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AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

CLAUDINE BRELET-RUEFF

Título original: Médecines Traditionelles Sacrées

Culture Arts Loisirs

Tradução de Maria Teresa Simões

Capa de Edições 70

Depósito legal n.* 43415/91

ISBN 972-44-0793-4

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PRÓLoGO

Não confundamos sagrado com religião, com magia ou com superstição! Ao longo
deste livro, abordaremos o campo do pensamento «sagrado», quase raiando por
vezes os limites da magia. Num capítulo como o consagrado às medicinas
africanas, veremos que a magia não é mais que a «perversão» de uma determinada
busca com vista ao conhecimento do Homem e do Universo.

Por sagrado, entendemos toda a procura que visa estabelecer a harmonia entre o
«interno» e o «externo» , o «interior» e o «exterior», o individual e o
colectivo, o microcosmo e o macrocosmo, ou o Homem e o Universo. Esta busca
assemelha-se ao que o homem moderno chama ecologia. Não a ecologia ultrapassada,
preocupada apenas com a vida dos seres na abundância, mas sim a que se preocupa
com a energia solar e com a física vibratória.

Ecologia? Este nome vem da palavra grega oikos, ou habitat, casa, a qual deu
origem à palavra «escola» na nossa língua... Assim, a ecologia traz já implícito
no próprio nome, e graças ao duplo sentido da palavra, um programa bem
estabelecido: aprender, aprender a viver com o seu habitat, com a sua aldeia ou
cidade, com o seu país, com o seu planeta, com o Cosmos. Aprender a estudar a
relação que nos une a todos num destino comum: quais são os fundamentos da vida
humana? O nascimento, a alimentação, a aprendizagem e a educação.
O que é que faz o pensamento sagrado, senão uma (tentativa de) Síntese?...
Síntese do Homem e do Cosmos

no seu berço de energia. De especialidade em sobreespecialidade, o homem moderno


descobre o equilíbrio e o ritmo, o equilíbrio e o ritmo vibratório do Universo.
Se bem que, na realidade, ele ignore qual a causa e a origem deste ritmo, pode
no entanto imaginar a sua existência... Primeiro passo decisivo que conduzirá o
Homem ao limiar do sagrado, ao equilíbrio, à sabedoria e à harmonia.

A vibração será, nesse caso, o chefe de orquestra do Universo, e todas as formas


de vida não poderão escapar à harmonia ou à desarmonia, ao ritmo das fantásticas
interferências vibratórias vindas do espaço intersideral.

A ciência actual, no seu domínio mais avançado, descobriu efectivamente que as


formas do Universo constituem um todo, um conjunto indissolú vel, englobado num
movimento do qual começamos a distinguir a forma e a equação.

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CAPITULO 1

O XAMANISMO

A Pedro Mac Orian, feiticeiro em Saínt-Cyr-Sur-Morin a poeta do fantÁstico


social

Medicina, magia e misticismo (não confundir com religião) estão intimamente


ligados no xamanismo. É por isso, aliás, que se utiliza muitas vezes o termo de
«xamã», quando se fala de feiticeiros, de curandeiros ou de mágicos, qualquer
que seja a área cultural onde tal fenómeno se manifeste: índia, Irão,
Mesopotâmia, China, etc., ou até quando encontramos qualquer «faquir», mesmo
numa História que nos está próxima: tal como Mesmer ou Rasputine, Cagliostro ou
o conde de Saint-Germain. «O Xamanismo, no seu sentido restrito, é por
excelência um fenómeno religioso siberiano e central-asiático.
O vocábulo deriva do russo, da palavra shaman.» () O xamã existe também noutros
lugares; encontramo-lo por exemplo nas chamadas sociedades «etnológicas». É o
niedecine-nian que pratica a técnica do êxtase.

O xamã possui a faculdade da incorporação dos espíritos. A sua iniciação é-lhe


conferida directamente pelos espíritos, ou divindades, no decurso do êxtase, que
não é senão «a experiência concreta da morte ritual», como muito bem sublinhou
Mircéa Eliade.

Esta iniciação comporta os três tempos do esquema seguido por todas as


cerimónias tradicionais: sofrimento-niorle-ressurreiçãa. Depois do sofrimento,
vem a morte-

(’) Cf. Eliade (M): O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do r'xIase (Pauis, Payot,
1951).
-êxtase, seguida de uma nova vida: o xamã torna-se um homem diferente.

Não deve confundir-se esta iniciação com uma aprendizagem técnica dada por um
mestre. A primeira escola do xamã é uma experiência cósmica, directa.

Poeta, vidente, curandeiro, praticando a medicina empírica, por vezes


prestidigitador ou ventríloquo (quando faz falar os espíritos), em qualquer dos
casos sempre particularmente inteligente como todos os grandes criadores, o xamã
desempenha também um importante papel social, indo até ao ponto de assumir o de
um chefe que conduz e dirige a história da sua tribo, nomeadamente quando indica
quais os lugares propícios às colheitas ou à caça. Mais perto de nós do que os
antigos palcolíticos, os Celtas conheciam este género de organização: o poder
dos seus druidas era, em muitos aspectos, superior ao dos seus chefes e
cavaleiros.

O Xamanismo parece ser, na origem -e do ponto de vista etnográfico -, um


fenómeno ligado essencialmente à vida tribal dos caçadores-colectores que se vai
desintegrando à medida que a tecnoeconomia se torna mais complexa e leva os
homens a agruparem-se nas cidades e nas aldeias à volta dos altares consagrados
aos deuses agrários.

O RETRATO DE UM XAMÃ

O seu rosto conserva-se frequentemente coberto enquanto ministra a sua


terapêutica. É, na maior parte das vezes, um homem. Mas existem populações onde
as mulheres são consideradas «aptas» para se tornarem xamãs, uma vez que são
menos susceptíveis, dizem, de se entregarem à magia negra para satisfazer as
suas ambições materiais e pessoais... Uma tal atitude pareceria bem estranha à
Inquisição falocrática que as nossas feiticeiras tiveram de suportar!

C) «Um verdadeiro xamã deve ser sério, possuidor de tacto, saber convencer os
que o rodeiam. Sobretudo, não deve mostrar-se presunçoso, orgulhoso, fátuo», diz
Sieroszewski em «Du chamanisme d'aprés les croyances des Yakontes», Revue de
I'Histoire des Religions, p. 46, 1902.

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«Como o Xamanismo não implica nem celibato nem interdição de ter descendentes, o
xamã é muitas vezes casado; o seu cônjuge serve-lhe de assistente, e os filhos
herdam a sucessão médico-mágica.» (1) Sem no entanto se tornarem por sua vez
xamãs, é necessário acrescentar, já que não é preciso atingir o êxtase para
poder praticar a medicina das plantas ou os «segredos», nem para poder ser
médico, parteira ou endireita.

Quando não celebra, o seu rosto aparentemente não se distingue do dos outros.
Diferencia-se pela alma, pelos seus poderes e pelo trajo, que os representa.

«O trajo xamânico constitui por si mesmo uma hierofania e uma cosmografia


religiosa: revela não somente uma presença sagrada mas também os símbolos
cósmicos e os itinerários metafísicos.» (5

Só o veste quando realiza as suas curas terapêuticas. Sob certo aspecto, este
trajo é a antena que permite ao niedecine-man captar os espíritos e
metamorfosear-se num verdadeiro transformador de energia, reconhecido e aceite
por todos.

O facto é constituído, entre os Siberianos, por um cafetã, ao qual se pendura


todo um arsenal de objectos de ferro bastante ruidosos: discos furados,
representações de animais (sob a forma dos quais os espíritos aparecem), arpões,
etc., chegando a pesar tudo isso cerca de quarenta libras. A tradição obriga a
que esses objectos estejam limpos da ferrugem, visto serem possuidores de uma
«alma». Por vezes, outros ornamentos são cosidos no cafetã, representando os
seios da mulher, assim como os órgãos internos. o fígado, o coração, etc., ou,
ainda, animais, pássaros, luas, sóis e estrelas. Os troncos pendurados ao longo
dos braços representam os ossos. Um boné de pele, eventualmente branco para o
xamã «branco», ou negro para aquele cujos auxiliares são os espíritos maus,
cobre o seu chefe; ou um capacete de ferro com chifres; ou ainda um boné
ornamentado com espelhos de cobre que o ajudam «a ver o mundo», e por vezes
eriçado de penas de aves. São talvez os vestígios dos chifres

(’) Cf. Bouteiller (M.): Chamanisme et guérison inagiqííe (Paris, PU, coll.
Bibliothèque de philosophie contemporaine,
1950).

Eliade (M.), op. cit.

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dos magos que aparecem nos frescos pintados pelos nossos antepassados pré-
históricos e cujo tema encontramos desde a Gália à Escandinávia. Frequentemente
esses capacetes-coroas têm igualmente uma espessa franja, escondendo os olhos do
xamã, que não tem necessidade senão do seu olhar interior, uma vez que é um
clarividente. Diversos acessórios completam este trajo: o guizo, o tambor cheio
de guizos, e por vezes, como entre os Tártaros e os Lapões, desenhos que
representam a árvore do Mundo, o Sol, a Lua, o arco-íris, etc., ou um arco, como
nos Altaicos e nas Américas, e por vezes também entre os Trácios.

O arco e o tambor não fazem parte de um armamento no qual o ruído cumpriria uma
função antidemoníaca. São instrumentos de magia médica que participam, como toda
a dança mágica do xamã, da sua viagem extática ao país dos espíritos.

Não nos demoraremos mais no rico simbolismo deste trajo, que obedece contudo às
necessidades das diversas latitudes.

O APRENDIZ DE XAMÃ

Um completo domínio de si mesmo, uma grande inteligência, um certo dom de


jogador-criador -diz Jean Piaget -, e uma grande capacidade de espontaneidade,
levando à sensibilidade própria de um médium, parecem ser as qualidades comuns
aos verdadeiros xamãs. (’) É verdade que existem bons e maus, tal como existem
verdadeiros médicos e charlatões.

Mas como é que se forma um xamã?

A herança

Os poderes xamanísticos podem ser herdados dos pais, assim como os «segredos»
médico-mágicos, tal como
(’) «A eloquência associada à inteligência, juntamente com a faculdade
divinatória, que não tem nem mais nem menos relação que elas com a ordem
extranatural.» Cf. Lot-FaIk (E.): «La Divination dans L'Arctique» em La
Divination, t. II, Paris, PUF, 1968.

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já vimos. O termo «herdar» não deve, no entanto, ser tomado unicamente no
sentido em que normalmente o utilizamos. Assim, um defunto de família, próximo
ou afastado, pode transformar-se em embaixador dos espíritos: «O meu pai, que
era xamã-conta um índio paviotoso (’) -, morreu há uma quinzena de anos. Começou
a aparecer-me quando eu tinha cerca de cinquenta anos. Mandou-me que amasse os
doentes. Durante um certo tempo, o poder aparecia-me sempre que eu sonhava.
Depois esses sonhos acabaram. Uma cascavel disse-me o que era preciso fazer».
Também uma índia papago conta que quando recebeu a sua «herança» desenvolveram-
se-lhe no corpo cristais mágicos (”). Deste modo, o «herdeiro» observa toda uma
série de rituais purificatórios: abstinência sexual, alimentar (limitada por
vezes apenas à carne e ao sal). Abandona as suas actividades habituais para se
consagrar à busca dos acessórios mágicos, cujo uso lhe será explicado mais tarde
por um mestre xamã.

A busca voluntária

No contexto ocidental, esta busca pode ser comparada a uma viagem, que nos
lembra a fuga das crianças ou dos adolescentes, até mesmo dos adultos, ávidos de
descobrir o mundo. Deixando os seus, abandonam o campo restrito das suas
cidades, para se impregnarem de orvalho, e deixarem-se conduzir pela sinfonia de
uma natureza que os envolve e os fascina ao mesmo tempo. Como o xamã, também
eles possuem geralmente um temperamento que se qualifica classicamente como
epileptóide.

A aventura do aspirante a xamã recorda-nos a busca do poeta que viaja à volta do


mundo, procurando novas imagens. Imagens das quais restituirá a essência ao seu

(’) Cf. Shamanism in Western North America. A study of Relationships, Evanston,


Northwestern University Studies in the Social Science, n.* 2, VIII, 1938. (2)
Cf. «The Autobiography of Papago Woman», publicada por R. Murray Underhill, in
Memories of the American Antropological Association, vol. 46, Menasha, 1936.

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futuro público, tal com o fez Rimbaud no seu Bateau ivre, Lawrence Durrell
reencontrando o seu Labyrinthe ou o Miroir à cinq faces da sua Justine de
Alexandria. Ou ainda Henry Miller, possuído pela sede de penetrar nos mistérios
da alma e do corpo.

No regresso do poeta na nossa sociedade, tal como no regresso do xamã na


sociedade primitiva, um e outro «sabem». Quer um quer outro são pouco propensos
à loquacidade, não desperdiçando esse saber senão nas suas criações: a arte ou a
terapêutica. Esta definição que Mircéa Eliade nos oferece do poeta pode aliás
aplicar-se ao verdadeiro xamã: «O xamã é o grande especialista da alma humana:
só ele a vê, já que conhece a sua forma e o seu destino.»

Nesta busca, a privação dos bens materiais parece ser necessária. O poeta não
hesita em arrostar com a miséria, pelo menos durante o seu tempo de iniciação,
ou seja a sua juventude. O xamã, esse vai até à nudez mais completa.

Este metaconhecimento, ou metaconsciência, implica uma concentração mental que


as necessidades materiais da nossa época nos impedem de imaginar. Dispersamo-nos
demasiadamente. Para atingir este estado de concentração, o aspirante a xamã
retira-se para longe da família, para o coração da floresta ou para a solidão
grandiosa das montanhas, vivendo com os animais. Ensina o corpo a, dominar o
frio banhando-se na água gelada das torrentes, a ultrapassar a dor fustigando-se
com ramos, amputando-se uma ou mais falanges ou praticando escarificações
profundas. Chega até ao mais íntimo do seu corpo, provocando o vómito, com o
auxílio de ramos ou outros processos. Deambula velozmente, sobe e desce, torna a
subir e a descer as encostas rochosas das montanhas desertas. Ultrapassa todo o
desejo de repouso. Atinge assim o paroxismo do esgotamento fisiológico e
nervoso, que o fará cair por completo no «estado extático», o transe e a visão
tão procuradas.

«Deixam-se deslizar, ao longo da fenda, para o interior da caverna. Chegados ao


fundo, cantam em homenagem à montanha Yolla Bolly. Depois ouvem como que um
desmoronamento de rochas. Os ouvidos zumbem-lhes. Dançam como loucos. O sangue
escorre-lhes da boca e do

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nariz. Perdem pouco a pouco a consciência e entram em transe.»

A busca involuntária

«Quanto mais poderoso for o espírito, tanto maior será a doença do seu novo
protegido.» O

Esta informação, recolhida na tribo dos índios Haidu, foi confirmada pelas
observações psiquiátricas do Dr. Guirdham. () Este médico britânico verificou,
num grande número de doentes, que um estado de depressão intensa é tanto mais
vezes seguido de fenómenos mediúnicos, de «comunicação silenciosa», quanto o
«doente» mostrar um temperamento psíquico. Bem entendido, um estado semelhante
ao da doença ou da depressão pode também ser induzido das «mortificações» da
busca voluntária, visando ultrapassar a condição humana normal.

Mas vejamos como um índio céptico se pode transformar num grande xamã. O
etnógrafo americano Franz Boas recolheu a história do maravilhoso encontro do
índio Kwakiut], Quesaliá, com um lobo (), reproduzida na pág. 24 deste livro.

A VIAGEM-TRANSE

O xamã é um «homem de corpo aberto». Ele é a sede dos espíritos que incorpora.
No transe que o possui, nada entrava a comunicação entre o microcosmo e o
macrocosmo: pode portanto curar.

Revestido dos seus atributos, no turbilhão da sua dança, ao som frenético do


zumbido da corda do seu arco, do ritmo do tambor e do enorme ruído dos seus
acessórios, ele encontra a alma perdida do doente.

(’) Cf. «Wintu etnography», in American Archeology and Antropology, vol. 36, n.*
1, Berkeley, 1935. (’) Cf. «The Northern Maidu», in Bulletin of American Museum
of Natural History, vol. 17, New York, 1905. (’) Cf. Dr. Guirdham, Ia
Communication Silenciezíse, trad. CI. Brelet (Paris, Payot, 1972). (’), Cf. Boas
(F.): The Religion of the Kivakiutl Indians (New York, Columbia University
Press, 1930),.

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Exorciza o seu paciente extirpando-lhe (técnica do nosso herói Ouesalid), a
maior parte das vezes por sucção, uma penugem ensanguentada, qualquer cristal de
rocha, um verme, um sapo... ou outros objectos e animais mais
ou menos repelentes. É esta a fase da cura xamanística que frequentemente mais
impressiona o observador ocidental. Porque «isto resulta!».

A assistência participa com fervor da narração que ele faz da sua viagem ao
reino dos espíritos.

Segundo Lévi-Strauss, tratar-se-ia da narração de um mito desenvolvendo-se «no


corpo interior do paciente». (’) Nesse caso o xamã é mais que um actor e mais
que um médico. É poeta. É vidente.

O poeta-médico

«Os chapéus dos nelegan brilham; os chapéus dos iielegan alvejam;


Os nelegan tornam-se chatos e baixos, tal como cabos, muito direitos;
Os nelegan oferecem uma visão benéfica na doente, os nelegan abrem olhos
luminosos na doente;
Os nelegan vão-se balançando para o alto do hamac, vão para o alto ... »

Esta narrativa ofegante descreve a passagem das forças mobilizadas numa


parturiente para facilitar a passagem da criança. E os nelegan agem como um
pénis em erecção, abrindo caminho para a matriz.

Claude Lévi-Strauss analisa assim a situação: «Tudo se passa como se o oficiante


tentasse obrigar uma doente, cuja atenção está sem dúvida reduzida - e a
sensibilidade exacerbada-pelo sofrimento, a reviver de maneira muito precisa e
muito intensa uma situação inicial e a aperceber-se mentalmente dos mínimos
detalhes. Com efeito, esta situação conduz a uma série de acontecimentos dos
quais o corpo e os órgãos internos da doente serão o suposto teatro. Passamos
portanto da mais banal das realidades ao mito, do universo físico ao universo
fisiológico, do mundo exterior ao mundo interior. E o mito desenvol-

(’) Cf. Lévi-Strauss (CI.): Anthropologie Structurale, (Paris, Plon, 1958).

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vendo-se no corpo interior deverá conservar a mesma vivacidade, o mesmo carácter
da experiência vivida, cujas condições são impostas pelo xamã favorecido pelo
estado patológico e por uma técnica obsidiante apropriada.(’)

Para o xamã em questão, e para a «sua» parturiente, o útero transforma-se num


universo fantástico povoado de monstros e de animais, personificando, por
exemplo, as contracções. Em resumo, tudo depende da maneira como a doente e a
assistência aceitam estas metáforas.

Em magia, como em poesia, o poder do Verbo (quando o oficiante e o seu público


acreditam) é tal que pode remodelar o mundo. A fé move montanhas. Mas, aqui, não
se trata apenas de um processo de hipnose ou mesmo de auto-hipnose. Alguns
médicos ocidentais que conhecem o poder da palavra, das explicações fornecidas
durante uma pequena intervenção cirúrgica, por exemplo, não nos contradirão.

O DRAMA TERAPÊUTICO

Falando um dia com Lawrence Durrell (2) , este confessava-nos o seu


pessimismo: «A arte transformou-se numa espécie de abstracção, numa espécie de
auto-satisfação algébrica. Já não se trata de resolver, como acontecia
antigamente com o teatro grego, por exemplo. Na Antiguidade, a arte era uma
espécie de psicanálise, vivida colectivamente.» A função terapêutica do drama
grego ou da tragicomédia shakespeariana permitia aos Antigos esconder
os seus males e os seus terrores, reconhecendo a sua grandeza ou as suas
fraquezas nesses mitos heróicos representados em cena.

É interessante constatar que, ao mesmo tempo que se extingue esta arte


dramática, a própria medicina toma também um outro carácter, o do ficheiro, e a
sociedade vai-se dessolidarizando. Esta sociedade tornou-se de tal modo doente
que decidiu retomar o caminho da terapêutica antiga, criando a psicanálise.
Nesse período, encarrega os seus primeiros etnógrafos de procurar, em diferen-

C) Lévi-Strauss (CI.): Anthropologie Structurale. C) «Escritor? É uma profissão


doentia.» Entrevista de L. Durrell a CI. Brulet, na revista Elle nf 1222 (Paris,
Maio de 1969).

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tes sociedades, uma verdade que ela própria perdeu. Esta verdade era a
capacidade de endosmose do médico com o seu doente, ou do actor com o seu
público, e da qual a «transmissão» não é senão um pálido reflexo.

O xamã é ao mesmo tempo um e outro: médico e actor. Ele resolve em si mesmo as


duas proposições de Diderot: o actor deve ou não participar, deve ou não
transformar-se no seu personagem ... ?

No decorrer da sessão xamanística, o estado de receptividade do xamã é intenso.


Ele encontra-se totalmente aberto ao Cosmos, e, sendo assim, às causas da doença
e do sofrimento do seu doente. Por um lado, graças à intervenção do xamã, o
doente não se sente isolado do mundo e, por outro lado, uma vez que todos os
seus familiares estão presentes, tão-pouco se sente isolado do seu habitual
ambiente social e afectivo.

No fenómeno do xamanismo, o drama terapêutico é uma catarse do indivíduo na qual


participa, na realidade, toda a colectividade. Esta terapêutica reúne todo o
sentido profundo da «festa»: Devemos talvez considerar como sobrevivências do
xamanismo certos carnavais, o da Bulgária, por exemplo, onde aparecem ainda
grandes máscaras emplumadas, cobertas de espelhos, de pássaros e de bonecas, ou
essas festas do Nestinarstvo em que se caminha sobre o fogo.

Com efeito, o drama terapêutico representado pelo xamã aparece-nos igualmente,


num plano colectivo, no grande ciclo das estações. Nesse caso a sua dança
deambulatória representa o curso solar. Como no México, os seus grasnidos
imploram aos deuses a chuva tão necessária à sobrevivência dos homens. A sua
cogula de espelhos caça, nos Balcãs e na Anatólia, os espíritos matis que
assediam os «dias sujos» do fim do Inverno.

AS MODERNAS VIAS DO XAMANISMO

Se em França ainda existe um grande entusiasmo por Freud, noutras nações


ocidentais reconheceu-se em Jung, Groddeck e Reich possibilidades de chegar
ainda mais longe no conhecimento do espírito humano.

Alguns psicanalistas confessam (às vezes muito confidencialmente) sentir um


certo remorso perante a im-

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potência em que se encontram de dialogar verdadeiramente com os seus doentes. A
psicanálise é a ciência do monólogo. Alguns confessam uma certa confusão perante
uma transmissão demasiado «bruta» que os torna vítimas das perguntas inesperadas
dos seus doentes, até aí afastados do mundo, estendidos no divã.

No entanto o psicanalista só se torna psicanalista depois de se submeter à


iniciação da análise, e portanto à catarse. Tal como o xamã só se torna xamã
depois da iniciação sofrimento-morte.

Para os adeptos de Freud, bastam algumas palavras para exorcizar no «outro» as


dores de um inconsciente enfraquecido algures no seu vocabulário. Histeria (1),
epilepsia, são «desculpas» práticas, mas perigosas.

Até hoje ninguém pôde ainda explicar esses fenómenos racionalmente e, assim, há
alguns anos o «histérico»
ou o «epiléptico» corriam ainda o risco de se verem internados a trouxe-mouxe
nas prisões rebaptizadas de asilos. Ó

Claude Lévi-Strauss pensava que o estudo do xamanismo poderá ainda um dia


esclarecer os pontos obscuros da teoria de Freud. O antropólogo não pensou
talvez nos seus discípulos de Viena, considerados rebeldes e, por isso mesmo,
pioneiros. Para Jung, Groddeck e Reich, como provavelmente para um xamã, a saúde
e a doença são as duas faces de uma mesma medalha.

Deste modo, o xamã, quer seja «nevropata» ou «psicopata» (o vocabulário


freudiano parece-nos semanticamente estéril para as sociedades tão diferentes da
nossa), em vez de analisar sintetizou, o que o torna diferente dos outros. Para
os outros, o xamã é igualmente um «sintetizador» da alma e do corpo
simultaneamente. Ele utiliza as próprias nevroses (se há «nevrose») e as dos
outros, em vez de se deixar utilizar por elas...

(’) A compreensão da obra de Freud sofreu em França um «atraso de tradução».


Nalguns países, como a Inglaterra, por exemplo, a sua obra foi integralmente
traduzida há muito tempo. Para uma melhor compreensão da psicoterapia catártica
da histeria, segundo Freud e não segundo os «freudianos» franceses, veja-se a
obra seguinte: Freud (S.) et Breuer (L) Êtudes sur Mistérie, trad. A. Berman
(Paris, PUF, 1956).

Cf. Foucault (M.), Histoire de Ia Folie (Paris, Plon, 1961).

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Se o psicanalista recusa o gesto que poderia acalmar a ansiedade afectiva e o
desejo de ser «acarinhado» do seu analisado, Groddeck, por sua vez, soube
exercer a arte de curar por meio de massagens (muitas vezes praticadas pelo
xamã), acompanhadas de banhos quentes, e pela sua poderosa palavra, que não
recuava diante do obsceno, o qual floresce tantas vezes em metáforas poéticas no
inconsciente do enfermo. A história dos melegans penetrando a parturiente como
um falo seria certamente considerada «obscena» no nosso contexto médico-
cultural!

Se o psicanalista freudiano insiste por vezes em classificar de histeria todos


os fenómenos parapsíquicos apresentados pelo seu doente, um psiquiatra, e no
entanto bem ortodoxo e bastante célebre pelos seus trabalhos científicos, o Dr.
Arthur Guirdham, não hesitou em lançar-se no rasto histérico das recordações,
trazendo assim para o campo da psiquiatria o problema da reencarnação, e por
consequência da alma. (’) Este médico investigou ainda quais seriam os «factores
cósmicos da doença», raízes florescentes sob a aparência de sintomas
fisiopatológicos.

A um nível mais colectivo, também um determinado teatro tenta, por sua vez,
reencontrar o poder da catarse colectiva por meio do divertimento e da poesia,
como é o caso do polaco Grotowski e do americano Julian Beck.

O xamanismo é tudo isso, mas é mais ainda, porque o xamanismo não vive numa
sociedade onde o indivíduo morre de isolamento, tentando tudo para remediá-lo
artificial e por vezes tragicamente.

Psicossomática e medicina mágica

O xamã induz uma verdadeira aberração no seu paciente. Esta por sua vez poderá
induzir uma transformação orgânica.

Quanto a nós, o xamã possui a chave tão procurada pelos nossos psicossomáticos
modernos. É aliás a essa

(’) Cf. Guirdham (Dr. A.): les Cathares et Ia Reincarnation, trad. CI. Brelet
(Paris, Payot, 1971), e, do mesmo autor, les Facteurs Cosmiques de Ia Maladie,
pref. e trad. de CI. Brelet (Paris, Fayard, 1974).

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mesma conclusão que parece ter chegado o Prof. Coullomb, director do hospital
psiquiátrico de Dacar.

Para tratar alguns dos seus doentes, não hesita em levá-los à sua aldeia, onde o
feiticeiro toma então a iniciativa e colabora assim com a terapêutica ocidental
clássica.

Contando que o seu amor-próprio o permita, o médico europeu não aconselha a


procurar o curandeiro senão quando confessa a sua total impotência para curar o
doente. Mas existirão médicos que ousem aconselhar aos seus pacientes que
participem, com fins terapêuticos, num carnaval popular ou mesmo em festividades
como as fogueiras do São João?

A psicoterapia colectiva e o psicodrama lembram um pouco uma sessão xamanística,


mas falta-lhes todo o apoio do seu meio habitual, tornando-se por isso mesmo
artificiais e não tendo possibilidades de atingir um verdadeiro fim de síntese.

OS CELTAS E O XAMANISMO

Os Celtas conheceram certamente o xamanismo. O druida, pelas suas funções


sociais e religiosas, pelo poder dos seus encantamentos e pelos seus
conhecimentos médicos, parece, exceptuando o trajo, ser o herdeiro directo do
xamã paleolítico.

Actualmente, na Bretanha, realiza-se uma procissão no Verão, em honra de São


João (em Saint-Jean-du.-Doigt, perto de Morlaix), encabeçada pelo padre, em
veneração ao dedo sagrado que curava as doenças dos olhos. A, falange do dedo
indicador de São João Baptista, conservada no tesouro da igreja desde 1437,
dizem, não será afinal, neste país tão impregnado de paganismo, de um druida
particularmente dotado para utilizar a selago, que curava as doenças dos olhos?

Assim, o visco de carvalho alvarinho, colhido solenemente no sexto dia de lua


pelo druida vestido de branco, subindo ele próprio à árvore para colher com a
ajuda de um podão de ouro, é também considerado tradicionalmente como uma
«planta-animal» C) da antiga lua. O seu

(1) «A reprodução do visco faz-se de maneira diferente das outras plantas 1 ...
1. Se o grão cair na terra não germinará. É

23
crescimento no espaço e no tempo escapa, com efeito, à atracção da terra
mineral, à qual obedeceram todas as outras plantas.

Vestígio desse universo móvel em que tudo tem a forma líquida, o visco, planta
lemurianá utilizada pelos druidas, pode lançar-nos na pista que nos conduza às
civilizações paleolíticas...

AUTOBIOGRAFIA DE UM XAMÃ

«Eu sou um pobre caçador de toda a espécie de animais (... ). Fui também um dos
que menos acreditavam nos xamãs quando eles contavam que curavam os doentes e
diziam ver a alma dos homens. E, isto, tenho de confessá-lo. Um dia fiz-me ao
mar para caçar focas. Quando cheguei a Axiolis vi sobre um rochedo um lobo que
se contorcia com dores. A boca sangrava-lhe. Observei-lha e vi que tinha um osso
de gamo atravessado fortemente de um lado ao outro do maxilar, entre os dentes.

-Tranquiliza-te-disse-lhe, e fui buscar alguns raminhos de cedro.

Entrancei-os para fazer uma corda. Depois, voltei para o rochedo onde ele
estava, de boca aberta ( ... ). Finalmente livre desse osso, o lobo olhou-me
simplesmente, sem me fazer mal. Disse-lhe: “Amigo, estás curado! Agora, toma
cuidado contigo e não te portes mal.'-’ Então o lobo partiu lentamente,
trotando.

Quando veio a noite, apareceu-me um homem em sonhos e disse-me: “Porque ficas


aqui? Há muitas focas nesta ilha, amigo. Sou o caçador de quem hoje te
compadeceste e, agora, agradeço-te a gentileza que tiveste para comigo, amigo.
Quaisquer que sejam os teus desejos, a partir de agora não há nada que não
possas obter.

preciso que a baga seja comida por um pássaro para que se termine a formação
orgânica da substância fecundante. Ela é evacuada depois da digestão, que dura
apenas 8 a 10 minutos, e, se cair num ramo, espeta o estilete na casca e dá
origem a uma nova planta. O visco utiliza assim um alto grau de continuidade de
vida que caracteriza o animal e desconhece o enfraquecimento que toda a planta
de grãos sofre, antes de engendrar uma nova vida.» Jean Palaiseul: «Enquête sur
une thérapeutique du cancer», in Triades, suplemento n.o 3, Paris, 1956.

24
Mas para isso não podes dormir com a tua mulher durante quatro anos. Assim,
cumprirás o que deves cumprir.” Depois desapareceu.»

Resumamos a continuação das aventuras do nosso herói. Quesalid e seus


companheiros adoeceram com varíola.

«Estava deitado no meio deles e via os nossos corpos inchados e vermelhos-


escuros, a pele rebentada e aberta. Não sabia o que fazia no meio dos meus
companheiros mortos. Depois pensei que também estava morto. Sentia-me como que
adormecido, e quando despertei vi-me rodeado de lobos, que gemiam e uivavam.
Dois deles começaram a lamber-me e a babar-me todo o corpo. E de repente o meu
corpo tornou-se mais -forte, assim como o meu espírito.»

Quesalid revê o lobo que tinha salvo. Este sentou-se e puxou o índio pela cara
para o obrigar a deitar-se de costas, esfregou então o focinho na «parte mais
baixa do esterno» de Quesalid. Depois «vomitou sobre mim o poder mágico».

Mais tarde o índio vê novamente o homem aparecer-lhe em sonhos e dizer-lhe,


rindo-se: «Agora, presta atenção, amigo. Agora, o artífice de xamã entrou dentro
de ti. Agora curarás os doentes e serás capaz de alcançar-lhes as almas e
poderás fazer adoecer qualquer pessoa, não importa quem, aquele que tu desejares
ver morrer na tua tribo. E todos terão medo de ti.»

Quesalid continua o seu relato: «Então, acordei. O meu corpo tremia e o meu
espírito tinha-se tornado diferente devido ao que os lobos me haviam dado.
Tinha-me transformado num xamã.»

Mais tarde, Quesalid encontrou outros xamãs. Sempre céptico e quase contra a sua
vontade, a sua reputação espalhou-se, na América, a todas as tribos de índios
Kivakiutl da costa Norte do Pacífico.

25
CAPITULO II

A MEDICINA DAS PIRÂMIDES

A Hassam Fathy, arquitecto do povo egípcio, que soube manter fresca uma rosa,
desde o Cairo a Nova Iorque, passando por Paris...

AO PRINCíPIO ERA O VERBO...

O nome do Deus-Sol, Rá, aparecia na escrita sagrada dos Egípcios, os hieróglifos


(’), sob a forma de uma boca colocada em cima de um braço em acção. Rá, a força
vital e criadora, mostra a acção de Atum, Deus infinito, ou, melhor, Verbo do
indefinido.

O ensino e o conhecimento dos Antigos Egípcios baseiam-se na fé. Esta fé é o


conhecimento e a compreensão do Verbo. O conhecimento do Verbo é ao mesmo tempo
do domínio da inspiração, tal como Pitágoras, depois de o ter aprendido com os
sacerdotes egípcios, o celebrizou na Grécia. Mas é também a importância do nome:
saber denominar com propriedade os seres e as coisas e ter sobre eles um poder
absoluto.

Os sacerdotes e os médicos-mágicos trazem o símbolo do escorpião. Isis quis


dominar Rã. Para isso, mandou-lhe um escorpião picá-lo. Isis, natureza sempre
virgem e sempre fecunda, fonte eterna da regeneração, foi chamada por Rá para
que o aliviasse dos seus sofrimentos.

(1) Os Egípcios escreviam sobre papiros, tela, pele, pergaminho, e até mesmo
sobre tijolos de terra cozida, que lhes serviam algumas vezes de « rascunho»,
por exemplo para fazerem as suas contas. O papiro, espécie de tecelagem de
fibras sobrepostas de uma planta que crescia nos charcos, era preservado da
podridão, das picadas dos vermes e do bafio com óleo de cedro, com o qual se
esfregava antes de escrever.

27
Quando ela lhe perguntou o nome para poder agir, o deus deu-lhe sucessivamente
vários nomes, mas todos eles falsos, para evitar cair sob o seu domínio. Por
fim, já esgotado, confessou-lhe o seu verdadeiro nome. Deste modo, ela curou-o,
mas venceu-o.

Os diversos papiros e inscrições que até agora(’) se descobriram no Vale do Nilo


não nos esclarecem ainda todos os seus segredos. Além da linguagem dos
hieróglifos tal como foi descrita sobre a Pedra da Roseta por Champollion (’), e
das investigações de Maspéro, esses
mesmos sinais podem ter outro significado. Os hieróglifos revelam foneticamente
lendas ou mitos populares, mas o seu significado religioso só o desvendam a
pessoas capazes de apreender uma abstracção religiosa ou científica. Resta-nos
portanto ainda criar uma nova egiptologia. Enel (3) @célebre cabalista e
egiptólogo não positivista, abriu o caminho.

No Egipto, a ciência e a religião estão intimamente ligadas. Aliás, os médicos-


mágicos não pretendiam ser os autores dos encantamentos e dos exorcismos, das
preparações medicamentosas ou de outras técnicas terapêuticas. Eles aprendiam a
sua ciência e o seu poder nas «Casas de Vida», uma espécie de templos-
universidades, legados directamente por Tote, o deus compassivo a quem Rá
encarregou da tarefa de proteger a Humanidade. A sua sabedoria vem dos deuses.

«Eu saí de Heliópolis com os Grandes dos templos (os deuses), os que possuem
protecção, os senhores da eternidade [... ]. Eles deram-me a sua protecção; eu
possuo fórmulas que foram feitas pelo Mestre Universal (o Deus-Sol, Rá), para
fazerem desaparecer a dor causada

(’) O incêndio da maior biblioteca da Antiguidade, a de Alexandria, em 389


depois de J. C., provocou uma perda irreparável: mais de 700000 volumes
literários e científicos ficaram destruídos. (-’) A Pedra da Roseta foi exumada
em 1799 pelos soldados de Bonaparte no Egipto. A partir dos elementos que este
decreto ptolomaico trilingue apresentava, J. F. Champollion descobriu em 1822 o
segredo da leitura dos hieróglifos. (’) Enel, cujo verdadeiro nome é Michael
Vladimirovitch Skariatine (1883-1963), tentou encontrar a resposta para algumas
perguntas que fazia a si mesmo quanto à Cabala hebraica, desde as origens, no
Egipto, onde trabalhou com Maspéro, que o apoiou.

28
por um Deus ou uma deusa, por um morto ou uma morta [ ... 1, as quais estão na
minha cabeça, nas minhas vértebras, nos meus ombros, na minha carne, nos meus
membros, e para castigar o Caluniador (o diabo), o chefe dos que provocam a
desordem na minha carne e a doença nos meus membros, como qualquer coisa que
entra na minha carne, cabeça, ombros, corpo, membros. Eu pertenço a Rá. Ele
disse: «Serei eu quem protegerá o doente dos seus inimigos. Tote será o seu
guia, o que fará falar as escrituras e é autor das fórmulas; dará a habilidade
aos sábios e aos médicos-mágicos, seus discípulos, para curar da doença aqueles
que deus deseja manter vivos.»

Este texto é extraído dos papiros de Ebers (’), o mais célebre documento sobre a
medicina egípcia, e que foi desenterrado em Tebas.

OS QUE DOMINAM OS ESCORPIÕES

Os médicos-mágicos, «os que dominam os escorpiões», como Isis, ou Selkis,,a


deusa escorpião, são todos os que fizeram a sua aprendizagem na Casa de Vida
(% onde os escribas aprendiam também o seu ofício. Tote é o chefe da Casa de
Vida onde se ensinam e copiam todos os manuscritos necessários à perenidade da
vida: os de medicina e os do culto dos deuses. Tote é o mestre da escrita, da
ciência e da magia.

o deus da sabedoria está representado por um íbis, hieróglifo que também


simboliza, dentre todas as almas humanas, a que resplandece-ou o corpo glorioso
ressuscitado da Cabala. Ele é também o calculador do tempo que modela a matéria,
e «a pegada de íbis repre-

(’) De todos os papiros médicos, este é o mais bem conservado e um dos


documentos capitais sobre a medicina sagrada dos Egípcios. Com o comprimento de
20,35m e a largura de
O,30m, tem 108 páginas, mas na sua numeração passa-se da página 27 à 30.
Portanto, efectivamente compõe-se de 110 páginas, número este que é o do termo
máximo de longevidade humana para os Egípcios. (’~’) Esta escola, onde ensinavam
os hieróglifos aos escribas, era também a mesma onde se ensinavam as palavras da
Vida, ou palavras divinas, aos poetas e aos médicos.

29
senta exactamente um cúbito» (’), medida que era utilizada na construção de
todos os templos. Além disso, segundo Plutarco, a Lua, que é a cópia nocturna do
Sol, ou Rá, tem também as cores da plumagem negra e branca deste pássaro.
Também, mais tarde, Tote, o deus-lua, seria assimilado a Rá, no tempo da
decadência, quando os homens se esqueceram dos segredos contidos nas escrituras.

Chefe supremo da Casa de Vida, é ele o primeiro iniciado. «O íbis, quando dorme,
esconde a cabeça debaixo da asa, e toma a forma de um coração.» O sono faz parte
da terapêutica mágica, como veremos mais adiante.

Tote é o patrono da corporação dos médicos, e é quem chefia a vida em Heliópolis


desde os tempos mais recuados. É necessário esperar pelos Ptolomeus, depois do
período faraónico, para que nos apareça um deus só da medicina. É nesse tempo
que Imhotep (’), mágico e intérprete dos sonhos, conselheiro político e
arquitecto de um rei da III dinastia, Zoser, é «heroizado». O clero de Ptah,
deus de Mênfis, diviniza «o médico mais célebre dos viventes». Mais tarde, os
Gregos farão de Tote o seu Hermes, e Imhotep tornar-se-á Asclépio, ou Esculápio.

TOTE, O ETERNO

Muitos médicos do nosso moderno Ocidente ignoram que devem a sua ciência ao deus
da Antiguidade Heliópolis. Contudo, o seu cadlICCLI (’) representa essa noção

(’) Esta era a medida usada na construção de todos os templos. Na realidade,


havia o «cúbito real» ou o cúbito das pirâmides, um grande cúbito que media
aproximadamente O,51cm, e estava dividido em 7 palmos de 4 polegadas cada um. O
cúbito, medida sagrada, tinha sido oferecido aos humanos por Tote e, segundo os
iniciados, pode ser encontrado matematicamente em todo o universo. Cf. Barbarim
(G.): le Secret de Ia Grande Pyrainide (Paris, ed. «Fai lu», n., A 216).

O pequeno cúbito era composto de cinco palmos. (@) Hotep significa «aquele que é
elevado à classe dos deuses». Atribuem-lhe a arquitectura da mais célebre
pirâmide de degraus, de Sakkara, 2850 a.C. (’) Sobre o caduceu, ver Rihouct-
Coroze: «Le signe du caducéc», in Revite Triades, vol. VIII, n.’ 3, Outono de
1960.

30
de espiral ou turbilhão das forças construtivas do Universo, ou ainda a
serpente, que, no segundo dos hieróglifos, significa o movimento eterno da vida.

Hipócrates, a quem os Gregos chamaram «O velho de Cos», faz a ligação entre o


pilar de Tote, ou «aquele que está no alto da escada» (’), e o caduceu de
Mercúrio, o emblema da nossa ordem dos médicos.

Foi em 458 antes de J. C., com 19 anos de idade, que Hipócrates, desprezando os
conselhos de seus pais, atravessou o mar, remando, torso nu, para chegar à terra
do Nilo, onde ainda duravam os calores tórridos do mês de Pyanepsien. Depois de
três anos de estudo nos templos egípcios, foi-lhe dada a honra da iniciação.

Nenhum médico, por mais racionalista que seja, deixará de se curvar perante a
descrição que Baissete nos faz da estada do jovem Hipócrates no Egipto.

«Nos subterrâneos egípcios ocultavam-se as aplicações da ciência mais audaciosa,


interdita aos profanos. Ali os sábios tinham construído para seu divertimento um
universo mecânico. Criavam os eclipses e davam ao mundo sideral a forma de
esferas. Com o produto obtido da humidade das paredes, fabricavam uma mistura
capaz de provocar o raio e as nuvens. O som repercutia-se através das paredes de
bronze, que alimentavam a mínima vibração e conservavam durante horas o último
estremecimento. Depois de terríveis circuitos nas trevas, de repente uma luz
deslizava sobre as infinitas perspectivas do mármore branco» (2)

COMO SE FAZ UM MÉDICO

Heródoto escreveu: «A medicina no Egipto está tão sabiamente distribuída que um


médico ocupa-se apenas de uma única especialidade e não de várias. Há médicos
para tudo: uns para os olhos, outros para a cabeça,

(’) Quer dizer, a escada que teremos de subir para atingir a verdadeira
sabedoria. (@’) Cf. Auber (Dr. T. C. E.): Institutions de Hipocrate, ou Exposé
Philosophique... stir Ia Constitution de Ia Médecine (Paris, Baillière, 1964),

31
outros para os dentes, outros para as cólicas intestinais, outros, enfim, para
as doenças internas.»

Isto é sem dúvida válido para o período de Ptolomeu. Mas nos períodos antigos,
os que nos interessam, os médicos mais célebres não eram especialistas e
praticavam a medicina juntamente com a magia. Tal foi o caso de Iri, no declínio
do Antigo Império, médico e decano dos médicos da corte faraónica, especialista
de doenças de estômago, dos intestinos e do ânus, oculista e... ocultista.

Se os tempos faraónicos não conheciam ainda a especialização do médico, já


tinham contudo tratados específicos para cada categoria de doença.

«Sabemos, pelos textos e pelos monumentos, que as bibliotecas se encontravam nos


templos. Algumas eram (te livre acesso, como a de Edfu, que se encontra numa
pequena sala, muito perto da entrada da Sala Hipóstila. As outras podiam ser
encontradas em locais mais ou menos secretos, tal como em Dendara a cripta dos
arquivos, colocada a 3 metros de altura numa das capelas que rodeavam o
santuário(’).

O papiro Smith (’), traduzido e comentado por J. H. Breasted, revela uma ordem
lógica de conhecimentos que nos demonstra irreparavelmente que os Egípcios da
época faraónica não eram tão desprovidos de espírito científico como durante
tanto tempo se acreditou, atribuindo-se essa paternidade aos Gregos.

Salientemos uma vez mais que não consideramos Hipócrates como o inventor da
nossa medicina, mas sim que o «Velho de Cos», grande iniciado dos templos de
Thop, foi encarregado pelos seus sacerdotes e médicos-mágicos de levar os seus
conhecimentos para uma outra etapa do desenvolvimento da humanidade ocidental
(’).

(’) Cf. F. Datimas: les Dieííx de I'Egyple (Paris, PU, col. «Que sais-je?»,
1970). (’) redigido em escrita hebraica (quer dizer, abreviada e cursiva), o
papiro de Edwin Smith divide-se em três partes. A primeira é um tratado de
cirurgia, de medicina cirúrgica, de terapêutica externa e anatomia. A segunda é
um encantamento «para afastar o vento do ano da peste»; a terceira um
encantamento para transformar um velho num jovem de 20 anos. (’> A este
respeito, consultar Steiner (R.): Mytes et Mystères Êgypliens (Paris, ed.
Triades, 1971).

32
Uma leitura atenta dos tratados de Hipócrates permite-nos reconstruir o caminho
que terá percorrido aquele que se tornou sacerdote e médico-mágico.

Para Hipócrates, fiel aos ensinamentos dos tempos antigos do Egipto, há uma
condição primeira e principal: o talento natural. Quem for dotado de uma
intuição natural conseguirá adquirir por si mesmo essa arte que não se pode
possuir sem inteligência e que é necessário estudar enquanto se é Jovem e num
lugar propício a essa aprendizagem.

Além disso, precisa de trabalhar muito e durante muito tempo a fim de que a
ciência, tornando-se como que natural, cresça por si mesma, dê raízes e frutos.
O estudo da medicina pode-se comparar à cultura das plantas. Aliás, o homem tem
por missão cultivar a terra, quer dizer, domesticar a matéria. Começar a estudar
cedo, muito jovem, é lançar a semente dos preceitos médicos na altura própria.
Ter bons hábitos faz também parte das condições necessárias, porque os bons
costumes são como o ar puro, que alimenta a semente e a faz crescer. E o amor ao
trabalho representa todos os cuidados que se tem de dar à terra para a tornar
fértil. Mas existe ainda uma última condição: ter tempo, porque só ele dá às
coisas a possibilidade de fortificarem, de se alimentarem e de se amadurecerem.

Hipócrates acrescenta ainda: «As coisas sagradas não devem ser ensinadas senão
às pessoas puras; é um sacrilégio transmiti-las aos profanos antes de os ter
iniciado nos mistérios da ciência.» (1)

Esta pequena frase que se lê no seu Prolegómenos convida o curioso a meditar


longamente sobre os ensinamentos daquele que deu o nome ao juramento ainda hoje
prestado pelos nossos jovens médicos no dia da sua formatura.

O FUNCIONAMENTO DO CORAÇÃO E SEU CONHECIMENTO

A figura hieroglífica que representa o coração suspenso de uma artéria é


composta foneticamente por três

Cf. Dr. Auber, Institutions dWippocrate, op. cit.

33
figuras que significam respectivamente a vibração ou o ar, o ser
individualizado, portador da vida sobre a Terra, e a boca, através da qual passa
a respiração que se manifesta nas pulsações do coração. A figura do coração
significa «ser bom». Constitui a base a partir da qual se formam outros
hieróglifos significando o bem, o útil, a beleza(’). A inteligência, segundo os
egípcios, encontra-se no coração.

A primeira referência à contagem das pulsações remonta, na medicina ocidental


(2) , ao Egipto faraónico. «O coração fala», diz o papiro de Ebers, a primeira
enciclopédia médica. «Se colocarmos os dedos sobre a cabeça, a nuca, as mãos, os
braços, as pernas, encontramos sempre o coração, porque os seus «vasos estendem-
se a todos os membros». O coração é um órgão que fascinou sempre os antigos
egípcios. Existem duas palavras para o designar: haty ou ib. Por vezes, ib
significa também o estômago, que é considerado como a «abertura, do coração».
Uma inscrição da XXII dinastia deixou-nos este testemunho: «O coração é um deus
cuja capela é o estômago.»

O começo do segredo da medicina é: o conhecimento do funcionamento do coração e


o conhecimento do coração. O papiro de Ebers contém um tratado muito antigo
consagrado especificamente ao coração e aos vasos. Compõe-se de uma exposição
teórica sobre este órgão, as suas funções e os «vasos», assim como de uma
compilação de comentários. Para alguns autores modernos (’), «nem tudo é claro
nessa exposição, e o vago da redacção é um indício da imprecisão do pensamento».
Evidentemente que imaginamos facilmente a confusão de um

(’) Segundo Enel, «parece que essa figura representa de preferência um


instrumento musical, género bandolim, do qual o músico obtém um ---lindo som".»
Cf. Enel: Ia Langue Sacrée (Paris, Maisonneuve, 1968). Surpreende-nos que o
simbolismo deste instrumento e do «lindo som» tenha escapado ao grande cabalista
que foi Enel. (’) Segundo o papiro de Smith, trad. e coment. por Breasted, os
egípcios utilizavam pequenas clepsidras (relógios de água) portáteis, desde a
XVIII dinastia, para medir as pulsações. Um desses instrumentos foi encontrado
nas escavações de Gaza, na Palestina, e tem o nome do faraó Mineptah (XIX
dinastia). (’) Dos quais o Dr. G. Lefebvre, autor de Essai sur Ia Médecine
égyptiene de Vepoque pharaonique (Paris, PUF, 1956).

34
cientista educado na escola positivista perante as descrições deste tratado. É
sem dúvida necessário relê-lo tentando compreender o espírito das palavras, em
vez de tomá-las à letra. Talvez seja necessário inspirarmo-nos no caminho
seguido pela acupunctura tradicional, na sua fisiologia das energias (’).

Metu traduz-se por «vasos». Mas, por outro lado, esta palavra designa também
aquilo a que chamamos músculos e tecidos fibrosos.

Estes metu, em número de quarenta e cinco neste tratado, são descritos como
canais ocos cheios de líquidos, de detritos e de ar. O coração, por intermédio
dos metu, distribui a energia e regulariza o funcionamento do organismo humano
em todos os seus detalhes.

O coração, sede da inteligência e da bondade, é também o centro motor e director


do corpo físico do homem.

O sangue faz parte desses líquidos conduzidos pelos metu.

O SANGUE DA VIDA E A DOENÇA

A ciência sagrada dos egípcios considera que o sangue de cada indivíduo possui a
sua própria frequência vibratória. Nenhum ser humano se parece nem existem duas
frequências vibratórias idênticas entre dois seres. Vejamos o que nos diz um
célebre especialista anglo-saxÓnico do esoterismo e do misticismo: o Dr. George
H. Williamson:

«A formação “cristalina” do sangue transporta uma certa energia luminosa através


do corpo. É isso a Vida!
O sangue, em si mesmo, não é a vida, mas é graças a ele que a vida entra no
corpo e o banha todo. Ninguém vive devido apenas ao funcionamento de um coração,
de um fígado, ou de um cérebro, nem graças à acção de uma certa quantidade de
sangue. A Vida está algures, e nós vivemos como a assimilamos.»

No célebre Tratado do Funcionamento e do Conhecimento do Coração, do papiro de


Ebers, podemos ler:

Ver, mais adiante, o capítulo «O Tao e a Acupunctura».

35
«Quatro melu vão até aos dois ouvidos; dois ao direito e dois ao esquerdo. O
sopro da vida entra pelo ouvido direito e o sopro da morte pelo ouvido esquerdo.
Ou, melhor, o sopro da vida entra pelo lado direito e o sopro da morte pelo lado
esquerdo.»

Portanto, os inelti tanto são condutores das forças vitais como das mortais, nas
quais alguns autores modernos tentaram reconhecer os «germes mórbidos» (’).

Assim, o tratado do papiro de Ebers explica: «Quatro vasos servem o fígado:


levam-lhe a humidade e o ar. Provocam portanto todas as espécies de doenças,
quando estas estão misturadas no sangue.» E no papiro hierático de Leyde
encontramos estes encantamentos: «Abri as vossas bocas, ó metu de.... filho
de.--- rejeitai a doença que está dentro de vós!» E ainda: «Falo convosco,
inetti que haveis recebido o mal.»

O PODER DAS MúMIAS

Os egípcios cuidavam muito o corpo depois da morte, para assegurar-lhe a sua


ressurreição. Não são os médicos que praticam a mumificação. Isso está reservado
aos técnicos especializados. Os despojos dos mortos sã o conservados por meio de
resinas e essências, cujas receitas tinham sido dadas aos técnicos por Tote.

Os egípcios descobriram as primeiras propriedades anti-sépticas das essências,


dos aromas e das espécies. Vestígios de canela, de cravo-de-cabecinha, de noz--
moscada, entre outros, foram encontrados nos túmulos dos faraós. Os segredos da
sua preparação estavam reservados aos sacerdotes-médicos, técnicos do
embalsamaménto. Vejamos o que nos diz Heródoto: «Depois de se ter limpado as
vísceras com vinho de palma, salpicam-se com especiarias trituradas: pimenta,
canela, gengibre. Depois enche-se o abdómen de mirra, cássia e toda a
espécie de substâncias odoríferas. Feito isto, o cadáver é lavado com outros
aromas.»

Foi no Egipto que nasceu a aromoterapia, ou o tratamento das doenças pelas


essências das plantas.

(’) Cf. Dr. N. Riad, Ia Médechie au Temps des Plial*M)lis (Paris, Maloine,
1955).

36
Mas, por agora, continuemos com as múmias. As múmias egípcias foram utilizadas
em França como medicamento depois do século VII, quando da conquista dos Árabes.
Já na Antiguidade clássica o asfalto era utilizado em fumigações contra a tosse
e a asma, em unguentos e emplastros contra as comichões e entorses, assim como
para amadurecer os abcessos, em fricções contra a erisipela, como hemostático
para as hemorragias,, como talas para imobilizar as fracturas. Ingerido, o
asfalto aliviava as pleurites, as bronquites e as menstruações difíceis.

A este asfalto ou betume chamavam-lhe «mum». Abu-Djoreidi recomenda a múmia, por


ser «eficaz contra as feridas da bexiga e do pénis quando tomada com leite, na
dose de um quirath».

Os pedaços resinosos aderentes à múmia são também utilizados para combater a


incontinência da urina, quando dissolvidos em óleo de jasmim e aplicados em uso
tópico.

Alguns médicos chegaram até a considerar a múmia


como uma panaceia. Portanto, não podemos estranhar que se tenha estabelecido na
Europa um intenso comércio de múmias, tanto mais que, segundo alguns, esta
«Substância» conferia a imortalidade aos humanos!

Esse comércio nasceu na Europa quando terminaram as cruzadas; e com tal


amplitude que, quando a fonte de abastecimento (as tumbas violadas dos Beduínos)
acabou, fabricaram-se falsas múmias. Daí que Guy de Ia Fontaine, médico do rei
Henrique IV, tenha podido ver em Alexandria, em 1564, quarenta múmias no
entreposto de um negociante palestino, as quais haviam sido fabricadas por ele
(1). Os europeus experimentaram, por sua vez, a receita. Em breve a múmia encheu
o mercado, a sua cotação baixou para seis escudos, e já ninguém

C) O Dr. Naguib-Riad (cf. op. cit.) conta-nos: «Serviam quaisquer mortos, de


preferência escravos, porque não teria de se dar contas deles a ninguém. O
“industrial” de múmias não se preocupava nem com a doença que lhes tinha
provocado a morte. nem com o sexo, nem com a idade. Preparava-os, esfregando-os
com resina da Índia, e enrolava-os em panos mergulhados em asfalto derretido. No
fim de dois a três meses tinha uma múmia apresentável ... »

37
mais lhe prestou atenção. No fim do século XVII, desapareceu da farmacopeia (1).

OS SEGREDOS DA AROMOTERAPIA

Os egípcios inventaram a destilação do vinho e da resina de cedro. A essência do


cedro, ou terebentina, assim como o perfume das plantas sob a forma de azeite
destilado, foram descobertos pelos seus sábios. Durante o período da decadência
greco-romana esses segredos seriam esquecidos. Os árabes redescobriram-nos entre
os séculos VIII e XII. Desde então, os alquimistas e os médicos ocidentais
fizeram da concentração por destilação de produtos animais e vegetais uma das
principais actividades dos seus laboratórios. Devemos-lhes a aromoterapia (’).

Horácio dizia: «Muitas coisas que estavam há muito tempo esquecidas,


renascerão.» Só agora é que a nossa ciência começa a ser capaz de analisar-lhes
as propriedades químicas: «As essências descobrem pouco a pouco os seus segredos
depois do advento da química orgânica, no fim do século XIX. Contudo, ainda não
os revelaram na sua integridade.»

Eis o procedimento habitual dos egípcios para destilar as madeiras odoríferas e


obter essências a partir de aromas de especiarias: os pedaços de madeira, as
folhas e os caules eram colocados num vaso de argila que se punha sobre o fogo.
Tapava-se o orifício com fibras de algodão dispostas sobre junco entrançado e as
essências eram depois recolhidas por simples pressão do algodão impregnado.

(’) Fourquet possuía ainda duas múmias nos seus sarcófagos, em Saint Mandè, na
sua casa de campo. (-’) Consideradas antigamente como espécies definidas, as
essências oferecem-nos -escreveu o Dr. Taylor, da Universidade de Austin
(Texas)- mais composições novas que as que todos os químicos do mundo poderiam
jamais sintetizar durante mil anos de trabalho. Agora, sabemos que se trata da
mistura de numerosos componentes: terpenos, álcoois, éteres, aldeídos, cetonas,
fenóis, etc. Cf. Dr. J. Valnet: Aromothérapie (Paris, Maloine,
1971).

38
É o processo primitivo de destilação, fácil de realizar para os que residem no
campo. Foi ele que deu origem à destilação dos nossos licores e dos nossos
perfumes.

PERFUMES MÁGICOS

Os perfumadores existiam em todo o Egipto. Nos templos, nos palácios, nas mais
humildes casas. Os hieróglifos que representam o perfumador exprimem também a
alma de Bâ, chama de vida que queima e se apaga um dia ao cimo da terra.
Perfumes cujas emanações chegam aos céus!

Para compreender a acção das fumigações, é indispensável saber, primeiro, que um


bom funcionamento nasal-respiratório é sinónimo de um bom equilíbrio
psicossomático. Veremos mais adiante qual a importância que os egípcios davam ao
ioga.

Já todos tiveram ocasião de observar que uma criança com as narinas


continuamente obstruídas tem dificuldade em fixar a atenção. O nariz,
evidentemente, permite apreciar a boa cozinha, o sabor dos vinhos. Mas serve
também para muitas outras coisas.

Na tradição de Tote, o nariz é considerado como o «centro do crânio». Um


verdadeiro «cérebro nasal» tem o seu centro no nariz: chamamos-lhe rinencéfalo.
Os centros cerebrais estão ligados às fossas nasais e, portanto, ao sentido do
olfacto (1).

As experiências feitas com animais aos quais se feriu o interior do nariz


provaram que eles perdem a capacidade de discernimento; comem não importa o quê:
pregos por exemplo; perdem a memória.

Com efeito, este «cérebro olfactivo» é um dos centros especializados da massa


cerebral. Na compilação supracitada na nota, as descobertas dos dois sábios C)
reatam a tradição egípcia: «0 hipocampo é o próprio centro dos fenómenos
emocionais [ ... 1. Neste conjunto, o chifre

(’) A este respeito ver uma compilação de artigos, aparecida sob a direcção do
Prof. Alajouarnine: Les Grandes Activités du RIzinencéphate, Paris, Masson,
1961. (’) Cf. o artigo de Passouant e Cadilhac, in les Grandes Activités du
Rhinencéphale.

39
de Amon representa uma estrutura onde se encontra i, construído” o processo
emocional que, pelas vias conhecidas, é transmitido ao córtex, de onde irradia
para as outras regiões corticais.»

O chifre de Amon tem a forma de um chifre de carneiro. Camada inferior do anel


cerebral, esta região está ligada à actividade do sistema extrapiramidal, quer
dizer, a tudo o que é emotivo involuntário, como a epilepsia, esse mal sagrado.

Eis algumas conclusões que permitem explicar, de uma maneira fisiológica,


natural e científica, a acção que alguns perfumes podem exercer sobre o
comportamento e porque alguns deles podem desenvolver a capacidade de intuição,
de premonição ou «visão directa», e a atenção lúcida sem cansar.

Assim, o betume queimado permitia aos sacerdotes e médicos-mágicos reconhecer as


predisposições para a epilepsia. Quando, ao meio-dia, o ar se tornava demasiado
pesado devido aos vapores da terra, os egípcios queimavam mirra. Outras
composições chegaram até nós: o susímio, o metópio, o crocomágio e o bálsamo
real estão entre as mais conhecidas. Mas a mais célebre é o kyphi, seco ao sol e
composto de 16 ingredientes: junco odorífero, genebra, cipreste, mirra, incenso,
salva, menta, rosmaninho, açafrão, cardamomo, musgo, etc. Deixava-se macerar
esses ingredientes no mel ou no vinho e juntavam-se depois à resina e ao betume.
O tóxico meimendro é misturado a todos os perfumes dos templos e é ele que lhes
dá um poder muito especial. O suco de meimendro, de cicuta, de teixo, de
barbassa, de sândalo vermelho e de papoila negra, misturados com essência de
lírio e de canatrecha, permitem a aparição dos «espíritos». Mas o meimendro pode
provocar a paralisia e até mesmo a morte. Ai de quem não o saiba utilizar!

O meimendro era também empregue na Grécia com fins divinatórios. Entre os


romanos, sabia-se que o meimendro preto provoca a loucura. Experiências recentes
permitiram recolher as impressões sentidas por pessoas a quem se fez absorver
escopolamina, o elemento mais activo do meimendro: sensação de peso na cabeça
como se transportassem um peso, sensação de uma força invisível fechando-lhes as
pálpebras, alucinações e aparecimento de círculos negros sobre um fundo
prateado,

40
verde sobre fundo dourado, depois o sono, durante o qual sonhavam com aparições
fantásticas (’).

Plínio diz-nos, a propósito do incenso, na sua História Natural, que a


«floresta» onde ele é colhido, dividida em lotes determinados, está protegida de
roubos graças à natural honestidade do povo egípcio. Ninguém guarda as árvores
cortadas, ninguém rouba as árvores do seu vizinho.

Mas já em Alexandria, onde o incenso é falsificado, os laboratórios nunca estão


suficientemente vigiados: carimbam-se as ceroulas dos trabalhadores, enfiam-se-
lhes umas máscaras pela cabeça ou uma rede de malhas cerradas, não os deixam
sair senão nus...

O precioso incenso é queimado nos templos dos deuses com a mirra e o manjericão.
Esta última planta entra igualmente na composição dos produtos utilizados no
embalsamamento dos mortos. A sua essência, obtida pela destilação das folhas,
tem o poder de curar a epilepsia ou, pelo menos, parar as crises epilépticas e
«acalmar os nervos».

Digamos que é o « tranquilizante » da época! Em todo o caso, não produz efeitos


iatrógenos. A maior parte das plantas aromáticas são oriundas do próprio país
ou, se importadas, vêm na maior parte das vezes do país de Punt (a Somália). O
papiro de Ebers menciona a rainha Hatschepust (o seu reinado estendeu-se de 1520
a 1505 antes de J. C.), que para lá enviava todos os anos os seus vassalos em
expedição.

Para terminar esta longa parte destinada às plantas, falta-nos sublinhar aqui
que nos medicamentos compostos pelos médicos-mágicos do Egipto predomina o reino
vegetal. Mas, se o papiro de Ebers nos diz que a medicamentação pelas plantas é
benéfica, diz-nos também que ela é «secreta». Os que traiam os deuses eram
muitas vezes condenados a morrer envenenados.

Contudo, o reino animal forneceu igualmente numerosos produtos, particularmente


no domínio da cirurgia. Entre os mais exóticos: a gordura do leão, do
hipopótamo, do boi, do ganso, do gato, etc.; o sangue do lagarto, do morcego, do
burro [ ... 1; urina, sobretudo das

Cf. Dr. Lewin: Phantastica (Paris, Payot, 1970).

41
crianças L... ]; conchas de tartaruga ratos cozidos ou crus... Também o
reino mineral forneceu um certo número de medicamentos: lascas de sílex,
petróleo, natrão, ocre amarelo, mármore, etc. Citemos também o memphitis, ou
mármore do Cairo, que Plínio diz ser utilizado sob a forma de pó misturado com
vinagre. «Esta composição entorpece tão bem o local onde se aplica», diz ele,
«que o cirurgião pode cortar ou cauterizar sem que o doente sinta dores».
Efectivamente, o vinagre, ou ácido acético, produz, em contacto com o carbonato
de cálcio que compõe o mármore, uma certa quantidade de gás carbónico que pode
actuar como anestésico local. O seu poder é ainda maior no estado de reacção do
que em pulverizações gasosas.

O IOGA DOS EGIPCIOS

Já falámos antes na importância da função respiratória. A estatuária faraónica é


uma fonte inesgotável de ensinamentos sobre o ioga egípcio, menos conhecido que
o ioga indiano, mas, parece, bastante mais adaptado à morfologia e à psicologia
dos ocidentais.

Este ioga foi-nos transmitido pelo professor indiano Otoman Zar-Adusht Hanish
(’). Vamos dar a palavra a dois dos seus discípulos: «O ioga irano-faraónico,
tal como Hanish no-lo transmitiu, é fácil, progressivo, dinâmico, respiratório,
vertebral, ortopédico. É vivo. Adapta-se aos europeus. É compatível com a vida
dos comedores de vacas. É sempre correctivo; não contém posturas deformantes,
anormais, monstruosas ou destrutivas. Não é nem entorpecente, nem estático, nem
perigoso para o cérebro e as articulações. Qualquer pessoa pode praticá-lo. Pode
fazer-se sentado, de joelhos, na cama, deitado no chão, contra uma porta, contra
uma árvore, em qualquer idade.»

Para estes autores, a origem dos gestos do padre católico quando celebra a missa
está nas posturas que tomavam os médicos-mágicos do Egipto antigo para des-

Ver, atrás, Perfunies Mágicos, p. 36.

42
pertar os chacrãs superiores depois de terem «normalizado» os chacrãs
inferiores. Entre os dois, o diafragma, que os limita e os associa. Na base da
inspiração está o trabalho que o diafragma exerce comandando os pulmões; e este
trabalho é a base do ritmo psíquico de cada indivíduo.

É a respiração dominada, cantada de frente para o sol-nascente, seguindo as


posições de ioga e pronunciando as vogais, que os padres e os médicos-mágicos
ensinaram a Pitágoras (1). Graças a ele, este ensinamento tornou-se célebre na
Grécia, e também no nosso mundo moderno; duas célebres correntes gnósticas
retomaram-no sob o nome de euritmia (’) e paneuritmia (’).

Examinemos algumas das características do ioga expressas na estatuária faraónica


(’).

As numerosas estátuas de homens (o faraó Ranaphir, o colosso de Ramsés II, o


oficial do rei, etc.) têm os punhos cerrados sobre cilindros, o peso do corpo
repartido igualmente sobre os pés, a musculatura das pernas esticada sem
excesso, as nádegas contraídas para trás e o ventre ligeiramente saído; a bacia
serve de alicerce à coluna vertebral, firme e direita, que permite aos ombros
conservarem-se baixos e recuados e os braços contraídos sem exagero. Deste modo,
os pulmões podem funcionar livremente. Trata-se de um exercício? Mas
evidentemente; os punhos bem cerrados sobre si mesmos ou sobre os cilindros, o
calor invadindo as mãos e, a partir daí, todo o corpo: é a energia vital que
circula. Este exercício permite a protecção do frio. Os tibetanos também o
conhecem.

Aparentemente simples, não é? Este exercício é a base de uma posição que nos
ensina também uma das estátuas mais célebres do mundo: a do escriba acocorado.
Para tomar consciência das costas e dominá-las, acocorar-se contra uma parede,
destacando bem o pescoço. As mãos na nuca e os braços em cruz são os movi-

(’) Para ter uma ideia do som cantado utilizando o diafragma como «caixa de
ressonância», basta escutar a linguagem russa ou búlgara, ou então os cantos
gregorianos.

Ver, adiante, o cap. «A Medicina dos Antropósofos». Ver, adiante, o cap. «A


Medicina dos Gnósticos». Cf. A. e M. de Sambucy: Êtude et Emploi du Yoga
Iraffien et Êgyptien (Paris, Dangles, 1973).

43
nientos básicos que se executam nesta posição, chamada o «acocorado».

