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Kierkegaard Os PensadoréS Kierkegaard “QO paradoxo da {€ consiste em que 0 individuo é superior a0 geval, de maneira que, para recordar uma distin= 0 dogmatica hoje jd raramente usa- da, 0 Individuo dewrmnina sua relagso com o geral tomando como referéncia © absolute, € nda a relagso ao sbsolu- fo em releréncia ao geral. Pode ainda formular-se o paradoxo dizenda que hd um dever absoluto para com Deus; porque nesse dever, 0 Individua se re- fere como tal absolutamente 20 absolu- to. Nestas condi¢des, quando se diz que 6 um dever amar Geus, exprime- se algo que difere do anteriormente di- 10; porque se esse dever é absoluto, a moral encontra-se rebaixada ao relati- vo. De qualquer modo nao se segue dal que a moral deva ser abolida, mas tecebe uma expressdo muito diferente, ada pardoxo, de forma que, por exem- plo, 0 amor para com Deus pode levar © cavaleiro da #6 a dar 20 seu amor pa- ra com 0 préximo a expresso contra- ria do que, do ponto de vista moral, é o dever, Se assim ndo é, a fé nao tem lugar na vida, € uma crise, e Abraao estd perdido, visto que cedeu.”” KIERKEGAARD: Temar e Tremor “Assim como talvez no haja, dix zende os méditos, ninguém completa- mente séo, também se poderia dizer, conbecende bem o homem, que nem um 36 existe que esteja isento de deses- pero, que ngo tenha | no fundo uma inquietagao, uma perturhagao, uma desarmonia. um receio. de no se sabe © qué de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio duma even- twalidade exterior ou receio de si pré- prio; tal coma os médicos dizem de uma doenga, 0 homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, num relampago, raramente um mea inexplicavel Ihe revela a presenga in- tema.” KIERKEGAARD: © Desespero Homano pee Os PensadoréS CIP-Brasil, Catalogugdiena:Publicagio ‘Clmarz Brasileira do Livro, SP Ricrkeyaacd. Soren Aabye, 1913-1855. Didrio de um sedutor Temor © tremor ; O desespero hurnane / Oren Aubye Kierkegaard + tradugdes de Clrlus Grifo, Maria José farinho, Adolfo Cssais Monteito, — 2. ed, — Sin Paulo : Abrit Cultural, 1984, (Os pensadores) Inelui vida ¢ obra de Kierkeyuard Bibliogratia, |. Existenciatismo 2. Filosofia dinamarquesa 3. Kierkegaard, Sérea Anbyc, 1813-1855 4, Pecwlo 5. Pricologia religiosa 6, Reli- gliy Pllosolia 1. Tiulo: Bidsio de um sedutor, IM, Fitulu: Temur ¢ Tremor, 11, Titulo: © desespero humano, IV, Serie. CDD-198.9) 142.7 -200.1 2019 “22 Indices 1. Peistencialismo : Filosofia 2. Filosofia dinamarquess 198.9 3, Fildsofus dinamarqueses : Biugratia ¢ obra 198.9 4, Pecado = Teologia dogmitica crista 233.2 5. Psicologia religiasa 200.19 6, Religie > Filosavia 200, 1 SGREN AABYE KIERKEGAARD DIARIO DE UM SEDUTOR TEMOR E TREMOR O DESESPERO HUMANO Tradugdes de Carlos Grife, Marin José Marinhe, Adolfa Casais Monteiro 1984 EDITOR: VICTOR CIVITA ‘Titulos originaix: Forfiverens Deshog Fret ag Bete Sygdomman 1 Bowden (© Copyright desta edigie, Abel S.A. Cumueal, ‘She Paula, 1979, - 2 “exis, 1 ‘Traapdes pubigadas avb licerga do Eaitowial Presemga Lad. Usb (Didtio de um Sedutor ow 4 Arte ge mar Guimaries Egitores, Lishoa (Temar ¢ Prenar |ivraria Tavares Maitins. Ports £0 Desesnera Humime om Boenga até a Meri) Direitox exclusives solpre "Kierkegaard! —Wida e Obra’, Abril 8.4. Cultural, Sao Paulo, KIERKEGAARD VIDA E OBRA Consultocis: Marlena de Souza Chaui a “M inha vida n3o serd, apesar de tudo, mais do que uma exis- téncia pottica.”” Essa alirmacan do fildsofo. dinamarques Seren Aabye Kierkegaard —revela, ‘segundo Gydrgy _ Lukdes (1885-1970), seu heroismo, sua honestidade © sua tragédia. Para Lu- kécs. o herofsmo de Kierkegaard residiu em ter desejado criar formas a partir da vida; sua probidadc, em ter sequido até 0 fim o caminho escolhide; c stta trageédia, om ter desejado viver aquilo que jamais po: deria ser vivido, Régis lolivet afirma que © pensamento de Kierkegaard formou-se, “ndo tanto por assimilagso de clenentos estranhos, mas sobretude através de uma luta de consciéncia, cada vez mais intensa & cada vez mais exigente, perante as condicdes, nao jd da existéncia em geral, mas do seu proprio exlstir’". Aindu segundo Jolivet, a filosofia de Kier- kenaard € precisamente ele mesmo, e@ ele mesma, ndo fortuitamente ¢, de certo modo, contrariade, mas. cle mesmo valuntaria € sistemati- camente, @ tal panto que o “existir como individuo’ e a consciéncia esse existir chegaram a ser, para cle, condiego absoluta da filasofia até sua dnica razdo de ser, Considerado por muitos historiadares coma a primeira reprosen- tante de filosofia existencialista, Seren Aabye Kierkegaard nasceu a 5 de main de 1813, em Copenhague, filho de Michael Pedersen Kierke- gaard, ent8o com 56 anos de idade, e de Anne Srensdaner, de 44 anos. Seu pai era um agricultor da futlindia ocidental que se mudou para Capenhaguo, onde cnriqueceu como comerciante de la. A primeira infancia, Kietkegaard passou-a toda na companhia do pai, que insistia no aprendizado ngoraso do latim e de grego ¢ incul- Cou no filbo uma devogso pietista atormentada pela ansicdade. Des- perto, desde muito cedo, para um tipo de vida imaginativa, pols seu fai exigia que representasse estérias ¢ conas teatrais, Kierkegaard pas- sou a sentir a vida camo um pakco permanente para a devog.ie religio- sa. A protundidade do sentiments religioso, que © acompanhou des- de @ infancia, levou-o a ingressar na curse de teologia da Universida- de de Copenhague, Nessa escola, Kierkegaard tamou conhecimento do sistema tilosético de Hegel (1770-1831), cuja influéncia estendia~ se a todos os setares intelectuais © até mesmo a tealogia protestante, Mil KIERKEGAARD que estava impregnada de seu racionalismo. Inicialmente, Kierke- gard deixou-se seduzir pelas sutileras da dlialética hegeliana; a iégi- €a parecialhe uma “apaixonante voluptuosidade’. Ne entanto, logo Comecou 4 se sentir impressionade pela forma como o sistema hego- liana se arrogava o dirtito de ignorar a existéncia conereta do indvi- duo. Por causa disso Kierkegaard passou a contestar energicamente o hegelianismo. Para @ pensedor dinamarqués, a existéncia humana nao pode deixar-se dissolver na pura conceituacdo intelectual. Jean-Paul Sartre (1905-1980), analisando as relagdes entre os dois pensadores, afirma: ““O que opoe Kierkegaard a Hegel 6 que pa- fa 0 Ultimo © tragico de uma vida é sempre superado. © vivide se dis- solve ne saber’. £ acrescenta o filésofo existencialista francés: “Para Kierkegaard, pouco importa que Hegel fale de ‘liberdade para morrer ‘ou que descreva corretamente alguns aspectos da fa, © que ele critica no hegelianismo ¢ 0 fato de negligenciar a insuperdvet opacidade da experiéncia vivida. Nao é somente, nem sobretudo, no nivel dos con- Celtos que estd o desacordo, mas antes no da critica de saber ¢ da de- limitagao de seu alcance’', A angéstia da sensualidade A filosofia de Hegel opunha-se ao desejo intelectual mais profun- do de Kierkegaard: “uma yerdade que seja verdadeira para mim’ ou “ idéia pela qual eu possa viver e morror’’. Por outro lada, o luteras nismo entio imperante na Dinamarca também se opunha 4 sua con- cepgae da verdade filoscfica. Kierkegaard sentia que a Igreja luterana estava por demais burocratizada e afastada da religiosidade interior, que considerava essencial para o verdadeire cristio. © jovem Kierke- gaard, obcecado pelo sentimente do pecaca e pela angustia da sen- sualidade que o assaltavam nessa épaca, tornou-se entio um “tiléso- fo solitirio”’, no dizer de Jean Wahl, ¢ abandonou a religidc. Ao mes: mo tempo, entregou-se a uma vida desregrada de prazeres gastando alas somas em roupas, comidas © bebidas. Esse periode critico de sua juventude iniciou-se no mesmo ang da morte de seu pai (1838) © teve evidentes relagdes com esse triste aconteciment Passados os primeiros momentos de crise, Kierkegaard resolveu fetomar os estudos universitéirios @ tornar-se pastor. Em 1841, termi- hou a tese Sobre o Conceile de frania ¢ pregou © primeira sermao. Um ano antes, ficara noivo de Regine Olsen, jovem de 17 anos de idade. Contucio, & medida que se definia a singularidade de sua vo~ cacao, Kierkegaard comecou a perceber