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_ VIAGEM A PROVINCIA DE GOIAS AUGUSTE DE SAINT-HILAIRE VIAGEM A PROVINCIA DE GOIAS AucusTe pe Samr-Hrraine Nao é a primeira vez que afirmo e nem hé de ser a ultima: o benemérito Saint- Hilaire devia. ser leitura obrigatoria nas escolas, principalmente nas escolas de Minas Gerais e outras Provincias, hoje Estados, por onde passou. Sua prosa é limpida ¢ direta, sua lin- guagem é objetiva e suculenta, guardan- do a dignidade de um escritor auténtico, valorizado pela postura do cientista. Rico manancial de informagio, que nao perdeu a oportunidade, apesar de mais de século e meio que nos separa da elaboracdo de seus relatos, Saint-Hilaire mantém o diapasdo afinado com. as aqui- sigSes da época atual. Vidente, dotado desse sentido do fu- turo que engalana a mente de alguns privilegiados, anteviu, com extraordind- ria clarividéneia, 0 que seria este pais. Assim se exprime na introdugio a esta Viagem 4 Provincia de Goids: “Se alguns exemplares dessas minhas descrigbes re- sistirem ao tempo e 20 esquecimento, dia vird em que geragdes futuras nelas colhe- rao informagées de grande interesse so- bre cssas vastas provincias, transforma- das, talvez, em impérios. E ficarao sur- preendidas ao verificarem que, nos locais onde cidades prosperas e populosas se erguem, havia outrora, apenas, uma ou duas cabanas, pouco diferentes das. cho- cas dos selvagens. E onde o ar vibra com © muido dos martelos ¢ das maquinas mais complicadas, ouviam-se, em outros tem- pos, 0 coaxar de sapos e o cintico dos péssaros. No lugar onde vicejam exten- sas plantagdes de milho, de mandioca, de cana-de-agiicar, de drvores frutiferas, $6 havia terras cobertas de uma vegetagao exuberante, mas imitil. Diante de cam- pos cortados por estradas de ferro, talvez mesmo por veiculos mais possantes do que as nossas atuais locomotivas, sorri- rao os vindouros ao lerem que houve um tempo em que o viajante se julgava feliz -quando podia percorrer, em um dia, qua~ tro ou cinco Iéguas.” Admirdvel prog- néstico! Como este citado, muitos outros existem no correr de sua obra opulenta. 10. aw 12, 13. 44. 6. 16. m1. 18, 19, 20. 21. 22, 23, 24. 25. COLEGAO RECONQUISTA DO BRASIL |. LAGOA SANTA EB A VEGETAGAO DE CERRADOS BRA- SILEIROS — Eugénio Warming ¢ Mario G. Ferri. . A VEGETACAO NO RIO GRANDE DO SUL — ©. A. M. Lindman ¢ Mario G. Ferri, BCOLOGIA: temas e problemas brasileiros — Mério Guima- ries Ferri, . VIAGEM PELAS PROVINCIAS DO RIO DE JANEIRO E MINAS GERAIS — Auguste de Saint-Hilaire. VIAGEM PELO DISTRITO DOS DIAMANTES Fi LITORAL DO BRASIL — Auguste de Saint-Hilaire. . VIAGEM AO ESPIRITO SANTO E RIO DOCE — Auguste de Saint-Hiluire, |. VIAGEM AS NASCENTES DO RIO SAO FRANCISCO — ‘Auguste de Saint-Hilaire. |. VIAGEM A PROVINCIA DE GOIAS — Auguste de Saint- Hil VIAGEM A CURITIBA E SANTA CATARINA — Auguste de Saint-Hilaire. VIAGEM AO RIO GRANDE DO SUL — Auguste de Saint- Hilaire. SEGUNDA VIAGEM DO RIO DE JANEIRO A MINAS GE- BAIS E A SAO PAULO (1822) — Auguste de Saint- filaire. VIAGEM AO BRASIL (1805-1866) — Luiz Agassiz e Bliza- beth Cary Agassiz, VIAGEM AO INTERIOR DO BRASIL — George Gardner. VIAGEM NO INTERIOR DO