O assento perfeito dos faraós, tronco perpendicular às coxas, elas próprias


perpendiculares às pernas, perpendiculares por sua vez aos pés, é a réplica no
plano físico, material, do domínio espiritual (esta posição é perfeitamente
representada pela estátua do faraó Usertosen 1, no Museu do Cairo). O homem
atinge aqui a perfeição graças ao conhecimento que os deuses lhe deram da sua
missão.

HIPNOSE E SONO SAGRADO

A hipnose e o magnetismo, tal como são praticados no Ocidente desde o tempo de


Mesmer, estão completamente desespiritualizados. É evidente que a técnica é a
mesma, mas está completamente desprovida do seu profundo significado. Um médico-
mágico sorriria perante as nossas explicações racionalistas.

Para compreendermos esse sorriso, teremos de mergulhar nos mistérios do


conhecimento no Egipto. Segundo a tradição esotérica, os egípcios formam a
terceira era da civilização atlantidiana. Vejamos quais são as recordações desta
consciência atlantidiana que os egípcios encontraram no sono e, como diriam
actualmente os nossos psicanalistas, no seu inconsciente: «No tempo em que o
Homem percebia o que o rodeava graças à sua clarividência, o seu corpo etérico
não estava tão intimamente ligado ao físico como acontece actualmente e,
sobretudo no que se refere ao intelecto, ultrapassava em muito o físico [... ].
Foi graças à sua clarividência que Atlante mergulhou no passado [ ... ].
Quando o Homem abandonava o seu corpo físico, em vez de ficar rodeado de trevas
(enquanto dormia), entrava num mundo povoado por criaturas espirituais. Via
formas divinas como nós hoje vemos corpos físicos.»

É sem dúvida por isso que o sono no templo continua a ser um enigma para o homem
moderno. Contudo, um homem pertencente à vanguarda da ciência deste século,
Rudolf Steiner (), deu-nos em poucas palavras um es-

(’) Ver mais adiante o cap. «A Medicina dos Antropósofos».

44
boço perfeito do sono no templo, um dos melhores remédios e dos mais antigos dos
sacerdotes egípcios:

«Aquele que sofria de qualquer perturbação de saúde não era, nesse tempo,
tratado com remédios externos; isso acontecia muito raramente. A maior parte das
vezes, o doente ia ao templo, onde o adormeciam. Contudo, este não era um sono
normal, mas sim um sono sonambúlico tão profundo que o doente era capaz de ter
não apenas sonhos caóticos mas sim verdadeiras visões. Durante esse sono, via
formas etéricas no mundo espiritual, e os mágicos conheciam o modo de agir sobre
estas visões; podiam guiá-las e dirigi-las. Suponhamos um doente mergulhado
nesse sono, com um mágico-curandeiro ao seu lado. A partir do momento em que o
doente era adormecido, quer dizer, penetrava num mundo de formas etéricas, o
sacerdote dirigia esse sono graças ao poder que lhe tinha sido conferido por
iniciação, e que não era possível senão nesses tempos recuados em que havia
ainda condições de existência raras hoje em dia, se é que não desapareceram já.
O mágico modelava as visões e os seres etéricos, de maneira que, como por
sortilégio, apareciam ao dormidor seres nos quais os Atlantes viam os seus
deuses. Entre essas formas divinas, as que se ligavam à ideia de uma cura
completa eram colocadas perante a alma do dormidor. Se o homem mantivesse a sua
consciência desperta não teria nunca possibilidades de fazer com que essas
forças actuassem nele. Os sacerdotes dirigiam portanto esses sonos de uma
maneira tal que as forças poderosas o penetrassem, harmonizando e regularizando
o corpo, cujas forças vitais estavam em desarmonia e desordem. Isto não era
possível senão graças à atenuação da consciência do Eu.» (’)

Para isso, os sacerdotes-mágicos utilizavam o hipnotismo, como já vimos. Em


alguns casos, para prolongarem os efeitos desta terapêutica, utilizavam uma
outra forma de hipnotismo, a sugestão à distância (2), graças

R. Steincr: Mytes ei Mystères Êgyptiens, op. cit. Este processo que utiliza a
concentração mental e a consciência imaginativa foi descrito de uma maneira
bastante simples para ser experimentado sem dificuldades por Jagot (P. C.):
Unfluence à Distance, Ia Transmission de Pensée et Ia Suggestion Mentale (Paris,
Dangles, 1925). É, com efeito, uma das aplicações da técnica da hipnose.

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à sua capacidade de concentração mental e de consciência imaginativa, que lhes
permitia atingir os mais altos graus da iniciação.

O TEMPLO, CENTRAL ENERGÉTICA

A arquitectura da pirâmide reflecte simultaneamente o macrocosmo e o microcosmo.


No plano espiritual, traduz o apego da alma às coisas terrenas. Apego esse que
lhe serve de trampolim para descobrir a chave da vida sobre a terra, e depois,
adquirido este conhecimento, para erguer-se para o alto em busca de um novo
nascimento.

A grande pirâmide de Gizé é o alto lugar onde se pratica o rito do nascimento


espiritual. Por cima do sarcófago que se encontra na Câmara do Rei existe uma
estranha estrutura, cuja forma faz lembrar um pouco uma das nossas colmeias.
Esta estrutura, constituída por quatro elementos idênticos sobrepostos,
constitui uma verdadeira pilha que emite poderosas vibrações que se podem
detectar pelo pêndulo.

Esta irradiação radiestésica corresponde ao Verde negativo. A radiestesia


egípcia era ensinada oralmente, ignorando o povo tudo isso, pois era camuflado:
o povo via apenas a forma, ignorava os seus perigosos poderes.

Toda a pirâmide emitia esta onda particular, que, dizem, ainda aparece sob a
forma de uma auréola azul quando se observa a pirâmide de Gizé durante a noite.
Esta vibração era uma onda de vida ou de morte, conforme se era ou não iniciado.

A onda podia sem dúvida ser substituída, à semelhança das retransmissões de


rádio, por determinadas formas. Talvez a da cruz alada. Talvez também um móvel
original, um género de tamborete rodeado de ornamentos cujo exemplar se conserva
no Museu do Louvre.

É bom constatar que esta pirâmide foi construída num lugar geométrico
particularmente interessante: sobre o trigésimo paralelo a partir do Equador e
sobre um meridiano que tem a particularidade de dividir em duas partes iguais
todas as zonas imersas do Planeta, de atravessar o máximo delas e, finalmente,
de dividir o delta do Nilo com grande precisão pelo cruzamento de diagonais.

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Assim, verdadeiro farol radiestésico que dirige o viajante tanto no mar como no
deserto, a pirâmide construída por Kéops é também o «formulário vivo e total da
ciência egípcia» (’).

E as suas propriedades não se limitam ao alto grau das ciências matemáticas,


físicas, arquitecturais e astronómicas que os egípcios atingiram, como vimos até
agora.

Os médicos-mágicos, os sacerdotes terapeutas, sabiam certamente utilizar,


retransmitir e modular esta onda que ela emitia, a fim de a transformar, segundo
as necessidades e os casos, quer em forças curativas, quer, pelo menos no começo
do seu tratamento, em forças hipnóticas que permitissem atenuar a consciência do
Eu.
O egípcio, iniciado na Grande Pirâmide, continua por assim dizer «ligado» a ela,
como os móveis do templo, e torna-se, pela sua simples presença e gestos
apropriados (ou pelo «apelo das formas»), num emissor curativo simultaneamente
humano e divino.

O iniciado, com efeito, é um homem que conseguiu modificar-se em todos os


aspectos para estar em equilíbrio com todas as radiações. À medida que progride
no templo, na Grande Pirâmide, torna-se capaz de reconhecer todas as ondas do
espectro e de filtrá-las, exactamente como um metal ou um planeta filtram uma
determinada vibração, quando essas vibrações, devido ao excesso, se tornam
nocivas.

O Verde negativo, irradiação emitida pela Pirâmide, possui poderes


extraordinários sobre a carne. Pode dessecá-la, mumificá-la. Mas pode também,
segundo as experiências de Enel, fazer nascer os tecidos mortos. Este, serviu-se
dela nas suas experiências sobre o cancro. Utilizou primeiro baterias de quatro
elementos formadas por hemisférios de madeira de acaju de 10cm de diâmetro
(estrutura comparável à que se encontra por cima do sarcófago na Câmara do Rei);
depois, o mesmo número de pirâmides sobrepostas. A própria forma da pirâmide
constitui com efeito uma pilha. Este investigador apercebeu-se igualmente de que
existem outros raios negativos nesse feixe verde negativo, e que estes podem
tam-

(’) Moreux (abade): Ia Science M.vstériet4se des Pliaraons (Paris, Plon, 1958).

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bém ser utilizados no tratamento de diversas doenças, entre as quais a
tuberculose.

Servindo-se da «onda pura», apropriada a uma determinada doença, o resultado


dessas curas pareceu-lhe consideravelmente mais rápido e eficaz (’).

As pesquisas dos dois investigadores L. Chaumery e A. de Belizal (’) confirmam


também o facto de que é possível fabricar e obter ondas de forma de um poder
infinitamente superior, quantitativa e qualitativamente, às de que dispõem os
nossos aparelhos modernos. As mortes sucessivas dos que acompanharam Howart
Carter, em 1922, na exploração ao túmulo de Tutancámon é sem dúvida uma das mais
célebres provas.

Segundo a tradição, Tote utilizava um «pau» ou VI-j1 (% capaz de emitir um raio


vibratório. Algumas estátuas de Tutancámon representam-no tendo na mão varinhas
bastante estranhas.

A nossa ciência mais moderna só agora começa a poder analisar e compreender


esses mistérios. Contemplando uma estranha bola de cristal, semelhante às dos
sacerdotes de Amon, e que deu origem ao globo símbolo da realeza, Zardos, o
mutante, descobriu que o emissor não pode ser da mesma natureza que o receptor.
O pensamento científico contemporâneo não está talvez ainda suficientemente
amadurecido para encontrar a chave racional de todos estes enigmas. Ele não tem
a mesma natureza que o dos faraós, porque é desprovido de toda a
espiritualidade.

NAS ORIGENS DA GNOSE

A tradição egípcia, os seus mistérios e os seus segredos são mantidos pelos


coptas, primeiros egípcios cristianizados, que permaneceram fiéis a Jesus apesar
das invasões muçulmanas. É que Cristo faz esotericamente

(’) Cf. Enel: Radiations des Forines et Cancer (Paris, Dangles,


1959). (’) Cf. Chaumery (L.) e Belizal (A. de): Essai de Radiesthésie Vibratoire
(Paris, Dangles, 1956). (’) Este vril inspirou sem dúvida Van Vogt na descrição
que fez dos «seus» Slans, mutanyes com pequenos vrils dourados nos cabelos, o
que lhes dava os seus poderes telepsíquicos. Cf. A Ia Poursuite des Slans
(Paris, ed. «Fai Lu» n.* A 381).

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parte do grande plano da evolução do mundo, e a sua vinda tinha sido preparada
pela reforma de Akhenaton, esse faraó que destruiu os ídolos, que se haviam
tornado as estátuas divinas dos templos, e ordenou ao seu povo o monoteísmo
solar. Esta tradição, que se manteve no plano religioso, permitiu preservar uma
parte do conhecimento dos sacerdotes do Egipto.

Os manuscritos coptas de Khenoboskion, no Alto Egipto - dos quais Togo Mina,


director do museu copta do Cairo, conseguiu encontrar a pista -, são, segundo
Jean Douesse (’), mais ricos e de um conteúdo histórico mais amplo do que os
manuscritos do mar do Norte, encontrados perto de Qourâm.

Graças aos coptas, alguns indícios permitem estabelecer com toda a exactidão uma
ligação entre o longínquo passado, onde, por ocasião da iniciação do sacerdote-
terapeuta egípcio, o conhecimento supremo se definia como um meio de elevação
espiritual, e os «segredos» terapêuticos das diferentes correntes gnósticas.

Seth poderia perfeitamente ser o deus do mal da Génese gnóstica, ou o Tífon que
presidia aos rituais judaico-gnósticos. No «Evangelho dos Egípcios», trata-se de
lugares misteriosos, vigiados por determinados guardiães... Poderia talvez
tratar-se dos covis secretos do Leão, um dos quais é guardado pela Esfinge.

A gnose é a libertação do que é bom, mas perdido. Os sacerdotes-terapeutas agiam


do mesmo modo para curar os seus doentes. Assim, a sua ética parece-se
estranhamente com uma pergunta que Maria faz na «Sofia de Jesus»: «Senhor, de
onde vieram os teus discípulos e para. onde irão, e que farão eles lá em baixo?»

Tal é a pergunta fundamental da Ciência da Vida dos terapeutas do Egipto. Nas


origens da gnose.

A HERANÇA DO EGIPTO

A terra negra dos Egípcios, ou chime, deu origem à nossa «química», porque chime
significa também «a ciência egípcia», já que foi sobre esta terra que se
desenvolveu esta ciência durante a Antiguidade clássica.

(’) Ver Douesse (J.): les Livres Secrets des Gnostiques d'Egypte (Paris, Doin,
1925).

49
Quem é que sabe que a palavra amoníaco deriva simplesmente de Amon (1), porque
essa substância se encontrava em Siual perto do templo do deus dos faraós?

A nossa palavra «farmácia» tem por étimo Ph-ar-maki, e esta expressão significa,
em egípcio, «aquele que procura segurança». Ph-ar-maki significa também Tote, o
deus das três centenas de nomes.

Também é necessário saber que as dores de cabeça, que atribuímos a torto e a


direito aos efeitos da poluição e da agitação frenética da nossa civilização (em
vez de tentarmos encontrar o motivo em nós mesmos), eram conhecidas dos
Egípcios, que lhes chamavam «a doença da ineia cabeça» e que os gregos traduziam
por hemikrania (’), que deu origem à palavra francesa migraine (em inglês,
megrim).

Acrescentemos que a origem do récipe, que figura sob a forma de Rp. nas receitas
que se mandam ao farmacêutico para que as execute, tem a forma do olho de
Hórtis, olho esse que se assemelha a um nervo. Esta convenção médica persistiu
desde o Egipto até aos nossos dias, ou seja, mais ou menos sessenta séculos.

Muitas outras palavras(’) derivam do egípcio, por rezes devido ao copta e


começando muitas delas por essa palavra. Os primeiros cristãos egípcios são
chamados os coptas, palavra que se pronunciava no Alto-Egipto Gypti, depois
giptos pelos gregos, e que por sua vez deu origem a Egipto. Temos ainda o
exemplo da substância resinosa que existia nas tribos de Punt e era conhecida
pelo nome de Kmyt, que se pronuncia Komi em copta, e gomme em francês.

OS ENCANTAMENTOS

A medicina sagrada egípcia é uma medicina que pretende restabelecer no doente a


sua frequência vibratória.

(’) O grande templo de Ãmon, em Karnak, está construído junto de um lago sagrado
sobre o qual, segundo Heródoto, se desenrolavam as cenas mais importantes dos
mistérios de Osiris. (2 ) Do grego hemi, e kranion, cabeça ou crânio. (’) Por
exemplo: a palavra copta que deu origem a adobe, que em espanhol e provençal
significa os tijolos cozidos ao sol, técnica que era utilizada pelos egípcios. A
este respeito, consultar Hasan Fathy: Construire avec le Peuple (Paris,
Martimeau, 1971).

50
A não ser, claro, quando o médico se encontra perante uma «doença que não curo»;
trata-se nesse caso de uma doença cármica decisiva, pondo termo a uma encarnação
presente. O veredicto do médico é dado de acordo com as irês expressões
seguintes: «Doença que eu trato (prognóstico favorável); doença que combaterei
(prognóstico duvidoso); doença que não curo ... »

O médico-mágico, recorre, por um lado, aos encantamentos, para permitir ao


doente «ligar-se em tomada directa à vida», e, pelo outro, aos remédios, que
fortalecem o terreno. Eis o que nos explica um médico-mágico que viveu no
reinado de Ramsés I:

Venho da escola de medicina de Heliópolis, onde os veneráveis mestres do grande


templo me inculcaram a arte de curar; venho também da Escola ginecológica de
Sais, onde as divinas mães me ditaram as suas prescrições. Tenho em meu poder os
encantamentos ditados pela própria Osiris, e o meu guia foi sempre o deus Tote;
Tote o inventor da palavra e da escrita, o autor de tantas prescrições
infalíveis; Tote, que dá a glória e o poder aos médicos e aos mágicos que seguem
os seus preceitos.

«Os encantamentos são excelentes para os remédios e os remédios são excelentes


para os encantamentos.»

Existem encantamentos que são de aplicação muito geral, porque o seu poder é dos
maiores. Não são acompanhados da indicação de um tratamento e parecem agir
simplesmente devido ao seu poder sobrenatural. Mas para isso é necessário que o
doente termine gritando: «Eu sou aquele que Deus deseja manter vivo!», no fim do
discurso de Rã prosodiado pelo médico-mágica.

Alguns encantamentos como os que se seguem são específicos de tratamentos


internos e têm de ser ditos todas as vezes que um doente toma uma poção:

«Ide, remédios! Ide e expulsai o que está no meu coração e nos meus membros!
Não vos lembrais de como Hórus e Seth foram criados juntos no grande templo de
Heliópolis?»

No entanto, na maior parte das vezes, os encantamentos não operam senão mediante
um substrato material, determinado em relação a cada uma das doenças, quer
dizer, por meio de uma preparação medicamentosa à base de produtos naturais,
relativamente simples de encontrar... no tempo dos faraós! Citemos, por exemplo,
o

51
encantamento que se deve salmodiar quando a córnea se cobre de belidas brancas
que obscurecem a visão:

«Desde que a noite se pôs há um ruído no céu do Sul, e tempestade no céu do


Norte. Um montão de cabeças cortadas caiu na água. A tripulação de Rã crava os
paus da amarração porque as cabeças caíram na água. Quem transportará então esse
monte de cabeças? Fui eu que o encontrei. Trouxe as vossas cabeças. Liguei as
vossas vértebras cervicais. Coloquei no lugar as vossas cabeças cortadas para
que expulseis o mal que me causaram.»

Encantamento que se deve recitar sobre bílis de tartaruga. Misturar com mel e
colocar sobre «as costas dos olhos» (as pálpebras).

Segundo alguns autores, Tobias teria ido ao Egipto em busca de um remédio que
lhe curasse a cegueira. Será que temos de ver no fel de peixe que o anjo Rafael
lhe receitou uma má tradução de «bílis de tartaruga»? O caso é que na
Antiguidade os oftalmologistas egípcios gozavam de uma fama enorme (1). Isto era
indiscutivelmente devido ao facto de as infecções oftalmológicas estarem, como
aliás ainda hoje acontece, muito espalhadas, começando pelo tracoma, ou oftalmia
do Egipto (’). Eis, para acabar, um encantamento e o remédio correspondente,
destinado a curar uma doença também muito difundida no Egipto:

«Outro remédio para curar a pelada: “õ tu, o Luminoso que continua imutável! Que
aquele que combate a fenda, Aton, se acautele com o que se tornou dono do alto
da cabeça!”

«Estas palavras devem ser pronunciadas sobre ocre amarelo, colocíntida,


alabastro, semente de e

(’) Sabemos por Heródoto que Ciro mandou vir do Egipto tini célebre
oftalmologista. Segundo Meyerhof, os egípcios faziam correctamente a operação às
cataratas. Cf. VOpération de Ia cataracte du cirurgien Atity11e d'Alexandrie em
Livre d'or pour le jubilé dií Pr Papayoannou, Cairo, 1932. (’~’) O papiro de
Ebers contém um Livre des Yeux que descreve uma vintena de doenças oculares e
umas seis centenas de observações. Entre essas doenças encontra-se o tracoma.
Com a bilharziose, é o grande responsável pela maioria das doenças
oftalmológicas tratadas pelos médicos egípcios.

52
mel. Deixar ferver até reduzir, e aplicar depois em emplastro.» (1)

AMULETOS E TALISMÃS

Por vezes, faz também parte da terapêutica do médico-mágico trazer ao pescoço,


dentro de um amuleto, a fórmula mágica do encantamento, escrita num pedacinho de
papiro. O que era com certeza mais simples e talvez mais eficaz para os doentes,
por exemplo de cefaleias rebeldes: « Uma outra conjuração da cabeça. Hórus lutou
com Seth num matagal. O filho de Geb queixou-se e Rã percebeu que Hórus parou de
combater, porque a sua cabeça estava doente. Rd gritou a Isis: “Vai ter com ele
e cura-o!” Isis disse: “Eu, Isis, mãe de Hórus, digo que a partir de agora
vencerás todas as doenças.-’ Deve ser dito sobre flores de um único arbusto,
depois esmagá-las na mão esquerda, molhá-las em leite, guardar um pedaço disto,
misturar numa peça de roupa branca, atá-la com sete nós e colocá-la ao pescoço
do doente.»

Este amuleto era certamente acompanhado de um outro tratamento preconizado pelo


papiro de Ebers para tratar ,as dores de um lado da cabeça», ou enxaqueca: «Uma
cabeça de siluro. Cozê-la em azeite. Friccionar-se-d a cabeça com ela durante
quatro dias.» Bastante fácil de encontrar. O sileno ou mar, peixe do rio Nilo
classificado por CI. Gaillard como Clarias anguillaris, não faltava nunca na
farmacopeia egípcia, tal como a aspirina no armário das nossas farmácias
domésticas.

Segundo a magia simpática, «todo o semelhante atrai o semelhante» e a «parte


vale pelo todo».

Também os amuletos são muito numerosos e variados.

A cruz alada (ankh), cujo hieróglifo significa «viver», é também muito


representada (’).

Símbolo da eternidade desde sempre, já que as suas linhas partem para o infinito
e nunca se encontrarão, a

Cf. o papiro de Ebers.


O símbolo do ankh figura no hieróglifo que significa a «Casa de Vida». O uso
deste talismã estava reservado à classe aristocrática. Ver L. Chaumery e A. de
Belizal: Essai de radiesthésie vibratoire (Paris, 1956).

53
cruz do Egipto tem na parte superior uma asa que podemos associar ao hieróglifo
que representa um laço de um cabo e significa «conjuração» ou «unir pelas
palavras». Por conseguinte, o ankh significa, ao nível do microcosmo, o homem: a
asa representa a cabeça ou o sol da sua inteligência, o princípio que o anima; a
barra, os braços levantados para o céu ou estendidos para a terra. Ao nível
macrocósmico, o ankh representa os três elementos: sol, céu e terra. Visto sob o
ângulo do talismã, a cruz alada é a materialização de todos os encantos, fazendo
apelo ao desenvolvimento da vida no homem, verdadeiro nó mágico ou secreto da
combinação específica dos elementos que formam um indivíduo e o seu destino.

O coração, cujo simbolismo já assinalámos, proporciona àquele que o traz todas


as qualidades morais expressas no seu hieróglifo.

Os símbolos que representam os amuletos e talismãs são inumeráveis. Entre os


mais importantes encontram-se o pilar de Djed (’) ou «coluna humana»; o
escaravelho ou «Khephera» (2) @o olho ou diat (”), que é a manifestação
visível da acção de Rd, também chamado «o sol na boca».

Um dos amuletos mais curiosos e menos conhecidos representa três peles de


animais ligadas a um disco solar. Este amuleto, dado às crianças quando do seu
nascimento, pode comparar-se com o hieróglifo representando os três raios
solares descendentes. O seu significado? Exprime o triplo nascimento do homem:
espírito, alma e coração. Apela também para um ritual muito curioso, «a passagem
pela pele» (4).

(’), Died, palavra comparada com udjat, que significa a «saúde». O pilar de Djed
representa a coluna, tendo no alto quatro andares correspondentes aos «andares»
cerebral, ocular, nasal, digestivo. Por cima, o disco solar ornamentado por duas
serpentes «cobras» levando cada uma coroa diferente, que podemos comparar com as
duas forças postas em jogo no kundaliiii do ioga tântríco. Cf. A. Avalon: La
Puissance du Serpente (Paris, 1973). (-) O hieróglifo do escaravelho (Kephara)
significa a «força da transformação eterna», ou «criar formas». (’) Ou o olho
disfarçado que representa os dois aspectos do Sol, à noite e de manhã. O olho é
o verbo luminoso.

C) A pele, ut, era um dos atributos do deus Anúbis; é também chamada «nascimento
do duplo».

54
REJUVENESCIMENTO E RESSURREIÇÃO

«A passagem pela pele» consistia, no início, na verdadeira passagem de uma


pessoa pela pele de um animal degolado recentemente. Este ritual era reservado
aos Faraós ou aos grandes sacerdotes. Pensava-se que isto «rejuvenescia» aquele
que o praticasse, porque a «pele» representa a matriz da mãe donde o homem sai
para renascer. O homem retoma a sua posição fetal -chamada tikenu- no despojo
onde se introduz, para sair tal como à nascença. Um papiro conta: «Deitas-te,
despertas-te, morres e vives.» É necessário ver nesta «passagem pela pele» um
dos rituais iniciáticos pelos quais se chegava a um novo nascimento.

A ideia mantém-se no ritual da «abertura da boca», no qual o sacerdote oficiante


executava para o defunto esta passagem simbólica.

Com o decorrer dos séculos, este ritual foi-se simplificando cada vez mais, até
se tornar numa simples recitação de gestos e fórmulas, e finalmente desapareceu.
Mas o Úkenu-feto figura no galhardete dos cortejos reais, e os textos asseguram
que «passamos por ela (a pele real) para irmos ao céu».

O signo das três peles atadas juntas pode ser comparado com o da pele malhada no
estandarte no alto da estaca que se cravava em frente da estátua de Osiris,
durante algumas festas. A pele do deus Anúbis permite que Osiris ressuscite.
Também o sacerdote leva uma pele sarapintada de pantera, quando realiza o ritual
fúnebre.

A TÉCNICA DA MUMIFICAÇÃO

Três ou quatro dias depois da morte, o corpo era confiado aos embalsamadores,
que, durante os setenta dias do ritual de embalsamamento, faziam dezassete
incisões, conservando apenas o «envelope» do defunto.
O embalsamamento realizava-se num quarto mobilado com uma mesa de autópsias, de
madeira ou de pedra, tendo ainda uma espécie de tina destinada a receber os
líquidos orgânicos ou as águas de lavagem.

O corpo era colocado sobre quatro cepos, postos sob os pés, os ombros, a bacia e
a cabeça. A excerebração

55
era feita introduzindo nas narinas um gancho que permitia a extracção da
substância cerebral, que escorria pelo nariz quando o cadáver era colocado de
barriga para baixo. Este gancho media cerca de 30 cm. A trepanação foi muito
pouco utilizada nesta «limpeza cerebral». Os embalsamadores introduziam pelo
funil nasal uma substância liquidificada, resina ou betume, solidificada por
arrefecimento. A evisceração era praticada utilizando facas de sílex ou
obsidiana: «Com uma pedra etíope aguçada, cortam a ilharga e fazem sair os
intestinos do abdómen», diz-nos Heródoto. Depois, introduziam na cavidade
abdominal uma espécie de cutelo bastante comprido e curvo, para extrair o
coração, o baço, o fígado, os pulmões, os intestinos, os rins e a bexiga. Por
vezes deixavam o coração e os rins. Tal como no caso do cérebro, os
embalsamadores faziam o vazamento de chumbagem, de betume ou de resina, na
cavidade torácico-abdominal. Um grande tampão de pedaços de tecido impregnados
de resina enchia a bacia e outro a cavidade ilíaca. Às vezes também faziam a
amputação do pénis e dos testículos.

Um banho de natrão permitia impregnar as partes mais moles do corpo do famoso


«líquido conservador», soda natural composta de bicarbonato, carbonato, sulfato
e cloreto de sódio, provenientes dos lagos salgados do deserto da Líbia, no
Baixo Egipto. Os globos oculares eram extirpados e as órbitas cheias com
chumbagem de resina ou, nalguns casos mais raros, com cebolas ou com bolinhas de
pano cobertas com uma placa de vidro, de metal ou de pedra desenhando o olho.
Pequenos pedaços de pano mantinham as pálpebras abertas.

O enrolamento era constituído por tiras de pano engessados, enrolados à volta do


cadáver por duas pessoas colocadas de um lado e outro do corpo, estendido num
suporte em falso. Entre as tiras inseriam-se pedaços de pano destinados a dar ao
corpo o aspecto de cheio que ele tinha antes do embalsamamento. Eram necessárias
muitas centenas de metros de tiras, com uma largura que variava entre os 4 e os
14 cm. Por fim, apertavam um lençol à volta do corpo, parando no pescoço, nos
punhos e nos calcanhares, modelando os braços e envolvendo as pernas
separadamente. Os órgãos eram guardados, em vasos egípcios. Este costume,
aparecido no fim da IV di-

56
nastia, manteve-se até à época romana (sob os Ptolomeus), altura em que apareceu
o hábito de deixar macerar os cadáveres em betume fervente. Estes vasos eram
colocados ao lado do sarcófago.

OS EFEITOS BENÉFICOS DO ALHO E DA CEBOLA

Entre as plantas mais frequentemente utilizadas pela medicina egípcia, temos em


primeiro lugar o alho e a cebola, tão considerados pelos antigos egípcios como
pelos modernos.

O alho deve o seu odor muito particular a um óleo essencial muito volátil,
constituído quase totalmente por sulfureto de alicina. Heródoto conta que uma
inscrição gravada na pirâmide de Gizé dizia que os operários que participaram na
sua construção recebiam todas as manhãs um dente de alho, por causa das suas
propriedades tonificantes e anti-sépticas. As suas virtudes são tais que um
simples dente de alho quase pode ser considerado como uma panaceia. É um anti-
séptico intestinal e pulmonar, um bacteriostático e bactericida, um tónico que
se pode comparar à quinina, um hipotensor nos casos de hipertensão, um
retardador do pulso, antiespasmódico, reequilibrante glandular, antiesclerótico,
diurético, antiartrítico; aperitivo estimulante e digestivo; é além disso um
verdadeiro vermífugo e, em certos casos, um excelente preventivo do cancro:

-um ou dois dentes de alho tomados todas as manhãs permitem conservar a saúde.
Para evitar os inconvenientes de um hálito «forte», basta mastigar em seguida
dois ou três grãos de café, ou alguns grãos de anis ou cominho, uma maçã ou um
ramo de salsa;

- as verrugas ou quistos pequenos desaparecem esfregando-os várias vezes por dia


com um pedaço de alho;

- em casos de picada de vespa, ou outros insectos, extrair o ferrão e esfregar


com um dente de alho.

A cebola era considerada como uma planta sagrada, e encontramo-la mesmo


representada nos frescos tumulares: os sacerdotes colocavam ramos delas nos
altares funerários. Entre o povo, ela substituía muitas vezes a carne.

57
A cebola é rica em açúcar, sais minerais e vitaminas. È uni excelente
estimulante do sistema nervoso, hepático e renal. É antiescorbútica, anti-
infecciosa e anti-séptica. Secretória e expectorante, utiliza-se com sucesso nas
afecções respiratórias e nas gripes (prepara-se uma maceração de quatro cebolas
picadas num litro de água e bebe-se um copo desta preparação entre as refeições
e antes de deitar durante 15 dias). Factor de saúde e de longevidade (os que a
comem regularmente morrem centenários!), é aconselhada em caso de astenia
provocada quer por esgotamento intelectual ou físico quer pelo crescimento.

Em cataplasma ou crua, a cebola cura as enxaquecas, alivia os reumatismos. Um


pequeno tampão de algodão impregnado de suco de cebola fresca e colocado no
buraco de uma cárie dentária alivia a dor.

A finíssima película que se encontra entre cada camada de cebola constitui um


excelente penso anti-séptico quando colocada sobre as feridas ou cortes, as
queimaduras, as úlceras e os panarícios, bastando segurá-la por meio de uma
ligadura.

Cortada ao meio, a cebola afasta os mosquitos.

PLANTAS E DIAGNÓSTICO DA GRAVIDEZ

Não podemos encerrar esta parte da medicina sagrada dos egípcios consagrada às
plantas sem falar do diagnóstico da gravidez, assim como do prognóstico do sexo
da criança que estava para nascer.

Os egípcios foram os primeiros a conceber a existência de hormonas sexuais na


urina das mulheres grávidas. A medicina egípcia estava tão desenvolvida neste
campo que tinha já resolvido a maior parte dos problemas que são abordados
actualmente no Ocidente. Hipócrates conhecia sem dúvida alguns desses segredos,
dos quais menciona alguns. Assim, a fórmula seguinte inspirou certamente a
célebre prescrição do teste do hidromel, que figura nos seus Aforismos: «Deixas
a mulher beber o sumo das tâmaras misturado com vinho. Se ela vomitar
imediatamente, está grávida.»

Eis outra fórmula egípcia: «Para saber se a mulher está grávida, faz-lhe
fumigações: se ela vomitar imedia-

58
tamente, não está grávida.» Hipócrates acrescenta: «Fuiniga as suas partes com
excremento de hipopótamo.»

Um outro meio de prognóstico: «Colocar sobre a vulva da mulher um bolbo de


cebola que será deixado toda a noite até o Sol nascer. Se cheirar a cebola pela
boca, a mulher está grávida.» Hipócrates volta a mencionar este processo
substituindo a cebola por um dente de alho.

Os egípcios, que conheciam a iridologia (’), utilizavam também este meio de


diagnóstico: «Deixas a tua mulher de pé no corredor, atrás da porta, que tu
abrirás para que lhe dê a luz no rosto. Examina-lhe os olhos. Se achares que um
olho se parece com o de um asiático e o outro com o de um negro, essa mulher não
está grávida.»

Curiosamente, uma outra fórmula de diagnóstico assemelha-se à que é utilizada


pela medicina energética tradicional chinesa: «Agarra os dedos da mulher na tua
mão. Estende-lhe o braço e coloca-lho ao longo do corpo. Passa a tua mão sobre
todo o braço. Se sentires as veias desaparecerem sob os teus dedos, ela terá uma
criança.» (2)

Quanto ao prognóstico precoce do sexo da criança que está para nascer, é um meio
muito simples, que chegou até nós graças ao papiro de Berlin (1350 anos antes de
J. C.): «Colocam-se grãos de trigo e de cevada em dois sacos que são regados
todos os dias com urina da mulher grávida. Se só crescer a cevada, será uma
rapariga. Se crescer apenas o trigo, será um rapaz; se não crescer nenhum deles,
não há gravidez.» (’)

Os medicamentos destinados a facilitar a expulsão da criança quando do parto são


bastante numerosos e baseiam-se muitas vezes nas plantas (). Parece também que a
maior parte das mulheres davam à luz de cócoras.

Ver mais adiante o cap. A Medicina dos Gnósticos». A tomada do pulso em


acupunctura permite também estabelecer este diagnóstico. (3) Cf. o alemão W.
Hoffinann, citado pelo Dr. Riard (cf. op. Cit.). (’) Eis alguns extraídos do
papiro de Ebers: Esmagar os fragmentos de um heron com azeite, aquecer e depois
injectar na vagina. Friccionar o ventre com uma mistura de azeite e resina de
terebentina.

59
São igualmente numerosos os prognósticos acerca das possibilidades de vida do
recém-nascido (1). A saúde das crianças é muito vigiada, e a mulher que os
amamenta deve tomar os mesmos remédios da criança, sobretudo no que respeita à
incontinência ou à retenção da urina.

(’) Eis alguns desses prognósticos, sempre mencionados pelo papiro de Ebers. «Se
ele diz ny, viverá. Se diz embi, morrerá. Se a voz for como um queixume ou
baixar o rosto, morrerá.»

60
CAPITULO III

A MEDICINA DOS RITOS AGRÁRIOS

A Bulgária, terra que cante e pátria de Orfeu, o pai da nossa moderna ecologia.

Quando abordámos o fenómeno do xamanismo, falámos de uma medicina pré-histórica


ou, pelo menos, de sociedades tribais ainda no estado de caçadores-colectores. O
mundo do sagrado estava nesse tempo povoado de espíritos que só o xamã tinha
autoridade para dominar, a fim de libertar o doente da sua doença. Depois vem o
advento da proto-história, que vê nascer a agricultura e a criação de gado, ao
mesmo tempo que a eclosão da cidade. Os homens deixam de ser nómadas. Constroem
as suas casas. O culto dos antepassados e dos espíritos continua, mas, pouco a
pouco, os primeiros agricultores-criadores tomam consciência de outras forças,
das quais depende a abundância das colheitas.

O Sol é o rei das estações. Na proto-história do Ocidente, organiza-se o culto


solar. O pensamento místico dá às suas forças cósmicas nomes e rostos: Júpiter,
Apolo, Dioniso. E alguns heróis civilizadores, entre os quais Orfeu, começam a
indicar aos homens como é que eles podem aprender o domínio dessas forças,
desses elementos desencadeados pelos deuses.

Deste modo, não é por acaso que encontramos na sua história, nas suas lendas,
aspectos do xamanismo.

Na prática da iniciação xamanística, o corpo é retalhado, tal como Orfeu é


rasgado pelas bacantes da Trácia, e a descida de Orfeu aos Infernos lembra-nos
de certo modo a viagem extática do xamã quando desce às regiões infernais. Mas o
papel de Orfeu vai mais longe:

61
conhecendo todos os segredos da Natureza, pode subjugar as leis aos simples
acordes da sua lira, às harmonias do seu canto.

APOLO, DIONISO, ORFEU

Os Gregos antigos veneravam, entre outras, duas divindades: Apolo e Dioniso. E


as coisas poderiam ter continuado assim se Plutarco não nos tivesse contado que
as honras do culto que lhes rendiam em Delfos eram divididas em duas partes
desiguais do ano, sendo os três meses de Inverno consagrados a Dioniso. Estas
duas divindades são solares e, longe de se antagonizarem, iremos ver que se
completam: tratava-se, finalmente, do mesmo culto rendido a dois «rostos», dois
períodos de sol, duas grandes épocas da energia que rege «as coisas da vida»
sobre o planeta e que têm uma certa analogia com o que os taoístas chamam Yin e
Yang, se bem que entre os Gregos a sua mania de classificação os levasse a um
sistema muito rígido que se perpetuou na nossa civilização.

Muito esquematicamente, poderíamos dizer que, para os Gregos, há os que estão


fora e os que estão dentro. Os que estão fora? Os homens, as forças não
subjugadas: os bárbaros, a natureza desencadeada. Os que estão dentro? Os das
cidades: a ordem e as leis.

Não é sem motivo que a grande etnóloga americana Ruth Benedict segue a distinção
nietzschiana, classificando certas populações etnológicas como «apolíneas» e
«dionisíacas». E é interessante constatar que esta tipologia das sociedades
corresponde, pouco mais ou menos, à que foi estabelecida pelo Dr. Léon Vannier,
cé lebre homeopata do começo do século, que classificou os grandes tipos humanos
segundo as divindades antigas que também governavam os planetas do nosso
sistema().

O tipo apolíneo: gosta da ordem e da sobriedade. Foge do excesso, dá às


necessidades corporais apenas o suficiente para viver. «Quanto mais simples é a
sua vida

(’) Cf. Vannier (Dr. L.) La Typologie et ses Applicatiwis Thérapetitiques. Les
tempérainents: Prototypes et Métatypes (Paris, Doin, 1955).

62
privada, tanto mais se rodeia de luxo e sumptuosidade sempre que tem de.
aparecer em cerimónias [ ... ]. Os apolíneos são também sujeitos a
estranhas mudanças de fortuna, e a sua espantosa ascensão é muitas vezes seguida
de uma queda extraordinária e retumbante.»

O tipo dionisíaco: é, pelo contrário, o tipo exacto do extrovertido: «Nascido de


uma paixão e saído da coxa de Júpiter, como nos diz o dr. Léon. Vannier,
Dioniso, criança, não duvida de nada, nem de si mesmo nem da sua força.» Jovial,
audacioso, empreendedor, é o rei do presente que se adapta aos acontecimentos, e
a sua força é flexível, como a da vinha sobre os rochedos. Aberto, inventivo,
brilhante, é também desordenado: exactamente o contrário do apolíneo.

Orfeu é o tipo do mediador. Não entra em nenhuma tipologia, mas preside às


artes, quer dizer, ao conhecimento dos segredos da harmonia universal. Segundo
algumas opiniões, foi sacerdote de Apolo; segundo outras, um seguidor de Dioniso
que soube tornar o seu culto menos selvagem, menos sangrento.

Falámos de cultos órficos. Seria talvez preferível falar de certas escolas


iniciáticas: Orfeu aparece-nos então como o mediador entre os homens e os
deuses, o herói cujos ensinamentos permitem aos homens compreender a passagem de
um tempo para o outro, de uma energia para a outra.

Poderiam as sete cordas da lira de Orfeu confiar-nos o domínio das energias da


matéria e do tempo? «Os perfumes, os sons e as cores dão-nos a resposta»,
escreve Baudelaire. E se fosse verdade?

NA BULGáRIA, O REGRESSO AS ORIGENS

A planície da Trácia e os seus montes Rhodope vibram ainda com os cantos de


Orfeu: os cantos populares búlgaros contam-nos como o filho do rei da Trácia,
Xoeagre, desceu aos infernos para se reencontrar com a esposa, e como a perdeu
por se ter virado para trás. O mito de Orfeu parece ter marcado profundamente o
inconsciente dos Búlgaros modernos, que riem às gargalhadas quando lhes falam de
psicanálise, e cuja filosofia se poderia resumir em breves palavras: «Ê inútil
regressar

63
ao passado... O que é preciso é viver com o presente. » E a saúde dos Búlgaros
tornou-se proverbial: deveríamos dizer «sensato e são como um búlgaro!».

A Bulgária é um dos principais países que, juntamente com a URSS, se interessam


de muito perto pelo estudo da medicina popular. Neste país, que é o primeiro
exportador do mundo de plantas medicinais, equipas de investigadores têm-se
dedicado ao estudo sistemático dessas mesmas plantas. Devemos-lhes a nivalina
(’), medicamento que permite o tratamento das sequelas da poliomielite e de
outras doenças idênticas e que foi descoberto a partir de uma flor primaveril
conhecida da medicina popular por curar as «doenças paralisantes».

Mas não é tudo. A Bulgária, pátria de Orfeu, honra-se de possuir um dos


laboratórios mais dinâmicos de investigação de parapsicologia. Depois de uma
longa pesquisa (’) nesse domínio, atrás da «cortina de ferro», dois jornalistas
americanos, Sheila Ostrander e Lynn Schroeder, puderam afirmar: «Para os
habitantes da Bulgária, os dons psíquicos são uma coisa “natural”, e eles falam
nisso com uma facilidade e uma espontaneidade maior que em qualquer outra parte
do mundo.»

Infelizmente não encontrámos o Dr. Lozanov na Bulgária, mas os Búlgaros, que nos
surpreenderam devido à s faculdades psíquicas que possuem, deram-nos a mesma
resposta do Dr. Lozanov a esses jornalistas americanos: «A Bulgária é a pátria
de Orfeu, um velho país [ ... 1. Haveis notado esta harmonia que aqui
existe entre o homem e a natureza?»

Criado sob o impulso do Dr. Gueorgui Lozanov, médico físico e psicoterapeuta,


este laboratório está organizado em 3 secções: Instituto de Parapsicologia,
Laboratório de Investigação da sua fisiologia ou Secção de investigação da
estimulação «sub-sensorial», e, finalmente, Instituto de Sugestiologia. Esses
laboratórios

(’) A nivalina, cuja venda é proibida em França, é preparada pelos laboratórios


Farmackim, na Bulgária. Pelas suas propriedades farmacológicas, a nivalina
pertence ao grupo das preparações anticolinesterásicas. Facilita a transmissão
dos impulsos nervosos nas sinapses dos gânglios vegetativos. (@) Cf. Ostrander
(S.) e Schroeder (L.),, Psychic Discoveries Behind the Iron Curtain (Londres,
Prentice Hall International,
1970).

64
utilizam um material ultramoderno e muito sofisticado: máquinas EEG (”),
gravadores de vinte pistas, vídeos, instrumentos de electrocardiografia,
osciloscópios, equipamentos fotográficos especiais com estimuladores fóticos,
peças guardadas em gaiolas de Faraday, etc. Trabalham nele trinta sábios:
médicos-físicos, engenheiros-físicos, pedagogos, psicólogos.

O Instituto é rodeado por um jardim cheio de rosas. Aí, tudo é agradável, calmo.
É um centro de descoberta do ser humano na sua totalidade. Os investigadores que
aí trabalham, como outros investigadores dos países do Leste, pensam que os
acontecimentos paranormais obedecem muito provavelmente a leis específicas que
devem ser descobertas pelo materialismo científico:

-Por que razão os videntes têm uns dias mais propícios que outros à precognição?
-Intervêm factores médicos? -Existirão campos biológicos à volta dos seus corpos
que afectarão a precognição. -O seu cérebro funcionará de maneira diferente do
dos outros? -Qual é o perfil psicológico do vidente?, etc.

O estudo dos fenómenos da parapsicologia começou com o estudo dos dons de uma
das videntes mais célebres do mundo, Vanga Dimitrova (cegou aos vinte anos),
cujas precognições demonstraram ser 80 por cento certas - graças ao importante
ficheiro do Instituto, que permite estabelecer as estatísticas e, bem entendido,
proceder a verificações. Vanga Dimitrova é, como qualquer outro trabalhador,
funcionária pública, e credenciais para a consulta são passadas pela
administração da aldeia de Rhodope, onde ela vive.

UM INSTITUTO DE SUGESTIOLOGIA

O Dr. Gueorgui Lozanov elaborou um sistema terapêutico que pretende tratar a


doença pelo poder do espírito.

C) Este equipamento EEG te medir as ondas emitidas pelo cérebro sem


utilizar eléct=si ligados ao couro cabeludo.

65
«O medo cria tensões e envenena a vida. A vida deveria ser uma corrente
incessante de felicidade. Mas é impossível ser feliz quando se está
fanaticamente amarrado a coisas que mais tarde ou mais cedo se perderão»,
declarou ele aos jornalistas americanos. É esta a grande lição que devemos tirar
do mito de Orfeu. Mas como? Os jornalistas descrevem-nos uma sessão dirigida
pelo Dr. Lozanov:

«No sanatório de Bankya, a sessão começou pelas explicações dadas pelo Dr.
Lozanov sobre a possibilidade que o espírito tem de ajudar o corpo a curar-se.
Em seguida, a sua voz melodiosa e calma dirigiu-se aos pacientes relaxados, mas
totalmente acordados e conscientes: “Relaxem-se profundamente, profundamente...
Nada os preocupa. O vosso corpo está totalmente relaxado. Todos os vossos
músculos estão em repouso. A partir de agora podeis superar todas as
dificuldades.” Depois de 20 minutos de sugestão de relaxamento, Lozanov
concluiu: “Senti-vos perfeitamente bem. Dormis bem. Tendes bom apetite.” E, para
terminar, um cantor começou a recitação melódica de um poema conhecido. “É muito
importante fixar a atenção num fim elevado para se manter uma perspectiva
criativa”, diz Lozanov.»

Segundo Lozanov, o espírito pode até anestesiar o corpo, reduzir a hemorragia,


acelerar a cicatrização e reduzir o perigo da infecção. A primeira operação
importante em que foi aplicado o método do Dr. Lozanov, ou «anestesia mental»,
realizou-se no dia 24 de Agosto de
1965 em Bykovo (’).

Tratava-se de uma hérnia ingual, cuja operação durou


50 minutos, sendo integralmente filmada. Este filme foi apresentado num
congresso internacional de medicina em Roma, em Setembro de 1967.

A sugestiologia tem também aplicação no domínio da pedagogia. Ela deverá


permitir ultrapassar ou, melhor, mentalizar os mecanismos de defesa do cérebro,
que geralmente o tornam 90 % inutilizável. Foi assim que o Dr. Lozanov
aperfeiçoou um método que acelera 50

(’) Cf. Lozanov (Dr.): «Un cas inhabituel dans Ia pratique médical», in Sofia
Prai,da de 27 de Agosto de 1965 (em búlgaro).

66
vezes a aprendizagem e permite, por exemplo, o ensino de uma língua estrangeira
(normalmente repartido por dois anos) em apenas 20 dias. Este ensino é
administrado no Instituto, em salas mobiladas com cadeiras de relaxe, a grupos
de doze pessoas, mais ou menos. A luz é velada. Os estudantes escutam primeiro
uma música suave, relaxante, depois ouvem a voz do professor: umas vezes suave,
também ela, outras vezes imperiosa, brutal, inesperada. A voz canta, ordena. No
final de uma sessão de duas horas, 150 novas palavras, mais ou menos, são
assimiladas. Os alunos não devem pensar em nada. Eles absorvem estas «lições»
como se ouvissem encantamentos, palavras prosodiadas, articuladas num ambiente
musical...

Mas a Bulgária é a Bulgária. Quer dizer, a pátria de Orfeu e Dioniso. Os


Búlgaros não cortaram as raízes que lhes permitem viver em harmonia com a
Natureza. As estatísticas parecem provar que as afecções psiquiátricas são aí
menos frequentes que em muitos outros países, tanto do Ocidente como do Leste. É
um país onde se tem o sentido das festas. Das estações. Da Natureza e da Vida. E
nos outros lados?

AS FESTAS DE DIONISO-BACO

Por todo o lado e na maior parte do Planeta nós perdemos em festas o que
ganhámos em nevroses.

Dioniso é o deus da festa, o deus do festim. Todos os anos, diz-nos um hino


órfico, «pelo Inverno, nas alturas do Parnaso, os coros das tíades délficas e
áticas ouviam-se de uma maneira pouco usual para convidarem Dioniso a subir e
aparecer entre elas, a fim de as conduzir em delírio ao cume da montanha. Elas
acordavam-no sob o epíteto de Unites, a criança no berço» (’).

Encontramos aqui uma reminiscência do xamanismo: Dioniso surgiu do mundo


subterrâneo, do domínio dos

(’) Cf. Guthrie (W. K. C.),: Orphée et Ia Réligion Grecque (Paris, Payot, 1956);
Na sua obra Le Carnaval (Paris, Payot, 1974), CI. Gaignebet cita uma série de
ritos curiosos que apareceram durante este período do ano, sobretudo o do
«pequeno leito de Jesus».

67
Infernos. Uma nota de H. Jeanmaire vem muito a propósito: «Uma constante, se
assim se pode chamar, do sistema religioso das antigas populações europeias é
que as festas dos mortos, muitas vezes compreendidas como a reaparição da alma
dos defuntos, se realizavam no começo do período invernal ou no seu término.» E
acrescenta: «Ê dos mortos que nos vem o alimento é uma fórmula que foi
conservada por uma obra atribuída a Hipócrates.» (’)

Como o xamã primitivo, Dioniso-Baco está também mascarado. Mas o êxtase já não é
domínio reservado a uma só pessoa: à volta de Dioniso-Baco organiza-se o cortejo
que conduz os homens eas máscaras da cidade-Vila aos campos. Tivemos a sorte de
presenciar a recordação viva dessas festas na Bulgária, na Stara Planina. No
cortejo, aqui e ali no decurso da festa, vimos paus fálicos brandidos por
rapazes jovens, enquanto diziam pausadamente: «o meu é mais grosso, maior, mais
forte», etc., rindo às gargalhadas. Na Antiguidade, a procissão aldeã levava
para o campo um falo mágico, destinado a aumentar a fertilidade das terras
cultivadas e a fecundidade dos casais. Via-se aí a ânfora de vinho, a cesta dos
figos, a hera e os tirsos, um bode, sacrificado nos tempos mais remotos e
substituído mais tarde, parece, por bolachas ou papas de farinha.

Vimos na Bulgária os odres cheios ‘de vinho serem despejados no regabofe, os


limões substituindo os figos, as coroas de hera e os tirsos. E o pêlo fétido do
bode transformado em calções pelos pastores mascarados, à cintura dos quais
tilintavam as campainhas dos seus rebanhos, ao ritmo das danças hieráticas.

Walter F. Otto explica-nos muito claramente que «não são todos os seres sobre-
humanos que se apresentam na mascarada, mas apenas os seres naturais, os que
pertencem à Terra. Era em sua honra que os mascarados executavam as múltiplas e
variadas danças» (’).

(’) Cf. Jearimaire (H.): Dionysos, Histoire du Culte de Bacchtis (Paris, Payot,
1970). (2) Otto ^ F.): Dion.vsos, le Mythe et le Culte (Paris, Merctire de
France, 1969).

68
O papel de Orfeu foi muitas vezes associado ao do celezistes, o cantor que
ritmava o movimento dos remadores. Na realidade, era bastante mais «cósmico».

Orfeu acalma os homens, os animais e até mesmo os leões, e também os elementos,


com o encanto atractivo do seu canto e a música da sua lira. Quando Argo, a nau
dos Argonautas, resiste aos esforços da tripulação para a pôr a flutuar, Orfeu
agarra na lira: desde os primeiros acordes, a nau, movendo-se sozinha, desliza
para o mar. Mais tarde é ele quem invoca os Dioscuros, deuses dos marinheiros,
para salvar a tripulação da tempestade. Mais tarde ainda, Orfeu recomenda aos
heróis, quando da sua passagem pelo lago Tritão, que ofereçam ao deus local o
tripé de Apolo para que ele os proteja no regresso. Quando Jasão consagra a nau
a Corinto, é Orfeu quem compõe o hino sagrado. Orfeu, o músico, é também o guia
«religioso» da expedição; aliás os seus cantos relatam a origem do mundo e de
todas as coisas, e de todos os deuses.

DUAS INTERPRETAÇõES DO MITO ÓRFICO

O mito de Orfeu agrada aos poetas. Interessa também ao médico. A sua


interpretação esotérica interessa em primeiro lugar ao astrólogo, mas este pode
permitir ao médico que complete uma interpretação mais esotérica da harmonia da
saúde dos seres.

Como David tocando a lira perante as filhas de Jerusalém, Orfeu aparece de


joelhos, fazendo surgir das sete cordas da sua lira a musicalidade da esfera
celeste. Olhemos o céu: quando a constelação da lira aparece no horizonte, é na
altura da desaparição do Sol, sob a eclíptica, ou seja de 21 de Setembro a 21 de
Março. A época em que Orfeu e a sua lira desaparecem nos Infernos é também a de
Dioniso-Baco. É o tempo dos milagres difíceis: a tradição popular não reconhece
senão os de S. Nicolau (patrono dos navegadores para os povos balcânicos» aquele
que ressuscitou as crianças da salgadeira, e os de 17 de Janeiro, data que
corresponde mais ou menos no calendário ortodoxo antigo a S. Atanásio, cujo
significado em grego vem do verbo «renascer».

69
O tempo da constelação da lira será o da procissão de Elêusis quando gritavam:
«Iacol» Não, laco não é na realidade o nome sagrado de Baco-Dioniso, como o
afirmam certos dicionários. Este nome de Iaco corresponde, dizem, ao de S.
Tiago, que monta num cavalo branco como Pégaso e que corresponde à constelação
do Cocheiro. Ele indica a direcção oeste, a mesma que os alquimistas utilizarão
mais tarde para Santiago de Compostela, a fim de descobrirem o segredo de uma
determinada luz C).

Orfeu. será o nome secreto que deram a Hórus os iniciados que participavam na
procissão de Elêusis, aqueles que conheciam os «verdadeiros mistérios»,
cuidadosamente escondidos dos Gregos. Hórus, filho de fris e Osiris, simboliza
também a luz transcendental, metafísica, que emana do Sol em determinados
momentos do ano, por vezes chamada «raio verde» (’). Seria esta irradiação que
favoreceria, dizem, a maleabilidade dos metais. E por conseguinte a sua
transformação.

Mas que nos diz a interpretação esotérica e profana do rito órfico? Que a música
pode curar a alma e o corpo.

AS VIRTUDES DA MúSICA

Uma terapêutica muito simples à primeira vista! Mas a nossa percepção, a nossa
maneira de sentir o mundo e as forças que nos rodeiam, devem ser bem diferentes
das dos primeiros tempos. O xamã dos caçadores-colectores também cantava.
Cantava as suas viagens e descobria «o espírito ou o demónio» autor da doença.
Deste modo, tranquilizava igualmente quer a assistência quer o doente, o que,
como todos sabem graças aos nossos actuais psicólogos, é de uma importância
primordial para o moral e a cura do doente.

A lira tem sete cordas. Sete, número mágico em quase todas as civilizações. Sete
cordas, sete notas, tal como actualmente: dó-ré-mi-fá-sól-lá-si.

(’) Cf. Guinguand: Le Berceau des Cathédrales (Paris) e o capítulo «A Medicina


Alquímica».

Ver o capítulo «A Medicina das Pirâmides».

70
Ninguém nega os poderes afectivos da música. Apesar da expansão do disco, nós
perdemos talvez a capacidade de agarrar a relação «catártica» que pode unir o
executante ao seu auditório. Porque o homem é ao mesmo tempo activo e passivo,
emissor e receptor, e é importante manter um equilíbrio entre estes dois
estados.

Música e comunicação

É interessante constatar que as hierarquias musicais seguem o mesmo


desenvolvimento das hierarquias da linguagem e, portanto, da comunicação.

Uma boa aprendizagem - ou uma boa reeducação -


mantém o equilíbrio entre as fases activas e as fases passivas: as fases em que
exprimimos e aquelas em que recebemos. No princípio, há a aparição de um recém-
nascido. A criança não sabe ainda como utilizar a sua laringe e os órgãos anexos
da voz. Depois dos primeiros gritos, aqueles que lhe permitem, como tão bem o
diz a expressão popular, «formar os seus pulmões», a criança descobre a
onomatopéia, ao mesmo tempo que um novo jogo. Ela modula: «are-bu-bu... a-a-ma-
are-ba-ba... ». Em breve passa à articulação dos fonemas, que se vão
enriquecendo, até às primeiras palavras: «pa-pá... ma-mã. ó-ó... dói-dói ... ».

Depois, chega à descoberta da linguagem organizada, a linguagem falada dos que o


rodeiam: francês, inglês, espanhol, etc., que corresponde a uma organização
gramatical, e portanto intelectual, cultural.

A criança, podemos dizer, descobre a salmodia e inventa recitativos: «eu quero,


eu quero, eu quero... eu não quero, eu não quero, eu não quero... bebé não dói-
dói, bebé não dói-dói ... », etc.

Quando a criança começa a socializar-se, a exprimir-se no seio de uma comunidade


de crianças, vem a aprendizagem de canções infantis, verdadeiras mensageiras de
cultura popular que encontram a sua correspondência imediata no domínio do
folclore no plano musical.

A criança deixa o jardim de infância e, a partir daí, não mais deve contentar-se
com repetir mais ou menos bem os sons e as palavras, introduzindo neles
variantes

71
pessoais. Aprende a apreender, a compreender, a memorizar: aprende para penetrar
no domínio de um certo equilíbrio, o do seu corpo e o da sua afectividade, que
alguns chamam «disciplina». Esta etapa corresponde à aprendizagem da canção e da
melodia. A criança termina então os seus estudos primários. Vem então o tempo da
adolescência, aquele que, ao nível da escolarização, corresponde à descoberta de
duas novas funções veiculadas pela linguagem: abstracção e intuição, estudo das
matemáticas e da arte literária. Esta descoberta da linguagem simbólica é também
a da linguagem mística, que encontra a sua correspondência, no plano musical,
nas óperas ou nos dramas líricos, quer dizer, nessas obras em que a narrativa e
a música se juntam para equilibrar o fundo e a forma. Citaremos por exemplo o
Don Juan, de Mozart, que Kierkegaard. louva como obra-prima, o triunfo máximo do
género musical.

Finalmente, vem a maturidade, ou esta última etapa no decurso da qual o homem já


não hesita entre o «ou... ou ... », mas encontra um equilíbrio entre todas as
possibilidades reagrupadas não apenas socialmente, mas também no plano íntimo,
essa etapa em que o homem vive em harmonia consigo mesmo, com o que o rodeia,
com a ideia da vida e da morte, com o Cosmos...

Nessa altura, mesmo que seja um ateu convicto, a sua harmonia e a sua paz
profunda traduzem-se, no plano musical, nas grandes liturgias sagradas.

É curioso constatar que a cultura e o gosto da música param, na maior parte dos
nossos contemporâneos, no que corresponde ao período da pré -adolescência, ou
seja ao nível da aprendizagem, a do equilíbrio (segundo uns) ou da disciplina
(segundo outros) do corpo e da afectividade. É talvez doloroso constatar também
que o período que corresponde à socialização, o das canções populares
mensageiras do folclore musical, é bem curta e rapidamente apagado pela
«disciplina».

A REPúBLICA DOS SONS

Platão, que dizem ter sido iniciado nos mistérios órficos, a que faz referência
no Cármides, desenvolveu na República uma transposição dos diferentes níveis do
corpo humano para o plano social. A estes níveis corres-

72
pondem diferentes funções tanto no indivíduo como na colectividade, e essas
«distribuições» correspondem aliás aos mundos que «organizam» o universo,
segundo a cabala.

Parece-nos interessante mencionar aqui que os ocidentais distinguem, entre o


tronco e a bacia, uma zona intermediária que corresponde aproximadamente ao
«ventre», ou hara em japonês, e que designa uma zona de equilíbrio sobre o qual
se apoiam os técnicos da respiração: zen, ioga, artes marciais, etc.

Um amigo nosso, antigo trapista que continuou um grande apreciador dos cantos
gregorianos, afirmou-nos que estes agem ao nível do ventre, talvez mesmo do
hara, ou seja, esta zona de equilíbrio entre «os do Planteta» e o Cosmos. Deste
modo, acrescenta ele, os cantos gregorianos podem servir de suporte para
transcender o desejo de comunicação entre aqueles que fazem voto de celibato.
Tratar-se-ia, de qualquer modo, de uma desordem energética que justificaria os
cantos sagrados.

Quadro de correspondências
(para um melhor entendimento, este quadro foi aqui colocado de forma directa e
não em gráfico)
Planetas, Cores, Sons, Números, Planos humanos, Perfumes;

Sol: Amarelo, Mi, 1, Alma do corpo espiritual, Heliotrópio, limão;


Marte: Encarnado, Ré, 1,5,7, Vida do corpo espiritual, Alho, pimenta, menta;
Vénus: Verde, Fá, 3,6,7, Matéria do físico,
*/* continuar o quadro

Rosa, lírio, jacinto

Júpiter

Roxo

Matéria do corpo espiritual

Benjoim

Saturno

Negro, Castanho

si
9

Vida do corpo astral

Papoila, feto

Lua

Branco

2,9

Alma do corpo físico

Cânfora, sândalo

Mercúrio

Irisado

Sol

ida do corpo físico 1

Madressilva, genebra, acácia I-

73
corpo

Função no indivíduo

Função colectiva

Os quatro mundos da Cabala

Cabeça

Consciência

Sacerdotes, sábios

Emanação

Tronco, coração

Comunicação com o Cosmos (pela respiração)

Nobreza ou administração ou «os protectores»

Criação

Bacia, intestinos, rins, aparelho genital

Transformação, reprodução

Artesãos ou «homens da fecundidade» (para os Celtas)

Formação

Membros

Equlíbrio, movimento, ritmo

Jograis e viajantes

Acção/tempo

Partindo deste exemplo, podemos aperceber-nos de que alguns sons agem sobre
diferentes zonas do corpo, tal como certos sons desencadeiam reacções emotivas
bem localizadas: a cólera recalcada (indignação) ao nível do plexo (ou
diafragma); a alegria, a felicidade intensa’
ou o medo, ao nível do coração.

Deste modo, o mundo da música e os sons poderiam servir de terapêutica. Antes de


chegar a esta zona de equilíbrio do «ventre», do hara, os obstáculos criados aos
pobres corpos esgotados pelas tensões múltiplas devem ser suplantados.
Progressivamente: é isso que a jovem musicoterapia tenta conseguir.

A MUSICOTERAPIA

Como é que ela nasceu, na nossa época, em França? Em 1954, M. Jost, engenheiro
electroacústico, que trabalha no Centro de Pesquisas da ORTF (’) e que, além
disso, era músico (violão, piano, órgão), fez a seguinte pergunta aos que o
rodeavam: «Por que razão os psiquia-

(’) Radiotelevisão francesa.

74
tras não utilizam o poder da música?» Resposta: «Não temos provas ... »

Não bastava, quanto a ele, acumular provas sobre o que ele tinha podido
verificar, como tantos outros amadores de música. Mandou fazer registos
poligráficos: electroencefalogramas, electrocardiogramas, ritmos respiratórios,
reflexos psicogalvânicos, etc...

Graças a esses registos, ainda que não conhecêssemos a natureza desta emoção
musical, saberíamos mesmo assim que ela existe, objectivamente. Realizou-se uma
primeira experiência num hospital parisiense, no ano de
1954-1955. Logo à partida, foi decidida uma pesquisa sistemática pelo período de
um ano. Aperceberam-se então de que era necessário, em primeiro lugar, associar
as obras musicais, seguindo uma ordem bem determinada:

75
1) Não dar, para começar, uma obra alegre se o doente está triste, e, por
conseguinte, manter a pessoa ao seu nível com a ajuda de uma obra que reflicta o
seu estado de alma.

Quando a música é bem escolhida, em ressonância com o estado psíquico, afectivo,


do doente, pode-se então falar de comunhão e mesmo de simbiose fundamental. Na
verdade, por vezes, podem-se desencadear reacções muito violentas da parte do
doente. Devem tomar-se precauções para evitar que isso não chegue a um
verdadeiro estado catártico nas pessoas particularmente sensíveis.

2) Dá-se, em segunda audição, uma obra musical tranquilizante, muito harmoniosa.


É a fase da «neutralização».

3) Quando se consegue a descontracção, uma terceira obra musical vai completar a


acção terapêutica procurada, estimulante ou calmante, com todas as gradações
possíveis.

O programa muda em cada nova sessão, para permitir uma tomada de consciência do
sujeito para um novo estado que vá no sentido terapêutico procurado: em geral,
uma abertura para a vida, um viver melhor.

Exemplo de um programa musical para estado depressivo

1.1 -Extracto do Concerto n., 2 para piano de Rachmaninov, 1o andamento;

2.1 - Neutralização pela Aria da Suite n., 3 de João Sebastião Bach;

3.'-Pequeno extracto da primeira parte do Concerto n., 1 de Tchaikowski.

Não se trata, bem entendido, de uma panaceia musical, mas esse programa actua
fortemente sobre pessoas dos 20 aos 30 anos, ]@ necessário insistir no facto de
que toda a receita é perigosa e de que é necessário ter em conta factores
extremamente subtis.

As sessões realizam-se ao ritmo de uma ou duas por semana. Cada uma tem a
duração de uma hora no total, dividida em 20 minutos de audição precedidos de
uma conversa.

76
Os ensaios foram, até ao momento, muito frutuosos nas depressões. Entrou-se
agora numa nova fase de pesquisas: dois hospitais, graças aos seus médicos,
abrem as portas da musicoterapia a pessoas mais seriamente atingidas: psicoses,
em particular a esquizofrenia.

A musicoterapia, tal como foi concebida por M. Jost e pela equipa de médicos que
participam nas investigações, permaneceu durante muitos anos na sombra.

O REGRESSO DE ORFEU

Depois de muitos anos de pesquisas, com todas as Certezas confirmadas, fez-se em


1967 uma comunicação na Faculdade de Medicina de Paris, por ocasião de um
Congresso Internacional de Psicopatologia da Expressão. Depois, o professor
Sibanon encorajou a continuação dessas pesquisas, assim como a criação de uma
Associação e de um Centro, que abre em 1968. No comité médico da Associação de
Pesquisas e Aplicação de Técnicas Psicomusicais, encontramos neuropsiquiatras,
médicos de clínica geral, estomatólogos. No comité musical, Yehudi Menuhin e
outros músicos.

A associação é composta por 3 sectores:

1 - Uma secção de musicoterapia: utilização da música e dos sons no quadro de


uma relação psicoterapêutica;
2 -Uma secção de educação, reeducação e música:
aplicações psicoprofilácticas e reeducativas da música;
3-Uma secção de relaxe psicomusical: aplicações
da música ao relaxamento e analgesia.

Os Centros agrupam um certo número de actividades:


- Actividades de formação: seminários, grupos hebdomadários, formação das
técnicas psicomusicais;
- Aplicações terapêuticas: sessões individuais e sessões de grupo para adultos e
crianças;
- Grupos de pesquisas, com a produção de um certo
número de documentos.

77
Este centro (’) é actualmente o único centro de pesquisa em França, juntamente
com quatro hospitais psiquiátricos equipados com uma sala de musicoterapia, um
em Limoux e os outros em Montpellier e em Paris, em Boissière, no centro da
MGEN.

O 1 Congresso Internacional de Musicoterapia foi organizado por esta associação


nos dias 1, 2 e 3 de Novembro de 1974, no Centro Hospitalar Universitário do
Hospital da Pitié-Salpêtrière, em Paris, reunindo pesquisas de uma vintena de
países.

O CARNAVAL OU A LOUCURA DO SEXO

Todos os sociólogos estão de acordo em reconhecer às festas colectivas,


sobretudo ao Carnaval, vindo directamente dos antigos ritos agrários de
fecundidade da terra (e dos humanos), uma função reguladora das tensões
psíquicas. Desde Freud que as relações que existem entre a sexualidade e as
diferentes tensões tanto sociais como individuais já não precisam de ser
demonstradas.

«O jogo é criativo», disse Jean Piaget. Um outro psicólogo, Bruno Bettelhem,


demonstrou pelos sucessos da sua terapêutica aplicada às crianças que, graças ao
jogo livre, a criança nervosa trata-se descobrindo que «a pessoa importante,
aqui, és tu». É exactamente o que acontece no jogo do Carnaval, onde o
importante, durante esse curto período, é o homem (ou a mulher), o que ele tem
para exprimir e o que permanece oculto durante todo o resto do ano pela censura
dos usos e costumes, das regras que coordenam as relações entre os diferentes
membros do grupo social.

A época do Carnaval é uma época de excessos, os de Baco-Dioniso, em que todos os


«saturados» se podem exprimir livremente, protegidos pelo anonimato da máscara e
a aceitação colectiva dum tempo de libertinagem, de permissões, em que todos os
méritos são invertidos, em que todos os rancores, todos os conflitos, vêm à su-

(’) A Association de recherches et d'applications des techniques psycomusicales


(ARATP), 14, rue des Frères-Morane, 75015 Paris, tel. 5332707, fornece, a
pedido, todas as informações.