qué nao seria capaz de parti- thar sua vida Com outta pessoa; ao mesmo tempo, achava que nio the cabia o papel convencional de pastor protestante, Decidiu entéa romper o noivade, interpretando a decisdo como conseqiiéncia de uma _vocacao filaséfica ¢ religiosa. “De fato — comenta Lukics — mesmo Regine, que ele havia abandonade, que em sonho transforma: fa_em um ideal além de seu aleance, no. pode ser para Kierkegaard mals que uma etapa, porém uma elapa que o conduziu de maneira mais acertada a seu objetivo.”” VIDA E OBRA ix Com © rompimente do neivado, Regine Olsen sentiu-se ferida em seu orgulho de mulher © casou-se com Fritz Schiegel, posterior- fente governador das Indias Ocidentais Holandesas. Kierkegaard pas- sou a viver solitariamente sua realidade singular ¢ incomunicavel, de- clarando que sua vida deveria ser “‘reflexao do principio ao fir’. Em fara a Peter Lind, chamava a atengao para a vantagom de sentirse um tanto abandonado por parte dos amigos. “OQ siléncio deles — afi mava — € nitidamente proveiloso para mim, porque me obriga a fixar a Visla no meu eu; porque me estimula a aprender esse eu que ¢ a meu; porque me obriga a manter-me fixo na infinita instabilidade da vida € a vollar para mim 0 espetho concavo com que dantes procura- va abarcar a vida fora de mim mesmo, Esse siléncio agrada-me por- que me sinto capaz esse esforco e com coragem para segurar 0 espe- tho, mosire-me ele o que mostrar, 0 meu ideal ou a minha caricatu- ra.” Homem problema para si mesmo, Kierkegaard nunca deixou de se interrogar © de se analisar a si proprio. Para ele, a filosofia resu- mia-se em tomar consciéncia das exigéncias absolutas feitas a qual- quer pessoa que queira viver uma existéncia verdadeiramente auténti- ca. Apesar de viver isolado, Kierkegaard polemizou violentamente com personalidades dinamarquesas da época, A principal dessas polé- micas levou-o a atacar de maneira impiedosa as autoridades da Ipreja luterana da Dinamarca, Inconformado com as disparidades entre @ ca: Fiter introspective da fé cristd e o confarmisma social ¢ politico da Igreja estabelecida, escreveu diversos artigos contra o primaz lutera- no Hans Larsen Martensen (1808-1884), que seguia uma orientagao hegeliana. Coerentemente com suas pasigées, Kierkegaard recusou- se a receber os sacramentos ce pastor: “pastares sdo oficiais do rel: oficiais do rei nada tém a ver com a cristandade”, Aa lado das polémicas que marcavam os anos seguintes aa rom- pimento de seu noivado, Kierkegaard dedicou-se intensamente a reda- a0 de intimeras obras, muitas das quais vindas a public sob curio- 50s _pseuddnimos: Victor Eremita, Johannes de Silentio, Constantin Constantia, Johannes Climacus, Nicolaus Notabene, Virgilius Hau niensis, Hilarius Bogbinder, Anti-Climacus. Entre ossas obras, salien- tam-se Sobre o Conceito de tronia (1841), Discursos Edificantes (1843/44), Ou, Qu. Lm Fragmento de Vida (1843), Temor e Tremor (1843), A Repeti¢de (1843), O Canceito de Aagdstia (1844), Etapas no Caminho da Vida (1645), O Desespero Humana (Doenga até a Morte} (1849), A escolha: ou 0 estético au o ética “A vida subjetiva, na prépria medida em que é vivida, nao pode jamais ser objeto de um saber; ela escapa, em principio, ao conheci- mento... Essa interioridade que pretende atirmar-se contra toda filoso- fia, na sua estreiteza e profundidade infinita, essa subjetividade reen- contrada para além da linguagem, como a aventura pessoal de cada um em face dos outros ¢ de Deus, cis @ que Kierkegaard chamou de x KIERKEGAARD existéncia.” Com essas palavras jean-Paul Sartre sintetiza todo 0 card ter da filosofia de Kierkegaard: uma filosofia da existéncia, que 0 pen- sador dinamarqués construiu, em oposigdo a todos os sistemas racio- nalistas, especialmente ao sistema hegeliano. No sécula XX, alguns estudiosas procuraram mostrar como se encanira um “existencialis- mo" nas obras de Hegel, sobretuda em sua Fenomenotogia dla Esprit. fo. Sepundo Merleau-Ponty, por exemple, pode-se falar de um exis. tancialismo nessa obra, no sentida de que nela Hegel nao se propoe @ encadear conceitus, mas a revelar a légica imanente da experiéncia humane; de maneira mais precisa, haveria um existencialisma em Ho- ge! no sentido de que ele nao cancebe 6 homem como consciéncia que possui seus proprios pensamentos, mas como vida que procura Compreender a si mesma, Kierkegaard, porém, nae pensava no Hegel dé 1807 (data da pu- blicagdo da Fenomenalogia do Espirito), mas rv Hegel do tim da vi- da, aquele que tratava a histéria coma desenvolvimento vistvel de uma légica, na qual a experiéncia individual da vida humana sybordi- navse a vida propria das idéias. Assim, Kierkegaard cambateu a filoso- fia hegeliana como um sistema que ésvazia a existéncia humana de todo carater concreto, dissalvendo-a em puras conceites racionais. O fildsofe dinamargqués defendia a tese de que qualquer esquema parti- cular de conceitos constitui apenas uma possibilidade entre outras, cuja Coneretizagia nao depende dos préprios conceitos, mas do indi- viduo. Assim, o que este faz nio depende do que ele compreende, mas do que ele quer, ou soja, da que ele escofhe, A socio de “escolha’’ constitui uma das idéias fundamentais da filosofia de Kierkegaard. Ela seria © proprio niiclea da existincia hu- mana. Para Kierkegaard, 0 panto de vista hegoliand, seaunde o qual ncia humana se desenvolve logicamente no interior de esque- mas conceituais, Nao Constitul apenas UM erro intelectual mas, sobro- tudo, uma tentativa de dissimular os verdadgiros fatos ¢ rojeitar as ros ponsabilidades implicadas pela escolha. “A ¢sséncia do conceita kier- kegaardiano de escolha — como diz Alasdair Macintyre — reside em que esta iiltima # despida de critérias.”” Em outras palavras, para Kier kogaard nao existem quaisquer razées Iégicas que obriguem 0. ho- mem a optar por esta ou aquela forma de vida, Uma aplicagao concreta da doutrina kitrkegaardiana da eseolha Encontra-se em sua obra Ou, Ou. Um fragmento de Vida, publicada em 1843. Nesse livro, Kierkegaard analisa os modos de vida estético ¢ Alico, O mode de vida estético seria caracterizado pelo hedonismo foméntico @ safisticado, ao qual se contrapde, nao apenas a dor, mas, sobretuda, 0 tédio. Em Dirio de um Sedutor, 0 personagen central penetra no mais fundo abismo da paixao, “escolhende” viver sténcia amarusa em todas as suas cantradigdes. Relrato caracte- ristico desse tipo de conduta eneontra-se em outra obra de Klerke- gaard, Furtiquem Vessos Coragdes, na qual o autor interraga sobre aquele que csculheu o modo de vida estético: “Vejam-no em sua tem- gorada de prazer: nao almejou ele a um prazer depois do autro, va~ fando sua senha?” © protagonista da opcdo estética tenta realizar to- das as pussibilidades, mas estas nao lhe proparcionam is do que uma atualidade transitoria. © mais importante, porém, esté em que a ameaga do tédio € perpélua, porque ele exige constante defesa Con- VIDAEOBRA XI seqdentemente, 2 busca estética de novidades conduz, em ditima ins- Yancia, ao desespero, tema da iltima obra, O Desespero Humano (Doenga até a Morte. © mesmo absurdo qué esté na raiz da conduta estética encontra- se também no mado de vida ético. Em Temor e Tremor (1843), Kier- kegaard relata varias verses da historia de Abraao e Isaac, e em to- das elas se encontra 0 absurdo que conduz ao abismo da fé, O mado de vida ético contrasta com a conduta estética, instaurando-se nos ter renos do dever, das regras universais © de todas as exigéncias © tare- fas de carater incondicianal. Segundo Kierkegaard, para aquele que se encontra ho estigio ético, a coisa mats importante nav € saber se ele ¢ capaz de Contar nos dedos todos os deveres mas se sentiu, algu- ma vez, a intensidade do dever, de tal mado que sua canscidneia es- Teja plenamente garantida da eterna validez de seu ser, Nessa ordem de idéias, 4 fundamental o papel desempenhado pe- lo sentimento na teoria kierkegaardiana da escolhe ética. A intensida- de de sentimento parecia Wo importante a Kierkegaard que ele Considerava a paixdo como aquile de que seu tempo carecia mais pro- fundamente, Em Qu, Ou, 0 confranto entre a opgau estética € a opgao ética 6 apresentado nas figuras de um jovem e um vetho, compondo dois ca- Facteres Cantrapostos, entre os quais o leitor sente-se obrigado a dec dir. Mas Kierkegaard mostra claramente suas preferéncias pelo ético, Segundo a andllse de Alasdair Macintyre, » exame da alternativa le. vanta uma série de questées no que diz respite a consistencla da are Bumentagdo do autor. Kierkegaard sustenta que nao existe qualquer critério objetivo para decidir entre as duas opces, e, ao mesmo tem: Po, favorece nitidamente o estdgio ético, mostrande ser este superior ae primeire. Certas passagens sugerem que 0 Individuo que escolhe a Conduta estética nan faz uma verdadeira escolha. Admitir isso, para Macintyre, seria negara prépria doulrina klerkegaardiana da auséncia de criterias na escolha, © paradoxo da religiao © o desespero Assim como a conduta estética levada as tiltimas conseqiiéncias culmina no dosespero, a etapa ética, atingindo seus limites supremos, faz surgir a contradig¢ao. A passagem do ético ao teligioso torna-se en- to necessaria, Em femor e Tremor (1843), Kierkegaard afirma que, quando 0 pecado entra em discussio, a ética fracassa, pois © arrepen- dimento (implicito no sentimenta de pecada) € a suprema expressio da ética, mes, ao mesmo tempo, constitu a mais profunda contradi- G40 ética, A solugio da contradicda somente seria possivel mediante @ passagem para outro tipo de conduta: a etapa religiosa. Exemplo de passagem do ético ao. religioso, segundo Kierke- gaard, encontra-se no episédio biblico referente a Abrado © baac. Quando Deus exige de Abrado 0 sacrificio de seu fitho Isaac, Abrado, dentro do nivel ético, est4 diante da necessidade de eometer unis (ransgressdo absolutamente proibida. Abrade ndo tem saida a ndo ser pelo salto do dice ao rcligiosa. Em outros termos, Abrado deve saltar XiL KIERKEGAARD para a fe, aceitande © absurde da exigéncia divina © concordando ‘cour uma suspensdo do ético, em favor do religioso. Em tais situagdes eriticas, a escolha que o Individue seate-se obrigado a fazer indepen- de de quaisquer eritéries racionais, isto €, as regias gerais @ universais nao podem ajudd-lo. Apesar disso, segundo Kierkegaard, existe al- gumas experiéncias, & margem do éico ¢ do religioso, que podem servir de indicagdo. Uma delas & 0 desespero, outra 6 a ansiedade. Kierkegaard descreve-as em OQ Concelta de Anguistia (1844), titulo que, para Jean Wahl, constitu’ uma provocagaa. Para Jean-Paul Sar le, “a angustia ndo pode, em caso algum, ser objeto de um canceito @, numa certs medida, enquanto ela se encontra na fonte da livre op- ¢a0 temporalizante, ela é 0 fundamento ne-conceitual de todas os Conceitos”, Assim, na interpretagaa de Sartre, 6 necessérie poor compreender que a palavra “angdstia’’ € a universalizagao do singu- lar, portanto, um falso conceito. Este. remete & universalidade en- quanto que a angdstia “reconduz para o Unico, seu fundamento”’. Por outro lado, Alasdair Macintyre é de opiniao que o desespera tem a mesma orientagde que a angustia, © hamem, em estado de de- sespero, verifica que se desespera nao de fatos contingentes, mas. de si mesmo, © desespero kierkegaardiana constituiria, portant, © fata de 0 individuo ver-se canirontade com a vacuidade, o vazio, que nda pode ser preenchido nem pelos prazeres estéticos, nem pelas obriga- SGes éticas. Em A Repoticde (1843), Kierkegaard mostra que o he mem nde pode repetir cada uma de suas experiéncias estéticas (@ étie cas), a fim de gozar um prazer passado. A repeti¢ao, contudo, € possi« vel no plano do future, na aceitagse da vida come um recomeco, Conversio que se abre ao sentimento do prodigivse ¢ do divino; em Outros termos, a repeticdo <6 6 possivel como impulse de sulmissio religiosa ao desconhecido, ¢ radica no proprio absurdo de sua impos sibilidade como recomposigao de experiéncias estéivas ¢ condutas Glicas do pasado, Por essa razao, toda a filosofia de Kierkegaard con- traliza-5¢ no significado e nas complexas implicagdes do fato de ser cristao. Toda a sua vida constitul uma intensa experiéncia da contra posicdo entre aquilo que consicerava ser o cristianismo em seu signifi- cado mais profundo ¢ as roupagens exteriores com as quais se reves- Nia a Igreja luterana de seu tempo. Para Kierkegaard, a vivéncia mais profunda do cristianismo ¢ a vivéncia ¢ a ceneza da fd, Trota-se de uma certeza muito peculiar, pols corresponde a uma incerteza objeli- va e, conseqientemente, canstitul um paradoxo ¢ um absurdo. A rea- lidade da subjetividade implicada na fé consistiria em algo finite, mas dependente de uma infinitude essencial que é a infinitude de Deus, Como conciliar as duas é © grande paradoxo do cristianismo, Afron- far esse paradox, segundo Kierkegaard, inyplica necessariamente “suspender e ético”’ e entregar-se totalmente ao teligiosa, Tal entrega ndo conduz a Wanquilidade mas, ao contriria, a um permanente con flito, pois a ctemidade ¢ a infinitude de Deus si0, a0 mesmo tempo, absolutamente reais @ absolutamente incompreensiveis. Par isso, Kier- kegaard concluiu que néo se pode propriamente falar de Dous ou, em outras palavras, formular uma teologia. Impde-se, portanto, ums fransiormagdo na propria linguagem empregada pele homem; a razao deve ser posta de lado, dando lugar a saplica @ até mesmo a impreca- Gao. Cronclogia Bibliografia VIDAEOBRA —Xill 1813 — tm Copenhague, a 5 de male. nasce Surep Aabwe Kierkegaard. 1817 — Hegel publica a Enciclopédie das Ciéncias Filassficas. 1835 — Surge © Pai Gorior, de Balzac. 1836 — Musset publica a Convissdo de um Fifho do Século. 1840 — Nasce Auguste Rodin, 1841 — Kierkegaard conclui sua tese Sobre @ Conceita de Irania, Fouerbach publica a Esséncta da Cristianisema, 1842 — Nasce Mallarmé. 1843 — Kierkegaard publica Temor ¢ Tremor, @ Ou, Ou. Um Frazmento de Vida. 1844 — Publica as Migalhas Filosétiras © ( Conceito de Angdstia. 1845 — Marx ¢ Frgels publicam A Sagrada Farnilia. 1846 — Vem 2 lume o Sisieara-das Contradticaes Econdmicas ou Filosofia da Miséria, de Proudhon. 1847 — Mar publica a Miséria dia Hloratia — Resposta 3 Filosofia da Misé- ‘ia, de Proudhon. 1848 — John Stuart Mill publica os Prineipias de Economia Politica. Nasco Paul Gauguin, Dickens escrave Davicl Copperfield. Morte de Poe. Morte Balzac. Nase Maupassant. 1851 — Kierkegaard publica Sobre meu Trabalho como um Autor. 1853 — Nasco Vicent Van Gogh, Publica-se o Sistema de Etica, de Fichte. 1854 — Nasce Rimbaud. Publicuse Walden, de Thoreay. More Schelling. 1855 — A 11 de novembro, ent Copenhague, mare Kierkegaard, Sure, JP: Queshie de Método, Ditusio Euraptia do Livre, Sido Paulo, 1967; Absil Cultural (Sartre — série Os Pensadores). 1974, 1978 Gana, J]: introduction in Traité du Désespair, de Kierkegaard, Gallimard, Paris, 1963. Virios Autores: Kieshegaasd Vivent, Gallimatd, Paris, 1966 Mucins, Av: Kierkegunird, Savon Aabye in The Eneyctopedia of Philowypshy. Sivols., The MacMillan Company & The Froe Prass, Nava York, 1967, Beau, RA Kierkegoard Anthology, Princeton, ID46, ‘Cinmat, BO; Lectures on the Religious Thought of Soven Kierkegaard, Mine neapolis, 1937, onesie. J. Ez Soren Kierkeneard, Londres, 1954, Jonnwrt, Ru: Introduction to Kierkegaatd, Londres, 1950. Lown, W.: Kierkegaard, Nowa York, 1938, Lownt, W.t A Shor Life of Kierkegaard, Princeten, 1942 Swenson, D. F.: Sumerhing about Kierkegaacd, Minneapolis, 1941 Wasa. | Furies Kierkogaardiennos, Paris, 1938, Mosman, Pi: Klerkegourel: sa Vie, san Geuvre, aver un Exposé dt sa, Phils phie, 1934. Pret, Go: Tw Narzenw Pass; 2 Study of Kierkogaard’s Concept of Man, 1963, DIARIO DE UM SEDUTOR ‘Tradugao de Carlos Grif. Sua passion predeminante & la giovin princigiante. Don Giovanni N24 Aria? Agora que, no meu pessoal interesse, me decido a passar a limpo a eépia exata de uma outra que, com 0 cofagdo em sobressalto, consegui em tempo adquirir, rabiscando-a a pressa, nfo posso libertar-me da sensagio de ser opri- mido por uma angistia dificil de dominar. Como outrora, a situaco apresenta- se-me ao espirite cheig de inquictagie ¢ como que elvada de censuras, Contraria- mente aos seus habitos, ele nao tinha fechado a secretaria ¢ assim tudo o