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UMA LEITURA PEDAGOGICA DE PAUL RICOEUR E SOPHIA DE MELLO BREYNER Maria Anténia Jardim Universidade do Porto 1.1. O grande triangulo: Hermentutica / Desenvolvimento Moral / Narrativa Se muitas camadas de pensamentos, muitas entradas e safdas de labirinto ‘houve até chegarmos ao Grande Salto, 4 Grande Pegada na lua. Mufahs imutandis,também para chegar & existéncia do pensamento de Paul Ricoeur, foram precisos muitos pensadores, filésofos, antropélogos, psicdlogos... Plato, Aristételes, Nietzcshe, Kant, Heiddeger, Freud, Jung Dilthey, Gadamer... ¢ teremos que os ter em conta para chegarmos & obra simbélica de Ricoeur € podermos finalmente dar um grande salto educativo através dela. E pois com a sua obra ¢ através do que a mesma sugere, do que ficou por dizer, do dito nas entrelinhas e do escondido nas linhas, que vamos poder estabelecer a ponte entre a Filosofia, a Psicologia e a Literatura pata depois podermos dar o tal salto educativo, Da Filosofia, seleccionamos o ramo hermenéutico (0 privilegiado por Ricoeur): —Quais as ancoras de conceptualizagio e metodologia para o desenvolvimento de uma abordagem hermenéutica ? Paul Ricoeur serd o filésofo eujas dialécticas serdo utilizadas como coordenadas orien- tadoras para permitirem perceber o processo interpretativo no contexto da educago ética. As dialécticas seleccionadas constituem os pontos de ancoragem fundamentais para se entender a Teoria da Interpretagdéo de Ricoeur, a saber: = possessio / despossessio (articulaveis com os conceitos de egocentrismo ¢ descen- tragio de Piaget, Kohlberg). - semiintica de superficie /semantica de profundidade (a que podemos associar 0 expli to ¢ o implicito ou o consciente € 0 tacito em Freud e Lacan). - arqueologialteleclogia do sujeito (relaciondveis com nogdes de retrospecgdo & prospeccao) 390 ‘Uma leitura pedagdgica de Pan! Ricouer ¢ Sophia de Mello Rreyner Tais articulagdes permitirdo analisar eventuais complementaridades entre a proposta hermenéutico-ética e perspectivas estruturais do desenvolvimento psicolégico-moral, assim como paralelismos entre as linguagens das diferentes ciéncias, isto é, verificar que a Linguistica esté para a Linguagem como a Psicologia para o pensamento e que a Hermenéutica poderé funcionar para a Literatura como a Psicandlise para os discursos do su- jeito enunciador. Ainda relativamente & Hermenéutica iremos ver como esta se encontra em dialéctica com a ética e como esta tiltima,por sua vez, se iré metamor-foseando, a nosso ver, como hermenéutica da moral, Relativamente ao desenvolvimento moral, iremos observar em que medida é que ele se encontra condicionado por uma tarefa hermenéutico/ética das narra tivas, além de as proprias narrativas literdrias possuirem uma fungdo imaginativa cujo poten- cial serd analisado para servir o respectivo desenvolvimento. Finalmente e para fechar este triangulo equilitero, a literatura enquanto expresso de valores ¢ expresso estélica torna-se um instrumento vital para se poder analisar em que medida a Estética pode servir a Btica ou em que medida é que a leitura das narrativas (Conitos) pode desenvolver aluno ao nivel da moral e, provavelmente, demonstrar que as préprias paginas literdrias so paginas, que quando sfo lidas, so vivenciadas e experimentadas pelos respectivos leitores. Como refere Eagan (1992) as histérias tornam-se um instrumento através do qual aprendemos a lidar si- multaneamente com o conhecimento e com as nossas emogdes. Assim sendo, podemos con- cluir que as hist6rias servirdo aos leitores, de perfeitos laboratérios para equacionarem os scus dilemas ¢ problemas e respostas ¢ perguntas relativas & sua propria vida. Paul Ricoeur é cle proprio na sua obra, um disperso ¢ desdobravel autor e,talvez por isso, um excelente construtor de pontes entre diferentes matérias (Psicandlise, Fenomenologia, Simbélica, Ciéncias da Linguagem, Antropologia....), preocupado com o destino do Homem, com a sua Educacao, Nosso contempordneo, Ricoeur é hoje uma referéncia fundamental no que concerne a hermenéutica do texto e por conseguinte no que diz respeito & educagao dos valores. Daf que este trabalho pretenda centrar-se no seu projecto pedagdgico para revelar uma hermenéutica da educagio ¢tica; indissocidvel de uma literatura contemporanea en- quanto expressao de valores intemporais e universais,sujeita a um processo interpretativo dos mesmos: “jé nfio vivemos num consenso global de valores que seriam como estrelas fixas. Preparar as pessoas para entrar nesse universo problemético parece-me ser a tarefa da edu- cago moderna... 6 preciso estar atento a pontos de cruzamento e provocar os hugares de reencontro, pois as tradigdes de pensamento ndo so unicamente conilituosas. Criam tambem bens comuns. E isso que a educagio deve reforgar..."(Ricoeur 1993). Note-se que Ricoeur formula como cheve de toda a hermenéutica o seguinte” o homem €a nica “coisa” capaz de ser tocada e modificada pela Palavra”. Assim, a hermen€utica exer- ce-se na materialidade da linguagem que é, por sua vez, um verdadeiro fio condutor de um nove modo de pensar, o acto de existir, diz-nos Ricoeur, afirma-se na diferenga e relagéio com outros actos. Exprime-se por meio de obras e sinais, logo, a interpreta dos simbolos ¢ tex- tos transforma-se assim no modelo privilegiado de toda a auto-compreensao, que sabe que a Maria AntOnia Jardin 31 sua relagfo com a verdade néo é jé de posse, coincidéncia,transparéncia, mas de distincia, referéncia, simbolizagiio, interpretagao ou reinterpretagao.” 