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CAPITULO 2 METODOLOGIA DE PESQUISA EM PSICANALISE NA UNIVERSIDADE Leopoldo Fulgencio Pontificia Universidade Catélica de Campinas Neste capitulo, procuro contribuir para 0 esclarecimento do que é o méto- do psicanalitico de pesquisa na universidade, diferenciando o que é esse método quando aplicado ao tratamento clinico, visando ao conhecimento e opera¢do so- bre um individuo, e quando objetiva a produgao de conhecimento na ciéncia em geral, para um sujeito universal. Procura-se, colocando a psicanalise no campo das ciéncias, seja no das ciéncias naturais seja no das ciéncias humanas ou her- menéuticas, analisar os diversos tipos de pesquisa em psicanélise ou com base na teoria psicanalitica, mostrando as diferengas metodolégicas necessarias para 0 desenvolvimento de pesquisas tedricas, empiricas, interdisciplinares, com ou sem coleta de dados no campo empirico. Neste texto, procuro responder a questdes que surgiram em fungao de minha pratica como orientador de dissertagdes de mestrado, teses de doutorado e trabalhos de iniciagao cientifica no Programa de Pés-Graduacao em Psicologia da Pontificia Universidade Catélica de Campinas que, de uma maneira geral, podem ser reduzi- das a pergunta: qual a metodologia’ a ser utilizada nas pesquisas em psicanélise? A diversidade de perspectivas tedricas no campo psicanalitico atual sobre a maneira como se concebe o método psicanalitico de tratamento e de pesquisa, seja em termos praticos seja em termos tedricos, implica, para procurar respostas a esta questo, como um procedimento necessario, estabelecer um ponto de referéncia conceitual que possa ser titil a todas as perspectivas. Nessa direcdo, em primeiro lu- gar, retomarei a maneira como Freud defende a psicandlise como sendo uma ciéncia (natural), reiterando essa perspectiva com a posigao de Winnicott que, mesmo com diferengas significativas com Freud, também coloca a psicandlise no campo das praticas cientificas (ciéncia objetiva da natureza humana)‘. Em seguida, procurando 3 sentido descritvo da questdo do método cientifico de pesquisa é o caminho para, ou seja, 0s passos e procedimentos feitos para produzir um conhecimento que visa a uma validade o mais universal possivel. O objetivo da descrigao da ‘metodologia usada em uma pesquisa (seja uma pesquisa apenas teérica, seja envolvendo coleta de dados) é o de mostrar © caminho percorrido para que qualquer um que refaca tal caminho, nas mesmas condigdes, possa chegar aos mesmos resultados (ou, aproximadamente, os mesmos resultados), fazendo com que estes sejam, eno, reconhecidamente vilidos e idedignos, servindo para resolver problemas tanto empiricos como teéricos, 4 Uma andlise das continidades e rupturas entre a obra de Freud e a de Winnicot, explcitando suas divergéncias na consideragdo do tipo de ciéncia que a psicandlise deve ser esta em Fulgencio (2010) 28 outros pontos conceituais de referéncia, agora no campo da epistemologia das cién- cias, retomarei as posigdes de Karl Popper ¢ Thomas Kuhn na analise dos critérios para definir 0 que é uma pritica cientifica. Procurando, ainda, especificar em que tipo de quadro geral, epistemolégico e metodolégico a psicandlise pode ser coloca- da, também retomarei o sentido do que significa considerar a psicanalise como uma ciéncia natural, que procura explicagdes (em busca de causas) para seus fendmenos, consideré-la como uma ciéncia hermenéutica, que procura entendimento (em bus- ca dos sentidos ou intencdes) para compreender as agdes ¢ comportamentos huma- nos (pensamentos, desejos, sonhos ¢ fantasias), apoiando-me nas obras de Geoge Henrik von Wright (1971), Paul Ricoeur (1965), Adolf Grunbaum (1984) e Henri F. Ellenberger (1958, 1959, 1966, 1970). Com este conjunto de referéncias procurarei responder a trés perguntas espe- cificas, como desenvolvimentos necessarios da pergunta inicialmente colocada: (1) © que significa 0 método psicanalitico de pesquisa quando aplicado ao tratamento clinico e quando tem como objetivo produzir um conhecimento que se quer, tanto quanto possivel, universal, ou seja, produzir teorias cientifieas?; (2) de que maneira so tratados os dados empiricos nas pesquisas feitas do ponto de vista da psica- nalise, considerando-se as diversas maneiras como os dados clinicos (empiricos) podem ser coletados?; (3) como devem ser cuidadas, em termos epistemoldgicos e metodoldgicos, as