que ela sontinha se encontrava 4 minha mercé; mas de nada serviria tentar desculpar a minha atitude pela recordagao de que nao abri qualquer gaveta. Uma delas estava Ja aberta, e nela havia uma quantidade de folhas soltas ¢, sobre elas, um grande in-quarto, belamente encadernado. Na capa estava colada uma vinheta branca onde, com a sua propria letra. ele escrevera: Commentarius perperuus N° 4, Contudo, foi em vaio que tentei convencer-me a mim proprio de que, se este lado do livro niio estivesse voltado para cima, ¢ se nao tivesse sido tentado por aquele titulo extravagante, née teria sucumbido a tentagio ou que, pelo menos, lhe teria resistido, O proprio titulo era estranho, nao tanto em si préprio mas pelo que o rodeava. Langando um olhar rapido pelas folhas soltas, verifiquei que continham estudos de situagses erdticas, alguns conselhos sobre este ou aquele assunto, ras- cunhos de cartas de um género muito particular, de que pude, mais tarde, apreciar © estilo negligente, mas intencional, ¢ artisticamente rigoroso. Hoje, depois de ter penetrado a consciéncia artificiosa desse homem perverso, quando evoco a situa- eGo, quando, com os olhos bem abertos a qualquer asticia, avanco, na minha imaginacdo, para aquela gaveta, a minha impressio é a mesma que deve dominar um comissério de policia quando entra no quarto de um falsario, abre os seus esconderijos ¢ encontra numa gaveta um monte de folhas soltas que serviram para ensaios de escrita e desenho: numa descabre um esboge de folhagem, noutra um parégeafo, numa terceira uma linha escrita ts avessus, Tudo isto Ihe prova, sem dificuldade, que a pista ¢ boa, c ao scu contentamento vem juntar-se uma certa admiragao por tudo o que aquile implica, sem margem de divida, de estudo ¢ diligéncia. Penso que, no sew lugar, as minhas sensagSes seriam outras, pois no estou habituado a investigar atos criminosos ¢ nao uso insignia de policia, Num tal caso, 0 sentimento de me ter embrenhado em terreno proibido viria sobrecar- * Do libreto da Opera Don Giovanni, de Mozart: Sua pulse predominande / é a jovem debutante, Passe 0 iamo, alids parcialmente consagraklo pelo us9, pela peceisto com que trudus © Herma italiano. (N.doT.) 4 KIERKEGAARD regar pesadamente 2 minha consciéncia, Como é habito acontecer, nao fiquei, Hessa ocasiao. menos privado de idéias que de palavras. Uma impressiie domina- os até que a reflexao se liberta de novo e, complexa ¢ dil nos seus movimentos, seduz 0 estranho desconhecido, insinuando-se no seu espirito. Quanto mais se vai desenvolvende a reflexdo, tanto mais apta flea a dominar-se e. como um funcio- aario de alfindega no servico dos passaportes, de tal mode se familiariza como aspecto dos mais estranhos tipos que jd nao tarefa fiicil desconcerta-la. Ora.cm. bora a minha. conforme creio, esteja sobremancira desenvolvida, a primeira sur- presa foi enorme; lembro-me perfeitamente de ter empalidecida. de ter estado Prestes a cuir por terra, de o ter temido. Suponham que ele regressdva nesse momento ¢ me encontrava ali, desmaiado. a paveta na mio — ah!, uma mé cons. ciéncia pode trazer interesse 4 vida. Em si, 0 titulo do livro nao me feria a imaginagao, pensei tratar-se de uma coletiinea de excertos, o que se me afigurava perfcitamente natural, pois sabia que cle sempre se aplicara aos seus estudos com o maior zelo. Mas muito diferente ern © conteiido. Tratava-se afinal de um diario. nem mais nem menos, e mantida com um cuidado extremo, E embora, segundo o que dele eu antes conheeia, nao pare ga muito indicado um comentirio da sua vide, devo confessar ter compreendido, apés 4 primeira vista de olhos lanenda ao diario, que 0 Glulo foi escolhide com grande soma de gosto c compreensao, testemunhando, sobre cle proprio e sobre a situagdo, uma real superioridade estética e objetiva, Este titulo esta em perfeita harmonia com todo © contesido. A sua vida foi uma tentativa constante para rea- lizar a tarefa de viver poeticamente. Dotado de uma capacidade extremamente cvoluida para descobrir o que de interessante existe na vida. soube encontra-lo ¢, tendo-o encontrado, soube sempre exprimir o que vivera com uma veia quase postica. Por conseqiléncia, 6 seu diario nfo é de uma precisiio histérica nem uma simples narrativa, nao fol redigido no modo indicative, mas sim no conjuntivo. Muito embora tenham os pormenores, naturalmente, sido anotados apés terem sido vividos, por vezes talvez mesmo bastante tempo depois, a narrativa d4, mui- tas vezes, a sensagia de que tudo acontece naquele priprio instante, sendo a vida dramdtica de tal modo intensa que, por vezes, se ditia que todo decorre perante os nossos othos. E sobremouo inverossimil que ele tenha escrito este didrio com uma inalidade particular: salta a vista que, no sentido mais estrito, apenas se revestia para ele de uma importiincia pessoal, ¢ 0 conjunto bem como os parmenores in} bem-nos de pensar que temas perante nés uma obra literdria, ¢ muito menos des- tinada a ser impressa. & certo que cle nada teria a temer pessoalmente se a publi- casse pois que. na sua maior parte, os nomes siio de tal mado extravapantes que hao & proviivel sequer a sux realidade: apenas suponho serem reais os nomes prd- Prias, de modo que cle proprio podia reconhecer com seguranga a verdadeira Personagem, enquanto um tereeiro seria induzido em erro pelo apelido, Quanto mais nao scja, é esse o caso da jovem Cordélia, que conheci e que representa todo 0 fulero de interesse do diario; chumava-se ela, na Tealidade, Cordélia, mas nao Wahl. Mas como explicir entv que a diario tenha tomado uma feigio de tal modo Poétion? A resposia nao apresenta dificuldades, resullando de possuir ele, aa sua DIARIO DE UM SEDUTOR 5 pessoa, uma Natureza poética que nav era, se o quiserem, nem suficientemente rica nem suficientemente pobre para distinguir entre a poesia ea realidade. O tom poético era o excedente fornecide por ele priprio. Esse excedente era a poesia cujo gozo ele ia colher na situagdo poética da realidade, e que retomava sob a forma de reflexio poética. Fra este © seu segundo prazer ¢ @ prazer constitula a finalidade de toda a sua vida. Primeiro gozava pessoalmente a estética, apds 0 que gozava esteticamente a sua personalidade. Gozava pois egoisticamente, ele proprio, o que a realidade Ihe oferecia, bem como aquilo com que fecundava essa realidade; no segundo caso, a sua personalidade deixava de apir, e gozava a situa ao, ¢ cla propria na situagdo, Tinha a constante nevessidade, no primeiro caso, da realidade como ocasiao. como elementa; no segundo caso a realidade fieava imersa na poesia. O resultado da primeira fase era pois o estado de espirito, de onde surgiu 0 didric como resultado da segunda fase, tendo esta palavra um senti- do algum tanto diferente nos dois casos. Gragas 4 ambigiiidade em que desorria a sua vida, sempre ele esteve sob o império de uma influéncia pottica. Por detris do mundo em que vivemos, muito 1d atrés, em Gitimo plano, exis- te um outro mundo; 2 sua relagdo reciproca assemelha-se a que existe entre as duas cenas que aconiece vermos no teatro, uma por detris da outra. Auavés de uma leve cortina, distinguimos como que um mundo de gaze, mais leve, mais eté- reo, de uma outra qualidade que a do mundo real. Muitos daqueles que deambu- lam em carne ¢ osso pelo mundo rea! nfo the pertensem, mas sim ao outro. Per- der-se assim a pouco © pouco, sim, quase desaparecer da realidade, pode ser sau- davel ou mérbido. © caso desse homem, tal como eu o eonhesi outrora sem © conhecer, eta morbido, Ele ndo pertencia & realidade ¢, no entanto, tinha muito a ver com ela, Passava sempre acima da realidade, ¢ mesmo quando mais se Ihe entregava, estava longe dela. Mas nao cra o bem que dela o afastava e, no funde, também nao o mal — mesmo hoje ndo seria capaz de tho imputar. Tinha ele um pouco de exacerbatio cerebri (exaltagao da mente), em relagdo ao qual nao disp nha a realidade de estimulo suficientemente forte, a no ser de um modo fugidic, Ele no sucumbia ao peso da realidade, nlio era demasiado fraco para a suportar, nao, era antes demasiado forte; mas tal forga era uma docnga. Logo que x reali dade perdia