cessou delicadamente, como a última das
últimas sentenças cessando toda a discussão, completando toda a expressão.
Ele jazia absolutamente imóvel. Então ambos os seus olhos se abriram,
hipnotizando-me. Não os obstruía mais aquela fina camada embaçante. Não
havia traço da deformidade que o distorcera nas últimas semanas. Uma mão
invisível retirou todas as linhas de deformação e agonia de seu rosto. Sua
expressão era agora suave. Seus olhos e sua boca triangulavam, brilhantes,
um sorriso de alegria. O azul de seus olhos, que andara apagado nos últimos
anos, era agora luminoso – nem profundo e nem penetrante, mas, sim, leve
e radiante. Tudo o que eu sempre soubera, lera, ouvira e imaginara sobre a
felicidade humana, sobre a alegria pura na paz e a paz na pura alegria,
resplandeceu naquele breve momento.
Ouviu-se um pequeno ruído da garganta de Michael. Seus lábios sorriam
fragilmente. Seus olhos perderam toda luz. Eu tinha certeza de que Michael
tomara parte na vitória de Jesus e que escapara ao aguilhão da morte. Mas
também que pagara, com efeito, o preço da falha cometida anos antes.
Nunca teremos a real dimensão do sofrimento de um homem como
Michael Strong ao leito de morte, pois isso paira no espírito inalcançável
pela nossa lógica, inimaginável pela nossa fantasia, impenetrável por
qualquer metodologia que inventemos. Mas todo exorcista poderia bem ter,
como epitáfio, a mais nobre frase sobre o amor humano já pronunciada por
Jesus: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus
amigos”.
APÊNDICES
I
O Ritual Romano de Exorcismo
NOTA PRELIMINAR

O texto tradicional do Ritual Romano de Exorcismo, que aqui segue


traduzido, tem uma longa história de desenvolvimento. 1 A começar pelo
comando e exemplo explícitos de Jesus de “expulsar os demônios”,
passando pelo tempo dos apóstolos e pelo século seguinte a suas mortes,
atravessando os séculos dos primeiros Doutores da Igreja (200-600 d.C.) até
os tempos medievais, há uma tradição ininterrupta de crença e prática da
Igreja em matéria de exorcismo. Algumas partes do presente texto
remontam a fins do séc. III e início do séc. IV. Outras seguramente
remontam a antes do ano 1000 d.C. Boa parte do texto teve
desenvolvimento no decorrer dos séculos que levaram à Renascença. O
texto finalmente atingiu a estrutura atual no séc. XVII.
O Ritual Romano se divide em três capítulos. No capítulo I há uma série
de instruções gerais para o exorcismo e os exorcistas. Seguem-se, então,
duas versões do rito. Uma (capítulo II) destina-se ao exorcismo de pessoas;
a segunda (capítulo III) é reservada ao exorcismo de lugares.
Em latim, esses três capítulos não se encontram subdivididos. Ao
apresentar uma tradução inglesa do texto, entretanto, dividi cada capítulo
em partes numeradas e dei a cada uma delas um título descritivo, de modo
que a seqüência e lógica do Ritual ficassem mais claras ao leitor.
Vale lembrar que o Ritual de Exorcismo não é um sacramento. Sua
integridade e eficácia, portanto, não dependem, como os sacramentos, do
uso rígido de uma fórmula imutável ou da seqüência ordenada de ações
prescritas. Sua eficácia depende de dois elementos: a permissão por parte
das autoridades da Igreja e a fé do exorcista.
Essa natureza do exorcismo enquanto um rito e não um sacramento tem
uma conseqüência importante. As autoridades da Igreja sempre insistiram
em que houvesse um texto estruturado para assegurar que a essência do
exorcismo (a intimação e expulsão do Espírito Maligno tão-somente em
nome de Jesus) seja mantida em cada caso. Contudo, a despeito da
formalidade tradicional, uma grande liberdade é permitida e exercida no uso
do texto do Ritual. A própria natureza do exorcismo faz com que isso seja
necessário: seria impossível, na atmosfera turbulenta e imprevisível de um
exorcismo real, seguir à risca um dado texto ou cerimonial.
Na prática, o fluir do texto é interrompido por diálogos entre exorcista e
Espírito Maligno. Os exorcistas, dependendo da situação, omitem
determinadas partes, repetem outras, substituem as próprias leituras de
salmos e evangelhos, lançam mão de suas preces favoritas, utilizam-se
invariavelmente da segunda fórmula do exorcismo, dão bênçãos com
relíquias, fazem sinais da cruz a mais e variam sobre o texto impresso como
não fariam nem poderiam fazer com o texto oficial de um sacramento.
Nos dias de hoje, partes do texto – especialmente as preces bem
conhecidas – são às vezes proferidas ou recitadas em vernáculo (alemão,
inglês, francês etc.). Ainda assim, entre os exorcistas, enquanto classe
sacerdotal, parece haver um consenso, fruto da experiência, que diz que o
texto latino possui um poder especial de unção e de perturbação do Espírito
do Mal. Isso pode estar no cerne do laço singular existente entre o espírito e
as coisas materiais ou humanas, o qual é um dos traços mais permanentes
encontrados nos exorcismos.
As principais partes do ritual se realizam, é claro, apenas pelo exorcista.
Seus assistentes (indicados no texto pela letra A) a ele se juntam nas leituras
de salmos e evangelhos e ao responder Amém a nove preces e fórmulas.
Alguns exorcistas adicionam dois ou mais assistentes aos quatro usuais; e
os assistentes adicionais recitam o Rosário ou entoam hinos durante o
exorcismo.
Sempre que o texto apresenta uma cruz impressa, o exorcista faz o sinal
da cruz direcionando-se genericamente ao exorcizado, a menos que o texto
indique um lugar preciso (a testa do exorcizado, os assistentes etc.).