pesquisas que se propdem conjugar sistemas tedricos dispares da psicandlise, ou ainda, pesquisas interdisciplinares? A psicandlise como ciéncia, para Freud e para Winnicott E uma premissa que caracteriza a universalidade pretendida das ciéncias considerar que ha uma epistemologia geral para as ciéncias da natureza e outra para as ciéncias sociais ou humanas; mais ainda, que ha epistemologias regio- nais subordinadas a preceitos gerais pertencentes ao campo maior das ciéncias da natureza (fisica, quimica, biologia, neurociéncias, entre outras) ou das ciéncias humanas (hist6ria, antropologia, psicologia, entre outras), diferentes umas das outras, mas subordinadas a uma epistemologia geral. Certamente devemos consi- derar que a psicandlise tem as suas especificidades (tal como a fisica, a biologia, a historia, a economia, entre outras, também tém as suas), mas isto, mesmo levando a pensar em aspectos epistemol6gicos metodol6gicos regionais, nao implicaria em romper com a ideia de uma epistemologia geral a qual todas as praticas cien- tificas estariam submetidas. No campo das discussdes sobre a cientificidade da psicanalise, encontramos uma diversidade de posigdes, abrangendo desde os que aceitam, com maior ou menor amplitude, os questionamentos feitos pelos epistemdlogos das ciéncias, recorrendo ou nao a hipdteses e métodos ad hoc, tentando defender a cientifici- PSICANALISE E UNIVERSIDADE: um encontro na pesquisa 29 dade da psicanilise’, até os que defendem a necessidade de estabelecer um forum exclusivo para ela, o que, no extremo, recusaria o didlogo com a epistemologia e a filosofia das ciéncias*. ‘A meu ver, por um lado, a psicandlise nao poderia recusar os questionamentos feitos pelos epistemdlogos das ciéncias, dado que isso a levaria, no limite para 0 cam- po das praticas religiosas, ideolégicas ou meramente técnicas; mas, por outro, também nao pode ficar paralisada em seu desenvolvimento (pratico ¢ tedrico) porque respostas convincentes ainda nao foram dadas, dando sua validagao como pritica cientifica. Considerando-a como uma jovem ciéncia que ainda nao encontrou a sua maturidade, talvez caiba aos pesquisadores seguir no desenvolvimento de seus trabalhos (tanto praticos como tedricos), na maior precisa epistemoldgica e metodoldgica possiveis, distinguindo campos de discussées: o filoséfico-epistemolégico, 0 das teorias sobre o desenvolvimento, o das teorias sobre os transtomos psiquicos, e o da pratica clini- ca propriamente dita. Certamente, todos esses campos podem se sobrepor enquanto referindo-se a psicandilise de um modo geral, mas em cada um desses campos hé me- todologias e objetivos diferentes no desenvolvimento de pesquisas. Enfim, sendo ou nao uma pratica cientifica, como a psicandlise deve desenvol- ver suas pesquisas? A pergunta nao tem resposta simples, devendo ser abordada a partir de diversas referéncias e/ou sistemas tedricos’. E conhecida a defini¢do que Freud fez da psicandlise, como sendo, ao mesmo tempo, um procedimento de pesquisa dos processos psiquicos inconscientes, um método de tratamento e uma ciéncia, construida a partir desse método (1923a, p. 196). Ao longo de toda a sua obra, Freud também sempre defendeu que a psicandlise deveria ter um lugar ao lado da fisica, da quimica e da biologia, como sendo uma ci- éncia natural: “Que outra coisa ela seria?” (Freud, 1940b, p. 291)*, pergunta ele com ironia jé em um dos seus tiltimos textos. Para ele, a psicandlise conseguiu tomar 0 psiquismo ou a vida da alma, como qualquer outro objeto da natureza, sendo justa- mente este fato o grande mérito epistemoldgico da psicandlise (1933a, Ligao 35). 5 Alguns psicanalistas, sem se manterem cindidos das discussdes e questtes que @ epistemologia das ciéncias tem colocado, defendem uma especficidade epistemoldgica da psicandlise. Cito, abaixo, ois casos desse tipo, dentre outros ‘ode Paul-Laurent Assoun (1981), que considera que ha uma epistemologiafreuciana e o de Renato Mezan (2002), que defende a ideia de uma epistemologia regional. A meu ver, o problema dessas propostas (de uma epistemologia freudiana ‘ou uma epistemologia regional) € considerar a psicandlise como um sistema fechado em si mesmo, excluindo o problema central da epistemologia das ciéncias, que é o de questionar a relagdo de validade entre as teoias (conceitose hipéteses) 0s fendmenos aos quais se referem estas teorias. Encerrar a psicanalise em um sistema, sem conexBo com a realidade ‘enoménica, transforméla em um sistema que vale por si mesmo, pode levar ao absurdo de considerar que um deliio bem estruturado teria o mesmo valor de conhecimento que um sistema cientifioo (que faz teoria sobre @realidade). O que importa ao cientista, esta € a posigdo de Thomas Kuhn, @ que suas teorias possam resolver problemas empiricamente ddados, mesmo que isto signifque um aspecto desarménico no sistema teérico geral de uma discipline especiica, o que se apresentaria, entdo, também como um problema a ser resolvido. 