a sua importancia come estimulante, ficava desarmado, ¢ nisso con- sistia o mal que o habitava. Tinha consciéncia disso, mesmo no momento do esti- mulo, ¢ o mal estava nessa conseiéncia. Conheci a jovem cuja histéria preenche a maior parte do diiria, Nao sei se ele tera seduzido outras, mas, segundo os seus papéis, é 0 mais provavel. Parece ler Sido ainda versado num outro tipo de experiénciss que © caracterizam bem; pois ele era, em extremo, intelectualmente determinado, para ser um sedutor vul- gar, O didrio demonstra também que, por vezes, era algo de totalmente arhitrério © que ele desejava, uma saudagiio por exemplo, ¢ por prego algum quereria ober mais, por ser a saudaeao aquilo que a pessoa em questao possuia de mais helo. Com © auxilio dos seus dotes espiriuais, sabia tentar uma jovem, sabia atrai-la a si, sem se preocupar com passui-la, no sentido literal do termo. .. Posso imagi- nar -como ele saberia conduzi-la ao ponto culminante em que tinha a certeza de ser cla capa de tudo lhe sacrificar. Mas, tenda as coisas sido conduzidas até 6 KIERKEGAARD esse ponto, ude rompia sem que, pelo seu lado, tivesse havido a menor eonstan- cia. sem que uma s6 palavra de amor houvesse sido pronunciada e, muito menos, uma dectaraziio de amor, uma promessa. No entanto, algo ficara impress nela, como uma marca. E duplamente the sentia a infeliz o trave amargo. porque nuda tinha cm que o basear. c porque estados de espirito, de natureza muito diferente. 8 continuavam certamente a sacudir, num terrivel ¢ demoniaco sabi, sempre que exprimia as suas queixas. ora dela propria. perdoando-o, ora dele. E decerta berguntaria entio a si proprio se nao seria afinal tude aquilo uma ficgao, pois que apenas em sentido figurado se podia falar em realidade, no que aquelas relagdes dizia respeito. Nao tinha ninguém a quem se pudesse confiar: porque, no fundo, cla nada tinha a dizer. Podemos contar um sonho aos outros, mas 0 que ela tinha para coatar nflo era sonho, ¢ sim realidade. Porém, logo que pretendia descrevé-la a alguém ¢ sossegar o seu espirito inquieto, nada encontrava para dizer, E cla prépria bem o sentia. Ninguém mais podia compreender de que se tratava, e tudo aquilo agia sobre ela com o seu peso inquictante: Estas vitimas eram pois de um tipo muito especial, Nao era o caso de jovens que, desprezadas ou julgando-se desprecadas pela sociedade, se entregassem alta ¢ saudavelmente a0 seu desgosto ou, levando as coisas demasiado a peito, extravazassem o 6dio ou a perdic. Nelas, nenhuma transformagdo visivel se operara; eram respeitadas como sem: pre, as suas vidas decorriam semelhantes as de quaisquer outras e, contude, haviam-se modificado, sem que quase conseguissem exprimr essa modificagio, € sem que os outros a padessem notar, A sua vida nao fora quebrada nem desviada, como & o caso daquelas, antes se curvara dentro delas proprias: perdidas para os outros, em ¥ao procurayam reencontrar-se. Tal como podemos dizer que era impossivel descobrir a pista desse homem (os seus pés conservavam as pegadas que faziam — é assim, com efeito, que melhor posso representar a sua infinita intelectualidade), também podemos afirmar que nao foi ativamente responsivel Por qualquer das vitimas. A sus vida era demasiado intelectual para que ele Pudesse ser um sedutor, no sentido vulgar de termo, embora por veres se reves. tisse de um corpo parastatico ¢ fosse entdo, todo ele, sensualidade pura. Mesmo na sua aventura com Cordélia, tudo é de tal modo confuso que Ihe era possivel afirmar ter sido cle 0 seduzide. Sim, a propria javem pode ter tide por veres di vidas a tal respeito. Também neste caso, os tragos que deixou da sua passagem sio to vagos que niio & possivel descortinar qualquer prova, Para ele, os indivi- dues nunca foram sendo estimulos, ¢ langava-os para longe de si do mesmo modo gue as dirvores deixam tombar as folhas — ele rejuvenescia, enquanto morria & folhagem. Mas que poderd passar-se no seu cérebro? Penso que, tl como desviou ox utros do bom caminhe, ele proprio se acabara por perder, Desviou os outres do bom caminho, ni sob © aspect de uma relagiio exterior, mas sim de uma tela $40 interior. relativa a eles priprios. revoltante que um homem indique mal a estrada a um viajante que ignora o caminho a percorrer, ¢.0 abandone em segui da, sozinho no engano. Mas niio serd mais revoltante ainda levar alguéma per. der-se em si proprio? O viajante tem, apesar de tudo, a consolacao da paisagem, cujo aspecto se vai coustantemente modificando aos seus olhos, € © fato de que. DIARIO DE UM SEDUTOR 7 em cada uma dessas modifieagdes, pode ter a esperanga de encontrar uma saida: mas aquele que se perde em si proprio no tem um tio vaste terreno por onde encaminhar os seus passos;cm breve se da conta de estar fechado num circulo. de onde lhe € impossivel escapar. Penso que assim se virdo a passar as coisas no caso dele, mas numa bem mais terrivel medida. Nada consigo imaginar de mais Penoso que um intrigante cujo fio de inirigas se quebra, ¢ volta entio, contra si proprio, toda a sua sagacidade, porque nesse momento a sua consciéncia acorda ¢ logo ele tenta libertar-se das confusas malhas em que se enredou. De nada lhe Servem as muitas aberturas que cxistem na sua toca de raposa: no momente em que ja a sua alma inguicta julga descortinar a luz do dia penetrando no covil é, afinal, uma neva entrada que se the depara ¢, perseguido pelo desespero como o animval selvagem pelos cies. constanemente busca uma saida ¢ sempre encontra uma entrada por onde, uma vez mais, penctra em si proprio. Um tal homem nao em todos os casos, 0 que se pode chamar um criminoso: ele é. muitas vezes, ilu- dido pelas suas proprias intrigas. E no entanto sobre ele recai um castigo mais terrivel que @ do criminoso; porque, se a compararmos com esta loucura cons- ciente, @ que pode valer mesmo a dor do arrependimento? A sua punigao & de cardter puramente estético; pois até a dizer que a consciéncia desperta é, para ele, uma expressio demasiado ética; a consciéneia apresenta-se-Ihe apenas como um conhecimento superior tomando a forma de uma inquietagio que, num sentido mais profundo, nem sequer 0 acusa, mas o mantém desperto, ¢ Ihe no permite qualquer repouso na sua estéril agitagao. Também nao é cle um insensato; pois a infinita variedade de pensamentos finitos nao se petrificou na eternidade da deméncia, Também para a pobre Cordélia dificil sera reencontrar a paz, Ela perdoa. Ihe, do mais fundo do seu coragiio, mas no encontra repouso porque a divida regressa; foi ela quem acabou o noivado, foi ela a eulpada da desgraca, foi o seu orgulho que aspirou a0 que foge ao banal, Ela arrependeu-se. mas nao encontra repauso, porque os pensamentos acusadores a desculpum: foi cle quem, pela sua asticia, Ihe introduziu na alma tal projeto. E entio odeia-o, o seu coragdo alivia- se em maldigdes, mas, uma vex mais, niio encontra repouso; censura-se por té-lo odiado, cla, que ¢ afinal uma pecadora; censura-se porque, apesar de todas as per- fidias por cle praticadas, sempre sera culpada. Ele agiu cruelmente para com ela, enganando-a ¢ — quase seriamos tentados a dizé-lo — mais cruelmente ainda por ter despertado nela a reflexdio versatil, porque Ihe provocou uma evolugio suficientemente estética para que efa nfo escute ja, com simplicidade, uma sb voz, ¢ seja capaz de nessa vor descortinar, ao mesmo tempo, miltiplos sentidos. Desperta entio na sus alma a recordagiio; csquece a sua falta ¢ culpa, para ape- has recordar os momentos de beleza, aturdindo-se numa exaltagie mérbida. Em fais momentos. ndo somente o recorda, como ainda 0 compreende com uma clairvoyanee* que prova quae profundamente cla evoluiu. E ja néo vé nele nem o criminoso, nem 6 homem nobre; nesses momentos a lembranca que dele tem é Puramente estética. Escreveume uma vez um bilhete onde exprimia us suas ° Clarividéncia, Em francés no original. (N. doT) 8 KIERKEGAARD impresses a respeito dele: Era, por vezes, de tal medo intelectual que eu me sen- tia reduzida a nada como mulher, e noutras do selvagem e apaixonado, cheio de fontos desejos, que quase me fasta estremecer. Umas vezes eu era para ele