0 que deve ser interpretado num texto & uma proposigao de mundo,o projecto de um mundo que eu poderia habitat e onde poderia desenvolver os meus possiveis mais préximos...” (Ricoeur 1995). Quer isto dizer que, para a filosofia hermenéutica ,o texto enquanto obra,testemunho do estar no mundo,permite- -me ver 0 mundo com outros olhos,abrit-me a outras perspectivas. O Mundo jé configurado pelo texto configura-me, recria-me, suspendendo o meu olhar particular, O sujeito que Ié e in- terpreta os textos, testemunhos de vida jé vivida e interpretada, € um sujeito desenvolvido, aberto a outras perspectivas com as quais até pode estar em conflito. Agora é o encontro de horizontes 0 verdadeiro fio condutor (no contexto histérico de hoje,tal adquire a maior im- portancia). O sujeito que interpreta o texto, é, por sua vez, por ele interpretado. A apropriagao ou leitura implicada modifica o leitor, obriga-o a desapropriar-se de si e a receber do texto uma nova proposta. Pela ficcio, novas possibilidades de estar-no-mundo sao indicadas & realidade quotidia- na. Deste modo, a interpretagdo do texto, das grandes obras, é um alimento de primeira ne- cessidade. E neste sentido que a leitura ¢ um palco silencioso, mas eco verdadeiro da for- magiio humana, para que uma educagio ética possa ter lugar, aqui ¢ agora. E um facto que nenhuma das obras de Ricoeur corresponde ou trata especificamente um projecto educativo; no entanto, parece-nos que ao conhecer a obra no seu conjunto, esse pro- jecto se encontra af implicito, pedindo para ser desvendado. Tentamos, pois, coresponder a este apelo, procurando encontrar o ponto de apoio de Arquimedes, isto €, os pilares em que pode assentar uma leitura pedagégica do fil6sofo. Uma leitura que conduza, de facto, a uma educagio ética,como previa a Paedeia, Deste modo, ao longo deste trabalho, o que Ricoeur disse ird ser téo importante como o que sugeriu, de algum modo. Igualmente, iremos ver er que medida o que é defendido nas suas teorias vai colidir e ou complementar 0 que, por exem- plo, Lawrence Kohlberg (1976) acrescentou as teorias do desenvolvimento moral, retirando daf a respectiva mais valia, Por outro lado, ndo iremos descurar a fungao do simbolo na nar- rativa e do que cle nos poderd fornecer ao nivel hermenéutico; assim como iremos dar contas da fungdo imaginativa relativamente & ética. Ao ler algumas passagens de um ensaio de José Saramago “o autor como narrador”, publicado no n° 38 da revista Ler: Pergunta-se: “Que fazemos, em geral, nds, os que es- crevemos? Contamos histérias. Contam histérias os romancistas, contam histérias os dra- maturgos, contam histérias os poetas, contam-nas igualmente aqueles que nao sao, € nao viréo nunca a ser poetas, dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples falar quotidianos so jé uma histéria. As palavras proferidas, ou apenas pensadas, desde o levantar da cama, pela manhi, até ao regresso a ela, chegada a noite, sem esquecer as do sonho e as que ao sonho tentaram descrever, constituem uma histéria com uma coeréncia propria, continua ou fragmentada, ¢ poderio, como tal, em qualquet momento, ser organizadas e articuladas em hist6ria escrita...”. 392 Una leu pedupcn de Pau Riouer ¢ Sophia de Mello eynse Isto quer dizer que todos nds lemos, fazemos leituras desde que nos levantamos até que nos deitamos e contamos essas mesmas leituras em forma de histérias mais ou menos curtas com mais ou menos peripécias com mais ou menos dilemas ou contradicgdes e é por isso que Saramago prossegue: “... - um livro é acima de tudo, a expresso de uma parcela identificada da humanidade: 0 seu autor. Pergunto-me até, sé o que determina 0 leitor a ler nao sera uma secreta esperanga de descobrir no interior do livro-mais do que a histéria que Ihe seré narrada- a pessoa invisivel mas omnipresente do seu autor...”. No fundo Saramago aponta aqui para a problematica da identificagao possivel do leitor com 0 autor; para a possibilidade de ele proprio se tornar co-autor da obra que est4 a Jer,dado que “ 0 que o autor vai narrando nos seus livros é, tio-somente,a sua histéria pessoal. Nao o relato da sua vida,ndo a sua bio- grafia(...) mas uma outra, a secreta,a profunda a labirfntica, aquela que com o proprio nome dificilmente ousaria ou saberia contar. Talvez porque o hé de grande em cada ser humano seja demasiado grande para caber nas palavras com que ele a si mesmo se define e nas sucessivas figuras de si mesmo que povoam um passado que néo & apenas seu,e por isso Ihe escaparé sempre que tentar isol4-lo e isolar-se nele (...) talvez porque certos autores previlegiem ,nas histérias que contam,nio a historia que vivem ou que viveram, mas a histéria da sua propria membéria, com as suas exactiddes, os seus desfalecimentos, as suas mentiras que também sao verdades, as stias verdades que néio podem impedir-se de serem mentiras. Bem vistas as coisas, sou s6 a meméria que tenho, ¢ essa é a histéria que conto, Omniscientemente.”” Neste passo jé se equaciona a importancia do desdobramento do “eu”,das nossas bio- grafias ocultas e das vozes que nos assombram a casa { a