1 O texto apresentado neste apêndice é uma tradução do próprio Malachi Martin do Ritual Romano
de Exorcismo de 1614, versão anterior, portanto, às modificações promulgadas em 1998 segundo as
diretrizes do Concílio Vaticano II. Esta tradução para o português, portanto, é livre e partiu da versão
em inglês de Martin. Uma nota inserida no Novo Ritual pelo Cardeal Jorge Medina, então prefeito da
Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, permite que se continue usando
este antigo rito em exorcismos – nesse caso, aconselha-se fortemente que se use o texto latino
(disponível em http://www.saintsbooks. net/books/Rituale%20Romanum%20(1853).pdf, à pág. 474).
Para saber mais a respeito do assunto, indica-se a leitura de AMORTH, Gabriele; RODARI, Paolo. O
último exorcista: minha batalha contra Satanás. Campinas, SP: Ecclesiae, 2012, p. 173-176 – NE.
CAPÍTULO I INSTRUÇÕES PARA O EXORCISMO DOS POSSUÍDOS
PELO ESPÍRITO DO MAL

1. O sacerdote a quem, com a licença peculiar e expressa de seu Bispo, for


atribuída a função de exorcizar os atormentados pelo Espírito do Mal deve
ser dotado de piedade, prudência e integridade pessoal. Deve se prestar a tal
obra heróica com humildade e coragem, confiando não em sua própria
força, mas no poder de Deus, e livre de quaisquer ambições materiais.
Ademais, deve estar em idade madura e ser reconhecidamente virtuoso.
2. Para cumprir sua função corretamente, ele deve estar familiarizado
com os muitos escritos práticos de autores reconhecidos em matéria de
exorcismo. Estes se omitem aqui por razão de brevidade. Ele também deve
observar cuidadosamente as seguintes regras, que são da maior importância.
3. Acima de tudo, ele não deve crer facilmente que alguém esteja
possuído pelo Espírito do Mal. Deve conhecer profundamente os sinais
pelos quais se distingue o possuído daquele que sofre de uma enfermidade
física. Os sinais da possessão pelo Espírito do Mal são de um gênero
particular: falar muitas palavras em línguas desconhecidas ou compreender
quem quer que o faça; conhecimento claro sobre coisas que estão distantes
ou escondidas, demonstrar força física muito além de sua idade ou condição
normal – entre outros. Tais sinais acompanhados de outros do mesmo tipo
são fortes indícios de possessão.
4. Para ter maior certeza, o exorcista deve interrogar o sujeito após uma
ou duas fórmulas do exorcismo, perguntando-lhe o que ele sente em seu
espírito ou em seu corpo. Assim ele também descobrirá as palavras que
mais perturbam o Espírito do Mal, podendo repeti-las com grande efeito.
5. Que o exorcista note por conta própria os artifícios e fraudes de que
espíritos malignos se valem para desviá-lo, pois que eles estão habituados a
responder falsamente. Manifestam-se apenas sob pressão, esperançosos de
que o exorcista se canse e desista de os pressionar, ou fazem com que o
sujeito do exorcismo sequer pareça possuído.
6. O Espírito do Mal às vezes se trai, acusando sua presença, e
escondendo-se logo em seguida. É como se ele deixasse o corpo do
possuído, fazendo-o crer que ele se livrou completamente de quaisquer
moléstias. O exorcista, contudo, não deve descansar enquanto não vir os
sinais de libertação.
7. O Espírito do Mal também cria, por vezes, todos os empecilhos
possíveis para impedir que o possuído se submeta ao exorcismo ou ainda
tenta persuadi-lo de que sua aflição é de ordem simplesmente natural. Às
vezes, durante o exorcismo, faz com que o possuído adormeça ou tenha
uma visão; mas recolhe-se, e então o possuído parece ter se libertado.
8. Alguns espíritos malignos revelam que foi realizado um feitiço, bem
como quem o tenha praticado e o modo como se poderia desfazê-lo.
Contudo, o exorcista deve ter cautela ao recorrer em tais matérias a bruxas,
feiticeiros e quaisquer outros que não ministros da Igreja. Que ele não
confie em nenhuma prática supersticiosa ou método ilícito.
9. O Espírito do Mal às vezes deixa o possuído em paz e até permite que
ele receba a comunhão, de modo a fazer crer que tenha ido embora. Em
suma, inúmeros são os estratagemas e fraudes de que se utiliza o Espírito
Maligno para enganar os homens. O exorcista tem que estar alerta para não
cair em nenhum deles.
10. Ele deve lembrar-se, portanto, que Nosso Senhor disse haver uma
espécie de Espírito do Mal que não se pode expulsar senão com oração e
jejum. Que ele siga, e que outros sigam com ele, o exemplo dos Santos
Padres, utilizando-se desses dois meios fundamentais para obter ajuda
divina e repelir o Espírito do Mal.
11. Se conveniente, pode-se exorcizar o possuído numa igreja ou em
outro recinto religioso apropriado, longe do olhar do público. Caso o sujeito
esteja de cama ou haja ainda outra boa razão, pode-se realizar o exorcismo
em casa.
12. O possuído, caso goze de saúde mental e física, deve ser encorajado a
orar a Deus, a jejuar e a buscar força espiritual nos sacramentos da
Confissão e da Comunhão.
13. O possuído deve carregar nas mãos ou ter em frente de si um
crucifixo. Onde disponíveis, pode-se colocar as relíquias dos santos em seu
peito ou em sua cabeça. Elas devem estar cobertas e em segurança, mas que
se tome cuidado para que essas coisas santas não sejam tratadas com
irreverência e danificadas pelo Espírito do Mal. A Santa Eucaristia não
deve ser colocada na cabeça ou em parte alguma do corpo do possuído. Há
risco de que seja tratada com irreverência.
14. O exorcista não deve fazer grandes discursos ou colocar questões
desnecessárias por mera curiosidade, especialmente no tocante a eventos
futuros e assuntos que nada tenham a ver com sua missão. Ele deve ordenar
ao espírito impuro que mantenha silêncio e só responda ao que se lhe
perguntar, e não pode dar crédito ao Espírito do Mal se este afirmar ser a
alma de algum santo, de alguém falecido ou um anjo bom.
15. As questões que o exorcista deve fazer ao Espírito do Mal incluem,
por exemplo: qual o número e quais os nomes dos espíritos possessores;
quando foi que invadiram o possuído; por que o invadiram – e outras do
mesmo tipo. Que o exorcista restrinja demais vaidades, escárnios e tolices
do Espírito Maligno. Ele as deve tratar com desprezo e admoestar os
presentes – que devem ser poucos em número – a não atentarem para o que
diga o Espírito do Mal nem fazerem perguntas ao possuído. Que orem a
Deus, humilde e fervorosamente, pela salvação do possuído.
16. O exorcista deve atuar com firmeza, autoridade, grande fé, humildade
e fervor. E, quando vir que o espírito possessor está agonizando, deve
aumentar seus esforços para pressioná-lo. Sempre que vir alguma parte do
corpo do possuído em movimento, perfurada ou ainda aparentando certo
inchaço, que ele faça o sinal da cruz e aspirja a água benta.
17. Que ele atente também para as palavras e expressões que mais
perturbem o Espírito do Mal e as repita com freqüência. Chegado o
momento da expulsão, que ele pronuncie a expulsão seguidas vezes, sempre
aumentando a punição e, constatando sucesso, que ele persevere até a
vitória final.
18. Que ele finalmente tenha a cautela de não oferecer ou sugerir
qualquer medicamento ao possuído. Isso se deve deixar a cargo de médicos.
19. Caso se trate do exorcismo de uma mulher, ele deve ter consigo
mulheres honradas que venham a conter a possuída quando esta for
atormentada e sacudida pelo Espírito do Mal. Tais mulheres devem ter
grande paciência e pertencer à família da possuída. O exorcista deve estar
preparado para o escândalo e evitar quaisquer ações ou palavras que possam
causar mal a ele ou aos outros.
20. Durante o exorcismo, o exorcista deve usar as palavras da Bíblia em
vez das suas próprias ou da de outrem. Deve também impor ao Espírito
Maligno que diga se permanece no possuído por conta de algum feitiço,
símbolo de bruxaria ou documento oculto. Para que o exorcismo seja bem
sucedido, o possuído tem de os entregar. Se tiver ingerido algo desse tipo,
ele o vomitará. Se tal item estiver em algum lugar fora do corpo, o Espírito
do Mal deverá indicá-lo ao exorcista. Ao encontrá-lo, o exorcista deverá
queimá-lo.
21. O possuído, caso venha a ser liberto do Espírito do Mal, deve receber
orientação para que evite ações e pensamentos pecaminosos. Do contrário,
poderá dar ao Espírito do Mal a ocasião de retornar e possuí-lo. Nesse caso,
estaria em condição muito mais grave do que antes.
CAPÍTULO II RITUAL DE EXORCISMO DOS POSSUÍDOS PELO
ESPÍRITO DO MAL

1. Instruções preliminares
Antes de dar início ao exorcismo, o sacerdote apontado pelo Bispo deve
bem confessar-se ou ao menos renovar em seu coração a sincera contrição
por todos os seus pecados. Ele deve dizer a Missa e rogar a Deus que o
ajude. Então, vestindo sobrepeliz e estola roxa, deve colocarse em pé diante
do possuído. Este deve ser amarrado caso haja risco de violência. O
exorcista deve então invocar proteção ao possuído, a si próprio e aos
assistentes fazendo o sinal da cruz e aspergindo a água benta.