78
perfície. Nalgumas regiões da Bulgária, podemos ainda assistir a essas festas,
em que os mascarados, armados de ramos, podem, salvando as aparências,
«chicotear» e dizer «obscenidades» aos que não respeitam a harmonia colectiva.

O tempo do Carnaval é tradicionalmente o da liberdade sexual. E quantos tímidos


e jovens aldeões puderam aproveitá-lo para se lançarem nos seus primeiros
avanços!

No Carnaval, a música desempenha um importante papel: canções obscenas ou


báquicas, instrumentos populares, tais como o violão, pífaros, tambores,
tamborins e matracas, e também outros instrumentos que encontram por um certo
tempo novas funções: os chocalhos dos rebanhos soando ruidosamente, à cintura
dos pastores. Através da música, o homem encontra-se em ressonância directa com
a Natureza.

Pelo nosso lado, nós perguntamo-nos se o aumento de frigidez numa determinada


população não está directamente ligado com a desaparição dessas ocasiões em que
o sexo se tornava loucura!

Um sexólogo francês, Gilbert Tordjman, apercebeu-se do papel que a música tem no


tratamento da frigidez feminina. Numa comunicação ao Congresso Internacional de
Sexologia Médica, em Paris, em 1974, Gilbert Tordiman demonstrou que «a frigidez
provoca quase sempre uma reacção de ansiedade nevrótica, mantida, ainda por
cima, num círculo vicioso fatal, pela expectativa do fracasso». Investigando os
processos que poderiam suprimir essas reacções angustiosas, Gilbert Tordiman
«recorreu a uma injunção verbal de relaxamento, de tranquilidade e de euforia».
Mas convém, precisa ele, associar a este relaxamento um método de
descondicionamento no plano psíquico.

Podemos dizer desta terapêutica que ela é uma reeducação sensorial e erótica, ao
mesmo tempo que é uma terapêutica de comunicação.

Este médico observou que «a experiência clínica demonstra que a expressão do


ressentimento e dos rancores acumulados liberta a ansiedade».

O médico moderno limitou-se a reencontrar a função terapêutica dos jogos de


Carnaval, nos quais os elementos perturbadores sobem à superfície nos sainetes
im-

79
provisados pelos mascarados. A nossa sociedade está bastante doente: é
certamente mais traumatizante ser obrigado a recorrer ao psicodrama no gabinete
médico que disfarçar-se e ser totalmente livre, socialmente, pelo menos por um
tempo aquele em que a sociedade é terapeuta dela mesma o tempo de
Carnaval, tão bem definido por Claude Gaignebet: «A um período de silêncio
constrangedor sucedem-se os gritos, os risos e os cautos, pelos quais a
divindade bruscamente libertada sai para fora de nós e nos livra da nossa
angústia.»()

MITOS DE ONTEM E PSICODESCOMPRESSores DE AMANHA

Para Claude Gaignebet, etnólogo, folclorista e um dos poucos especialistas de


Rabelais que não é apenas filólogo, o Carnaval é uma religião, uma religião de
mistérios. Nós pensamos, pelo nosso lado, que o Carnaval é também um remédio
sagrado colectivo, o dos antigos ritos agrários. «Não se deve curar o corpo sem
curar a alma», dizia Zalinoxis. Evidentemente que as primeiras sociedades de
agricultores-criadores conheciam a utilização das plantas medicinais, mas isto
demonstrava mais a existência de uma medicina popular do que de uma medicina
sagrada, cósmica.

Quando os médicos, como por exemplo Norbert Ben Said, constatam a falha da
medicina terapêutica medicamentosa e contestam o seu papel, preferindo-lhe a
simples consulta(’), quer dizer, uma certa comunicação entre o doente e o
terapeuta, parece-nos interessante reencontrar nos mitos de ontem o que poderá
ajudar as «psicodescompressões» de amanhã.

A psicodescompressão é aquela que guia as almas, ou, de um ponto de vista mais


materialista, os espíritos inteligentes, através das esferas da harmonia. Não é
por acaso que Orfeu, Hermes ou Pitágoras são psicodescompressores de composição
musical, tal como S. Brás, já mais próximo da nossa sociedade, o é igualmente.

No seu apaixonante trabalho sobre o Carnaval, Claude Gaignebet fala-nos de S.


Brás, cuja celebração se realiza

Cf. Gaignebet (C.): Le Carnaval (Paris, Payot, 1974). Cf. Ben Said (Dr. N.): Ia
Consultation (Paris, Mercure de France).

80
exactamente durante este tempo de libertação: «Esse santo agrário, que abençoa e
multiplica as sementes e os animais, é pois também um santo curandeiro,
“especialista” dos males de garganta e de todas as anginas que vos estrangulam e
asfixiam.» (1)

O pai da psicossomática, Georg Groddeck (2) , ensinou-nos que as palavras


«angina» e «angústia» têm a mesma raiz etimológica em grego antigo.

A música e os cantos, os jogos e a dança, libertam a ansiedade recalcada, que


pode transformar-se facilmente em agressividade. As profissões dependentes da
voz colocam-se sob a protecção de S. Brás ou de Orfeu. Os nossos psicoterapeutas
modernos tornar-se-ão verdadeiros psicodescompressores no dia em que aceitarem
meditar sobre as lições de Orfeu e se colocarem sob o signo da lira.

Em resumo, apercebemo-nos que quando o Carnaval morre, e com ele as festas, as


danças e os cantos, a ansiedade cresce, a agressividade ressurge, a comunicação
torna-se um problema, e a sexualidade o contrário de uma grande harmonia entre
os homens e as mulheres, entre os seres humanos e o Cosmos, chegando até a
originar um novo problema: o do instinto de conservação da espécie...

Cf. -Groddeck (G.): le Livre du Ça (Paris, Gallimard, 1974). Na sua obra le


Carnaval, CI. Gaignebet indica que os profissionais do canto e da voz são
colocados sob a protecção de S. Brás e que «na Grécia as confrarias de cantores
celebram na altura das festas de S. Brás uma missa excepcionalmente brilhante,
usando todas as possibilidades da sua voz para honrar aquele que lhes liberta o
canto».

81
Capítulo IV

A MEDICINA DOS GNóSTICOS

Ao Dr. Arthur Guirdham e a René Nelli, que deram razão à última esperança do
pensamento dualista dos cátaros: «Ao fim de 700 anos floriu o louro.»

NO CAMINHO DA GNOSE

As seitas gnósticas contam-se por miríades através do tempo e do espaço


geográfico, da Índia às margens mais ocidentais da Europa. Tal como os
fragmentos de um gigantesco puzzle, com os contornos desvanecidos pelo tempo, o
seu mapa é muito difícil de traçar. Não abordaremos portanto senão uma das suas
grandes correntes, em três épocas: os bogomilos () da Bulgária, os cátaros do
Languedoque e os rosa-cruz, que são ainda nossos contemporâneos e dizem ser os
legatários dos dois primeiros. Para terminar, a Fraternidade Branca Universal,
que sintetiza, sob a tutela do mestre Omraam Mikhael Ivanov, o conhecimento
prático e teórico que o homem actual pode tirar disso.

A palavra grega gnosis tem a mesma raiz que a palavra génesis, que significa
«génese», ou «nascimento». A via gnóstica consiste em dar ao homem a
possibilidade de um verdadeiro nascimento: aquele que não seja a con-

(1) De acordo com a tradição, a heresia teria nascido nos Balcãs, sob o impulso
de um padre camponês chamado Bogomil, que começou a pregar, no final do século
X, não uma contestação revolucionária, mas a resignação no ascetismo. Que se
trate deste padre-talvez lendário-ou do nome que tomaram os adeptos deste
movimento, parece-nos importante sublinhar que «bogomilo» quer dizer «querido de
Deus» (bog significa « Deus», e milo, «caro, querido de», em búlgaro).

83
sequência do pecado original, da queda que precipitou o homem na escravatura do
Mal.

A corrente gnóstica ocidental foi muitas vezes comparada com o maniqueísmo


(vindo do masdeísmo) (’); isso é devido mais ao seu debate comum sobre o
dualismo que esquarteja o homem entre o Bem e o Mal, do que a uma pura filiação
histórica.

Alguns investigadores remontam a tradição oculta dessa corrente (bogomilos-


cátaros, rosa-cruz e Templários) a fontes sírias que datam do século IV. Pela
nossa parte, interessámo-nos bastante pelo passado histórico e arqueológico da
Bulgária, e parece, desde os anos 60, que o estudo da civilização trácia poderá
explicar de um novo modo as origens do bogomilismo na Bulgária.

A exploração das lendas e narrativas populares permite supor que a heresia


dualista tirou a sua inspiração do tronco comum de uma adaptação do hinduísmo
original. As tribos trácias, uma das ramificações da maior migração que partiu
da bacia do indo, instalaram-se cerca do III milenário na região que se estende
dos Cárpatos ao mar Egeu (’).

Entre os Gregos da Antiguidade, os Trácios tinham a reputação de ser


«imortalizantes», quer dizer, «aqueles que praticam e atingem a imortalidade».

Um búlgaro que foi embaixador em Paris, o Prof. Vladimir Topentcharov, resume


deste modo a história dos sodomitas e dos cátaros: «Dois braseiros, uma só
chama.» (1)

O drama que atingiu a Bulgária do século X deslocou-se para o país de Oc nos


séculos XII e XIII. A história dos bogomilos e dos cátaros pode analisar-se

C) O masdeísmo nasceu no Irão, com os primeiros Sassânidas, pela voz de


Zoroastro, cerca de VII-VI séc. a. C. (’) Sublinhemos aqui que paira um mistério
sobre os primeiros povos que terão habitado a península dos Balcãs. Na região
das Portas de Ferro do Danúbio, em Lepenski Vir, e em Karanovo, no Sul da
Bulgária, pesquisas recentes revelaram urna cultura desconhecida até cerca dos
anos 60. Encontraram-se esculturas, sinetes de argila cobertos de sinais
misteriosos que bem poderiam constituir uma escrita, instrumentos metálicos,
etc., tudo isso remontando a 4980 e 4449 a.C., quer dizer, perto de
2000 anos antes de Sumer. Cf. Srejovic (D). «Au Coeur de FEurope il y a 8 000
ans», in Dossier Historama n., 25, 1974.

Paris, Seghers, 1971.

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como uma única e mesma epopéia da luta contra o imperialismo. A Igreja de Paulo
e João, aquela que trazemos no coração e que põe o homem em comunicação directa
com o Cosmos, o sagrado (’), perdeu por amor a batalha travada contra ela pela
Igreja de Pedro, pelo ferro dos boiardos da Bulgária e pelo dos cruzados vindos
do Norte de França para o país de Oc.

É evidente que todos os registos da Inquisição não mencionam senão os factos


mais ostentosamente opostos ao cristianismo «oficial». Tudo o que poderia
aproximá-los foi voluntariamente destruído ou passado em silêncio. Os documentos
escritos são muito raros quando queremos encontrar algo mais que acusações.

O ABSTENCIONISMO GNóSTICO E A ABSTINÊNCIA

Para explicar resumidamente o abstencionismo gnóstico, digamos que um amor


desmedido aos prazeres deste baixo mundo é prejudicial. Se temos o hábito de
confundir a torto e a direito a satisfação (e, por conseguinte, uma certa forma
de equilíbrio) de todos os apetites materiais do ser humano com o que nós
chamamos a « saúde», isso não acontece com os gnósticos.

O Dr. Arthur Guirdham, que se debruçou demoradamente sobre os problemas que pode
levantar o dualismo dos gnósticos, profetizou: «Virá o dia em que a medicina não
será mais considerada como uma profissão, mas sim como um dos aspectos de um
desequilíbrio generalizado.».(’)

E, para ele, a doença não é mais que a falta de harmonia que pode surgir num
indivíduo e concretizar-se por um certo mínimo de sintomas. Esta atitude
assemelha-se perfeitamente à que deveriam ter os nossos antigos gnósticos em
relação à doença do homem, e ao acto terapêutico.

O Os cálaros falavam da «pequena capela da alma», para insistirmos nesta


capacidade que o homem deve ter de se sentir em comunicação directa com Deus, ou
o Cosmos, sem necessidade de intermediários, tais como o clero e as igrejas.
(’), Cf. Guirdham (Dr. A.): I'Homme et le Cosmos, ou les Facteurs Cosmiques de
Ia Maladie (Paris, Fayard, 1974)..

85
Mas, como a escola tradicional gnóstica crê na metempsicose (ou reencarnação), a
doença ou mau estado de saúde, até mesmo um acidente, podem não ser e não são na
maioria das vezes mais que as consequências de uma incarnação anterior ou de um
carma actual mal vivido (1).

Aí onde nós falamos de saúde, harmonia, equilíbrio, os gnósticos falam de


perfeição. Aquele que vive em equilíbrio harmonioso com o universo não conhece,
por conseguinte, a doença; contudo, estando a imperfeição do homem
indissoluvelmente ligada à do universo, o pensamento cátaro, a moral gnóstica,
são infinitamente liberais, e é justamente o que não compreenderam - ou
compreenderam-no demasiado - os seus adversários. Tolerante, até ao ponto de ser
libertadora.

Jacques Lacarrière esboçou muito bem a trama da sua mensagem (2)


@simultaneamente «complexa e fascinante», tal como ele sublinha:

«A gnose é um conhecimento. Foi sobre o conhecimento e não sobre a fé que os


gnósticos se apoiaran, para edificar a sua imagem do universo e as implicações
que daí tiravam: conhecimento da origem das coisas, da natureza real da matéria
e da carne, do futuro do mundo a que o homem pertence tão inelutavelmente como a
matéria que o constitui [ ... 1. Visceralmente, imperiosamente,
irremissivelmente, o gnóstico sente a vida, o pensamento, o futuro humano e
planetário como uma obra talhada, limitada, viciada nas suas características
mais íntimas. Desde as longínquas estrelas até aos núcleos das nossas células,
tudo traz -materialmente irrevelávela marca de uma imperfeição original que
somente a gnose e os meios que ela dispõe poderão combater.» Daí a tolerância
gnóstica, mas também esse desejo de transformar e transcender o homem sem nenhum
antropocentrismo.

(’) Esta teoria concorda perfeitamente com as pesquisas do Dr. Guirdham, que
«redescobriu» a alma do homem explorando a doença, tanto somática como psíquica.
Cf. A Theory of Diseasa, Obsession, A Foot in both WorIds (Londres, NevIle e
Spearman), assim como: les Cathares et Ia Reincarnation (Paris, Payot, 1972) e a
obra citada anteriormente. (2) Cf. Lacarrière (J.): les Gnostiques (Paris,
Gallimard, 1973).

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Como os antigos Trácios, os gnósticos da Idade Média recomendam também a
abstinência - do casamento, da carne e por vezes mesmo do vinho, nesse país de
vinhas - àqueles que forem capazes disso sem se sentirem mortificados.

A mesa dos gnósticos é uma dietética da alma. Dissemos já muitas vezes que os
bogomilos e os cátaros, assim como os seus modernos sucessores, eram e são
vegetarianos.

Segundo o Prof. René Nelli, «os Crentes podiam comer e beber o que quisessem. Os
Perfeitos traziam-lhes por vezes carne, caça que lhes tinham oferecido e da qual
não sabiam que fazer» (1). Nesse tempo, como actualmente nos campos isolados dos
Pirenéus, ou dos Balcãs, os camponeses não comiam carne senão muito raramente, e
portanto não lhes era difícil serem vegetarianos. Deste modo, podemos observar
que os Búlgaros gostam mais de frutos e de legumes frescos que de bife com
batatas fritas. Falar-lhes de vegetarianismo a esse propósito fá-los sorrir, e
tratam os ocidentais como snobs e sofisticados porque se gabam de seguir um tal
regime. Eles são vegetarianos naturalmente, sem falar nisso... tal como M.
Jourdain escrevia em prosa.

Mas, para finalizar, e voltando aos nossos Perfeitos, digamos que na mesa deles
havia peixes e frutos, mel e por vezes vinho perfumado com cravinho.

Eis o que nos ensina mestre Omraam Mikhael Ivanov, discípulo do moderno Mestre
Peter Deunov (’), acerca desta tradicional abstinência de carne para aqueles que
querem seguir o caminho da perfeição:

«Sabeis por que razão a tradição nos explica que Adão tinha um rosto radiante e
divino antes de cometer o primeiro pecado e por que todos os animais o
respeitavam e lhe obedeciam? Depois da queda, Adão perdeu esse aspecto e os
animais começaram a desprezá-lo. Se os bichos não têm confiança no homem, se os
pássaros fogem

(’) Cf. Nelli (R.) Ia Vie Quotidienne des Caffiares du Languedoc, au XIII Siècle
(Paris, Hachette, 1969),. (’) Peter Deunov «partiu», diziam os seus discípulos,
em 1944 da Bulgária. Vinte e duas das suas numerosas conferências foram
traduzidas e publicadas em francês. Cf. le Maitre Parle (Sèvres, ed. de Ia
Fraternité blanche universelle, 2 rue du Belvédère-de-la-Ronce).

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quando ele se aproxima e toda a criação o considera como um inimigo, é porque
têm uma razão para isso: ele não soube manter-se à sua altura. Se o homem voltar
para a lei do amor, da santidade, o mundo inteiro transformar-se-á e o reino de
Deus descerá à Terra. A guerra é a consequência dos pensamentos e dos
sentimentos dos homens que não aprenderam a lei do amor e da sabedoria. Aqueles
que desejam o seu aperfeiçoamento e a sua evolução correcta não colocarão nunca,
no seu templo sagrado, o cadáver dos animais em estado de decomposição nem
produtos tais como chouriços, salsichas, morcelas, empadas, que não são nem
estéticos nem higiénicos. Alguns comentarão que na Bíblia se diz que Deus criou
as plantas e os frutos para dá-los aos homens como alimento; em nenhum lado se
diz que devemos comer os animais. No que respeita aos peixes, não acontece o
mesmo, porque estão desde há milénios em péssimas condições de evolução. O mundo
invisível tem permissão para comê-los, o que os faz evoluir. Demais, existe no
peixe um elemento especialmente feito para a nossa época.»

Além disso, mestre Ivanov explica bem que a carne contém um veneno «bastante
mais psíquico que físico, porque todas as vibrações que o animal sofre são
absorvidas pelo fígado(’), o que explicará, pelo menos em parte, por que razão
as pessoas que sofrem do fígado são muitas vezes mal humoradas, más, mordazes,
inquietas, angustiadas, etc.

O PAPEL DOS ALIMENTOS

Se os alimentos que nós comemos e a forma como os absorvemos desempenham um


papel primordial na evolução espiritual do homem - «Quando há luz e calor (quer
dizer, quando temos pensamentos conscientes, elevados e de amor) dirigidos para
a alimentação, o que nós comemos transforma-se na boca durante a mastigação» -,
a sua matéria bruta, quer dizer, a escolha dos

O Cf. Ivanov (M.): «Echanges vivants et conscients», conferência de 24 de Abril


de 1938 em Amour, Sagesse, Vérité (Sèvres, ed. Izgrev).

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alimentos, desempenha também um papel primordial na harmonia do corpo.

Não esqueçamos que para os gnósticos, tal como para os Antigos Egípcios, o corpo
físico é o «templo de Deus». Esse corpo deve por conseguinte ser cuidado tanto
exterior como interiormente. O regime vegetariano dos gnósticos não obedece
apenas a regras que sigam uma moral e uma cosmogonia religiosas. Ele tem também
outros motivos físicos e racionais. A dietética vegetariana tem a finalidade de
atrasar o processo de envelhecimento.

Com efeito, que é a velhice? Um estado de esclerose, de rigidez, de dureza, de


apatia. Esta lenta ossificação do corpo conduz por fim à decrepitude e à morte.
Alguns alimentos, algumas bebidas, depositam, mais do que outras, substâncias
calcárias em todo o organismo, já que são arrastadas pelo sangue. Por exemplo, a
carne, os ovos ou o queijo, tão facilmente absorvidos pelo organismo, não contêm
praticamente nenhuma substância que possa «purgar» o sistema digestivo (’).

Pelo contrário, os legumes e as frutas contêm matérias fibrosas que limpam os


intestinos e impedem todas as formas de intoxicação, amolecendo as matérias
fecais.

É por isso que muitos médicos, apesar de não serem gnósticos ou vegetarianos
convictos, aconselham os seus doentes vítimas de infecções (constipação, gripe
ou outras ... ) a que se abstenham de comer carne e absorvam mais sopas e caldos
de legumes, legumes cozidos e fruta ou sumos de frutos naturais, quer dizer,
feitos em casa.

Especialmente os frutos que contenham ácido cítrico (laranjas, toranjas,


limões), que é um excelente anti-séptico.

Além disso, alguns médicos vegetarianos estão persuadidos de que a carne pode
ser a causa de inúmeras cáries dentárias. Os detritos da carne que ficam
apertados entre

(’) O queijo, os ovos e o leite devem igualmente ser evitados, mas não o peixe,
que, segundo os conceitos cátaros, não é o fruto da geração mas o, espontâneo,
da água. Contudo, o peixe e o vinho devem ser evitados nos primeiros dias de
jejum. Bogomilos e cátaros, imitando os cristãos nisso, abstêm-se 2.,, S.& e 6.a
feiras de cada semana. Alimentam-se unicamente de pão e água, para mortificação
da carne... Cf. Borst (A.), tes Cathares (Paris, Payot, 1974).

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os dentes putrefazen-i-se bastante mais rapidamente que os dos frutos ou
legumes.

Do mesmo modo é aconselhável comer pão «integral», quer dizer, feito de farinha
de trigo completo, em vez de pão ou doces fabricados com farinha branca, que,
devido ao tratamento sofrido, ficou desprovida de todos os sais minerais e
reduzida apenas aos componentes de amido.

FAÇAM AMOR... NÃO FILHOS

Depois da abstinência da carne, temos de falar da abstinência da carne. São


Paulo preconizava a castidade a todos aqueles que eram capazes disso. A atitude
dos gnósticos é a mesma (). Mas, por razões de contestação social ele que já
falámos anteriormente, e sobretudo para evitar pôr neste mundo imperfeito mais
uma alma, é aconselhável não ter filhos. Claro que é preciso que não esqueçamos
que os contestadores gnósticos foram os primeiros a emancipar a mulher. Como
entre os antigos Celtas e Trácios, a mulher podia desempenhar um papel social,
económico e até mesmo religioso da mesma forma que o homem.

Como em toda a parte, até ao nascimento da urbanização, que as afastou do mundo


das plantas, as mulheres sempre tiveram ao seu alcance numerosos meios
contraconceptivos. Ainda hoje, algumas aldeias dos Balcãs conhecem as virtudes
da artemísia, utilizada em infusão ou decocção, «para fazer aparecer as regras»,
ou o centeio com cravagem, mas por que preço! Dez a quinze gramas de pó de
centeio com cravagem bastam para provocar gastralgias, vómitos e diarreias,
perturbações nervosas com vertigens, perda de visão, apitos nos ouvidos,
anestesia, começando pelos dedos e artelhos para invadir em seguida todo o
corpo.

Este envenenamento -ou ergotismo espasmódico -é acompanhado de crises


convulsivas quando a ener-

(’) «A reforma ocidental do começo do século X11 não se opõe ao casamento, tem
mais tendência a exigi-lo dos padres, mas ele deve, contudo -e os primeiros
cátaros estiveram de acordo durante um certo período -, continuar a ser
privilégio dos virtuosos e não ter por fim senão a criação de descendência,
livre de qualquer gozo físico. Cf. Borst (A.): les Cathares, op. cit.

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gia muscular está diminuída. Finalmente, a gangrena dos membros pode. aparecer
também: tornam-se então negros, nauseabundos e «separam-se mesmo nas
articulações, como se se tratasse de uma perna de pau» (1).

Deste modo, confundia-se demasiado facilmente aborto com contraconcepção, e as


ervas ditas «feiticeiras» levam-nos a preferir a pílula ou o bisturi!

René Nelli, grande especialista do catarismo, conta-nos a história do galante


abade de Mantaillou, muito célebre em pleno período do catarismo, pelos
escândalos com as suas mais belas paroquianas. Uma delas, Beatriz de
Planissoles, casada e com vários filhos, não teve senão que felicitar-se pelo
contraconceptivo mágico deste cura, simultaneamente católico e cátaro:

«O abade trouxe qualquer coisa enrolada e atada num pedaço de linho, da grossura
e do comprimento de uma onça ou da primeira falange de um dedo mínimo, à qual
estava atado um cordão que ele me passou à volta do pescoço. Era, parece, uma
planta. Fê-la descer entre os meus seios até à barriga todas as vezes que queria
ter relações comigo; colocava-a nesse sítio e deixava-a lá até ter terminado.
Quando se levantava, tirava-ma do pescoço. Se na mesma noite quisesse possuir-me
várias vezes, dizia-me: “Onde está a planta?” Eu encontrava-a puxando o fio que
tinha ao pescoço. Ele agarrava-a e colocava-ma de novo na barriga, passando-me
sempre o fio entre os seios [... 1. Pedi-lhe um dia que me confiasse a planta.
Ele respondeu-me que não fazia isso, porque, perdendo o medo de ficar grávida,
eu apressar-me-ia a entregar-me a outros homens.» (’)

Eis o contraconceptivo ideal para tranquilizar os homens que não permitem que a
mulher tome a pílula! Mas é importante sublinhar que, se a esterilidade é por
vezes de origem psíquica (por exemplo, falta de harmonia do casal, ou medo da
maternidade), a persuasão, uma fé forte, podem talvez agir também... Sem contar
que este abade libertino poderia conhecer - quem sabe? - a téc-

(’) Citado por Leclerc (H.) Précis des Phytothérapie (Paris, Masson, 1925;
reimp. 1966). O ergotismo era conhecido dos Romanos sob o nome de Ignis Sacre, e
na Idade Média sob o nome de «fogo de Santo António».

Cf. Nelli (R.): la Vie Quotidienne des Cathares... op, cit.

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nica de Kundalini (’), técnica que foi talvez igualmente -
porque não? - praticada por libertinos e libertinas (2) @ sem que os
inquisidores tenham tido a abertura de espírito suficiente para pensar em
averiguá-lo.

O CONTACTO ENTRE O ESPIRITO E A MATÉRIA

Tolerância para com a fraqueza do homem, mas gosto pela aventura espiritual, a
ultrapassagem de si mesmo em direcção à perfeição...

Os túmulos dos antigos bogomilos permitiram que chegasse até nós a sua mensagem.
E aqueles que seguem a sua tradição utilizam sempre a -saudação da mão aberta
-nada de aperto de mão, mas a mão aberta ao mundo, num gesto de bênção do
coração. Da sua força Do seu amor universal.

Como a maior parte dos iniciados da Antiguidade, os gnósticos ocidentais viveram


nas altas montanhas. Na Bulgária, o monte Rita e os seus sete lagos são
considerados como um lugar sagrado (’); no país de Oc, Montségur (’) é e
continuará a ser para sempre o símbolo da fé cátara.

Não é arriscado pensar que bogomilos e cátaros utilizavam o magnetismo


fisiológico curativo: a nossa física moderna provou que o número de neutrões
contidos na atmosfera aumenta rapidamente e proporcionalmente com a altitude. Os
neutrões são partículas que têm uma

(’) Preconizada por Tantra Yoga, esta técnica visa utilizar a energia sexual
fazendo-a subir para o «Iótus», no alto, em vez de a gastar sob a forma de
matéria no corpo da parceira. (’) A palavra bougre (libertino) equivalia, na
Idade Média, a um anátema. Passou depois à classe dos insultos, para se tornar,
no feminino, sinónimo de mulher sem vergonha. Inicialmente significava
«herético» e derivava de «boulgare», ou búlgaro. (’ ) Alfred Laumonier, no seu
prefácio à recolha de conferèncias de Mikhael Ivanov, les Sept Lacs de Rita,
conta-nos que assistiu em Agosto de 1939 a um nascer do Sol que reuniu mais de
400 pessoas nos flancos do monte Rita, cujo célebre mosteiro foi, quando do
domínio otomano, o símbolo da resistência nacional búlgara. (’> A construção do
castelo de Montségur segue dados astronómicos muito precisos, o que faz pensar
que eles obedeciam ao ensinamento esotérico e solar dos cátaros. Cf. Oldenbourg
(L.): le Búcher de Montségur (Paris, Gallimard, 1959).

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massa mas não têm carga eléctrica, e podemos chamar-lhes corpúsculos magnéticos.

Vejamos o que dizem o Dr. Oudinot e André Guéret: «As recentes descobertas da
atomística provaram ser indiscutível a presença de corpúsculos magnéticos nas
células vivas. Podem ser, quanto aos elementos que figuram no sangue humano por
exemplo, os granulócitos mentrófilos, a que os Anglo-Saxões chamam eucócitos
mentrófilos, quer dizer, sem polaridade eléctrica, mas vivos, uma vez que são
móveis, dotados de spin, por conseguinte magnéticos no sentido físico da
palavra. A sua importância nos fenómenos da vida é, pois, fácil de admitir.» (1)

Esses pesquisadores, como muitos outros, observaram a curiosíssima propriedade


do magnetismo, propriedade que aliás não podia senão levantar inúmeras críticas
da parte daqueles que a rejeitaram a priori e não a experimentaram muito
demoradamente: o magnetismo «está submetido, pelo menos parcialmente, à vontade
do experimentador».

TERAPÊUTICA DO MAGNETISMO FISIOLÓGICO

No homem, a mão esquerda é o receptor desta energia, enquanto a mão direita


constitui o emissor. Presentemente, sabemos de forma positiva que o corpo humano
deve a sua capacidade de absorver facilmente os neutrões ao seu alto teor de
água. Desde então, é facilmente concebível que os bogomilos e os cátaros, graças
ao seu modo de vida, tenham bebido desta energia e tenham escolhido a saudação
palmar (com a palma da mão), emissora da energia positiva do Amor, como símbolo,
até mesmo nos seus túmulos, do que foi a sua existência...

Se a nossa ciência só agora começou a saber utilizar as leis de modo


experimental, a tradição oculta manteve esse conhecimento até aos nossos dias,
quanto mais não seja pela décima quinta lâmina do Tarot, que, atribuída a Hermes
Trismegisto, repete realmente um gesto que vemos aparecer na estatuária egípcia.
Esta décima quinta

(’) Cf. Guéret (A.) e Oudinot (P.): VHomme et les Impondérables (Paris, Dangles,
1966).

93
lâmina representa «o Diabo», ou o grão-mestre das forças astrais; perto do seu
braço esquerdo figura uma inscrição em latim, coagula, ou coágulo que concentra,
capta as energias, enquanto que solve, perto do braço direito, vem lembrar que é
ele que dissolve, que emite.

Cada um de nós, pelo menos uma vez na vida, pôde encontrar uma dessas pessoas
que com a sua presença conseguem acalmar todos os que a rodeiam. Mas, melhor
ainda será observar o gesto que a mãe faz quando estende a mão para proteger a
criança que cai, mesmo que esteja bastante afastada. Para a agarrar, sem pensar
na distância que os separa, evidentemente, mas também instintivamente para
emitir a sua energia positiva, maternal, protectora.

Experimente você mesmo, um dia, a passar a mão direita sobre o plexo solar de
uma criança que chora e pense que lhe transmite o seu calor, a sua ternura, o
seu amor. Não faça força, experimente simplesmente respirar calmamente com ela.
Consegue certamente tranquilizá-la, consolá-la.

Isto não é senão o bê-á-bá do magnetismo fisiológico. Mas este gesto de


imposição das mãos constitui decerto a essência da terapêutica dos sacerdotes,
ou, mais exactamente, dos pregadores bogomilos e cátaros, os Perfeitos.

A própria denominação de «Perfeitos» demonstra claramente que eram capazes de


encarar todas as circunstâncias da vida com uma serenidade magistral. Esta
serenidade de que os cátaros que sofreram o fogo da Inquisição nos deram o
exemplo.

Controlar-se, evitar toda a manifestação exterior, tal como gritos, lágrimas,


agitação, etc., não se deixar impressionar, dominar todas as circunstâncias,
permite-nos não malbaratar o nosso potencial de energia vital, não esbanjar o
nosso magnetismo a torto e a direito.

OS GESTOS DA HARMONIA QUOTIDIANA

o homem pode concentrar a sua energia vital, o seu magnetismo. Alguns possuem um
potencial mais elevado do que outros. Mas cada um tem a possibilidade de
melhorar esse bem. Viver em harmonia, e estar primeiro e

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antes de mais nada atento a essa harmonia, é a primeira forma de acumular um
potencial positivo. Tradicionalmente, existem outras. Uma das mais simples
consiste em se encostar a uma árvore, apoiar a palma da mão esquerda contra esta
(portanto por trás das costas) e a mão direita contra o plexo solar. Viver,
durante algum tempo pelo menos, na Natureza, entrar em ressonância com ela, é um
outro meio.

Os plexos são centros de reservas nervosas; os mais importantes são o plexo


solar(’) e o plexo cardíaco (que corresponde aos chacrãs Manipura e Anahata).

Em certos aspectos, os gestos da vida quotidiana de um diagnóstico lembram os


daqueles que praticam o Zen. Tudo deve tender para a perfeição. Cada refeição,
por exemplo, poderia ser, para os ocidentais, o mesmo que a cerimónia do chá no
Japão.

Tivemos a sorte de ter sido recebidos pelo Mestre da Fraternidade Branca


Universal, nos Pirenéus. Veio para a mesa vestido de branco, como sempre. O seu
olhar é calmo, penetrante, «magnético», dizem alguns. Come como qualquer um, mas
os seus gestos para agarrar o copo, a colher, etc., têm uma precisão
extraordinária e uma grande doçura, aparentemente lentos, mas seguindo um ritmo
amplo e rápido. Trata-se de um verdadeiro bailado. À mesa, ele e os seus
acompanhantes calam-se: para melhor absorverem o alimento, evidentemente, e
também a sua energia. Nenhum copo tilinta, nem um talher. Nem uma palavra (2).

Depois de termos partilhado dessa refeição, perguntámos ao Mestre se ele


procedia do mesmo modo em to-

(’) Escutemos Mikhael Ivanov explicar-nos a que corresponde, segundo a tradição,


o plexo solar: «Ê uma acumulação de gânglios situada acima do umbigo.
Observando-o, vemos que é formado de 5 gânglios normais e duas glândulas,
chamadas semi-humanas, do feitio de um peixe. Tudo isto pode parecer
extraordinário; contudo, é verdade. No plexo solar, os dois peixes são o símbolo
da Lua». Cf. la Chimie Spirituelle (Ed. lzgrev). (2) Eis como se deveria viver o
silêncio: «0 silêncio é a linguagem mais concludente que existe. Vivendo juntos
alguns momentos de silêncio, as pessoas conhecem-se melhor que mantendo
conversação inútil; mesmo que sejam dotadas da maior eloquência. É por isso que
muitas pessoas têm medo do silêncio e tentam evitá-lo, por qualquer preço». Cf.
Ivanov (M.): les Sept Lacs du Mont Rita, op, cit.

95
dos os momentos da sua vida quotidiana. «Evidentemente», respondeu-nos, «é
necessário cuidar sempre da harmonia. Veja o seu carro, por exemplo: você
estacionou-o orientado no sentido em que vinha. Devia tê-lo arrumado pronto para
partir ... »

Tudo concorre portanto para a concentração dessa energia vital. E, como


sublinham, e muito bem, o Dr. Pierre Oudinot e André Guéret: «Temos todo o
interesse em permanecer impassíveis, em sermos superiores aos acontecimentos.
Para termos autoridade, para mandar nos outros, para curá-los e curarmo-nos a
nós próprios, é necessário um poderoso magnetismo. O olhar deve ser calmo,
penetrante, e devemos evitar um excesso de gestos ... »

CURAR POR IMPOSIÇÃO DAS MÃOS

Se é relativamente fácil acalmar uma criança que chora, como já dissemos


anteriormente, curar por imposição das mãos requer uma certa técnica.

Esta consiste em concentrar-se de um modo tal que as vibrações negativas que o


doente emite não possam ser captadas a maior altura que a do cotovelo daquele
que «cura». Vimos anteriormente que o homem é simultaneamente emissor e
receptor.

Durante a imposição das mãos, é aconselhável lavar-se as mãos várias vezes com
água, de preferência corrente, ou, na falta desta, numa bacia cujo conteúdo seja
removido muitas vezes.

Segundo Max Heindel, um médico rosa-cruz que pertence à comunidade americana do


AMORC, «a água tem um efeito duplo: em primeiro lugar, as emanações doentias que
deixam o corpo do doente têm afinidades com ela. Em segundo lugar, a humidade
que fica nas mãos do curandeiro permite-lhe absorver em maior quantidade os
miasmas de que vai libertando o seu paciente. Este fenómeno corresponde ao mesmo
princípio que faz que dois eléctrodos de uma bateria de acumuladores mergulhados
na água intensifiquem a corrente» (’).

(’) Cf. Heindel (M.): Ia Saitté et Ia Guérisoti (Paris, ed. LE.P.,


1964).

96
Numerosos curandeiros que curam por imposição das mãos não seguem estas regras;
sacodem violentamente as mãos e esfregam-nas uma contra a outra no gesto de
lavá-las, como que para as livrar de qualquer viscosidade. A tradição diz-nos
que se trata, com efeito, de uma espécie de geleia enegrecida que os
clarividentes podem ver cair no solo. Convém portanto que o doente evite passar
onde essa «matéria» possa cair, para obstar que ela se reintegre no corpo. A
este respeito, Max Heindel aconselha-nos a seguir a tradição, ou seja, que o
curandeiro sacuda as mãos por cima de fogo.

Se alguns doentes são verdadeiros vampiros que absorvem toda a energia do seu
curandeiro ou do médico « assistente» que os trata, alguns curandeiros,
verdadeiras pilhas energéticas, confessam que lhes é absolutamente necessário
descarregar o seu excesso de energia vital ao cuidarem do sofrimento dos outros,
para não ficarem eles mesmos intoxicados.

O SOL DOS SODOMITAS

O heliocentrismo domina todo o pensamento gnóstico.


O Sol é o grande reservatório de vida no nosso planeta. Quando uma pessoa vê no
seu horóscopo o Sol aparecer num signo de Fogo, ela tem todas as possibilidades
de poder aliviar, e até mesmo de curar, as doenças regidas por esse signo. O
mesmo acontece com o signo do Ar e com os dois outros signos.

Mas a ciência. dos gnósticos vai mais longe. Ela torna-se profética e entra em
ressonância com a nossa época, onde a penúria das energias clássicas, petróleo,
carvão, etc., começa a inquietar os homens. Para eles, cada raio solar é uma
força. A energia solar decompõe-se em raios: vermelhos, laranja, amarelos,
verdes, azuis, anis e roxos.

Utilizar as sete virtudes das sete cores do espectro, é esse o grande segredo
dos iniciados. Já, quando de uma conferência dada em Paris no dia 5 de Novembro
de 1938, na praça da Sorbonne, sala do Luxemburgo, Omraan Mikhael Ivanov
anunciava: «Um dia a humanidade deixará de utilizar o carvão e a madeira,
trabalhará unicamente com os raios solares; porque todas estas coisas são
temporárias, um dia esgotar-se-ão, mas captar-se-á o que

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é subtil, espiritual e inesgotável. Além disso, aprenderá a curar-se pelas cores
e fará milagres com os raios solares.» (1)

Foi necessário esperar pelo mês de Julho de 1973 para que se realizasse no
palácio da Unesco, em Paris, o primeiro congresso interdisciplinar sobre o tema:
«O sol ao serviço do homem». Este congresso reuniu seiscentos sábios de trinta
países, seiscentos sábios que acreditam que as forças solares permitirão que a
nossa civilização - e o nosso planeta - saiam desta péssima situação: poluição
crescente no mesmo ritmo do empobrecimento dos recursos.

A terapia pelas cores foi abordada por Mikhael Ivanov ao longo das suas
conferências. Legatário da tradição bogomila na Bulgária por Peter Deunov, ele
reside na Europa Ocidental desde o fim da última guerra. Escutemo-lo: «Quantos
mistérios se encontram ainda escondidos na luz! O começo de tudo é a luz.
Conhecer a luz é conhecer tudo.» (’)

Para saber utilizar as cores terapeuticamente, é necessário primeiro conhecer o


seu significado esotérico, na simbólica que as une ao ser humano.

OS OLHOS E AS VIBRAÇõES

O comprimento de onda das vibrações luminosas forma uma corrente contínua que
vai das maiores às mais pequenas. Sendo cada vibração circular, a corrente
formada por esta sucessão apresenta-se como uma espiral cónica.

As vibrações mais curtas de comprimento de onda (as mais rápidas e as mais


espirituais) são as que formam o cume do cone. A projecção desse cone sobre a
basedá-nos o signo que representa o Sol. E o olho humano está representado pelo
mesmo símbolo. É por isso que tradicionalmente se diz que o olho direito é a
montanha solar e o esquerdo a montanha lunar. O estudo do olho humano permite-
nos descobrir nele manchas, sombras, variações de cores, que correspondem ou a
certas

Ivanov (M.) l'Alcliiiizie Spirititelle, op. cit. Cf. Ainotir, Sagesse, Verité,
op, cit.

98
lesões orgânicas, ou a um mau funcionamento de certos órgãos. Esta técnica
chama-se iridoscopia (’).

Os espiritualistas gnósticos, tanto os antigos como os modernos, vêem também


outra coisa no olho humano. Ivanov, aliás, desenvolveu esse assunto em muitas
das suas conferências (2).

O que é o olho, do ponto de vista metafísico? O olho é constituído por três


membranas: a esclerótica, que corresponde ao mundo físico, a coroideia, que
corresponde ao mundo astral, e a retina, que corresponde ao mundo mental.

As células sensoriais da retina são extremamente sensíveis e a ciência pôde


descobrir que a retina se compõe de dois tipos de células: os bastonetes e os
cones. São estes últimos que nos permitem distinguir as cores, enquanto os
primeiros nos fazem aperceber apenas silhuetas e sombras acinzentadas.

O pensamento gnóstico, que insiste no facto de que toda a terapêutica do homem


se deve encaminhar no sentido da harmonização do seu ser, começando pelas
tendências da sua alma, leva-nos a considerar a sua medicina como uma «alquimia
espiritual»; quer dizer, uma psicologia que se apoia em dados simbólicos
fornecidos por um ou mais aspectos da matéria,

É assim que, a propósito do olho humano, Ivanov relembra, a parábola do argueiro


e da tranca, citada no Evangelho segundo S. Mateus, para explicar as funções que
exercem esses cones e bastonetes que constituem as células da retina. Os animais
e os pássaros nocturnos só têm bastonetes. Todas as espécies animais nocturnas
estão ligadas a Saturno.

Encontramos no homem de tipo saturnino todas as características de «percepção


pela tranca»: sombrio, sempre descontente, crítico, gosto do macabro. É
desdenhoso.

(’) O único tratado de iridoscopia válido em língua francesa é a obra do Dr.


Léon Vannier: le Diagnostic des Maladies par les Yetix (Paris, Doin). Existem
outros mais modernos, mas em alemão, (2) Cf. I@,anov (M.), les Detix Arbes du
Paradis (Sèvres, ed. lzgrev).

99
Naqueles em quem os cones predominam, a visão é solar, espiritual; estão
preparados «para olhar as coisas de alto». Esses cones representam uma espiral
de luz. À medida que o homem cresce na espiritualidade, a sua visão interior
segue a ascensão das cores, como se ele trouxesse ó culos interiores. A
expressão popular «ver vermelho» é bem significativa. Aqueles que não se
apercebem senão do domínio das vibrações vermelhas gostam de viver nos prazeres
e nas paixões. São, diz Mikhael Ivanov, os epicuristas e os militaristas. O
laranja é a cor dos «óculos interiores» dos filósofos e dos sábios
individualistas, etc.

No interior do olho, no centro, encontra-se o cristalino, incolor e


transparente, que a tradição considera como «óculos magníficos, construídos
desde há milénios e destinados a permitir-nos ver claramente as coisas».

Mestre Ivanov lembra a esse respeito a parábola de Cristo: «Felizes os que têm o
coração puro, porque eles verão a Deus.»

Como o coração, o cristalino palpita em contracções-dilatações. Assim, por


exemplo, o relaxamento do cristalino, que produz a miopia, corresponde
simbolicamente a um relaxamento do coração.

Quando o homem míope conseguir ver as belezas da Natureza, amá-las, «reencontrar


Deus», o seu cristalino voltará à sua forma normal. O olho preside ao gosto da
verdade no homem.

A ARTE TERAPÊUTICA DA VIBRAÇÃO

Este exemplo dado pela simbólica do olho e sua constituição física demonstra
claramente qual o estilo da arte terapêutica praticado na tradição gnóstica:
fixar a atenção no bem é atrair forças e levá-lo a crescer em si mesmo e nos
outros.

É nisto que consiste a energia branca praticada pelos gnósticos. O antropólogo


Marcel Mauss disse que a energia é o que precede a ciência ou, pelo menos, o que
nós entendemos em geral por ciência. A arte terapêutica dos gnósticos apela para
a magia branca, para as vibrações positivas, para as energias positivas que
existem no Universo onde vive o homem.

100
Uma falsa apreciação do dualismo dos gnósticos levou muitas vezes a pensar-se
que se tratava de um pensamento estático. Nada mais falso. O dualismo é, com
efeito, uma dialéctica dinâmica. Descobrir simultaneamente o Bem e o Mal não
consiste em parar exclusivamente no Mal para esquecer o Bem. O dualismo consiste
em observar estes dois aspectos para diminuir o lado negativo e reforçar o lado
positivo. O gnosticismo pode portanto ser encarado como um remédio do homem,
como uma terapêutica tomada no seu sentido mais lato, como uma ciência
equilibrante destinada a fazer frutificar a natureza superior que se encontra no
fundo de cada homem.

Atrair as forças do bem é, na realidade, utilizar as vibrações. A medicina dos


gnósticos é por conseguinte essencialmente uma medicina vibratória cujos
segredos a ciência moderna só agora começa a descobrir. De um modo geral,
digamos que essas vibrações positivas, benéficas, agem sobre o psíquico quando
este consente em abrir-se-lhes, e que numa segunda etapa o somático aproveita
esta harmonização do psíquico (’).

É por isso que as técnicas terapêuticas dos gnósticos são, extremamente subtis.
É tudo simultaneamente muito simples, porque elas apelam para uma natureza não
sofisticada, e também extremamente complicado, quando se torna necessário
conhecer a razão e dar explicações numa linguagem científica moderna, que nem
sempre é apropriada à do simbolismo.

Para terminar este capítulo, diremos algumas palavras acerca da água, que
desempenha um papel primordial na prevenção das doenças do homem.

O HOMEM E A ÁGUA PRIMORDIAL

Actualmente, já ninguém ignora que a raça humana veio de um meio líquido.

Não sabemos se a ciência gnóstica tinha definido precisamente que o ser humano é
constituído por quatro

C) Cf. Guirdham (Dr.A.): VHomme et le Cosmos, ou les Facteurs Cosmiques de Ia


Maladie, op. cit.

101
quintos de água. Mas ela insiste bastante sobre a sua importância na saúde e no
equilíbrio do homem.

Ao nível simbólico, eis o que nos diz Mikhael Ivanov, que perpetua na nossa
época a chama do pensamento gnóstico: «O sangue da Terra é a água. Os oceanos
são o coração, o vasto coração planetário onde o sangue se encontra com
abundância. As ribeiras, os rios e os lagos são as artérias e as veias; os
pulmões (bastantes maiores que o coração) são a atmosfera onde o sangue se
purifica. » (1)

Sem saberem que seguem assim um costume dos seus avós bogomilos, os Búlgaros
contemporâneos têm muitas vezes o hábito de beber, de manhã, em jejum, um grande
copo de água morna e bem fervida. Qual é o significado profundo, espiritual,
deste gesto?

- a água pode fazer transpirar o corpo físico; -o amor (= «a água quente


espiritual») faz transpirar a alma;

- a prudência (= «a água divina») faz transpirar o espírito.

Ora, transpirar, é eliminar toxinas, substâncias, vibrações negativas que


envenenam o corpo e a alma.

No plano físico, a água quente ingerida em jejum estimula as funções hepáticas:

«Se ajudarmos o nosso fígado, melhoramos o nosso destino.» A água quente tomada
todas as manhãs permite a dilatação dos tecidos, uma melhoria da circulação; ela
provoca a dissolução dos calcários, permite o regresso da elasticidade aos
tecidos. Esta acção aumenta também a resistência do organismo e atrasa o
processo de envelhecimento. (A Bulgária é considerada como um dos países onde
existe um maior número de centenários.)

«A água quente pode ser considerada como um professor. Ela diz a todas as
células: “Vós deveis ser boas, ternas, amáveis e obedientes. Trabalhai bem.”
Então o amor aumenta nas células, porque o calor provoca a sua dilatação e elas
começam a aceitar os ensinamentos do amor, que é inseparável do calor.»

O amor é o melhor medicamento, a melhor terapêutica dos gnósticos, para quem


«ser médico é um papel

Cf. Amour, Sagesse, Verité, op. cii.

102
sagrado. Que magnífica tarefa! Ensinar aos homens a pensar, a sentir e a agir
bem; e mostrar-lhes que a causa de todas as doenças se encontra para lá do corpo
físico» C).

POLARIDADES ASTROLóGICAS

A terapêutica dos gnósticos considera o homem na sua globalidade, na sua


totalidade. Cuidar de um homem, é portanto preocupar-se com a ressonância deste
com o seu meio ambiente.

A astrologia é portanto considerada como um excelente auxiliar da cura. Com


efeito, certas dissonâncias planetárias podem provocar enfraquecimentos
especiais do «terreno humano». Os astrólogos gnósticos crêem que as energias das
estrelas e das plantas provocam infecções no ser humano desde o seu nascimento.
Deste modo, cada pessoa caracteriza-se por uma intensidade vibratória e uma
polaridade magnética próprias. Os gnósticos não esperaram por Copérnico para
pensarem que a Terra e os outros seis planetas do nosso sistema giram à volta do
Sol. A rosa solar, rodeada de seis círculos ou órbitas, prova-o, e este motivo
figura frequentemente nos túmulos dos bogomilos. A sua ciência permitia-lhes
provavelmente utilizar as polaridades planetárias como adjuvante terapêutico.
Aliás, este método é utilizado correntemente pelos curandeiros e pelos médicos
rosa-cruz, seus sucessores. Por um lado, permite-lhes estabelecer uma correlação
com o diagnóstico, por outro lado permite-lhes ter em conta os períodos mais
favoráveis para administrar aos seus pacientes ervas ou outros remédios
apropriados. A medicina alquímica, nomeadamente com Paracelso, utiliza também a
astrologia nesse sentido. Os quatro elementos, Fogo-Água-Ar-Terra, influenciam
essas polaridades planetárias, sobretudo no que respeita aos planetas situados
no ascendente do paciente... e do curador. Porque os dois podem ter polaridades
incompatíveis, até mesmo opostas, e nesse caso, por maior que seja a boa vontade
do curandeiro, não conseguirá aliviar o sofri-

Cf. Ivanov (M.): les Deux Arbes du Paradis, op. cit.

103
mento do doente. É necessário portanto que exista uma polaridade entre os
elementos que os caracterizam astrologicamente e os seus respectivos
ascendentes: signo do Fogo com signo do Fogo, signo da Água com signo da Água,
etc. Isto calcula-se em relação a Saturno e à sexta Casa, que exprime a
tendência para as doenças adquiridas no decurso da vida do indivíduo, assim como
a força e o ritmo - ou os ciclos - da sua actividade.

Esta VI Casa indica por conseguinte tendência para a doença segundo os planetas
que a ocupam, mas pode também indicar um certo talento para a medicina ou a
cirurgia, em função do perfil geral do horóscopo de um indivíduo. Vejamos o que
os astros nos dizem a esse respeito (’):

Sol na VI Casa: Aqui as dissonâncias predispõem às doenças psíquicas e


corporais, precisadas pelo signo e pelo aspecto do Sol, e que têm repercussões
sobre o coração e a circulação. Saturno pode diminuir a vitalidade, e Marte,
Urânio e Júpiter determinar os excessos, febres ou doenças agudas.

Lua na VI Casa: aqui, as dissonâncias da Lua podem provocar doenças depressivas.

Mercúrio na VI Casa: as dissonâncias deste planeta podem dar origem a psicoses e


nevroses graves, assim regidas por Mercúrio.

Vénus na VI Casa: as dissonâncias marcam aqui a tendência para os males de rins


e para as doenças venéreas, assim como, nas mulheres, para os partos prematuros.

Marte na VI Casa: tendências para as infecções ou acidentes que terminam com uma
intervenção cirúrgica, sã o as manifestações das dissonâncias de Marte.

Júpiter na VI Casa: esta posição não é boa para a saúde durante os primeiros
anos de vida, mas, depois, a vitalidade e a saúde melhoram, dando por vezes um
grande poder de trabalho. Com Marte e Saturno, as dissonâncias de Júpiter
provocam doenças de fígado e da vesícula biliar.

Saturno na VI Casa: esta posição não é favorável nem à saúde nem ao trabalho. As
suas dissonâncias indi-

(’) Cf. Verdier (J.G.): Ce Que Disent les Astres (Paris, Stock,
1970).

104
cam uma tendência para o reumatismo, a gota e todas as doenças motivadas por
resfriamentos.

A astrologia considera que a Lua proporciona a realização de tudo aquilo que o


homem empreende. Um costume, popular na Bulgária, que deve possivelmente a sua
origem aos bogomilos, filhos dos Trácios, diz que todos os empreendimentos
importantes devem ser começados com a Lua Nova, de maneira que esta proporcione
toda a energia solar que este astro reflecte.

Cada um pode constatar que todos os medicamentos, todas as terapêuticas, são


quer estimulantes quer calmantes. Deste modo, qualquer estimulante é mais eficaz
quando se começa a tomar no Quarto Crescente e os calmantes no Quarto Minguante.
Quando se tomam calmantes entre a Lua Nova e a Lua Cheia, é necessário aumentar
progressivamente as doses, e vice-versa.

SIMBóLicA DAS CORES

Vermelho: comprimento de onda: 6200 angstrõms; as suas vibrações são as mais


lentas e esta é a cor de Marte e de Vénus. Está ligada aos órgãos genitais, aos
sentimentos mais vitais, aos prazeres, ao amor, às paixões e aos actos
inconscientes. Se o encarnado é impuro e carregado, desperta uma cor verde que
não é nem pura nem clara.

Verde: comprimento de onda: 4120 angstrõms, cor ligada ao estômago e ao fígado,


impede esses órgãos, assim como todos os outros, de eliminarem as substâncias
tóxicas.

Azul: comprimento de onda: 4750 angstrõms; cor dos pulmões, é também a da fé,
dos sentimentos religiosos. Ela implica uma respiração ampla que não permite nem
atitudes nem sentimentos egoístas e mesquinhos. É a cor da paz, da música e da
liberdade espiritual.

Amarelo: comprimento de onda: 5510 angstrõms; cor que conduz ao caminho da


prudência e da inteligência e leva por fim a adorar o Criador do Universo.

Roxo: comprimento de onda: 4230 angstrõms; esta cor corresponde às vibrações dos
comprimentos de onda mais curtos, por conseguinte os mais rápidos e os mais
espirituais. Cor divina por excelência, representa a manifestação do espírito na
paz.

105
A cabeça do homem pode ser comparada a um rádio que receba diferentes emissões,
ou, empregando uma imagem de Mil-hael Ivanov, diremos que todos os centros
nervosos são como diapasões diferentes construídos para não vibrarem senão em
ressonância com certas ondas (1).

Foi nesta base que se desenvolveu a cromoterapia, que utiliza as diferentes


cores da luz, segundo os casos a tratar.

Luz verde: sabemos que uma dependência pintada ou forrada de verde repousa e
diminui os casos de excitação febril. o verde é considerado como uma excelente
preparação para a hipnose, para a auto-sugestão; prepara para a luz azul, que
permite um sono rápido e calmo. Salientemos que encontramos estas duas cores nos
blocos operatórios.

Luz azul: provoca uma isquemia (manifestação de paragem da circulação sanguínea)


cutânea e profunda. Cor anestésica, analgésica e antiespasmódica.
Desaconselhável para os deprimidos, esta cor será benéfica para os asmáticos, e
em casos de contusão, de nevralgia e de ciática. Expostas a uma luz azul ou
violeta, o Dr. Roffo constatou que as células cancerosas não se desenvolvem...

Luz vermelha: Segundo as observações do Dr. Roffo, permite a proliferação das


células cancerosas. Excita a actividade psíquica e é muito útil para tratar as
doenças com infecções cutâneas, tais como o sarampo, varíola, eczema e
queimaduras.

Luz amarela: aumenta a tonicidade neuromuscular e é portanto recomendada para


estimular os linfáticos.

Luz branca: aumenta a tonicidade dos órgãos e pode até chegar a provocar uma
hiperemia (excesso de glóbulos vermelhos). Acelera os processos vitais.

Luz alaranjada: favorece o bom desenvolvimento dos processos vitais, consoante a


sua pureza: impura, ela desenvolve o individualismo e o orgulho, ao passo que,
muito pura, favorece a generosidade.

As cores, que nós vemos no seu aspecto físico, mostram-se ao clarividente no seu
aspecto espiritual. É por isso que, para eles, cada ser está rodeado de uma aura

C) Cf. Amour, Sa.-esse, Verité, op. cit.

106
colorida, correspondente ao estado da sua alma, e ao seu comprimento de onda
espiritual, poderemos dizer.
O facto de os Perfeitos cátaros se vestirem de azul não é certamente devido ao
acaso. Uma aura azul indica a mais alta espiritualidade. A de cor verde
manifesta citime, paixão; o cinzento-aço, o medo; o negro, o desespero; o azul-
escuro, preocupação; o vermelho-escuro, ódio; o vermelho-escarlate, cólera; o
azul-celeste, esperança; o amarelo-doirado é a cor de Cristo, e nenhum homem a
possui. A atira mais elevada à qual o homem da nossa época pode chegar é o
alaranjado.

Temos de recordar aqui que o som está na origem da cor e que quando uma nota
vibra uma certa cor deverá poder aparecer. Portanto também não é por acaso que a
pátria de Orfeu se tornou a pátria dos bogomilos, a quem nós devemos, no
Ocidente, esta ciência secreta das cores e do luz.

107
CAPITULO V

A MEDICINA ALQUIMICA

A Maurica, Guinquand, que nos mostrou o caminho das ~rolas...

A química tornou-se a ciência dos efeitos e das suas consequências. A alquimia é


a ciência das causas, e, portanto, o seu domínio de aplicação situa-se antes
daquilo que conhecemos classicamente sobre a matéria e que definiremos aqui
como: o etérico (’). Vejamos o que dizia Pierre Jean Fabre, sobre a alquimia, no
seu livro les Secrets Chymiques (Paris, 1636).

«A alquimia não é apenas uma arte ou uma ciência que ensina a transmutação
metálica, mas uma verdadeira e sólida ciência que ensina a conhecer o centro de
todas as coisas, a que em linguagem divina chamamos o Espírito da Vida.»

Conhecer o mundo é primeiro que nada conhecer-se a si mesmo. Desde a Antiguidade


egípcia até Leonardo da Vinci, para quem, no homem, «se encontra o modelo do
mundo», a tradição perpetua-se. O homem, microcosmo, não é senão o reflexo
sagrado do macrocosmo.

Assim, não saberíamos apresentar-nos como candidatos à Grande Obra alquímica sem
realizarmos primeiro em nós mesmos uma parte da Obra. É pelo estudo que o adepto
faz dos textos esotéricos, dos quais a celebérrima Tábua de Esmeralda (2) é o
primeiro, que esta etapa,

Cf. o capítulo sobre «A Medicina dos Antropósofos». A tradição atribui a Hermes


Trismegisto, o três vezes grande, a Tábua de Esmeralda, ou Tabula smaragdina,
que terá sido gravada pelo próprio deus sobre uma esmeralda. A esta obra

109
ou alquimia interior, lhe permite chegar à sua consequência, de certo modo ao
seu epifenómeno, que é a alquimia exterior, à qual o iniciado se entrega perante
o seu atanor.

O ENXOFRE, O MERCúRIO E O SAL

Para os alquimistas, o Enxofre e o Mercúrio representam as duas propriedades


opostas da matéria, que nós encontramos em toda a Natureza. O Sal representa o
meio de união destes dois princípios. Atenção: Enxofre, Mercúrio e Sal não
designam os corpos químicos do mesmo nome, mas certas qualidades e propriedades.

O Enxofre, princípio activo e masculino, representa a forma e as propriedades


activas, tais como a combustibilidade, a corrosibilidade, etc.

O Mercúrio, princípio passivo e feminino, representa a matéria e as propriedades


passivas, tais como a volatilidade, a fusibilidade, a maleabilidade, etc.

Vemos aqui como a cosmologia hermetista encontra o seu prolongamento na teoria


da matéria segundo os alquimistas. E, nesta teoria, o Sal, que permite unir o
Mercúrio e o Enxofre, pode (e é-o muitas vezes) ser comparado a este espírito
vital que faz a união do corpo e da alma.

UMA MEDICINA ENERGÉTICA E VIBRATóRIA

Alexander von Bernus (’) cita, a propósito, um curandeiro e alquimista alemão


morto nos anos trinta, Max

Juntemos, entre os tratados e obras mais célebres da literatura alquímica, as


Douze clefs, atribuídas a Basílio Valentim; o Mutus liber, ou Livro Mudo, as
Figures d'Abrahain le Juif, comentadas por Nicolau. Flamel; e o Tarot, ou Livro
de Tote, muito conhecido como suporte de adivinhação, que é uma espécie de
auxiliar de memória da filosofia da Grande Obra. (’) Alexander von Bernus (1889-
1972) encontrou-se com Rudolf Steiner em 1912. Começou os seus estudos de
medicina em
1916, mas não se submeteu aos últimos exames, que lhe dariam o direito de
exercer. A sua meta era aperfeiçoar remédios eficazes. Em 1921 fundou os
laboratórios Soluna.

110
RetschIag (’): «Os nossos conhecimentos sobre a constituição do corpo e a
estrutura das células e das mais pequenas entidades vivas tornam perfeitamente
plausível que se possa encontrar um determinado remédio, constituído por uma
energia latente e concentrada, que agisse por isso como um remédio universal
para todas as doenças. Como a força vital é uma força electromotora, esse
remédio deve ser constituído por corpos capazes de libertar uma energia
eléctrica concentrada, depois da sua dissolução nos humores do corpo humano, da
mesma forma que existem nas pilhas galvânicas certos sais cuja dissolução produz
uma corrente mais ou menos constante entre os terminais. Das inumeráveis alusões
feitas por antigos mestres herméticos deduz-se que são igualmente certos sais
que entram como materiais de base na preparação do elixir da longa vida...

«O Sal, no que respeita ao termo colectivo que engloba tudo o que se cristaliza,
é, segundo certos antigos mestres, o primeiro ser, porque toda a matéria se
deixa reduzir a uma forma salina. É a palavra de Deus tornada matéria; um sal
especial, um agente celeste, filho do divino fogo solar, une-se a uma
terrestridade passiva, para dar uma encarnação salina.

«Este sal compõe-se de uma humidade mercurial e de uma gordura sulfurosa, e as


duas essências, opostas uma à outra, formam, como o alcali e o ácido com o sal,
a trindade, a origem da vida. O sal é sempre semelhante
a si mesmo, a sua alma cristalina viva dá continuamente nascimento às mesmas
formas; ele apenas difere pelo lugar e pelas circunstâncias da sua origem.»

A medicina alquímica foge, portanto, da acção ponderal dos remédios, quer dizer,
a acção física de um remédio sobre o corpo físico do organismo. Ela prefere a
acção «por cima», uma acção directa das forças estruturantes do medicamento
sobre as próprias forças estruturantes do organismo.

(’) Cf. RetschIag: De Ia malière originelle à Vélixir-force ori---inel: le


chemin de Ia i@éritabIe pierre. O lugar que Von Bernus @tribui a este opúsculo,
com uma tiragem de apenas 333 exemplares e publicado em 1926, leva a crer que
ele é fundamental àquele que se dedique à Grande Obra.

111
Quaisquer que sejam os diferentes domínios que a medicina alquímica oculte, o
modo de acção é sempre o da energia, da luz, da vibração. Medicina vibratória,
claro, mas também medicina multidireccional.

OS SINAIS

Com efeito, a acção de etérico para etérico, ou acção «por cima», corresponde a
um estudo astrológico do sincronismo vibratório entre o remédio e o doente. Mas
isso não é suficiente. O estudo do remédio, por um lado, e o do doente, pelo
outro, são também necessários. É a este estudo que nós chamamos a «doutrina dos
sinais» (’), pela qual a medicina alquímica supõe a consciência de uma
solidariedade cosmogenética de todas as formas vivas do Universo.

Eis como Jacob Boehrne, no seu livro De Signatura Rertim, expõe esta teoria C),
base da iatroquímica (sobre a qual falaremos mais adiante): «Todo o universo
exterior, visível, com todos os seres, é uma definição ou uma imagem do mundo
interior, espiritual; tudo o que é interior - e a sua maneira de agir - possui o
mesmo carácter no exterior. Do mesmo modo que o espírito de toda a criatura
representa e revela com o seu corpo a sua constituição nativa íntima, do mesmo
modo o seu ser eterno...

Assim, tudo o que nasce no interior possui o seu sinal. A configuração superior,
assim como é superior em força no espírito da acção, também imprime muito
profundamente a sua marca no corpo; as outras configurações ligam-se-lhe, como
se vê em todas as criaturas

(’) A «doutrina dos sinais» foi desenvolvida mais amplamente por Paracelso,
pseudónimo de Teofrasto Bombast von Hohenheim, nascido em EinsiedeIn em 1493, o
qual, depois de uma vida profundamente romanesca, acabou por se fixar em Bâle,
em
1526, onde conseguiu uma cátedra na universidade. A Paracelso devem-se as
aplicações práticas da alquimia, quanto mais não fosse pela sua orientação para
o fabrico dos remédios, Morreu em Salzbourg em 1541. (’) Jacob Boehme (1575-
1624), filósofo alemão também autor de Aurora, Ia Triple vie, explana a
justificação filosófica da teoria dos sinais. É considerado um dos grandes
percursores dos metafísicos alemães.

112
vivas pela configuração do corpo, dos costumes e dos gestos; do mesmo modo nas
ressonâncias, nas vozes e nas línguas, assim como nas ervas e nas árvores, nas
pedras e nos metais; tal é a luta que dirige o poder do espírito, tal é a
configuração do corpo, e do mesmo modo da sua vontade, enquanto ferve a seiva na
vida espiritual. »

Esta doutrina não se baseia portanto, como se crê habitualmente, numa simples
analogia da cor ou da forma entre o remédio e o doente, ou o remédio e o órgão.
Assim, por exemplo, a celidónia, cuja tintura é amarela, é um remédio para a
bílis (amarela), mas a tormentilha> cuja cor é o vermelho, não é um remédio para
o sangue. Em contrapartida, sendo esta planta governada por Marte -como o ferro
no domínio universal-, trata o processo marciano do organismo: a disenteria, por
exemplo.

Esta solidariedade cosmogenética baseia-se numa correspondência astrológica.


Lembremos aqui que as primeiras indústrias humanas estiveram muitas vezes
associadas a certas posições planetárias, particularmente no que respeita às
artes do fogo (), para determinar as datas das manipulações às quais davam
lugar.

Renê Berthelot lembra, a este respeito, que não é sem motivo que no Império
Romano a palavra mathematici se tornou sinónimo de astrólogo, como tão-pouco é
por acaso que a alquimia e a astrologia estiveram constantemente associadas uma
à outra desde essa época e que foram ligadas uma à outra com a ideia de uma
relação entre o que os Gregos chamaram microcosmo e macrocosmo (’) ...

A ALQUIMIA PERANTE A DOENÇA

O alquimista concebe a doença como um desequilíbrio vibratório entre as células


do cérebro e as do organismo.

(’> Nomeadamente entre os Caldeus, que se diz terem sido os introdutores da


astrologia no Ocidente. (’) Berthelot (R.): Ia Peiisée de l'Asie et
Pastrobiologie (Paris, Payot, 1938). Note-se, a propósito, que esta tradição
sofreu um renovo no nosso tempo: a partir de 1974 a Faculdade de Vincennes criou
uma unidade de pesquisas sobre a astrologia, reservada a matemáticos.

113
O homem de coração puro comunica com o Sagrado. Portanto não é doente. Contudo,
a alquimia admite as fraquezas do homem, e daquele que tem a generosidade de
encontrar um meio para as curar. A medicina alquímíca apoia-se sobre o potencial
das forças de defesa do organismo. Neste sentido, ela é antepassada das
terapêuticas mais modernas, tais como a homeopatia e a bioterapia em geral.

A medicina alquímica é uma medicina de confiança no homem e nas suas


potencialidades de cura: é uma medicina de sabedoria. Nisso, é herdeira da
tradição de Hipócrates, segundo o qual «são as naturezas que curam a doença. A
Físis encontra sozinha o seu caminho».

Krehl, um médico alemão, definiu quanto a nós perfeitamente esta concepção da


Físis: «A Físis é uma propriedade ou faculdade do organismo de pôr em ordem as
perturbações funcionais dos seus órgãos. Se designamos essas perturbações pelo
nome de «doença», então o corpo é capaz de se curar a si mesmo devido à força da
sua Físis.» (’)

Sempre com a condição de que o alquimista - ou o médico - seja capaz de dar-lhe


a energia necessária, por intermédio de remédios portadores de «luz» ou de
vibrações positivas...

A MEDICINA ESPAGIRICA

Medicina alquímica e medicina espagírica têm sido muitas vezes confundidas. A


medicina espagírica é uma parte da medicina alqUíMica.