BRASIL — J. Emanuel Pohl. HISTORIA DO BRASIL — Gaspar Barléu, © SELVAGEM — General Couto de Magalhies. DUAS VIAGENS AO BRASIL — Hans Staden, VIAGEM PELA PROVINCIA DE SAO PAULO — Auguste de Saint-Hilaire, HISTORIA DA MISSAO DOS PADRES CAPUCHINHOS NA ILHA DO MARANHAO — Claude d’Abboville. MEMORIAS PARA A HISTORIA DA CAPITANIA DE SAO VICENTE — Frei Gaspar da Madre de Deus. NOTAS SOBRE 0 RIO DE JANEIRO — John Luceock, OS CADUVEOS — Guido Boggiani. PEREGRINAGAO PELA PROVINCIA DE SAO PAULO — ‘Augusto Emilio Zaluar. CONTRIBUIGOES PARA A HISTORIA DA GUERRA EN- TRE 0 BRASIL E BUENOS AIRES — Por Uma ‘ests: munha Ocular. MEMORIA SOBRE A VIAGEM DO PORTO DE SANTOS A CIDADE DE CUIABA — Luis d’Alincourt, re, VIAGEM A PROVINCIA DE GOIAS 75.0984 FICHA CATALOGRAFICA (Preparada pelo Centro de Catalogagao-na-fonte, Camara Brasileira do Livro, SP) Saint-Hilaire, Auguste de, 1779-1853, Vingem ‘A provincia de Goiiis; tradugio de Regina Regis Junqueira; apresentago de Mario Guimaraes Fer- ri, Belo Horizonte, Ed. ‘Itatiaia; Sao Paulo, Ed. da Universidade de Sio Paulo, 19° ‘lust, (Reconquista do Brasil, v.8) 1. Goids (Estado) — Deserigao e vingens 2, Goidis (Estado) — Vidn social © costomes “1. ‘Titulo. U Série, epp.918.173 -390-098173. Indices para catalogo sistemétic: Estado : Costumes $90.098178 Estado : Deserigio e viagens 918.173 3. Golds : Estado : Vida social 390,098173 Obra publicada com a colaboracio da UNIVERSIDADE DE SAO PAULO bd Reitor: Prof. Dr. Orlando Marques de Paiva EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Presidente: Prof. Dr. Mario Guimaraes Ferri Comissao Editorial Presidente: Prof. Dr. Mario Guimardes Ferri (Instituto de Biociéncias), Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da ‘Cunha (Instituto de Biociéncias), Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Pérsio de Souza Santos (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque Spencer Maciel de Barros (Faculdade de Educacao). COLEQAO RECONQUISTA DO BRASIL Dirigida por MA Guimaraes Fexat Vol. 8 Capa de CLAUDIO MARTINS =~ LIVRARIA ITATIAIA EDITORA LIMITADA BELO HORIZONTE: Rua da Bahia, 902 — Fones: 222-8630 ¢ 221-0832 Ay, Afonso Pena, 766 — Fones: 222-6140 e 2245151 AUGUSTE DE SAINT- HILAIRE _ VIAGEM A PROVINCIA DE GOIAS Traducao de REGINA REGIS JUNQUEIRA Apresentagdo de MArio GuIMARAES FERRI EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO LIVRARIA ITATIAIA EDITORA LTDA. 1975 Direitos de propriedade literdria e artistica da presente edigio da EDITORA ITATIAIA LIMITADA Belo Horizonte — Brasil Impresso no Brasil Printed in Brazil APRESENTAGAO, Quanto mais se conhece a obra de Saint-Hilaire mais cresce a admiragio pelo sabio francés que, na primeira metade do século XIX, visitou demorada- mente nosso Pais. ‘Com efeito, tendo para aqui vindo sob influéncia do Conde de Luxemburgo, em 1816, permaneceu até 1822. Viajou, durante estes scis anos, pelo Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espirito Santo, Goids, Sao Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, Suas viagens, em “lombo de burro” ¢ em canoas, eram extensas, demoradas, cheias de perealgos e, por vezes, de perigo. Como ele mesmo escreve no prefacio