como uma esiranka, outras abandonava-se inteiramente; mas se, num destes iltimos momentos, ike langasse os bracos ao pescoco, tudo podia mudar num sé instante 2 @ que eu abragava era apenas uma nuvem. Anies de o encontrar conkecia fa esta expressdo, mas fol com cle gue the aprendi o verdadeiro sentida: penso sempre nele cada ver que a utilizo, € & também « ele que devo cada um dos meus pensa- mentos. Sempre gostei de miisica. Ele era um incompardvel instrunento, sempre vibrante ¢ cam wma amplitude que nenkum outro poderd aleangar; ele era a soma de todas os seatimenos, de todos os estados de espirita; para ele nemhum pensa- mento era demasiado elevado, ou desesperado; podia rugit como uma tempestade de cutono, ou sussurrar como uma brisa estival, Néa perdia wina sé patavra que eu dissesse ¢, no entanto, nunca podia estar certa de que as minhas palaveas alcancavai 0 efeita pretendica, pols sempre deseonhecta qual seria esse efeito. Escutava aguela muisica que ex propria fazta acontecer, E era com uma inexprt- mnivel anguistia, mas misteriosa, feliz ¢ inefavel, que eu escutava essa misica que eu propria provecava e, ao mesmo tempo, néo provecava, mas era sempre harmoniosa. E ele cantinuava a enredar-me nas mathes do encanto, ‘Tudo isto é horrivel para ela, mas ainda mais o vird a ger no que a ele se refere: assim concluo baseando-me no fato de eu proprio mal dominar a angistia que se apodera de mim cada vez que penso nestas coisas, Também eu fui arras- tada para aquele mundo nebuloso, para esse mundo de sonhos onde, a cada ins- tante, somos assustados pela nossa propria sombra. E em vao que, muitas e mui- tas vezes, Ihe tenho tentade escapar; estou ainda incluide na galeria das suas Personagens como um espectto .ameagador, como uma acusagio muda. Que estranho tude isto! Ele envolveu tudo no maior mistério e, apesar disso, existe um outro mistério mais profundo aindarsou confidente ¢ bem ilegitima foi a mancira como cheguei a s¢-lo, Nunca conscguirel esquecer todo este assunto. Algumas vezes tenho pensado em falar-Ihe dele. Mas para qué? — ou negaria tudo, susten tando que o diario nao passa de uma tentativa postica, ou obrigar-me-ia ao silén- 10, 0 que, dala a forma como me tornei confidente, Ihe no poderia recusar, Ai de mim, nada existe no munde tao totalmente impregnado de sedugio e tio mal- dito coma um segredo. Recebi de Cordélia um conjunto de cartas. Nao sei se estara completo, mas ¢reio recordar ter-me ela dado um dia a entender que, de modo préprio, havia suprimido algumas. Das gue recebi fiz uma oSpia que inseriel nas péiginas do diario, passadas a limpo, E certo que estas cartas nao tém data mas, ainda que a tivessem, isso no me seria de grande ajuda dado que no diario, & medida que Prosseguc, as dittas vio rareando cada vez mais: sim, a excegao de um unico caso, abandona toda e qualquer preciso nesse aspecto, como se a histbria, embo- ra representando uma realidade historica, se fosse tormando qualitativamente tao importante na sua evolugdo, so fosse idealizando de tal modo gue, por essa mesma razao, qualquer tipo de cronologia podia ser negligenciado, O que, por outro lado, me auxiliou muito foi o fato de cxistirem, em varios pontes do diario, DIARIO DE UM SEDUTOR, o algumas frases cuja importineia, logo de inicio, nfo notei. Mas. considerando-as em fungao dus cartas, compreendi que estas se haseiam nelas, Ser-me-4 pois facil incluir as carias no lugar devida, dudo que inserirci sempre uma earta no ponto £m que se esbogou a sua razao de ser. A no me ter apercebido destes indicios, teria sido o causador de um mal-entendido. pois nunca me teria vindo a idéia que, em diferentes épocas, segundo. probabilidades que fundamento no diario, as car- tas sucederam:se tao préximas umas das outras que Cordélia parece ter chegado. a receber varias no mesmo dia, Se eu tivesse seguido a minha primitiva idéia, sem divida que as teria disiribuido de modo mais eqiitative, nunca chegando assim a ter a menor nogao do efeito por ele conseguido. gragas a apaixonada energia com que se serviu deste meio para manter Cordélia no paroxismo da paixao. Alem dos completos esclarecimentos sobre as suas relagdes com Cordélia, o diario contém ainda algumas pequenas deserigdes, intcrcaladas no resto. Tais descrigSes foram sempre ussinaladas por ele com uina nfa bene a margem, Nao tém qualquer relacaio com a histéria de Cordélia, mas deram-me uma vive idéia do sentido de uma expresso muitas vezes por ele usada e que, anteriormente, eu ndo compreendia na sua totalidade: ¢ preciso ter sempre wma linka preparada Para apanhat peixe. Se me tivesse chegado ds mios um volume precedente deste diario, teria provavelmente encontrado varias outras de tais descrigdes a que, a margem, cle chama, em determinado ponto: actiones in distans; & ele proprio quem afirma gue Cordélia Ihe ocupava demasiado © espirito para ter o tempo aecessirio de pensar noutra coisa, Pouca depois de ter abandonado Cordélia, recebeu desta algumas cartas que devolveu sem abrir, Encontravam-se elas entre as que Cordélia me confiou, ¢ dado que ela pripria thes quebrou o lacre, creie poder permitir-me copid-las tam: bém. Nunca me falou do seu conteiido mas, ao referir-se a6 suas relagdes com Johannes, costumava citar alguns versos de Goethe, segundo ereio, que. de acor- do com a diversidade dos seus.estndos de espirito ¢ os diferentes tons de voz por cles condivionados, parcciam significar varias.coisas: Gee, Verschmuihe Die Treue, Die Reue Kommt nach? Eis as cartas: Johannes! Nao te chamaret "meu" Johannes, pois set bem que nunca o foste; bem puni- da estou por ter permitide & minha alme que se deleitasse metse pensamento; ¢ 2 Vai, / desdenha / fidelidade, /o remorse / virh depots. im alero no original. (N.do T,) 10 KIERKEGAARD contudo, chamo-te meu; mew sedutor, meu éiganador, men inimigo, meu assassi 10, autor do meu infortinio, himulo da minha ategria, abismo da minha infelici- dade. Chamo-te meu ea mim chamo tua, ¢ tal come outrora te lisomjeava ouvi-lo, 4d que orgulhosamente te inclinaste para me adorar, deve agora soar como uma maldiedo langada sobre ti, uma maldiedo pare toda a eternidade. Nao te regozijes com o pensamento de ter eu a intengdo de te perseguir, de me armar com um Pue ahal para excitar @ twa troca! mas, para onde quer que fujas, ainda assim son tua; vai até 0 fim do mundo, ainda assim serei twa; dé 0 teu amor a centenas de outras, ainda assim sou tita; sim, mesmo & hora da morte serei ainda tua. A prépria lin- guagem de que me sirvo contra ti deverd provar-te que sou tua. Tiveste a audécia de iludir um ser téo completamente que tudo te torraste para esse ser, para mim, e que teret o mais infinito prazer em me tornar tua escrava — pertenco-te, sou tua, tua maldigao. Tua Cordélia Johannes Havia um homem rico gue possuia ovethas ¢ gado em grande quantidade: havia uma pobre rapariga que apenas possuia uma ovetha, uma ovelha que comia do seu pao e bebia da sua'dgua. Tu eras 0 homem rico, rico de tudo 0 que de espiéndido existe sobre a terra; eu era @ pabre rapariga que apenas possuta.o seu amor. Tomaste-o ¢ regozijaste-te cam ele; depois 0 desejo acenou-te e sacrificaste © pouco que eu possuia; mas das tas préprias riquezas nada pudeste sacriftcar, Havia um komem que tinha animais em grande quartidade, grandes e pequenos; havia uma pobre rapariga que apenas posstia o seu amor. Tua Cordélia Johannes! Néo haveré pois esperanga alguma? Ndo despertard pois de nove o teu amor, nunca mais? porque eu bem sei que me tiveste amor, muito embora nao salba o que me dé tai certeza. Esperarci, ainda que 0 tempo me pareca longo, esperare! até que estejas saciado do amor das outras, e entac o teu amor por mim ressurgird do nimulo, amar-te-ei endo, como. sempre te amei, como outrora, oh! Johannes! como outrora! Johannes t representard essa insensivel frieza contra mim a ina verdadeira natureza; 0 teu amor, as riquezas do teu coracao, seriam apenas meniira, fingimenta: terds voltado agora a ser tal come és? Fem paciéncia Para com 9 meu amor, perdou-me por te amar ainda, Bem 0 sei, a meu amor para tum fardo; mas o tempo vird em que regressards para junto de tua Cordél Tua Cordelia! Escuta esta patavra de ssiplica! Tua Cordélia! Tua Cordélia. Tua Cordélia Ainda que Cordélia ado tenho estado a altura do que nela provoca a admira- Gao pelo seu Johannes, claramente ressalta no entanto de tudo isto que nao cra. DIARIO DE UM SEDUTOR it desprovide de modulagio. O seu estado de espirito manifesta-se claramente em cada uma das suas cartas, embora lhe tenha faltado uma certa clareza de expres- sao. Este 6, principalmente, o caso da segunda carta, onde s¢ adivinha, mais do gue se compreende, o seu pensamento. Mas, quanto a mim, tal imperfei¢io s6 vem tornd-la mais comovente ainda. 