A espagíria é a arte de separar a matéria subtil, ou a energia, da matéria


propriamente dita. Daí o seu nome, de spao, que em grego significa «separar», e
ageiro, «parecer-se». Esta energia subtil, uma vez libertada a partir de
substâncias minerais, vegetais ou animais, pode integrar-se na própria energia
do homem.

Os remédios espagíricos são preparados por uma técnica a que chamamos


«iatroquímica», do grego iatos, que significa «médico». A iatroquímica é a
química pela

Esta ideia encontra-se nos Archidoxes de Paracelso.

114
qual os grandes médicos do século XVI e do século XVII preparam os seus
remédios.

Para conseguir obter esses remédios espagíricos, o alquimista prepara


destilações, fermentações, sublimações, digestões, coobações ou destilações
repetidas. Mas o primeiro e maior dos alquimistas continua a ser a Natureza, que
realiza todos os dias, perante os nossos olhos, essas múltiplas operações. Com
efeito, se o alquimista pode, através de pacientes manipulações, tornar
assimiláveis pelo ser humano os metais e minerais, ou ainda fazê-lo beneficiar
da «quinta-essência» dos vegetais, que faz então a planta, ao longo da sua
invisível e paciente espagíria, a que a ciência moderna chama fotossíntese,
senão tornar assimilável pelo homem a mais sublime das energias, a do sol?

Os remédios espagíricos são remédios abertos; isto significa que os processos


espagíricos os tornam altamente assimiláveis, no plano energético, pelo
organismo no qual são introduzidos.

É também esta mesma assimilação energética que a homeopatia realiza por meio de
altas diluições, quer dizer, medicamentos diluídos a um ponto tal que já não
contêm nenhuma substância no sentido físico do termo. Por outro lado, esses
remédios são fisicamente orientados, como já vimos precedentemente, o que quer
dizer que estão em correspondência cosmológica com os órgãos que são
encarregados de tratar.

Assim, a alquimia é fiel à tradição que nos faz remontar do Egipto aos modernos
antropósofos, passando pelos gnósticos. órgãos tais como o coração e os olhos
são formados pelas forças solares: as suas afecções serão portanto tratadas com
esse metal solar que é o ouro. Do mesmo modo, o sistema genital, que é
venusiano, será tratado pelo cobre, metal governado por Vénus. O sistema nervoso
mercuriano será tratado com mercúrio. Lembremos a este respeito que a medicina
clássica moderna tratava a sífilis com sais de mercúrio até à descoberta da
penicilina.

Como vemos, a doutrina dos sinais, preconizada por Jacob Boehme, marca
fortemente os remédios alquímicos. E a iatroquímica, que está longe de ser de um
manejamento fácil devido às manipulações que exige, supõe um conhecimento
profundo da astrologia.

115
OS SEGREDOS DOS ADEPTOS

Os segredos são os grandes remédios secretos dos mestres e dos adeptos. Cume
insuperável da medicina alquímica, eis o que Paracelso nos diz acerca deles no
livro V da sua obra Archidoxes, na parte intitulada «De Mysteriis arcani»:

«Eles conservam o corpo de perfeita saúde, afastam as doenças, eliminam os


humores tristes, preservam de todas as más afecções e conduzem o corpo à sua
morte predestinada.»

Para Paracelso, estes segredos são quatro: matéria primeira, pedra filosofal,
Mercurius vitae, tinctura.

Acreditou-se muitas vezes que os segredos e a sua realização não eram senão
símbolos espirituais. O que Paracelso diz da quarta tintura, por exemplo, refuta
totalmente esta ideia. Trata-se mesmo de um remédio:

«Tinctura, o quarto segredo, comporta-se como o rebis, que fabrica o ouro a


partir da prata e de outros metais: do mesmo modo, a tinctura actua sobre o
corpo; apodera-se da desordem, imperícia e incorrecção que existe nele e
transforma tudo isso no que for mais nobre, mais puro e mais duradouro.»

Mas Paracelso declara que não falou senão aos próprios alquimistas: as
possibilidades terapêuticas destes segredos não têm portanto senão uma longínqua
relação com esses remédios espagíricos de primeira ordem que formam a simples
abertura dos metais. Esses remédios, a que chamamos «segredos», não se encontram
no comércio, apesar da aparição ressonante desse termo nas etiquetas postas
outrora por alguns laboratórios.

OS BENEFíCIOS DO ANTIMóNIO

O ouro, como vimos, tem um papel primordial na medicina espagírica. O antimónio


desempenha, ao lado do metal solar, um papel não menos primordial, já que o seu
símbolo, até mesmo para os alquimistas, é o da Terra, o do nosso planeta. A
medicina antroposófica deve muito da sua inspiração à alquimia: foi com efeito
Rudolf Steiner quem levou Alexander von Bernus a interessar-se pela medicina
alquímica, e, segundo este último, existe

116
qualquer coisa no antimónio que tem uma certa afinidade com o querer humano. O
antimónio é uma formação terciária; os seus jazigos encontram-se nas zonas
congeladas de rochas primitivas (Andes, Ariege, Vendeia), rochas que foram
deslocadas por novas formações rochosas: o antimónio exprime assim um certo
rejuvenescimento do nosso planeta.

Basílio Valentim, (’) passa por ter sido o primeiro a descrever o antimónio, e
consagrou-lhe toda uma obra intitulada Char Triomphal de l'Antimoine, obra essa
que foi comentada por um rosa-cruz, no fim do século XVIII, de uma maneira
suficientemente desenvolvida para realçar «a eficácia quase universal do
antimónio», como sublinha Alexander von Bernus. Vejamos um dos seus comentários:

«O antimónio é um objecto com o qual se pode fabricar uma farmácia inteira,


porque contém um vomitivo, um purgante, um depurativo, um sudativo e um
diurético; é um aperiens e um obstruens; um solvens e um coagulans; é um
bálsamo, unguento e emplastro, in summa summarum: pode ser aplicado em todos os
estados cum maximo usu fructu. É o mestre de todas as doenças, um protector da
natureza humana; sob reserva de ser aplicado correctamente pelo médico, é dotado
de Jyirtus ubiquota.»

Paracelso interessou-se bastante por este remédio.


O dr. R. A. B. Oosterhuis(’) afirmou que Paracelso foi talvez o primeiro médico
a observar que uma afecção hepática precedia muitas vezes as doenças a que
chamava «tártricas». Entre os reumatizantes fala-se muitas vezes de
«articulações enferrujadas», como de «canalizações entártricas».

Paracelso utilizou o antimónio e os seus derivados para tratar gota e


reumatismo, e parece que com um êxito notável. Atribuiu-lhe também uma acção
depurativa e fortificante sobre o fígado.

(’) O autor das célebres Douze Clefs (impresso em 1602) teria vivido em Erfurt,
num convento de frades beneditinos, no começo do século XV. Segundo alguns
autores, é um personagem mítico. (’) O Dr. R.A.B. Oosterhuis é o autor do
apêndice que acompanha a obra de Von Bernus Alchimie et Médecine, onde expõe
algumas observações que lhe foi dado fazer utilizando preparações espagíricas de
Von Bernus.

117
]É evidente que se Basílio Valentim e Paracelso foram os primeiros a utilizar
quase sistematicamente o antimónio, este metal havia sido preconizado muitas
vezes pelos médicos egípcios e gregos e pelos médicos alquimistas árabes, depois
por Arnaldo de Vilanova e Raimundo Lúlio (’).

O uso do antimónio caiu em desuso durante o século XIX, e é a Alexander von


Bernus que devemos a sua reactualização.

Ele sublinhou, por exemplo, um dos aspectos negligenciados da medicina moderna:


os compostos orgânicos injectáveis deste metal são muito eficazes no tratamento
da doença do sono.

Tradicionalmente, o antimónio é utilizado na primeira parte de uma terapêutica


para reforçar as defesas do organismo; é talvez por essa razão que os
alquimistas medievais chamavam «pílula da eternidade» à pequena bola de
antimónio que utilizavam com fins terapêuticos.

No seu curso sobre metais, Wilhelm Pelikan (’) insistia no facto de que, «pelas
suas propriedades, o antimónio possui a capacidade de fazer passar as forças
formais estruturantes do organismo humano para o sangue». E Rudolf Steiner diz,
numa das suas conferências, que «o homem é na realidade antimónio, se pusermos
de parte tudo o que se introduziu nele do exterior».

Um médico antropósofo, o Dr. Victor Bott, explica, numa linguagem mais moderna
que a dos antigos adeptos, o papel fundamental que este metal pode desempenhar:

«O antimónio, cristalizando em finas agulhas brilhantes, possui um poder de


estruturação, sobretudo em relação às albuminas. Podemos dizer que age no
organismo à maneira do Eu, que pode, durante um certo tempo, substituir,
permitindo-lhe retemperar as suas forças [... 1. A sua combinação com a prata, a
dyskrasite,

(’) Raimundo Lúlio (1235-1313) foi cognominado «o doutor iluiiiinado». A


tradição conta que conseguiu possuir a Pedra Filosofal. Foi discípulo de um
outro célebre alquimista da Idade Média, o Dr. Arnaldo de Vilanova (1245-1313),
que contava o papa Clemente V (de Avinhão) entre os seus amigos e foi fortemente
influenciado pela Cabala. (@» O Cours sur les sept inélaux, de Wilhelm. Pelikan,
é infelizmente impossível de encontrar no mercado. Lembremos aqui de passagem
que o símbolo do pelicano significa a Pedra Filosofal.

118
é particularmente indicada para os doentes «transbordantes» tanto no psiquismo
como no físico» (’).

quando o antimónio é utilizado por mãos que já não conhecem a mensagem esotérica
e sagrada, este metal acaba por se tornar numa espécie de panaceia (inclusive
contra a histeria), panaceia muito tóxica.

O SAL,PALAVRA DE DEUS

A alquimia possui uma linguagem própria que não pode dispensar o desenvolvimento
simbólico que leva o adepto de descoberta em descoberta, quando este sabe seguir
a via da meditação sobre a Natureza e o sentido sagrado das suas leis. Assim,
diz-se, «a cozedura do Sal conduz à salvação».

Não é decerto por acaso que se oferece o pão e o sal em todas as cerimónias de
passagem, assim como o oferecemos também quando damos as boas-vindas ao hóspede
recém-chegado.

Numa obra anónima do fim do século XVIII: le Secret du Sel, le plus noble
Créature produite par Ia phis grande Bonté de Dieu dans le règne de Ia Nature,
despertou muito interesse devido a um dos seus comentários: «O Sal é extraído da
cinza, e há nele muitas virtudes escondidas.» (2)

Dizem que o Sal é a «palavra de Deus». Não é apenas uma simples alegoria. Não é
por acaso que o líquido amniótico que envolve o embrião humano é salgado como o
mar, origem da vida animada no nosso planeta. « A água total» -quer dizer, todos
os líquidos do organismo humano - representa no homem 62 % do seu peso, na
mulher 51 %, e no recém-nascido até cerca de
75 %.

Não é portanto sem motivo que o sal marinho, quando puro, não refinado, é
considerado como um excelente coadjuvante terapêutico.

(’) Bott (V.): Médecine Anthroposophique (Paris, ed. Triades,


1973).

Obra aparecida em 1770. Citada por Alexander von Bernus.

119
A ÁGUA DO MAR

Se a alquimia estudou demoradamente a utilização do orvalho na fabricação do


«ouro da milésima manhã», a utilização da água do mar procede da mesma
inspiração.

A água do mar medicinal injectável, ou plasina de Quinton -que deve o nome,


registado em 1907, ao biologista Renê Quinton, que descobriu as suas aplicações
-, salvou já numerosas vidas, sobretudo no caso de recém-nascidos.

Considerando a água do mar como o líquido de cultura da célula humana, assim


como de qualquer célula viva do mundo animal, Renê Quinton teve a ideia de o
utilizar num tratamento pré-natal das taras hereditárias, por um lado, e, por
outro, em todos os casos de atrofia, quer no sentido próprio quer no sentido
figurado, tanto na criança como no adulto.

Sabemos, por exemplo, que a diarréia pode provocar no recém-nascido uma


rapidíssima e intensa desidratação, mortal quando não é tratada.
Independentemente do emprego dos antibióticos utilizados actualmente, mas que
não existiam no tempo de Quinton, este estado necessita de uma rápida hidratação
com soro salgado, ou, melhor ainda, com plasma de Quinton, que possui, além de
soro, os preciosos oligoelementos.

Antes da guerra, designávamos com o nome de atrepsia o estado de perda profunda


do organismo que indica o começo da desidratação e constitui a última fase da
desnutrição nas crianças com menos de 4 anos. A gordura subcutânea desaparece, a
pele do rosto enruga-se de uma maneira característica, conhecida pelo nome de
«fácies Voltaire», a temperatura desce para 35º, a respiração abranda, os
músculos tornam-se rígidos.

Eis um dos primeiros casos observados (): Pedro, nascido a 27 de Janeiro de


1923, devido à perda de peso, foi mandado para o Dispensário Marítimo de Lião. A
9 de Março de 1923 pesava apenas 2 kg, com 1 mês e 10 dias: esquelético,
atrépsico puro. A criança é submetida a tratamento sem demora: 12 refeições em
24 horas, 10

(’) Cf. le Plasma de Quinton (Paris e Bordéus, Laboratoires Quinton).

120
de plasma por dia. Chega-se a um regime de 1/3 e depois
1/4 do peso em 10 refeições perfeitamente toleradas. Aos
2 meses e 25 dias, a criança tinha o dobro do peso. Recebia nesse momento 15Og
de plasma por dia, o que lhe permitia tolerar um regime superior apesar dos
calores de Setembro.

O tratamento é suspenso aos 8 meses e 2 dias; a criança pesa então 6,640 kg.
Excelente desenvolvimento sob todos os pontos de vista.

No total, este recém-nascido atrépsico aumentou


3,230 kg em três meses, enquanto que, no mesmo lapso de tempo, uma criança
normal, do mesmo sexo e da mesma idade, aumentaria apenas 2,120kg.

OS OLIGOELEMENTOS

O sal marinho contém magnésio vivo, cuja actividade é preciosa no combate aos
efeitos cancerígenos dos químicos; iodo natural, que actua sobre a tiróide sem
os mesmos perigos do obtido quimicamente; brometo, que actua sobre o sistema
nervoso sem o enfraquecer, e numerosos outros oligoelementos, que desempenham
papel fundamental de catalisadores no desenvolvimento de diversas acções
orgânicas e que, no campo preventivo, poderão evitar o recurso aos antibióticos.
Eis algumas das suas aplicações.

Ouro: actua sobre as artrites e as artroses, assim como sobre o sistema


retículo-endotelial, o que parece portanto confirmar a sua acção, preconizada
pelos médicos sagrados, sobre o coração e o sistema circulatório.

Cobre: a sua acção na fotossíntese, e portanto na formação da clorofila, traduz-


se, no homem e no animal, por um papel preponderante no fabrico da hemoglobina.
Acção sobre a anemia, as lesões do miocárdio, da pele (em especial nos casos de
furunculose e chagas infectadas), do sistema nervoso, dos intestinos.

Flúor: acção sobre o metabolismo do cálcio, daí o seu papel preventivo nas
cáries dentárias e de apoio na consolidação das fracturas.

Cobalto: a sua acção exalta as do cobre e do ferro; é especialmente recomendado


nas carências alimentares infantis e nas anemias. A sua acção microbicida
aumenta

121
o poder antibiótico da penicilina e reforça a defesa das células e dos tecidos.

Sílica: muito abundante no feto humano, a sua taxa diminui proporcionalmente com
a idade. A sílica encontra-se também em abundância nos frutos e nos cereais
completos (quer dizer, na sua casca). útil no envelheciinento dos tecidos,
arteroesclerose, etc.

Estes oligoelementos são utilizados numa outra terapêutica mais selectiva, a


oligome talo terapia e a litoterapia.

Não é sem motivo que a metaloterapia desempenhou um papel importantíssimo na


medicina alquímica, se bem que seja um erro pensarmos que a medicina alquíinica
é estritamente metálica. Não esqueçamos que ela é essencialmente vibratória, e
isto em diferentes aspectos. Desde sempre, as propriedades anti-sépticas e
cicatrizantes do sal marinho foram utilizadas em gargarejos, para tratar as
dores de garganta, as inflamações das gengivas; em compressas embebidas em água
salgada, para tratar os panarícios, os abcessos, os furúnculos, etc. Duas
colheres de café de sal marinho dissolvidas num pouco de água, misturadas com
argila em pó, formam um emplastro muito eficaz quando aplicado durante todo o
dia.

Um quilo de sal marinho para o banho de uma criança, 2 kg para o de um adulto,


ajudam a combater a fadiga física e nervosa.

OS VINTE E SEIS REMÉDIOS DE ALEXANDER VON BERNUS

Os médicos’ alemães dispõem de preparações espagíricas aperfeiçoadas por


Alexander von Bernus. São vinte e seis; o seu modo de emprego (preparações em
gotas, bálsamos, pomadas, óleos) e as indicações crónicas vêm numa brochura de
50 páginas. Estes poucos remédios permitem tratar praticamente todas as
afecções, quer malignas quer benignas.

Os médicos «alquimistas» publicaram observações impressionantes a propósito de


curas ou melhoras em doentes considerados como extremamente graves, mesmo nos
conceitos actuais: doenças nervosas (epilepsia, degenerescências neuro-
musculares, perturbações físicas), doenças hepáticas (cirroses mesmo em estado
de adian-

122
tamento), doenças digestivas (diabetes, etc.). Estas preparações têm nomes
bastante elucidativos:

Sanguisol: tem a particularidade de actuar sempre que seja necessária uma acção
sobre a circulação sanguínea.

Hepático: é o remédio específico de todas as doenças do fígado e vesícula


biliar.

Linfático: indicado no caso das doenças do sistema glandular, especialmente nas


das glândulas linfáticas e (Ia pele.

Cerebrético: indicado para as doenças do sistema nervoso central.

Epidémico: empregado em todas as doenças infecciosas e epidémicas.

Matrigen I e Matrigen II: remédios para as perturbações ginecológicas.

oftálmico: utilizado em uso externo e interno (compressas, ligaduras), como


remédio específico para todas as doenças dos olhos.

Pulmónico: em casos de doenças do sistema respiratório, inclusive a tuberculose


pulmonar e a asma.

Fabricados de acordo com as três leis da espagíria, estes remédios não


receberam, em França, a autorização necessária para que os médicos os possam
utilizar: isso não se deve ao facto de os seus componentes serem perigosos, mas
sim ao segredo que os laboratórios mantêm quanto à sua composição, segredo esse
que, aliás, levou Alexander von Bernus a perder um processo que moveu a um
laboratório por falsificação dos seus produtos.

A química oficial, com efeito, não admite a possibilidade de subliinar os sais


alcalinos, enquanto os alquimistas, para prepararem os seus remédios assim como
para avançarem no caminho da Grande Obra, realizam esta sublimação, sobretudo
com os sais de potássio, sal rnetalioruni est lapis philosophorum. Compreende-se
portanto que Alexander von Bernus tenha preferido perder o processo a revelar um
dos grandes segredos dos adeptos. Todas as dificuldades da medicina alquímica se
acumulam neste impasse em que oficialização seria sinónimo de traição.

123
CAPITULO VI

A MEDICINA DOS ANTROPóSOFOS

Aos médicos antropósofos de Ormoy... a todos os outros

A biopatologia e a fisiologia que aprendemos actualmente na Faculdade dão-nos


apenas uma resposta parcial às nossas perguntas sobre o motivo da doença no
homem. A medicina não é muitas vezes senão uma ciência de rótulos (a
semiologia), um reportório composto de três colunas: sintomas, diagnóstico,
terapêutica, e nunca a personalidade do médico e a do doente se comunicam.

De onde vens, homem doente? Qual é o teu caminho? Qual é a parte de ti que se
manifesta com a dor? Qual é o teu distúrbio? Qual é o teu Eu total? De que
desarmonia sofres? Tratar-te dos rins e do fígado não serve para nada se
ignoramos a natureza e o poder das forças que te proporcionam o sofrimento, ou a
cura.

Se bem que utilizando meios de diagnóstico e terapêuticas cada vez mais precisas
e eficazes, a medicina actual não pode responder a nenhuma destas perguntas. E
isto por uma razão muito simples: a ciência contemporânea tem demasiada
tendência para considerar o homem apenas como uma máquina um pouco mais
aperfeiçoada do que um animal ou um computador. Existem mesmo pessoas
suficientemente loucas para pensarem que as experiências animais e humanas são
equivalentes, ou para criarem modelos mecânicos ou electrónicos, a

125
fim de estudar a patologia humana por analogia com estes modelos (’).

COMO SE FORMA UM MÉDICO ANTROPóSOFO?

Mas estes pretensos cientistas (há os que, como Einstein e Broglie, por exemplo,
não acreditaram nessa dialéctica omnipotente) esqueceram-se de que o homem
possui aquilo que nenhum ser vivo possuiu antes dele: o espírito, o Eu. Graças a
este espírito, o homem vindo da Natureza é a Natureza. O homem vindo do Sol
ilumina. E o homem vindo de Deus é Deus. Assim, tudo se esclarece: o médico
compreende e aprende a seguir e a dominar essas correntes de energia no homem e
no universo, esses ritmos que ligam os humanos e os planetas. A fé dos gnósticos
está baseada no conhecimento. A gnose, ciência do homem encarado nas suas
relações com o Cosmos, responde a uma pergunta que nunca foi feita em
nenhuma Faculdade de Medicina e que, no entanto, devia ser uma pergunta
essencial: «Que é o homem? Que é que o diferencia do animal?»

A antroposofia, moderna gnose, significa etimologicamente sabedoria ou


consciência do homem, quer dizer, conhecimento do homem. A antroposofia
interessa-se pela alma do homem, pela sua evolução de acordo com a dos outros
reinos. E este conhecimento do homem é impossível de descrever se abstrairmos a
evolução universal, da qual a antropologia constitui um dos seus aspectos.

Rudolf STEINER, UM INICIADO MODERNO

Com efeito, a antroposofia deve a sua existência a um homem, Rudolf Steiner


(1861-1925). Este extraordinário

(’) Evidentemente que tais analogias são possíveis, mas com a condição de se
lhes fixarem os limites, como o fez por exemplo N. Wiener: «Quando comparo o
organismo vivo com uma (tal) máquina não quero dizer que os processos químicos,
físicos e espirituais da vida tal como a conhecemos geralmente sejam os mesmos
que nas máquinas. Isto significa simplesmente que uns e outros são exemplos de
processos antientrópicos locais, processos nos quais é possível encontrar
numerosas manifestações fora mesmo da biologia e da mecânica.» Cf. Wiener (N.):
Cybernétique el société (Paris, col. 10/18, 1962).

126
personagem (’), que agitou profundamente a sua época (Antoine Faivre (2 ) diz
que antes da guerra, em cada dois alemães, um simpatizava com as suas ideias,
até que Hitler começou a sua «caça às bruxas»), escreveu numerosos livros,
pronunciou cerca de 6000 conferências, deu origem a um movimento filosófico e
científico e, no que respeita à medicina, traçou, entre outros, o caminho de uma
terapia complementar do cancro.

Simultaneamente poeta e cientista, Rudolf Steiner é tudo o que pode ser um


perfeito humanista: geómetra, arquitecto, músico, terapeuta, dietista, agrónomo,
historiador, arqueólogo, pedagogo...

Não há um único ramo da ciência humana que ele não explore e não enriqueça com
novos dados.

Morto 14 anos antes da guerra de 1939, previu o tempo em que a humanidade


domesticaria as forças da «subnatureza», a electricidade e a radioactividade por
exemplo, e das quais se deveria precaver para não se tornar vítima delas. Tal
como HuxIey, ele previu o nosso Melhor dos Mundos, mas, mais optimista que
aquele, acha que este não é o final da humanidade.

Este ponto de ruptura de uma civilização leva ao fim de um mundo, de uma época,
mas ele prevê desde já os novos tempos. Aqueles para os quais a ciência
antroposófica prepara uma nascente de conhecimento. Mas de onde vem, em
Rudolf Steiner, esta ideia-mãe, esta capacidade de síntese entre o espírito e a
sensibilidade e que o animou até ao seu último suspiro?

Com 29 anos, em 1890, foi nomeado colaborador dos Arquivos de Goethe em Weimar:
C. J. Schroer consegue que lhe entreguem a publicação das Obras Científicas de
Goethe (’).

Durante sete anos, o jovem Steiner trabalhou sem cessar em Weimar. Deve muito a
Goethe:

«Os meus conhecimentos espirituais amadureceriam bem mais lentamente se eu não


tivesse recebido do des-

C), Cf. Steiner (R.): Une Autobiographie. (Paris, P.U.F.). (2) Cf. Faivre (A.):
l'Êsotérisme Chrétien du XVI azi XIX Siècle, in Histoire des Religions. (Paris,
Gallimard, 1972). (’) Uma das obras científicas de Goethe, à qual ele mesmo dava
uma grande importância, é o Traité des Coulers, que interessa tanto os físicos
como os esteticistas, os biólogos, os artistas e os psicólogos. (Paris, ed.
Triades, 1973).

127
tino esta tarefa goethiana. Teria podido seguir apenas as minhas experiências
espirituais e descrevê-las tal como me aparecessem. Teria sido absorvido mais
rapidamente pelo mundo espiritual. Mas não teria tido ocasião, sob a pressão de
uma luta constante, de mergulhar até ao fundo de mim mesmo [ ... 1. Durante
todo este trabalho de comentários, Goethe esteve constantemente presente no meu
espírito, como que advertindo-me, avisando-me sem cessar: “Quem avança rápido de
mais na senda espiritual pode chegar a uma experiência parcial do espírito; mas
não saberá aproveitar as riquezas que a vida tem.” » (’)

A COMUNIDADE CÓSMICA

Durante a evolução do homem, o progresso, no sentido das «possibilidades


multidisciplinares», é sinónimo de rejeição das especializações animais. Rudolf
Steiner está de acordo com os sábios modernos quando pretende que o homem não
descende do macaco, mas sim que os dois descendem de um antepassado comum e
desconhecido. Mas Steiner vai ainda mais longe quando diz que este
«antepassado», tal com o passageiro de um balão atirando o lastro pela borda
fora para não se esmagar no chão, teria rejeitado todas as substâncias, todos os
reinos - mineral, vegetal, animal -, a fim de evitar o endurecimento, a
parcialização, a especialização, e conservar em si «a chama divina» que presidiu
à criação do conjunto do Universo.

Assim, nesta visão antroposófica, o homem conservou algumas características de


cada um dos reinos, rejeitando a maior parte delas. Está portanto geneticamente
ligado a tudo o que o precedeu durante a evolução(’).

O homem pertence à comunidade cósmica, e particularmente à comunidade terrestre.


Não há existência fora desta comunidade. A ideia do microcosmo contendo o
macrocosmo universal torna-se assim realidade, passa

C) Cf. Steiner (R.): Une Autobiographie, op. cit. C) Durante a embriogénese as


células humanas tomam sucessivamente formas que lembram as dos diferentes
estados da evolução animal.

128
para o domínio do conhecimento e, por conseguinte, para o domínio da medicina.

Deste modo, não é uma medicina propriamente humana, mas sim uma medicina de todo
o Universo.

O TEATRO DA ALMA E A DOENÇA

O homem aparece-nos como um todo. A esta primeira impressão, um olhar mais


atento substitui a noção de polaridade entre, por um lado, a cabeça, e, pelo
outro, os membros e os órgãos digestivos.

No pólo da cabeça, o pólo superior, concentram-se os órgãos dos sentidos: olhos,


orelhas, etc. Aí tudo é forma, repouso: um movimento exagerado da cabeça parece-
nos anormal ou patológico, e pode ser causa de desordens, como no caso de
comoção cerebral.

Em baixo, no pólo das trocas e movimentos, as condições são totalmente


diferentes: a tendência formadora dá lugar ao movimento. Os órgãos interiores
arredondam-se, os seus contornos esfumam-se. Predomina a musculatura, com as
suas linhas semelhantes às formas de escoamento da água (’). Tudo é construído
em função do movimento.

Fígado, canais biliares, estômago e intestinos, e mesmo os ureteres, têm uma


actividade peristáltica (’) intensa e são constantemente atravessados por
correntes. Um repouso, qualquer êxtase (paralisação), põem imediatamente a vida
em perigo. Neste pólo digestivo, o homem obtém substâncias ponderais. Digerindo
os alimentos, ele liquefá-los, demole a sua estrutura. Em resumo, reafiza um
metabolismo, uma troca, um movimento. Este é acompanhado de uma grande produção
de calor. Se no pólo neuro-sensorial tudo é consciência, vigilância, percepção
do mundo exterior, no pólo metabólico-muscular encontramos uma vida vegetativa,
inconsciente, apática. Todo o crescimento da consciência nesta região é pato-

(’), Cf. Schwenk (Th.) le Cliaos Sensible (Paris, ed. Triades,


1963). (’) Diz-se das contracções que se fazem sentir de cima para baixo no
estômago e no intestino.

129
lógico e traduz-se imediatamente por espasmos e dores. A consciência desperta a
vigilância e, finalmente, o nosso pensamento (que tem como suporte o sistema
neuro-sensorial) é acompanhado de processos de degradação, feitos à custa do
nosso organismo. A nossa actividade voluntária, em contrapartida, apoia-se nas
actividades construtivas, regeneradoras do pólo dos movimentos e das trocas.

Deste modo, os antropósofos colocam frente a frente os dois extremos:

Sistema jietiro-sensorial, ou imobilidade, forma, frio, degradação,


degenerescência, vigilância, percepção, pensamento. Não há assimilação das
substâncias ponderais;

Sistema metabólico-muscular, ou movimento, calor, elaboração e regeneração,


consciência apática, sono, absorção e utilização intensa das substâncias.

Entre os dois, o sistema rítmico, situado principalmente na região torácica e


englobando os aparelhos circulatório e respiratório, equilibra a tensão que
existe entre os dois pólos ou sistemas opostos. Tudo o que em nós é sentimento
apoia-se na nossa actividade rítmica. A sabedoria popular traduz, e muito bem,
por expressões tais como «ter um grande coração» e a «garganta apertada» as
modificações importantes do ritmo respiratório ou cardíaco devidas às emoções.

No homem são, as actividades destas três partes são harmoniosas. Ele encontra no
sentimento a expressão do bom equilíbrio entre a vigília e o sono, e as suas
actividades realizam-se num determinado ritmo.

Infelizmente, na vida quotidiana a nossa atenção é solicitada continuamente;


cada passo que damos na rua apela para a nossa vigilância, enquanto os nossos
membros são tratados como parentes pobres. Tudo isto arrasta um excesso de
processos de elaboração e de regeneração. A tendência para a forma, a
vigilância, vêm ao de cima e ameaçam invadir todo o nosso organismo.

Nasce assim a fadiga, as dores diversas, os espasmos, o emagrecimento ou ainda


os distúrbios do movimento, podendo mesmo chegar à paralisia, às escleroses e
sobretudo a esse flagelo do século XX que é o cancro.

Pelo contrário, se há demasiado movimento, se as funções digestivas o arrebatam


e começam a invadir o pólo neuro-sensorial, vemos aparecer a predisposição

130
para as afecções de tipo inflamatório: furunculose, otite, infecções oculares,
algumas dores de cabeça.

A doença aparece quer seja por quebra quer por excesso de um destes processos.

O CANCRO, FLAGELO DO SÉCULO XX

Já vimos que a excessiva tensão que infligimos ao nosso sistema neuro-sensorial


(tensão provocada pelas contrariedades da vida moderna e suas tentações) pode
provocar o aparecimento de um cancro.

Para os antropósofos, existe uma profilaxia do cancro. O corpo é o templo da


alma, que deseja uma casa na qual se sinta à vontade, onde se possa exprimir o
mais livremente possível (’). A euritmia e a pedagogia -steinerianas,
profundamente abertas ao mundo dos sons e das formas, permitem ao sistema neuro-
sensorial repousar, e constituem uma excelente profilaxia. Também a dietética
desempenha um papel importante.

Se conseguíssemos de novo exprimir-nos, na totalidade do nosso Eu, com o calor e


entusiasmo da primeira juventude, então não temeríamos o cancro.

Mas, e quando já é demasiado tarde? Os antropósofos aperfeiçoaram um método que


permite despistar o cancro.

Método das cristalizações sensíveis

O Dr. Pfeiffer pôs em evidência, em 1930, as forças da vida, ou forças


formadoras, pelo método das cristalizações sensíveis (1).

(’) Esta teoria é também a do psiquiatra britânico Dr. Guirdham, que a expôs
demoradamente nas suas várias obras e em especial em Facteurs Cosmiques de Ia
Maladie, op. cit. (2) Cf. art. de F. Bessenich, «Les forces formatrices et Ia
mthode des cristallisations sensibles» na revista Triades, t. n.’ 2, Paris,
1953. E Leray (J.): «Configurations dendritiques engen drées au cours de Ia
cristallisation de solutions héterogènes», in Bulletin de Ia Société Française
de Mineralogie et de Cristallographie n.’ 93 (Paris, 1970).
Este método permite-nos obter uma imagem da cristalização que depende, por um
lado, da substância estudada e, pelo outro, dos ritmos mimerais próprios da
época. A substância estudada pode ser um extracto vegetal, animal ou humano.

O estudo das imagens da cristalização do sangue humano em soluções de sulfato de


cobre permite descobrir a fase da doença cancerosa, localizar o tumor, fixar um
prognóstico e seguir a acção da terapêutica.

A caotização: é um processo muito importante no caso do cancro. A celebérrima


experiência de A. Carre, que conseguiu fazer reproduzir indefinidamente as
células isoladas de embriões de frango, demonstra que, quando há uma supressão
das forças superiores, as forças inferiores apoderam-se do organismo: o mundo da
matéria levanta então cabeça e cria um magma informe.

REGIME DO CANCEROSO

É necessário, primeiro que tudo, estimular a respiração dos tecidos que se


asfixiam: a alimentação vegetal é portanto mais eficaz que a alimentação à base
de proteínas animais. Ela estimula a eliminação dos detritos dos tecidos
orgânicos. Os cereais devem ser torrados para abrir o caminho aos processos
calóricos. Os alimentos crus só são utilizados como complementos para estimular
as eliminações.

São aconselháveis: uvas e frutos meridionais, o chá de funclio, cominho em grão,


infusões de sabugueiro adoçadas com mel, os sumos de marmelo e torranja.

Substituir o leite por iogurte, manteiga ou leite coalhado. Evitar as


leguminosas e as couves.

Uma higiene de civilização: é importante também evitar os vegetais tratados com


adubos químicos, os alimentos enlatados e a quimioterapia, que actualmente tem
um aumento tão grande como o cancro.

O visgo dinamizado

Numa conferência pronunciada em 29 de Julho de


1924, Rudolf Steiner indicou duas maneiras de agir contra o cancro:

132
actuar no corpo astral para que as forças de estruturação cumpram de novo o seu
trabalho convenientemente. E, para agir sobre o corpo astral, é necessária uma
planta; ‘

-actuar ao nível do corpo etérico, e, para isso, utilizar uma substância animal:
Rudolf Steiner não indicou qual, e parece que ninguém na época teve a ideia de
lho perguntar.

Existe uma polaridade entre o visgo de Verão e o visgo de Inverno. Rudolf


Steiner indicou a forma de utilizar as poderosas forças astrais do visgo. Esta
preparação é chamada iscador(l). Uma quinzena de anos antes da Segunda Guerra
Mundial, preconizou a utilização de um centrifugador de um metro de diâmetro,
rodando a 12000 voltas/minuto (isso era totalmente irrealizável na época), para
«dinamizar» esta preparação, quer dizer, dar-lhe movimento, já que a dinâmica é
sinónimo das forças da vida.

Conseguiram-se resultados muito interessantes, ultrapassando todas as outras


terapêuticas do cancro, com uma preparação obtida graças a um centrifugador
rodando a 6000 voltas/minuto. O processo é ainda insuficiente para estabelecer a
comparação com uma centrifugadora de 10 000 voltas/minuto que acaba de ser posta
em serviço.

Nesta terapêutica steineriana, nada de agressões. Apenas um reequilíbrio dos


processos vitais, uma harmonização das forças actuantes da Natureza no homem. Os
cancerosos são também tratados na clínica de Arlesheirn (Suíça), e esta
terapêutica é completada aí por outras medidas que visam restabelecer o
equilíbrio entre as polaridades: euritmia, utilização gráfica das formas e das
cores, etc.

A pintura, a música e a euritmia conduzem ao reequilíbrio do Eu, e, até à época


de Rudolf Steiner, foram con-

(’) O Iscador é conhecido em França pelo nome de Viscunz Album fermentado. Este
medicamento preparado a partir do visgo (Viscum Albuin) é desprovido de
toxicidade e pode ser injectado durante anos sem inconveniente. Há numerosos
estudos farmacológicos e químicos sobre o visgo. Vester e Nienhaus descobriram
no suco fresco do visgo obtido por pressão uma estrutura particular da
composição dos aminoácidos.

133
siderados meios insuspeitos para curar o cancro A pintura estimula as funções
sensoriais e actua profundamente sobre o metabolismo, as funções glandulares e a
respiração dos tecidos orgânicos.

Na terapia artística, o paciente não é paciente, mas actor e criador: a acção


opõe-se aos seus sofrimentos.

Uma nova agricultura

Os adubos químicos podem ser vantajosamente substituídos pela estrutura


biodinâmica, processo estabelecido por Rudolf Steiner, que «apresenta uma
inovação fundamental para a agricultura, a jardinagem e a silvicultura, e
imprime-lhes uma nova orientação cujos resultados não se verão completamente
senão no futuro», diz-nos Alexander von Bernus, em Alchimie et médecine (’). Von
Bernus estabelece, a propósito disso, um paralelo com os processos alquímicos. É
interessante constatar que as associações de agricultores, alertadas pelo
empobrecimento geral das terras em todo o mundo, interessam-se cada vez mais por
este processo: por exemplo a associação «Natureza e Progresso», de Saint-
Geneviève-des-Bois. A utilização da sílica permite-nos encarar uma acção
construtiva a partir da matéria viva.

O HOMEM E AS PLANTAS

Segundo os antropósofos, a planta, na sua constituição, só tem um corpo físico e


um corpo de vida ou corpo etérico. O que, contudo, não significa que, fora
disso, a actividade da esfera astral não tenha influência sobre a

(’) Para a antroposofia, a euritmia consiste na abertura às forças cósmicas da


palavra e do som, em se tornar um mediador entre o céu e a terra e em renovar os
laços rompidos entre a natureza terrestre e a natureza espiritual do ser humano.
Os diferentes registos da curitmia são: artístico, pedagógico, terapêutico e
higiénico. Pela euritmia, o homem volta a tornar-se senhor do seu pensamento e
age sobre o seu corpo. Cf. o artigo de Ilse Horny: «I'Eurythmíe et son action
ésotérique», in revista Triades, n., 3, 1972.
Paris, Dangles, 1960.

134
planta. Esta influência pode ser até bastante forte, e daí resulta o
aparecimento do veneno em certas plantas que são medicamentos muito
característicos, como é o caso do acónito e da beladona.

Se queremos ter um conhecimento da acção terapêutica das plantas, é necessário


observar como é que elas se situam na Natureza, em relação ao reino animal e ao
homem:

-pelas raízes, a planta pode absorver as substâncias de decomposição de


desperdícios de origem animal;

-pelas folhas, elas absorvem o ar que o animal e o homem aspiram;

-pelas flores, ela atrai o insecto que a frutifica. Entrar no mundo das plantas
é renovar o contacto com o ar vivo da Natureza, com as suas florestas e os seus
prados. As preparações antroposóficas, à base de substâncias vegetais, são
geralmente feitas em doses infinitesimais e administradas quer sob a forma de
injecções, quer em xaropes ou elixires. Segundo W. Pelikan, «a totalidade dos
processos patológicos do homem tem o seu reflexo invertido a sua projecção -
no mundo das plantas medicinais»

O HOMEM E OS METAIS

A terapêutica dos metais é aplicada pelos médicos antropósofos há mais de 50


anos, segundo as indicações e investigações de Rudolf Steiner. Goethe
classificava o ser humano como «uma forma determinada em evolução durante toda a
vida». Entre «força determinada» e «Vida em evolução», entre a estruturação e a
degenerescência, aparece todo o orgânico. Podemos também inserir aqui a arte de
curar, que, para o médico antropósofo (felizmente para outros também!), é
igualizante, resolvente e equilibrante.

Como é que os sete metais actuam sobre o organismo? Vejamos, primeiro que nada,
o que nos diz um médico antropósofo, Herbert Kaufmann:

(’) Cf. Pelikan (W.): «Les forces de guérison à Pâques», in revista Triades, n.,
4, 1959-60.

135
«O verdadeiro lugar de origem dos metais é o Cosmos, ou, mais concretamente, as
forças planetárias que, durante a evolução da Terra, devido a sucessivas
condensações, engendraram os metais sob a forma pela qual nós os conhecemos. No
fundo, os metais são uns «estranhos» no mundo terrestre, e podemos considerá-los
como mensageiros do Cosmos. Eis as relações que foram estabelecidas outrora:

«O chumbo: Saturno; o estanho: Júpiter; o ferro: Marte; o ouro: Sol; o cobre:


Vénus; o mercúrio: Mercúrio; a prata: Lua.»

É por isso que o médico antropósofo leva igualmente em conta o momento espacio-
temporal da sua prescrição. A astrologia, na escolha desta terapêutica, é-lhe
inútil.

Como é que os sete metais principais actuam sobre o organismo humano?

-O chumbo, o estanho e o ferro são aparentados com a sílica; agirão mais


particularmente no sentido da forma.

-O cobre, o mercúrio e a prata são aparentados com os processos do ácido


carbónico: desenvolvem a sua acção do lado que cria a vida e a mantém.

- O ouro é a força equilibrante entre os dois grupos.

Em conclusão:

Os metais associados às substâncias vegetais são frequentemente utilizados na


medicina antroposófica. A sua acção recíproca é fortalecida, e, deste modo, os
metais presentes têm uma acção mais suave e penetram melhor no organismo,
permitindo-lhe habituar-se ao metal.

Segundo Rudolf Steiner, «o temperamento equilibra o eterno com o “passageiro” ».


No temporal, o fluxo da hereditariedade esgota-se; no sobrenatural, a
individualidade actua. Estes pensamentos são o leitmotiv do trabalho médico dos
antropósofos.

O ser humano deve a sua postura erecta, a sua atenção ao mundo que o rodeia e a
conduta da sua vida às forças dos planetas supra-solares, assim como as forças
para formar e elevar o corpo. Deve aos planetas subsolares a formação de
substância, o crescimento e a reprodução e,

136
com eles, a criatividade artística, a alegria e a vivacidade, o «prazer de
imaginar».

DIETÉTICA ANTROPOSÓFICA

Nos tempos mais recuados, as regras da alimentação eram apanágio dos chefes
espirituais das populações e, mais tarde, das religiões. Depois os homens
passaram a conduzir-se apenas pelo instinto, e finalmente perderam também esse
instinto.

Para os antropósofos, «a alimentação não pode senão ajudar-nos a atingir um


certo estádio de desenvolvimento; ela nunca poderá substituir o trabalho
espiritual interior. O homem de hoje deve poder -quando for necessário - digerir
tudo e transformá-lo em forças. Aquele que quer generalizar uma determinada
forma de se alimentar, porque ela se revelou eficaz em circunstâncias difíceis,
não é seguramente uma fonte de alegria para os que o rodeiam».

As proteínas: o consumo de proteínas, nos Ocidentais, é considerado excessivo


pelos fisiologistas modernos, porque estas são assimiladas em pequena
quantidade. Além disso, são tóxicas e podem determinar um enfraquecimento das
funções orgânicas, seguido, a maior ou menor prazo, de um enfraquecimento das
faculdades psíquicas e espirituais. Daí vêm: as coagulações, as litíases, a
gota, as escleroses e, no plano psíquico, um humor instável passando da apatia à
irritação.

A alimentação rica em proteínas mais sãs provém do reino vegetal: pão de


centeio, frutos oleaginosos (amêndoas, avelãs, etc.), leguminosas, tais como as
lentilhas, ervilhas, favas. Mas estas últimas não em demasia, porque pode
seguir-se-lhes uma apatia da consciência.

O leite, que actualmente está em primeiro lugar no plano da alimentação


proteica, representa ao mais alto grau uma substância aparentada com o homem. É
a alimentação escolhida para o recém-nascido e para a criança, porque é fácil de
digerir.

As crenças antigas diziam que um homem que se alimente só de leite adquire a


faculdade de curar os seus

137
semelhantes; o leite leva o homem à terra e dá-lhe toda a experiência da
humanidade.

A carne. As proteínas animais representam o alimento de mais fácil digestão,


mas, com uma alimentação carnívora, o corpo sente-se carregado com todo o peso
terrestre. Este alimento exalta os afectos e as paixões. Acorrenta à Terra.

O mel, ligado, dizem, ao desenvolvimento futuro da humanidade como o leite o


está ao passado, ajuda a envelhecer com sabedoria e dignidade.

As batatas. São proscritas por todos os regimes de emagrecimento: demasiadas


calorias, demasiados hidratos de carbono. Mas sabiam que o homem que se alimente
apenas de batatas enfraquece e deixa de poder trabalhar convenientemente? E,
quando essas perturbações se perpetuam de geração em geração, como acontece
actualmente, é necessário reagir para evitar a degenerescência. As crianças que
comem muitas vezes batatas tornam-se distraídas, esquecidas, desatentas,
adormecidas. Pode-se remediar isso suprimindo primeiro as batatas, de pesada
digestão, e dando-lhes legumes, frutos, especiarias: cominhos, rábanos
silvestres, tomilho.

O tomate. Desde que se espalhou a ideia de que ele’ é rico em vitaminas, tornou-
se um alimento muito popular. Os jardineiros sabem que cresce sobre os seus
próprios detritos: as suas forças formadoras são «pululantes», desorganizadas
como o cancro, e é por isso que é formalmente desaconselhado às pessoas
predispostas ao cancro. É uma planta degenerada.

ALGUNS REGIMES PARA OS REUMÁTICOS

Uma alimentação excessivamente vegetariana que estimulará as funções calóricas e


excretoras: o açúcar será tomado sob a forma de mel ou de caramelo.

Reumatismo inflamatório agudo: a circulação e a eliminação serão activadas


por frutos, sumos de frutos e chás de flores. Tomar leite acidificado,
iogurte, de preferência ao leite.

Reumatismo esclerosante: é necessário estimular primeiramente todos os processos


calóricos por meio de decocções de flores de tília e de sabugueiro, tomadas
quentes,

138
sopas de cereais, pratos à base de aveia e especiarias quentes, como o funcho,
os cominhos, e o anis.

Reumatismo deformante: esta forma de reumatismo ataca os ossos e as cartilagens:


é necessário portanto apelar para as forças estruturadoras, dando-lhes raízes
branquiadas (aipo, cenoura, raízes de salsa) e reforçar o organismo do Eu com a
ajuda de doces e de uma alimentação vegetariana variada. Evitar o sal, que pode
dar origem a novos focos inflamatórios, e o álcool, que forma no sangue uma
espécie de anti-Eu.

A ANTROPOSOFIA, MEDICINA E SABEDORIA DO FUTURO?

O cancro, essa terrível doença, é talvez a sombra que projecta a grande


espiritualidade da civilização futura. Uma espécie de preparativo em relação ao
futuro: curar esta doença, é encontrar forças para um renascimento.

A doença faz parte da existência humana. Não basta vencê-la, o que parece ser o
único fim da nossa sociedade industrial e tecnocrática. É preciso também
utilizá-la para compreender qual é a verdadeira imagem do ser humano.

Desde o começo da sua pesquisa que Rudolf Steiner afirmou: «A nossa época não
tem de criar de novo uma antiga sabedoria, mas sim uma nova sabedoria que seja
capaz não apenas de remontar ao passado, mas também de agir como uma profecia,
como um apocalipse, em relação ao futuro.»

A antroposofia e a sua medicina não procuram aspirar o pó dos móveis. Gnose


moderna, a sua pretensão é permitir ao homem reencontrar a alma, a sua
espiritualidade, por meio de um grande alargamento dos seus conhecimentos em
todos os domínios. Só então nascerá a alegria.

Eu quereria inflamar todos os homens


com o espírito do Cosmos, para que se tornassem cliamas e do seu seifizessem
brotar o fogo...

Os oitiros, quereriam nas águas do mundo apagar as chamas, -


para que tudo apodrecesse e estagnasse em si mesmo.

139
ó alegria, se a chama humana despertar lá onde ela ainda dorme! ó dor anzarga,
se o ser humano estiver acorrentado quando quiser avançar!

Poema encontrado, depois da morte de Rudolf Steiner, num bloco-notas.

O HOMEM INVISÍVEL

O homem invisível é constituído por forças características de cada um dos reinos


que o precederam, e que ele rejeitou durante a sua evolução.

O reino animal obedece às leis físico-químicas, das quais faz parte a lei da
gravitação universal. As reacções físico-químicas no seio do mundo universal,
traduzindo-se por uma libertação de energia, terminam sempre num nível mais
baixo, num processo de morte.

O reino vegetal, pelo contrário, luta pela essência contra a entropia universal,
ou tendência caótica do mundo físico. Sublinhemos aqui que a antroposofia
determina o papel do mundo físico, enquanto que, para a ciência clássica
moderna, este fenómeno é universal.

As forças que dirigem o crescimento, a excreção, a regeneração e, de um modo


geral, o processo vegetal, são designadas por Rudolf Steiner por forças etéricas
ou forças modelantes.

O reino animal: às forças que caracterizam o mundo físico e às do reino vegetal


(forças etéricas ou modelantes), o reino animal acrescenta ainda as do psiquismo
(chamadas forças astrais em antroposofia). Estas últimas podem ser
caracterizadas por um processo de interiorização conferindo a sensibilidade, e
de exteriorização permitindo que o animal se exprima-pelo movimento, por
exemplo. Também o inslinto, tal com os automatismos adquiridos, são aspecios
desse psiquismo que se poderá resumir em duas palavras: simpatia e antipatia. É
o fenómeno da atracção/repulsão ou, ainda, segundo o Dr. Bott, uma espécie de
respiração virtual com o mundo exterior (1).

(’) Cf. Bott (V.): Médecine Aiztltroposopliiqtie (Paris, ed. Triades, 1973).

140
Tal como há uma oposição entre o físico e o etérico, também se produz uma
oposição fundamental entre o etérico e o astral: quanto mais evoluído for o
animal, menores serão as suas forças etéricas e as suas possibilidades de cura e
regeneração.

Isso não acontece nem com os mamíferos nein com o homem.

O reino humano: a posição de pé, libertando no homem «o gesto e a palavra»,


segundo a expressão do grande antropólogo André Leroi-Gourhan (1), caracteriza a
raça humana.

Esta estrutura da posição de pé diferencia o homem dos outros reinos, e alarga-


lhe a visão. É o começo da liberdade: o homem pode recusar o instinto ou o
impulso das forças astrais.

Rudolf Steiner dá-nos uma imagem do homem: consideremos o seu organismo como uma
casa. O locatário dessa casa é o Eu, ou «espírito humano». É ele que nos dá a
escolher entre o manter ou não essa casa.

Existe também um certo ambiente nessa casa, uma certa sensibilidade, uma certa
animação-são os produtos do equilíbrio: interiorização/exteriorização,
simpatia/antipatia ou atracção/repulsão. Este equilíbrio é devido à actividade
do corpo astral; por outras palavras, ao psiquismo: são as forças estruturantes.

Foi um arquitecto quem concebeu os planos desta casa que ele continuará sempre a
renovar para que ela seja funcional. Este arquitecto é constituído pela
actividade do corpo etérico, ou corpo de vida: são as forças modelantes.

AS PLANTAS QUE CURAM

O rosmaninho, planta típica da família das labiadas, que reúnem em si o


princípio do calor cósmico, que envolve a crosta terrestre, e aquele que lhe é
diametralmente oposto, o princípio da força terrestre, que, submetendo as
plantas às leis arquitecturais regulares, as faz assemelharem-se aos cristais.

(’) Cf. Leroi-Gourhan (A.): le Geste et Ia Parole (Paris, A. Michel, 1964).

141
Actua como tónico estimulando e aquecendo o organismo humano. Rudolf Steiner
aconselha-o no tratamento dos diabetes, para combater a fadiga e a depressão
nervosa dos esgotamentos intelectuais. Os banhos quentes à base de essência de
rosmaninho são aconselháveis. Nesta família de estimulantes entram: marroio,
alfavaca-de-cobra, orégão, manjerona, serpão, tomilho, alfazema, salva,
brissopo, segurelha.

O espinafre e a beterraba selvagem, da família dos salsoláceos (que gostam de


solos salgados, suportando o sal marinho que eles contêm por vezes em
quantidades surpreendentes), combatem muito eficazmente a anemia perniciosa,
devido ao seu alto teor em ferro, em sapom .na e vitaminas. A salicórnia, que
encontramos na Camarga, é tão salgada que pode substituir o sal de cozinha.

A capsela ou bolsa-do-pastor, erva má dos jardins, da família das crticíferas


(mostarda dos sinapisnios, rãbano rosa e negro, rábano selvagem, agrião), é uma
planta-caule: daí a sua tendência vertical tão acentuada, a redução da matéria,
a secagem e as suas indicações por lei do contraste (extraordinariamente
mineralizada: sódio, óxido de ferro, fósforo, sílica, potássio e até zinco); é
uni excelente remédio contra a esclerose e os cálculos nefríticos. Utiliza-se
como hemostático nas hemorragias pulmonares e uterinas.

As papaveráceas, que possuem látex, prefiguram o sistema circulatório sanguíneo,


assim como o leite dos animais.

Eis o que nos diz W. Pelikan acerca da dormideira, quer dizer, do ópio:

«Tais vegetais tendem, sob certos aspectos, a fugir da existência terrestre


actual e a regressar aos antigos estados lemurianos (eles próprios sã o também
repetições da antiga vida lunar).

«O homem que os utiliza como narcóticos vê apagarem-se as percepções sensoriais


e ressurgir a antiga consciência figurada, que ele possuía “” quando ainda se
agarrava aos seios da Natureza”. O ópio extingue todo o sofrimento e tira aos
membros a capacidade de movimento. Mas a verdadeira sabedoria, na qual o homem
encontra a sua própria dignidade, é a da “dor cristalizada-”. E é na natureza
voluntariosa dos membros que se

142
despertam as forças criadoras do futuro [ ... ]. As poderosas virtudes do suco
da dormideira podem ser úteis ao médico, mas não devem nunca ser empregues pelos
homens, ávidos de prazer, para uma evasão corruptora longe da condição
terrestre.»

A mandrágora, da família das solenáceas, tem má reputação: segundo uma lenda


alemã, cresce debaixo da forca dos enforcados, a partir do sémen humano, e,
antes de a arrancar, «é preciso tapar os ouvidos com cera para não ouvir os seus
gritos horrorosos», diz-nos Shakespeare. A mandrágora é quase toda raiz. Como o
ginseng, que se encontra na China e da qual é parente, ela é utilizada no
fabrico de filtros de amor e fecundidade. Durante muito tempo acreditou-se que
tornava as pessoas invisíveis. Com efeito, é um anestésico poderoso, conhecido
pelos cirurgiões da Antiguidade e da Idade Média. Rudolf Sleiner atribui-lhe um
outro papel: contra certas formas de reumatismo e gota

Plantas solares: os compostos

A maravilha bastarda trata as chagas infectadas. Uma receita simples: deixar


macerar durante cinco a sete semanas, no mínimo, cinco a sete cabeças de
maravilha bastarda, em meio litro de soro fisiológico: substitui vantajosamente
o álcool a 90º.

A arnica só cresce nos terrenos siliciosos; reúne um grande número de


substâncias medicinais muito poderosas. É utilizada em certos tratamentos do
sistema nervoso e da coluna vertebral.

o absinto, em doses razoáveis, combate a falta de apetite, a dispepsia, favorece


a excreção da bílis e a formação do sangue.

O dente-de-leão, ou taraxaco, é útil nas curas de Primavera: favorece a secreção


das urinas, e dissipa a obsírução do fígado. Pode-se usá-lo em cura de
emagrecimento. É um excelente tónico comido em salada, e é também indicado por
Rudolf Steiner para dinamizar o estrume na agricultura biodinâmica.

(’) As patogéneses da mandrágora foram feitas por Mezger em 1951 e Raezide em


1963-1964, e publicadas pelo Dr. Julian, in Matière Médicale d'Homéopathye
(Paris, Peyroimet, 1971).

143
A dróSERA (OU ORVALHINHA), PLANTA CARNIVORA

A drósera é uma planta muito pequena, carnívora, que se alimenta de detritos


animais e humanos desde que eles já tenham atingido um estado de decomposição
igual ao estrume, em que as formas e as funções de um outro reino se encontram
anormalmente presentes. Apesar disso, não foge à organização própria das
plantas. Isto deve também chamar a nossa atenção para a patologia no homem, que
se explica pela presença de relações anormais entre os componentes sensíveis e
supra-sensíveis da sua natureza humana.

Esta planta tem raízes insignificantes e o que está na sua natureza de raízes
perde-se em parte nas folhas, cobertas de pêlos vermelhos na ponta dos quais
cintilam gotinhas semelhantes a gotas de orvalho. No centro, flores brancas
muito pequenas. A sua propriedade de atrair os insectos devido à cor penetra, se
assim se pode dizer, no domínio da folha, que é normalmente vermelha. As folhas
representam o essencial da planta; as suas urnas vegetais fecham-se sobre o
insecto e há nisso mais que um simples levantamento mecânico. Verifica-se a
presença de enzimas proteolíticos muito activos que levam à destruição tanto de
um insecto vivo como de um pedaço de carne, enquanto há uma rejeição bastante
rápida de qualquer substância mineral quando posta em contacto com elas.

Uma terapêutica da asma e da tosse

Quando os pulmões são o centro da actividade anormal do asiral em relação ao


etérico, nós tornamo-nos hipersensíveis e reagimos por uma hipersecreção das
mocusidades: pode-se declarar a tosse convulsa, seguida da asma.

No homem atingido, o médico antropósofo introduz a caricatura vegetal do que se


passa nele: a esfera qualitativa da drósera sofre uma inversão, passando pelo
caminho da homeopatização das nossas substâncias.

Nas experiências homeopáticas, a drósera está indicada nas cãibras, declaradas,


segundo os casos, por sintomas muito diversos: contracções espasmódicas, dor

144
geral das contusões, sensação de leito muito duro, sensação de dor no estômago,
cãibra e endurecimento dos dedos ao agarrar uni objecto, soluços, tosse
convulsa, dor de garganta.

Mas, se olharmos para esta planta tal com o faz um médico antropósofo, veremos
que a flor é caracterizada, além da sua capacidade de atrair os insectos, pela
sua astralidade. Astralidade essa que recai já nas possibilidades da folha. Esta
constitui a zona respiratória da planta, cujo funcionamento é o inverso da zona
respiratória do homem.

A drósera tem a capacidade de se apoderar de uma substância viva modelada pela


astralidade do animal. Assim, a drósera pode ser utilizada em alta diluição e
dinamização nas pessoas cuja vida vegetativa se encontre transtornada, como que
paralisada pelo domínio psíquico. Podemos assim reduzir e até fazer desaparecer
o mal-estar respiratório de que essas pessoas sofrem habitualmente. Ao mesmo
tempo, obtém-se a normalização do ritmo verbal.

A medicina antroposófica permite-nos abordar as plantas medicinais de uma forma


totalmente diferente.

AS PREPARAÇõES ANTROPOSóFICAS NO LABORATóRIO

Laboratórios situados na Suíça, na Alemanha e em França, e que têm o nome da


deusa celta da saúde, fabricam um determinado número de produtos cujo modo de
preparação e conservação segue escrupulosamente as indicações de Rudolf Steiner.

É fácil encontrá-los nas farmácias, e alguns até nas lojas de produtos


dietéticos.

Tónico de espinheiro amarelo ou hippophaé: o espinheiro falso, o espinheiro


amarelo, cresce nas margens das ribeiras dos vales ensolarados dos Alpes. Esta
planta tem necessidade de muita luz, mas evita os solos demasiado ricos. A baga
do espinheiro é, na Europa, o fruto mais rico em vitamina C (cerca de 2000 mg
%).

O processo Weleda permite conservar intacto no seu meio natural a vitamina C. O


hippophaé conserva todas as qualidades do sumo desse fruto e é acrescentado com
suco de cana.

145
Indicações: coadjuvante do tratamento da gripe. Convalescença depois da gripe.
Casos de astenia geral. Sinais de fadiga, esgotamento físico e intelectual.
Senilidade.

Elixir de bétula: esta árvore é caracterizada por uma considerável corrente de


seiva. A casca possui uma grande quantidade de substância salina e forma-se nas
suas folhas uma albumina particularmente pura e leve. As folhas tratadas dão o
elixir de bétula.

Indicações: actua sobre o metabolismo, estimula os líquidos do organismo,


arrastando assim os detritos que se formam nesta zona do metabolismo, e fá-los
desaparecer. É aconselhada como diurética e, portanto, nas curas de
emagrecimento.

Os laboratórios antroposóficos propõem também toda uma gama de produtos


cosméticos, naturais e de uma grande eficácia: produtos à base da calendula
(maravilha bastarda) para os recém-nascidos, diversos leites de beleza
(emulsões) para banhos, essências (rosmaninho, alfazema, abeto, castanha-da-
índia), cremes de beleza e conservação da pele, etc.

OS METAIS

O chumbo: não existe na qualidade de substância no organismo dos seres vivos


(excepto em casos de intoxicação externa) mas como processo: estrutura a
impregnação de sais, sobretudo nos elementos mais duros (sendo ele um metal
macio), nos ossos, e protege o que morre por degradação.

Os glóbulos vermelhos criam-se no elemento mais duro, os ossos, e morrem no


elemento mais macio, o baço, que é o órgão correspondente ao chumbo. O processo
do chumbo penetra directamente no domínio neuro-sensorial: a formação dos órgãos
dos sentidos e o seu prolongamento, os nervos, são aparentados com o chumbo.

O chumbo e o mel: na 12 a diluição decimal homeopática, o chumbo triturado e


preparado com mel é um excelente remédio da esclerose vascular, sobretudo da
cerebral, e de todos os sintomas dela dependentes: vertigens, perda de memória,
endurecimento muscular (hipertonia), concentração em si mesmo. Esta trituração

146
de chumbo e de mel permite ao organismo limitar aos órgãos apropriados os
processos de desconstrução. É um remédio preventivo da esclerose cerebral, para
o qual não há, que saibamos, nenhum equivalente na farmacopeia clássica.

Este remédio é utilizado em injecções subcutâneas ou intramusculares, nos casos


de esclerose vascular declarada.

Associa-se também muitas vezes com injecções de casca de bétula a 1 % e de


arnica na 20.’ diluição decimal, juntamente com elixir de bétula e gotas de
beladona, antes das refeições.

O estanho: Este metal pulveriza-se com o frio. Com ele, fabricam-se louças,
sinos, estátuas: ele contém e revela o que contém. Ligado a Júpiter, este metal
tem no organismo uma força plástica, particularmente ao nível das articulações.

Em baixas diluições, actua sobre o processo de copidensação do organismo. É o


metal da cirrose do fígado e, sobretudo, da artrose.

Em diluições mais elevadas, pelo contrário, ajuda à reabsorção dos líquidos. É


aconselhável nos casos de meningite, hidrocefalia, bronquite, e em todos os
casos em que há formação e estagnação de um líquido no organismo: rinites,
sinusites, hepatites e, sobretudo, artroses deformantes com derramamento nas
articulações.

O estanho é também usado para as doenças da boca, quer em injecções quer sob a
forma de unguento a O,1 %.

A medicina antroposófica utiliza bastante os unguentos que permitem obter uma


«acção retardadora» localizada num ponto preciso do corpo.

O ferro: Serve para fabricar comboios, carris, betão-armado, pontes, gruas, etc.
- que simbolizam, todos eles, o domínio do homem sobre o mundo visível -, os
utensílios que concretizam a sua acção e, outrora, o gládio e a espada, símbolos
da coragem. No soro humano, encontram-se, em média, 100 g de ferro por
mililitro.

Ligado a Marte, é o metal da encarnação. Torna as pessoas agressivas e a sua


carência provoca a anemia, sobretudo na mulher, que fica pálida, fatigada, sem
apetite, sujeita a vertigens, numa palavra, «desencarnada».

É um regulador das forças da gravidade e da levitação. O ferro dá actividade,


energia, e dissipa a angústia.

147
O Dr. Oppert conta que no fim da última guerra, quando escasseavam os
medicamentos, algumas ampolas de ferro bastavam-lhe para restabelecer as pessoas
completamente extenuadas: «Isso não tem nada de extraordinário», diz ele,
«porque trabalhávamos então com forças e não com quantidades.»

As massagens da zona do fígado com pomada de ferro, depois das doenças


infecciosas das vias biliares, são extraordinariamente eficazes.

Acrescentemos que o melhor período para o organismo absorver o ferro coincide


com o São Miguel, período durante o qual podemos observar o máximo de estrelas
cadentes, portanto meteoritos, ou seja, o ferro caindo sobre a Terra.

O ouro. É tão pesado que parece completamente eslranho a tudo o que existe sobre
a Terra. Sabemos que um grama de ouro pode estender-se num fio de 1 kni de
comprimento. São necessárias 20000 lamelas de ouro para conseguir obter 1cm de
espessura. A lamela de ouro é transparente e verde. o ouro possui as forças da
luz escondidas. Contém os contrastes vividos pelos metais.

È o metal central. O metal precioso: é o centro das preocupações humanas, tanto


no pior (moeda) como o melhor (a arte). Reúne a esfera de acção qualitativa dos
metais supersolares: chumbo, estanho, ferro, e a dos metais subsolares: cobre,
mercúrio, prata.

Actua sobre o coração e a circulação., assim como sobre a pulsação cardíaca, que
em medicina antroposófica é considerada como a consequência e não a causa da
circulação sanguínea. Harmonizando o corpo e a alma, é indicado em alias
diluições aos doentes em que o pólo metabólico predomina ao nível do coração:
inflamação dos tecidos do coração, perda de ritmo cardíaco ou insuficiência
cardíaca, angina de peito, enfarte, palpitações. É também o metal indicado para
os melancólicos com ideias suicidas. Associado ao ferro, à sílica e ao fosfato
de potássio, cura a neurastenia. Cognominam-no de «o café homeopático», por
brincadeira, claro, porque, ao contrário do café, o ouro é um tónico cardíaco,
um re,,,idador: o que não acontece com o café.

O cobre. É utilizado para cobrir alguns tectos (os da Opera, por exemplo):
protecção. Para fabricar os fios

148
eléctricos (telefone): conexão. Os passos de rosca das torneiras, por exemplo,
são desta matéria: a adaptação. É um metal amável que o homem utiliza para
juntar o que sem ele ficaria desunido.

No soro humano, encontram-se em média 100 g de cobre; um pouco mais na mulher


que no homem.

Este metal ligado a Vénus, aos rins, ao plexo solar e aos processos de digestão
do intestino delgado, é prescrito em casos de espasmos, de asma, de tosse
convulsa, cólicas gastro-intestinais, ou ainda cãibras, e em todos os casos em
que a actividade neuro-sensorial não se liga bem com os processos metabólicos:

- activa a circulação venosa;


- associado com arsénico, é indicado nas descidas incompletas dos testículos nas
crianças ou no caso de um desenvolvimento incompleto dos órgãos genitais
femininos;

- associado ao carbono, actua na úlcera do duodeno;


- o sulfato de cobre, em diluição homeopática evidentemente, acalma as dores de
barriga das crianças em período agudo de crescimento. No domínio físico, o cobre
está ligado à comunicabilidade: prescrito sob a forma de Cuprum per Chamomillan
a O,1 % [quer dizer, camomila criada durante três anos numa terra enriquecida
com cobre (’)], trata a esquizofrenia.

O mercúrio. Ligado a Mercúrio, é o metal dos termómetros, barómetros,


dinamómetros e lâmpadas: o revelador.

No mercúrio, as forças da luz e da gravidade equilibram-se. É o metal da mão, do


jogo, do riso, do comércio.

Continua entre o estado de Sal e o de Sulfur dos alquimistas. Este metal domina
todos os processos glandulares da formação das células dos órgãos do metabolismo
e do sistema linfático; é o remédio indicado para:

-os processos inflamatórios da parótida, da língua com secreção de saliva; as


inflamações da mucosa intes-

(’) A medicina antroposófica utiliza os metais vegetalizados, quer dizer,


vegetais plantados em terras enriquecidas com um metal específico e de acordo
com esse metal, como os homeopatas utilizam as altas diluições de metais. Trata-
se, de certo modo, de uma «abertura» (no sentido alquímico), do metal que torna
este último mais assimilável pelo organismo.

149
tinal; os espasmos e as diarreias, as transpirações abundantes;

-os estados infecciosos crónicos dos brônquios, dos pulmões, da traqueia,


reagem bem ao cinábrio, que é o sulfureto natural de mercúrio;

- as hepatites com proliferação e endurecimento do fígado;

- as inflamações purulentas da esfera ginecológica, a leucorreia e as descidas


dos órgãos; _ no domínio físico, o mercúrio age como as asas de Hermes: alivia
o psiquismo dos obcecados, afastados das raízes do jogo e dos risos das
crianças.

A prata. Ligada à Lua, age sobre as forças de reprodução tal como a Lua actua
sobre o ciclo genital. É por isso que se utiliza nos:

-processos de envelhecimento permaturo, em alta diluição;


-insuficiências de estruturação do organismo, como adiposidade demasiado mole,
muito esponjosa, muito pálida, em alta diluição.