2. Invocações
De joelhos, deve recitar as seguintes invocações, às quais responderão
seus assistentes:
Exorcista: (Ladainha de todos os Santos)
Não lembrai-Vos, ó Senhor, de nossa iniqüidade nem da iniqüidade de
nossos antepassados.
Assistentes: E não nos castigai por nossas ofensas.
E: (Pai Nosso – secreto até a última parte)
E não nos deixeis cair em tentação.
A: Mas livrai-nos do mal.
E: (Salmo 53)
Salvai este vosso servo.
A: Que em Vós confia, meu Deus.
E: Sede para ele uma torre fortificada, Senhor.
A: Perante o Inimigo.
E: Que o Inimigo não prevaleça sobre ele.
A: E nenhum mal possa fazer-lhe o Filho da Iniqüidade.
E: Enviai-lhe do vosso santuário o vosso auxílio, Senhor.
A: E de Sião socorrei-o.
E: Ouvi, Senhor, a minha prece.
A: E chegue a Vós o meu clamor.
E: O Senhor esteja convosco
A: E com o teu espírito.
E: Oremos.
Deus de bondade infinita, que estais sempre pronto a compadecer-Vos
e a perdoar, atendei a nossa súplica e fazei com que este vosso servo,
oprimido pelos grilhões do poder diabólico, seja liberto pela vossa
benigna misericórdia. Santo Deus! Pai todo-poderoso! Deus Eterno!
Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo! Vós que mandastes o tirano apóstata
e recalcitrante para o fogo do Inferno, vós que enviastes o filho
unigênito para que abatesse esse leão que ruge, olhai para este vosso
servo, criado à vossa imagem e semelhança, e arrancai-o do Pai da
Mentira. Afligi com terror, Senhor, a besta que destrói o que é vosso.
Dai a vossos servos fé para que combatam sem temor a serpente. Para
que a serpente não mais atormente aqueles que crêem em vós e nem
diga, como fez pela boca do Faraó, “não conheço Deus, e não libertarei
Israel”. Que vossa grandiosa força obrigue a serpente a deixar vosso
servo, que ela não mais possua este filho que vós vos dignastes criar à
vossa imagem e semelhança e redimir por seu filho, que vive e reina
convosco na unidade do Espírito Santo, pelos séculos dos séculos.
A: Amém

3. Intimação ao Espírito do Mal


E: Espírito impuro! Ordeno-te, quem quer que sejas, bem como todos
os teus servos, que pelos mistérios da Encarnação, Paixão, Morte,
Ressurreição e Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo; pela efusão do
Espírito Santo e pela vinda do Senhor no Juízo Final:
Digas-me, com algum sinal, o teu nome,
O dia e a hora da tua danação.
Obedeças-me em tudo,
Mesmo eu sendo mero servo de Deus.
Não firas esta criatura (nome do possuído), meus assistentes
Ou quaisquer de seus bens.

4. Leituras do Evangelho

João 1, 1-12; Marcos 16, 15-18; Lucas 10, 17-20; Lucas 11, 14-22.

E: Ouvi, Senhor, a minha prece.


A: E chegue a Vós o meu clamor.
E: O Senhor esteja convosco.
A: E com o teu espírito.
E: Oremos.
Deus Todo-Poderoso! Verbo Divino, o Pai! Cristo Jesus! Deus e
Senhor de toda a criação! Vós concedestes poder aos Apóstolos para
que passassem incólumes pelo perigo e, entre as maravilhas que
ordenastes, dissestes “expulsai o Espírito do Mal”. Por vossa força,
Satanás caiu do Céu feito raio. Com temor, rogo em vosso santo nome
que perdoeis os pecados deste indigno servo. Dai-me incessante fé e
poder para que, munido tão-somente de vossa força, ataque esse
espírito cruel com confiança e segurança. Por vós, Jesus Cristo, Nosso
Senhor, que há de vir a julgar os vivos e os mortos pelo fogo.
A: Amém.

5. Imposição das mãos sobre o possuído


O exorcista invoca a proteção divina para si próprio e para o possuído
fazendo o sinal da cruz. Coloca então a ponta da estola no pescoço do
possuído e sua mão direita sobre a cabeça do mesmo. Pleno de convicção e
fé, pronuncia o seguinte:
E: Eis a cruz do Senhor. Fugi, forças inimigas!
A: Jesus, com antiga força e nobre poder, é vitorioso.
E: Ouvi, Senhor, a minha prece.
A: E chegue a Vós o meu clamor
E: O Senhor esteja convosco.
A: E com o teu espírito.
E: Oremos.
Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, invoco vosso Santo Nome e
suplico: concedei-me forças contra os espíritos iníquos que
atormentam esta vossa criatura. Pelo mesmo Jesus Cristo Nosso
Senhor
A: Amém.