4 de abril Prudéacia, bela desconhecida! Prudéncia! nao € coisa facil deseer de uma Sarruagem e. por vezes, cquivale mesmo a um pagso decisive. Poderia emprestar- vos uma novela de Tieck onde verieis que uma dama. ao desmontar do cavalo, se comprometeu de tal modo que esse fato veio a decidir toda a sua vida futura. Su- cede também que os estribos das carruagens sio, de ordinario, tio desajeitada- mente feitos que se torna quase necessdrio renunciar a qualquer graciosidade e, em desespero de causa, arrisear um salto que vos langa nos bracos de cocheire ou de um criado. Sim, essa gente é invejavel; quer-me parecer que vou tentar arranjar um lugar de criado numa casa onde haja jovens raparigas: € tao facil a um criado tornar-s¢ confidente dos scgredos de uma donzelinha. — Mas, rogo-vos, pelo amor de Deus, nao salteis; sim. esta ja escuro; nao vos ineomodarei, limitar-me-¢i 4 ficar debaixo deste ceverbero, ser-vos-a impossivel ver-me e, no € assim? ape- nas se ¢ timido na medida em que se é visto, mas 9 se é visto na medida em que se vé; — assim, por solicitude para com o erindo, que talvez nio fosse capaz de resistir a um salto como o yosso, por solicituce para com o vestido de seda, idem Por solicitude para com os folhos de renda, por solicitude para comigo, permiti a esse pé gentil. cuja elegincia admirei ja, que tateie 0 mundo, correi o risco de con- fiardes nele, ele sabera cquilibrar-se, e se estremeceis um instante ao pensamento de ele nfo conseguir encontrar sitio onde pousar, se estremeceis ainda depois que © encontrou, entio adiantai depressa o outro pé, pais quem poderia ser tao cruel que vos deixasse pairar nessa atitude, quem seria to desairoso, tao indolente, que se ndo apressasse perante a revelagao do belo? Ou temeis talvez uma terceira pes- soa — 0 criudo certamente nao, ¢ muito menos cu, pois que ja admirei o peque- nino pé, como sou naturalista, aprendi com Cuvier a tirar dai as mais seguras conclusées. Apressai-vos pois! Ah, como essa angtistia aumenta a vossa beleza. Mas a angastia em si niio é bela, sé 0 é no instante em que nos apercebemos da cnergia que a ela se sobreleva, Perfeito ! Que bem se firmou agora o pequenino pé, Ja reparci que as jovens com pés pequenos sabem geralmente manter melhor o equilibrio que aquelas cujos pés so maiores, largos como os do andarilhe, Quem © poderia pensar? © fato vai contra tudo o que a experiéncia estabeleceu; a0 gal- tar da carruagem sio maiores as possibilidades deo vestido ficar Prese que quan- do se desce trangililamente, Mas na verdade € sempre um pouco grave para as jo- vens passcar de carruagem; acabarao ainda por niu poder sair, Perdem-se as rendas ¢ os folhos, e é tudo! Ninguém viu coisa alguma; apenas s¢-avista o perfil sombrio de um homem envolto até os olhos numa cupa; ¢ impossivel ver de onde vem ele, pois vos encandcia a luz do reverbero; passa por vs no momento em Rn KIERKEGAARD que vos preparais para der entrada na casa, Precisamente no momento decisive um olhar oblique ¢ kingado sobre um objeto. Corais, 2 vosso peilo enche-se Gemasindo para poder langar fora o-ar de ama sé vez; hd irritagio no vosso olhar; um.altive desprezo: 05 vossos olhos. onde brilha uma lagrima, suplicam; \igrima ¢ siplica sdo igualmente belas ¢ aceito-as cam igual direito, pois nada ha que eu no possa represemtar. No entanio, escolho a crucldade — qual sera 0 ni mero da casa? Mas que vejo eu? A montra de uma casa de quinquifharia! Bela desconhecida, sera talvex uma agao revoltante da minha parte, mas seguirel o Caminho que se me abre. . . Ela esqueceu jf 0 que se passow, ah. sim! quando se tem dezesscte'anos, quando, nessa idade feliz, se sai a fazer compras. quando se encontra: um indizivel prazer em cada um dox abjetas, grandes ou pequeaos, que @ mao encontra. nessa idade o esquecimento é ficil. Ainda me nio vin; estou na ‘outra ponta do baledo, muito longe, & parte. Na parede oposta esta suspenso um espelhot cla néo repara, mas o espelho sim. Com gue fidelidade soube ele captar a sua imagem: é como um escravo humilde que prova a sua dedicagio pela fideli- dade, um escravo para quem ela tem importincia mas que nenhuma importdncia Possui para ela. que pode ousar compreendé la, mas nda tomé-la, Este infortu- nado espelho que tie bem sabe captar a sua imagem, mas nio capti-la, este infor- tunado espelho que ndo pode guardar a sua imagem no segredo do seus esconde. rijos furtande-a ao othar de mundo inteiro, may antes apenas sabe revela-la a outros como. neste momente, a mim! Que suplicio nao seria para um homem se fosse assim a sua naturesa, E contudo, nda é certo que hi muitas pessoas que assim sdo, que nada possucm a nao ser na momento ¢m que mostram gos outros @ Sua posse, que apenas captam a aparéncia das coisas ¢ nao a sua esséncla, que tudo perdem no momento em que esta se pretende mostrar, tal como este espelho. perderin a sus imagem go primeira sopro com que cla pretendesse abrir-lhe © coragao? Se um homem fosse incapaz de manter na meméria uma imagem da beleza, nem sequer no instante da sua presenga, ver-se-ia obrizado a desejar estar Sempre afastade dela, nunca demasiads proximo pura assim poder ver a belezit do que aperta nos bragas, ¢ que jd nic vé, mas poderia rever s¢ se afastayse, ¢ que afinal, no momento em que the é impossivel ver esse objet por estar préximo dele, no momento em que os seus labios se unem num beijo. seré mesmo assim Visivel para os olhos da sua alma... Ah! como ela é bela! Pobre espelho, que suplicio para ti, mas também que sorte por niio saberes o que é 0 ciime. A sua cabeca. perfeitamente oval, inclina-se wm pouco para a frente, o que Ihe realca a fronte: esta ergue se, altiva ¢ pura, sem de modo algum reflctir as suas faculdades intelectuais, OS scus cabelos escuros emolduram tema ¢ docemente a fronte. O Seu rosto ¢ como um fruto, arredondado e timido: a pele é transparente ¢ os meus alhos dizem-me que seri, sob os dedos, de um macio de veludo. Os seus olhos — sim, ainda os néo vi, escondem-se atriis de palpebras cujas armas, pestanas ondu- ladas ¢ sedosus, representam um perige para quem lhe procure o alhar. A sua ea- bega € como a de uma madona, impregnada de pureza ¢ inocéneia; inclina-se como a da Madona, mas sem se perder na conzemplagaa do Unico, ha mobilidade na expressiio do seu rosto. O que cla contempla é-a variedade, as miiltiplas coisas DIARIO DE UMSEDUTOR 1a sobre as quais lancam um reflexo as espléndidas suntuosidades da Terra. Tira ama luva para mostrar, ao espelho ¢ a mim, a mio dircita branca e bem esculpi- da, como uma obra de arte antiga. ¢ sem qualquer ornamente, nem sequer uma simples alianga de ouro anular — brave! Ergue os olhos € tudo se modifica, sem S¢ modificar; a fronte é um pouco menos elevada. o rosto um pouco menos regu larmente oval. mas mais vivo. Fala com a vendedor, esta alegre, felix ¢ exube- tante, Escolheu jd um, dois, trés objetos, pega num quarto, segura-o na mao, 0 seus olhos baixam-se de novo, pergunta o prego, poe 0 abjeto de lado soba luva, frata-se certamente de um segredo, destinado a um — a um noivo? — pias ela nao esta noiva! Ah, bem sei, ha muitas que ndo estiio noivas ¢ no entanto tem um namoro, muitas que estdo noivas ¢ no entanto no conhecem o amor... Deverel esquecé-la? Deverei deixd-la na paz da sua alegria?.., vai para pagar, mas per- deu ou esqueceu a bolsa... dii provavelmente a sua diregda, 0 que no quero ouvir, pois no desgjo privar-me da surpresa; estou certo de a vollar a encontrar na vida, € sei que a reconhecerei; talvez