nossa morada Pessoana), o peso do Passado que co-habita em nés, na nossa meméria feita de reais ficgdes, ou seja, de continuas contradigdes e absurdos, de niio-légica. Assim sendo, podemos concluir que as histérias servirdo aos leitores, de perfeitos laboratérios para equacionarem os seus dilemas e proble- mas e respostas e perguntas relativas & sua propria vida. O racional e o sensfvel serao dois indicadores preciosos pata 0 equilfbrio deste trabalho, que teré como matéria prima a ser experienciada com os alunos: os Contos de Sophia de Mello Breyner Andresen. Contos, que, uma vez lidos ¢ interpretados, poderao contribuir para uma melhor compreensao do sujeito que os 1é; logo, poderao contribuir para um desenvolvi- mento moral do aluno na medida em que este se poderd ou nao identificar com o dilema em que se encontram as personagens; poderé equacionar pontos de vista, confrontar opinides, es- tabelecendo paralelos ou contrastes com a sua propria vida. Um tal processo poderd facultar ao aluno varias coisas: I Tomar consciéncia de que é simultaneamente leitor e co-autor da histéria que Ié, 2° Aperceber-se de que as verdades sfio temporais e que as decisées podem alterar-se. 3° Reconhecer a alteridade que encerra dentro de si e comegar a poder lidar com ela com consciéncia,tendo a oportunidade de escolher em liberdade. Logo, quer a Litica, quer a Autonomia sfo duas vertentes axiolégicas (alids previlegiadas ‘Maria Anténia Jardim 393 na L.B.S.E.) que poderao ser desenvolvidas através de uma Hermenéutica da Narrativa. Para além disso,poderemos ainda fazer cruzar a Hermenéutica Literdria com o Desenvolvimento Moral através dos dilemas de Kohlberg ¢ da sua teoria sobre os estadios de desenvolvimento, estabelecendo um paralelismo entre passagens liricas em que o “eu” se exprime mais veementemente € em que os sentimentos € emogGes emergem, ¢ os estddios de desenvolvi- mento moral em que o sujeito se encontra fechado numa gaiola de egosmo e condicionado pelos afectos, nfo conseguindo atingir o estédio 6. Por outro lado, poderemos fazer corresponder as passagens mais épicas em que os herdis ou heréi se transcende a si mesmo e encontra o seu alter ego,o outro de si,o altrufsmo ¢ defende uma causa,o pais,um valor univer- sal, aos estédios de desenvolvimento moral que se aproximam do 6,nos quais 0 aluno opta por algo altrufsta que se identifica com o universal. Isto nfo quer dizer que o trabalho ndo contemple as limitagSes de uma teoria Kohlbergeriana e nao ofereca alternativas a esta mesma, nomeadamente no sublinhar a importancia do campo dos afectos, ou seja, de uma razio sensfvel, um pouco descurada por este autor, Seré igualmente importante uma reflexo sobre os valores morais pessoais e universais para nos apercebermos de que, de facto, em Ricoeur, é possivel ler, pela primeira vez, a Btica como algo distinto da Moral, permitindo interpretd-la conforme os contextos. A Eduicagiio serd, assim, perspectivada como uma tarefa essencialmente hermenéutica, sendo a Hermenéutica, a nosso ver, uma componente dialéctica da Etica, o que, por sua vez, fard com que a Etica se torne uma hermenéutica da moral,como iremos tentar demonstrar. 1.2 Educago Etica: Interpretaciio / Auto-Compreensiio ‘Metaforicamente falando, o conceito de uma educagao ética terd que ver com o facto de percebermos que 0 aluno “vive na mesma drvore diferentes estagdes”, isto é vive no seu corpo, no mesmo corpo sucessivos desenvolvimentos e de variadissima ordem, em diferentes contextos, condicionamentos, pulses, experiéncias, enfim, todo um Ser e Estar no Mundo que deve ser Ievado em conta sempre que um aluno est a ser avaliado e/ou comparado com outras avaliagées. E de suma importincia nfo esquecer que o aluno é continuamente um Mesmo/outro de si préprio; logo, uma educagiio ética passa inevitavelmente por uma dialéctica Hermenéutico- -Etica, que por sua vez, ser fortalecida se uma hermenéutica da narrativa for introduzida como metodologia no processo de desenvolvimento/aprendizagem ao nivel moral. A interpretagao de uma histéria/conto poderd ajudar numa auto-interpretago ¢ auto- -compreensio, proporcionando novos horizontes/mundos para o aluno como leitor e novas experiéncias e descobertas (alteridade) para o aluno como co-autor, Todo 0 processo condu- ziré, nfo mais a uma heteronfmia involuntéria do ser humano, mas a um assumir de papéis consciente, a uma alteridade que se conquista pelo discernimento e nfo pelo acaso que um 394, Un Ieitwa podepigicn de Paul Ricouer ¢ Sophia de Melo Breyner determinado contexto pode proporcionar, Trata-se de um caminho em que o aluno poderé compreender melhor as relagdes humanas, em que medida a influéncia é 0 micleo das re- Jag6es,e consequentemente perceber como é que ele proprio é ou foi influenciado nesta ou naquela direcgdio; como & que adquiriu esta ou aquela visio do mundo e quais os factores que a determinaram. Donde, o mal-entendido tenderd a ser eliminado porque o canal da comunicagio estard claro para o interlocutor:o aluno tenderé a comunicar ser equ{vocos e portanto a sua relagZio com os demais seré facilitada assim como uma harmonia com o mundo em que vive, pois no existe conflito entre 0 que se pensa ¢ 0 que se diz ou comunica; o agir € 0 pensat serfio com- plementares ¢ nao opostos entre si. Dai que se possa dizer muito sucintamente que a educagao ética € um saber interpretar para melhor saber compreender. 