6. Fórmulas do exorcismo dirigidas ao espírito maligno


a) Advertência ao Espírito do Mal
E: Eu te exorcizo, espírito imundíssimo. E cada espírito invasor! Vós
todos! Em nome de Nosso Senhor Jesus + Cristo, afasta-te dessa
criatura de Deus. + Ele, que te domina, mandou precipitar-te do alto
dos Céus às profundezas do Inferno. + Ele, que te domina, que
dominou o mar, os ventos e as tempestades. Ouve e teme, Satanás!
Inimigo da fé! Inimigo do gênero humano! Fonte da morte! Corruptor
da justiça! Raiz do mal! Sedutor dos homens! Traidor das nações!
Incitador da inveja! Pai da cobiça! Razão da discórdia! Criador da
agonia! Por que resistes quando sabes que Cristo Nosso Senhor já
destruiu teu plano? Teme Aquele prefigurado em Isaac, em José e no
cordeiro pascal, Aquele que foi crucificado enquanto homem e que
ressuscitou dos mortos.
(Fazendo o sinal da cruz sobre a testa do possuído)
Portanto, retira-te em nome do Pai +, do Filho + e do Espírito + Santo.
Dá lugar ao Espírito Santo por este sinal da Santa + Cruz de Nosso
Senhor Jesus Cristo, Ele que vive e reina com o Pai na unidade do
Espírito Santo pelos séculos dos séculos.
A: Amém.
E: Ouvi, Senhor, a minha prece.
A: E chegue a Vós o meu clamor
E: O Senhor esteja convosco.
A: E com o teu espírito.
E: Oremos.
Deus, criador e protetor do gênero humano, que fizestes o homem à
vossa imagem, olhai para este vosso servo (o exorcista pronuncia o
nome do possuído) que sofre com a insídia do espírito iníquo. O
primeiro adversário, inimigo da Terra, atormenta-o com medo, oprime-
o com escuridão, aflige-o com terror, agita-o com tremores. Rechaçai,
Senhor, o poder do Espírito do Mal! Dissolvei as falácias de seus
engodos! Que se vá o tentador perverso. Que vosso servo seja
protegido em sua alma e em seu corpo pelo sinal + de vosso nome (na
testa do possuído). (O exorcista faz então três sinais da cruz sobre o
peito do possuído enquanto pronuncia as seguintes palavras:)
+ Preservai o âmago dessa pessoa.
+ Governai seus sentimentos.
+ Fortalecei seu coração.
Que o poder do Inimigo se dissipe de sua alma pela invocação de vosso
Santo Nome, Senhor. Que a graça imponha derrota e retirada àquele que até
aqui inspirou o terror, para que este seu servo vos possa louvar com coração
firme e alma sincera. Por Cristo Nosso Senhor.
A: Amém.
b) Imposição ao Espírito do Mal:
E: Esconjuro-te, antiga serpente, em nome do Juiz dos Vivos e dos
Mortos! Em nome do Nosso Criador! Em nome do criador do mundo! Em
nome d’Aquele que tem poder para mandar-te ao Inferno! Deixa este servo
de Deus (o exorcista nomeia o possuído) que recorreu à Igreja. Cessa de lhe
inspirar teu terror. Eu te exorto solenemente + (sobre a testa do possuído),
não por mim que sou fraco, mas pela força do Espírito Santo: que te retires
deste servo (nome do possuído), criado pelo Todo-Poderoso à Sua imagem.
Rende-te não a mim, mas ao sacerdote de Cristo. Seu poder te subjuga. Ele
te derrotou na Cruz. Teme a força d’Aquele que guiou as almas dos mortos
da escuridão da espera à luz da salvação. Que o corpo deste homem +
(sobre o peito do possuído) te aterrorize. Que a imagem de Deus + (sobre a
testa do possuído) te amedronte. + Assim te ordena Deus Pai. + Assim te
ordena Deus Filho. + Assim te ordena Deus Espírito Santo. + Assim te
ordena a fé dos Santos Apóstolos, Pedro, Paulo e os outros santos. + Assim
te ordena o sangue dos mártires. + Assim te ordena a pureza dos
confessores. + Assim te ordena a piedosa intercessão de todos os santos. +
Assim te ordena a força dos mistérios da fé cristã. + Sai, ofensor! Sai!
Tentador cheio de lábia e falsidade! Inimigo da virtude! Perseguidor dos
inocentes! Retira-te, ser abjeto! Retira-te, ímpio! Dá lugar a Cristo, em
quem nunca logrou nada de teu! Ele destruiu o teu reino. Ele te cobriu de
derrota. Ele tirou a tua força. Ele te lançou na escuridão exterior onde
estava preparada a destruição tua e de teus seguidores.
Mas por que ofereces tão truculenta resistência? Por que te atreves a
negar? Condenado estás pelo Deus Todo-Poderoso cuja lei violaste.
Condenado estás por seu filho, Jesus Cristo Nosso Senhor. Ousaste tentá-lo
e ousaste crucificá-lo. Condenado estás pelo gênero humano a quem