A pele é ao mesmo tempo o órgão e o processo da prata: ela ‘fotografa os efeitos


do Sol e as influências do mundo ambiente, como os sais de prata sobre a placa
fotográfica;

-a prata cura o sonambulismo;


- a prata e o fósforo, alternados com as fases da Lua, permitem curar as
perturbações do carácter e as insónias das crianças;

- em relação ao sistema genital feminino (como a Lua!), é de uma eficácia


prodigiosa em todas as infecções, e muitas vezes tão boa e tão rápida como os
antibióticos, sem ter os seus inconvenientes. Utiliza-se nas intrites, nas
ovarites, nos quistos infectados do aparelho genital feminino, nas vaginites,
etc.

É interessante constatar que, à medida que os fios de prata vão embranquecendo


os cabelos, também a vitalidade sexual se vai extinguindo.

150
CAPITULO VII

O IAJURVÉDICO OU A MEDICINA DOS VEDAS

Ao nosso amigo Lawrence Durreli, pêndita Irlandês nascido ao pé do Himaiala

Se o aspecto da Índia mudou consideravelmente ao longo deste último quarto de


século, não é menos verdade que, no campo e no seio dessas famílias que pouco
mudaram, o iajurvédico, ou medicina dos Vedas, continua a ser praticado. mesmo
ensinado oficialmente nas faculdades e nos hospitais (’) especiais (entre os
quais alguns muito luxuosos) em Benares, Calcutá, Madrasta, Bombaim, Deli,
Hardwar, Patna, etc. Como em todas as faculdades, também nessas se fazem exames,
para obter finalmente um bonito pergaminho, mas o facto de se concederem
diplomas não significa que seja interdito às pessoas não diplomadas praticar
esta arte e esta ciência. O espírito indiano permite ainda deixar viver
diplomados e não diplomados sem criar nenhum monopólio.

Tentar -explicar em algumas páginas esta atitude mental seria vão, simplista e
superficial. Digamos pelo menos, para compreender a própria essência desta
medicina, que ela pertence a uma cultura em que o domínio religioso é ilimitado,
englobando até as prescrições relativas à vida quotidiana, os tabus alimentares,
as ofertas a fazer aos brâmanes e até mesmo as observações médi-

(’) Em Bombaim, por exemplo, o pândita Shiv Sherma insiste para que os doentes
sejam hospitalizados e mantidos sob observação durante um mínimo de três ou
quatro meses.
cas e as prescrições terapêuticas. O vedismo é uma medicina viva, quotidiana e
sempre contemporânea.

Na visão do mundo que é própria dos hindus, cada um faz parte de um todo (’). A
diversidade é apenas uma das vias para a unicidade fundamental dos seres e das
coisas. E quase todos os seres e coisas possuem uma força mágica que lhes é
específica, inerente à sua natureza.

A índia é um lirismo carnal, uma poesia mágica no próprio seio da maior miséria,
graças a esta perpétua dinâmica da imaginação metafísica. Mas é também uma
curiosa tendência para a sistematização. E ambos, inseridos um no outro sobre um
fundo de grande mobilidade e praticamente intraduzível na nossa linguagem
demasiado analítica, fazem que uma vertigem nos assalte diante de tantas seitas
religiosas, tantas variantes introduzidas, uma a uma, pelo vedismo, pelo
hinduísmo, pelo budismo.

«A filosofia da índia é uma verdadeira seiva, em que é difícil distinguir os


cipós parasitas das árvores que os sustentam e onde o arroteamento mal começou.»
(1) Isto explica que nenhum tratado de medicina védica tenha sido publicado até
hoje em França, pelo menos que seja do nosso conhecimento (’).

UMA MEDICINA INICIáTICA

Existem duas formas de explicar o termo Iajurvédico, que poderia ser


singelamente traduzido por «a medicina dos Vedas». Contudo, etimologicamente,
trata-se antes de um «tratado de biologia universal concernente à espécie
humana». Em sânscrito, vid, vedere, significa «ver, conhecer», e iaitir, «a
vida». Este material médico usual não é limitado apenas aos homens: interessa-se
pelo seu

(’) Cf. Fouchet (M.-P.): l'Art Ainouretix des Indes (Paris, Galliinard). (-) Cf.
Biarilcau (M.): «Philosophie de YInde», in Histoire de Ia Philosophie, t. 1
(Paris, Gallimard, 1969). (-) Assinalemos contudo a publicação em Inglaterra de
uma tradução, citada por J. Herbert (in op. cit.): An Eight Hundred Year Old
Book o/ 1ndian Medicine and Formulas, trad. E. Sharpe (London, Luzac, 1937).

152
meio ambiente e ocupa-se igualmente da arte de cuidar das plantas, do gado, dos
cavalos, dos elefantes.

Como todos os mitos originários da índia, a história que nos transporta às


fontes desta medicina é muito complicada.

Siva, senhor da dança cósmica (ou do movimento das energias), recolhe o Ubaveda,
ou conhecimento pregado e revelado, e depois revela-o a sua esposa, Parvoti, que
o revela por sua vez a Nandi Devar. Nandi Devar escreveu uma enciclopédia, o Uba
Veda, ele próprio composto de quatro Vedas, tratados de filosofia, de moral, de
música, e de que o último é o Iajurveda.

Os Azvini, filhos do deus Sol, são os médicos auxiliares do Olimpo bramânico


durante a primeira era indiana. A tradição pretende que Tacha Bara Djabady
divulgou esta ciência aos humanos, a quem a pôde transmitir graças ao poderio
que lhe conferia o seu ascetismo. Cantou esta ciência numa centena de milhares
de sloca, ou quadras.

Mas eis que, sobre a Terra, as doenças se tornam múltiplas e de tal forma
complicadas que os Azvini, os filhos do deus Sol, reúnem um congresso no
Himalaia e encarregam um sábio devoto de Indra, Bara Davassar, de tornar o longo
poema mais compreensível. Bara Davassar fê-lo em oito capítulos:

- doenças internas ou curáveis por terapêuticas ingeríveis;


- doenças da infância e da primeira idade;
- doenças curáveis por encantações e preces;
- doenças da cabeça, desde a cara ao pescoço; -doenças «em que se corta»
(cirúrgicas);
- doenças dos órgãos genitais;
- intoxicações por minerais, vegetais ou animais;
- a arte de preparar os medicamentos.

O deus Indra considera no entanto que ainda é muito comprido. Estes oito
capítulos são condensados em cinco, e depois em dois: patologia interna e
patologia externa.

Dois sábios são encarregados de ensinar e divulgar esta ciência: Bara Davassar,
que se dirige para Medina, onde divulga o ensino da patologia interna a faquires
e

153
a discípulos, o melhor dos quais foi Punarnassa, que, na sua morte, legou este
conhecimento a Agnivassar e a outros cinco discípulos, tornados por sua vez
pânditas, isto é, repetidores que receberam uma educação e um conhecimento
iniciáticos.

O segundo, Dana Vandar, vai ensinar a patologia externa em Benares. Passa-se o


mesmo: este conhecimento é por fim transmitido a Catchucudar e a cinco outros
discípulos. Os doze discípulos reunidos escrevem (como os Apóstolos) e
recapitulam tudo sob o nome de Iajurvédico.

DO MITO À REALIDADE HISTóRICA

O corpus do Iajurvédico é sem dúvida o eco de tradições orais que, segundo J.


Filliozat, originaram os Bramanas e os Upanissades. Desconhece-se de facto a
cronologia precisa destes tratados. Aliás, acrescenta Jean Herbert na sua
história XA Espiritualidade Hindu, «a maior parte dos grandes clássicos
perderam-se - terão eles sido escritos alguma vez? - e não são conhecidos senão
por citações dispersas nas obras que chegaram até nós».

O facto é que a idade de ouro do Iajurvédico na índia coincide com a do budismo


(327 a. C.450 d. C.): dois dos seus médicos mais célebres trabalharam ao lado de
Buda: Kasparja e Jivaka.

fivalça tornou-se um dos patronos da medicina tibetana e, segundo a tradição,


teria feito operações extraordinárias, anestesiando com haxixe - ou cânhamo
indiano: laparotomias, toracotomias e trepanações cranianas. Da índia e do
Tibete, seguindo a rota da seda, alguns desses conhecimentos do Iajurvédico
chegaram à China. Depois os muçulmanos fecharam as fronteiras.

Actualmente o Iajurvédico partilha o terreno com três outras escolas medicinais,


a par das quais existem, evidentemente, diversos processos tradicionais de cura:
domínio da respiração, meditação, etc., cujos sucessos são frequentes.

Estas quatro grandes escolas médicas exercem a sua ciência em livre


concorrência, e, segundo Jean. Herbert, o seu «grau de difusão e os seus
sucessos práticos são equiparados».
154
também demonstrar o valor moral e as boas diligências das suas aspirações
espirituais.

Com efeito, os hindus acreditam que a doença lhes é enviada por Siva ou qualquer
outro deus, e que ele lhes permite assim o seu karma. Portanto, a doença torna-
se uma espécie de bênção purificadora e não requer apenas do médico o ser um bom
técnico; é necessário também que ele esteja inteiramente ligado ao mundo sagrado
para ser capaz de permitir ao doente, curando os seus sintomas, assumir o seu
karma.

É por isso que os melhores médicos pertencentes a esta tradição não hesitam em
seguir um asceta ou um eremita, vivendo muitas vezes na selva, o que acaba por
lhes transmitir o «poder» de curar determinadas doenças. Alguns são
especialistas de doenças muito graves: tuberculose, lepra, cólera, ete.

Mas este poder adquirido tão penosamente desaparece se, por acaso, o discípulo
revela os segredos ou infringe as regras de conduta moral e espiritual que lhe
foram impostas pelo gurti. Entre esses especialistas, os mais conhecidos são os
«médicos de serpentes», que conhecem todas as magias para curar as picadas das
mais terríveis serpentes venenosas. Em princípio, tanto estes especialistas como
os outros não recebem dinheiro.

Jean Herbert cita um dos grandes mestres do Iajurvéffico, Chakara, que


aconselhava sempre: «O médico não deve tratar os seus doentes nem para ganhar
dinheiro nem para obter nenhuma vantagem material. Nisso, o trabalho do médico é
superior a todas as outras profissões. Aqueles que vendem o seu tratamento como
se fosse uma mercadoria negligenciam o ouro do verdadeiro tesouro para procurar
o pó.» () E, continua Jean Herbert, actualmente existem médicos hindus que se
recusam a receber dinheiro e ganham a vida exercendo outras profissões.

OS TRÊS HUMORES

As perturbações interiores pelas quais se manifestam as doenças organizam-se


segundo o princípio dos «três

Cf. Herbert (J.): Spiritualité Húidotie, op. cit.


156
humores», ou tri-dosha, que são, respectivamente, vâyií, pitta e kapha, e que se
traduzem normalmente por ventusidade, bílis e flegmasia. Este sistema dos tri-
dosha constitui uma forma de biotipologia; cada indivíduo é mais ou menos
influenciado por uma destas três esferas, cujo equilíbrio é a chave da saúde.
Vây,ti, quer dizer, o ar ou o vento ‘ é uma amplificação do fenómeno dos
movimentos que entram nas funções da vida celular, ou, como nos explica o Dr.
Gananath Sen, um dos mais célebres kaviraja contemporâneos, as funções dos
sistemas nervosos central e simpático.

Pitta, o fogo, a temperatura ou bílis, é a causa de todas as doenças que se


situam entre o umbigo e o pescoço. Em termos científicos mais modernos e mais
acessíveis para um ocidental, o Dr. Gananath Sen explica que pitta designa as
funções de metabolismo, de termogénese, e abrange no seu vasto domínio o
processo digestivo, a coloração do sangue e a formação das diversas secreções e
excreções que são, quer o meio, quer o fim, da combustão dos tecidos.

Kapha, ou o flegmasia, que podemos também traduzir por água, situa-se


principalmente ao nível da cabeça. Este termo é utilizado para indicar primeiro
a função de renovação e de preservação (termólise) e, depois, para designar a
produção dos diferentes «fluidos conservadores» (muco, sinóvia, etc.) que se
manifestam quando esta função está perturbada.

Para tratar as doenças provocadas pela perturbação dessas funções, os hindus


utilizam preparações medicamentosas à base de plantas na maior parte das vezes,
mas também por vezes à base de produtos animais e, sobretudo, de pedras
preciosas, o que apresenta um problema particularmente interessante para a
ciência moderna (’). Mas o médico deve igualmente respeitar um certo calendário:
as segundas, as quartas e os sábados não são propícios para o consulente; à
sexta-feira, a doença leva mais tempo para curar; o domingo é consagrado à
preparação dos medicamentos. O ideal será o médico dar consulta apenas às terças
e quintas-feiras.

(’) Graças às pesquisas dos laboratórios de farmacologia homeopática Dolisos, a


litoterapia faz parte do arsenal do médico bioterapeuta.
157
Como vemos, a medicina dos Vedas baseia-se na astrologia para organizar um
calendário terapêutico. Fá-lo também para receitar certos remédios, em especial
os que são preparados à base de pedras preciosas.

GEMAS, CONSTELAÇõES E TERAPêUTICA

Até metade do século XX, a índia era o único país a utilizar as pedras preciosas
- e sobretudo o diamante - com fins puramente terapêuticos. O seu brilho, por
conseguinte, não é unicamente reservado aos célebres tesouros dos marajás ou dos
seus templos.

Esse brilho produz uma radiação, quente ou fria, que pode ser fixada nas
tinturas alcoólicas e permite preparar, a partir destas tinturas-mães, grânulos
que são utilizados segundo as regras da homeopatia, como o preconiza o Dr. H. L.
Bansal, de Nova Deli.

O Iajurvédico utiliza estas gemas depois de as ter reduzido a pó impalpável, o


que é difícil de conseguir. Isso consegue-se por podamização ().

A acção das gemas: o brilho energético das gemas penetra profundamente no


organismo e facilita consideravelmente o desenvolvimento da acção de outros
medicamentos, preparados a partir de vegetais ou outros. Durante as doenças
graves, quando a reactividade do doente está enfraquecida, elas permitem obter
uma melhoria notável, mesmo nos casos mais graves e complicados. O seu efeito,
profundo e rápido, não é iatrogéneo (2).

As gemas utilizadas são nove: utilizam-se todas juntas, separadamente ou em


grupos.

(’) Podamizar é «tornar o corpo do qual queremos intensificar as propriedades


terapêuticas». Esta técnica consiste geralmente em fechá-lo no meio de folhas ou
cascas de árvores frescas, rodeado com uma camada de dois dedos de argila, e
colocar esta «curiosa empada» no fogo. É necessário esperar que a camada de
argila se torne vermelha para retirar a «empada» do lume; depois parte-se a
camada envolvente e retira-se o corpo ainda quente, para utilizá-lo. Os melhores
pânditas reforçam esta acção adicionando-lhe um «pouco de mel, o que lhe dá
quatro vezes mais força». (’), Quer dizer: que não provoca, por sua vez, uma
outra doença causada pelo remédio ou pelo médico (em grego, iatros médico).
158
O diamante: Pedra de Vénus, ou Shukra, o seu brilho frio, arroxeado, actua sobre
as três doshas do corpo humano.

O diamante podamizado, ou cinza de diamante, é utilizado no lajurvédico para


alimentar os tecidos.

Esta cinza proporciona força e desembaraço. Cura a anemia, a anorexia, a


incapacidade, o medo das mulheres (ginecofobia), as gonorreias, espermatorreias,
as doenças uterinas, as micções difíceis, a hidropisia, os diabetes, a
impotência, a obesidade, as doenças cardíacas, assim como a asma, a tosse e os
edemas.

PREPARAÇÃO DA TINTURA-MÃE DAS GEMAS

O método preconizado pelo Dr. Bansal é extremamente simples, desde que tenhamos
à nossa disposição essas gemas durante alguns dias do mês.

Deitar algumas gotas de álcool puro ou rectificado numa garrafinha que leve mais
ou menos uma onça. Colocar a gema na garrafa e tapar bem, depois guardá-la num
local sombrio, bem protegido da luz, durante oito dias e oito noites. Tirar a
garrafa do sítio onde se guardou e agitá-la fortemente. A gema retirada da
garrafa pode ser utilizada tantas vezes quantas quisermos. O líquido dinamizado
assim obtido permite preparar os grânulos seguindo as regras da homeopatia.

O Iajurvédico aconselha, o que nem sempre é fácil, trazer essas gemas em


contacto directo com a pele, em determinados locais do corpo, segundo a doença.

Usado como amuleto, o diamante proporciona bem-estar, e permite igualmente ao


epiléptico ou ao louco reencontrar uma vida normal e feliz. Acalma também as
enxaquecas. Excelente tónico, assegura a longevidade.
O mais pequeno átomo do diamante, quando insuficientemente podamizado, torna-se
um veneno mortal. Há dois processos de evitar este inconveniente:

1º - introduzir o diamante num limão e cozê-lo em sumo de agatti, a fim de tirar


toda a toxicidade do diamante.
Depois, fazer uma papa com raízes de limoeiro e sumo de bétele ou betle (estes
dois vegetais devem ter pelo menos três anos). Enfiar o diamante nesta papa e
podamizá-lo 7 vezes.
159
2º - Meter o diamante numa papa feita de raspaduras de chifre e cozer; repetir
esta operação três vezes, para obter um pó, que se lavará com urina de cavalo,
antes de podamizá-lo 7 vezes.

O rubi: Governada pelo Sol, esta pedra desprende radiações cósmicas de cor
avermelhada, por meio de ondas quentes que controlam a humidade, absorvem o frio
e regeneram tudo o que estiver enfraquecido. A cinza de rubi melhora os três
doslias, sobretudo as esferas de i,âyu e de pitta.

Preparação para uso interno: Mergulhar num banho de urina de vaca, depois expor
ao sol durante três dias e lavar com água quente. Deixar seguidamente macerar
num banho de sumo de erva-andorinha durante três dias, depois podamizar. Esta
operação deve ser renovada cada três dias. Isto, dizem, constitui um excelente
tónico para o apetite, para as funções pulmonares, e é antiparalítico.

Chupar um rubi evita a sede e o mau hálito. As propriedades magnéticas do


rubi fazem que a astrologia recomende que se use para todas as doenças de olhos
e cabeça, porque o Sol actua sobre a cabeça do homem, ao qual dá glória e boa
reputação.

O carbÚnculo, outra variedade do rubi, pode combater o paludismo crónico e curar


um enfraquecimento.

A pérola: Governada pela Lua, de brilho cósmico alaranjado e frio, pode tratar
as doenças produzidas por «excesso de calor». O seu brilho controla as secreções
fluidas, a circulação sanguínea, o coração e o espírito, e é útil quando o
sangue, os ossos, a gordura ou os tecidos têm necessidade de humidade; controla
também os três doslias. É um tónico do coração, dos pulmões (tuberculose, asma,
bronquite crónica), antineurasténico, tónico dos rins (litíase renal), das vias
urinárias, do fígado, antileproso, antivenenoso, antileucorreico,
antiespermatorreico, antiácido, laxante, afrodisíaco, nutritivo e sedativo. A
pérola embeleza o corpo e dá uma tez brilhante.
160
Purificação da pérola: para limpar uma pérola natural de toda a impureza, deixa-
se macerar algumas horas, ou num banho de sumo de nélia ou em vinagre, ou em
urina de vaca. Deixar macerar, depois podamizar em nila podhain(l), para obter
um pó muito fino, impalpável. É necessário tomar O,10 a O,30 centigramas deste
pó, todos os dias, com um pouco de mel.

A astrologia aconselha usá-la para combater todas as impurezas: comportamento


impuro, alimentação impura, medo, indiscrição, fraqueza sexual e mental, até
mesmo loucura, assim como todas as doenças ligadas ao elemento líquido: doenças
do fígado, da bexiga, dos olhos. A Lua rege a água e proporciona paz e
tranquilidade de espírito.

O coral: Correctivo da pérola, o coral é governado por Marte. A sua cor cósmica
amarela liberta calor. O seu brilho seca tudo o que se refere à esfera de kapha,
ou linfa. Muito eficaz no reumatismo, faz desaparecer a linfa que se deposita na
carne e produz uma inflamação dolorosa. Utiliza-se para tratar as doenças da
pele -eczemas, úlceras, lepra-, as doenças das vias respiratórias e a
transpiração excessiva durante o dia ou a noite. É um excelente hemostático.

Preparação: Ferver o coral numa decocção de myrobolam e podamizar. Ou então


mergulhá-lo num banho de sumo de limão, durante 3 horas, depois lavá-lo com água
quente. Ou ainda deixar macerar um balote de coral em leite de vaca durante hora
e meia, lavar e deixar secar. O coral assim purificado fica a macerar no suco
leitoso de erva-andorinha, ou num banho de sumo de limão durante três dias;
depois é podamizado num guediapodham (’), e, finalmente, calcinado.

(’) Nila podham: técnica que consiste em colocar o corpo cujas propriedades
terapêuticas queremos utilizar num vaso estreito enterrado no solo a uma
profundidade de um cóvado e o qual desenterramos ao fim de um determinado tempo
que varia com a preparação a realizar.

C) Guediapodham: a técnica consiste em cavar uma fossa de um côvado cúbico,


depois enchê-la até cima com bosta de vaca, sobre a qual colocamos o cadinho dos
medicamentos (folhas ou cascas frescas, depois uma camada de argila), coberto
por sua vez com uma camada de bosta de vaca, com metade da espessura daquela com
que cobrimos o fundo da fossa.
161
De todos os elementos utilizados no Iajurvédico, o coral é um dos que parecem
possuir mais propriedades. Pode-se tomar de 15 a 60 centigramas de cinza de
coral, depois de cada refeição, com um pouco de mel, contra as febres, as
doenças das vias urinárias, as cefaleias crónicas, os vómitos, a incapacidade e
a espermatorreia. A astrologia aconselha-nos a utilizar do seguinte modo as suas
propriedades magnéticas: atado à cintura das crianças, cura os terrores
nocturnos; num anel engastado de ouro e prata, conjura os efeitos maléficos do
planeta Saturno e intensifica os efeitos benéficos do Sol, Marte e Lua, quando
estes se encontram em conjunção.

A esmeralda: Governada por Mercúrio, de força cósmica fria e cor verde; as suas
radiações são úteis para as doenças dos ossos, da pele, dos intestinos, dos
rins, do fígado, da vesícula, e permitem aumentar de peso.
A sua cinza, doce e fresca, acalma todos os desequilíbrios e abre o apetite.
Utiliza-se nas febres agudas ou perniciosas, anemias, asma, dispepsia, vómitos,
náuseas, úlceras e hemorróidas de qualquer natureza.

A astrologia aconselha a usá-la como amuleto para as anorexias, cólicas, surdez


e mudez, impotência, fadiga, distúrbios gástricos e do carácter. O planeta Marte
governa o cérebro; é ele que dá acesso à inteligência e nos dá a saúde.

O topázio: Governado por Júpiter, as suas radiações são azuis e quentes.


A luz azul do topázio (cor do céu) actua sobre os «espaços vazios» do corpo, os
tecidos adiposos e todas as glândulas. ]É benéfico para os reumatismos agudos,
asma, apoplexia, cólera, cólicas, disenteria, febres eruptivãs (varíola,
tifóide, bexigas, varicela, rubéola), cefaleias, histeria, inflamações dos
órgãos abdominais e dos olhos, perturbações nervosas, menstruações difíceis,
palpitações, insónia, espasmos, choques físicos ou psíquicos, picadas ou
mordeduras, sede e dores de dentes.

As suas cinzas curam os distúrbios das esferas do vâyu e do kapha.

A astrologia aconselha os amuletos e as jóias, utilizando as propriedades


magnéticas do topázio para proteger a zona da garganta (amígdalas, tosse, etc.),
curar
162
a hipocrisia, a grosseria, o orgulho, a inclinação para as acções judiciárias,
etc. Usá-la atrai as honras e o respeito.

A safira: Sob a influência de Saturno, as suas radiações são frias e cor de


violeta, como a cor emitida pelos nervos.

Muito eficaz nas doenças de nervos e da pele, o seu brilho «anima e limpa o
sangue nervoso». A cinza da safira é utilizada para curar a debilidade mental e
nervosa, as depressões provocadas pelas decepções, a sonolência, a epilepsia, a
histeria, a idiotia, a loucura, as nevralgias, assim como todas as dermatites,
inclusive a sífilis e a lepra, as doenças oftalmológicas.

A astrologia aconselha-o para prevenir todos os comportamentos aberrantes, as


nevrites, as dores das articulações, a hidropisia, as doenças das pernas.
Saturno é um planeta forte. Se favorável, eleva a posição social dos homens e
protege a saúde. Se desfavorável, torna-os pobres mental, física e
financeiramente.

O ônix: Sob a influência de Rahu, a Cabeça do Dragão (’), o seu brilho é o mais
frio de todos. A sua cor cósmica é o ultravioleta. Actua nos desequilíbrios
dolorosos provocados por um calor excessivo, isto nas três esferas: vâyu, pitta
e kapha. Os raios cósmicos ultravioletas do ônix são úteis para excitar o
apetite e corrigir a digestão, por um lado, e nas desordens mentais e
perturbações glandulares, pelo outro, e finalmente, ajudam a mulher a dar à luz.
A astrologia aconselha-o em amuleto e ao nível do plexo -porque este desempenha
o papel do «cérebro nervoso» do homem - nos seguintes casos: doenças cerebrais,
tendências suicidas, anorexias, diarreias, perturbações hepáticas, prisão de
ventre, vermes, reumatismo.

Olho de gato: Governado por Ketu, a Cauda do Dragão, irradia a força mais quente
e emite um brilho infravermelho. O Iajurvédico aconselha-o para as doenças
relacionadas com a esfera do pitta. É digestivo e laxante.

(’) O Dragão forma uma das constelações do hemisfério boreal; é composto por 80
estrelas.
163
É um regularizador das tensões psíquicas que provocam ou acompanham e agravam as
doenças graves como o cancro (caso no qual o organismo arrefece, enquanto que o
tumor apresenta «um. lugar quente»), anemia, debilidade nervosa, as doenças
uterinas e as dermatoses, em especial as bexigas e a sífilis.

A astrologia aconselha que se traga ao pescoço como amuleto, nas crianças e nos
recém-nascidos, para prevenir as dificuldades respiratórias, asma, pneumonias,
etc.

A utilização destas duas últimas gemas deve fazer-se segundo uma estrita
observação de certos fenómenos astronómicos. Com efeito, segundo a mitologia
hindu, Rahií e Ketu zangaram-se com a Lua e o Sol. Desde aí os primeiros tentam
devorar estes últimos todos os anos por altura dos eclipses. Assim, os raios
cósmicos de Rahu podem dissolver a força reconfortante do Sol e tornar-se muito
frios, mesmo os mais frios de todas as irradiações que a Terra recebe. Do mesmo
modo, quando os raios cósmicos de Ketu podem tapar os da Lua, eles tornam-se
muito quentes, mesmo os mais quentes.

OS DONS DO MUNDO ANIMAL

A vaca

Se os hindus não comem a carne de vaca, este animal desempenha, no entanto, um


papel considerável na sua economia doméstica, na sua higiene quotidiana(% assim
como na medicina dos Vedas.

(’) É por isso que os usos e costumes locais exigem tradicionalmente que todas
as manhãs, ao nascer do sol, a entrada e por vezes toda a casa sejam aspergidas
com bosta de vaca diluída em água, para afastar os insectos que aí se refugiaram
durante a noite. Do mesmo modo, depois de cada refeição, o solo é limpo com
bosta de vaca, para afastar as moscas e as formigas que podiam disputar as
migalhas. A bilgiene dos Vedas recomenda igualmente aos doentes das vias
respiratórias a escarrar sobre bosta de vaca.
164
O leite de vaca goza tradicionalmente de uma reputação quase igual à do leite
materno. Uma lenda(’) consagra até a propriedade eminentemente afrodisíaca do
leite de vaca. O soro de leite ácido é considerado refrescante, aperitivo e
estomacal; quando açucarado, como reconfortante, febrifugo e estomacal. Os
pânditas modernos aconselham a azedar o leite fervido e frio com umas gotas de
sumo de limão e, no caso de febre, beber a água que fica ao de cima.

Sem conhecer sequer a origem microbiana das doenças que se transmitem pela
saliva, o Iajurvédico prescreve a todos, e especialmente aos doentes das vias
respiratórias, que cuspam sobre bosta de vaca, que, como diz o Dr. Paramananda
Mariadassou no seu Matière Médicale Usuelle (% «absorve os infinitamente
pequenos e digere-os».

O Iajurvédico recomenda a bosta de vaca como resolutivo nas contusões e


entorses. O tratamento consiste em aplicar directamente sobre a zona doente uma
espessa camada de bosta de vaca fresca que alivia a dor e apressa a cura. Este
tratamento é também utilizado em medicina veterinária.

A bosta de vaca é também empregada no Iajurvédico como hemostática sobre as


feridas provocadas por instrumentos cortantes e como desinfectante das úlceras
rebeldes.

Um remédio para curar a hepatite utiliza uma mistura de leite de bosta () e de


urina de búfalo, mistura-

(’) A fim de se livrar da assiduidade de um fidalgo da corte, a filha de um


marajá pôs como condição que ele satisfizesse sete das suas companheiras numa só
noite antes de se encontrar com ela. Espantada com as proezas que lhe contavam
as companheiras, a jovem soube que antes de as abraçar o fidalgo bebia uma
chávena de leite açucarado no quarto contíguo. Antes de se encontrar com ele,
substituiu o leite por água; o jovem não pôde satisfazê-la e retirou-se... (2)
Cf. Mariadassou (Dr. P.): Us et Coutumes de Phide et Malière Médicale
(Pondichery, Imp. Ste.-Anne, 1942). (`) Preparação do leite de bosta: mergulhar
a bosta fresca numa bacia com água e deixar macerar durante algumas horas.
Decantar a água e depois deitar mais água até que fique bem límpida. Depois de
passada, conserva apenas uni leve odor a bosta: é nesse estado que ela é boa
para uso interno. O lajurvédico afirma que é um excelente tónico, tal como o
leite de coco.
165
dos por sua vez com soro de leite de búfalo, durante
3 dias seguidos, à razão de uma colher de sopa de manhã e à noite. O leite de
bosta de búfalo é indicado especialmente contra os diabetes.

A serpente

A sua carne fortalece os músculos. A cabeça da serpente esmagada, ou «líquido


biliar da serpente», é aplicada sobre as dentadas deste animal.
O fígado, seco e pulverizado, é reservado ao uso interno para ser misturado com
álcool ou com uma decocção de casca (pau) de canela, aconselhado para facilitar
o parto. Reforçando a saúde do homem (ou as defesas do organismo), ele assegura
a sua longevidade.

A gordura é empregada, em uso externo, sobre a face mucosa das pálpebras, contra
a vermelhidão dos olhos, o lacrimejar, as manchas da córnea ou a sua opacidade,
e aumenta a acuidade visual.

Em fricção cura o lumbago. A pele da muda precipita o parto quando atada sobre o
ventre da parturiente. Em colar ou usada como cinto, cura a hidropisia, a
caquexia e a dificuldade de urinar.

Diz-se que uma mistura de pó de carapaça de gafanhoto e pele da muda da


serpente, em aplicação externa, solda os nervos seccionados, cicatriza as
feridas traumáticas dos olhos e todas as outras feridas do corpo, desde que seja
aplicada nos três dias seguintes.

O pó da serpente é preparado do seguinte modo: tirar a pele, separar a cabeça,


as vísceras e o rabo, lavar com bastante água, deixar secar, pulverizar e
peneirar. Utiliza-se internamente deixando macerar no álcool, ou numa decocção
de casca de canela, contra o veneno das aranhas, os envenenamentos alimentares,
a lepra e a febre maligna; combate os «maus humores», purifica o sangue e
aumenta a eliminação da urina.

O escorpião

A sua picada é benéfica para a paralisia dos membros, desde que seja dada fora
do conjunto vasculo- -venoso da região paralisada.
166
Uma maceração de escorpiões vivos em óleo de amêndoas amargas constitui um
excelente remédio, administrado em gotas, contra as dores de barriga e as
cólicas nefríticas. Utilizada em fricções sobre os rins, esta preparação
favorece a migração e evacuação do cálculo. Uma maceração de óleo de amêndoas
doces, aquecido e depois deitado à razão de uma a onze gotas no canal auditivo,
cura as otites.

Dez escorpiões vivos mergulhados em 50Og de óleo de amêndoas doces com raiz de
ruibarbo, junça, casca da raiz de briónia, tudo exposto ao Sol durante uma
semana, serve, em uso externo, de linimento contra a paralisia, o reumatismo
deformante, as picadas de escorpião e as artrites de todas as origens.

O almíscar dos iniciados

Todas as civilizações conhecem a utilização das substâncias ditas alucinógeneas


para obter sensações de clarividência, de claraudiência, etc. Eis o que
aconselha a esse respeito um iniciado ocidental que permaneceu na India algum
tempo, Omraam Mikhael Ivanov:

«As drogas são muito nocivas para o sistema nervoso. Os próprios iniciados nunca
as recomendam nem as utilizam, a não ser muito raramente e em doses
pequeníssimas; tal como o almíscar, por exemplo. Antes de ter estado na Índia,
eu já conhecia as propriedades do almíscar.

«IÉ preciso não o confundir com o almíscar artificial, que é um composto


sintético utilizado como perfume.
O verdadeiro almíscar (inuscus officinalis) é uma substância segregada pelas
glândulas sexuais de alguns cabritos que vivem nos altos planaltos do Tibete. Os
machos segregam esta substância graças à qual atraem as fêmeas mesmo a uma
grande distância. Secam-na e dá um produto de cor acastanhada, quase negro;
parece-se um pouco com o chá, mas os grãos são mais pequenos.

«Conheço-o porque o utilizei em casos excepcionais. Alguns iniciados tomam um


grão ou dois com água quente e menta para fortalecerem o seu sistema e plexo
solar, quando querem executar certos trabalhos.
167
«O almíscar não é nocivo, é como se introduzíssemos uma matéria primeira, um
fogo no organismo» (1).

AS PLANTAS E AS ESPECIARIAS

Pátria da maior parte das especiarias, a índia vê crescer em estado selvagem a


pimenta, a canela, o gengibre, a curcuma, o cravo-de-cabecinha, a noz-moscada e
o cardamomo, assim como todas as plantas aromáticas mais conhecidas, tais como a
badiana, o manjericão, o coentro, o caminho, o orégão, etc.

A profusão das riquezas vegetais naturais da índia faz que a farmacopeia à base
de plantas seja muito importante. Ela está muitas vezes na origem das
preparações aromoterápicas, fitoterápicas e homeopáticas conhecidas da medicina
bioterápica ocidental.

Antes de vos falar dalgumas das prescrições mais curiosas do Iajurvédico, demos
uma vez mais a palavra ao Mestre Omraam Mikhael Ivanov: «Os indianos e os
tibetanos têm um grande conhecimento das ervas; é uma ciência que eles
transmitem de geração em geração desde há milénios. Conhecem algumas
verdadeiramente extraordinárias. Uma delas, parece, permite, quando se come,
viver durante semanas sem nenhum alimentou-ma outra, raríssima, ficar durante
dias na neve do Himalaia sem sentir frio. Foi o que disseram; evidentemente, eu
não verifiquei, mas é possível. Porque não?... Quando eu estava na índia,
mostraram-me também como se fabrica uma massa com a raiz de uma certa planta e
as folhas vermelhas de outra. Esmagam-se juntamente esfregando-as sobre uma
pedra e a mistura daí resultante aplicam-na na fronte como um sinal vermelho,
entre as sobrancelhas. Servem-se dela para meditar, porque este produto possui a
propriedade de despertar o terceiro olho. Se quiserdes, dar-vos-ei o nome dessas
plantas, mas ser-vos-á bem difícil conseguir encontrá-las... »

(’) Ivanov (M.): Oetwres Complètes, t. IV (Les Monts-de-Corsier.,@ [Suissel éd.


Prosveta, 1973).
168
A banana verde é, dizem, antinauseante, antineurasténica, antibiliosa. Quanto
mais madura estiver, tanto mais adstringente se torna, e recomendada, portanto,
a todos os doentes sujeitos às hemoptises como aos diabetes. Aconselham-na
contra as hemorróidas, a diarreia, as hemorragias uterinas. Comida em excesso
pode provocar a dispepsia.
A banana madura é rica em ferro, e recomendada para os anémicos. Comida de manhã
em jejum, é um excelente laxante, muito agradável para as crianças. Em puré, é
recomendada contra as diarreias crónicas. O sumo de banana fermentado favorece a
digestão.

O xarope de banana, à razão de 10 a 20 g administrados duas a três vezes por


dia, trata as anemias e as doenças venéreas.

ELECTUÁRIO DE PASTA DE BANANA

A banana, proclamada pelo lajurvédico como o melhor dos tónicos, é considerada


na Índia como o símbolo da abundância e da fecundidade. Vâiave, ou bananeiro,
significa, em tâmul ou tâmi, «vida fecunda»(’).

Utiliza-se sobre a forma de electuário à razão de 25g por dia, contra os


diabetes, com uma preparação de ouro, prata ou mica.

Preparação do electuário de banana: Flor de bananeira


3,5kg, sumo de folha de bananeira 3,2kg; deixar ferver até reduzir pelo menos
três quartos e coar. Juntar nas mesmas proporções em quantidade suficiente para
500 g banana verde, cravo-de-cabecinha, cardamomo, pó de madeira de sândalo, de
madeira de pinho marítimo, de tubérculo junço, de myrobolan, rabanete branco,
maçã macaco, depois cortar em pedaços e juntar duas medidas de manteiga. Deixar
apurar até ter uma consistência pastosa.

Preparação do xarope de banana: Açúcar cristalizado


700 g; leite de vaca 1/2 medida; banana vermelha 10; misturar bem e juntar 16 g
de pó das seguintes plantas: nós moscada, cravo-de-cabecinha, cardamomo,
coentro, funcho, almécega, raiz de alcacus, e 70 g de pó de botões de rosa secos
ao sol. Juntar 175 g de mel e 350 g de manteiga.
(1) As bananeiras carregadas de frutos constituem o ornamento obrigatório da
praça onde se celebram cerimónias. Quando novas, são atadas no li miar das casas
mortuárias e substituem a coluna cortada que vemos sob os túmulos. São o
símbolo da vida truncada em pleno desenvolvimento, quando não estão carregadas
de frutos; pelo contrário, se estão, tornam-se sinónimas do fim da encarnação de
um homem de bem.
169
A bétele, também conhecida por «engana-a-fome» da índia, é um estimulante muito
enérgico. É considerada como galactógena, afrodisíaca, dissolvente do ácido
úrico, descongestionante, antivenenosa, antiespasmódica, antineurasténica.

O extracto de folhas de bétele à razão de 20 gotas, com uma quantidade igual de


gengibre verde, é utilizado como expectorante nas crianças, e administrado com
mel nos casos de indigestão.

Em uso externo, emprega-se em fricções contra a congestão pulmonar adicionado


com uma parte de óleo de ovos de formigas e duas partes de óleo de sésamo (4/4).

Mastigar a raiz de bétele evita e cura as laringites. A raiz, quando tenra,


misturada com pimenta e mastigada, provoca a atrofia dos ovários e é, dizem, um
excelente contraconceptivo.

Os pedaços de bétele evitam a cárie dentária, curam as feridas da garganta e as


aftas. Favorecem também o desenvolvimento da memória, até mesmo da inteligência,
e alegram o coração.

A bétele, cortada pelo próprio doente, é empregada muitas vezes sobre os


panarícios, para os obrigar a rebentarem, a fim de os curar.

UM TERRENO DIFICIL.

O Iajurvédico, cuja trama inicial se perde na noite dos tempos, caracteriza-se


pela riqueza e diversidade, talvez mais simbólica que farmacológica, dos seus
agentes terapêuticos. Por causa do seu simbolismo, ele é personalizado, por
vezes, com grandes diferenças de uma região para outra, de um médico para outro.
Seria portanto tão absurdo, pelo menos por agora, querer definir a medicina dos
Vedas como traçar destes uma cosmogonia homogénea e coerente, tanto no tempo
como no espaço.

A medicina do futuro, memorizando por meio de computadores a intuição dos Sábios


do Iajurvédico, permitirá talvez reencontrar os seus caminhos. Por agora, o
Tajurvédico mantém-se uma medicina empírica, tal como é praticada actualmente e,
que nós saibamos, na índia.
170
CAPITULO VIII

OS SACERDOTES-MÉDICOS DA AMÉRICA PRÉ-COLOMBIANA

A Jacquelino Durand-Forest, nosso guia no país nahuatl.

Seria pretensioso, da nossa parte, querer dar nestas poucas páginas uma
explicação das medicinas sagradas de toda a América pré-colombiana. Sobre as
imensas planícies do continente americano, as manifestações de civilizações
humanas são extremamente diversificadas. Entre as simples tribos nómadas
constituídas pelos índios caçadores-agricultores das planícies e montanhas ao
Norte e das florestas da Amazónia ao Sul, às confederações e aos impérios
solidamente estruturados da cadeia dos Andes, existe contudo um traço comum.
Segundo a opinião de eminentes etnólogos e historiadores da pré-história, como
André Leroi-Gourhan, por exemplo, todas essas populações teriam tido por
antepassados tribos de caçadores nómadas vindos provavelmente da Ásia pelo
estreito de Béring, cento e cinquenta ou duzentos séculos antes de J. C. Mas por
que razão não mais longe ainda no tempo e no espaço?

Ao lado desta primeira tese muito oficial, existem outras hipóteses que nos
permitem pensar que as cidades gigantes do Peru tenham sido construídas em
tempos ainda mais remotos. Todas as especulações, por mais fantásticas que
sejam, estão autorizadas perante essas gigantescas plataformas da planície de
Nazca, ao sul do Peru, cuja observação aérea faz lembrar a balizagem de um campo
de aterragem, ou perante essas enormes pedras que, segundo o arqueólogo
americano Haytt Verrili, foram de qualquer modo cortadas por uma
171
massa radioactiva capaz de corroer o granito com uma precisão exacta. Ou ainda
essas lendas bolivianas relatando a epopéia das civilizações que remontam a mais
de 5000 anos a. C. e que teriam sido exterminadas por uma raça não humana cujo
sangue não era vermelho. Por seu lado, a mitologia pré-inca conta-nos que as
estrelas são habitadas e que, da constelação das Plêiades, os deuses vieram para
a terra...

Os primeiros habitantes deste continente ainda aureolado de mistério ou, pelo


menos, os seus heróis civilizadores terão vindo do céu? Ou, melhor, serão eles
ainda os herdeiros da Atlântida? A denominação atl (pronuncia-se «atl-a») (1),
de água, em nahuatl, a língua-mãe sagrada dos Astecas e de muitos outros povos
do México, e o próprio nome do lugar de origem mitológica dos Astecas e dos
Chichimecas, avIan, levam-nos a supô-lo.

Perante um tal panorama, ficamos com vertigens e o nosso propósito não será
certamente desenrolar um fio de Ariane através do labirinto dessas civilizações.

Se resolvemos falar sobre os sacerdotes-médicos da civilização asteca, é apenas


porque esta civilização pôde ainda ser observada por homens que são quase nossos
contemporâneos. Entre as culturas mais elaboradas da América pré-colombiana, a
civilização asteca foi, com efeito, a última que o Ocidente pôde contemplar. Os
seus luxos e a sua crueldade deixaram estupefactos os Espanhóis do século XVI,
que, tendo suportado a Inquisição no reinado de Isabel, a Católica, e sendo além
disso grandes aventureiros, pouco havia que os espantasse.

Depois de terem pilhado o ouro e a prata dos templos, os conquistadores


construíram igrejas sobre as ruínas ainda fumegantes. Entre esses novos cruzados
do ferro e do fogo, alguns missionários mais pacíficos preferiram espalhar o seu
ideal apostólico «corrigindo o interior» desses heréticos pagãos. Foi assim que
Frei

(’) J. Durand-Forest, uma das raras especialistas da língua sagrada dos Astecas,
o nahuatl, deu-nos informações precisas sobre a formação desta palavra: a
representa a raiz do termo que designa água, e t1 o sufixo próprio dos
substantivos. Esta explicação não e incompatível com a nossa hipótese.
172
Bernardino de Sahagúri desembarcou em 1529 na Nova Espanha e começou a estudar a
cultura índia em todos os níveis, com um método de investigação absolutamente
extraordinário para a época (). Graças a esses missionários, algumas informações
preciosíssimas chegaram até nós em nahuatl, sob o nome de Codex. Contudo, nem
todos estão ainda decifrados nem publicados. Sem dúvida a censura de Roma tem
uma certa culpa disso. Mas a sociedade asteca apresenta actualmente um carácter
bem mais complexo do que o de um Quetzacoatl, emplumado apressadamente nos
instantâneos dos amadores de um insólito barato.

OS CINCO APOCALIPSES

Sob a luz implacável do Sol, num céu de uma limpidez espantosa, a visão
apocalíptica dos Astecas Justifica-se uma vez mais quando Cortez destruiu
definitivamente o seu império, apenas quatro anos depois de Córdoba, antigo
marinheiro de Cristóvão Colombo, ter sido atirado por uma tempestade para a
ponta do lucatão (’).

O arqueólogo Jacques Soustelle, um dos maiores especialistas do México Antigo e


da língua nahuatl, traduz assim um texto antigo que relata o acontecimento:

«Quando os espanhóis, louros e barbudos, apareceram a leste, o imperador


Motecuzoma e os seus conselheiros pensaram durante algum tempo que era o
regresso de Quetzacoatl à Terra; com efeito, uma lenda dizia que ele

(’), Frei B. Sahagún escolheu, entre os velhos de cultura mexicana pré-


hispânica, alguns informadores. Estes responderam a uma primeira série de
perguntas feitas a jovens indígenas trilingues, que falavam o nahuatl, o
espanhol e o latim. Os documentos recolhidos, conhecidos pelo nome de «Primeros
Memoriales», serviram depois para a elaboração de outros questionários mais
completas. Cf. Alfredo López Agustin: Textos de Medicina AlalitiatI (México, ed.
Sepsetentas, 1971). (”) Los Veinte y un Libros Rituales y Monarchia Indiana, con
el Origen y Gerras, de los Indios Occidentales, de sus Poblaçones,
Descubrimiento, Conquista, Cunversion y otras cosas Maravillosas de Ia Mesma
Tierra, por Frei J. Torquemada (México, ed. S. Chavez Hayhoe, 1943-1944) e
Historia de los Mexicanos por sus Pinturas, man. pub. por D. Icazbalceta in
Nueva Coleccióti de Documentos para Ia Historia de Mexico, t. III, México, 1892.
173
voltaria num ano ce acatl (= junco), e 1529, ano da invasão, foi um ano ce
acatl.»

Já quatro eras o tinham precedido. Todas terminaram com cataclismos, aos quais
nenhum homem sobreviveu. Essas quatro eras, ou «os quatro Sóis», são descritas
nas crónicas de Torquemada (’) pela ordem que figura nos baixos-relevos do
célebre monumento conhecido pelo nome de «calendário asteca». São: O Sol do
Tigre, ou izahui ocelotl (= «quatro jaguares»), que terminou com o gigantesco
massacre dos homens devorados pelos jaguares. Esta lenda relatará um
preconhecimento de uma era destruída por uma invasão vinda dos espaços
galácticos? O deus jaguar, para os Astecas, Tezcatlipoca, simboliza as trevas
manchadas de estrelas, tal como a pele do felino.

O segundo universo, ou Sol de Vento ‘ nahui eecatl, foi dizimado por uma
tempestade mágica durante a qual Quetzacoatl, a Serpente Emplumada, deus do
vento e rival mitológico de Tezcatlipoca, transformou os homens em macacos.

A era do Sol de Chuva, nahiti quiatíitl, foi submergida por uma chuva de fogo
enviada por Tlaloc, o deus ambivalente da chuva e da tempestade. Jacques
Soustelle pensa que este mito terá nascido da recordação das grandes erupções
vulcânicas que cobriram de cinzas e de lava uma parte do vale do México, algum
tempo antes da nossa era.

O quarto Universo ou Sol de Água, nahui atl, regido pela deusa da água,
Chalchicuhtlicue, foi engolido por um dilúvio que demorou cinquenta e dois anos.
Somente um casal que se abrigou num tronco de cipreste escapou, mas Tezcatlipoca
transformou-os em cães por terem desobedecido às suas ordens.

Assim, os homens do universo da quinta era, ao qual pertenceu o imperador


Motectizoma, não descendiam deste casal, que tinha, talvez, assistido ao
desaparecimento da Atlântida...

(’) Expulso pelos Indios, Córdoba foi para Cuba, onde revelou a Velázquez a
extensão de riquezas a conquistar. O governador de Cuba enviou então uma
expedição sob o comando do sobrinho Juan Grijalva, depois uma outra dirigida por
Herman Cortez, que deixou Cuba a 18 de Fevereiro de 1519.
174
Este universo foi criado por uma das manifestações cíclicas de Quetzacoatl, que,
sob o aspecto de Xoloti, o deus com cabeça de cão, desceu aos Infernos para
roubar os ossos secos dos mortos e dar-lhes vida, sacrificando para isso o seu
próprio sangue.
Este mundo actual ou Sol dos Tremores de Terra, nahid ollin, está destinado a
ser destruído por sismos enormes. A quinta era é também a do Sol do Centro,
porque «cinco» e «centro» têm o mesmo símbolo para os Astecas: o do equilíbrio.
Equilíbrio entre as forças da morte e as do renascimento, que o povo asteca deve
manter ao preço da «água preciosa», o sangue humano, digno nisso do seu deus
Quetzacoatl.

OS LUMINARES DO MUNDO

É portanto ao preço do sacrifício do seu sangue que os homens podem libertar as


forças da vida. Tal como os próprios deuses, que, tendo-se reunido nas trevas,
em Teotihuacan (’), decidiram criar os luminares do mundo. «Quem é que será
transformado em astro?» O primeiro deus a responder foi Tecciztecatl, o segundo
Nanauatzin. Os dois fizeram penitência durante quatro dias; depois os deuses
acenderam um grande fogo.

Para quem quiser compreender a concepção que os Astecas tinham da vida, da


doença e da morte, é importante conhecer melhor a personalidade destes dois
actores.

TecciztecatI, «o da concha», é o deus da Lua, representado pela concha marinha,


símbolo sexual da mulher. Significa nascimento e geração, tal como a Lua preside
ao nascimento da vegetação e da vida em geral.

Talvez fosse mais justo falar de «renascimento», porque a Lua, que aparece e
desaparece no céu, simboliza também para os antigos Mexicanos a alternância das
estações, a morte e o renascimento das plantas, o Sol misterioso e o despertar
do homem ébrio.

Nanauatzin, sósia de Quetzacoatl, o «morto ressuscitado», é um pequeno deus


leproso ou sifilítico, coberto

(’) A 40kra de México. Nesta cidade, alto lugar da civilização «Velha Tolteca»,
levantam-se as duas pirâmides da Lua e do Sol.
175
de pústulas e de úlceras, o que e pouco glorioso para o astro tão resplandecente
no qual se transformou.

Depois de terem acabado as suas penitências, as duas divindades fizeram as suas


oferendas. TecciztecatI ofereceu plumas, ouro, pedras preciosas. Nanauatzin era
tão pobre que não pôde oferecer senão os espinhos manchados de sangue com os
quais se tinha mortificado, aos quais juntou nove juncos, o número das coisas
terrestres e infernais e da estada dos mortos nas planícies do Norte. Então os
deuses edificaram dois grandes montículos, ou pirâmides, ao cimo das quais
subiram Tecciztecat1 e Nanauatzin, que aí permaneceram cin penitência durante
quatro dias.
Transcorrido este período, entregaram aos deuses um pouco antes da meia-noite’
os ornamentos que iriam levar para o seu sacrifício: a Tecciztecatl, os
ornamentos de plumas, e a Nanauatzin, os ornamentos de papel. Depois os deuses
colocaram-se dos dois lados do fogo.
O primeiro, Tecciztecatl, tentou lançar-se no braseiro ardente, mas recuou
quatro vezes. Então Nanaualzin lançou-se sem hesitar e o outro deus seguiu-lhe o
exemplo.

Os deuses começaram a perguntar-se de que lado apareceriam os dois astros. Uns


viraram-se para o Norte, outros para o Sul, outros para o Oeste e os últimos,
entre os quais Tezcatlipoca e Quetzacoatl, para o Este. Foi assim que se
levantaram a este o Sol e a Lua. Os dois brilhavam com o mesmo brilho. Então,
para punir Tecciztecat] pela sua cobardia, um dos deuses atirou com um coelho à
face da Lua. É esta mancha em forma de coelho que, dizem, diminui a sua
claridade!

Mas os deuses viram com temor que os dois astros permaneciam imóveis lá no
horizonte, queimando o mundo com o seu fogo. Compreenderam então que esses
astros estavam mortos e que era necessário sangue para dar-lhes vida: «Morramos
todos», disseram, «e façamos com que o Sol ressuscite graças à nossa morte.» Um
deles, EecatI (quer dizer QuetzacoatI, enquanto deus do vento), encarregou-se de
os matar a todos. Mas XolotI, deus sósia e o outro reflexo de Quetzacoatl,
tentou furtar-se a isso fugindo para um campo de milho, onde se tornou numa
espiga dupla; depois escondeu-se num campo de piteiras, onde se transformou em
mexolotl ou
176
piteira dupla, por fim mergulhou na água, onde se transformou em axolot1.
Finalmente apanharam-no e mataram-no. Assim, Quetzacoatl, que já se tinha
sacrificado sob a forma de Nanauátzin, morreu uma segunda vez sob a forma de
Xolotl. Então, «por sobre os deuses sacrificados e tirando a vida da sua- morte,
o Sol e a Lua começaram o seu caminho no céu», concluiu o índio informador do
padre Sahagún.

A MíSTICA SOCIAL DA ANGúSTIA

Os terrores que reinam sobre os espíritos das populações astecas são múltiplos:
que o curso do Sol e da Lua parem, e a vida acaba. Ao nível individual, tudo é
relativo, cada um tem de morrer um dia. Mas o próprio Sol poderia ser destruído.
Assediados pelo medo dos Tzitzimime, monstros destruidores que surgirão um dia a
oeste das trevas para destruir tudo o que a humanidade fez, os filhos do Sol
vivem num clima de permanente angústia colectiva. Tudo o que vem dos domínios
tenebrosos fá-los tremer.

«O Sol, nascido de um sacrifício, atravessa o céu de este a oeste, com o seu


cortejo masculino e o seu cortejo feminino, passando pelo meio-dia pleno, quando
triunfa e reina sobre a Natureza.
«Atinge o Oeste e desaparece sob a Terra, na morada dos mortos. Então o mundo
fica entregue aos poderes nocturnos, a Tezcatlipoca, o feiticeiro, e aos
Ciuateteo (1), às flechas de Tlauizcalpantecutli, aos presságios inquietantes
dos meteoritos; só a Lua brilha como um símbolo de fertilidade e de abundância
futura. Por cima do curso dos astros, os céus sobrepostos escalonam-se, com a
sua população misturada de monstros e divindades; no cimo do Universo, nos céus
superiores onde o ar é muito frio, leve e gelado, impossível e quase inactivo
para além das actividades turbulentas e contraditórias dos deuses e dos homens,
fonte inesgotável de vida sem movimento e

C) Este termo designa as mulheres mortas de parto. Divinizadas, elas eram


autorizadas a acompanhar o curso do Sol do zénite até oeste; era terrível
encontrá-las ao crepúsculo, quando se reuniam nas encruzilhadas.
177
sem história, quase esquecido mas assegurando pela sua
própria existência a de todos os seus, reina o velho casal primordial.» (’)

Resumida assim por Jacques Soustelle, toda a cosmologia dos Antigos Mexicanos
explica porquê cada gesto, desde o nascimento à morte, do mais banal ao mais
sofisticado, tem de passar pela sanção dos deuses.

A APRENDIZAGEM DO CASTIGO DIVINO

Tal como em muitas outras sociedades antigas, a Confederação Asteca condiciona


as suas crianças(’) desde a mais tenra idade ao modelo «desobediência/castigo»
e, reciprocamente, « obediência/ recompensa ». Somente, aqui, os censores são os
deuses. A doença não é um sintoma, ela é o reflexo de uma atitude para com a
vida. A imagem sociofamiliar adquirida desde os primeiros passos no mundo
participa, com efeito, das possibilidades etiológicas do patos da adolescência,
e depois do adulto. Desde Freud a Reich, os psicólogos estão de acordo em
demonstrar que a coesão de um grupo social é tanto mais rígida quanto mais o seu
sistema repressivo, moral ou qualquer outro, for forte. Na sociedade asteca, os
deuses têm todos os poderes. O jovem asteca aprende a submeter-se quando deixa o
lar familiar, entre os sete e os nove anos de idade. O futuro artesão começa
então a sua vida de aprendiz, enquanto outros vão passar alguns anos nos
colégios do Império. As raparigas aprendem as regras da vida prática e, tal como
os rapazes, as «boas maneiras». Os rapazes são levados para um colégio que
corresponda à categoria social dos pais. Uns são admitidos num dos colégios do
bairro, os telpochcalli, onde um treino militar os prepara para a vida e para a
produção colectiva. Os outros, que pertencem à

(’) Cf. Soustelle (J.): La Penséc Cosi?iologiqzte des Anciens Mexicains (Paris,
Hermann, 1940). (”) Para o fazerem, aos Astecas não faltava imaginação. Eis
alguns dos castigos infligidos: àquele que mentia, furavam-se ou cortavam-se os
lábios; consoante a natureza da falta, as crianças estavam sujeitas a ser
fustigadas com espinhos, flageladas com urtigas, suspensas de cabeça para baixo,
expostas aos vapores acres do chili ou ser-lhes queimado o cabelo...
178
classe dominante, levarão num colégio religioso, ou calinacac, a vida de
austeridade monástica e de domínio de si mesmos que os tornará dignos dos seus
futuros cargos de altos funcionários da Igreja ou do Estado.

A observação rigorosa do jejum, a das penitências e a da abstinência sexual


fornecem, desde muito cedo, a angústia necessária para aceitarem submeter-se à
hierarquia místico-militar da Confederação.

Pela sua falta de obediência, aquele que violar as regras e os tabus pode levar
à perda de todo o Universo, assim como dele mesmo: a cólera incontrolável dos
deuses pode, como tão bem o revelam os mitos, ser a fonte de cataclismos tanto
humanos como cósmicos.

A doença é por conseguinte concebida como castigo divino. Para se curar, o


doente deve dirigir-se aos seus intermediários entre os deuses e os homens, que
são os médicos. Parece-nos muito importante sublinhar aqui que esta «doença-
punição» deve ser interpretada no sentido de uma grave ruptura do equilíbrio,
pondo em jogo o ciclo dos nascimentos quotidianos dos astros, das plantas e dos
homens. Não no sentido desses pequeners e múltiplos males que oprimem a nossa
sociedade demasiado segura, onde os homens reclamam antiespasmódicos,
antibióticos, etc., em vez de regerem o seu próprio destino.

O conforto mole não é o forte dos Astecas, cujo luxo, no entanto, nunca teve
igual no Ocidente. Guerreiros formidáveis submetidos à disciplina dos deuses, os
Astecas viviam como responsáveis da origem da sua doença, que se tornava assim
tanto mais terrífica e grave.

O MUNDO DAS PLANTAS QUE CURAM

É evidente que existe uma medicina «popular» que conhece as ervas medicinais e
sabe aplicá-las correctamente nos casos banais em que o diagnóstico do
sacerdote-médico não é necessário. Essencialmente rural e fora das grandes
cidades, a população asteca possui conhecimentos rudimentares que lhe permitem
curar-se tão bem como o faziam antigamente os nossos camponeses. Nos mercados
das grandes cidades -no México, entre outras-, os panamac, como antigamente
alguns pastores das nossas montanhas, vendem plantas e cura-
179
tivos. E, como dois conselhos valem mais do que um, não é de duvidar que os dos
panamac tenham por vezes dobrado ou completado os do sacerdote-médico nos casos
menos benignos.

«Ê ao mundo das plantas que a terapêutica vai buscar os seus principais


recursos; a arte de curar os doentes ou de os aliviar anda a par com os
trabalhos dos herboristas.» (’)

Estas plantas -são por vezes cultivadas nos acessos às grandes cidades, nesses
jardins flutuantes - ou chinamPas - que os Espanhóis tanto admiraram à chegada
(2).

Os astecas sabiam distinguir cerca de doze mil espécies de ervas curativas, ou


padi, entre as quais citaremos Somente alguns termos genéricos para darmos uma
ideia geral dos casos em que elas eram utilizadas:

Palancapadi, remédio para as úlceras; pozaualizpadi, remédio para os inchaços;


yoIlopadi, remédio para as doenças de coração (palpitações); poztecpatli,
remédio para as roturas (luxações); tzipipadi, remédio para os bebés; ezpatli,
remédio cor de sangue; chichicpadi, remédio amargo, etc. A classificação índia
assenta em analogias por vezes muito secundárias ou em simples atributos comuns
(:’). Apesar disso, os conhecimentos práticos e empíricos desta medicina popular
são suficientemente eficazes para serem transmitidos, através das gerações, aos
feiticeiros-curandeiros das aldeias mestiças do México contemporâneo, e mesmo
para serem estudados pelos nossos modernos terapeutas.

RENASCIMENTO DA FITOTERAPIA NAHUATL

Entre as numerosas plantas da farmacopeia nahuatl, citemos pelo menos algumas


que são utilizadas pelos fito-

(’) Gerste (A.), S. L: Notes sur Ia Médecine ei Ia Botanique des Anciens


Mexicains (Roma, Impr. polyg. Vaticano, 1910). raí7 C) Estes jardins eram
formados por «jangadas» de ramos,
es e juncos entrançados e cobertos de terra. (’) Esta classificação corresponde,
aliás, à sua «escrita em imagens»: para designar, não determinada planta, mas
toda uma classe (árvore, vegetal herbáceo, leguminosa), os «escritores» tinham
tendência a separar os signos estritamente figurativos de todos os traços que
caracterizam uma espécie. Cf. Gerste (A.): op- cit.
180
terapeutas, pelos bioterapeutas e pelos bromoterapeutas europeus. Todas estas
substâncias são fornecidas ao médico moderno sob a forma de « tinturas-mães»,
preparadas pelos laboratórios de farmacologia homeopática a partir da parte
activa da planta, graças a processos de maceração ou de percolação alcoólica.

Todas as plantas que iremos ver foram objecto de um protocolo experimental


córtico-visceral farmacodinâmico, ou «partogenesia» (), de que apresentaremos as
principais conclusões:

Piteira, ou maguey (’). A maior parte das suas 170 variedades são originárias da
América do Norte e da América Central (’). Os Astecas utilizavam um emplastro
composto destas folhas pulverizadas e secas, de resina vegetal e de plumas, que
aplicavam nas feridas. A medicina popular mexicana utiliza ainda os emplastros
de maguey. Em decocção, esta planta terá tido bons resultados no tratamento da
sífilis e da gonorreia. A experiência patogenésica () forneceu como principais
indicações: astenia, anorexia, desejo de bebidas alcoolizadas. No etilismo
crónico, o Dr. Luí s de Legareta preconiza a administração de 15 gotas de
tintura-mãe a 1/1000 de diluição, de manhã em jejum, como tratamento preventivo
provocando uma repugnancia certa em relação às bebidas alcoólicas.

Kartvinskia ou Humboldtiana, planta da família das ramnáceas. Maximino Martinez


diz-nos que a ingestão das suas folhas provoca a paralisia e a sua raiz cozida é
um excelente contraveneno.

(’> Patogenesia ou «protocolo experimental córtico-visceral farmacodinâmico» é o


conjunto dos sinais biológicos ou clínicos produzidos num experimentador por uma
tomada repetida duma dose variável da substância estudada. Os homoterapeutas
prescrevem essas substâncias aos seus doentes graças à observação da lei da
analogia, que lhes ensina que substâncias capazes de produzir certos sintomas
numa pessoa terão um efeito semelhante num doente com os mesmos sintomas.
Ou tlcametl em nahuatl. Cf. Raffour (Dr. L.>: La Médecine chez les Mexicains
Précolombiens (Paris, Jouve, 1900). (’) A primeira experiência patogenésica da
piteira foi feita pelo Dr. L. de Legareta; cf. Matière Médicale Homéopathique
des Plantes Mexicaines (México, 1961). Todas as experiências com plantas
mexicanas foram publicadas pelo Dr. Julian en Matière Médicale d'Honiéopathie
(Paris, Peyronnet, 1971).
181
Os Indios utilizam as folhas em decocção como anticonvulsivo no tétano, e
localmente como anti-séptico.

A experiência patogenésica (’) produziu sintomas muito parecidos com os


indicados pela medicina popular mexicana: paresia, depois paralisia progressiva
ascendente, arrastada, indolor, com predominância do lado esquerdo.

Larrea Divinicata, paloondo ou gobernadora, da família das zigofíláceas, é usada


popularmente para as luxações, as fracturas, as inflamações, as lesões
dermatológicas, as afecções reumáticas, a disúria, as litíases renais e
viscerais.

A experiência patogenésica forneceu como principais indicações as dores


abdominais do tipo das cãibras, a anorexia, as náuseas, os inchaços, as dores
frontais, as dores nevríticas e reumáticas dos membros inferiores e da coluna
vertebral.

Lophophytuin Leandri, ou Flor de Piedra (ou «flor de pedra»), ou Doradilla, da


família das selagineláceas, é usada pelo povo para as dispepsias dolorosas e
litíases biliares. É considerada como diurética e aconselhada nas cistites e nas
inflamações urogenitais.

Os sintomas patogenésicos conduzem actualmente à sua prescrição em casos de


cefaleias, vertigens, constricção do pescoço, fadiga matinal, inchaços,
diarreias espasmódicas, cardialgia, afecções da tiróide e hepático-vasculares.

Finalmente, o Dr. Louis Raffour menciona diversas utilizações que os Astecas


faziam da terebentina. O ocotzol, ou «suor do pinheiro», era utilizado mais
especialmente em emplastros contra os «abcessos da cabeça». Actualmente, esta
substância é utilizada em aromoterapia como anti-séptica e anti-infecciosa. Ao
lado desta medicina das plantas, situando-se por vezes num plano doméstico e
profano (se é verdade que esses pequenos males quotidianos não eram o resultado
psicossomático da angústia existencial vivida pelo comum dos Astecas), existe
uma medicina totalmente integrada na mística colectiva, de carácter puramente
cosmológico, à qual se

(@) Experimentado por: C. Narejas, México 1918; L. de Legarata, México 1961; J.


Stephenson, Bombay 1963; E. Treviro, J. A. I. H. 1966; R. Serror, Paris, 1976.
182
recorria quando os sintomas ou o perigo (como nos partos) eram demasiado
alarmantes.

A TERAPÊUTICA DIVINATóRIA

Importa antes de mais ao doente descobrir como é que pôde desagradar aos deuses
e como remir-se. À disciplina que rege o espaço do gesto social, corresponde o
código ao qual está submetido o tempo socio-religioso, quer dizer, os dias ou as
noites fastos ou nefastos do indivíduo e da colectividade.

Os altos conhecimentos astronómicos dos Astecas permitiram-lhes estabelecer dois


calendários, um profano e outro sagrado. A astronomia confunde-se com astrologia
nos templos sagrados. Este prodígio da inteligência e da ciência que constitui a
astronomia asteca é no entanto menos complexo e menos perfeito que a dos Maias,
que mergulhava milhares de anos no passado e podia constituir, segundo alguns, o
testemunho de visitantes extraterrestres(’).

Nem por isso é menor a glória dos sacerdotes astecas encarregados do ministério
dos cultos astrais por terem sabido determinar com uma extrema precisão as fases
e os eclipses da Lua, distinguir certas constelações como a Ursa Maior e as
Plêiades, assim como a revolução de Vénus.

O calendário profano segue o curso do Sol. É constituído por dezoito meses de


vinte dias cada um, ou seja trezentos e sessenta dias, e cinco dias nefastos ou
«vaZioS» (2).

O calendário sagrado, tonalpualli, ou calendário de Quetzacoatl (”), dividido em


260 dias, é composto segundo

1 A observação destes dois ciclos continua a existir para os Mexicanos modernos,


que observam, pelo menos as crianças, o dia da semana em que nasceram, a data do
mês e o santo cuja festa se celebra nesse dia. Cf. J. de Durand-Forest: «La
Divination dans le Mexique moderne» in La Divination (Paris, PU, 1968). (’) Cf.
o artigo de M. Agrest «Des cosmonautes dans l'Antiquité?» in Revue Planète n.’
7, Paris, 1962. (’) Cf. L. Pauwels e J. Bergier: Matin des Magiciens (Paris,
Gallimard, col. «Folio», 1972): «A duração exacta do ano solar foi fixada em
365,2422 dias. Os Maias tinham encontrado 365,2420 dias.
183
um ciclo de duas séries que se combinam: uma de treze números indo de um a
treze, e outra de vinte nomes inspirados em símbolos escolhidos na Natureza (ou
seja,
13 x 20 = 260).

Esta combinação não permite reencontrar o mesmo nome afectado pelo mesmo número
senão cada cinquenta e dois anos. Os anos sagrados são, além disso, contados por
períodos de cinco, equivalendo cada período a oito anos solares (’).

Os dois calendários não se correspondem, portanto, senão depois de treze


períodos de cada um deles, ou seja
65 (13 X 5) anos sagrados ou 104 (13 X 8) anos solares e profanos. Todos os
cinquenta e dois anos -ou seja, a metade de tempo necessário (contado em anos
solares) para que os dois calendários se correspondam exactamente -, os Astecas,
durante uma noite de angústia cósmica, praticam a «ligação dos anos».

Enquanto que no Império todos os fogos do ano que passou não são mais que cinzas
e se partem todos os potes, pratos e outros utensílios domésticos, cada um
espreita o momento em que será iluminado pelo Fogo novo o cume da montanha
UixachtecatI, perto da meia-noite, e as Plêiades continuam o seu curso. O
Império está salvo durante mais cinquenta e dois anos! (’). Um cativo é
sacrificado e os mensageiros vão levar a notícia através de toda a Confederação.
Nas casas as lareiras são acesas e a louça é substituída.