1.3 0 homo hermencuticus ¢ as pedagogias da alteridade Como nos chama a atengGo Ortiz-Osés (1989)-"O homem é a morada do “mundo”, ¢ no apenas 0 mundo morada do homem. O homem é 0 homo interpres”. De facto, o homem interpée-se entre naturaza ¢ hist6ria porque interpreta, o homem é, em relagao dialéctica, intérprete do mundo e interpretado pelo seu prdprio mundo, isto é, 0 ‘Mundo é sempre mundo do homem,quer dizer,mundo habitado, habitavel, culturalizado. Mas, por sua vez, o homem-intérprete também ja se encontra interpretado pelo seu mundo ,quer dizer, pela prévia interpretago (linguagem) que ele mesmo realiza no espago e no tempo. E que,se 0 homem ¢ 0 intérprete, ¢-o através da linguagem e enquanto intésprete da natureza em histéria, com ou sem sentido, homem situa-se num Ser e Estar no Mundo (Heidegger 1992), face a uma contemporaneidade; questiona o seu passado e projecta um futuro. Esta atitude € fundamentalmente uma atitude hermenéutica. Pois, antes de optar, de es- colher, tomar uma decis%o,o homem articulou a sua experiéncia através da linguagem, nomeou a realidade que 0 rodeia, logo intérpretou e esté a ser interpretado na sua circunstén- cia (Ortega y Gasset). Existe uma experiéncia auto-interpretativa humana, porque a realidade é sempre uma re- alidade simbdlica (relacional e humana) ¢ o homem tem que assumir o papel de hermeneuta da sua préptia realidade, que, por sua vez, se traduzird numa determinada linguagem que pro- duzird um determinado discurso: “O que primeiro entendemos num discurso... é 0 esbogo de um novo estat-no-mundo” (Ricoeur 1976). Assim nos surge em terminologia antropoldgica: 0 homo hermeneuticus; aquele que se auto-entende, aquele que & capaz de interpretar 0 seu des- tino ¢ de e converter em destinagao, atribuindo-Ihe um sentido e inscrevendo a sua hist6ria na Histéria; a sua realidade individual em vocacio e realizago pessoal. Tal, acaba, a nosso ver, por constituir-se numa experiéncia ética que terd que ver, segundo Hans Jonas (1990) com “o arquétipo intemporal de toda a responsabilidade” Mari Antonia Jardin: 395 O homem torna-se responsavel também pelo mundo que reconstréi, que reconstitui projecta, assim como pelos valores que veicula através do didlogo com os seus contempord- neos. Torna-se pois evidente que questées como estas so essenciais para repensar uma Educagdo que pretende uma Reforma,isto é,segundo Pedro Orey da Cunha (1996) “uma mu- danga do sistema educativo necesséria para levar a cabo um novo desenvolvimento pessoal € social do jovem portugués, generalizando uma relagdo pedagégica nova,condizente com essa finalidade”, sendo que “o fim da reforma serd o desenvolvimento pessoal e social do aluno”, uma afirmagao que é jé de si, segundo o autoruma opgdo de fundo, o que quer dizer que “a reforma educativa est4 ao servigo do aluno antes de mais,sobretudo e por exceléncia”. De facto,o que todos esperamos é um novo perfil Portugués, condizente com as grandes linhas vincadas na Lei de Bases do Sistema Educativo, que prevé um desenvolvimento pes- soal social baseado na autonomia, Tal perfil estd indiscutivelmemte associado a questes ético-morais ¢ € interessante repatrarmos que num Dossier sobre ética ¢ pedagogia dos Cahiers Pedagogiques, (Margo 1992), varios autores insistam na dicotomia entre ética ¢ moral.Referimos esta dicotomia visto que ela vai ser particularmente relevante em Paul Ricoeur. Pensamos que em Ricoeur a Etica serd uma espécie de hermenéutica da prépria Moral, logo distinta desta,e que Fitica ¢ Hermenéutica em Paul Ricoeur sao indissociaveis, como mais tarde seré demonstrado, Tudo isto se torna muito importante neste trabalho se pen- sarmos que de um modo esquemitico se pode deduzir que a Lei de Bases do Sistema Educativo Portugués pée uma grande énfase, por um lado nos valores individuais (liberdade, autonomia, responsabilidade), ¢ por outro lado, sublinha os valores sociais da abertura ao outro (tolerfincia, respeito, didlogo), 0 que permite pensar numa dialéctica necessdria entre uns € outros, numa identidade que se abre a uma alteridade para melhor se assumtir. —Mas como atingir tais objectivos educacionais ? —Que método previlegiar ? Como nos informa Pedro Orey da Cunha na sua tltima obra Erica e Educagdo (1996) “ 0 método da narrativa consiste em expor as criangas as histérias que constituem o reservatério de sentido do nosso patriménio moral, deixando que assim se produza o efeito de identifi- cago com modelos, emulag&o de exemplos, apreco de simbolos e justificagées...”