ofereceste o veneno de tuas sugestões.
Eu, portanto, cobro-te sob grave pena, maligna serpente, em nome do
Cordeiro + Imaculado, imune a todo espírito do mal: deixa esta pessoa +
(sobre a testa do possuído). Deixa a Igreja de Deus + (sobre os assistentes).
Teme e retira-te em nome de Nosso Senhor, temido pelos poderes do
Inferno; a quem se sujeitam as Potestades, as Virtudes e as Dominações do
Céu; a quem louvam incessantes os Querubins e os Serafins: Santo! Santo!
Santo! Senhor dos exércitos!
É o Verbo Encarnado que te ordena. + Ele que nasceu de uma Virgem +
te ordena. Quando ignoraste com desprezo seus discípulos, ele te quis
derrotado e humilhado para sair daquele homem. E, uma vez arrancado de
lá, não ousavas entrar sequer num porco quando na presença d’Ele. Agora
que estás advertido em seu nome, + sai desta pessoa criada por Ele. Não
tens como resistir. + Não tens como te recusar a obedecer + pois, quanto
mais tempo levares, mais castigado havereis de ser. Tu não desacatas os
homens, mas Aquele que ordena os vivos e os mortos, Aquele que há de
julgar pelo fogo os vivos e os mortos.
A: Amém.
E: Ouvi, Senhor, a minha prece.
A: E chegue a Vós o meu clamor.
E: O Senhor esteja convosco.
A: E com o teu espírito.
E: Oremos.
Deus do Céu! Deus da Terra! Deus dos Anjos! Deus dos Arcanjos! Deus
dos Patriarcas! Deus dos Profetas! Deus dos Apóstolos! Deus dos Mártires!
Deus das Virgens! Deus, que tendes poder de dar a vida após a morte e o
descanso após o trabalho, porque não há nem pode haver outro Deus além
de Vós. Criador do Céu e da Terra, rei verdadeiro de um reino que não tem
fim, imploro humildemente à vossa gloriosa majestade que liberteis este
vosso servo dos espíritos iníquos. Por Cristo Nosso Senhor.
A: Amém.
c) Segunda Imposição ao Espírito do Mal
E: Eu, portanto, advirto cada espírito impuro, cada demônio, cada
membro de Satanás, em nome de Jesus Cristo + de Nazaré. Depois de ser
batizado por João, ele foi levado ao deserto e te superou em teu próprio
território. Deixa de atormentar este homem, que Jesus constituiu da matéria,
para sua honra e glória. Estremece, não com a fragilidade humana de um
homem miserável, mas com a imagem de Deus Todo-Poderoso. Rende-te
portanto ao Deus + que te expulsou do Rei Saul pelos cânticos espirituais de
seu fiel servo Davi. Entrega-te + ao Deus que te condenou em Judas
Iscariotes, o traidor. Pois ele te tocou com a punição divina e, num grito, tu
exclamaste: “Que há entre você e eu, Jesus, Filho do Altíssimo?”. Ele, que
agora te mantém nas chamas do fogo perpétuo dirá no fim dos tempos a
Satã e a seus anjos: “Deixai-me, Malditos! E ide às chamas eternas,
preparadas para o Demônio e seus anjos”. A morte é o teu destino, ó ímpio!
E para os teus anjos está guardada a morte eterna. Para ti e para teus anjos a
chama inextinguível foi preparada, pois tu és o Príncipe dos homicidas
malditos, o autor do incesto, a cabeça de todos os sacrilégios, mestre das
mais pérfidas ações, professor dos hereges, inventor de toda obscenidade.
Sai, pois, + ímpio. Sai, + criminoso! Sai com todas essas falsidades! Deus
quis que o homem fosse d’Ele um templo. Por que se demorar mais em
meio a nós? Obedece o Deus Pai-Todo Poderoso, diante do qual todo joelho
se dobrará. Dá lugar a nosso Senhor Jesus + Cristo, que derramou seu
próprio sangue em prol do homem. Dá lugar ao Espírito + Santo que,
através do Bendito Apóstolo Pedro te derrotou manifestamente em Simão, o
Mágico; condenou tua falsidade em Ananias e em Safira; frustrou-te no
mágico Élimas afligindo-o com a cegueira. Por esse mesmo apóstolo, o
Espírito ordenou que tu partisses da Profetisa de Pitão. Sai, pois, agora +.
Vai embora, + sedutor! O deserto é tua casa. A serpente, tua morada. Sê
humilhado e rebaixado. Não podemos mais esperar. Eis o Senhor vitorioso
que se aproxima com rapidez. O fogo se consome diante dele e devora
todos os seus inimigos. Pois, embora tu tenhas enganado os homens, não
podes zombar de Deus. De seus olhos nada se esconde: Ele te expulsou.
Tudo está submisso ao seu poder: Ele te expeliu. Os vivos, os mortos e o
mundo serão julgados por ele em total discernimento: Ele preparou o
Inferno para ti e para teus anjos.