PSICOTERAPIA DO SACRIFíCIO HUMANO

Cada divindade é celebrada com uma festa e cada festa é uma psicoterapia da
angústia colectiva. Nestas terras altas queimadas pelo Sol onde os deuses têm
sede e fome, onde reclamam insaciavelmente o sangue fresco

(’) Frequentemente chamada, e sem razão, «calendário venusiano», a revolução de


Vénus só dura 224 dias. Esta confusão é devida ao facto de o planeta Vénus ser
chamado, quando estrela da manhã ou da tarde, Ueycitlalin ou «grande estrela»,
simbolizando o deus Tlauizcalpantectli, isto é, Quetzacoatl ressuscitado. (-^)
«0 último fogo novo foi aceso em 1507, no reinado de Motecuzoma II.» Cf. J.
Soustelle: les Aztèques (Paris, PUF, col. «Que sais-je?», 1970).
184
de novas vítimas, não há nenhum dia em que o ritual do sacrifício humano não
seja cumprido. Flores e ramagens, no dizer dos cronistas, como Sahagún ou
Tezozomoc, ornam em profusão os templos inundados do sangue das vítimas:
mulheres imoladas à deusa do sal, em companhia de numerosos escravos, na véspera
do primeiro dia do mês tecuilhuitonth, sacrifício de combatentes ao undécimo
mês, hecatombes de crianças de tenra idade, ornadas de flores e plumas, levadas
sobre as liteiras antes de serem oferecidas ao deus das chuvas... Tudo isto
acompanhado de cantos e danças exalando os pesados perfumes dessas flores
tropicais que, segundo Duran, entram em «carregamentos completos» todos os dias
no México.

Vejamos como se desenrolavam as festas dedicadas aos deuses tutelares da


medicina; Toci, ou «Tocitzin, nosso venerável antepassado», é representado com
os traços de uma mulher idosa, com rosto negro em baixo e branco a partir do
nariz: «Depois de muitos dias de festejos, as ticitl(’), mulheres-médicas e
parteiras, divididas em dois grupos, simulavam um combate em que às adversárias
se lançavam flores como se fossem projécteis. Depois de ter ornamentado com
flores uma rapariga que tomava o nome da deusa, Toci, cortavam-lhe a cabeça,
tiravam-lhe a pele, e um jovem coberto com essa pele ensanguentada ia ao templo
arrancar o coração de outras quatro vítimas humanas. Esta festa coincidia com a
grande festa XochihuitI (o deus das flores), que terminava no começo do Inverno
e em que se venerava principalmente a deusa Xochiquetzal (flor preciosa). Neste
dia era necessário satisfazer os caprichos da deusa com oferendas, flores e
sacrifícios de raparigas.

A MÁ SORTE

Este calendário sangrento e sagrado desempenha igualmente um papel muito


importante na medicina.

(’) As descobertas ulteriores dos antropólogos permitem-nos aceitar este termo


num sentido mais lato do que o observado até agora. (2) Cf. Martinez (L) La
Médecine Précolombieizne au Mexique (Paris, tese para o doutoramento na
Faculdade de Medicina,
1934).
185
Mais importante do que o diagnóstico da doença, o curso favorável ou fatal de
qualquer doença, hoje como ontem, constitui a principal preocupação do doente e
dos seus familiares. A medicina, a exemplo de outras projecções culturais desta
sociedade, possui uma técnica muito desenvolvida que lhe permite augurar o
futuro «COM precisão».

A astronomia dos Astecas apoia-se numa aritmética muito desenvolvida. A


numerologia sagrada está estreitamente ligada aos oráculos do calendário. Os
treze algarismos dos dias correspondem provavelmente aos treze céus em que vivem
os deuses do seu panteão. O número treze é o grande número mágico que exprime o
conjunto do espaço e do tempo. O número doze é dedicado ao Sol.
O número nove, correspondente à Terra, morada dos mortos, corresponde ao dia dos
malefícios.

Quando nascia uma criança, o sacerdote era encarregado de verificar se o signo


sob o qual ela tinha vindo ao mundo era fasto ou nefasto. É o tona1puhq@Ú quem
se encarrega desta tarefa, consultando o Livro Sagrado concebido pelo deus sábio
Quetzacoatl. O calendário oracular, regido pelo panteão nahuatl, cuja
interpretação é fundamental para a vida asteca, predetermina o destino de cada
um dos indivíduos de um grupo. É melhor nascer num dia fasto que assegura um
destino benéfico, porque, os que têm o azar de nascer em dias nefastos como
aqueles em que os ciuateteo(’) descem até às encruzilhadas, esses não conhecerão
senão a má sorte, tal como os que adoecem em signos tão funestos, porque o seu
mal só terminará com a morte.

«Na mística indígena, o destino pode no entanto ser modificado, alterado,


corrigido, de forma a tomar a direcção desejada. Aquele que nascia sob um mau
signo era consagrado aos deuses nos dias propícios para evitar a má sorte.» (2)
Os humanos são por natureza insubmissos aos deuses.

O Codex Vaticanus, um dos documentos nahuatI mais importantes que chegou até
nós, mostra numa das suas

(’) O poder mágico dos citiaieleo chegava até à utilização do seu braço ou mão
cortados, que permitiam aos ladrões tornarem-se invisíveis para entrarem à noite
nas casas.
C) Cf. Beltran (A.) op. cit.
186
gravuras que cada dia do ano era, além disso, proibido agir sobre uma parte
determinada do corpo.

Os médicos-curandeiros baseavam-se neste género de esquema para conhecer a causa


da doença e os meios de a curar (’).

O «TICITI.» OU MÉDICO-ADIVINHO

A arte médica estava estritamente ligada à adivinhação (aos pressentimentos)


entre os Astecas, tendo os dois uma denominação comum: ticiot1. O título de
ticit1 era portanto conferido a esse ministro dos deuses junto dos homens (’).

Função prestigiosa à qual se juntavam atraentes gratificações, mas que tinha


também os seus riscos, porque, se o médico-adivinho falhasse na sua tarefa, «a
lei exigia que ele morresse sacrificado e aberto, “por tais pecados"».

No território da Confederação, o sistema educativo tomava desde muito cedo as


crianças a seu cargo. A entrada na arte médica realizava-se portanto numa idade
muito precoce.

Simples ajudante a princípio, o aprendiz chegava, com os anos, a obter o cargo


de liciti.

A casta dos médicos-adivinhos, detentora de um saber esotérico muito complexo,


transmitia muito provavelmente os seus conhecimentos, oralmente, na sombra
sangrenta dos templos. Isto explica -na falta de preciosos detalhes- por que
razão era tão difícil saber o que eram exactamente estes ticitl, os seus
métodos, as suas funções e a extensão dos seus conhecimentos (’). Parece, em
todo o caso, que homens e mulheres eram igualmente considerados como aptos para
exercer a arte do ticiotl.
*/* a ler e a marcar
Frei Bernardino de Sahagún deixou-nos descrições relativamente precisas dos
ritos que praticavam as mulheres ticitI, para diagnosticar as doenças e tratá-
las.

(’) Ver gravura de Aztec Medecffie of Mexico (Bombay Ciba Monographs, n., 16,
1953). (’) Cf. Durand-Forest Q. de): «Divination et présages dans le Mexique
ancien et moderne» in Cahiers d'Ainéi-iqtie Latine, n., 2, Paris, 1968.

Cf. DurandTorest (J. de): op. cit.

187
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

RITOS DO MILHO E OUTROS PROCESSOS DE ADIVINHAR

Os ritos do milho têm um lugar muito importante, assim como este cereal na
economia doméstica.

Quando uma criança está doente, uma mulher, «aquela que lança os “grãos de
milho"» ( in tlatolli quitepevaya), pronuncia as esconjurações e prediz o
futuro. Depois de colocar os grãos doirados num pote fechado, ela lança-os ao
solo. Se eles se espalharem, anunciam a morte; se caírem juntos, a criança cura-
se ().

«A que vê o destino de qualquer pessoa na “água"» (atlan teitaya), outra


especialista do milho, mordisca os graos que lança numa cabaça cheia de água. A
cura está assegurada se os grãos não se separam de uma determinada maneira, mas,
se eles se espalharem pela superfície da água, pressagiam a morte.

Quando a sina de um horóscopo funesto ameaça um recém-nascido, a criança é


colocada por cima de um recipiente cheio de água, com o rosto virado para essa
água onde ela lança os grãos de milho. O destino está conjurado se os grãos
caírem e ficarem no fundo. Mas, se os grãos flutuarem à superfície ou no
líquido, não poderá ser evitado C).

Por vezes as mulheres ticitI atam cordõezinhos uns aos outros: se os nós se
desfizerem o doente pode curar-se, mas se, pelo contrário, se apertarem, o
presságio é nefasto.

Um outro rito utilizado pelo ‘homem ticitI recorre à adivinhação pela palma
da mão. Depois de se ter informado da natureza da doença, o médico-adivinho
agarra, com a mão direita, umas folhas de tabaco (adicionadas ou não COM cal) e
coloca-as na sua mão esquerda. Então, medindo o antebraço esquerdo do doente com
a palma da sua mão direita, pronuncia a invocação que lhe permitirá conhecer a
origem da doença. Para que a cura seja certa, a invocação deve terminar no
momento preciso em que os seus dedos se sobreponham aos do

(’) Cf. Garibay (A. M. K.): Paralipo,71enos de Sahagtín (México. Tlalocan, vol.
11, n.’ 1, 1945). (@’) Cf. La Serna (J. de): Manual de Ministros de índios, para
el Conocimiento de sus Idolatrias y Extirpación de Ellas (México, Ed. Fuentes
Cultural, 1953).

188
OS SACERDOTES-MÉDICOS DA AMÉRICA PRÉ-COLOMBIANA

doente (’). Esta prática não surpreenderá talvez os endireitas das aldeias
francesas!

Todos estes ritos médicos recorrem a media colhidos no ambiente quotidiano (’).
Mais original é a adivinhação induzida pela absorção de diversas plantas
alucinogéneas, conhecidas sob o nome de peyotl, ololiuhqui, teonanacad, com fins
terapêuticos. Entre as substâncias utilizadas pelo ticit1 como expansores
psíquicos, o peyotl e os cogumelos alucinogéneos são os mais usados.

O ÊXTASE DO «PEYOTL»

O peyotl, ou Anhalonium Leiviiiii, é um pequeno cacto sem espinhos de aspecto


lenhoso e sedoso -daí o seu nome de origem nahuatl: peyot1 - «casulo de bicho de
seda», Lophopliora Williainsi (’). Cresce nas regiões semidesérticas de
Coahuila, Zacatecas, San Luis Potosi, donde se espalhou até aos Estados Unidos.
Durante muito tempo, houve uma certa ambiguidade a seu respeito. Pan2ce que,
enquanto o uso alucinogéneo entre os Índios nómadas do Norte do México, os
Chichimecas, era endémico, estava bastante menos espalhado entre os cidadãos da
Confederação asteca. «É como se os informador,@s astecas dissessem: “Os
Chichimecas têm o seu pe-voll tal como nós temos os nossos cogumelos".» (1)

Alguns textos de Sahagún parecem corroborar esta opinião: «E os Teochichimecas


tinham conhecimento das ervas, das raízes, como elas eram e como se propagavam.
Estes povos descobriram aquilo a que chamam peyot1. Preferem-no ao vinho ou aos
cogumelos. Reuniam-se num terreiro, em qualquer lugar. Aí cantavam e dançavam
toda a noite e todo o dia. E, no dia seguinte, reuniam-se de novo, e choravam,
choravam copiosa-

(’) Cf. Ruiz dc Alarcóii (H.): Tralado de Ias Supersticiones y Costuinbres


Gentilicas que oy Viven Entre los Indios Naturales desto Nzieva EspaFia (México,
Ed. Fuentes Cultural, 1953). («’) Alguns, corno o jogo do milho, recorrem também
a combinações numéricas, tal como a geomancia.

Cf. Durand-Forest (J. de): op. cil. Esta interpretação foi sugerida pelo Dr.
Anderson a R. Gordon-Wasson. Cf. Heim et Wasson: Les Chw77pignons Halhici- ?
z<)gène,,; du Mexiqt4e (Paris, ed. du Museum d'hist. nat., 1958).

189
4S MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

mente. Dir-se-ia que os rostos estavam lavados. Com as suas lágrimas, eles
limpavam os olhos.»

Sahagún prossegue a sua descrição (o texto é traduzido do nahuatl): «Este peyot1


é branco, e cresce apenas no país dos Chichimecas, a terra do deus Mixcoalt,
chamada o país do Norte (ou o “do lado dos Infernos”). Quem o comer ou beber
fica envenenado tal como acontece com os cogumelos. Vê também muitas coisas
terríveis ou alegres. Fica intoxicado durante um dia ou dois.»

Parece no entanto que o uso do peyotl estava bastante difundido quando da


chegada dos Espanhóis, já que Hernandez, protomédico (1) de Filipe II, escreveu,
cerca de metade do século XVI, na sua História Natural da Nova Espanha, que
aqueles que tinham bebido peyot1 eram capazes de predizer o futuro com uma tal
exactidão que não deixavam nunca de o tomar antes de partirem para o colherem,
porque assim encontravam-no mais facilmente.

Alarcón, no século XVII, observou que em Zacatecas o valor futuro de um recém-


nascido era augurado segundo os efeitos que o peyotl produzia no seu pai,
submetido, depois de um jejum de 24 horas, a toda a espécie de maus tratos (2).

Continuando sempre nesta região do México, eis algumas das perguntas que um
padre católico tinha de fazer quando confessava os índios em 1661: «Bebeste
peyotl? Deste-o a beber a outras pessoas para descobrir os seus segredos ou para
encontrar, objectos perdidos ou roubados?» (:`) E o penitente respondia por
vezes: «Acreditei nos sonhos, no peyotl, no ololiuhqui ... » (4)

O ololiuhqui, grão da planta chamada quauxoxouhqui, ou ainda xoxouhcapatli,


produz alucinações. Quando o licitl não pode fazer um diagnóstico nem sabe qual
a terapêutica que deve receitar, manda tomar este grão

(’) Título atribuído aos médicos que faziam parte do júri perante o qual os
futuros médicos defendiam tese.

Cf. Alarcón (H. Ruiz de): op. cit., nota 36. Cf. León (padre Nicolas de):
Carmino del Cielo (México,
1661). (’) Cf. Alua (B. de): Confessonario maior y Menor em Lengua Mexicana
(México, 1634).

190
OS SACERDOTES-MÊDICOS DA AMÉRICA PRÊ-COLOMBIANA

misturado com água. Embriagado, o doente revela assim

a sua doença(’).

A Datura Meteloides Dunal, de virtudes médicas e narcóticas, aparece às vezes,


durante as visões que provoca, sob a aparência de um velho venerável, de um
«anjo» ou de um ser negro (2).

Estes dois alucinogéneos nem sempre são utilizados com fins adivinhatórios. Frei
Bernardino Sahagún conta ainda, na sua História Geral das Coisas da Nova
Espanha, que os Chichimecas o usavam normalmente porque lhes dá coragem nos
combates, permite-lhes aguentar a fome e a sede e pensa-se que pode salvar de
qualquer perigo.

Em todas as latitudes e em todos os tempos, os venenos divinos têm exaltado o


ardor dos homens para a guerra.

OS ASTECAS E O PSICODRAMA COLECTIVO: OS COGUMELOS

ALUCINOGÉNEOS

Sahagún descreve estes cogumelos como sendo «pequenos e negros». Chama-lhes


nanacatI, termo genérico para os cogumelos em nahuatl. É por isso que alguns
autores, querendo-os distinguir de outros cogumelos, utilizavam a denominação
nahuatI de teonanacatl, o cogumelo divino.

Durante as cerimónias sagradas que terminavam com os sangrentos transes


colectivos, parece que cada participante estava sob a influência desta droga. Em
1598, quase um século decorrido sobre o sacramento de Moctezuma II, um índio
letrado, Fernando de Alvarado TzoZomoc, descreve esta cerimónia na sua célebre
Crónica Mexicana. Ele conta que, atraídos por este luxo, alguns estranhos se
apresentaram disfarçados, porque pertenciam a tribos tradicionalmente inimigas.
Foram descobertos. O imperador, contudo, tratou-os regiamente: « ... Aos
estrangeiros, damos a comer cogumelos silvestres para que possam embriagar-se;
depois entrarão na dança... »

Cf. Raffour (Dr. L.): op. cit., nota 15. Cf. DurandTorest Q. de): op. cit.

191
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Os cogumelos eram comidos crus, misturados com mel. Conhecemo-los sob as cinco
designações nahuatI (’), que nos permitem situar o local onde os Astecas os
colhiam (ou a estação):

Xochi-nanacad- cogumelo flor; Tepexi-nanacall -cogumelo de montanha;


lxtlatiacan-nanacail- cogumelo de charneca; .@1açauacan-nanacat1- cogumelo dos
lugares frequentados pelos veados; Te.@,iiiiili-iiaii(i@,ail- cogumelo que
embebeda.

Sahagúii completa esta descrição: «Eles crescem debaixo da erva, nos campos e
nos pântanos. São redoncios; têm um pequeno pé, longo, delgado e redondo. Quando
os comemos têm mau gosto, fazem doer a gargaWa e embebedam. São utilizados
contra a febre e a got,i. É necessário não comer mais de dois ou três. Aqueles
qii,- os comem têm visões e palpitações de coração. Estas visões são por vezes
terríveis e outras vezes cómicas. Os cogumelos excitam o deseJo sexual naqueles
que comeM muitos ou até poucos. Diz-se dos Jovens matis os maliciosos que
comeram nanacat1.» (’)

A obra de SahaLyún, (História General de Ias Cosas de Nneva Espaí-ia) apresenta


o texto espanhol paralelamente ao texto traduzido do nahuatl, mas ao alto e em
cores: ,Quando el.e o come com mel, ele diz: “Eu como cogumelos, cogumelizo-me.”
Dizemos do fanfarrão, do vaidoso, do -abarola, que ele se cogumeliza.»

UMA CIVILIZAÇÃO COGUMELIZADA

O aspecto positivo da «viagem» provocada pelos cogumelos alucinogéneos, tal como


pelo peyotl, é provavelmente a base de todo o colorido desta civilização

(’) É difícil concluir se estas cinco denominações se relacionam com cinco


espécies diferentes de cogumelos alucinogéneos ou apenas com o pequeno cogumelo
adivinhatório, o teonanacatl, (que crescia em vários lugares. (-) O texto
espanhol menciona que estes cogumelos excita-

o desejo sexual, observação que pode ter «inspirado» os espanhóis do séc. XVI
que se preocupavam com a Fonte da Eterna Juventude e outros afrodisíacos, mas
esta observação não tií-yura'na versão naliuati. (Cf. R. Gordon-Wasson, op.
cit., nota 39).

192
OS SACERDOTES-MÊDICOS DA AMÉRICA PRÊ-COLOMBIANA

asteca. Da imagem da Serpente Emplumada até ao gigantismo dos locais de culto,


do transe colectivo à terapêutica adivinhatória do ticitl, a barbárie sangrenta
dos Astecas dissolve-se na tranquila luz de ouro de um Sol sagrado. Não tinham
os Astecas à sua disposição um tranquilizante « cósmico» que só por si lhes
permitia sem dúvida suportar a severidade do seu condicionamento social,
guerreiro e místico? A poderosa máquina da Confederação não encontrava nele o
seu volante de segurança? Para sobreviver, todo o Estado totalitário deve deixar
a porta aberta ao sonho.

Contudo, este sonho é portador da sua própria negação. A encarnação humana é


tanto mais maleável quanto mais o Eu se dissolver.

Só, o efeito de despersonalização permite ao homem submeter-se à loucura


assassina dos deuses, solicitá-la e satisfazê-la. A narração da sagração de
Moctezuma é uma perfeita ilustração dessa submissão colectiva: «Terminado o
sacrifício, os degraus do templo e da torre cobertos de sangue humano, todos
eles foram comer cogumelos crus».

Nesta civilização é tudo cogumelizado; arte, religião, organização social, e até


mesmo a língua, que, segundo Jacques Soustelle, «pode ser caracterizada como um
instrumento de transmissão de um enxame de imagens carregadas de um significado
mais afectivo do que intelectual».

Não consideremos como um contra-senso tais estruturas mentais. O poder profético


induzido por estes alucinogéneos familiariza os indivíduos com a própria morte:
«Alguns tinham visões de que cometiam adultério (e assim) que lhes esmagavam
a cabeça ou seriam apedrejados até morrer. Outros viam também que a sua cabeça
seria esmagada com uma pedra, ou que seriam presos, ou morreriam afogados [ ...
1. Outros, que morreriam tranquilamente. Outros ainda, que cairiam do alto de
uma casa, queda essa que lhes causaria a morte. Todas estas coisas acontecer-
lhes-iam um dia, todas estas coisas que eles viam, ou então perdiam-se no
esquecimento.» (1)

(’) Cf. Sahagún (fr. D. de): Historia General de Ia Cosas de Nzieva Espaiía
(México, ed. Garibay, 1956).

193
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Os Astecas não têm medo da morte. Conhecem-na demasiado! Eles têm sobretudo medo
de desagradar aos deuses, medo de não lhes satisfazer a fome.

Em contrapartida, a doença apavora-os. Ela não faz parte do seu viver pessoal e
familiar. A doença é a angústia. É a dor imprevisível e infernal, já que desta
sanção dependerá, nalguns casos, a sua morte e a sua nova vida no Além (’).

Entre nós, a doença é considerada como um golpe ao nosso esquema corporal. Ela é
tanto mais dolorosa quanto interrompe, ao mesmo tempo que a integridade do Eu, a
sensação de equilíbrio físico do corpo, ou esquema corporal.

O homem ocidental sofre tanto mais quanto mais deformado ou caricatural for a
imagem que o espelho lhe transmita (’). Para os Astecas, com o esquema corporal
sublimado na colectividade, a doença é antes de mais uma lesão cósmica. Com
efeito, a sua gravidade é vivida em função da rejeição que ela subentende da
parte dos deuses. Para curar-se, o homem deve encontrar quais os motivos que o
levaram a perder a sua confiança. È nisso, e principalmente, que o médico
intervém: fornecer a resposta a esse motivo. Vem em seguida o que nós
consideramos classicamente como terapêutica.

PROCESSOS TERAPÉUTICOS

Quaisquer que sejam as suas diferentes formas de práticas e as suas


especialidades, os ticitI possuem um amplo conhecimento médico.

Depois do desastre sangrento da «Noche Triste»(1), a noite de 30 de Junho de


1521, Cortez e os seus com-

(’) J. Durand-Forest afirma que, de qualquer modo, morrer na pedra do sacrifício


era uma honra. (-’) Pode acontecer que ligeiras deformações do rosto, devidas à
doença, sejam a causa de enormes dores com o seu fundamento orgânico. (’) Ou a
«triste noite», durante a qual, devido à revolta dos Astecas, mais de metade dos
espanhóis e a totalidade dos seus auxiliares indígenas foram massacrados, uns, e
feitos prisioneiros, outro@.

194
OS SACERDOTES-MÊDICOS DA AMÉRICA PRÊ-COLOMBIANA

panheiros tiveram ocasião de apreciar os méritos dos médicos tlaxcaltecas, seus


aliados. Em 1522, o conquistador pediu ao governo espanhol que não deixasse vir
nenhum médico do Antigo Mundo para a Nova Espanha. Contudo os médicos que já
tinham vindo de Espanha, a maior parte das vezes simples e ignorantes barbeiros,
tentaram desacreditar os médicos indígenas. Herrera conta, a esse respeito, uma
anedota bastante divertida:

«Um célebre médico indígena do Michoacan, tendo sido chamado para comparecer sob
acusação de charlatão perante o Colégio dos Médicos do México, pediu aos juízes
que respirassem uma certa erva, o que lhes produziu uma abundante epistaxe
(hemorragia nasal); então, depois de os convidar jocosamente a parar a
hemorragia, e vendo-os incapazes de o fazerem, administrou-lhes um pó que
imediatamente produziu o efeito desejado.» (’)

Do ticitI, médico-adivinho cujos segredos ciosamente guardados nos templos foram


destruídos ou perdidos durante a conquista, ao próprio camponês cúmplice nos
segredos das plantas e dos animais e ao xamã «despertado» para a magia da
natureza, antepassados dos curanderos, aos endireitas modernos, as
especialidades são muito diversificadas. Mas a terapêutica medicamentosa
continua indissociável da prática quotidiana do sagrado. Iremos passar em
revista alguns dos domínios em que se distinguia a medicina dos antigos
Mexicanos.

EPIDEMIOLOGIA, HIGIENE E URBANISMO

O seu conhecimento da profilaxia, mais particularmente das doenças infecciosas,


é surpreendente. A natureza do seu urbanismo, concebido visivelmente em função
de grandes conhecimentos epidemiológicos, surpreendeu os conquistadores, esses
homens que mal tinham saído ainda da Idade Média. Regularmente, a cidade era
limpa, os detritos apanhados. «Durante a noite, queimavam-nos em grandes
braseiros distanciados uns dos outros.» (’)

(’) Herrera (A. de),: Historia General de las Indias Occidentales (1728), citado
por A. Gerste, op. cit. (’) Cf. Torquemada Q. de): Monarqttia Indiana, liv. IV,
cap. 51 (Seville, 1615).

195
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Cedros, ciprestes e salgueiros cresciam em numerosas zonas verdes, verdadeiros


jardins botânicos, admiravelmente tratados, Mil cedros enormes rodeavam o
palácio de Texcoco, protegendo as colecções sistemáticas, que faziam alguns
imperadores, de espécies vegetais (e animais, como foi o caso de Motecuzoma),
trazidas de expedições guerreiras.

Em 1519, México-Tenocl-ititlan, cidade lacustre, tem mais de 60 000 casas. A


cidade é dividida em 4 bairros servidos por grandes artérias cheias de canais.
Os lagos, de água salgada apesar da altitude, não podiam resolver o problema da
água potável: o fornecimento é assegurado por dois grandes aquedutos e por
vendedores de água.

Tanto no plano terapêutico como no plano profiláctico, gastava-se muita água.


«Para eles», explica Torquei-nada nas suas crónicas», a água era o remédio por
excelência, porque ela curava o corpo lavando as manchas da alma.»

OS BANHOS DO CORPO E DA ALMA

Quase todos os dias, os habitantes banhavam-se nos lagos, nas ribeiras ou nos
canais da cidade. Além desta bafficação fria, apreciavam muito os temazcalli,
sauna asteca. Durante estes banhos de vapor, o paciente era fustigado com folhas
de milho. Frequentemente, o banho terminava com um mergulho na água fria.

Os banhos destinavam-se também a curar as supostas doenças, castigar os males


que se julgavam causados pelas transgressões sexuais ou os desejos ilícitos. O
«bafio de Ia basura aiena», tedazolaltiloni, ou banho de imundície, era
igualmente acompanhado de esconjurações.

O oficiante estendia um lençol limpo sobre uma esteira perto do fogo onde estava
o doente, depois invocava o fogo com cabeleira de fogo, a água com sais de jade,
a mulher branca do copal, assim como a deusa da Imundície e as suas irmãs,
enquanto fumigava o doente.

Banhava-o numa água preparada com antecedência; depois secava-o com o lençol
estendido sobre a esteira

196
OS SACERDOTES-MÊDICOS DA AMÉRICA PRÉ-COLOMBIANA

e invocava finalmente a protecção de Citlalcueye com a saia de estrelas para o


doente, que ele amparava com o seu traje de padre:

«Eu vim, eu, o sacerdote. Eu, o senhor das metamorfoses, Eu, o tlaloc verde, o
tlaloc branco. Não excites o teu furor contra mim. Eis-me aqui, sou o sacerdote.
Tu, minha mãe com saia de estrelas, ]@s tu a causa dos seus males? Falaste-lhe
da vida? Porquê também tu te levantas contra ele? Porque te viras contra ele?
Ele é criação tua, deste-lhe a vida. Perante ti, comparece a tua obra.»

Todas estas esconjurações, coleccionadas por Hermano Ruiz de Alarcón, revelam


até que ponto o lugar dos deuses era importante na terapêutica.

A PARANóIA DIVINA

Homens e mulheres, sem excepção, submetem-se à regra ditada pelos astros e


deuses de uma maneira verdadeiramente intransigente, e em especial no domínio
sexual. Segundo o calendário e as festas das divindades, os dias de jejum e de
abstinência são numerosos. As praxes sexuais deviam revestir uma importância
muito particular, já que, como o sublinha Freud, é o fim justo de um
condicionamento que toca o homem no mais fundo do seu ser. Aliás, Reich retomará
e desenvolverá esse tema no momento em que a sociedade nazi (à qual se comparou
muitas vezes o Império Asteca) disciplinará, até nos gestos mais íntimos, toda
uma nação.

Não é portanto por acaso que Tlazolteotl, símbolo do prazer carnal, uma das
divindades encarregadas de castigar o pecado carnal, é adorado pelo corpo médico
da sociedade asteca. Eis o que nos conta ainda Sahagú n: «Adorado pelos médicos
e pelos cirurgiões, por aqueles que praticavam a sangria e também pelas
parteiras, aquelas que davam as ervas para abortar, e também pelos adi-

197
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

vinhos, os que liam a boa ventura, ou a má, que praticavam a astrologia no


nascimento das crianças, a magia dos grãos de milho, aqueles que prediziam o
futuro olhando a água numa escudela e aqueles que adivinham por meio dos fios
que atam, e os que tiram coisas da boca e dos olhos, ou pequenas pedras de
outras partes do corpo (’) ...

«Adoravam-no também os que colocavam a sua imagem nos banhos e lhe chamavam
Teniawalteci, ou antepassado dos banhos.»

VazolteotI é também chamado Tlaelquani, o devorador de excrementos.

Ele simboliza a doença, que, no Codex Borgia, aparece com a língua de fora
arrastando-se sobre uma maré de imundícies provocadas pela sua incontinência.

Tlazolteotl, que presidia ao amor, foi também, de uma maneira bem significativa,
a divindade das consequências dolorosas.

Em conclusão, o sacerdote-adivinho dos Astecas oficiava os metamorfoses de Eros


e de Tanatos em nome da gigantesca máquina de guerra da Confederação.

Mas o que é que resta das divindades sangrentas que cies honravam e defendiam?
No México moderno, as superstições tanto médicas como profanas, que os Espanhóis
católicos durante muito tempo acreditaram ser inspiradas pelo Diabo... Uma
medicina de aldeia, a dos curanderos e curanderas... E, sobretudo, as plantas.
Entre elas, essas plantas alucinogéneas que mais impressionaram a imaginação dos
nossos contemporâneos, vítimas do constrangimento do seu conforto, que querem
reencontrar o gosto da aventura e dos paraísos perdidos. Paralelamente a isto,
no momento em que a bioquímica do cérebro permite pressagiar a etiologia
orgânica e metabólica de um certo número de doenças psíquicas, essas substâncias
alucinogéneas são chamadas a desempenhar um papel importante na pesquisa médica.

Graças à paranóia dos seus deuses, os filhos do Sol curar-nos-ão da


esquizofrenia moderna?

Cf. supra, o cap. sobre «0 Xamanismo»

198
OS SACERDOTES-MÉDICOS DA AMÉRICA PRÊ-COLOMBIANA

PERTURBAÇõES PROVOCADAS PELOS COGUMELOS ALUCINOGÉNEOS

Estes cogumelos, Paneolus campanulatus, da família .das agaricácias (1), género


psilócibe, têm sido ingeridos actualmente, mas sob vigilância médica. Estas
experiências permitiram observar unia trama sintomática comum nos voluntários;
os sintomas são, bem entendido, função das características psíquicas de cada
indivíduo.

No aspecto físico, as pessoas experimentam primeiro, de um modo geral, unia


sensação de angústia que se vai desenvolvendo à medida que se produz uma ruptura
no processo de atenção normal ao ambiente que as rodeia.
O pensamento voluntário desaparece progressivamente enquanto o Eu se desdobra.
Aparecem então as primeiras alucinações. O indivíduo sente-as primeiro como uma
hiperestesia sensorial. Tudo se passa como se cada vibração emitida pelos sons,
as cores, as formas, os movimentos, se desdobrasse em impulsos motores de jactos
de cores impetuosas e imprevisíveis. Temos o costume de distinguir as nossas
percepções em sensações bem distintas. Neste caso, produz-se uma ruptura: as
percepções transformam-se em metapercepções, como se o homem mergulhasse
brutalmente na espiral vital da sua galáxia e numa explosão primitiva de um
universo multidimensional.

Nesse momento, ele nem sequer sabe quem é. Ele desliza na respiração dos deuses
e vê o mundo em transparência. Até os seus próprios órgãos. Está em êxtase
divino. Talvez no conhecimento íntimo do presente eterno. Desintegra-se para
nascer em alegria (2).

(’) Família a que pertencem também a amanita mata-moscas, ou falsa oronga


(cogumelos venenosos), que cresce por toda a Europa e tem sido utilizada com
fins alucinogéneos pelos feiticeiros. (’) O professor Êmile Folange relata assim
a sua experiência: «As minhas recordações perdem-se na distância. Uma luz
difusa, opalescente, envolve-as, trazendo-me um novo significado. Os traços
familiares da minha companheira de toda a vida, os dos meus filhos, falam-me
numa linguagem de ternura que eu até aí tinha apenas vislumbrado. De repente
aparecem-me como um prodígio da natureza humana, da qual eu era uma testemunha
interessada mas distraída. Cf. «J'ai mangé des champígnons sacrés», in revista
Planète, n.o 22, Paris, 1965.

199
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

No plano físico e funcional, um estado de naúsea, que por vezes se instala no


princípio, pode provocar vómitos. O ritmo cardíaco modifica-se por vezes, a
respiração torna-se superficial. Os olhos ficam em midríase, quer dizer, as
pupilas dilatam-se. Nota-se por vezes uma certa saliência no globo ocular
(exoftalmia). As sensações diestésicas são quase constantes, como um
formigueiro, picadas, queimaduras, mais frequentes ao nível da face que dos
membros.

o estado de passividade é total, pelo menos naquele que ingere a droga pela
primeira vez. A sensibilidade erótica modifica-se, variando no entanto de
indivíduo para indivíduo. Nota-se uma hipersudação.

A duração da acção do Paneolus campanulatus varia segundo a dose ingerida. Como


no caso de todas as substâncias alucinogéneas, incluindo o L. S. D., pode
produzir-se uma «familiarização/desdramatização», permitindo ao indivíduo sair
das suas primeiras experiências vegetativas para orientar ele próprio a sua
«via-

O despertar é sempre tranquilo. Persiste uma calma luminosa durante algumas


horas, às vezes mesmo durante vários dias.

OBSTETRíCIA

Os médicos e as parteiras nahuatl são conselheiros de numerosos cuidados


profilácticos concernentes à futura mãe: ela não deve permanecer muito tempo ao
sol ou à lareira; não deve comer determinados alimentos, tais como o tzictli
(resina extraída do tzapot, que os Índios ainda hoje mastigam como se fosse
pastilha elástica), para que a criança não «se pique nos lábios»; não deve
dormir demasiado durante o dia para evitar que ela nasça com a cara inchada do
sono da mãe; deve evitar toda a emoção violenta que possa provocar um aborto;
deve comer o suficiente para que a criança não morra de fome, tendo ainda o
cuidado de escolher alimentos quentes e de boa qualidade. A parteira previne
ainda a futura mãe de outras causas possíveis de

200
OS SACERDOTES-MEDICOS DA AMÉRICA PRÊ-COLOMBIANA

aborto: levantar pesos demasiado pesados, correr, trabalhar demasiado.,.

Enquanto que no Ocidente, na época, se proibia toda e qualquer relação sexual


durante a gravidez, os médicos astecas pensavam que uma mulher privada de amor
durante esse período (excepto durante os últimos dias) daria à luz uma criança
enfezada e sem vigor.

Os banhos mornos também são aconselhados. È durante esses banhos e à saída deles
que a parteira examina o ventre da futura mãe, a fim de determinar a posição da
criança. Em caso de má colocação, a parteira é capaz de praticar verdadeiras
mudanças por meio de exercícios externos.

Quando as contracções se tornam frequentes e regulares, a parturiente deve beber


decocções de raízes pulverizadas de ciuptali, que aceleram o parto. Para
anestesiar as dores demasiado fortes, faziam-na tomar a « cauda pulverizada de
um animal chamado flacuaUin (opossum), com o comprimento de meio dedo». Se estes
dois remédios falhassem, a parteira recorria a unia psicoterapia dinâmica,
exortando-a a apelar para toda a sua coragem e todo o seu desejo de viver e dar
à luz.

Nos casos em que a criança tomou uma má posição, depois de um dia e uma noite de
esforços tenta-se de novo removê-la, por meio de massagens depois de um banho
quente. Se todas estas práticas forem vãs e a auscultação permitir diagnosticar
a morte do feto, a parteira, depois de numerosas invocações, pratica a
embriotomia por meio de uma faca de obsidiana. Este facto surpreendente
demonstra o alto grau que tinha atingido a sua técnica operatória. O cordão
umbilical é quase objecto de um culto. Depois de cortado, é enterrado junto da
lareira se se tratar de uma rapariga, como para se santificar a sua futura
tarefa familiar e doméstica. Se se tratar de um rapaz, os mais valentes
guerreiros entre os quais a criança nasceu vão enterrar esse cordão num alto
lugar de batalhas. A placenta fica em casa, enterrada num canto. Todos estes
rituais são acompanhados de encantamentos.

Finalmente, ao mesmo tempo que adivinhos tiram o seu horóscopo, a criança recebe
o seu nome profano e o seu nome totémico (o do seu duplo, animal ou planta).

201
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

TÉCNICAS CIRúRGICAS

Os sacrifícios humanos nos templos não tiveram apenas uni aspecto negativo: eles
permitiram aos astecas adquirir uma grande habilidade na dissecação e, por
conseguinte, um perfeito conhecimento da anatomia. Os seus médicos sabiam
suturar as feridas por meio de cabelos ou fios de piteira. Os seus conhecimentos
de cirurgia estética permitiam-lhes dissimular as feridas da face feitas no
decurso de batalhas e refazer o nariz dos guerreiros.

Os cirurgiões aplicavam sobre as feridas um bálsamo «de um poder maravilhoso


para curar as feridas rebeldes a qualquer outro tratamento e “ estancar o
sangue"». Noutros casos as chagas eram cobertas com uma mistura à base de
itzontipatfi, planta da família do tabaco (1).

Sabiam igualmente curar certas luxações e fracturas. Para isso, o médico exercia
uma forte pressão sobre a articulação deslocada enquanto um ajudante puxava o
membro, permitindo assim que as extremidades voltassem ao lugar. Depois
colocavam um emplastro e limas talas. Eis como procediam os médicos: a zona
fracturada era coberta com uma substância aromática à base de resina de grãos de
nacazol ou toloatzin pulverizados (’), emplastro esse que por sua vez era
coberto de plumas. Só então a fractura ficava curada.

Sahagún menciona igitalmente o uso de medicamentos anti-sépticos e massagens,


nas quais eram peritos (’).

Habituados a ver sangue, os Astecas não temem recorrer à sangria, que praticavam
por vezes eles próprios, sem ajuda do médico. As sangrias eram praticadas nos
doentes com fracturas ou luxações, especialmente no caso de edenias ou
inflamações.

(’) Actualmente os nossos camponeses utilizam ainda os poderes hemostáticos do


tabaco, designadamente nos casos de cortes feitos a barbearem-se. (’). Segundo
J. de Durand-Forest, esta planta é muito perigosa; era utilizada ainda no século
passado como bebida embriagante em vez do peyotl pelos Tepehuanos, índios do
México setentrional. (’) A tradição não se perdeu, tal como o testemunha E.
Folange, que se submeteu às massagens duma «curandera» quando da sua estada no
México; cf. «Fai mangé des champignons sacrés», op. cit.

202
OS SACERDOTES-MÉDICOS DA AMÉRICA PRÊ-COLOMBIANA

As trepanações, praticadas com fins religiosos nos niortos, permitiram sem


dúvida aos Astecas adquirirem conhecimentos suficientes para as fazerem também
aos vivos. O Dr. Martinez conta que a operação era conhecida e aplicada, tal
como nos Incas. Para curar certas dores de cabeça, levantavam o couro cabeludo
depois de fazerem uma incisão e rasparem a superfície óssea.

ANESTESIA

Cerca de 1580, Gregorio Lopez escreveu, no seu Tesoro de Medicinas, que os


médicos índios, antes de cortarem ou cauterizarem, prescreviam uma decocÇão de
mandrágora (planta da família das solanáceas), que eles empregavam também para
adormecerem a sensibilidade das vítimas destinadas aos sacrifícios humanos, a
fim de lhes tornarem a morte menos dolorosa.

Depois de executarem uma dança muito movimenlada, o rosto das vítimas era
polvilhado com huauhtli (1). Com esta mesma planta, os médicos preparavam
igualmente fumigações que mergulhavam as vítimas num estado de euforia. Também
davam aos escravos que iam sacrificar os comerciantes um «vinho divino»: o
teoctli, bebida embriagante, e o peyot1.

(’) O grão de amarante, que era também utilizado como cereal alimentar, tal como
o milho ou o feijão encarnado.

203
CAPITULO IX

O TAO E A ACUPUNCTURA

Aos doutores A. Chamfrault, Nguyen Van Nghi e ao Grupo Lacretello, mensageiros


do taoismo e da acupunctura no Ocidente.

A ACUPUNCTURA E AS SUAS ORIGENS

A contemplação do nascer das estrelas, de Arcturus c da Espiga da Virgem, que


representa os cornos do famoso dragão (’), o curso eterno dos dois irmãos e
inimigOs Sinn e Tsan (Antares e Orion) faz compreender ao homem, neste girar
contínuo da gravitação universal, que ele é apenas um viajante do espaço, um
inóbil « ligado às leis do Universo» (’).

A filosofia cósmica do médico taoista não pode encarar o homem senão na sua
totalidade, quer dizer, no seu meio ambiente. Para ele, com efeito, as próprias
pulsações do coração formam apenas uma parcela da energia universal, o tchi ou
ki (:’), que lhe foi devolvido quando do seu nascimento. A medicina chinesa não
saberia portanto estudar o homem separando-o das suas raízes que o acorrentam à
lei universal das mutações.

Uma lenda conta-nos a origem da acupunctura: a lenda dos treze demónios:

C) Aparece em todos os livros, revistas ou trabalhos sobre acupunctura para


representar a energia em acção. (2) Cf. Chanifrault (Dr. A.): Traité de Ia
Médecine Chinoise (Angoulême, Coquemard, 1963).

O termo chinês tchi corresponde ao termo ki existente também em vietnamita e em


japonês e que encontramos por exemplo no Aikido.

205
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Em tempos recuados, as doenças internas eram causadas por génios maus que se
alojavam em partes ou na totalidade do corpo humano. Um dia uma flecha espetou-
se, acidentalmente, na parte traseira do maléolo externo, do pé de um caçador.
Este, foi ter com o xamã, que retirou a flecha e desinfectou a ferida depois de
a tei- sangrado abundantemente. Quando a ferida começou a cicatrizar, o caçador
pôs-se a dançar muito contente. Dizia: «Eu tinha há alguns dias, antes de ser
ferido, uma dor muito forte que me apanhava desde os rins até ao calcanhar. Esta
flecha era mágica: matou o kouei, porque, desde que me trataste, já não me doi
nada.»

O xamã, intrigado, meditou sobre isto. Depois foi procurar uma mulher que sofria
do mesmo mal. Armado

com a sua flecha, explicou-lhe o que tinha acontecido e propôs-lhe repetir a


experiência. Esta, corajosamente, aceitou. Alguns momentos depois: «Obrigado»,
disse ela, «tu venceste este koitei: deixou de atormentar-me.»

Assim nascera a acupunctura. Mais tarde o xamã observou que, quando chegava
demasiado tarde e o kotie'i já tinha vencido os espíritos vitais e defensivos do
doente, a flecha já não servia de nada. Foi então que um dia um tição saltou do
fogo para o braço meio paralisado de um homem que se aquecia ao lume. Esse tição
caiu na proximidade do cotovelo, no ponto kou tcheu (’). A queimadura foi
ligeira e, com grande surpresa sua, o doente pôde de novo mexer o braço. Os
espíritos vitais foram reanimados com este calor. O xamã teve então a ideia de
aquecer certos pontos, no limite da queimadura, a fim de reanimar os espíritos
vitais vencidos pelos génios maus. Foi assim que nasceram os kao (’).

Os treze demónios tinham cada um o seu poiso privilegiado no corpo humano. E eis
assim os treze primeiros pontos da acupunctura localizados...

Pouco importa, afinal, a qualidade destas explicações ou a veracidade destas


lendas. Segundo a tradição chinesa, atribuem-se as origens da medicina ao
imperador

(’)@ Este ponto corresponde ao «II G.1», ou décimo primeiro ponto do meridiano
do intestino grosso.

Ou mexa em japonês.

206
O TAO E A ACUPUNCTURA

mítico (?) Chen-Nong, cerca do ano 3218 a.C.(’), que teria escrito um livro de
matéria médica considerado como a base das principais obras modernas.

UM TRATADO MÉDICO COM 5000 ANOS

Os livros de medicina mais prestigiosos da civilização extremo-oriental e aos


quais todas as obras se referem continuamente são também os mais antigos
documentos escritos conhecidos até hoje. São dois tratados constituídos cada um
por 81 capítulos, o Ling Tsrou e o So Ouenn, a que chamaram os Nei King. Foram
compostos, segundo a tradição, pelo imperador Huang Ti-«O Imperador Amarelo»- e
pelos seus seis médicos conselheiros cerca do ano 2800 a. C.

Através dos séculos, os Nei King apresentaram-se em várias versões (’), das
quais a mais clássica é sem dúvida a comentada por Wang Ping, em 762 d. C. É
este texto original chinês, recopiado no reinado dos Song (960-1126 d. C.) e no
dos Ming (1368-1644 d. C.), que o Dr. Nguyen Van Nghi reproduz no fim do
primeiro tomo da sua tradução comentada deste tratado de cosmologia e fisiologia
energética. Traduzir os Nei King, é compreender os ideogramas chineses ao mesmo
tempo que o pensamento resultante da acupunctura, e a tradução do Dr. Nguyen Van
Nghi é a primeira no Ocidente que permite apreender toda a riqueza contida
nesses tratados (’).

Podemos, com razão, perguntar por que é que a versão original não chegou até
nós. Sem dú vida lhe aconteceu o mesmo que a outros livros considerados
«malditos» (”), ou declarados como tal por aqueles que tinham toda a

O Cf. Filliozat (Dr. J.): Magie et Magiciens (Paris, MF,


1943). (”) É por isso que muitas vezes se chama a este tratado os Nei King. (’)
Em França, Soulié de Morant um dos primeiros teóricos ocidentais de acupunctura,
fez algumas citações breves e por vezes erróneas tiradas de alguns tratados
elementares que encontrou. Cf. l'Acupuncture Chinoise, por G. Soulié de Morant
(Paris, Molaine, 1972). (”N Cf. Bergier (J.): les Livres inaudites (Paris, ed.
«J'ai lu», n.o A 271, 1971).

207
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

vantagem em se desembaraçar do saber para firmar o seu poder...

O facto é que em 214 d. C. Che Huang-ti, «o tirano da dinastia dos Tsin» (256-
208 a. Q, «brandindo o seu grande chicote, governou o Mundo [ ... 1. Ele
destruiu os senhores e recusou-se a seguir o procedimento dos antigos reis;
queimou os ensinamentos das Cem Escolas a fim de deixar o povo na ignorância ...
» (’)

O CICLO DO YANG E DO YIN

O homem taoista vibra em ressonância com o grande frémito vindo do Cosmos, do


qual Forster pensa que os i-aios cósmicos são os vectores. No tempo e no espaço,
tal corno uma onda sinusoidal, este grande frémito parece decompor-se em duas
meias ondas, uma positiva e a outra negativa. Eis portanto o Yang e o Yin... que
são no entanto uma coisa completamente diferente de dois pólos em oposição.

Yang e Yin não se opõem, pelo contrário unem-se. Desta união nasce o ritmo
criador. Assim, na China Antiga, homens e mulheres juntavam-se em torneios
poéticos, na Primavera. O Yang chama e o Yín responde, Ititando os dois antes de
se unirem.

«0 Yin e o Yane, não se opõem como o Ser e o Não Ser, nem mesmo como dois
géneros. Longe de conceber uma contradição entre os dois aspectos Yin e Yang,
admitimos que eles se completam e perfazem um ao outro, tanto na realidade corno
no pensamento. Na multiplicidade das aparências, umas (as que se podem
manifestar simultaneamente), ligadas por uma solidariedade simples e distante,
são equivalentes e contagiam-se sem se confundirem; as outras (as que
contrastam) opõem-se mas estão unidas por uma interdependência comum que torna
manifesta a sua sucessão cíclica.» (2)

(’) Cf. «Memoires historiques Sseu-ma-T'sien» II, p. 224 citado por M. Granet in
La Civilisatyion Chinoise (Paris, A. Michel, 1968). (’) Cf. Granet (M.): La
Pensée Chinoise (Paris, A. Michel, 1934 e 1968).

208
O TAO E A ACUPUNCTURA

A relação de causa a efeito, na dinâmica de um processo que prevalecia no


Ocidente, é substituída pela relação de hierarquização.

A relação entre um ou mais fenómenos, portanto, não é nunca uma relação de


indução ou de dedução mas sim uma relação de comparação.

Yang e Yin são qualidades que não se manifestam senão ligadas a substantivos,
comparados uns com os outros. Mas, além disso, Yang e Yin sã o também
quantidades e quantidades em movimento de Yang e Yin (’).

Tomemos como exemplo a alternância do dia com a noite. Esta noção, muito útil
para seguir o raciocínio no qual se baseia a acupunctura, compreender-se-á mais
facilmente:

- Ao meio-dia o Sol está no seu ponto mais alto, é o período Yang de Yang ou
«velho Yang» do dia;

-do meio-dia às 18 horas, o Yin cresce no Yang;


- às 18 horas, o crepúsculo, Yin e Yang encontram-se nas mesmas proporções.

“4~ 00 >2IVE 1910 Y~ £~VA5ÃO 00 IVAC T25@"&Ç.O

41 4

y~ 11,11 YOW 70 YdW

Yi/7 Y. yoro no >W7 Z%, ‘. Y.” Velho y/ o io~ >,~


~ Y”

C) Dizemos bem quantidades de Yang e de Yin porque todo


* fenómeno Yang contém uma parte de Yin, assim como todo
* fenómeno Yin contém uma parte de Yang.Ê assim que devemos compreender o
simbolismo Tao. É por isso que o «Yang de Yang» ou o «Yang no Yang» são também
chamados «Yang mais puro» e o «Yin de Yin» ou o «Yin no Yin» «Yin mais puro».

209
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Formando-se esta igualdade num movimento de Yin crescendo no Yang, chamamos


então a este período do dia o Yin no Yang ou o «jovem Yang»;

- à meia-noite, o Yin está no seu apogeu. Chamamos a este período o Yin de Yin,
ou «velho Yin»;

- às 6 horas da manhã, o Yang crescendo no Yin, atinge a igualdade com o Yin, e


chamamos a este período o Yang no Yin, ou o «jovem Yang».

&Wh* ~ ~. -~-dfo . Sd

~ W17

Trás categorias de mutação do Yin a do Yang estão representadas

neste diagrama do Tao: -a mutação Yin/Yang no decurso do ano;


- a mutação Yin/Yang no decurso do dia; -a mutação YinjYang no espaço Cada ponto
cardeal corresponde a uma qualidade de movimento:

-Jovem Yin Yin crescente no Yang;


- Velho Yin Yin no seu máximo, começando a descrever; -Jovem Yang Yang
crescendo no Yin;
- Velho Yang Yang no seu máximo, começando a decrescer. Os termos «jovem> e
«velho» definem uma direcção a uma quantidade de movimento, mais que uma
qualidade Yin ou Yang.

Nascimento e crescimento estão ligados, enquanto que a velhice implica o


decrescimento.

O movimento da energia é portanto mais importante que a qualidade deste última.

É fácil passar de uma categoria à outra se se conhece o movimento. Conhecer o


movimento é estar no Tao.

0Angulo aqui representado mede cerca de 23 9, valor da inclinação do eixo


terrestre no plano da eclítica (= 239 7’).

210
O TAO E A ACUPUNCTURA

Os diagramas e este exemplo representam um dado ritmo hierárquico -ritmo


aplicável, bem entendido, a outras categorias: próprio da estação, físico,
químico, social, etc. Basta mudar as marcações, neste caso as horas, para as
estações ou qualquer outro «tema».

~40 ES,;.Çço

, »^ y

C.4~

J~~O P~é

211
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Graças a este conhecimento dos ritmos, é fácil passar de uma categoria para a
outra. Assim, o espaço e o tempo, tal como em física moderna, já não são
categorias interdependentes sem relações físicas ou matemáticas.

Este conhecimento intimamente vivido pelos chineses desde os tempos mais


recuados, desorientou os ocidentais tanto mais que a sua ciência não tinha ainda
atingido (por assim dizer) este nível de compreensão e de apreensão do mundo
como um grande Todo, uma continuidade de energias.

É assim que no corpo humano, ao nível do microcosmo, o conhecimento da qualidade


de movimento Yin e Yang num dado lugar permite traçar um quadro de
correspondência entre, por exemplo, a categoria hierarquizada de tempo contado
sobre tíni dia (ou um ano) e a categoria hierarquizada do espaço contado sobre a
superfície do corpo.

Esta apreensão da essência da matéria está muito próxima daquela que nos permite
actualmente a física moderna: «a teoria ondulatória pela qual se interessam os
chineses, os Quin e os Han, está ligada ao eterno fluxo e refluxo dos dois
princípios naturais fundamentais, o Yang e o Yin. As teorias atomísticas foram
introduzidas na China em diversas ocasiões, sobretudo a partir do 11.O século
graças aos contactos dos budistas chineses com os indianos, mas elas não se
implantaram de nenhum modo na cultura chinesa» (’).

A MUTAÇÃO DAS ENERGIAS

A ciência chinesa parece, com efeito, ter em consideração mais a energia de


ligação do que a distinção dos átomos. Para ela, quanto mais pura for a energia,
maior é o movimento das partículas, quanto mais pequenas forem as forças de
coesão mais as partículas têm tendência a afastar-se umas das outras e,
portanto, menos partículas contém um determinado volume. Reciprocamente, quanto
mais a energia se tornar matéria

(’) Cf. Niedham (J.): La Science Chinoise et POcident (Paris, Le Seuii, 1973).

212
O TAO E A ACUPUNCTURA

(ou quanto mais «impura» for a energia no sentido chinês), menos as partículas
estão em movimento, quanto maiores forem as forças de coesão, mais tendência têm
as partículas para se aproximarem uma das outras e, portanto, mais partículas
contém um determinado volume (’).

É por isso que, no sentido taoista, a energia Yang contém a ideia de um


movimento de desmaterialização, enquanto que a energia Yin contém a ideia de um
movimento de materialização. A ideia da energia «Yin de Yin» (ou Yin mais Yin)
será portanto sobreposta à ideia de matéria.

Desde sempre, no pensamento filosófico taoista energia e matéria não são, com
efeito, senão dois aspectos complementares de um mesmo processo. A energia
condensa-se e torna-se pesada para formar a matéria.

(’) Quer dizer, «mais energia se cristaliza». Sublinhamos de passagem que os


Chineses observaram a estrutura hexagonal dos cristais de neve vários séculos
antes dos Ocidentais.

213
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

A ENERGIA TERAPÉUTICA

Esta relação energia/matéria é fundamental para a compreensão da fisiologia


energética humana.

Os chineses consideram que o corpo é percorrido, de um lado, por «meridianos»,


canais imaginários que veiculam a energia e o sangue, e, do outro lado, pelos
vasos sanguíneos. Bem entendido, o sangue é considerado « simultaneamente
energia e matéria»; mais denso e mais pesado do que a energia, ele é Yin, em
relação a esta, mas, menos denso, menos pesado e menos transitório do que a
matéria (por exemplo a carne e os ossos), ele é Yang em relação e ela.

Imaginemos agora que num local do corpo, a cabeça por exemplo, a energia torna-
se mais Yang do que o normal: tem portanto tendência para a «desmaterialização»,
e diremos que a energia está em plenitude. Além disso, o sangue terá tendência a
ocupar um volume cada vez maior. Clinicamente, obteremos uma gama patológica
indo da epistaxe (ou hemorragia nasal) à congestão cerebral, tudo dependendo da
intensidade e da situação da perturbação primordial, assim corno das capacidades
de defesa do organismo.

Mas se, numa determinada região, a «energia» é demasiado Yin, instalar-se-á uma
tendência demasiado grande para a materialização, e diremos igualmente que a
energia está vazia, quer dizer, em deficiência. Nos vasos sanguíneos desta
região, encontraremos portanto, clinicamente, uma tendência para a trombose.

A relação energia/matéria permite também compreender a formação de um tumor ou


de uma catarata. Que são estes dois fenómenos patológicos senão a tradução, num
determinado local do corpo, da redução da quantidade da energia circulante?

Assim, a terapêutica consistirá, para um edema localizado por exemplo, em


acelerar a circulação energética no ou nos meridianos que passam dentro ou na
proximidade desta região patológica. . Torna-se então perfeitamente evidente que
um distúrbio da pele, da carne ou dos músculos (edema, endu-

214
O TAO E A ACUPUNCTURA

recimento, tumor benigno ... ) será bastante mais acessível à terapêutica que um
distúrbio do cristalino (catai-ata), que, tanto no Oriente como no Ocidente, é
relativamente inerte e isolado dos órgãos vizinhos. Pela mesma razão, um tumor
ou uma lesão enquistada, esclerosada, coberta de um infiltrat considerável ou de
um tecido cicatricial, será bastante menos acessível à terapêutica do que uma
lesão recente, que guardará os seus «contactos» e as suas ligações com as
estruturas vizinhas.

Uma segunda relação cuja compreensão é capital é a relação energia/espaço.

No homem, de uma maneira geral, a altura e o exterior estão em ligação com o


céu, e portanto com Yang.
O baixo e o interior, em ligação com a terra, são Yin. Se representarmos o homem
na sua posição de origem, a posição fetal, a superfície de extensão é Yang; ela
é representada pelas costas, as faces de extensão e as faces externas dos
membros. O interior, representado pelas faces ventrais, internas e de flexão, é
Yin.

Toda a qualidade energética ou anatómica em relação com as situações corporais


formará a densidade Yin. ou Yang desta situação. Assim, a energia Qé, que
circula de preferência nas camadas externas, é Yang em relação à energia
alimentadora, que circula, preferencialmente, nos meridianos e nos órgãos.

Sublinhemos aqui que os chineses cindiam em duas categorias, Yin e Yang, o que
os anatomistas ocidentais chamam «órgãos». As entranhas são vísceras vazias,
dotadas de movimento, em relação directa com o exterior. A sua função principal
consiste em produzir energia e impulsioná-la na circulação do corpo. Elas são
portanto consideradas como Yang em relação aos órgãos, que, esses, são vísceras
cheias, imóveis, que conservam e concentram a energia (’).

(’) Os órgãos coração e pulmões, respectivamente em relação com o intestino


grosso e o intestino delgado, parecem ser as excepções a esta regra. Isto mostra
bem até que ponto a noção relacional entre Yin e Yang é primordial para os
Chineses. Eles pensam provavelmente que o intestino grosso e o del¥ado estão
mais intimamente ligados à metabolização da energia do que o estão o coração ou
os pulmões.

215
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

MOVIMENTO YIN E YANG

YANG

YIN

para o céu

para a terra

para o dia

para a noite

para a energia

para a matéria

para a luz

para a obscuridade

para o calor

para o frio

para o exterior

para o interior

masculinidade

feminilidade

plenitude

vazio

dilatação

contracção

não-manifestação

manifestação
sonoridade

silêncio

movimento

repouso

virtual

material

Lei dos movimentos Yin e Yang

YANG PRODUZ YIN YIN PRODUZ YANG

Os dois conservam as suas qualidades específicas no seio deste processo. Podemos


portanto dizer:

Yin alimenta Yang ....... portanto Yin produz Yang Yang protege Yin .........
portanto Yang produz Yin

216
O TAO E A ACUPUNCTURA

TODO O YIN É YANG TODO O YANG É YIN

Quando o Yin cresce, o Yang diminui, e vice-versa. Toda a manifestação de vida é


movimento e contém implicitamente a mutação primordial Yin/Yang:

-o Yang é a não-manifestação que deve ser seguida da

manifestação; -o Yin é a manifestação que deve ser precedida da não-

-manifestação. Portanto toda a manifestação de vida é ritmo.

YANG
O coração enche-se em diástole porque a energia se acumula aí e é a não-
manifestação

YIN
O coração contrai-se em sístole; é a manifestação da descarga sanguínea. Estas
duas fases não podem ocorrer uma sem a outra.

A MEDICINA DAS ENERGIAS: UMA PROFILAXIA

A medicina taoista tem a ambição de equilibrar o microcosmo humano com o


macrocosmo universal Quando este equilíbrio estiver realizado, o homem não
conhecerá mais a doença. De uma maneira mais lata, o homem social não deve
conhecer, tão-pouco, nem o desgosto, nem a desordem, nem a aflição.

Esta medicina é portanto, antes de mais nada, uma medicina profiláctica. A prova
disso é que os imperadores chineses não pagavam aos seus médicos senão quando
estavam doentes.

A ambição do acupunctador reside portanto no facto de compreender, para a


preencher, a falta de pendência -ou de equilíbrio- do seu paciente, antes que
esta falta de pendência (Yang) provoque a doença (Yin).
O médico deve portanto conhecer perfeitamente todas as ordens hierárquicas,
assim como as suas interacções, quer seja no universo ou no homem, ou entre o
homem e o universo.

Para isso, ele tem também de saber observar tão bem o curso das estrelas, das
estações ou das marés como as estações da vida humana e a coloração da língua,
dos olhos ou da pele, o timbre da voz, a transparência do olhar, a perspicácia
da consciência...

217
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Mais difícil ainda: ele deve conhecer a relação entre os «pontos de


acupunctura», as partes do corpo e os
360 dias do ano, assim como a correspondência entre os meridianos e os doze
meses do ano, a correspondência entre os cinco órgãos e as cinco estações do céu
ou os cinco elementos da Terra

OS CINCO ELEMENTOS

A noção dos cinco elementos da Terra não é específica da fisiologia energética


da acupunctura. Ela é descrita. no HOng fan, que Granet pensa ser o mais antigo
ensaio de filosofia chinesa (’). Quaisquer que sejam os seus domínios de
projecção, esta noção, gravada até aos nossos dias no inconsciente dos chineses,
faz parte, como diria Jung, dos seus arquétipos primordiais.

Com o seu cuidado de hierarquização e graças ao seu sentido de observação, os


taoistas classificaram em cinco categorias interdependentes toda a manifestação
desta respiração produtora do Cosmos.

As energias do Céu, em mínimo de seis, deverão, a fim de produzir, reencontrar


os cinco elementos da Terra. Esses cinco elementos, dinamizados pela energia
cósmica, são Portanto o suporte da respiração terrestre.

Tudo o que provém da Terra -inconscientemente ou não- está portanto dividido em


cinco categorias ou cinco hierarquias (s).

Cada um tem um nome, o do seu elemento terrestre correspondente: água - terra-


fogo - madeira-metal. Estas cinco categorias não são estáticas: elas
metamorfoseiam-se constantemente umas nas outras. A tradução

(’) Citemos aqui o Dr. Kespi: «A acupunctura é um todo, de uma lógica


implacável. Enganai-vos de ponto, e, psicologia ou não, o doente não terá senão
uns 10 % de melhoras». «Acupuncture et médecine hippocratique», in Meiisuel du
Médecipi Acuputicteur, n.* 2, Marselha 1973. (-^) Segundo a tr@dução, dataria do
II ou III milénio a.C. Alguns críticos modernos pensam que ele é bastante mais
recente e dataria do III ao VIII séc. d. C. (’) Estas hierarquias incluem todo o
conhecido do homem, ou apercebido Por ele: energias terrestres, estações,
minerais, plantas, animais, cores, sabores, sentimentos, órgãos, entranhas, etc.

218
O TAO E A ACUPUNCTURA

Av~ Po m»~

219
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

da expressão chinesa Wou Hing por «cinco elementos» é portanto bastante má. Wou
Hing significará antes « os cinco agentes», os «cinco em mutação», os «cinco em
acção».

Toda a percepção, toda a eficiência, toda a vida, é o produto de um equilíbrio


entre essas cinco categorias. As leis que as regem são idênticas para cada uma
delas. Esta noção é fundamental, porque as correspondências entre os elementos
estão longe de ser fortuitas ou ocasionais. Assim:

-a água, símbolo da actividade universal, da passividade, corresponde ao


Inverno, época de grande repouso da terra e dos homens que a cultivam;

-a terra representa a energia neutra do centro, o eixo à volta do qual gravitam


as mutações cíclicas do universo. Ela está, com efeito, no centro dos quatro
elementos e corresponde a uma estação suplementar tradicionalmente designada
«fim de Verão»;

-o fogo, símbolo da actividade máxima, da culminação, corresponde logicamente ao


Verão;

-a madeira corresponde ao Este, por conseguinte ao nascer do Sol, e ao


nascimento, à estação da Primavera. Sendo esta estação aquela em que a
velocidade de crescimento dos animais atinge o seu máximo, a madeira corresponde
também ao crescimento;

-0 metal, símbolo do decrescimento, corresponde ao Outono.

Os cinco elementos no homem

O homem está ligado às cinco categorias pelos seus cinco órgãos: rins-fígado-
coração-baço-pulmões.

«Cada representante de um elemento (de uma categoria) que age, sob a influência
de um stress exterior, a um nível determinado dos meus órgãos, tem um poder de
acção sobre ele, e esse poder tem o valor de uma instância do significante.» (’)

(’) Cf. Schatz (Dr. J.): «Sobre algumas noções elementares da lógica Tac, que
servem para uma melhor compreensão da acupunctura tradicional», in Nouvelle
Revue Internationale d'Acupuncture, n.o 22, Paris, 1971.

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AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Assim, dizer que o fígado corresponde à Primavera, significa que o fígado atinge
o máximo da sua actividade (de crescimento) nesta estação e que, por
consequência, a primeira é a estação em que ele se torna mais sensível ao
stress, aos desequilíbrios. Acontece o mesmo com os quatro outros órgãos: o
Verão para o coração, o fim do Verão para o baço, o Outono para os pulmões, o
Inverno para os rins.

Não é por acaso que o verde, correspondente à madeira, corresponde também no


homem ao órgão «fígado e à sua víscera» acoplada, a vesícula biliar, já que o
verde é a cor da bílis.

O conhecimento da fisiologia energética concede um importante lugar ao


conhecimento destas leis que regem os cinco elementos do homem. Ele permite,
graças à estrita observação dos sinais clínicos externamente apurados, prever a
chegada de uma doença e tratar o homem antes que esta o atinja, assim como
seguir a observação dessa doença, tal como o caçador encurrala o animal ao
seguir-lhe a pista. Se a doença é curável, o médico deve sabê-lo e poder curá-
la.

No caso contrário, ele tão-pouco ignora, e torna-se até capaz de prever com
precisão a hora da morte, a hora em que termina um ciclo.

Os chico elementos em movimento

A fisiologia e a patologia constituem ambas a matéria que permite estudar as


leis que regem as cinco categorias.

A-O estado fisiológico é regido por duas leis: a lei de produção e a lei de
destruição.

LO-A lei de produção: se colocarmos os cinco elementos num círculo e os


juntarmos dois a dois (o que acontece quando os colocamos nos cinco cumes do
pentagrama), a lei de produção está representada graficamente pelo.- vector
«arco de círculo» ligando um elemento ao seu vizinho imediato, seguindo a
direcção dos ponteiros de tim relógio.

222
O TAO E A ACUPUNCTURA

OUVÂMIG4 @7-SXXO” 400 CIMW

LO VE M@

DACO

PULMÃO R” ‘ PULMÃO

Assim, podemos escrever: o fogo produz a terra -a terra produz o metal - o metal
produz a água - a água produz a madeira -a madeira produz o fogo.

Mas pode-se também escrever: o fogo é filho da madeira - a madeira é filha da


água, etc; ou ainda: a água é a mãe da madeira - e a madeira é a mãe do fogo...
Porque o termo «produzir» é tomado no sentido: «que alimenta, mantém, ajuda».

Tal como um volante que rodasse a uma velocidade que aumentasse sem cessar,
também este ciclo se embalará se não for travado por uma outra categoria de
forças (). Esta segunda categoria de forças fisiológicas é regido por aquilo a
que chamamos a lei de destruição dos cinco elementos.

2."-A lei de destruição: coloquemos os cinco elementos nos cumes do pentagrama.


Desta vez, observamos que eles se destroem de dois em dois, seguindo um vector
linear que forma um dos lados do pentagrama. A direcção desse vector é a mesma
que a do vector «arco de círculo» que rege a lei de produção. Assim, escreve-

mos: a água destrói o fogo - o fogo destrói o metal - o metal destrói a madeira
- a madeira destrói a terra.

C) Cf. o relatório do Dr. Court-Payen: «Apsychiatrie et acupuncture ... », in


Mensuel du Médecin Acuptínctetir, n.* 26, Marselha, 1973.

223
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

O ciclo de destruição regulariza-se portanto com o ciclo de produção. Sob pena


de um aniquilamento absoluto, a produção contém implicitamente a destruição. E
inversamente. É por isso que todos os elementos produzidos em demasiada
quantidade se tornam perigosos para os outros elementos do ciclo. Torna-se
patológico. Bem entendido, esta lei válida ao nível dos indivíduos é-o também ao
nível dos grupos humanos, assim como ao de todas as ordens existentes. Cada
elemento desempenha portanto o duplo papel de um pólo activador e de um pólo
inibidor. Este «feed back energético», de base simples, é o fundamento de toda a
nosologia da medicina taoista.