. Como nos explica 0 mesmo autor, que conviveu de perto com este método nos U.S.A., trata-se de uma téndéncia que se revelou particularmente influente no livro de Macintyre (1993), 0 qual fundamenta filosoficamente a utilizagao da narrativa enquanto sentido das normas morais. Se hum primeiro tempo a escuta da histéria deve ser esponténea, por participagao e empatia, num segundo momento poder e deverd dar lugar a reflexao critica e 4 hermenéutica. Assim, a re- lacdo entre ética, narrativa e moral, serd,talvez, uma relagdo complexa mas de mitua depen- déncia; ainda que a ética possa transcender as outras duas componentes através de um hori- zonte de critica que possibilite a sua prépria evolugdo. Por outro lado, a hermenéutica seré essencialmente ética, na medida em que a interpretagdo ajudard o aluno a auto-compreender- -se, a dar um sentido A sua existéncia, a valorizar atitudes, a avaliar situagdes e, sobretudo, 36 inn sin pepe Ps ice Spade Melo Breer ajudé-lo-4 a tomar decis6es, algo do foro da liberdade e igualmente da responsabilidade, isto é, da autonomia. Existe uma consciéncia a educar num processo continuo-algo ‘do foro ético. Subli- hemos, pois, que a pedagogia deve confrontar-se com um questionamemto ético, deverd , por exemplo avaliar em que medida a Estética serve a Etica, como € que a Imaginagao cria- dota pode ou nao constituir um campo de criagao ético (Levinas 1982). Tomemos o exemplo de Paula Rego: num ensaio sobre o trabalho de Paula Rego, Ruth Rosengarten (1997) afirma co seguinte: “A narrativa 6, para Paula Rego, mais do que o contar distanciado de uma hist6ria: também uma forma de criar um determinado ambiente onde as contradigées so mantidas vivas ... as hist6rias trazem com elas novas maneiras de fazer...”. A estética abre-se 4 ética esta abre-se a emergéncia de um sujeito outro o que implicard ter em conta a nossa relacio com 0 mundo e com os outros e consequentemente as pedagogias da alteridade, Isto tem que ver com o que defende Adalberto Dias de Carvalho (1992) no que concerne © grande desafio que se coloca 4 Educagio Contemporfinea: “preencher os vazios antro- pol6gicos deixados pela ortodoxia epistemolégica que legitimara as ciéncias da educagdo recorrendo, para 0 efeito, 4 incorporagiio de propostas de pedagogia, as quais, entretanto, terdo de assegurar, pela sua interconflitualidade, a etradicagéio dos riscos de endoutrina- mento”, Note-se que nesta linha de pensamento, Ricoeur (1952) afirma que :“uma parte do real é uma representagdo voluntéria de possibilidades anticipadas por projectos” e vai ser neste plano de abordagem que Ricoeur faz intervir a imaginagio, sublinhando a fungio ful- eral que possui no desenvolvimento dos actos voluntérios, nas decis6es, e, portanto, na definigdo dos projectos. A iimaginagao € assim, ¢ antes de mais, operativa e fazedora de novas oportunidades es- truturantes (note-se 0 titulo da obra de Durand: Estruturas antropolégicas do imagindrio) de estédios ainda desconhecidos da condigfio humana. De facto, através da imaginagio, 0 homem poderé mudar a sua existéncia, o seu modo de ser ¢ estar no mundo € construir por isso um projecto ut6pico. Nao é por acaso que a estética literdria exprime valores através de uma estrutura narra- tiva e imaginativa, Também nio é por acaso que Paula Rego segue um impulso narrativo, esse desejo de natratividade que, segundo Rosengarten “expée um passado silenciado que as- sombra o presente histérico” ¢ que nas suas obras as protagonistas ou heroinas “ so explora- gdes © personificagées de estados psiquicos ¢ emotivos complexos onde a vergonha e a vaidade coabitam”, entdo também nao seré de todo por acaso a escolha dos Contos de Sophia de Mello Breyner para servirem de matéria prima de andlise em trabalho de campo, a fim de se poder comprovar como € que através de uma interpretagao,de uma hermenéutica do texto narrativo, possuidor de uma estrutura imagindria, como é o caso do Conto, poderd ajudar o aluno co-autor desse mesmo texto,enquanto intérprete,a compreender-se melhor a si préprio, aos seus vatios “eus”, isto é , A sua alteridade, que se vai manifestando 4 medida que se vai identificando com “isto” ou “aquilo” ao longo da leitura. ar Anda Jardim 397 £ um proceso que vai ajudar o aluno a compreender a sua relagfio com determinados simbolos, isto é, a sua relagdo com o tempo. seja ele passado, ou profecia futura, mas sobre- tudo vai ajudar a compreender o que se manifesta de importante na sua relago com a con- temporaneidade, com o sea proprio tempo: aqui e agora. Vai ajudé-lo a revisitar as suas ati- tudes, as suas metas, o seu sentido de vida; vai ajud-lo no processo de se auto-transcender pata encontrar 0 mundo e o seu lugar nesse mundo. Porém, como essa vontade de sentido, esse agir contextualizado, essa praxis exige uma tomada de decistio, também essa interpre- tagiio, essa tarefa hermenéatica o ird ajudar no plano ético,a fazer escolhas,a perceber que as escolhas possuem validade temporal, ndo so vélidas eternemente, que os valores sfo sub- Jectivos e temporais ¢ contextuais. Através da hermen€utica a obra vai fazer pensar 0 leitor e ir provocar nele “actos in- tetnos” como referiu Valéry (cit,Centeno 19S), O aluno-leitor tendo por seu guia Merctirio (Hermes),o Mestre do Entendimento dos seres ¢ da sua Natureza,procede a uma alquimia Pessoana, no sentido de Rimbaud: a alquimia do Verbo. © seu “eu” é do mesmo modo “outro” e mais ainda “todos os outros”. O seu caminho € o da busca e da multiplicagao, do consciente e do inconsciente que é preciso ordenar pela palavea, quer através de uma razio abstracta, quer através de uma razao sensivel (Maffesoli 1996). Regressando a Ricoeur, esse processo educative é realizado através de uma arqueologia do sujeito (que recorre a Freud ¢ & psicandlise) e de uma teleologia do sujeito (que recorre & fenomenologia de Hegel) numa dialéctica que o proprio sujeito em questo vai arquitectando a medida que se interpeta e ¢ interpretado pelo texto. Ao ler e interpretar 0 texto nessa din4mica interactiva, o aluno sente-se em casa “chez- -soi” (Levinas 1984) num lugat-morada onde pode ser 0 outro dele mesmo; dar aso a alteri- dade emergente dentro de si (atentemos na importincia do titulo desta obra de Ricoeur: Soi- -méme comme un Autre) e nesta co-presenca do outro que pode originar um questionamento dos valores pessoais,das atitudes, da visio que se tem dos outros e dos factores que influen- ciaram essa visfio;de uma serena possessiio do mundo e isso é um questionar ético um tela- cionamento com 0 outro ético e que pressupde uma transcendéncia, quase metavida. As criangas sao sujeitos alteractivos por natureza: relacionam-se com 0 outro-pessoa- -animal planta-pedra-concha..., por isso existe a necessidade de uma educagdo/oultura que promova as pedagogias da alteridade, que promova na pessoa a capacidade para se sentir (como dizia o poeta) “acompanhada companheira’(Pessoa 1977) ¢ todos nés somos “Pessoas”? projectos de vida. comunicadores ¢ fazedores de sonhos, contadores de histérias, que se vio fazendo a realidade. Relacionando-se com complementos circunstanciais de lugar que se tornam simbélicos ¢ até mesmo marcos na nossa gramética da vida; sfo os nossos lagos afectivos com o ambiente que casam o sentimento com o lugar; e assim podemos chegar a um espaco previlegiado para a memoria: a casa. 398 Lina letra pedaggien de Paul Ricouer e Sophia de Mello Breyner Segundo Bachelard (1972) “a casa € imaginada como um ser vertical. Ela ergue-se. Ela diferencia-se no sentido da sua verticalidade. Ela é um dos apelos & nossa consciéncia de verticalidade. ‘Acasa é imaginada como um ser concentrado, Ela apela-nos a uma conscigncia de cen- tralidade(...) todo o espaco verdadeiramente habitado traz em si a esséncia da nog&o de casa(...) a.casa (...) permitirnos-d evocar clardes de fantasia que iluminam a sintese do imemo- rial e da recordago, Nesta regio longinqua, meméria e imaginagéio nao se deixam dissociar. ‘Uma e outra trabalham um aprofundamento mituo. Uma e outra constituem na ordem dos valores uma comunidade de recordagdo e de imagem. Assim, a casa no se vive apenas no dia a dia, no precurso de uma histéria na narrativa da nossa histéria; pelos sonhos, as diversas habitagées da nossa vida penetram-se bem e guardam os tesouros de dias passados. Quando, na nova casa, regressam as lembrangas das antigas moradas, caminhamos no pafs da Infancia Imével, imével como o Imemorial”. Por tudo isto, porque o aluno vive o espago através das imagens que o texto Ihe fornece e dos simbolos que 0 acompanham ¢ porque a casa é um dos elementos mais simbélicos ¢ significativos dos Contos de Sophia, um lugar por exceléncia palco de conflitos e dilemas, a selecgdo dos mesmos ter em conta este dado simbélico para uma metodologia interactiva. Repensando os fios que iro tecer este trabalho, podemos apontar: a) 0 texto como dador de dimensdes subjetivas do leitor. ) a apropriago de um texto como um complementar-se na interpretaco de side um su- jeito que se iré compreender melhor. c) a compreensao de um texto nao é em si mesma um fim, pois a compreensao de sie a do sentido,séio contempordneas. 4d) o coneeito de contemporaneidade adquite a maior importancia. e) 0 interesse capital da hermenéutica é a compreensio de si ea realizagdo de si-uma pro- priedade que se pode designar educativa. f) 0 texto faz acontecer curto-circuitos, isto é, fricgSes entre os varios “eus”; conflitos entre as varias vozes que habitam o Ser-pessoa. 9) no sentido em que este debrugar sobre um Passado, sobre camadas de mim-mesmo, sobre 0 rosto e as mdscaras, sobre desejos e sonhos, acaba por provocar transformagGes em mim no sentido da minha realizagio pessoal; da integrago do universal no individual-trata- -se da construgio (Piaget) de uma obra de alquimia educativasem que o eu (tese) necesita de descobrir 0 outro-tu (antitese) para refazer o Eu-Mesmo-outro que ele é-uma Sintese de um eu plural-nés, h) uma das vocagées da educacdo serd essa reconciliago entre 0 eu ¢ os seus plurais (a alteridade de Si-Mesmo) - 0 compreender antes de ser compreendido. Maria Antonia Jardim 399 i) a dialéctica,o didlogo so essenciais neste processo educativo,pois a educagao torna- -se precisamente a construgao dialogal de texto,ou a de um didlogo como texto,¢ texto que re- verte ¢ & remetido,pelo didlogo,sobre o préprio,nisso consistindo a virtude educativa. j) a imaginagao simbélica,como estruturante antropolégica, como pedagogia de alteri- dade e raz&o sensivel,é essencial no processo educativo. 1) o agir sobre 0 aluno € o objective maximo deste trabalho. mm) donde a importancia das ciéncias da linguagem, da psicologia do desenvolvimento moral, da simbélica, da antropologia, mas sobretudo da ética ¢ da hermen@utica,que consti- tuirdo a base deste projecto pedagdgico. f 1.4, Identidade pessoal ¢ identidade narrativa ‘A compreensao de si 6 uma interpretagio ¢ essa vai encarar certos paradoxos que tém gue ver com a problemdtica da idenificagéo: quem fala? quem? Segundo Ricoeur (1990) a expresso “eu” & marcada por uma estranha ambiguidade: o seu aspecto substituivel -o eu viajante- eo seu aspecto fixo- 0 eu de ancoragem- em virtude do qual “eu” s6 designa uma pessoa de cada vez. ¢ nfo enunciadores virtuais substituiveis, algo que tera que ver com 0 fenémeno da alteridade a retomar mais tarde neste trabalho. Por outro lado, a interpretagdo de