7. Instruções adicionais e preces


Depois de tudo ter sido recitado, podem-se repetir as falas, quantas vezes
for necessário, até que possuído esteja completamente livre. É de grande
ajuda, aliás, repetir com devoção o Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo sobre
o possesso, bem como o Magnificat e o Benedictus – os últimos dois
terminando em Gloria.

8. Profissão de fé (Sto. Atanásio)


Quem quiser salvar-se deve antes de tudo professar o credo universal.
Aquele que não o professar, integral e inviolavelmente, perecerá sem
dúvida por toda a eternidade.
A fé católica consiste em adorar um só Deus em três Pessoas e três
Pessoas em um só Deus. Sem confundir as Pessoas nem separar a
substância de Deus. Porque a Pessoa do Pai é uma, a do Filho é outra, e
ambas diferem da pessoa do Espírito Santo. Mas uma só é a divindade do
Pai, do Filho e do Espírito Santo, em igual glória, em coeterna majestade.
Tal como é o Pai, tal é o Filho, tal é o Espírito Santo. O Pai é incriado, o
Filho é incriado, o Espírito Santo é incriado. O Pai é imensurável, o Filho é
imensurável, o Espírito Santo é imensurável. O Pai é eterno, o Filho é
eterno, o Espírito Santo é eterno. E contudo não há três seres eternos, mas
um só. Não há três seres incriados, nem três seres imensuráveis, mas um só
Ser incriado e imensurável.
Da mesma maneira, o Pai é onipotente, o Filho é onipotente, o Espírito
Santo é onipotente. Mas, ainda, não são três onipotentes, mas um só Ser
onipotente.
Assim o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus. E contudo
não são três deuses, mas um só Deus. Do mesmo modo, o Pai é Senhor, o
Filho é Senhor, o Espírito Santo é Senhor. E contudo não são três senhores,
mas um só Senhor. Assim como a verdade cristã nos manda confessar que
cada uma das Pessoas é Deus e Senhor, do mesmo modo a fé católica nos
proíbe de falar em três deuses e senhores.
O Pai não foi feito por ninguém, nem gerado e nem criado. O Filho
procede do Pai; não criado, mas gerado. O Espírito Santo vem do Pai e do
Filho: não foi feito, não foi criado e nem foi gerado, mas procede. Só há um
Pai, portanto, e não três pais; um só Filho, e não três filhos; um só Espírito
Santo, e não três espíritos.
E nesta Trindade não há nem mais antigo nem menos antigo, nem maior
nem menor. Mas as três Pessoas são coeternas e iguais entre si. E, pois,
como se disse acima, nós adoramos a unidade na Trindade e a Trindade é
unidade. Quem, pois, quiser salvar-se, deve assim crer a respeito da
Trindade.
Mas, para alcançar a salvação, é necessário ainda crer firmemente na
Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo. A correta fé consiste, pois, em
crer ainda e confessar que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é
Deus e homem. É Deus, na substância do Pai, e gerado antes dos tempos. E
é homem da substância de sua mãe, tendo nascido de sua mãe, no tempo.
Perfeito Deus. Perfeito homem, com alma racional e carne humana. Igual
ao Pai em divindade; menor que o Pai segundo a humanidade. E embora
seja Deus e homem, não é dois, mas um só. É um, não porque a divindade
se tenha convertido em humanidade, mas porque sua humanidade é
assumida por sua divindade. Ele é integralmente um, não porque suas
substâncias se tenham fundido, mas pela unidade de sua Pessoa. Porque,
assim como a alma racional e o corpo formam um só homem, assim
também Deus e o homem formam o Cristo.
Ele padeceu pela nossa salvação, libertou aqueles já mortos e à espera, e
ressurgiu dentre os mortos três dias depois. Subiu aos Céus e está sentado à
direita de Deus Pai Todo-Poderoso, e depois disso deverá vir para julgar os
vivos e os mortos. Quando vier, todos os homens ressuscitarão com os seus
corpos, e deverão prestar conta de todos os seus atos. E aqueles que tiverem
praticado o bem entrarão para a vida eterna. E os que tiverem feito o mal
entrarão no fogo eterno.
Esta é a fé católica, e quem não a professar fiel e firmemente não se
poderá salvar.
Glória.
A: Amém.