Examinemos, por exemplo, como é que se colocam no cicio das energias os


elementos primordiais, os órgãos, os sabores e os elementos:

CICLO POS CíACO £@LEMEIV TOS MO OVOM£YW 7C7ML

Se estudarmos a acção da energia «calor» sobre as energias vizinhas (humidade,


secura, frio, vento), colocar-nos-emos num capítulo nosográfico em relação à
endocrinologia, por exemplo.

224
O TAO E A ACUPUNCTURA

Se estudarmos a acção do sabor «amargo» sobre os sabores vizinhos (doce,


picante, salgado, ácido), passamos, por exemplo, ao capítulo da dietética.

Agora, se estudarmos a acção do sentimento «alegria» sobre os sentimentos


vizinhos (tristeza, ansiedade, medo, cólera), abordaremos mais precisamente o
capítulo da psicologia.

Ainda aqui, os termos rim-fígado-coração, etc., devem ser compreendidos no seu


significado simbólico: função do rim - função do fígado - função do coração. O
termo «função» entende-se, por sua vez, no sentido ocidental de função
endocrinológica ou psicossomática.

Em numerosos casos, esta linguagem simbólica encobre uma realidade partindo da


evidência mais banal para atingir fenómenos bastante mais complexos, tais como o
que estuda a endocrinologia moderna. Podemos facilmente compreender que o fogo
destrói o metal, porque o funde. Ou ainda que a água destrói o fogo. Para as
nossas estruturas mentais, já é menos evidente que a madeira destrua a terra. E,
no entanto, ela destrói-a porque. se alimenta dela. No plano endocrinológico, a
madeira e a terra, portanto o fígado e o baço (ou o pâncreas), opõem-se nas suas
manifestações simbólicas e metabólicas ().

B -0 estado patológico é regido, também, por duas leis: a lei de usurpação e a


lei de desprezo. Estas leis patológicas equilibram as leis fisiológicas quando o
desequilíbrio entre os dois pólos é demasiado grande.
O círculo da vida transforma@se em círculo da morte.

1."-A lei de usurpação traduz-se por um exacerbamento da lei de destruição. O


seu vector representativo tem o mesmo sentido que o da lei de destruição, mas
com uma força maior. o fogo, que no estado fisiológico trava a produção do metal
pela terra, vai neste caso fundir o metal.

(’) Assim, durante a regulação da glicínia, se o baço-pâncreas estiver em estado


de insuficiência, a sua função da secreção insulínica torna-se insuficiente; a
glicemia aumenta, e então o fígado acresce a sua captação da glucose para
armazenar sob a forma de glicogénio. É o fenómeno que se produz no diabético
magro. Pelo contrário, se o baço-pâncreas funciona em demasia, a sua função de
secreção insulínica entra em «plenitude»: a glicemia desce, e, por conseguinte,
o fígado liberta a glucose no sangue.

225
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

2.O - A lei de desprezo: provoca o seguinte fenómeno: um elemento em quantidade


demasiada (portanto em grande plenitude) volta-se contra o elemento que, no
estado fisiológico, o destrói. Os vectores representativos desta lei, com mais
força do que a lei de destruição, tomam também a direcção contrária. Assim, por
exemplo, o fogo em grande plenitude volta-se contra a água, que no estado
fisiológico o extingue, porque a faz evaporar-se.

Do simples camponês ao «perfeito taoista», da harmonia dos sabores à harmonia


dos sentidos, esta dinâmica dos cinco elementos subentende toda a vida
tradicional chinesa. O estudo da energia que circula no homem é, quanto a ela,
reservada aos médicos. Esta energia vivida no tão é manifestada por ele de
múltiplas formas: energias possuindo cada uma uma fabricação, uma circulação e
uma finalidade que lhe são próprias.

ENERGIA ANCESTRAL

A energia ancestral é, de qualquer modo, a primeira das energias do homem. Ela


for~se desde a concepção por união das duas energias, de polaridades inversas,
vindas dos pais. Aloja-se nos rins e mantém nela esta dupla .polaridade. É por
isso que, ao longo da sua vida, o homem mantém nele duas raízes: uma raiz Yin
proveniente da mãe e uma raiz Yang proveniente do pai(’).

Este capital energético que o homem possui desde o seu nascimento vai diminuindo
à medida que ele vai retirando as energias necessárias para a sua sobrevivência.
Neste sentido, a expressão «tem os rins sólidos» não é-uma simples brincadeira.
Tal como numerosas expressões populares, aliás, ela encobre uma realidade, visto
que esse capital energético se localiza nos rins.

O papel primordial do tinh é o de alimentar e diferenciar (no sentido


embriológico): durante o crescimento da criança, a sua actividade atinge o seu
apogeu. Como todas as outras energias, esta energia física alimentadora

(1) A genética moderna demonstrou depois que todo o homem contém nele
cromossomas femininos, e o inverso na mulher. Aliás, isto está de acordo com as
teorias de Jung.

226
O TAO E A ACUPUNCTURA

situa-se em relação de polaridade com a energia mental, psíquica (’).

Uma das suas funções consiste igualmente em alimentar o cérebro e a medula, a


que os taoistas chamam «vísceras curiosas», quer dizer, participando do ki fora
do ciclo dos cinco elementos.

Pode acontecer que um stress enfraqueça a energia mental dos rins. Naturalmente,
a energia ancestral contida pelos rins tende então a satisfazer esta
deficiência. A energia ancestral satisfaz o vazio psíquico assim criado (ou
vazio de energia mental), perdendo a sua natureza original e mudando de energia
física para energia psíquica. Quando esta manifestação é incompleta, ela
conserva em parte o cunho da sua natureza física; daí a aparição no ciclo de um
fenómeno (e de uma energia) deslocado. É isso que traduz o electro-encefalograma
do epiléptico pela sua hiperactivação anárquica.

Esta explicação não entra em contradição com os trabalhos do Dr. Arthur


Guirdham, psiquiatra britânico que se debruçou sobre os fenómenos de
reincarnação ligados à epilepsia (’). Segundo as suas observações, durante
algumas crises epileptóides o doente reviveria intensamente uma ou mais
incarnações anteriores. Nesses casos, segundo nós, a energia ancestral
anormalmente presente no cérebro veria a recordação da sua origem parental
(sobre vários séculos, é bem difícil querer estabelecer filiações precisas)
materializada no psíquico e portanto «visualizada» ou «ouvida». Contrariamente
às nossas concepções ocidentais, estando tudo em tudo para os taoistas, a alma
individual não existiria.

Em consequência, esta hipótese poderia constituir uma explicação dos fenómenos


de reincarnação tão sedutora (e talvez até para aqueles que se sentem viver na
harmonia do Espírito do Mundo!) como a da memória genética...

Ela não está, tão-pouco, desligada da hipótese evolucionista da escola


antroposófica. Segundo Rudolf Steiner (’), com efeito, o ser humano contém em si
a essên-

Ver, adiante, «A pureza das energias puras». Cf., supra, cap. «A Medicina dos
Antropósofos». Cf. cap. «As Respirações Sublimes».

227
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

cia de todas as ordens manifestadas antes dele na criação, quer dizer, o


desenrolamento cronológico da mutação da energia em matéria, e depois em ser
vivo e pensante: minerais, vegetais, animais, humanos... Assim não somente no
espaço, mas também no tempo, dos taoistas a Rudolf Steiner e a tantos outros, o
microcosmo humano é, por essência, capaz de reflectir o macrocosmo universal.

Mas se a energia ancestral, ou tinh, produzida na sua origem pela fusão das
energias parentais, é a primeira fonte energética no homem ela é também
alimentada ao longo da vida pela quinta-essência, «sublimação» ou « destilação»
da energia alimentar, como iremos ver.

CENTRAIS ENERGÉTICAS

Todas as energias são reguladas no homem, directa ou indirectamente, pelo


metabolismo da energia essencial, ou energia de mantenimento do homem.

Segundo os taoistas, ela é formada por duas energias de origem alimentar: a


energia Yong e a energia Oé.

1.'>-A energia Yong ou energia alimentadora, fabricada na parte média do


estômago (naquilo a que os médicos taoistas chamam «Aquecedor médio do
estômago»), tem a função de alimentar a parte profunda dos órgãos. Ela circula
em maior parte nos meridianos principais. Reencontra nos pulmões a energia da
respiração ou energia respiratória (’).

2.1 -A energia Oé ou energia de defesa, fabricada na parte inferior do estômago


(ou «Aquecedor inferior do estômago»), tem a função de defender o organismo das
agressões: podemos assimilá-la ao capital imunológico de defesa. Esta energia
circula mais à superfície do que em profundidade, mais nos meridianos
secundários que na «grande circulação da energia».

O ciclo dos doze meridianos principais, em circuito fechado, gera esta grande
circulação de energia. Voltaremos a falar nela a propósito dos meridianos.

Cf. cap. «As Respirações Sublimes».

228
O TAO E A ACUPUNCTURA

C~ZL-- <z@maxAc-dro ~~

AS ENERGIAS PURAS

Esta grande circulação de energia não canaliza toda a energia essencial, da qual
uma parte se distribui directamente do estômago e dos pulmões para os cinco
órgãos. Ela permanece nestes para os alimentar especificamente. Esta energia
chama-se energia pura dos cinco orgãos.

Quinta-essência ou sublimação da energia essencial, ela chama-se «pura» porque a


energia «circulante» ou «defensiva» é impura.

Aqui, os termos «puro» e «impuro» não se opõem: na China tradicional, as funções


de direcção ou concepção são consideradas como puras ou nobres, enquanto que as
funções de alimentação, de defesa ou de protecção são consideradas impuras.
Estes dois termos estão em relação complementar e não antagónica, não podendo
existir um sem o outro.

229
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

A parte da energia pura dos cinco órgãos, proveniente especificamente da


alimentação, é também chamada energia dos cinco sabores.

Com efeito, os chineses consideram o sabor como a sublimação dos alimentos aos
quais estão ligados. É por esse motivo que, contrariamente aos adeptos de
Oshawa, por exemplo (’), os taoistas recomendam que não se mastigue demasiado a
comida: o que teria como consequência fazer desaparecer o sabor do alimento
ingerido, ou o seu ki. É também por esta razão que as especiarias se revestem de
uma tal importância na cozinha chinesa: equilibrar os sabores, é equilibrar a
energia pura dos órgãos, manter a força, a saúde e a sabedoria.

Quando esta energia dos cinco sabores se encontra em excesso nos órgãos, ela
passa para os rins, onde alimenta a energia ancestral. Com efeito, tinh
significa ao mesmo tempo energia pura dos cinco órgãos e energia ancestral.

A PUREZA DAS ENERGIAS PURAS

A energia mental ou t1zân forma-se desde a concepção pela união das duas
energias ancestrais (ou união de dois tinh) de polaridades inversas, vindas dos
pais. Ela é mantida durante a vida humana, devido à purificação da energia pura
dos cinco órgãos e da energia respiratória, portanto por uma espécie de «quinta-
essência da quinta-essência» da energia essencial. É uma verdadeira alquimia!
Esta energia mental apela para uma concepção filosófica extraordinária:
considera-se que ela se aloja onde a matéria se encontra em estado de menor
«capacidade» de regeneração celular, nos olhos ou no cérebro, por exemplo. E se
os taoistas nunca falam de cérebro, é porque eles consideram que cada órgão pro-

(’) Os adeptos de Oshawa formam geralmente uma «seita de dietistas» fanáticos


centrados na Macrobiótica, cujo autor, * japonês Oshawa, fixou os princípios
sobre as bases do Yang * do Yin. De concepção muito estática, o Yin e o Yang
revistos e corrigidos por Oshawa permitem difundir toda uma gama de produtos
alimentares «naturais» que os adeptos devem mastigar com aplicação.

230
O TAO E A ACUPUNCTURA

duz um capital de energia mental, reflexo de uma somatotropia deste. A


consciência ou o poder de expansão do homem, é nisso que se manifesta esta
energia mental.

AS MORADAS DA ENERGIA MENTAL

CORAÇÃO

Contém a energia mental propriamente dita: a consciência

RIM

Contém a vontade produtora

PULMÃO

Contém a alma sensitiva, que se une ao cadáver depois da

morte

FÍGADO

Contém a alma espiritual, que abandona o corpo depois da

morte

BAÇO

Contém a «manifestação psíquica da produção do homem»,

quer dizer, o pensamento

Pondo em movimento e caracterizando o Yin e o Yang do ser pensante, o coração é


a sua morada. Assim, na nossa linguagem «ter coração» é falar de capacidade de
dilatação e por conseguinte de amor no ser humano. Trata-se, evidentemente, não
do coração órgão mas do coração simbólico, motor das mutações nos humanos (tanto
para a tradição taoista como para a tradição esotérica ocidental!). Coração do
homem, espelho do tao, espelho do Cosmos...

OS CIRCUITOS ENERGÉTICOS

Cada uma destas energias circula através do seu canal preferencial:

231
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

- a energia ancestral nos meridianos «curiosos»;


- a energia essencial @os meridianos principais (for- mando a grande circulação
da energia);

- a energia Yong, ou alimentadora, também nos meridianos principais;

-a energia Oé, ou de defesa, nos meridianos secundários e mais particularmente,


nos meridianos tendin'o-musculares que irrigam as camadas externas do corpo;

-a energia mental, nos meridianos «singulares». Com efeito, todas estas energias
circulam por todo o lado, dentro e por fora dos meridianos, se bem que circulem
de preferência em certas zonas O processo é o mesmo que o do Yang contendo Yin
e, inversamente, do Yin contendo Yang.

Nestas condições compreende-se facilmente que tais concepções tenham levado os


Chineses a não aperfeiçoar os seus conhecimentos anatómicos mediante dissecações
sistemáticas! (’)

A sua classificação anatómica pode parecer ultra-simplificada, até mesmo muito


primária, para os Ocidentais.

Ela é, na realidade, uma organização simbólica da ordem das energias (2)... toda
simbólica até agora, já que não é impensável que com o progresso da
neurofisiologia - ou da bioquímica - se descubra um dia o seu suporte
científico.

Parece que ao nível do tálamo algumas células respondem especificamente a


estímulos dolorosos que sejam inibidos por estímulos não dolorosos, como é a
picada da agulha da acupunctura. Alguns investigadores (1) pensam, com efeito,
que o substracto eléctrico dos meridianos Poderia ser constituído pelo
«empréstimo»

(’) Isso não impedia no entanto que numerosos médicos estivessem presentes
quando um castigo se transformava numa vivissecção! (’) Cf. a ilustração do Nei
King na Biblioteca Nacional francesa. (’) Confrontar o relatório dos Drs.
Labeyrie e D. Rueff: Intégration Thalamique des Sensations Douloureuses, I
Congresso da União Científica dos Médicos Acupunctadores e das Sociedades de
Acupunctura, Mónaco, Novembro de 1973.

232
O TAO E A ACUPUNCTURA

filogenético dos electro-receptores de que estão munidos os animais aquáticos,


que lhes permitem dirigirem-se. Estes trajectos geneticamente impressos no ser
humano, durante a evolução das espécies, poriam também, ao nível da ciência
oficial, o problema da existência demonstrável do famoso sexto sentido, o da
percepção eléctrica ou magnética, ou as duas ao mesmo tempo (?).

A DESCOBERTA DA DOENÇA

Assim como o médico ocidental diagnostica a doença funcional ou orgânica, também


o médico taoista diagnostica a doença «energética».

«Todas as doenças são de origem energética; todas as doenças se desenvolvem na


energia», explicava Khi Pa, um dos. médicos assistentes de Hoang Ti, o imperador
Amarelo, autor de Nei King, há cerca de 5000 anos. O médico taoista observa,
apalpa, escuta, aspira e interroga.

- Ele observa o estado da pele, a cor, os capilares do branco dos olhos, as


papilas da língua, a textura das unhas, o estado dos cabelos, a vivacidade dos
gestos, e finalmente o sangue e a urina. As cinco cores fornecer-lhe-ão
informações preciosas sobre o estado dos cinco órgãos.

- Ele apalpa a tonicidade da pele e, sobretudo, toma o pulso, ou melhor, os


pulsos. Os pulsos do céu na parte superior do corpo, os pulsos da terra na parte
inferior, mas sobretudo os pulsos da Grande Mutação do Céu e da Terra, do Yang e
do Yin, ao nível da artéria radial sobre os dois pulsos (’) (punhos). A arte
taoista da ciência dos pulsos parece por vezes bastante hermética ao médico
ocidental, cujas percepções tácteis estão diminuídas devido ao conforto social.
Com efeito, cada pulso é o suporte de seis pulsos: três na superfície e três em
profun-

(’) Contrariamente aos médicos chineses, que tomam o pulso com a mão virada para
cima, os médicos ocidentais tomam-no com a mão virada para baixo; eles estudam
assim o que é estático e mensurável e não conhecem senão um «só» pulso.

233
AS AIEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

didade. O médico deve ser capaz de reconhecer 28 aspectos patológicos em cada


pulso (”).

É evidente que cada pulso possui o seu aspecto particular. O bê-á-bá da tomada
de pulso consiste em reconhecer se o seu aspecto corresponde à estação; assim, o
médico taoista pode intervir antes da doença em caso de desarranjo energético
se, por exemplo, o doente tiver um pulso de Verão na Primavera. Além disso,
assim como cada meridiano atinge um máximo energético em função da hora (’),
cada pulso segue as mesmas variações.

-Ele escuta os sons, alto ou baixo, contínuo ou descontínuo, do soluço, a


sonoridade da voz e a da tosse, assim como os ruídos do coração e os
borborignios abdominais.

-Ele aspira os cinco odores, emanações específicas dos cinco órgãos, sem
esquecer o odor do arroto!

-Ele interroga, enfim e sobretudo, o doente: as suas perguntas poderão


desconcertar bastantes médicos ocidentais, habituados a confiarem mais nos
diversos aparelhos do que na sua perspicácia pessoal. «Ê friorento? Prefere a
obscuridade e a passividade? Se a resposta for sim, você tem tendência para
Yin ... »

«Tem sempre calor? Prefere a luz e o movimento? Nesse caso a sua tendência geral
é o Yang ... »

Bem entendido, estas perguntas são apenas o começo de uma análise mais apurada
do Yin e do Yang em movimento no indivíduo: «Está pálido, cansado e anémico? A
sua energia Yang então está esgotada.»

«Sente-se bem e está congestionado? Essa energia Yang está na plenitude.»

«É sensível às infecções? A sua energia estará em falta.»

«É reumático? A energia-humidade perversa cósmica, tendo provavelmente entrado


no baço devido a uma ansiedade crónica ou uma alimentação excessiva ou escassa
de açúcar, alojou-se em qualquer circulação.»

(’) Eis esses aspectos: superficial, profundo, lento, rápido, deslizante,


rugoso, vazio, cheio, longo, curto, amplo, pequeno, apressado, atrasado,
pulsação dupla, distendido, separado, trabalhador, mole, fraco, disperso, ténue,
escondido, removente, excitado, atado, cambiante e pronto. (’) Recorde-se que
uma hora chinesa dura o equivalente a duas de um quadrante ocidental.

234
O TAO E A ACUPUNCTURA

«Ê colérico? O seu fígado deve estar doente.» «As suas urinas são turvas? Tem
grandes probabilidades de estar amedrontado.»

« É impotente ou frígido? Os seus rins (’) Yang devem estar tonificados.»

Mas o problema é muitas vezes bem mais complexo, e é bastante raro, sobretudo se
a afecção é antiga, que um único meridiano ou um só órgão se encontrem lesados.
Toda a arte do médico taoista consiste então em dispersar, simultaneamente ou
sucessivamente, as energias perversas em causa e servir-se dos meridianos ou dos
órgãos em bom equilíbrio energético para alimentar «o mais fraco».

Como vemos, a ciência da acupunctura e os seus raciocínios estão muito longe da


«agulhoterapia» praticada por alguns médicos ocidentais. A sua terapia
restringe-se, com efeito, nesses casos, às receitas fixadas por reportórios de
sintomas, o que os leva a considerar a doença em função do doente. Não tratando
de compreender o paciente nem o seu meio ambiente, é-lhe impossível intervir
antes de a doença se declarar... o que deveria ser afinal o dever de todo o bom
médico, taoista ou não!

MERIDIANOS E ACUPUNCTURA

A definição de acúpunctura encontra-se muitas vezes, aos olhos do público


reduzida à de meridianos. A acupunctura, como já vimos, não se reduz apenas a
este estudo. Os meridianos não são senão os suportes, as vias de passagem da
energia, «os canais ou ribeiras», como dizem os chineses. Esta última expressão
deriva do facto de os meridianos se situarem nas três dimensões do espaço.

-A primeira dimensão, o comprimento, permite-nos situar os seus trajectos. Este


conhecimento dos trajectos

(’) Os taoistas entendem por «rim» todo o conjunto renal.


O rim Yang corresponde à parte mais exterior, a mais energética desta zona, quer
dizer, a supra-renal. Ora as supra-renais segregam uma grande parte das hormonas
sexuais, tanto no homem como na mulher.

235
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

é tão indispensável ao acupunctador como o da anatomia o é para o cirurgião.


Como cuidar uma enxaqueca ou uma ciática se ignorarmos em que trajecto de um ou
mais meridianos se encontra a dor?

-A segunda dimensão, a largura, permite-nos definir a importância do meridiano e


a sua função. Um mesmo barco não toma indiferentemente um canal, ou um rio ou
uma ribeira. Se alguns meridianos se chamam «secundários» em relação aos
«principais» isto não significa que se possa impunemente negligenciá-los no
trabalho de uma «irrigação energética» correcta, apanágio do bom acupunctador.
Mas a prática da acupunctura, voltamos a repeti-lo, não se reduz a um problema
de canalizações, de conexões e de circuitos energéticos. Uma tal concepção seria
estritamente ocidental e limitada; ela continua a ser no entanto a de numerosos
acupunctadores que não evoluíram desde os primeiros trabalhos, no Ocidente, de
Soulié de Morant e, por conseguinte, não compreenderam a verdadeira dimensão da
acupunctura.

- A terceira dimensão define a profundidade à qual circula o meridiano. É ela


que permite estabelecer a ligação entre o meridiano e um dos sistemas de
referência (em matéria de energética em acupunctura): o Yin/ /Yang. Quanto mais
à superfície circula o meridiano tanto mais Yang ele é; se circular em
profundidade, tanto mais Yin.

As expressões «meridianos Yin» ou «meridianos Yang» não têm nenhum significado


se não definirmos qual a parte do corpo a que nos referimos ou qual o outro
meridiano com que o comparamos.

Os diferentes meridianos

Os meridianos não são em número de doze ou de catorze ou de vinte, como se


pensou durante muito tempo no Ocidente (e como o julgam ainda os «irredutíveis»,
fechados tanto à experiência várias vezes milenária dos chineses como às
experiências da neurofisiologia moderna).

Podemos considerar, por alto, que os meridianos são 68:

236
O TAO E A ACUPUNCTURA

- doze meridianos ditos « principais »;


- doze meridianos ditos «Lo transversais»;
- doze meridianos ditos «Lo longitudinais»;
- doze meridianos ditos «tendino-musculares»;
- doze meridianos ditos «distintos»;
- oito meridianos ditos «singulares».

Este número, no entanto, não inclui os outros meridianos menos conhecidos, assim
como os numerosos «capilares energéticos» (minúsculos meridianos que,
percorrendo a superfície do corpo, veiculam uma parte da energia), cujo número
seria praticamente infinito (portanto impossível de conhecer), mas cujo
conhecimento da função que desempenham no organismo contra as agressões externas
(golpes de frio ou calor, por exemplo) é indispensável ao raciocínio do
acupunctador.

S,@,ria fastidioso descrever aqui o papel e, ainda mais, o trajecto dos


diferentes meridianos. São necessários muitos anos de prática para os conhecer.
Não se forma um acupunctador em três meses nem mesmo num ano. Digamos, no
entanto, algumas palavras acerca dos meridianos «principais» e da imagem que
formam, sobre e dentro do homem, o conjunto dos meridianos.

Os meridianos principais:

Falar de meridianos principais permite esclarecer um dos grandes mistérios que


descobre o doente que se aproxima pela primeira vez da acupunctura; como é que
uma agulha colocada no pé ou na extremidade dum dedo da mão pode agir sobre uma
dor de cabeça, de estômago ou de costas?

Se, levado pela curiosidade, este doente procura a resposta num manual de
divulgação da acupunctura, ele não a encontrará. Estes, não descrevem em geral
senão os trajectos superficiais dos meridianos principais.

Mas todos estes meridianos têm a montante do seu ponto de origem, ou a jusante
do seu ponto terminal, um trajecto profundo que os une aos outros meridianos.
Não esqueçamos que a circulação energética, tal como uma circulação eléctrica,
não pode ser senão contínua. Como saber se o meridiano dos pulmões, que

237
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

dizemos, em geral, que começa no alto do braço e termina na extremidade do


polegar, pode intervir em perturbações da garganta ou do estômago? A resposta
provém do facto de o trajecto profundo do meridiano do pulmão passar pela
garganta e pelo estômago. Assim como o trajecto profundo do meridiano do rim
passa pela coluna vertebral, e o do meridiano do fígado pelos olhos.

Numerosos exemplos, como estes, permitiriam esclarecer um tal mistério...

O homem-meridiano

O homem, no seu volume e na sua superfície, é portanto percorrido por uma


complexa rede de linhas de força, de canais, a que chamaremos meridianos.

O conjunto pode ser comparado a um circuito electrónico concebido para repartir


a energia no conjunto da rede, seleccionando e repartido certas frequências por
zonas diferenciadas do circuito. Esta função do circuito é assegurada,
prioritariamente, pelos seus componentes mais internos e, no que respeita à
acupunctura, pelos meridianos principais.

O circuito deve, por outro lado, ser protegido das sobrecargas internas e
externas (cf. curto-circuito em alta de tensão) e a sua concepção deve ser tal
que toda a sobrecarga possa ser derivada para a superfície e eliminada. Em
electrónica os sistemas de resistências ou de condensadores asseguram esta
função. Em acupunctura, são os meridianos secundários, os mais superficiais, que
desempenham essa função.

Parece portanto possível estabelecer uma analogia entre circuitos electrónicos e


circuitos de acupunctura. Esta analogia permite até, em certos casos,
estabelecer um princípio de raciocínio clínico e terapêutico. Dizemos «um
princípio» porque a realidade dos circuitos de acupunctura é certamente bastante
mais complexa do que nós pensamos.

Para concluir, e em resumo, diremos que a noção de meridiano é um esquema de


aproximação muito grosseiro, um utensílio de trabalho, que será talvez posto em
causa nas pesquisas começadas actualmente a este nível,

238
O TAO E A ACUPUNCTURA

tanto pelos chineses, como pelos ocidentais. Esta noção poderá ser substituída,
segundo um jovem electrónico que aperfeiçoou vários aparelhos detectores de
energia em acupunctura, Michel Frey, pela de «conjuntos de pontos de acção
específica permitindo a correcção de perturbações terrestres, humanas ou
cósmicas».

OS PROCESSOS TERAPÉUTICOS

Os pontos de acupunctura, quase todos situados em partes côncavas, são as


«janelas» abertas para a energia. Manipular aí uma agulha (porque não basta
«espetá-la»!), colocar aí os kao, é permitir à energia em falta renascer e
reflorir, à energia preversa voltar para o ciclo ao qual pertence, e à energia
em plenitude repartir-se.

A manipulação da energia ao nível dos pontos da acupunctura pode efectuar-se de


quatro maneiras: por massagem, por calor, por sangria e por agulha.

A massagem: De uma forma empírica, cada um de nós sabe massajar as têmporas


empregando uma técnica tradicional de «pressão em rotação» para atenuar a dor de
cabeça. O gesto de apertar o nariz entre o polegar e o indicador, e que nós
julgamos involuntário, deve a sua eficácia ao facto de estimular a actividade
das supra-renais, cuja secreção cortisónica produz um efeito antidepressão e
antifadiga.

É evidente que a técnica de massagem do médico acupunctador é. uma arte: segundo


os dedos que utiliza, as zonas que massaja e a gama das manipulações que
pratica, esta arte está muito afastada daquilo a que muitos chamam «massagem
chinesa». . A massagem tem a sua melhor aplicação na criança, que se assustaria
com a agulha. Além disso, a sua energia ainda muito jovem permite ao médico, por
meio de simples massagens na palma das suas pequeninas mãos, ou mesmo por
simples agitação dos seus membros, melhorá-la de diarreias, da febre ou das
anginas.

O calor: Tem o efeito de tonificar a energia essencial do corpo, e o médico


acupunctador utiliza-o de preferência nas doenças crónicas, quando o potencial
de ener-

239
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

gia, próprio do indivíduo, está enfraquecido pela marcha da energia perversa no


mais fundo do seu ser. Para aquecer um ponto em acupunctura pode-se proceder de
três modos:

-depositar nesse ponto um pequeno cone de arte-

mísia que nós inflamamos na ponta e que se deixa consumir até que se manifesta
uma pequena dor; o médico varre a artemísia com as costas da mão (são os moxa
dos japoneses ou os kao dos chineses); -aproximar do ponto uma folha de
artemísia enrolada como um cigarro; -rodear o cabo de uma agulha clássica
bimetálica

com uma bola de folhas de artemísia secas e esmagadas que se deixam consumir
inteiramente (é o método de Wen Tchen ou «agulha niorna»). Esta técnica dá ao
organismo a força que lhe permite expulsar para o exterior as perturbações às
quais está sujeito, e é maravilhoso nos casos de astenia, de convalescença e de
depressão.

A sangria: Alguns meridianos contêm mais sangue do que energia. Em caso de


penetração de energia perversa (que vasa os meridianos da sua energia própria),
cria-se um desequilíbrio muito importante entre o sangue «em plenitude» e a
energia «em falta».

Os pequenos capilares congestionados que nós vemos por vezes aparecer (mais
facilmente na mulher, na face externa da coxa) são a tradução semiológica deste
acidente energético. Esta estagnação sanguínea, por mínima que seja, pode ser a
causa de dores lombares, ciática, nevralgias cervicais, dores diversas...

O acupunctador efectua então, ao nível desses capilares, uma micro-sangria com a


ajuda de uma agulha triangular, cortante como o fio de uma lâmina. O efeito não
é proporcional à quantidade de sangue que escorre: algumas gotas bastam para
aliviar imediatamente.

A agulha: Antes de mais, lembremos que em França as agulhas são consideradas


como instrumentos cirúrgicos e por conseguinte a prática da acupunctura está
reservada exclusivamente aos médicos. Actualmente o

240
O TAO E A ACUPUNCTURA

uso das agulhas de ouro ou de prata está confinado a alguns consultórios


ocidentais cujo snobismo tenta imitar vagamente a glória dos imperadores da
China. Os herdeiros modernos do taoismo (médicos chineses de Mão e ‘médicos
ocidentais que não se limitam a uma vaga «agulhoterapia») utilizam agulhas de
aço cujo cabo é enrolado com fio de aço, de cobre ou de latão. O comprimento do
cabo da agulha varia entre
1 e 30 em. Em França, o Dr. Mussah pôde demonstrar que a actividade destas
agulhas é função do efeito da micropilha induzido pelos dois componentes
metálicos (quer dizer, injecção de uma microcorrente no organismo), desde que se
saiba manipulá-los correctamente. A agulha espetada por uma mão inexperiente
pode ter uma acção tão imprevisível como o humor de um tigre...

A SAúDE TAOISTA

A personalidade humana é portanto função do equilíbrio entre as cinco formas de


energia mental contidas nos cinco órgãos e, mais particularmente, do equilíbrio
entre o coração (fogo-pensamento) e o rim (água-vontade, no sentido lato, ou
produção e acção).

Suprimir a separação entre o pensamento e a acção é equilibrar o coração e o


rim, o fogo e a água... a mente do homem!

Se o coração o arrasta, o homem arde em desejos veleielosos. Se o rim o arrasta,


o homem mergulha em actos irreflectidos e imaturos. O eixo rim/coração polariza
o equilíbrio das paixões humanas.

A dialéctica das energias do homem, qualquer que seja a sua natureza específica,
constitui um todo, um conjunto, um equilíbrio, uma totalidade. Se uma delas
enfraquecer, uma outra virá socorrê-la... Toda a arte da acupunctura, chave das
energias contraditórias, consiste em prever a eventualidade de um
enfraquecimento energético.

Se não pôde prever a doença, o médico acupunctador deve agir num sentido
fisiológico: reforço das defesas do organismo, compreendido na sua unidade
psicossomática. Os taoistas praticavam a psicossomática «total», incluindo o
cósmico no homem.

241
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

A acupunctura, como a prática do taoismo por aqueles que não são médicos, é uma
lógica de síntese. Nesta ciência puramente metafísica, e não religiosa,
verdadeira iniciação ao conhecimento do Universo, a pesquisa científica moderna
pode encontrar a inspiração para novas descobertas.

242
CAPITULO X

AS RESPIRAÇõES SUBLIMES

A M. 1tsuo Tsuda, que nos abriu as portas do amor.

É impossível interessarmo-nos pelas medicinas sagradas sem encarar o fenómeno


das Respirações, tal como foi aperfeiçoado pelas civilizações do Oriente.

Na nossa civilização, como o sublinhou e muito bem o médico japonês D. T. Suzuki


(’), um dos meios de «libertação» dos mais acessíveis pode ser encontrado no
treino que nos propõem estas Respirações Sublimes do Oriente, medicina ao mesmo
tempo profiláctica e terapêutica sagrada, visto que «o poder da vida atinge o
seu máximo quando nada entrava a endosmose do microcosmo e do macrocosmo» (1).

É a busca desta endosmose pela respiração que explica a importância das


aberturas, portas de inspiração e das energias nas tradições orientais. São elas
que constituem as vias da autoterapia do homem sagrado.

O homem sagrado, no Oriente, não se definiu por uma natureza dualista de um


deus-homem. ou de um homem-deus, como no Ocidente, quer dizer, como uma pessoa
divina materializada por um corpo humano: o homem sagrado definiu-se pela
identificação sujeito/objecto, microcosmo/macrocosrno.

(’) Cf. Suzuki (D. T.) Fromm (E.) e Martino (R. de): Bouddhisme zen et
Psychanalyse (Paris, PUF, 1971). Relatório de um seminário sobre estes assuntos
em Cuernavaca (México), sob os auspícios do DeparIment of Psychoanalysis of the
Medical School, da Universidade do México. (’) Granet (M.): La Pensée Chinoise
(Paris, A. Michel, 1934. e Livre de Poche, 1968).

243
AS MEDICI.VAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Ninguém podia lançar-se na aventura da busca do conhecimento sem primeiro


escutar a voz de Lao Tseu:

«Para conservar a vitalidade, é necessário assemelharmo-nos ao recém-nascido: os


seus ossos são tenros, os seus músculos são leves-e no entanto ele aperta com
força! Ele não sabe ainda nada da união sexual-e contudo o seu pénis ergue-se!
Ao longo do dia, ele grita-e contudo a sua garganta não enrouquece. Ao longo do
dia, ele o] lia - e contudo os seus olhos não piscam! ».

A RESPIRAÇÃO EMBRIONÁRIA

Mas precisamos passar esta fase do recém-nascido * reniontai, no tempo para


atingir a sabedoria suprema: * ela respiração embrionária ou tissular.
O ciicuito energético auto-regulador é o produto de Lima verdadeira alquimia
interior, na qual a respiração não é compreendida como pulmonar apenas, mas sim
como um l`enómeno energético, alimentador dos tecidos e da’.@ víscei-as, como se
produz no embrião por meio da oxigenação conduzida pelo sangue da mãe.

De que modo, sob o ponto de vista da medicina energética e da acupunctura, a


respiração intervém sobre a energia?

O baço recebe a energia do bolo alimentar durante o intervalo inspiração-


expiração e transforma-o então em energia assimilável pelo homem. Quando esta
transformação está acabada, o ar inspirado que atravessa o baço leva para fora
deste as energias derivadas deste metabolismo. A energia limita-se a circular
nos meridianos: ela concentra-se em certas zonas, ligadas entre si por forças,
os lrês campos do cinábrio(l). Estes três centros energéticos constituem os três
atanores da alquimia interior.

(’) O cinábrio é na China antiga a droga da imortalidade, por excelência. É o


sulfureto vermelho natural do mercúrio. Símbolo cliave do Yin e do Yang na sua
unidade, ele representa um verdadeiro nó de energia que a alquimia inflama no
cadinho interior para engendrar a imortalidade do indivíduo, do mesmo modo que o
mercúrio brota em massas metálicas e b@-ilhan1cs a partir cio rnint@ral vermelho
em fusão.

244
AS RESPIRAÇõES SUBLIMES

O campo do cinábrio superior nasce ao nível do ponto curioso Yin trang (no local
do «terceiro olho», entre as duas sobrancelhas) e prolonga-se para trás até ao
ponto Pae Roe (que os chineses chamam também «As Cem Reuniões» e que corresponde
à «Flor de Lótus» que distinguimos nas representações de Buda), que permite ao
homem comunicar com o Yang celeste. «Estrela polar» do homem, é por aí que a
alma espiritual (contida no fígado) deixa o corpo depois da morte (’).

O campo do cinábrio médio, ou Palácio Escarlate, situa-se no peito. O coração


forma o seu centro. Ele serve de motor de transporte à circulação das energias.

O campo do cinábrio inferior, terceiro centro energético, leva o nome de «Corte


Amarela» ou «Porta do Destino». Projecta-se três dedos acima do umbigo, à
frente, no ponto Tsri ou (ki) Pae (ou «Mar da Energia») e, atrás no 4.O ponto do
Vaso Governador, ou Ming Men («Porta da Vida»).

A energia que se concentra nos três campos do cinábrio alimenta a respiração dos
tecidos. Esta energia compreende-se, também, como sopro e respiração, mas não no
sentido grego de pneuma. Não se trata, com efeito, de abordar o ar exterior,
mas, pelo contrário, de tomar a «energia» «batendo o tambor celeste». Ainda uma
vez mais, voltamos a encontrar esta noção fundamental de ritmo.

Para «bater o tambor celeste», a tradição taoista quer que expiremos o sopro
pulmonar. Depois é preciso fechar a boca até ao último momento, para impedir que
a respiração interna se escape. Esta respiração interna penetra, no homem, por
um canal mediano à esquerda e na mulher por um canal situado à direita. Ouve-se
distintamente escorrer gota a gota para o campo do cinábrio médio.

O poder mental permite então dirigi-Ia de duas maneiras:

-para uma zona doente que desejamos tratar; -se desejamos apenas alimentar o
princípio vital,

ela reparte-se por todo o organismo.

Cf., supra, o cap. «0 Xamanismo»

245
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Esta técnica chama-se «fundir o sopro». Como vemos, a respiração sublime dos
taoistas pode assumir um papel terapêutico tal como uma acção profiláctica.

A GRANDE ALQUIMIA INTERIOR

É preciso bater três vezes no «tambor celeste» para acender o fogo interior se
decidimos alimentar o princípio vital da grande alquimia interior. A energia
necessária ao desempenho desta Grande Obra é fornecida pelos movimentos
respiratórios, cuja energia, por sua vez, é transformada em circulação interna.
Tal como o fole de uma forja, esta energia activa o fogo dos cadinhos, ou
caldeiras trípodes, o braseiro que aquece os três campos do cinábrio. Devem ser
observadas diversas fases:

-0 pensamento deve seguir um percurso circular, que vai da coluna vertebral ao


topo do crânio para descer pelo lábio superior e, daí, ir ao encontro da raiz do
órgão sexual, de onde este pensamento energético activa o cadinho inferior.

-À medida que esta circulação se estabelece, o pensamento transmuta-se em


energia cujo percurso, que segue então de baixo para cima, se torna cada vez
mais preciso. Ela polariza-se no sentido da Via Real, cheia de múltiplos
obstáculos constituídos pela coluna vertebral

a e franqueia, entre outras, a «Porta da Vida» (2. lombar), a Porta da Alma (6


a dorsal) e a «Porta de Jade» (região da nuca), para atingir finalmente a morada
do Homem Imortal das Montanhas, no alto do crânio.

- Nas fases seguintes, esta circulação produz, ao acelerar-se, um calor


purificante alimentado pelo caldeiro inferior. A energia original ou energia
ancestral tinh, quando este aquecimento atinge um certo grau, deixa o caldeiro
inferior para se fundir no ki, ou energia vital, no caldeiro médio ou «Fogo
Celeste do Coração».

- Por sua vez aquecidos pelo fogo médio, estes dois elementos deixam o seu
cadinho para subir ao longo da coluna central.

- Paralelamente, para abrir as portas secretas do seu poder de expansão, o


adepto deve revirar os olhos e contemplar o seu próprio olhar, Só então, por
este

246
AS RESPIRAÇõES SUBLIMES

movimento na órbita à volta do campo de cinábrio superior, o seu olhar interior


lhe permite por fim contemplar a sua própria cara, «tal como era antes do seu
nascimento».

Esta circulação chega até à grande cópula interna do Dragão e do Tigre: a


transmutação da energia mental num elixir de ouro escorre gota a gota pelo canal
médio e mistura-se com a energia ancestral ou ki. O homem que escolheu esta via
sagrada transmuta o seu destino de pessoa e indivíduo para o estado cósmico do
Presente Eterno. Assim, o ki dirige-se para o alto, para aí brilhar como um
Iótus luminoso.

Num feixe flamejante, a substância nascida da fusão do ki, da energia ancestral


e da energia mental, eleva-se pelo canal central até ao cadinho superior, quebra
a órbita universal do tão numa florescência de ouro e prata, de Sol e Lua.

Atingida esta última perfeição, verdadeiro artista da vida, o homem torna-se o


seu próprio criador ao mesmo tempo que o seu próprio poema. A «semente da
imortalidade» humedece então os -seus lábios e as flores de luz focam-se, como
um raio laser, ao longo da coluna central. Não é mais precisa a respiração
pulmonar. O fim é atingido ao mesmo tempo que se instala a respiração
embrionária. O homem consegue pôr-se em ressonância com o ritmo expansão-
concentração que preside ao das galáxias.

ESFORÇO E VONTADE

Este formidável esforço pessoal, extraordinária condução do inconsciente


comunicando dum modo constante com a consciência, situa-se no lado oposto da
nossa vontade ocidental, se bem que isto possa parecer paradoxal à primeira
vista. Portanto, este esforço consiste -em «deixar agir» e, sobretudo, em não
fazer agir a vontade. Tudo reside no não-fazer, que, como cada fenómeno na
dialéctica, implica o seu contrário, quer dizer, o fazer. Depois de Hegel, este
caminho não deverá surpreender-nos mais.

Compreende-se porque é que, seguindo este caminho, o taoista se torna


responsável pelo universo inteiro, em-

247
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

penhando-se nesta via de recriação do homem por si mesmo, tal como o fazem o
zen, o ioga e outras disciplinas orientais da mesma inspiração. E esta recriação
parece-nos nem ser a única possível. «0 indivíduo não é livre senão renunciando
ao ser individual», conclui o Dr. Suzuki (’), ao sublinhar que «compreender isso
é curar nevroses, psicoses e outras agitações análogas».

RITOS E MúSICA

No Extremo Oriente, outras técnicas respiratórias, mais simples e mais


«quotidianas», mais correntes, permitem ao homem entrar em vibração para atingir
o estado cósmico, original e vivificante.

Mencionemos o papel importante que tinha a música entre os homens da China


antiga e o seu cerimonial:

«As notas e a música fazem vibrar o sangue e as suas condutas, pondo em


circulação os espíritos vitais e dando harmonia e rectidão ao coração. Se nos
afastarmos um instante dos ritos, fora deles não há nada mais que crueldade e
arrogância; se nos afastamos um instante da música, não há nada mais que
licenciosidade e perversão. A música permite ao sábio fazer crescer (entre os
homens) o sentimento das divisões equitativas. Ritos e música comunicam-lhes
reconforto supremo, o sentimento de que obedecer ao cerimonial permite aos
indivíduos integrarem cada um dos seus gestos no grande sistema rítmico de
comportamentos que constitui o Universo (’).

Esta análise de Marcel Granet pode alargar-se também às artes japonesas que
restam do domínio do sagrado pela endosmose do microcosmo e do macrocosmo que as
caracteriza, sendo no entanto praticadas por profanos. Pintura, caligrafia,
cerimónia do chá, arte floral, artes marciais, são todas fundadas na dança, no
rito e no movimento, sem intenção nem pressa para receber o mundo e para fazer
parte integrante do ambiente, tal como o teatro Nô foi definido pelo seu
teórico, o grande

Cf. Suzuki (D. T.): op. cit. Cf. Granet (M.), O Pensamento Chinês. op. cit.

248
AS RESPIRAÇõES SUBLIMES

Zeami (), como a busca de uma concordância que fizesse diminuir o afastamento
entre o acontecimento dramático da peça e o desejo do público.

Todos estes modos de expressão, de uma forma pouco ou pelo menos dificilmente
aparente para estruturas mentais ocidentais, alicerçam-se, de facto, numa mesma
concepção: identificação da acção voluntária com a acção involuntária pela via
duma Respiração Sublime.

No nosso contexto cultural actual, é-nos sem dúvida mais fácil compreender tal
fenómeno começando pela prática do seu aspecto fisiológico tal como nos é
possível encontrá-lo através das disciplinas das artes marciais ou certas
«ginásticas».

FISIOLOGIA ENERGÉTICA DA RESPIRAÇÃO

A escola Zen é a última a aparecer. Antes dela, os indianos através do ioga e os


chineses pelo taoismo conheciam já os exercícios respiratórios, energéticos, que
consistem em deixar a respiração executar-se tão lenta e silenciosamente quanto
possível.

Vejamos como se atinge esse processo ao nível energético, considerando a


inspiração como fase Yin e a expiração como fase Yang da respiração.

- Na inspiração, o homem que deixa agir o ki - que nós chamamos «o homem total»
ou o «homem sagrado» - contrai os músculos estriados da caixa torácica, a fim de
encher o peito. Repercutida através de todo o corpo, a inspiração corresponde à
fase de contracção dos músculos estriados e portanto à fase de acção consciente
ou da vida de relação; esta hipertonia da musculatura estriada é semelhante à
que se observa no decorrer da fase do sono lento.

-Na expiração, o relaxamento automático da musculatura estriada é acompanhado


duma vasoconstrição

C) Zeami viveu no Japão no século XIV. Filho dum dos actores mais ilustres,
Kanami, fundador da geração dos Karize que dirige ainda uma das cinco escolas
contemporâneas de actores de Nô, Zeami foi o primeiro a deixar escritos os
princípios e a tradução que lhe legou, oralmente, seu pai: Cf. Zeami, La
Tradition Secrète du Nô, trad. e com. de R. Sieffert (Paris, Gallimard, 1960), e
Arnold (P.): Le Zen (Paris, C. A. L., 1973).

249
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

dos músculos dos órgãos profundos, que são então massajados e alimentados. Esta
fase corresponde ao início da acção extrapiramidal, à vida vegetativa, pelo que
o indivíduo fica inerte e plantado como uma abóbora numa horta...

Esta fase de hipertonia generalizada da musculatura estriada é semelhante à que


se observa no decorrer do sono paradoxal (’). Os movimentos giratórios dos olhos
que se observam durante esta fase são testemunhos da actividade do sistema motor
extrapiramidal, e podem reproduzir-se, por exemplo, no decorrer do movimento
regenerador de que falaremos mais adiante.

Esta fase do sono paradoxal é a que dá lugar ao sonho. Todos sabemos, depois de
Freud, que o sono é o vasadouro onde o homem despeja a sua válvula de descarga.
Experiências fisiológicas têm, desde há bastante tempo, demonstrado que o ser
humano, privado do sono paradoxal e portanto sem sonhos, cai rapidamente numa
degradação física e mental. Experiências feitas com animais, neste campo,
demonstram que privando-os do sonho paradoxal eles morrem. Assim, tal como os
tradicionalistas sabem há já muito tempo, esta fase do sono, como a fase
expiratória que lhe corresponde, constitui a fase energética e nutriente, a fase
Yang sem
* qual o Yin-matéria não pode encontrar nem realizar
* sua coesão física... e mental.

UMA NOVA MEDICINA SAGRADA: O «SEITAI»

Antes de abordar o aspecto fisiológico das Respirações sagradas tal como se nos
apresentam na prática de certas disciplinas físicas que é possível praticar no
Ocidente, parece-nos indispensável fazer referência ao Seitai, técnica concebida
bastante recentemente, no Japão, e que obedece à visão e à via sagrada do tao e
do zen.

(’) O recém-nascido dorme em 90 % do tempo em sono paradoxal (e uma vintena de


horas por dia). Esta fase do sono corresponde à do sonho e produz-se
ciclicamente ao longo de toda a noite, por períodos bruscos que aumentam de
duração do princípio ao fim da noite e aparecem depois de 90 a 120 minutos de
sono lento.

250
AS RESPIRAÇõES SUBLIMES

É esta busca de coesão física e mental que o Seitai procura, o que aliás
traduzido à letra quer dizer «coordenação física».

Depois de ter estudado todos os métodos de cura, o Mestre Noguchi (’) acabou por
concluir que nenhum deles era eficiente para salvar o homem. Foi então levado a
conceber a ideia desta técnica, bastante complexa, porque não se trata de uma
noção corrente de boa saúde, sinónimo de ausência de doença, mas sim duma
espécie ele «normalização do terreno».

O homem que realiza o Seitai possui reflexos suficientemente desenvolvidos para


poder reagir a todas as anomalias sem que tenha delas necessariamente uma
consciência segura. Assim, por exemplo, chega a vomitar uma refeição tóxica que
o seu guloso paladar tenha aceite. A sua sensibilidade toma tal valor que mesmo
a mais rápida das doenças o não apanha desprevenido.

As doenças, com efeito, são aceites como flutuações fisiológicas, e o homem não
procura curá-las, porque sabe explorá-las em seu benefício. É por isso que as
doenças infantis, como a rubéola e a papeira, por exemplo, são consideradas como
verdadeiras iniciações biológicas necessárias ao ser humano para lhe permitirem
atingir a maturidade genital. Na mesma perspectiva, para o homem «seitaizado», a
constipação é considerada como uma fase de eliminação; é portanto frequente, mas
dura apenas alguns minutos, às vezes até apenas segundos, ou seja o tempo dum só
espirro. Uma vez a constipação passada, o homem sente-se refrescado, regenerado,
purificado.

Graças a esta «normalização do terreno», a respiração, mais calma, penetra


também mais profundamente.
O sono é curto porque é «intenso». A recuperação do esforço físico ou psíquico é
portanto muito mais fácil. Esta respiração desenvolve o corpo que se doma, ao
mesmo tempo que a postura se apruma, e não raramente

C) Nascido em 1911, Mestre Noguchi manifestou muito cedo um grande interesse


pelo magnetismo animal. Estudou de muito perto as medicinas tradicionais
populares, das quais testou as «receitas» antes de as abandonar para criar o
Seitai, por volta de 1945.

251
AS MLDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

as atitudes vertebrais viciosas corrigem-se espontaneamente. O indivíduo passa


mais facilmente da concentração à expansão, e inversamente.

As suas necessidades são exactas porque são adaptadas: o seu corpo sabe o que é
preciso comer ou o que deve fazer. A diferença entre pensamento e acção
desaparece. A imperícia dá lugar à perícia sem que se saiba como é que esta
mudança se operou. O homem «seitaizado» possui a serenidade.

Menos directiva ainda que a da acupunctura, mas verdadeiramente detonadora, a


arte do Seitai reside no «sentir» do terapeuta, que consiste em colocar-se num
estado de receptividade, em fundir-se de tal modo que possa permitir ao seu
interlocutor encontrar ele próprio a resposta fisiológica correspondente ao seu
mal, nesse mesmo instante, sem a intervenção da vontade ou da consciência.

Assim Mestre Noguchi reconhecia, em apenas alguns segundos, um indivíduo pelas


suas costas e pela sua postura e não pela sua cara ou a sua roupa. Ele ocupava-
se a regularizar o circuito de energia vital observando os indivíduos na
particularidade dos seus movimentos inconscientes e não a encarar a cura das
doenças.

Nesta particularidade dos movimentos inconscientes, encontrava muitas vezes


alguma analogia com um animal. Quando via alguém entrar no seu doio (1), ele
chegava a dizer: «Aqui temos uma raposa, cá está um tigre! »

Por esta razão criou depois o sistema taiheki, uma espécie de tipologia do ki no
ser humano, para facilitar o seu ensino.

O MOVIMENTO REGENERADOR

A aprendizagem da técnica Seitai apresenta no entanto uma falha: a de exigir uma


vintena de anos para formar um especialista.

(’) O doio é o lugar onde se pratica a Arte da Respiração, assim como as Artes
Marciais. É um «espaço-tempo» sagrado que se carrega de ki à medida que o mestre
e os alunos aí trabalham.

252
AS RESPIRAÇÕES SUBLIMES

Se bem que um especialista possa tratar cinquenta a cento e cinquenta pessoas


por dia, isso não é mais do que uma gota de água num oceano, se tivermos por
ideal considerar o mundo uma só grande família composta de milhões de
indivíduos. Podemos portanto considerar este ensino como esotérico, porque,
mesmo que haja muitos candidatos, a duração não permite conceber mais que alguns
eleitos.

Um outro método foi então preconizado pelo mestre Noguchi. Pode considerar-se o
«Movimento Regenerador» corno o ensino esotérico do Seitai. Este movimento
permite, graças à fusão do ki pela respiração, desembaraçar o terreno (o soma)
no sentido duma coordenação física.

Fora do Japão, não existe sequer um único dojo onde se possa praticar
regularmente este movimento, que é afinal bastante fácil de executar na nossa
própria casa depois de algum treino.

O doio não é um ginásio. Um mestre que nele proporciona os seus ensinamentos


define-o como um «lugar onde o espaço-tempo é diferente dum lugar profano. O
ambiente é particularmente intenso. Saúda-se quando se entra para se sacralizar
e ao sair para se dessacralarizar. Reina um espírito de paz, de comunhão e de
alegria».

Se a ginástica, tal como a entendemos, apela para o sistema motor piramidal que
comanda os movimentos voluntários, o Movimento Regenerador é, em si mesmo, um
método de treino do sistema motor extrapiramidal que comanda os movimentos
involuntários: soluços, arrepios, bocejo, etc.

AS RESPIRAÇõES MISTURADAS

Depois de terem saudado o caligrama representando o ki, colocado numa das


paredes do dojo, os participantes sentam-se sobre os calcanhares. O mestre, que
imprime o ritmo do sopro e tem o papel de um catalisador, dá o sinal da
expiração concentrada. Cada um coloca as mãos com as palmas viradas para o
plexo: o sopro intenso, ao mesmo tempo que o ki, circula na profundidade de cada
um. Expiração inclinando-se para o chão. As respirações misturam-se. Fusão da
energia, da vitalidade de todos.

2.53
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Cada participante coloca então o seu pulso esquerdo sobre a mão direita aberta
do seu vizinho, mantendo o polegar voltado para cima: o círculo torna-se então
numa cadeia de comunicação. Expiração concentrada. Quase todas as pálpebras se
cerram. Uma expressão de paz nasce em todas as caras. Há já muito tempo que os
problemas quotidianos foram abandonados, com os sapatos, à entrada dos tatamis.
É nesta fase que o observador pode verificar que «alguma coisa se está a
passar».

É a primeira parte do movimento; a prática da expiração concentrada permite


sensibilizar as mãos, educadas normalmente para trabalharem e não para sentirem
«seres vivos». Depois escolhem entre eles os pares. Nada de acaso nas
afinidades. Formam-se os duos: um dador e um receptor. o vazio mental está
feito. Então intervém a segunda parte do Movimento Regenerador, desencadeado
quer pela excitação do bolbo raquidiano com a ajuda de alguns gestos, quer pela
simples fusão de sensibilidades entre os dois parceiros.

O dador conduz o jogo: ele expira no corpo do receptor pelas mãos. Coloca as
palmas das mãos sobre as têmporas do receptor, os polegares afastados colocados
sobre dois pontos occipitais. Depois de uma expiração concentrada à mesma
cadência, cujo ritmo é dado pelo Mestre, o dador coloca as suas mãos atrás das
costas do receptor, no corpo do qual expira através destas. As mãos foram
«conduzidas» à energia por uma posição de «prece» depois da cadeia.
Podem então sentir-se umas ligeiras picadas e um calor.

O ki circula entre os dois parceiros. Depois de um tempo de imobilidade bastante


variável segundo a sensibilização dos indivíduos, o movimento surge:
não devido a quaisquer contracções musculares, mas espontaneamente, de uma forma
irresistível. Podem ler-se nos

corpos os movimentos nos quais se frustraram os hábitos culturais da


civilização. os intelectuais estáticos balançam-se. Surgem risos com a
espontaneidade do nascimento. Por vezes lágrimas, gritos. O escoadouro atinge o
limite. Esticados, alguns rolam sobre si mesmos, agitando os braços e as pernas.
Outros saltam e dão cambalhotas.

No entanto, cada um está perfeitamente consciente do que se passa. Reina uma


cumplicidade tácita: o ki

254
AS RESPIRAÇõES SUBLIMES

circula. O instinto acordado dá aos presentes uma espécie de radar para que
ninguém se chegue.

O dador continua a expirar pelas mãos, que não deixa de estender ao seu
receptor, com o qual ele está em fusão.

Pouco a pouco o movimento abranda e depois detém-se. Os papéis invertem-se, o


dador torna-se por sua vez receptor.

Muitas vezes acontece que alguns participantes atingem um certo paroxismo de


agitação. Mas apesar disso o pulso conserva-se normal -o que não se passaria se
todos esses gestos, esses movimentos, se desencadeassem através da vontade, ou
seja, através de um apelo ao sistema motor piramidal.

Passada a fase paroxística, os intervenientes sentem-se calmos, leves. O rosto


irradia uma expressão de beatitude, como após o êxtase do amor. O Mestre Rsuo
Tsuda explica o acontecimento da seguinte maneira: «A energia vital, agindo
sobre cada um dos indivíduos, caracteriza-se segundo cada personalidade própria.
Cada um sente e age de modo diferente. O movimento depende no seu ritmo e na sua
forma de dados próprios a cada um e não de uma noção generalizada para todos.»

A GRANDE OBRA DO KI

Uma circulação normal do ki permite uma boa evacuação das anomalias. É assim que
os gestos normais lhe permitem reencontrar o equilíbrio: arrotar, bocejar,
vomitar, etc. Ã medida que se pratica o movimento, a postura apruma-se, a bacia
torna-se mais fechada e as ancas mais móveis.

Tal como durante as pesquisas para atingir a Grande Obra o adepto suporta o
efeito das experiências iniciáticas, o corpo, modificado pelo movimento,
catalisa por sua vez um equilíbrio ou reequilíbrio psíquico.

Itsuo Tsuda acrescenta: «Se o Movimento Regenerador tem efeitos terapêuticos ou


de rejuvenescimento, isso não é mais do que um aspecto secundário, se bem

(’) Cf. Tsuda (L), I'Êcole de Ia Respiration ozi le Non-Faire (Paris, Courrier
du Livre, 1973).

255
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

que evidente. É como uma estátua que projecta a sua sombra. »

os fenómenos E. S. P. (’), tais como a telepatia, entre outros, não são


incompatíveis com a noção de ki. Para o Seitai, «mental e físico não são mais
que dois aspectos de uma mesma coisa: o ki».

Antes de se estar bem «seitaizado», ou normalizado, eis as fases que atravessa


aquele que pratica o movimento regenerador:

1.a fase: relaxamento do corpo; Iz, fase: hipersensibilização;


3.@ fase: eliminação, evacuação, trabalho em profundidade.

Parece-nos interessante comparar estas diferentes fases com as que atravessa o


alquimista: primeiramente, a

Obra em negro, no fim da qual chega à Obra em branco, onde o espírito e o corpo
libertos são comparados ao brotar de uma fonte. Depois vem a Obra em vermelho,
fase sublime onde o adepto integra a imortalidade ao mesmo tempo que a
universalidade. Fase do amor inefável.

O Movimento Regenerador pode conceber-se como a «Obra em negro», preparação


indispensável para o Aikido, ou o Tai Chi, que, como vamos ver, permite a quem o
pratica viver esse brotar do corpo, da energia e do espírito.

O AIKIDO

o taoista Tchuang Tseu afirmava que as pessoas comuns respiravam com a garganta,
enquanto que o «Verdadeiro Homem» o fazia com todo o corpo, a partir dos
calcanhares. Quem é incapaz de respirar com os calcanhares ou com as ancas, não
é aconselhável lancar-se na prática das artes marciais.

Vejam-se esses atletas ocidentais que praticam essas artes com fins
competitivos: eles trazem consigo os estigmas dos que não sabem respirar e
colocar-se em fusão com o ki. Corpos mortificados e deformados, reu-

F,,xtra-sensoriais parapsicológicos.-(N. do T.)

256
AS RESPIRAÇõES SUBLIMES

matismos precoces que os tornam inválidos, caracterizam aqueles que não praticam
a Arte Marcial do Amor, mas uma técnica de combate baptizada de judo, Aikido,
Tai Chi, etc.

Itsuo Tsuda, fundador da escola da respiração na Europa - onde é também o


iniciador do Movimento Regenerador- teve a felicidade de conhecer intimamente,
durante mais de dez anos, o mestre Moriliei Ueshiba, morto em Abril de 1969.
Este representava, diz ele, a imagem de um avô que se divertia com os seus
netos. «Com mais de oitenta anos, de pequena estatura, projectava os seus
adversários como fardos de palha: não era graças a uma força extraordinária, mas
sim à -sua respiração. Perguntava-lhes, acariciando a barba branca e debruçando-
se preocupado sobre eles, se os tinha magoado. Os seus opositores não se davam
conta do que lhes havia acontecido: tinham sido simplesmente transportados por
um coxim de ar e aterrado de cabeça para baixo. Todos tinham nele uma confiança
-ilimitada, sabendo perfeitamente que nunca faria mal a ninguém. Também para ele
o ideal exprimia-se pela'seguinte fórmula: O Mundo é uma mesma família. Fácil de
compreender mas difícil de se pôr em prática! -mas ele conseguia-o. A acção,
para Mestre Ueshiba, era provocada pela intuição e não pela vontade ou por uma
decisão racionalizada. A intuição estava ligada à acção de uma forma tão
natural, íntima e imediata que não existia nenhuma diferença entre elas.»

É provavelmente em função da forma como Mestre Ueshiba deixava agir em si o


«isso» tal como o entende Gruddeck (’) que ele chegou a suprimir toda a
diferença entre pensamento e acção. O Aikido, ou Via do ki, traz consigo um nome
bem significativo.

O TAI CHI CHWAN

É preciso ver um verdadeiro amador -para não dizer enamorado - do Tai Chi. Tal
como os que praticam o Aikido ou o tiro ao arco (cuja mestria do atirador

(’) Cf. Groddeck (G.,: Au Fond de I'Homme Cela (Paris, Gallimard, 1963).

257
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

pode ser definida por estas palavras de Herrigel (’): Ele aponta e é ao mesmo
tempo o alvo!), toda a sua energia parece subir dos calcanhares e dos pés,
raízes consumidoras da energia ao mesmo tempo que libertadoras da gravidade
donde parte todo o ritmo contracção/expansão do corpo.

Pouco conhecido dos europeus, o Tai Chi está no entanto muito difundido nos
Estados Unidos depois da guerra da Coreia. Chamam-lhe muitas vezes «boxe
chinês». Mas quando se vê praticá-lo pensa-se mais numa dança que em qualquer
outra actividade.

O Tai Chi Ch'uan é uma das vias para «obter o tao». o seu ideograma representa a
mão, cujos cinco dedos fechados encerram «todos os enrolamentos e
desenrolamentos que virão e que são os produtos da energia alimentadora
primordial» (’).

Nesta disciplina chinesa, a respiração embrionária torna também a primazia sobre


a respiração pulmonar. Esta via, espécie de ascese naturista, visa imitar, por
exemplo, a dança das aves quando estendem as asas ou a dos ursos coçando-se, com
o pescoço esticado para o céu. Estes exercícios, durante os quais uma certa
oxigenação é levada aos tecidos durante o tempo da expiração, proporcionam a
leveza indispensável a quem pretende praticar a levitação extática, no seu
sentido esotérico. Os nomes dos movimentos fundamentais do Tai Chi Ch'uan (’)
reflectem bastante bem esta procura: «Prendam à direita a cauda da ave-a cegonha
desdobra as asas-levem o tigre sobre a montanha- afaguem o pescoço do cavalo-
toquem o tigre à esquerda-agitem as mãos como nuvens-voltem e a serpente deita a
língua de fora-recuem para cavalgar o tigre.»

O Tai Chi, como o Movimento Regenerador, tem por finalidade pôr em alerta o
sistema extrapiramidal e,

O Na sua obra: Le Zen dans VArt Chevaleresque du Tir à l'Arc (Paris Devry-
Livres, 1970)., E. Herrigel relata todas as dificuldades que encontrou antes de
chegar a dominar a «natureza misteriosa desta arte que se revela unicamente
neste combate do arqueiro contra si mesmo». (2) Cf. Schatz (Dr. J.): «La
mecanique respíratoire dans Tai Chi Ch'uan» in Revue Internation£z1
d'Acupuncture, n.’ 13, 1969. (’) Cf- Maisel (E.),: La G~7astique Chinoise, trad.
Ph. de Merie (Paris, MCL, 1969).

258
AS RESPIRAÇOES SUBLIMES

pela supressão da diferença entre pensamento e acção, apoderar-se -como o fez o


Aikido- dos impulsos desde a sua nascença, quer dizer, desde o momento em que a
energia se projecta. Assim, intuição e reflexos permitem reenviar totalmente ao
adversário a sua própria agressão, isto é, a sua energia.

Esta «ginástica chinesa», ainda praticada regularmente na China Popular apesar


do seu aspecto esotérico (talvez este aspecto só seja afinal esotérico para os
ocidentais), aparece como um sistema relativamente simples de exercícios
fundamentados em movimentos rítmicos extremamente leves, isto é, uma procura do
equilíbrio do corpo e uma respiração espontânea.

A execução desta «dança» tem uma tripla finalidade: -realizada ao retardador,


ela engendra a adaptação às forças cósmicas do meio;

-executadas em acelerado, ela realiza uma técnica de autodefesa e daí o seu


nome de «boxe chinês»;

-regenera os tecidos. Tudo estâ em doçura e não-violência quando se executa esta


dança. Deve ser proscrito qualquer esforço. Cada movimento deve ser ao mesmo
tempo premeditado e espontâneo.

Então quem pratica deste modo o Tai Chi torna-se Sábio e talvez reencontre, por
esta via de Respiração Sublime, no seio do Presente eterno, aquele que foi o
primeiro mestre do Tai Chi Ch'uan: o imortal Tchang, o homem sábio e ilustre que
compreendia as leis ocultas do tao, com barba e cabelos compridos e eriçados e
que parecia deslocar-se graças apenas à impulsão de uma força que actuava
através dele.

A SOMBRA TERAPÊUTICA DAS RESPIRAÇõES SUBLIMES

Se a finalidade suprema destas respirações é atingir a endosmose do microcosmo e


do macrocosmo, todas têm efeitos terapêuticos. São certamente as mais simples,
as mais económicas terapêuticas, profilácticas no homem sábio e curativas para o
comum dos mortais.

Um estudo recente, feito nos Estados Unidos por cirurgiões, pôde demonstrar, no
plano científico ocidental,

259
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

que é a justeza da energia e a sua adequação à acção que permite ao homem


economizar as suas forças e portanto obter um perfeito domínio do seu ser.
Trinta e nove cirurgiões foram empenhados numa verificação e equipados de
eléctrodos para tomarem medidas contínuas de electrocardiogramas, tensão
arterial e consumo de oxigénio, enquanto executavam operações cirúrgicas. Esta
experiência demonstrou que a adaptação individual ao esforço tem valores muito
variáveis. Os que gastavam menos energia durante os esforços a que eram
submetidos, eram aqueles que, de acordo com os testes psicológicos previamente
feitos, apresentavam o máximo de equilíbrio nas suas reacções habituais(’).
Deste modo, o Dr. H. K. Hellerstein pôde demonstrar que a reacção do ser humano
depende de «qualquer coisa» (o «isso» de Groddeck?) sem relação com o esforço
físico pedido. É essa qualquer coisa, equação própria para cada indivíduo, que
modifica a prática das respirações sublimes.

Não abordamos, neste capítulo, um outro meio de libertação que é o ioga, cuja
energia motriz ou prana não é mais do que uma outra forma de denominar o ki, ou
tchi. Tal como nas disciplinas anteriormente referidas, «o fim imediato e
aparente da sua realização construtiva é o desenvolvimento das faculdades que
existem somente em potência no ser humano normal» (’).

O resultado fisiológico e os efeitos terapêuticos do ioga juntam-se aos de


outras respirações sublimes mas a sua via parece-nos demasiado «artificial» para
ocidentais já hipercerebralizados.

As respirações sublimes formam um domínio da Medicina sagrada que está ainda por
explorar cientificamente, mas a experiência prova, desde há milénios, que elas
podem contribuir largamente para a felicidade do homem. Isto porque um homem
feliz é um homem de boa saúde.

(’) Os cirurgiões gastavam em média tanta energia, no decorrer das suas


delicadas operações, como um indivíduo executando um trabalho de força. Os
ritmos cardíacos subiam até uma média de 118 pulsações por minuto. (’) Cf.
Kerneiz: Le Yoga (Paris, Tallandier, 1973) e Varenne (J.): Le Yoga (Paris, CAL,
1971).

260
AS RESPIRAÇOES SUBLIMES

OS DOZE «TAIHEKI»

Segundo Noguchi, há doze grupos de taiheki. Para uma mesma região de polarização
(cérebro, órgãos digestivos, pulmões, aparelho urinário e bacia), existe um
número ímpar, aplicado às pessoas que agem por excesso de energia -ou de ki -
nesta região, e um numero par, aplicado às pessoas cuja falta de ki as faz
sofrer influências exteriores.