também ela me reconheya pois ndo é tao depressa que se esquece © meu olhar obliquo, Entdo. quanda, por um acase, a voltar a encontrar onde menos o espere, a sa vex chegara, Se me reconhecer, se © seu olhar mo ndo assegurar imediatamente. decerto tere’ aeasidio para a olhar Ge lado, © prometo-vos que recordar a situagéia. Nada de impaciéncia, nada de avidez; 0 prazer deve ser bebido em lentos tragos: ela esti predestinada, encon. (ra-le-ei de novo, S de abril Assim ¢ que eu gosto: sozinha, ao ancitecer, em ‘Ocstergade, Sim, bem vejo 9 stiado que vos segue, ¢ podeis ter a certeza de nao julgar eu tio mal de vés a Ponto de pensar que passedveis s6; acreditai-me, a minha experiéncia no podia deixar de, logo ao primeiro golpe de vista langado & situagao, me mostrar aquele roxto severo, Mas por que tanta pressa? Estamos apesar de tudo um pouco ansio- S05, sentimos um certo bater de coragio que nao resulta de um desejo impaciente de voltar a casa, mas de um impaciente temor que penetra todo o corpo com a sua doce inquieiaglio e provoca o ritmo acelerado dos passos. — Mas que sensa- Ga0 deliciosa, sem prego. passear assim, sozinha — com criado a pouca distan- cia de vos... Temos dezesseis anos, ja lemos muito, muitos romances entenda-se, €, a0 atravessarmos por acaso o quarto dos irmdos. surpreendemos uma frasc no meio de uma conversa, entre eles ¢ os seus amigos, uma frase acerca de Oester gade. Depois comegamos a adgjar por varius vezes ao redor deles no intuito de. se hossivel, obtermos mais completas informagGes. Mus em vio, De qualquer mado é necessério, como convém a uma vapariga ji crescida, conheecr um pouco 0 mundo. Ah, se de improvise pudéssemos sair, na companhia do criado. Céus! — ha o paizinho ea miezinia, lembra-te da care que eles furiam: ¢, além disso, que desculpa dar? Se se trata de uma Focepeav a acaside ndo é boa, realiza-se um 4 KIERKEGAARD pouco cedo demais, pois ouvi August falar de nove, dez horas: o regresso fica para demasiado tarde ¢ 0 mais certo é ser perseguida por qualquer galanteador. Quinta a tarde, ac voltar do teatro, seria na verdade uma excelente ovasizo. Simplesmente, nesse caso, € sempre preciso ir de carruagem, e além disso temos ge transportar também a Senhora Thomsen e as suas amiveis primas; ainda se fosse sozinha poderia abrir um pouco a janela ¢ assim espreitar para o exterior. Contudo: unverhofft kommt oft," Hoje, dizia-me a maezinha: estou com medo que nio consigas acabar a tempo bordado para o dia de anos do paizinho, de modo que, para poderes trabalhar com toda trangililidade. vai para casa da tua tia Jettee fica ld até a hora do cha; depois o Jens te ird buscar. No fundo, a idéia nao era de modo algum agradavel, porque em casa da tia Jette uma pessoa aborrece-se de morte; mas depois volto sozinha, as nove horas, com © criado. E quando Jens chegar pode muito bem esperar até as dez menos um quarto ¢ entiv, a caminho! Ob! e se cu encontrasse o Senhor meu irmao ou o Senhor August — nao, antes nig, tulyez nao seja tao desojvel como me parece. porque entdo seria acompa- ahada até casa — no, obrigada! a liberdade acima de tudo —, mas se os pudesse ver sem que eles me notassem... E entdo, minha jovenzinha, que vedes afinal, e que vos parece que vejo cu? Primeiro, a pequena Miltze® que vos flea maravilho- samente ¢ esta em perfeita harmonia com a precipitagao do vosso andar. Nao é um chapéu, nem uma boina, antes uma espécie de touca, Mas, estou certo, nao a itazieis esta. manha, ao sair de casa. Foi o criado que vo-la trouxe ou té-la-ieis pe dido emprestada a tia Jette? — Passeais talvez incégnita. — Mas, quando quere- mos observur o que se passa A nossa volta, também nite é conveniente deixar que © véu cubra todo o rosto. Ou talvez no se trate de um véu mas antes de uma renda larga. © escuro nao me permite distingui-lo. Mas seja 0 que for, esconde- vos a parte superior do rosto, O queixo & bastante belo, embara um tudo nada pontiagudo, & boca & pequena © entreabre-se: decerto porque ides demasiado depressa. Os dentes — brancos de neve, E ainda bem que assim é, Os dentes tem uma importancia capital, sio como que um guarda do corpo que se esconde por detrés da sedutora dogura dos liibios. As faces brilham de satide. — Se inclinas- Seis um pouco a cabeca para o lado seria talvez possivel insinuar-me sob esse veu ou renda. Mas cuidado, um olhar assim, de baixo para cima, ¢ mais perigoso que um olhar gerade gus.° & como na esgrima; ¢ que arma havera tao afiada, tio aguda, to brilhante no seu movimento e, gragas a tudo isto, tio Perigosa como um olhar? Marca-se uma quarta alta, come diz o esgrimista, aparaese em segun- da; quanto mais prestes a chegar est 0 ataque, tanto melhor. Quem podera des- srever tal instante? O adversario quase sente o golpe, é tocado. sim, ¢ assim, mas tocado num ponto muito diferente do que esperava. .. Ela avanga valorosamente, sem medo ¢ sem micula. Tende euidado; ai vem alpuém, baixai o véu, ndo deixeis que vos manche o seu olhar profano; nao podeis calcular o que isso 6; ser-vos-ia impossivel, durante muito tempo, olvidar a abomindvel angustia com que ele vos * Dimprevivio acontece muitas vores. Lim alemio no original, (N.GOT.) © Bupécie de tcuca com wéu. Em alema no Original, (N. da T.) * Direto, Em alemiono original, (N, do.) atingiria — no destes por isso, mas eu bem vejo que ele abarcou a situagdo, O criado foi escothido como primeiro alvo — sim, comegais agora a ver as conse. giléncias de passear sozinha com um criado. O vosso perseguidor fé-lo cair. No fondo 6 rideulo, mas que ides agora fazer? Voltar atras para o ajudar a levantar- se nio € possivel, passear com um criado todo sujo é desasradavel, e passear completamente 6 é grave. Atengao, 0 monstro aproxima-se. .. Nao me respon- deis, mas olhai-me ao menos, seri que o meu aspecto vos da alguma razao de temor? Nao cayso impressdo alguma, parego um benévolo homenzinho, vindo de um outro mundo. Nada nas minhas palavras vos pode incomodar, nada vos recor- da a situagao, nfio esboga um unico movimento gue vos possa ofender no mais in- timo aspecto, Estais anda um pouco assustada, ainda nic esquecestes o impulso com que se lancava para vos essa figura unkeimtiche, ? Sentis um pauco de simpa- tia por mim, a minha timidez, a impedir-me de vos olhar de frente, da-vas superio- ridade; isso regozija-vos ¢ empresta-vos seguranga, estari¢is quase tentada a tro- gar-me. Seria quase capaz de apostar que, neste momento, terieis a coragem de me passar o braco por cima dos ombros, s¢ tal pensamento vos passasse pela cabe Ga... Viveis entdo em Stormgade, Cumprimentais-me fria ¢ rapidamente. Sera apenas isto que mereci, cu que ajudei a libertar-vos de todo este problema? Artependeis-vos, voltais atras para agradecer a minha delicadeza, ¢ estendcis-me a mao. — Por que empalidecer? Nao é a minha voz a mesma, ea minha atitude, © meu olhar, no se mantém ainda calmos e trangiiilos? Este aperto de mao? Mas poderé acasa um aperto de mao significar alguma coisa? Sim, muito, minha donzelinha, muito — antes de quinze dias ter-vos-ei explicado tudo, mas até la manter-vos-eis na contradigdo: eu sou um homem benévolo que, como um cava- Iheiro, presta auxilio a uma jovem, ¢ posso pois apertar-vos a mao como homem inofensivamente benévolo, 7 de abril Seja entéo segunda-feira, a uma hora, na Exposi¢éo, Muito bem, terei a honra de 14 estar 4 uma hora menos um quarto. Um pequeno encontro marcado, No sébado tomei enfim uma resolugdo ¢ decidi-me a ir visitar 0 meu amigo Adolph Bruun, quase sempre em viagem. Com esse fim em vista, dirijo-me, por volta das sete horas da tarde, a Vestergade, onde, segundo me tinham dito; ele devia morar. Mas, no terceiro andar, onde cheguei quase sem fGlego. nao 0 conse- gui encontrar. Prestes a descer a escada, os meus ouvidos so aflorados por uma melodiosa voz de mulher que diz, quase num murmiirio: Seja entdo segunda-feira, @uma hora, na Exposi¢de — a essa hora as outray ndo esto, mas bem sabes que me nao atrevo @ receber-te em cusa. O convite nao me era dirigido mas sim a um * Inquistante, Bim alemiio no original. (N. dT.)

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