9. Leitura de Salmos
E: Salmos 90, 67, 34, 30, 21, 3, 10, 12

10. Ação de graças


E: Rogamo-Vos, Deus Todo-Poderoso, que o Espírito do Mal nunca mais
exerça poder sobre este vosso servo (pronuncia-se o nome do possuído).
Fazei com que nele habite a bondade e a paz de Nosso Senhor Jesus Cristo,
porque por Jesus fomos salvos. E não nos deixeis temer qualquer mal, pois
que o Senhor é conosco, Ele que vive e reina convosco na unidade do
Espírito Santo, pelos séculos dos séculos.
A: Amém.
CAPÍTULO III O EXORCISMO DE SATANÁS E DOS ANJOS
APÓSTATAS

1. Instruções
O seguinte exorcismo pode ser recitado por bispos e também por padres
que tenham recebido de seus próprios bispos a devida autorização.

2. Invocação de São Miguel Arcanjo


Gloriosíssimo Príncipe das Milícias Celestes, São Miguel Arcanjo,
defendei-nos no combate contra os príncipes e potestades, contra os
dominadores das trevas neste mundo, contra as iniqüidades espirituais dos
anjos decaídos. Vinde em auxílio dos homens, que Deus formou à Sua
imagem e semelhança e resgatou da tirania diabólica com grande preço. A
Santa Igreja vos celebra como seu guarda e patrono; o Senhor vos confiou
as almas dos redimidos, para conduzi-las à felicidade eterna. Intercedei ao
Deus da paz, para que ele esmague Satanás sob nossos pés; a fim de que
não possa manter cativos os homens e causar dano à Igreja. Levai as nossas
preces à presença do Altíssimo, para que logo desça sobre nós a
misericórdia do Senhor. Dominai esse Animal, a Serpente Antiga que é o
Inimigo e o Espírito do Mal, e reduzi-o ao abismo eterno, para que ele não
mais seduza as nações.

3. Proclamação do exorcismo
Em nome de Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor; pela intercessão da
Imaculada Virgem Maria Mãe de Deus, por São Miguel Arcanjo, os santos
Apóstolos Pedro e Paulo e todos os santos; e confiando na autoridade que
me conferem os sagrados ministérios, estamos prestes a repelir a infestação
diabólica.
4. Prece
E: (Salmo 67)
Levanta-se Deus e dispersam-se os seus inimigos.
A: E fogem diante d’Ele os que O odeiam.
E: Que eles se dissipem como a fumaça.
A: Como a cera se derrete ao fogo, assim perecem os pecadores diante
d’Ele.
E: Eis a Cruz do Senhor: sejam derrotadas as forças adversárias!
A: A antiga força será vitoriosa, o Rei dos reis!
E: Conceda-nos a vossa misericórdia, Senhor!
A: Porque em Vós esperamos.