- Grupo cerebral, também chamado «vertical» Tipo 1. Cerebral activo: De cabeça


alongada, estatura comprida e porte vertical (à imagem da girafa), todos os seus
movimentos começam por uma tensão cervical que endireita a cabeça e acompanha
uma contracção dos tendões de Aquiles. Neste tipo, a energia vital sobe ao
cérebro, sublima-se (no sentido analítico) para fazer nascer a ordem e a lógica.

A música de J. S. Bach, nas suas pesquisas lineares, bem arquitectadas,


representa um êxito feliz deste tipo que, no plano étnico, corresponde ao
europeu moderno.

Tipo 2. Cerebral passivo: A contracção cervical desencadeia reacções físicas:


dores gástricas ou diarreias, este tipo é muitas vezes candidato a úlceras de
estômago.

Buli Mico da erudição, enche a cabeça sem tomar providências para a vazar. É o
tipo falhado que culpa os outros.

-Grupo digestivo, também chamado «lateral» Activo ou passivo, o corpo é sempre


dividido em dois lados: esquerdo e direito. Um lado é mais pesado que o outro, e
no andar reflecte-se um balanceio lateral.

Tipo 3. Digestivo activo: O corpo denota uma certa esfericidade. O excesso de


energia é sublimado pela digestão. Emocionado, zangado, excitado, como sempre.

O seu sistema nervoso simpático, facilmente excitado, produz frequentes


palpitações. É o protótipo da simpaticotonia. Bon vivant, jovial, expansivo,
sendo também sentimental e terrível. Se se encoleriza é menos para atacar que
para satisfazer uma necessidade biológica, na ocorrência, para abrandar através
de um golpe explosivo o seu plexo solar endurecido. Decide quase completamente
em função dos seus sentimentos. Quanto mais

261
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

tempo tem para pensar, mais se atormenta, mas, como Última actividade, lança-se
na improvisação.

O seu mundo é o da cor, que ele percebe como sendo sons. Um bom número de
artistas pertence a este tipo: Segonzac, Schubert, Debussy.

Tipo 4. Digestivo passivo: Os reflexos parassimpáticos são predominantes. Este


tipo, de ritmo cardíaco regular, permanece calmo e taciturno. Afável e sensível
aos sentimentos dos outros, os seus próprios sentimentos ficam coagulados dentro
dele, originando anorexia, prisão de ventre e outros males do aparelho
digestivo.

_ Grupo pulmonar, também chamado «retaguarda»

Tipo S. Pulmonar activo: Tanto o corpo como a cabeça apresentam-se sobre a forma
de um triângulo. A sua forte largura de ombros projecta em frente e incha-lhe o
peito. O excesso de energia, que é permanente nele, não lhe permite nunca
tranquilidade. Estudará melhor se antecipadamente tiver feito exercícios
físicos, ginástica ou desporto para gastar a energia.

Nele o pensamento e a acção coexistem, a sensação de unia energia que não é


consumida empurra-o para a acção e para a aventura, das quais calcula os
perigos, os efeitos e os interesses. Possui um bom sentido de orientação e
rápidos reflexos de autodefesa. Neste sentido, Simão Pedro teria negado Jesus
não por falta de sinceridade, mas por uma necessidade biológica mais forte que a
sua vontade.

Tipo 6. Pulmonar passivo: Espáduas tensas, aparelho respiratório fraco,


constipando-se frequentemente e não podendo impedir a si próprio de agir. A sua
acção é uma espécie de desenterro inconsciente, A «grande histeria» de Charlot é
o resultado a que este tipo conduz quando é exacerbado. Frédéric Chopin parece
pertencer ao tipo 6.

-Grupo urinário, ou de «torsão» Tipo 7. Urinário activo: De proporções


dissimétricas, está sempre, no estado de torsão, procurando o equilíbrio. O
umbigo e o nariz não estão dirigidos na mesma direcção. A torsão, situada em
baixo, reforça o ventre.

Como unia mola demasiado estendida, o indivíduo é combativo e, nele, a acção


precede o pensamento. Só a

262
AS MEDICINAS AFRICANAS

decisão conta. Importam-lhe muito pouco as consequências funestas que daí possam
advir.

A experiência Seitai mostra que as pessoas completamente desprovidas de torsão


são incapazes de agir. E’ isso que explica uma parte da sua té cnica; agindo no
sentido do reajustamento das tendências de polarização, serve também para criar
intencionalmente uma polarização: um pequeno choque técnico, por exemplo, pode
assegurar uma lorsão provisória.

Este tipo, como Leonardo da Vinci e Beethoven, gosta da grandeza e é atraído


pelo volume.

Tipo 8. Urinário passivo: O funcionamento urinário muitas vezes deficiente


provoca um enteirissamento de todo o corpo.

Este tipo não resiste à tentação de fazer exactamente o contrário daquilo que se
lhe pede. É uma presa fácil da baixa lisonja.

- Grupo pélvico, ou da bacia, também chamado «fechado-aberto»

Tipo 9. Bacia fechada: Nele não há polarização da energia para unia região
determinada, É todo o corpo que a partir das ancas se faz tenso ou se relaxa de
um só golpe. A distância entre a abertura e o fecho da bacia é muito grande:
podem acocorar-se durante muito tempo sem afastar os calcanhares, e é essa a sua
posição de repouso. Logo que se levantam, o peso do corpo desloca-se dos bordos
exteriores dos pés para a raiz dos grossos artelhos; é então a posição de
tensão.

Logo que se concentram, não fazem apelo a uma parte das suas funções
psicossomáticas, mas a todo o seu ser. Sendo objectivos, a sua fadiga é função
do seu interesse. São capazes de enorme esforço de concentração.

É o tipo dos perfeccionistas que realizam os seus sonhos e a sua personalidade


na acção. Protótipo do humano, podem ser extremamente bons como Buda ou Jesus,
ou extremamente maus como Napoleão ou Hitler. Para o Mestre Noguchi é uni homem
deste grupo que conseguirá resolver a crise do inundo moderno.

Tipo 10. Bacia aberta: Por terem ancas muito largas, os ilíacos tendem a
afastar-se. Engordam à medida que

263
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

a idade avança. A sua fisionomia reflecte gentileza sem limites.

O seu corpo é selvagem, o que é um elogio do ponto de vista do Seitai. Mais


capazes de se dispersarem que de se concentrarem, ficarão de boa saúde sempre
que haja fracos e doentes à sua volta.

É o tipo de Madame de Rénal, tal como foi descrita por Stendhal no seu romance O
Vermelho e o Preto.

-Grupo hipersensível, apático Tipo 11. Hipersensível: Vivem sempre unia espécie
de exagero, dramático que não cessam de fazer sentir a toda a gente que os
rodeia. Vómitos de reacção, asmas e alergias cutâneas são habituais neste tipo.
Neles, o gesto terapêutico é aquele em que ninguém crê e que o apanha de
surpresa (injecções de água em vez de morfina, por exemplo). Proust parece ter
pertencido a este grupo.

Tipo 12. Apático: Dessensibilizados, têm um ar robusto e representam o ideal da


sociedade de consumo. Estão habituados aos acidentes e colocam-se nos antípodas
da espontaneidade: executam sempre uma ordem ou seguem sempre um modelo.
Incapazes de exprimirem a doença que os ataca, recalcam-na e acumulam-na em
cancro, cirrose, enfarto, hemorragia cerebral. O uso abusivo, precoce e
inconsciente de medicamentos do tipo tranquilizante, sedativo, calmante, etc.,
não faz senão favorecer a acumulação de «poeiras» na casa, quer dizer, no seu
corpo, e daí resulta a ruína precoce do edifício. Este último tipo é o ser
completamente oposto ao que realiza em si a respiração sublime.

264
CAPITULO X1

AS MEDICINAS AFRICANAS

A memória do Professor Rogar Bastida, cula «compreensão do outro» é um remédio


soberano em antropologia.

EXISTE UMA MEDICINA SAGRADA AFRICANA?

Logo que embarcámos para este périplo através de tantas civilizações mais ou
menos distantes, hesitámos bastante em fazer etapa no continente africano. Com
efeito, ou se considera a medicina como uma arte e uma ciência (quer dizer,
profana ou sagrada, pouco importa para o assunto) e então as medicinas africanas
nada têm a oferecer de particular: excepção feita a alguns grandes nomes do
Islão, tais como Avicena e Averrois, os meios de cura nascem da magia e da
crença nos espíritos e, se as histórias sobre feiticeiros são numerosas, são
também, no entanto, pouco variadas. Ou então entende-se por «medicina» todas as
espécies de meios de cura e, como aqui, em África, são apanágio de indivíduos
que não pertencem ao mundo profano, mas ao mundo «Mágico», arriscamo-nos a não
informar convenientemente o leitor sobre as medicinas sagradas

Vamos portanto traçar um breve panorama dos meios de cura conhecidos sob o
título de «medicinas africanas». Penetramos em África pelo Norte, conduzidos por
esses dois grandes médicos que foram Avicena e Averrois, cuja influência foi tão
grande em toda a Europa medieval, e em particular na velha faculdade hipocrática
de Montepellier e nos alquimistas em geral.

Depois passaremos às crenças terapêuticas que reinavam na África branca, crenças


baseadas na obediência ao Corão e às leis do Profeta.

265
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Daí, atingiremos a África negra, onde, desde o tempo dos negreiros até aos dos
jactos, o Islão tende a servir de denominador comum entre uma quantidade enorme
de etnias, de línguas, de crenças, de organizações tribais e clássicas.

Enfim, de uni salto, seguiremos na direcção oeste e transporemos o Atlântico a


bordo de veleiros que, ainda em 1860, transportavam no fundo dos porões por
vezes cerca de mil africanos condenados a serem escravos no Brasil. Aí, as
religiões e a cultura africanas iam ressurgir purificadas pela prova da
escravidão e oferecer um terreno de observação apaixonante para o antropólogo.
Para esses desgraçados africanos, tão brutalmente transplantados, «tudo
aconteceu como se uma cissura em profundidade se abrisse entre os diversos
níveis da sociologia, ao nível dos símbolos, alargando-se, para deixar intactas
em grande parte as representações colectivas, os valores; e mesmo as palpitações
da consciência colectiva, enquanto se desmoronavam as estruturas e as normas que
os sustinham»

A MEDICINA ISLÂMICA

O etnólogo René Pottier escreveu o seguinte: «As ciências árabes não existem
senão para a pátria árabe; o único elo de ligação que une os muçulmanos é a
religião.» Da China à África negra passando pelas extensões ocupadas pelos
Berberes, «uma ciência está acima de todas as outras, a da religião, e um único
conhecimento é indispensável, o do Corão. Para se ser letrado, necessita-se
apenas de saber o Corão de cor, mesmo se o seu sentido escapa, porque “vale mais
saber que compreender” » (’).

À primeira vista, poderá portanto parecer que entre os povos islamizados a


crença é mais forte que a ciência. No entanto, as ciências do Islão eram
bastante desenvol-

(’) Cf. Bastide (R.): Les Religions Africaines au Brasil (Paris, PUF, 1960). (2)
Cf. Pottier (R.): Initiation à Ia inédecine et à Ia magie en Islam (Paris,
Sorlot, 1939).

2 6 6
AS MEDICINAS AFRICANAS

vidas numa época em que o Ocidente saía ainda dos seus balbucios bárbaros.

A astronomia, «indispensável para fixar o ponto em direcção ao qual se devia


voltar logo que os acasos da guerra nos haviam levado para longe de Meca e para
determinar a data das festas, variável com o ritmo lunar» (’), permitiu às
matemáticas desenvolverem-se. Depois, à física e à química. Tudo isto,
evidentemente, uma vez que falamos do Islão, sob a tutela da metafísica.

A curiosidade dos sábios do Islão foi insaciável, e devemos-lhes o terem


recolhido os conhecimentos da Pérsia e da Antiga Grécia. Entre todos estes
brilhantes eruditos, dois homens interessam-nos particularmente. Já os citámos
anteriormente, Aviceno e Averrois, que muitos ocidentais consideram como os pais
da alquimia na Europa.

Aviceno, ou Ibn Sinâ em árabe, nascido em 980 d. C., deve sem dúvida a sua
reputação de mágico ao facto de se considerar a si mesmo como um adivinho e
também à sua teoria, segundo a qual «os objectos existem individualmente, mas os
espíritos das esferas superiores, participando da essência divina, têm
consciência de uma representação em si do universal. Ela reina fora de Deus e,
por múltiplos intermediários, comunica-se, por uma parte, aos objectos
particulares e, por outra, à razão humana, na qual a multiplicidade se torna um
conceito individual» (2).

Quando se sabe que aquele que foi denominado o Galeno do Islão se interessava
desde a idade dos dezasseis anos por altas especulações lógico-metafísicas e que
papel podem jogar estes intermediários na magia, compreende-se porque é que
alguns o combateram tão violentamente, No entanto, é certamente graças à
extensão das suas especulações do macrocosmo ao microcosmo humano que se tornou
um médico extraordinário.

É pela via da faculdade de Montepellier que, apesar do veto católico, a anatomia


penetra na medicina europeia. Nas suas Regras de Medicina, Aviceno dá as bases
da anatomia, ao mesmo tempo que as da medicina, que ele define como a ciência
que permite conhecer os esta-

Idem, ibid. Idem, ibid.

267
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

dos humanos e a maneira de conservar o corpo com boa saúde. Segundo ele, a
medicina liga-se à especulação pela lógica e pela metafísica, mas é também
prática e preventiva antes de ser curativa. Laennec, a quem se crê devermos a
descoberta da auscultação, não fez mais que redescobrir as teorias de Aviceno.

Pode mesmo dizer-se que Aviceno se preocupou mais com a medicina profiláctica
que com a curativa. Ele insiste muito, com efeito, na higiene regulando a vida
dos adultos: dietética, duração do sono e exercícios físicos. Estes exercícios
podem servir de tratamento e vão desde os mais violentos - luta, boxe, corrida -
aos mais moderados - baloiço, passeios no dorso de carne los ou de carro, etc.
Aviceno foi um dos ocultistas mais reputados do Islão; ele preconiza o passeio
lento de carro como exercício de reeducação da vista. Recomenda as massagens,
com a condição de que o corpo não esteja maculado por humores e que o estômago
esteja ligeiramente cheio, e, para os que têm este órgão dilatado, o balanceio
de uma viagem pelo mar, que faz as vezes de uma massagem interior.

Averrois, ou Ibn Rusd, nascido em Córdova em


1126 d. C., inspira-se nas Regras de Medicina, de Aviceno, para escrever as
Generalidades sobre a Medicina. Autor de numerosas obras sobre lógica,
metafísica, astronomia, aritmética e medicina, foi um dos génios do seu tempo.
Encontra em 1154 o califa de Marraquexe, torna-se médico particular de dois
sultões e cai, finalmente, na inveja hostil dos teólogos, que tentam mandar
queimar todos os seus livros: um auto-de-fé ameaçou-os também no século XIII na
Europa, quando os bispos de Canterbury e de Paris consideraram a sua obra
herética.

A sua heresia consistia, para uns e outros, na sua recusa em confundir alma e
inteligência. Para ele a inteligência é uma manifestação divina: ela pode unir-
se a Deus e portanto tornar-se eterna enquanto que a alma, unida à matéria, dá a
sua forma ao corpo e, existindo em todos os corpos organizados, é a força que os
anima. Essa força, essas forças, podem ser evocadas e mesmo manipuladas segundo
certos rituais, utilizados para fins bons ou maus, como nós fazemos, por
exemplo, com a electricidade, da qual não conhecemos a natureza. Esta audaciosa
teoria cheirava a enxofre e justificava todas

268
AS MEDICINAS AFRICANAS

as práticas de feitiço dos mágicos para que a estatueta de cera permitisse


assassinar o indivíduo que ela representa.

Como se vê, era fácil cair numa má interpretação de tais teorias, e foi o que
não deixou de se passar quando a civilização islâmica entrou na decadência e as
suas universidades deram à religião um lugar tão importante que chegou a ser
exclusivo, a ponto de fazer desaparecer o ensino da medicina, no qual «os
conselhos mal interpretados conduziam aos excessos de certas seitas mágico-
religiosas, como por exemplo os Aissaoua» . A medicina árabe trazia portanto
dentro dela a sua própria degenerescência».

A MEDICINA DOS MERCADOS

Até 1972, os turistas podiam ver, na célebre Djemaa el Fna do mercado de


Marraquexe, o arrancador de dentes encher o seu consultório, encontrar nas
regiões desérticas um barbeiro que põe ventosas e vende, na ocasião, uma receita
de ervas que se podem qualificar mais como curandeiras que medicinais, porque as
suas virtudes são mais mágicas que verdadeiramente terapêuticas (’).

A recolha é feita à noite, por mulheres velhas que respeitam certas fases da
Lua, e a utilização destas ervas não deverá ser feita sem encantamentos.

Este homem é muitas vezes chamado toubib C), mas a indicação de medicamentos é
um papel que advém dos feiticeiros, os guezzana.

Existe ainda outra espécie de médico, se assim se pode chamar: o taleb, que dá
consulta também nos mer-

(’) Foi assim que descobrimos divertidamente, reconheçamo-lo, casos de velhos


discos de 78 rotações metidos em frascos que figuravam nas prateleiras duma
minúscula «ervanária» dos bairros de Marraquexe, onde se podia comprar ovos de
avestruz, dentes de diversos animais, esponjas, conchas, peles de cobra,
camaleões e aves secas, patas de gazela, deliciosas ervas aromáticas, cristais
de rocha, etc. Os cacos de discos de 78 rotações eram destinados ao tratamento
das dores de ouvidos. (’) Na antiga gíria francesa toubib significava já médico.
Hoje tornou-se um vocábulo de linguagem familiar. - (N. do T.)

269
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

cados ou nas minúsculas lojas dos bairros. É o letrado, o sábio que sabe
escrever uma kitaba, ou versículo do Corão, numa folha de papel dobrada depois
de a tinta secar ao calor de um braseiro sobre o qual se deita uma pitada de
ervas aromáticas cujo odor afugentará o djinn, autor dos males de que o cliente
sofre (a tinta utilizada é também perfumada com rosas, jasmim, açafrão, etc.).
Porque todas as doenças têm por «autor» um diffin. Assim a adivinhação intervém
na terapêutica dos bazares: para conhecer as intuições dos dienoun, utiliza-se
geralmente o processo do khefif, que consiste em fundir chumbo numa colher e
vertê-lo em água fria onde se solidifica deixando partes lisas e brilhantes ou
concreções de cor negra, de que se interpretam as figuras depois dos
encantamentos.

CRENÇAS E NASCENÇAS

Os diinns estão em todo o lado: nos quatro elementos, nos objectos, nas plantas,
nos animais, em tudo o que tenha nome, tudo o que possa intervir na vida humana,
da nascença à morte. Se a baraka, a sorte, é um dom de Deus, todo o bem assim
como todo o mal é obra dos dienouii, ou génios.

Assim, desde o nascimento, logo depois de a criança ser lavada, uma matrona
cospe cominho mascado sobre o corpo do recém-nascido e, logo que o bebé é
envolvido em faixas, os olhos e as pestanas são pintados com khôl, enquanto uma
linha é desenhada, com hena, desde a testa até à raiz inferior do nariz. A hena
é alegria e bendição! Por fim aparece a «refeição dos anjos»: a mãe deposita
numa gamela as primeiras gotas do seu leite, que serão lançadas para um canto
afastado do quarto. Depois pinta o mamilo de resina de pinho, manteiga e mel
durante a primeira mamada: a resina afasta as dores, enquanto que a manteiga e o
mel chamam as alegrias da vida. Os Tuaregues fazem numerosas incisões nas costas
do recém-nascido, para que os dienoun não o confundam com qualquer outro, pois,
ferido, torna-se intransportável!

Da peneira através da qual se deixa o pai ver o recém-nascido -para evitar o


mau-olhado que este possa

270
AS MEDICINAS AFRICANAS

trazer consigo (mesmo o pai!) - à refeição mágica destinada a eliminar todos os


dienoun maléficos na idade de seis meses e seis dias, os rituais mágicos são
numerosos e complicados (1). O número sete aparece muitas vezes nestes rituais,
desde o casamento até mesmo à morte (1).

EM DIRECÇÃO AO SUL

Com se viu, a medicina islâmica resume-se a alguns grandes nomes, a um


vocabulário esquecido na linguagem familiar francesa -o toubib -, uma planta
magnífica e numerosas crenças.

Mas logo que descemos para o Sul, para a África negra, a decepção parece ser
ainda maior para os que não se interessam nem pela magia nem pela feitiçaria:
não existe a bem dizer um «sistema médico». No entanto, aparecem alguns rumores,
havendo quem afirme que os feiticeiros possuem, por exemplo, ervas
anticoncepcionais; mas é bastante difícil verificar tais factos.

Os meios de cura africanos não legaram à espécie humana mais do que algumas
plantas:

Contra as diarreias: Fazer uma infusão de uma dúzia de folhas novas de goiaba e
dá-Ia a beber, com um pouco de açúcar, ao doente, criança ou adulto. A goiaba,
da família das mirtáceas, contém grandes quantidades de tanino, de que a
medicina popular francesa se utiliza

(’) O cordão umbilical é muitas vezes conservado. No Sara, uma parte é utilizada
para preparar colírios. A outra é enterrada na mesquita quando se deseja que a
criança se torne um letrado (taleb) ou então pendurada numa árvore. Curiosamente
este último costume é bastante seguido nos países não muçulmanos, e por toda a
parte a sorte da criança está ligada à da árvore. (-’) Assim, por exemplo, no
sétimo dia a seguir ao do casamento, o esposo, acompanhado dos seus rapazes de
honor, rouba frutos e legumes nas hortas dos vizinhos, indo depois depô-los na
saia que a sua mulher, acocorada, transforma, digamos assim, numa mesa
simbólica, para que os díenoun não deixem nunca a sua casa sem víveres. No que
respeita a crenças relativas ao número sete e à morte, a tradição diz que a alma
fica sete dias sobre os locais frequentados pelo defunto enquanto vivo. Na
África negra o feiticeiro triturará sete vezes durante sete dias uma mistura
mágica, composta de sete elementos, que o doente deverá engolir no sétimo dia de
Lua nova.

271
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

também, mas, neste caso, prescrevendo como bebida uma caneca de vinho (de
Bordéus) quente, em que o tanino contido actua como adstringente bastante
eficaz.

No caso contrário (prisão de ventre), acrescentamos por curiosidade, as mães


africanas praticam uma lavagem aos intestinos utilizando água quente e injectada
com a boca no ânus do bebé.

Profilaxia da biliose (1): O Dr. Aklilu Lomma fez testes sistemáticos, de 1969 a
1971, às bagas da Phytolacce decandra, uma bebida local cujas propriedades
detergentes permitem aos indígenas fazerem as suas barrelas nos rios, matando os
caracóis (agentes propagadores da doença) sem, no entanto, destruírem a flora.
Na aldeia de Adona, na Etiópia, a incidência da biliose pode baixar deste modo
de 50 a 15 %, e o Dr. Lomma está a ponto de conseguir a extracção activa destas
bagas, o que permitirá a baixo preço, e sem grande aparato técnico, fabricar um
«sabão protector» contra esta doença.

O umcka, extracto de uma raiz sul-africana de pelargónio, família das


geraniáceas, exerce uma acção específica sobre as afecções de origem tuberculosa
pela neutralização das toxinas tuberculíferas e «desarma» assim o bacilo de
Koch. Esta raiz é utilizada, pelos feiticeiros africanos, esmagada, depois
fervida numa espécie de panela chamada «canari», para tratar «as doenças do
peito». A sua eficácia foi demonstrada pelo Dr. Adrien Sechehaye (’): nenhuma
toxicidade, boa tolerância, acção tónica muito nítida. No princípio da cura, é
recomendável obrigar o doente a um repouso completo, sobretudo se apresenta
febre. A cura pelo umcka assegura a continuidade dos progressos durante as
interrupções dos antibióticos, eventualmente causadas por alergias (distúrbios
digestivos, etc.). A fórmula suíça (’) desde medicamento não foi autorizada em
França.

A Rauwolfia vomitoria, da família das apocináceas, foi muito procurada pelos


ocidentais, de 1955 a 1957.

(’) Doença provocada por um pequeno verme (que vive parasitariamente no aparelho
circulatório humano). (’) Cf. Sechehaye (Dr. A.): le Traitement de Ia
Tuberculose Pulmonaire et Chirurgicale par l'Umkaloabo (Genebra, Georg). (’)
Esta fórmula é preparada pelos Laboratórios Brun, de Genebra.

272
AS MEDICINAS AFRICANAS

A Rauwolfia vornitoria fornece um alcalóide útil para curar a hipertensão


arterial e a agitação psicótica. A sua exploração foi depressa abandonada em
África - pelo facto de apresentar um rendimento muito irregular por um preço
bastante elevado -, em benefício da sua irmã indiana,.a Rauwolfia serpentina,
planta comum nas vertentes do Himalaia, utilizada desde os anos 30,
oficialmente, pelos médicos indianos, para essas mesmas doenças. Esta planta era
já do âmbito da homeopatia().

Alguns etnólogos são mais indulgentes no que respeita à terapêutica africana.


Vejamos o que diz sobre este assunto Claude Cabanis a propósito de observações
feitas nos Camarões Norte pela segunda missão chefiada por Marcel Griaule, o
grande africanista francês:

«A medicina indígena e, ao mesmo tempo, a farmacopeia, têm muitas vezes tomado


um aspecto misterioso que as faz depender do feiticeiro; sendo a saúde e a
doença o centro exacto da vida do homem, é compreensível e natural que ele tente
desembaraçar-se das diferentes manifestações patológicas para realizar os seus
desejos. Nas mãos do “homem da ciência”, acreditado e venerado, ao mesmo tempo,
pelo seu poder, misturam-se remédios estranhos, acompanhados na maioria das
vezes por preces, sem as quais o produto não teria o mínimo efeito; de resto, a
variedade e estranheza das medicamentações não são de estranhar se levarmos em
conta o que se prescrevia e codificava nos receituários europeus, até ao Século
XIX.» (2) Claude Cabanais esquece-se de nos dizer quais são esses formulários e
pensamos, por nossa parte, que se deve referir às obras de medicina popular
como, por exemplo, o Grande Alberto.

Quase sempre a doença é considerada como um mal infligido por uma força (que
corresponde à de um feiticeiro, de um espírito, ou de uma pessoa mal
intencionada com um feiticeiro por intermediário). A melhor das profilaxias
consiste portanto logicamente em afugentar a doença, quer dizer, a força que a
inflige.

(’) Cf. Julian (Dr. O.-A.): Matière Médicale I'Homéothérapie (Paris, Peyronnet,
1971). (’) Cf. Cabanais (CI.): «Notes de thérapeutique indigène au Cameroun», in
Journal de Ia Société des Africanistes, vol. XI (Paris, Musée de VHomme, 1941).

273
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

As observações de Marcel Griaule são, neste aspecto, extremamente interessantes:


«Para fugir aos terríveis efeitos da tripanossomíase (1), populações inteiras
desertaram de zonas de extensas terras cultiváveis nos vales do Níger, do Volta
e do Chari.

«Na Abissínia, nas províncias dos planaltos setentrionais, logo que aparece uma
epidemia, famílias inteiras abandonam as casas, em multidões compactas, durante
a noite, e dirigem-se às regiões desérticas ou mesmo às arborizadas. Nestas
moradas inabituais, a doença não se poderia orientar para se lhes juntar. Este
costume é tão frequente que, quase por instinto, ninguém se aproxima das casas
abandonadas, das quais não sai fumo.

No Godjan, em caso de varíola, centenas de crianças acompanhadas de adultos


emigram para regiões onde a doença tem formas benignas.

Sempre que estas práticas não são possíveis, como por exemplo com os abissínios
do Bégamder e do Tigre, as populações tentam que seja a doença a fugir em vez de
serem elas a afastarem-se. Para este efeito, colocam, à beira do caminho que a
doença provavelmente deve seguir, uma isca de apetitosa comida, seduzindo-a e
fazendo-a portanto abandonar a casa. Uma técnica análoga era praticada pelos
Dogons. Um búzio que foi passado sobre o corpo do doente é depois abandonado num
local de passagem. Quem o apanhar contrai o mal e desembaraça-se dele o
paciente.

Um processo mais subtil é também empregue tanto na Abissínia como na embocadura


do Níger. Consiste, no Bégamder ou no Choa, em considerar, por exemplo, a
criança que se segue a um nado-morto como tendo o sexo contrário ao que tem na
realidade [ ... ]. Entre os Dogons, a criança nascida nestas condições é
vendida ficticiamente a um indivíduo de casta e toma um nome de cativo. Por este
facto, é sensato deixar a família e fazer parte de um grupo estranho.

Estes dois últimos meios fazem intervir a personalidade do portador: esta é


modificada profundamente para enganar a doença e criar-lhe a obrigação de não
atacar a criança que já não reconhece, deixando apenas perante

(’) Nome genérico das doenças das quais a mais conhecida é a triponossomíase
africana, ou doença do sono.

274
AS MEDICINAS AFRICANAS

ela nada mais que o fantasma que ela desejava tomar por vítima.» (1)

Como se vê, os africanos só têm uma concepção mágica da etiologia (causa e


origem da doença). Um capitão-médico das tropas coloniais, em 1939, constatou
que, para os indígenas da Guiné Francesa, o sogolo, ou doença do sono, é
provocado por um veneno enviado, durante a noite geralmente, pelos espíritos
maléficos que erram pelo mato e pelos locais onde a obscuridade é profunda, ou
então por morcegos, enquanto que a mosca tsé-tsé só excepcionalmente é
incriminada (2).

ESCARIFICAÇõES QUELóIDES... E CANCRO?

A tatuagem é bastante rara na África negra; obtém-se pela introdução de matérias


corantes na derme, por meio de picadas ou injecções. No entanto o termo tatuagem
é muitas vezes utilizado para designar as escarificações que decoram os corpos e
caras dos africanos, que têm já de si a pele bastante colorida. Estas
«mutilações tegumentares» permitem fixar jóias às orelhas ou às narinas, por
exemplo, ou são, em si mesmas, um fim: ritual, comemorativo, religioso, mágico.
Essas escarificações são salientes ou côncavas (encovadas) e praticadas sem
anepsia nem anti-sepsia. Apesar disso, os acidentes são raros e os relevos das
cicatrizes bastante regulares. Os africanos «bordara a pele», dizia Buffon!

os quelóides (crescimentos anárquicos das células do tecido cicatricial) são


extremamente raros, o que levanta bastantes problemas, dos quais, retomando as
palavras dum médico que se debruçou sobre o assunto, «se pode esperar alguma luz
sobre um problema que ultrapassa largamente o quadro das mutilações, para
atingir o tecido conjuntivo no seu conjunto, o colagénio,

(’) Griaule (M.): «De certains procédés prophylactiques africains», in Journal


de Ia Société des Africanistes, vol. XI (Paris, Musée de VIlomme, 1941). (’)
Ristorcelli (Dr. M.): «Um traitement indigène de Ia trypanosomiase chez les
PeupIs du Fouta-Djalon», in Journal de Ia Société des Africanistes, vol. XVI
(Paris, Musée de FHomme, 1946).

275
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

como se diz hoje. O problema é vasto. Os Negros africanos trazem em si os


elementos da descoberta» (’).

Esta notória falta de quelóides encontra-se também ao nível das úlceras


cicatrizadas, assim como noutras cicatrizes (que aparecem bem lineares)
resultantes, por exemplo, da extirpação dos gânglios cervicais hipertrofiados,
método muito difundido na África negra para tratar a doença do sono, ou sogolo.

Podemos perguntar se esta aptidão para não desenvolver quelóides corresponde a


uma aptidão mais geral para não desenvolver crescimentos celulares anárquicos, e
portanto tecido canceroso. O Dr. Livingston, depois de vinte e cinco anos
passados no mato, considerava que o cancro não existe na África negra. O Dr.
Robert Dupont, que participou em 1939 na missão Lebaudy-Griaule, não faz
referência a, um único caso de cancro entre vários milhares de indígenas
examinados entre Fort-Lamy, Bangui e a Nigéria britânica.

Segundo as observações do Dr. Dupont (’), o cancro não se encontra «nas regiões
pouco ou nada atingidas pela civilização». Sublinha igualmente que «entre os
Negros, quase sempre subalimentados, as células, menos activas, teriam menos
tendência a se cancerizar» e que o cancro «nunca aparece entre os doentes
atacados pela doença do sono; e esta doença é bem frequente nestas regiões».

Ele faz notar ainda o papel que poderia ter o magnésio nesta ausência do cancro:
sal, piripíri, mandioca, milho painço e soja, bases da alimentação dos
autóctones, são muito mais ricos em magnésio que o nosso pão e as nossas batatas
(’).

Será o cancro uma doença da civilização, dos países onde se come muito? É essa,
em todo o caso, a opinião de alguns cientistas; em especial o Dr. Rudolf Steiner
e o Dr. Artur Guirdham, que podemos considerar como grandes mestres da medicina
sagrada. Opinião, aliás, que

(’) Palés (Dr. L.): Les inutilations tegumentaires en Afrique noire», in Journal
de Ia Société des Africanistes, vol. XVI (Paris, Musée de VHomme, 1946). (’) Cf.
Dupont (Dr. R.): le Cancer chez les Saras (Fort-Archambault), Mission Lebaudy-
Griaule, 1939.

C) Cf. Delbert (Pr.): «Le cancer dans Ia race noir», in Bulletin de l'Academie
de Médecine, n.’ 12, Paris, 1936.

276
AS MEDICINAS AFRICANAS

se encontra confirmada, não pela reflexão metafisica, mas pela simples


observação etnográfica: em 1939 a África negra não estava ainda doente,
contaminada pelas contradições levadas pela nossa civilização.

FEITICEIROS, CURANDEIROS E BRUXOS

Já dissemos que os meios terapêuticos na África são limitados a certos


conhecimentos empíricos, a receitas medicinais simples às quais se juntam, e
muitas vezes com elas se confundem, crenças supersticiosas. «0 estudo da
medicina indígena na África negra não pode ser separado dos seus dois suportes
misteriosos: a bruxaria e a feitiçaria.» (1)

A África negra - dentro do quadrilátero situado entre o mar, a costa do Marfim e


o Alto Volta, por exemplo -

é um gigantesco puzzle onde se encontram mais de setenta línguas e dialectos.

Todo o esforço de classificação, de ordenação, seria vão e encontraria


imediatamente opositores. O que se pode dizer é que, duma maneira geral, os
africanos crêem num Deus Supremo, criador do mundo, bom, de tal maneira
distante, de tal modo inacessível pela sua superioridade, que a sua influência
não se pode exercer senão em reis e chefes. É por isso que o comum dos mortais
se dirige apenas a divindades mais acessíveis que dão nascimento a «um
politeísmo que se asfixia num misticismo excessivo. Estas concepções deixam o
campo livre aos bruxos e aos feiticeiros para poderem imaginar uma multidão de
subdeuses, génios cuja adoração constitui, na verdadeira acepção da palavra, a
feitiçaria» (’).

Os feiticeiros são ao mesmo tempo padres - determinam a frequência e a natureza


dos sacrifícios a oferecer à «Terra alimentadora», por exemplo, e são eles que
concedem a iniciação no bosque sagrado «onde se forma verdadeiramente a
sociedade negra» (1) -, médicos - os

(’) Cf. Kerharo (L) et Bouquet (A.): Sorciers, Feticheurs et Guerisseurs de Ia


Côte-d'Ivoire et Haute-Volta. (Paris, Vigot, 1950).

Idem, ibid. Idem, ibid.

277
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

feiticeiros-curandeiros das florestas têm grandes conhecimentos das plantas e


das doenças; por vezes alguns deles gozam mesmo duma reputação que ultrapassa os
limites da sua aldeia. «0 homem da floresta ensaiará no mesmo paciente duas,
três... dez plantas diferentes, para tentar obter um bom resultado, enquanto que
o seu confrade da savana será imediatamente ultrapassado se o único
«medicamento» que conhece e prescreveu, para a afecção em causa, não produz o
efeito esperado. Será então forçado a esconder a sua ignorância atrás de
encantamentos, de ídolos ofendidos, de sortilégios e de todo um cortejo de
disfarces que não tê m nenhuma relação com o doente e a doença.»

Os curandeiros da savana podem ser considerados como «especialistas duma- só


doença», mais do que como médicos. Conhecem apenas um número muito limitado de
plantas e muitas vezes um único tratamento por doença, cujo conhecimento lhes
adveio, quase sempre, por compra do segredo a um conhecedor. Imaginem-se as
transformações que pode sofrer, ao longo de séculos, uma tal forma de
transmissão de conhecimentos.

UM DIABO NA CABEÇA

As doenças têm na maioria das vezes uma origem sobrenatural. Podem ser devidas
ao ké1é entre os Lobis, ao zana entre os Ashantis, ou ao gnama, entre os
Bambaras. Segundo Labouret, «o gnama é um fluído nocivo, uma energia maléfica
emanada de forças ocultas, tendo por consequência a doença e a morte
[ ... ]. Este fluído é particular em certos deuses e espalha-se sobre os
animais e vegetais em que eles tocarem» (1). Esta crença no gnania nos seus
portadores, encontra-se nos Samoros, Bobos, Mossís, Sénoufos, Baoulés, etc. Por
exemplo: a papeira pode ser causada pelos crocodilos, se se tomar banho em águas
por eles provoadas ou comer a sua carne. Outro exemplo ainda: a abetarda defende
os seus filhos lançando nove doenças nos nove caminhos que

Cf. Labouret: Les Tribus dti Ranjeali Lobi.

278
AS MEDICINAS AFRICANAS

conduzem ao ninho. No entanto, para ela, reserva um, não infectado (’).

Daí os amuletos para se defenderem de tantos perigos. Daí, também, a importância


da adivinhação para o estabelecimento de um diagnóstico seguro. O feiticeiro é
muitas vezes também um adivinho, e a paciência a melhor das esperanças do
doente.

É aqui, então, que surge uma hipótese que será sem dúvida rapidamente criticada
pelos mais sérios eruditos. Se se crê que a doença é devida apenas às
influências dos sortilégios malfazejos, aos mais variados e diferentes
encantamentos quê neles se introduzem, rapidamente e bem, um « diabo na cabeça»
não é também a maneira mais simples de explicar como e porquê eles levam o corpo
a ficar doente -o que corresponde a dizer que «utilizam o terreno, e ao mesmo
tempo são responsáveis pela cura. Os africanos viverão, numa linguagem
diferente, as melhores passagens das teorias psicossomáticas. Assim, tal como
cada psicossomatólogo possui as suas «fórmulas», as suas «receitas», quer se
trate de psicanálise, de treino autógeno, etc., cada feiticeiro possui os seus
exorcismos. Um, por «fricções e passes sábios, faz descer a dor lentamente pelas
costas, tronco, coxas, até ao polegar do pé direito ou do pé esquerdo segundo se
trate de um homem ou de uma mulher» (’) e, neste nível, extirpa de uma maneira
completa e definitiva o espírito maligno. Outro, depois de ter feito um retiro
secreto no mato, prepara uma estranha mistura num tacho ou «canari», e depois,
totalmente nu, tal como os seus assistentes, sacrifica um galo vermelho ou uma
galinha preta e cai em transe durante a agonia da ave. Depois, todos comem o
manjar sagrado cortado em pedaços. Outro, ainda, esfregará o lóbulo da orelha de
um recém-nascido com um pó mágico e este saberá dizer, no dia seguinte ao
acordar, se o diabo já foi destruído.

(’) Cf. Delobson (D.): les Secrets des Sorciens Noirs (Paris, Nourry, 1934). (’)
Note-se que esta relação entre o lado direito e tudo o que simboliza o homem (o
Sol, por exemplo) por um lado, e entre o lado esquerdo e tudo o que simboliza a
mulher (a Lua) por outra parte, é quase universal nas civilizações humanas.

279
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

sem dúvida na direcção desta hipótese que é precisO Procurar uma explicação que
esteja de acordo com as novas estruturas mentais, freudianas, se não se quer
afastar a priori o mistério das curas obtidas pelos ritos Iná9kos brasileiros
que foram criadas pelas religiões africanas importadas com os Negros nos navios
de escravos.

O BRASIL NEGRO

As pesquisas demográficas existiam já, se bem que basta@te rudimentares, no


século XVI. O padre Anchiet,@ deixou escrito que a população brasileira se
compunh4, em 1585, de 24 750 brancos, 18 500 índios «civilizados» e 14 000
africanos. Em 1600, Rocha Pombo estima a população em 30 000 brancos, 30 000
pretos e
70 000 índios, sempre civilizados ou mestiços. E eis que no cOmeço do século XIX
o Brasil tem mais negros que brancos e no último quarto deste século o
«branqueamento» desmantela-se no país: em 1872 havia 3 854 000 brancos, 4 862
000 mestiços e 1996 000 pretos (’).

O saudoso Roger Bastide, um dos mestres franceses de etiologia, estudou, longa e


profundamente, a antroPOlOgia cultural no próprio Brasil, e nós rendemos-lhe
horneliagem pela sua largueza de espírito, porque, entre todos os herdeiros do
positivismo francês, ele permitiu, melhor que a maioria, tentar «compreender o
outro». No Meltingpot (’) brasileiro, o trabalho era verdadeiramente difícil. A
sua obra, les Religions africaines au BréSil, Permanecerá uma obra-prima das
ciências humanas, uma maravilhosa conquista da tal famosa compreensão do Outro
que tenta atingir a etnologia. E é sem dúvida, para 4ós pelo menos, a leitura
deste livro que pode permitir distingir a compreensão de um denominador comum do
ser@tido sagrado, que se mantém muitas vezes escondido s1@,b o disfarce de
amuletos e rituais mágicos quando se Pretende abordar o problema da terapêutica
africana.

C) Cf. Recenseamento da População do Império do Brasil a que se procedeu no dia


1.1 de Agosto de 1872, citado por R. Bastide in Religions Africaines au Brésil,
op. cit.

C), @Pm inglês no texto original.

280
AS MEDICINAS AFRICANAS

Vejamos, através dele, no que é que se tornou a cultura africana no Brasil:

«Portugal importa a sua sociedade assim corno a sua civilização. A escravidão,


pelo contrário, destrói a sociedade africana, e o negro não pode levar consigo
nos porões dos navios negreiros mais que os seus valores culturais.

«0 português deve adaptar-se a um novo meio, e as modificações que sofreu a sua


organização social, como

a sua civilização, serão sobretudo de ordem ecológica.


O africano deverá adaptar-se, pelo contrário, a uma sociedade bastante diferente
da sua, que lhe é imposta pelo branco, e, no que respeita à sua, ele deverá
adaptá-la para a incarnar numa outra estrutura social», para criar uma obra da
consciência colectiva. É-nos necessário transcrever aqui esta outra citação de
Roger Bastide: «Tudo se passou como se uma fissura se abrisse entre os diversos
níveis da sociologia em profundidade, no plano dos símbolos, alargando-se, para
deixar intactas em grande parte as representações colectivas, os valores, e
mesmo as palpitações da consciência colectiva, enquanto se desmoronavam as
estruturas e normas que os sustentavam.»

As diferenças étnicas foram niveladas pela escravidão, e o espiritismo -sob


diferentes ritos e modos de expressão- torna-se o denominador comum. A iniciação
na floresta reencontra-se no candomblé, a mais antiga das religiões espiritas
brasileiras e onde os curandeiros têm uma palavra a dizer.

FESTAS E CANDOMBLÉS

O candomblé parece ter nascido no Estado da Baía, onde residia a mais importante
colónia negra no começo do século XIX. Alguns autores vêem na origem deste nome
as festas onde se reuniam, para dançar, os escravos das plantações de café: «Dar
um “candomblé” equivalia então a um convite para uma festa. Em 1830, três
escravas libertas criaram um camdomblé aberto permanentemente num engenho de
açúcar abandonado, «0 Moinho Velho» ou «Candomblé do Engenho» e, rapida-

281
AS AIEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

mente promovidas a sacerdotisas, passam a chamar-se «Mães» () ou Iaía (em nago,


dialecto comum dos escravos ioruba): Iaía Déta, Iaía Cala, Iaía Nassô.

Outras dançarinas as «Filhas de Santo», as assistentes, vestem-se também de


longas saias brancas e jóias de ouro. Quando as três «pioneiras» morreram, uma
das Filhas tornou-se Iaía e uma companheira rival afastou-se do grupo e foi
fundar, um pouco mais longe, o seu próprio candomblé permanente. E,
sucessivamente, desta mesma tradição foram aparecendo cada vez mais candomblés
até aos nossos dias, contando-se actualmente só no Estado de -S. Salvador (Baía)
cerca de setecentos. Roger Bastide disse que «um candomblé» é uma África em
miniatura, onde os templos se tornaram casinhas dispersas no mato se as
divindades são divindades de ar livre e em salas separadas da casa principal se
as divindades são adoradas em aldeias. Quando o terreiro se torna demasiado
pequeno, todas as divindades urbanas podem concentrar-se num único pegi, mas as
outras ficam fora. De todas as maneiras, o lugar de culto na Baía, «aparece
sempre como um verdadeiro microcosmo da terra ancestral» (2).

Mas -Roger Bastide explica isso bastante bem a propósito do candomblé- «a


religião africana não é, por ser africana, uma religião de pretos. Há não só
mulatos, como também brancos, a quem chamam estrangeiros. É preciso dissociar
completamente a religião da cor da pele. Pode-se ser africano sem ser preto. A
entrada no mundo dos candomblés faz-se através de um conjunto de iniciações
progressivas, de cerimónias especiais, que estão abertas àquelas que os deuses
chamam, qualquer que seja a sua origem étnica e é à medida que se penetra no
interior do santuário que se vão aprendendo quer que seja a sua origem étnica, e
é à medida que se os seus mistérios. Os sacerdotes têm sobretudo o sentimento do
valor do tempo, é o tempo que amadurece o conhecimento das coisas» (3).

Mais exactamente, «Mães de Santo». Cf. Bastide (R.): te Candomblé de Bahia


(Paris, Mouton,
1958).

Idem, ibid.

282
AS MEDICINAS AFRICANAS

Um jornalista americano partiu para o Brasil por algumas semanas e ficou de tal
modo fascinado que se demorou lá cerca de doze anos! Daniel Saint-Clair escreveu
um pequeno livro extraordinariamente acessível sobre a magia brasileira(’). Nele
faz uma análise muito judiciosa do desenvolvimento do espiritismo segundo Allan
Kardec nos meios brancos, desses brancos evoluídos numa atmosfera fantástica de
histórias de amas africanas e que reencontram, na idade adulta, uma justificação
«europeia» nas teorias de Allan Kardec, do seu universo infantil.

Ao lado do candomblé, do espiritismo de Allan Kardec, uma terceira corrente


nasceu nos últimos anos, o umbanda, que, como a procedente, « cura, acalma e
orienta» (’).

Entre os espíritas, os médiuns caçam o Diabo, autor das doenças, no digno


ambiente envolvente de brancas roupagens hospitalares e sob dísticos que
convidam ao silêncio, depois da abertura de sessões sob a Aria de Schubert e um
sermão aos fiéis. Nos terreiros dos candomblés ou sob as tendas de umbanda, a
música, a dança, o êxtase, atingem o pleno, se tal se pode dizer. Nos primeiros
as sacerdotisas livram os doentes dos sortilégios que lhes lançaram, dos
espíritos que os assediam; nos segundos são homens que oficiam.

E o Diabo, aí denominado Exti, aparece como o «deus das aberturas; é ele que
começa o ritual, como é ele que guarda a porta [ ... ]; é ele, enfim, que segura
a garganta do homem e o pune através das doenças das vias orais».

(’) Cf. Saint-Clair (D.): Magie Brésilienne (Paris, ed. «J'ai Lu», n.’ A.304,
1972).

C), Enquanto o candomblé restaura a civilização africana, é o sagrado que


domina, a fusão das consciências num mesmo sistema de crenças, a participação
nos mesmos valores, qualquer que seja por vezes a posição ocupada pelos membros
do camdomblé na sociedade 1...] mas logo que a desordem das estruturas sociais,
como consequência da industrialização do país, cria i@ovas formas de
solidariedade que não se adaptam mais às antigas normas, os interesses das
classes económicas, as tensões entre os grupos sociais, a frustrações raciais,
podem passar. E é assim que nasce o Espiritismo do Umbanda, como explica
bastante bem R. Bastide na conclusão do seu livro les Religions Afro-
Brésiliermes.

283
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

Todos praticam a imposição das mãos, mas, entre os umbandistas, os curandeiros


praticam, diz-se, operações com as mãos nuas. Daniel Saint-Clair assistiu a
algumas delas , na tenda do Palmeiro, um médium: uma criança de oito anos entra
quase que andando sobre os artelhos, com os pés completamente deformados, e sai
de lá com um andar completamente normal.

«Palmeiro comprime os pés deformados um contra o outro e sacode-os


violentamente. Em seguida grita qualquer coisa e olha fixamente durante um longo
minuto os artelhos torcidos. Bruscamente eleva os pés até à cara e baixa-os
lentamente, um após o outro. Torna a sacudi-los e deixa-os cair. Bate suavemente
no ombro do rapazinho, que desperta sorridente. “Vai”, diz-lhe num tom severo.
“Há outros à espera de vez, bem sabes”. O garoto deixou-se escorregar da mesa e
os pés pousaram finalmente no chão.» (1)

Daniel Saint-Clair viu, no mesmo dia, uma mancha castanho-esverdeada de aspecto


maligno, no seio de uma mulher, desaparecer imediatamente depois de Palmeiro ter
«passado a mão sobre o seio e deitado para o chão a porcaria invisível, causa da
doença [ ... ]. Nunca cheguei a saber se se tratava dum cancro, de uma nódoa
ou de um sinal de nascença» (2).

Como dissemos no início deste capítulo, as terapêuticas africanas parecem entrar


dificilmente, pelo menos numa parte, naquilo a que chamamos «medicinas
sagradas». É verdade que aí se faz apelo ao mundo sobrenatural. Mas um mundo
sobrenatural que plana bem baixo, que apela para as divindades obscuras, digamos
«negras» (sem jogo de palavras!), maléficas...

Falta-lhe aquela noção, aquela busca de harmonia universal, uma aspiração para
compreender esta lógica, essa ordem que parece reinar por todo o lado no
universo, no Cosmos, e que foi pressentida pelas grandes civilizações, pelos
grandes movimentos de pensamento dos quais falámos nos outros capítulos e que é
descoberta pela nossa ciência actual, por mais coderna que seja.

Cf. Saint-Clair (Dr.): op. cit. Cf. Saint-Clair (Dr.): Magie Brésilienne, op.
cit.

284
AS MEDICINAS AFRICANAS

RECEITAS PARA UMA PELE BONITA

Chamou-nos a atenção o lado exótico de algumas receitas e também o seu lado


«extra-ordinário». Algumas podem conter um fundo de verdade, como as que foram
descobertas por Daniel Saint-Clair no Brasil.

Para tratar uma tez descorada: expor durante três noites consecutivas aos raios
da Lua, depois durante um dia aos do Sol, uma tijela grande cheia com ovos a que
se junta leite de cabra e lavar a cara com esta mistura. Garantido!

Para combater as rugas: picar sessenta gramas de cebola branca fresca e misturá-
la à mesma quantidade de mel.

Para combater as rugas: picar sessenta gramas de cebola fundida. Aplicar sobre
as rugas ao deitar, mas não retirar esta «máscara» de manhã.

A gordura de enguia: faz desaparecer as borbulhas quando se esfrega com ela a


pele; esfregando-a no couro cabeludo faz crescer o cabelo, e vertida nos ouvidos
cura a surdez.

A HENA, PLANTA BENIGNA

Planta benigna e recomendada pelo Profeta, a hena não é apenas um ornamento de


elegância. Da índia às fronteiras do Sudão, passando pela Pérsia, Egipto e
Mauritânia, a hena cresce nas regiões consideradas as zonas mais influenciadas
pelo Islão.

A hena (Lawsonia inermis) ou alfena ou ligustro do Egipto é um pequeno


arbusto(’) que tem flores brancas de quatro pétalas, utilizadas pelo seu perfume
sob a forma de essências e óleos aromáticos. Mas são sobretudo as folhas que são
empregues sob a forma de um pó esverdeado.

Preparação da hena:

Depois de ficarem ao Sol, as folhas são pulverizadas num almofariz. O pó obtido


é peneirado. Com a moda

(’) Não ultrapassa um metro de altura no deserto do Sara. Tem numerosos ramos
com folhas pequenas, simples, de limbo denteado, de um belo verde brilhante. A
sua madeira é branca. Cultivada em sulcos espaçados de dois metros, as
plantações são segadas ao nível do solo aproximadamente cada três anos, desde
que os sulcos atinjam um metro de altura. Uma plantação pode durar vinte ou
trinta anos. Cf. Ressources végétables du Saliara (Paris, Muséum, 1932).

285
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

hippie, alguns ocidentais começaram a usá-la como tratamento para o cabelo, a


que dá um tom acobreado... mais ou menos conseguido! No entanto a sua principal
utilização no Islão é a pintura dos pés e das mãos, de homens, mulheres e
crianças, mas apenas quando estão doentes ou em guerra.

O encarnado simboliza a alegria, a felicidade em todo o Islão. A aplicação do pó


de hena tem por fim obter maravilhosos rendilhados pintados sobre a pele. Esta
pintura subsiste durante aproximadamente quinze dias.

Damos a seguir o processo para preparar a vossa tintura de hena... pelo menos
para regalar a vista se por acaso não acreditam nas virtudes má gico-religiosas
desta planta.

O pó esverdeado, muito fino, bastante gorduroso, é misturado com os dedos numa


tijela com água quente. A mistura obtida é pouco encorajante: tem o aspecto de
dejectos mislurados com puré de espinafres. Espreme-se sobre a mistura anterior
o sumo de um limão e juntam-se-lhes alguns cravos-de-cabecinha, pimenta e às
vezes outras ervas aromáticas.

Espera-se o tempo de beber uma chávena de chá de menta e comer algumas


gulodices, até se encontrar presas numa cidadela de coxins, amparando os rins,
as pernas, as coxas e os braços. É preciso não se mexerem... o que aliás é
impossível. A artista, uma preta em geral, começa o seu trabalho. A noite cai. O
perfume do jasmim paira em volutas, vindo de fora. através do pátio. Aproximam
um braseiro. A ama-artista mergulha um pauzinho na mistura e passa-o sobre a
pele como um pincel que molha de novo no líquido sempre que precisa. Na palma da
mão aparecem pontos, cruzes, uni relevo espesso, verde e excrementoso; as unhas
são por sua vez recoberias, as costas da mão ornamentadas. É preciso manter a
mão aberta, durante bastante tempo, imóvel sobre o braseiro: quanto mais forte
for o calor mais a mistura penetra. Durante este tempo, a ama-artista continua a
sua obra-prima: a planta dos pés é inteiramente recoberta de uma espessa camada
de diarreia de espinafre; sobe pelas costas e a pintura vem morrer num
entrançado... É pelo menos o que aparece mais tarde, no dia seguinte, depois de
uma noite muito mal passada, pela obrigação de dormir (se a

286
AS MEDICINAS AFRICANAS

1.sso se pode chamar dormir) com as mãos abertas em leque e os pés envolvidos em
musselina para que a tintura seja mantida no seu lugar e actue em profundidade
durante a noite. De manhã a porcaria esverdeada está transformada numa crosta
que se lava com água fria. Depois besuntam-se os pés e as mãos de óleo perfumado
para fazer ressaltar melhor a maravilhosa cor da hena; as unhas parecem ornadas
de gotas de rubis.

Virtudes da hena: bonita e benéfica, a hena é utilizada pelas mulheres e a sua


prole, pelo simples «prazer da vista». No plano religioso ela está presente
também nas ocasiões especiais. Então toma a hena funções de um estado de
sacralização precedendo a celebração de três grandes festas muçulmanas(’), ou
então para se preparar a visita de uma qoubba (lugar sagrado pela presença de um
homem santo). A hena faz parte das ofertas levadas pelos amigos e vizinhos que
vêm assistir ao nascimento de lima criança, cujo corpo é besuntado como já
vimos. No sétimo dia -aquele em que é dado o nome ao bebé - os pés e as mãos do
recém-nascido são tingindos, tal como mais tarde no dia da circuncisão, se é um
rapaz; este ritual marca a passagem da sociedade das mulheres à sociedade dos
homens.

Mais tarde o noivo oferece à sua «prometida», independentemente do dote, um


lenço de seda cheio de hena.

Ele fará parte do adereço mágico da jovem esposa e marca também uni ritual de
passagem.

Utilizações medicinais: entre os remédios aconselhados pelo Profeta, tais como o


alúmen, a canela, o açafrão e o sulfato de cobre (para acabar com as verrugas),
a hena tem lugar importante na medicina popular. É considerada como uni
excelente anti-séptico: em certas regiões onde as micoses dos pés aparecem com
facilidade (pé de atleta, por exemplo), a hena combate-os com

(’) São elas: a Achura Mulond, festa do nascimento de Sidna Mohammed, onde as
crianças e sobretudo as meninas são ornamentadas com hena; esta festa das
crianças é celebrada com um fausto particularmente importante na região de
Tleracen em Marrocos; ‘AM ec-crir (a hena é aplicada nas mãos e nos pés, na
noite da véspera desta festa); ‘Aid el Kebir (festa celebrada sobretudo no
campo, onde se pratica o sacrifício do carneiro que fornece a Baraka, que se
santifica antes fazendo-o comer toda a hena da casa).

287
AS MEDICINAS TRADICIONAIS SAGRADAS

muita eficiência. As suas qualidades adstringentes fazem dela um magnífico anti-


sudorífero aplicado nas palmas das mãos e nos pés, curando também os cravos,
frieiras e calos. O Profeta, além de mais, aconselha o uso da hena no tratamento
das contusões, entorses, distensões e, em emplastos ou pulverizada, para
massagens.

Aplica-se também, com bons resultados, sobre as queimaduras recentes, tini


unguento feito com hena pulverizada e sumo de coentro. Para tratar chagas e
feridas, aplica-se tinia pomada feita com hena pulverizada, cebola, pimentão
vermelho, ou então revestem-se com uma decocção de hena, alcatrão de pinho,
azeite e água.

A hena cura as doenças da pele. Contra a tinha, depois de rapar a cabeça,


aplicar várias vezes uma pomada constituída por hena pulverizada, misturada com
manteiga, azeite rançoso e alcatrão de pinho (breu). Contra ti sarna: Besuntar
completamente o corpo do doente com unia poniada constituída por hena, azeite e
enxofre ein pó.

Para uso interno, misturada com manteiga e mel, preserva as vias respiratórias
contra as doenças infecciosas.

Em restimo, considera-se, de uma maneira geral, conto um fortificante e as suas


propriedades curativas são muitas vezes comparadas às da tintura de iodo.

ALGUNS REMÉDIOS

Eis algumas prescrições medicinais reveladas por Marcel Griaule e seus


companheiros após a missão Dacar-Djibuti:

Indigestão: Deitar num tacho de água a ferver um punhado de milho painço moído,
juntando-lhe natrão (1), e beber esta mistura; é um vomitório eficaz e de acção
imediata.

Dor de ouvidos: Encher uma meia casca de amendoim com óleo também de amendoim
quente e deitá-lo no conduto auditivo, tamponando-o com algodão em rama.

(’) Mineral incolor, branco, amarelado ou acinzentado que aparece nas zonas de
clima seco e quente em forma de eflorescencias ou em crostas. A composição
química básica é (Co3 Na2
100 H2) N.T.

288
AS MEDICINAS AFRICANAS

Oftalmia purulenta: Encher unia meia casca de amendoim com um líquido composto
de água fria onde se macerou durante algum tempo um tamarindo e a que se juntou
sumo de limão. Utiliza-se este colírio diversos dias seguidos.

Dores de cabeça: Comer cebola crua é suficiente. Impotência viril: Alimentação à


base de carne crua. Abcesso: Fazê-lo amadurecer aplicando sobre ele unia pasta
de feijão cru dissolvido em pouca água ou pilado (1). Depois picá-lo com unia
agulha, vazá-lo e lavar a ferida com água e depois sumo de limão. Em seguida
polvilhá-lo com fruto de ruibarbo (2) pulverizado e seco ao sol durante alguns
dias, e por fim liga-se com tini pano. A operação repele-se até à cura completa.

Queimaduras: Lavagem com água salgada (soro fisiológico). O emólogo R. Decary


revelou algumas receitas medicinais bastante simples, no que respeita a dores de
dentes. São vulgares em Madagáscar e em certas regiões da África negra.

Cáries: Tapá-los com resina de rarny (canarium Boivini Engl.) para diminuir a
dor. Ou obstruir a cavidade com a ajuda de fuligem e sabão ou de gengibre e sal.
Pode ainda aplicar-se a seiva espumosa que sai da extremidade de um ramo verde
de katrafey (Cedreloposis Grevei Bai11), quando aquecido até ao meio.

Dentes mal seguros: Lavar a boca várias vezes por dia com água onde se ferveram
raízes de ráfia.

(’) Batido num almofariz de madeira e grandes dimensões. (N.T.).

Ou talvez vinagreira (Rumex Acetosa L.> (N.T.).

289
INDICE

Prólogo ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... 9

CAPITULO 1

O XAMANISMO

O retrato de uni
xamã ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
12
O aprendiz de
xamã ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
14 A viagem-transe ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 17
O drama
terapêutico ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
19 As modernas vias do xamanismo ... ... ... ... ... ...
... ... ... 20 Os Celtas e o xamanismo ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... 23 Autobiografia de um xamã
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 24
*/*
CAPITULO Il

A MEDICINA DAS PIRÃMEDES

Ao princípio era o verbo ... ... ... ... .


». ... ... ... ... ... ... 27 Os que dominam os escorpiões
... ... ... ... ... .. ... ... ... 29 Tote, o
eterno ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
30 Como se faz um
médico ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
31
* funcionamento do coração e seu conhecimento
... ... ... 33
* sangue da vida e a doença ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 35
* poder das
múmias ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
--- 36 Os segredos da
aromoterapia ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
38 Perfumes mágicos ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 39
O ioga dos
egípcios ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
42 Hipnose e sono
sagrado ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
44
O tempo, central energética ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 46 Nas origens da gnose ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... 48 A herança do
Egipto ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
49 Os
encantanzentos ... ... ... ... ... ... ... .. . ... ... ... .
. ... 50 Anniletos e talismãs ... ... .. : ~- “’ - “’
*** * --- --- , --- , --- , --- 53 Rejuvenescimento e ressurreiçao
... ... ... ... ... ... ... ... . . 55 A técnica da mumificação
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 55 Os efeitos benéficos
do alho e da cebola ... ... ... ... ... ...
57 Plantas e diagnóstico da gravidez ... ... ... ... ... ...
... ... ... 58

291
CAPITULO III

A MEDICINA DOS RITOS AGRÁRIOS

Apolo, Dioniso,
Orfeu ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
62 Na Bulgária, o regresso às
origens ... ... ... ... ... ... ... ... 63 Um
instituto de sugestiologia ... .. ... ... ... ... ... ... ...
. . 65 As festas de Dioniso-Baco ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... 67 Duas interpretações do mito órfico
... ... . . ... ... ... ... ... 69 As virtudes da música
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 70 * república dos sons
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 73 *
musicoterapia ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... 74 * regresso de Orfeu ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... 77 * carnaval ou a loucura do sexo
... ... ... ... ... ... ... ... ... 78 Mitos de ontem e
psicodescompressões de anianhã ... ... ...
80

CAPITULO IV

A MEDICINA DOS GNóSTICOS No caminho da


gnose ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
83
* abstencionismo gnóstico e a
abstinência ... ... ... ... ... ... 85
* papel dos alimentos ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... 88 Façam amor... não
filhos ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
90
O contacto entre o espírito e a
matéria ... ... .. ... ... ... ... 92
Terapêutica do magnetismo filosófico
- . ... ... ... ... ... ... 93 Os gestos da harmonia quotidiana
... ... ... . . ... ... ... ... 94 Curar por imposição das mãos
... ... ... ... ... ... ... ... ... 96
O sol dos
sodomitas ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
97 Os olhos e as
vibrações ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
98 A arte terapêutica da vibração ... ... ... ... ... ...
... ... ... 100
O homem e a água primordial ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 101 Polaridades
astrológicas ... ... ... ... ... ... ... .. --- . .
--- . . 103 Sinibó lica das
cores ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. ... ...
. 105

CAPITULO V

A MEDICINA ALQUIMICA
O enxofre, o mercúrio e o sal ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 110 Uma medicina energética e vibratória
... ... ... ... ... ... ... 110 Os sinais ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 112 A alquimia
perante a doença ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
113 A medicina espagírica
- . ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 114
Os segredos dos adeptos
- . ... ... ... ... ... ... ... ... ... - ... 116
Os benefícios do antimónio ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 116
O sal, palavra de Deus .
1 . ... ... ... .. .... ... ... ... ... ... ... 119 A
água do
mar ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
120 Os oligoelenientos ... ... .
1. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 121 Os vinte e seis
remédios de Alexander von Bernus ... ... ...
122

CAPITULO Vi

A MEDICINA DOS ANTROPOSOFOS Como se forma um médico antropósofo


... ... ... ... ... ... 126 Rudolf Steiner, um iniciado moderno
... ... ... ... ... ... ... 126 A comunidade cósmica
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 128

292
O teatro da alma e a
doença ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
129
O cancro, flagelo do século
XX ... ... ... ... ... ... ... ... ... 131
O homem e as
plantas ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
134
O homem e os
metais ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
135 Dietética
antroposófica ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
137 A antroposofia, medicina e sabedoria do futuro?
... ... ... ... 139
O homem
invisível ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
140 As plantas que curam ... ... ... ... ... ;’’ ‘” * ..
... ... . --- ‘ --- 141 A drósera (ou orvalhinha), planta
carnivora ... ... ... ... ... 144 As preparações
antroposóficas no laboratório ... ... ... ... ...
145 Os metais ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 146

CAPITULO VII

O IAJURVÊDICO OU A MEDICINA DOS VEDAS

Uma medicina
iniciática ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
152 Do mito à realidade
histórica ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
154 Os
ka@yÍraJa ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
155 Os tres humores ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 156 Gemas, constelações e terapêutica
... ... ... ... ... ... ... ... 158 Os dons do mundo animal
.. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 164 As plantas e as
especiarias .. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
168 Um terreno
difícil ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
170

CAPITULO VIII

OS SACERDOTES-MÉDICOS DA AMÉRICA

PRÉ-COLOMBIANA
Os cinco
apocalipses ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
173 Os luminares do
mundo ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
175 A mística social da
angústia ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
177 A aprendizagem do castigo
divino ... ... ... ... ... ... ... ... 178
O mundo das plantas que
curam ., . ... ... ... ... ... ... ... ... 179
Renascimento da fitoterapia
nahuatl ... ... ... ... ... ... ... ... 180 A
terap^utica divinatória .. . ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 183 Psicoterapia do sacrifício
humano ... ... ... ... ... ... ... ... 184 A
má sorte ... .;, --- *** ... --- “’ - --- --- “’ --- ‘
--- ---, --- ‘ --- 185
O «ticitl» ou medico-
adivinho ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
187 Ritos do milho e outros processos de adivinhar
... ... ... ... 188
O êxtase do
«peyotI» ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
189 Os astecas e o psicodrama colectivo: os cogumelos
alucino-

géneos ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
191 Uma civilização
cogumelizada ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
192 Processos terapê
uticos . .. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
194 Epidemiologia, higiene e
urbanismo .. . ... ... ... ... ... ... ... 195
Os banhos do corpo e da
alma ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 196
A paranóia
divina ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
197 Perturbações provocadas pelos cogumelos
alucinogéneos ... 199 Obstetrícia ... .. . ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 200 Técnicas cirúrgicas
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 202
Anestesia ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... 203

293
CAPITULO IX

O TAO E A ACUPUNCTURA

A acupunctura e as suas
origens ... ... ... ... ... ... ... ... ... 205 Um
tratado médico com 5000
anos ... ... ... ... ... ... ... ... 207
O ciclo do Yang e do
Yin ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 208 A
mutação das
energias ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
212 A energia terapêutica ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 214 A medicina das energias: uma profilaxia
... ... ... ... ... ... 217 Os cinco
elementos ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ....
218 Energia
ancestral ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
226 Centrais energéticas ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 228 As energias
puras ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
229 A pureza das energias
puras ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 230 Os
circuitos
energéticos ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
231 A descoberta da doença ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 233 Meridianos e
acupunctura ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
235 Os processos
terapêuticos ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
239 A saúde
taoista ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
241

CAPITULO X

AS RESPIRAÇOES SUBLIMES

A respiração
embrionária ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
244 A grande alquimia
interior ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 246
Esforço e vontade ... ... ... 1... ... ... ... ... ... .
1. ... ... ... ... 247 Ritos e
música ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
248 Fisiologia energética da
respiração ... ... ... ... ... ... ... ... 249 Uma nova
medicina sagrada: o «Seitai» ... ... ... ... ... ...
250
O movimento
regenerador ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
252 As respirações
misturadas ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
253 A grande obra do «ki» ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 255
O
Aikido ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
256
O Tai Chi Ch'uan ... ... ... ... ... ..
257 A sombra terapêutica das respiraçoes
sublimes ... ... ... ... 259 Os doze «taiheki»
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 261

CAPITULO X1

AS MEDICINAS AFRICANAS

Existe uma medicina sagrada


africana? ... ... ... ... ... ... 265 A medicina
islâmica ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
266 A medicina dos
mercados ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
269 Crenças e nascenças ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 270 Em direcção ao sul ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... 271 Escarificações quelóides ... e
cancro? ... ... ... ... ... ... ... ... 275 Feiticeiros, curandeiros e
bruxos ... ... ... ... ... ... ... ... ... 277 Um diabo
na cabeça ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
278
O Brasil
Negro ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
280 Festas e candomblés ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... 281 A hena, planta benigna ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... 285 Alguns remédios ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 288

294

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