6 Acta geral,feita por alguns psicanalistas, ¢ a de que os epistemblogos e fldsofos das ciéncias fazem suas crlticas @ partir de um campo exterior ao campo da psicandlise (Micheli-Rechtman, 2007b, p. 31) , nesse sentido, no ‘compreenderiam adequadamente do que trata a psicandlise (no so psicanalsados, nem preticam a psicandlise). Isto ccausaria, a meu ver, um beco sem saida, aproximando a psicandiise dos grupos misticos, nos quais $6 os iniciados tém ‘acesso a0 verdadeiro conhecimento. Este argumento nao é vaido em nenhuma outra discipina cientifica, Por que deveria sélo para a psicandlise? 7 Caberia,respeitando-se a diversidade de sistemas tedricos da psicandlse, procurar explicitar como cada um dos grandes sistemas ou autores (Freud, Klein, Bion, Lacan, Winnicott) respondem a essa questo. No entanto, estarel aqui me deimitando as posigdes de Freud e de Winnicott. 8 Freud serd citado segundo a classficapdo estabelecida por Tyson e Strachey (1956). 2. Neste ponto, é preciso ter em mente que estas trés caracteristicas sobrepostas (Procedimento de pesquisa, método de tratamento e conhecimento cientifico) sio modos de operar ¢ de produzir conhecimentos que visam a objetivos diferentes ¢ tem modos de funcionamento diferentes. Quero distinguir, grosso modo: (1) apsi- candlise como um método de tratamento, no qual a pesquisa sobre as motivagdes inconscientes levam o analista a utilizar um método especifico como procedimento de pesquisa junto ao paciente, procurando os conflitos, verdades, fantasias ¢ dese- Jos de uma historia individual, especialmente os inconscientes; e (2) a psicandlise como um corpo tedrico que caracteriza uma ciéncia, ou Seja, a énfase aqui recai nos Procedimentos a serem seguidos para a elaboragiio de teorias cientificas, procurando verdades universais (ainda que sempre incompletas). Para Freud, a pesquisa clinica leva ao conhecimento cientifico, mas nao exata- mente pelos mesmos caminhos, ainda que a pesquisa clinica e a pesquisa (em dire- $0 ao conhecimento universal) sobreponham-se: tratar ndo é fazer ciéncia! Freud, inclusive, considera nocivo para o tratamento clinico dedicar-se a elaborar um caso cientificamente, enquanto este ainda nao foi finalizado. Ele afirma, nesse sentid Uma das reivindicagdes da psicandlise em seu favor ¢ indubitavelmente, 0 fato de que, em sua execugao, pesquisa e tratamento coincidem; nao obstante, pds certo ponto, a técnica exigida por uma opde-se a requerida pelo outro, ‘Nao é bom trabalhar cientificamente num caso enquanto © tratamento ainda esta continuando — reunir estrutura, tentar predizer seu progresso futuro e obter, de tempos em tempos, um quadro do estado atual das coisas, como o interesse cientifico exigiria. Casos que sio dedicados, desde o principio, a Propésitos cientificos, e assim tratados, sofrem em seu resultado; enquanto 08 casos mais bem sucedidos so aqueles em que se avanga, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta neles, e sempre se o enfrenta com liberalidade, sem quaisquer pressuposigdes (1912e, p. 148). No desenvolvimento de um tratamento psicanalitico, nem o analista nem o paciente procuram construir uma teoria geral, universal, sobre o psiquismo e os comportamentos humanos, nao se exige coeréncia nem no fluxo do pensamento (das associagdes) nem nas suas conclusdes (encaixando-se como em um edificio tedrico sem contradigdes). O paciente retoma a sua histéria afetiva, seguindo uma diversidade de focos e temas nas suas associagdes livres, na compreensio, vivéncia ¢ interpretagtio das relagdes transferenciais, procurando ressignificar ou refazer de- terminadas organizagdes afetivas que podem estar dificultando sua vida (seus sin- tomas, por assim dizer). Nao se dirige o paciente, no se espera um encadeamento légico coerente, nao esta no objetivo final do tratamento a construgdo de uma teoria sobre si mesmo, ainda que muito venha