si, no plano ético, segundo Ricoeur (1990), toma-se estima de si. Em troca, ela dé lugar & controvérsia, & contestago, a rivalidade, em suma,ao conflito das interpretag6es. A interpre- taco de si vai pois encontrar na prépria narrativa uma mediagao preveligiada, até porque consideragdes éticas esto implicadas na prépria estrutura do acto de narrar-como afirma Ricoeur (1991) “nao existe narrativa eticamente neutra”. Daf que para este autor, a literatura seja “ um yasto laboratério onde séo testadas estimagées, avaliagGes, julgamentos de aprovagio e de condenagdo pelos quais a narrativa serve de propedéutica & ética”. Para este autor (1990) “a narrativa constréi a identidade da personagem,que podemos chamar sua identidade narrativa, construindo a da historia relatada.” B a identidade da historia que faz a identidade da personagem. B aqui que o conceito de Imaginagdo se toma pertinente-“To imagine something is to think of a possibly being so” (White, 1990), segundo este autor a capacidade de imaginar permite uma larga flexibilidade que pode revigorar todas as fungdes mentais,tornando-se um instrumento vital em termos pedagdgico-éticos. Ao lermos ou relermos histérias de vida diferentes da nossa,ainda que animadas por personagens, isso provoca no leitor interrogagSes ainda que rétoricas, jufzos de valor e pode mesmo suscitar comparagoes ¢ perguntas em que 0 advérbio de comparagao-Ele faz como eu? surgem, Entéo, em wltima instfncia é a nossa maneira de ver a vida que esta em causa. Por isso ¢ como sublinha Ricoeur (1991) “ a narra- gio nunca eticamente neutra, mostra-se como 0 primeiro laboratério do julgamento moral” E qual o papel do significado neste proceso? E que 0 desenvolvimento das capacidades narrativas da nossa mente, da integragdo do afectivo e do cognitivo, do fazer-sentido e tornar 400 Una leit pedagSiica de Paul Ricouere Sophia de Melio Bryner significativo, de uma importincia educativa enorme porque estas capacidades centram-se no significado que etiramos do sentido da experéncia. As nossas vidas so “understood as embodying a certain type of narrative structure” ( MacIntyre, 1981);"Any event or behaviour has no meaning by itself, it becames intelligible by finding its place in a natrative”(ibidem). Também Northrop Frye nos chama a atengio para 0 facto de a literatura ser o grande depésito das histérias da nossa cultura, logo existe um valor educativo particular nos estudos literdrios, visto que os mesmos poclem conduzir aos valores sociais, Daf que o mesmo autor depois de conctuir que a literatura estimula e desenvolve a imaginagio, tenha escrito: “one of the most obvious uses (of imagination) is its encouragement of tolerance.In the imagina- tion our beliefs are also only possibilities in the belief of others. What produces the tolerance is the power of detachement in the imagination, where things are removed just out of reach of belief and action” (1963). Assim sendo, a literatura afigura-se, por exceléncia, como palco laboratorial para expetigncias de pensamento onde variagGes imaginativas proliferam. Sio essas experiéncias de pensamento, suscitadas pela ficgo, com todas as implicagdes éticas, que contribuem para o exame de si mesmo no quotidiano real. Estética e ética tornam-se indissocidveis, na arte de narrar, que € uma arte que corresponde a uma troca de experiéncias. Tanto assim que, muitas -vezes, 0 ptazer que temos ao seguir 0 destino de uma personagem relaciona-se com’o prazer em explorar novas maneiras de avaliar acgdes e personagens, pois as experiéncias de pensa- mento qué conduzimos no laboratério do imagindtio, s4o também exploragées dos reinos do Bem e do Mal. Assim o julgamento moral vai sendo submetido as variagdes imaginativas prOprias da ficeGo, j4 que mesmo quando sobrevalorizamos algo ou, pelo contrério, desvalo- tizamos alguma coisa, continuamos simplesmente a avaliar (no sentido Zabalziano em que comparar é avaliar), Logo, néo é de estranhar que, por vezes, o interpretar do texto da acg&o coincida com a interpretaco do agente que se interpreta a si proprio. deste modo que a nova figura de alte- ridade pode ser convocada, pois hd um poder do texto sobre 0 leitor, como identifica Ricoeur (1991) “a admissao de que o outro nao esté condenado a permanecer um estranho mas pode tornar-se meu semelhante, a saber, alguém que, como eu,diz “eu” Ricoeur descreve este processo como “a maravitha da transferéncia analégica” que podemos relacionar com 0 pacto narrativo decrite por Umberto Eco (1995): “Parece-me justo que enquanto passeio num bosque, utilize cada experiéncia e cada descoberta para aprender a respeito da vida, a respeito do passado e do futuro. Mas como um bosque é criado para toda a gente,nao devo procurar nele factos e sentimentos que sé a mim dizem respeito”. Nesta metdfora florestal, os leitores poderiio deambular no prdprio bosque ou serem induzidos a darem passeios imagindrios num bosque irreal. De qualquer modo, poderao sempre escolher entre voltarem-se para a sua propria experiéncia de vida ou para o conhecimento que tém de outras historias. Isto faz com que, de algum modo, Umberto Eco sugira que os mundos ficcionais sejam parasitas do mundo real, podendo deste modo, surgir meta-realidades para o leitor. Maria Antonis Jardin 491 Todavia existe uma dificuldade a que Ricoeur (1990) nao é