5. Fórmulas de exorcismo para Satanás e para os Anjos Apóstatas


Nós vos exorcizamos, cada espírito perverso, cada força de Satanás, cada
leva de inimigos infernais, cada legião, cada congregação, cada facção
satânica! Em nome e pelo poder de Nosso Senhor Jesus + Cristo, saí e
afastai-vos da Igreja de Deus, das almas feitas à Sua imagem e redimidas
pelo sangue do Cordeiro.
+ Não te atrevas, serpente ardilosa, a iludir o gênero humano, perseguir a
Igreja de Deus, a atacar e joeirar como o trigo os eleitos +. É o que te
ordena o Deus Altíssimo +, Ele contra quem, na tua colossal soberba, te
opuseste, Ele que quer salvar todos os homens e conduzi-los ao
conhecimento da verdade.
Assim ordena Deus Pai. Assim ordena Deus Filho. Assim ordena Deus
Espírito Santo. Ordena-te o Cristo, Verbo eterno de Deus feito homem, ele
que destruiu tua odiosa inveja contra a salvação de nossa raça; ele que se
humilhou a si mesmo, obedecendo até à morte; ele que edificou sua Igreja
sobre rocha firme, prometendo que as portas do Inferno nunca
prevaleceriam sobre ela. Ele estará com sua Igreja todos os dias, até o fim
dos tempos.
Ordena-te o sacramento da Cruz +. Ordenam-te a virtude de todos os
mistérios da fé cristã. Ordena-te a excelsa Mãe de Deus, Virgem Maria +,
ela que, humilde, esmagou tua cabeça desde o primeiro instante de sua
Imaculada Conceição. Ordena-te a fé dos bem-aventurados Apóstolos Pedro
e Paulo. + Ordena-te o sangue dos mártires e a piedosa intercessão de todos
os santos +.
Portanto, ordenamos, maldita Serpente e todo poder de Satanás, pelo
Deus vivo +, pelo Deus verdadeiro +, pelo Deus santo +, pelo Deus que
amou o mundo a ponto de entregar Seu único filho, para que todos os que
nele crêem não pereçam, mas tenham vida eterna:
Cessa de iludir os seres humanos e de lhes oferecer o veneno da perdição
eterna.
Deixa de fazer mal à Igreja e de conspirar contra a sua liberdade. Vai,
Satanás! Pai e mestre de toda mentira! Inimigo da salvação humana! Dá
lugar ao Cristo, em quem não encontrarás nada da tua própria vileza. Dá
lugar à Igreja Santa, Católica e Apostólica que Cristo criou com seu próprio
sangue. Humilha-te sob a poderosa mão de Deus. Teme e foge quando
invocarmos o santo e terrível nome de Jesus, pois faz estremecer o Inferno
aquele a quem todas as Potestades, as Virtudes e Dominações do Céu estão
sujeitas; aquele que louvam incessantemente os Querubins e os Serafins:
Santo! Santo! Santo! Senhor dos exércitos!
E: Ouvi, Senhor, a minha prece.
A: E chegue a Vós o meu clamor.
E: O Senhor esteja convosco.
A: E com o teu espírito.

6. Prece
E: Oremos.
Deus do Céu! Deus da Terra! Deus dos Anjos! Deus dos Arcanjos!
Deus dos Patriarcas! Deus dos Profetas! Deus dos Apóstolos! Deus dos
Mártires! Deus das Virgens! Deus, que podes dar a vida após a morte e
o descanso após o trabalho, pois não há nem pode haver outro Deus
além de Vós. Criador do Céu e da Terra, Rei verdadeiro de um reino
que não tem fim. Imploramos humildemente à vossa gloriosa
majestade que nos liberteis, por meio de vosso poder, de todo poder do
Espírito Maligno, de suas armadilhas, ilusões e trapaças; dignai-vos
guardar-nos em segurança. Por Cristo Nosso Senhor.
A: Amém.

7. Invocações
E: Das ciladas do demônio,
A: Livrai-nos, ó Senhor.
E: Ao pedirmos que ajudeis a vossa Igreja a vos servir em
A: Nós vos pedimos: ouvi-nos!
E: Humilhai os inimigos da Santa Igreja,
A: Nós vos pedimos: ouvi-nos!

8. Benção do local de exorcismo


O local é aspergido com água benta.
II
Orações geralmente usadas em exorcismos
PAI NOSSO
Pai Nosso, que estais no Céu,
Santificado seja o Vosso Nome,
Venha a nós o Vosso Reino,
Seja feita a Vossa Vontade,
assim na Terra como no Céu.
O Pão-Nosso de cada dia nos dai hoje,
Perdoai-nos as nossas ofensas assim como
nós perdoamos a quem nos tem ofendido,
E não nos deixeis cair em tentação,
Mas livrai-nos do Mal.
Amém
***
AVE MARIA
Ave Maria, cheia de graça!
O Senhor é convosco.
Bendita sois vós entre as mulheres
E Bendito é o Fruto do vosso ventre,
Jesus.
Santa Maria, Mãe de Deus,
Rogai por nós, pecadores,
Agora e na hora de nossa morte.
Amém.
GLÓRIA
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo,
Assim como era no princípio, agora e sempre,
E por todos os séculos dos séculos. Amém.
***
Alma de Cristo, santificai-me.
Corpo de Cristo, salvai-me.
Sangue de Cristo, inebriai-me.
Água do lado de Cristo, lavai-me.
Paixão de Cristo, confortai-me.
Ó bom Jesus, ouvi-me.
Dentro das Vossas Chagas, escondei-me.
Não permitais que de Vós me separe.
Do espírito maligno, defendei-me.
Na hora da minha morte, chamai-me.
E mandai-me ir para Vós,
Para que Vos louve com os Vossos Santos,
Por todos os séculos.
Amém.
***
SALVE RAINHA
Salve Rainha, Mãe de Misericórdia;
Vida, doçura e esperança nossa, salve!
A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva;
A Vós suspiramos, gemendo e chorando neste Vale de Lágrimas.
Eia, pois, advogada nossa:
Esses Vossos olhos misericordiosos a nós volvei!
E depois desse desterro,
Mostrai-nos Jesus, bendito fruto do Vosso Ventre,
Ó Clemente,
Ó Piedosa,
Ó Doce e Sempre Virgem Maria.
Rogai por nós Santa Mãe de Deus,
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.
Amém.

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