a ser conhecido, No entanto, Freud também considera, com base nos tratamentos psicanaliti- Cos, que ha problemas que se repetem ou se repetirdo em outros pacientes, que hé modbos de funcionamento e mesmo patologias que podem receber uma compreensao PSICANALISE E UNIVERSIDADE: um encontro na pesquisa 31 geral e, nesse sentido, agregando o conhecimento advindo de diversos tratamentos (desenvolvidos utilizando-se 0 método clinico psicanalitico), ele procurou fornecer uma teoria geral das neuroses, uma teoria geral do desenvolvimento da sexualidade, da agressividade, da entrada do homem na cultura ete. Nao se pode afirmar, no entanto, que todo conhecimento advenha unicamente da observagao clinica, que ela teria esse tipo de soberania, dado que a propria obser- vagao do material clinico depende, desde o inicio, de certas ideias ou teorias prévias. Freud ressalta esse tipo de relagao entre a observagdo e a produgao de conhecimento cientifico, afirmando: “O verdadeiro comego da atividade cientifica consiste antes de tudo na descrig&o dos fenémenos, que séo em seguida agrupados, ordenados e integrados em conjuntos” (Freud, 1915c, p. 163). Freud também aponta para o fato de que toda observagao, toda descrigdo da realidade fenoménica, € guiada por uma série de escolhas prévias, por uma teoria que diz o que deve ser observado, diz 0 que deve ser relacionado, o que deve ser descrito’. Ainda que Freud reconhe¢a que a ciéncia visa 4 compreensao dos fatos, ele sabe que a teoria, como uma proposi¢ao geral que visa a universalidade, afasta-se da singularidade viva dos fatos: “da teoria cinza a experiéncia eternamente verdejante” (Freud, 1924b, p. 3). O que me importa aqui destacar é que nao ha pesquisa cientifica ou pesquisa clinica que nao seja orientada por uma teoria geral, teoria que diz 0 que deve ser privilegiado como variavel, o que deve ser procurado e como essa procura deve ser feita. Na andlise da questio da observag&o como sendo a base do conhecimento cientifico, o préprio Popper comentou esse fato de que nao pode haver observa¢ao sem uma teoria de referéncia, contando uma experiéncia que fez com seus alunos: ‘A crenga de que a ciéncia avanga da observagiio para a teoria é ainda aceita firme € amplamente que minha rejeig2o dessa ideia provoca muitas vezes reagdo de incredulidade. J4 fui até acusado de ser insincero — de negar aquilo de que ninguém pode razoavelmente duvidar, Na verdade, porém, a crenga 9 Freud refere-se a este fato em geral, mas também procura especificar, com um exemplo de base, que hé conceltos que ‘no advém da experiéncia, mas que so fundamentais para o trabalho de pesquisa, no caso da psicanlise, 0s concetos ‘metapsicologicos, dente eles, o conceto de pulséo: 4 na prépria descri¢do, ndo se pode evitar aplcar ao material certas, ideias abstralas que advém de outro lugar, certamente no apenas des novas experéncias. Tas idelas ~ 0s conceltos fundamentis posteriores da céncia ~ so, na elaboracéo futura do material, ainda mais indispensaveis.iialmente, clas devem comportar um certo grau de indeterminaeo; nBo se pode pensar em discern com clareza seu conteido. Enquanto se encontram nesse estado, temas que nos por de acordo sobre seu signiicado para remelé-as repetidamente ‘20 material empirico do qual pareoem ter sido extraldas, mas que, na verdad, lhe é submisso. Com todo rigor, las tm, ‘entdo, 0 carater de convencées, ainda que tudo dependa do fato de que elas no so escolhidas arbitraramente, mas, ‘20 contro, estdo determinadas por relacées significativas com o material empinco, relagdes que acredita-se poder ‘adivinhdslas antes mesmo de poder reconhectas e demonstiélas. Somente apés uma exploracdo mais aprofundada do ‘dominio fenomenal em questio, € que pode-se apreender mais exalamente os conceitosfundamentais cientifcos e os ‘madificar progressivamente para os torr, em certa medida, uiizaveise, 20 mesmo tempo, isentos de toda contradigdo, E somente depois disso que chega a hora de confiné-los em definigdes. Mas 0 progresso do conhecimento nao sofre, ‘no entanto, de uma rigidez das defnigSes. Como o exemplo da fisica ensina de maneiraevidente, mesmo os “concetos fundamentais", que foram fxados nas defnigdes, sofrem uma constante mudanca de conteido [..). Um tal conceit fundamental convencional,provisoriamente anda muito obscuro, mas que nds néo podemos dspensar em psicoogia, 60

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