alheio, que é saber: como & as experiéncias de pensamento suscitadas pela ficco, com todas as implicagées éticas, con- tribuiram para o exame de si mesmo na vida real? Como é que o julgamento moral € ele proprio submetido a variagGes imaginativas préprias da ficcdo ? De qualquer modo, a questo da identidade /alteridade do Si-Mesmo como Um Qutro leva-nos a uma outra questo nao menos importante: a Mimesis € 0 “ser 4 imagem de”. Além de ser um conceito bastante trabalhado em Ricoeur e que retomaremos mais tarde, é interes- ante observarmos desde jé a perspectiva de Jean-Jacques Wunemburger, na sua obra editada recentemente Philosophie des Images,(1996), onde afirma o seguinte: “En devenant image. une forme est appelée & exister une seconde fois, a la fois Méme et Autre, car elle doit étre son image ressemblante, mais aussi suffisament distincte de son modéle, pour qu‘ elle puisse apparaitre comme une image et non comme I’étre originel lui-méme”. Talvez por isto, para G. Durand, o estudo da imaginagao de um sujeito necessite obrigatoriamente do convocar do “trajecto antropolégico” das suas imagens. Imagens que, para além de serem identidades significativas, so igualmente energias transformadoras. —Mas 0 que tem afinal tudo isto a ver com a alteridade ? B que a imagem tem que ver com a representagdo, com a experiéncia do duplo, con- duzindo-nos a pensar numa natureza dupla, contraditéria, feita de combinagées paradoxais do Mesmo e do outro (de Anjos ¢ Deménios). P. Ricoeur diz-nos em Temps et Récit 1(1983) que 6 preciso entender mimesis como “imitagio” ou “representation dans son sens dynamique de mise en répresentation, de transposition dans des oeuvres représentative...”. Dai que a poética mimética carregue consigo uma imaginacio ficcional que permite reconfigurar 0 real, poten- ciar a imagem com toda a sua carga simbélica e energia transformadora. Dai que Wunemburger afirme na sua obra, jd citada, que “L'image ainsi mise en scéne par le récit dou- ble d’extérieur mais présente, exhibe du fond d’elle-méme un des multiples visages de Homme.” B, enfim, a questo do desdobramento do Si-Mesmo como um outro, a questo da al- teridade que cada um de nés transporta consigo, no seu cogito sonhador, nas suas estruturas antropoldgicas do imaginério, num “mundus imaginalis" que atravessa um paradigma genea- légico, pois atentemos nas palavras de Beaudelaire (1859): “Tout l’univers visible n’est qu’un magasin d’images et de signes auxquels l'imagination donnera une place et une valeur rela- tive; c'est une espéce de pature que imagination doit digérer et transformer”. Se, por um lado,a imaginagio é uma figurago do sentido, por actos de correspondéncia, entdo, uma interpetago, uma hermengutica deste sentido assim como a reconstrugao dos ac- tos que levaram a sua claboragiio, deve ser a tarefa de uma pedagogia do imagindrio. Isto leva- -nos a0 apelo de G. Durand na sua obra L’imaginahon symbolique, quando defende uma in- trodugio as “hermenéuticas instauradoras” que reflectem sobre a Hinguagem simbélica do 402 Uma letra pedaggica de Paul Ricout ¢ Soph de Melo Breyper imaginério e se apercebem, por isso, da sua seméntica, na linha de Jung, Cassirer, Bachelard e de Ricoeur, Durand eleva o imagindrio & linguagem, por exceléncia susceptivel de nos reve- tar a nés proprios, pois quer na literatura, na arte, na mitologia, quer na religidio, manifesta-se uma “imaginagdo seméntica” e “uma hermentutica imaginativa”. E necessétio compreender que a imaginagZo é uma aventura no campo da percepcaio (Bachelard 1948) e ter em conta que assim como 0 autor-narrador-sonhador fala ao mundo, também esse mesmo mundo vai fazer o sujeito-leitor-co-autor entrar numa aventura de bem- -estar, de correspondéncias, e por tltimo, de metamorfoses; citando Bachelard in Poétique de la reverie (1971): “Le réveur parle au monde, et voici que le monde lui parle”, mas nunca es- quecendo, por outro lado e como afirma Durand( ) que “a contemplagiio do mundo é jé trans- formagio do object”, ou ainda relembrando Ricoeur, que 0 discurso projecta um Ser e Estar- -no-Mundo, onde nés , sujeitos, leitores, co-autores, podemos Ser e Bstar de muitas maneiras, inclusive, cruzando a nossa alteridade com a alleridade que o préprio texto proporciona, através da hermen8utica. Eagan (1992) recorda o proprio Ricoeur, que em 1978, na sua obra sobre imaginagdo no discurso ¢ na acgdo, nos chama a atengio para o facto de passarmos a ver como ¢ isso vai implicar imaginar os “possiveis”; isto é, solugGes para problemas ou im- previstos no nosso quotidiano, a lidar com as sitnages, a saber viver. Serd, entio, esta possibilidade infinita de Ser e Estar-no-mundo que ha que promover, que hd que rever como tarefa hermenéutico-ética, onde a imaginagZio tem o seu lugar como pedagogia da alteridade. Um ser ¢ estar-no-mundo em que identidade pessoal ¢ identidade narrativa se tornam interactivas. Bibliografia ‘THOMASSET. A, Paud Ricoeur: te poétique de la morale, Leuven Univ. Press, 1996. CALIS, Rafsel, L’ocurvre ef limaginaive.les orjgines du pouvoir-etre créateur, Bruxelles, 1997. RICOEUR.PAUL, Cours sur L ‘Herneneutique,Univ. Catholique de Louven-la-Newve, 1980. DUFRENNE, Mikel, L ‘expérience esthétique, PUR, 1953 . RICOBUR,PAUL, Histoire et vérité, Pavis® Seuil, 1955. 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