desta obra, escrito em Montpellier em 1848, j4 afirmava o grande Chateaubriand que as viagens so uma das fontes da hist6ria, E, no caso de Saint-Hilaire, a palavra deve ser tomada no mais amplo sentido, pois os relatos de suas viagens sfo um farto manancial de informagoes sobre a hist6ria patria, a nossa geografia, etnografia, e nossa Fauna ¢ Flora, em particular, Ora, o botdnico que 1é Saint-Hilaire informa-se sobre o estado da vegetacio nas regides e na época em que as visitou. Conhecendo-se a situacio, atual, pode-se fazer idéia da evolucdo (ou deveria dizer involugio?) histérica, pela qual, através de cerca de um século e meio, passou a flora dessas regides. O mesmo se poderia dizer com relagdo A fauna, aos indios, aos costumes, & arqui- tetura (pode-se chamar de arquitetura o que existia como habitacdes, no inte- rior do Brasil, no tempo em que Saint-Hilaire por ai passou?), & economia, etc. Durante suas viagens Saint-Hilaire fez, como ja se percebe, extensa coleta de material, especialmente botinico © inimeras observacGes de interesse para © conhecimento de nossa Natureza, nossa Hist6ria, nosso povo, seus usos costumes. No que concerne A Botinica, reuniu um herbério de 30.000 espé- cimes que abrangiam 7.000 espécies, das quais foram avaliadas, como até entio desconhecidas, mais de 4.500. ‘Como viera em companhia do zoélogo Delalande, este deveria encarregat-se do material zoolégico. Mas Delalande ficou apenas alguns meses no Brasil ¢ limitou suas coletas nas excursdes proximas do Rio de Janeiro. Retornando a Europa © zodlogo, © proprio Saint-Hilaire encarregou-se de colecionar material zooldgico durante o restante de sua estada no Brasil. Quando retornou ao seu pais, o notével naturalista redigiu indmeros tra- balhos cientificos, dentre eles sobressaindo, como dos mais famosos, o que elaborou com Jussieu e Cambessedés: Flora Brasiliae Meridionalis, publicado em Paris (1824-1833). Muitos relatérios de suas viagens pelo Brasil foram publicados em portu- gués, alguns mais de uma vez, Entre eles publicou-se a Viagem a Provincia de Sao Paulo ¢ Resumo das Viagens ao Brasil, Provincia Cisplatina e Misses do Paraguai, Esta edicio da Livraria Martins Editora é fruto de excelente tradugio de Rubens Borba de Morais que the fez, também, preficio e notas. Em 1972 foi essa publicagio reeditada pela Livraria Martins Editora em colaboragio com a Editora da Universidade de Sio Paulo. wn Esta descrigdo de viagem foi apresentada & Academia Real das Ciéncias, de Franca, O relatério foi feito por Jussieu ¢ subscrito também por Desfontaines, Latreille, Geoffroy de Saint-Hilaire e Brogniart. Foi aprovado e suas conclusdes adotadas pela Academia da qual era Secretério Perpétuo o Barao Cuvier, Conselheiro de Estado ¢ Comandante da Ordem Real da Legido de Honra, espe- cialmente conhecido por sua Teoria das Catéstrofes. Tal relat6rio esta incor- porado & edigio mencionada. Este livro Viagem Provincia de Goids apresenta-se em magnifica tradu- gdo de Regina Regis Junqueira. Com vasta experiéncia no dificil mister de tradutora, ndo é de admirar que tenha feito trabalho primoroso. Lé-se sua tra- dugo como se o relato de Saint-Hilaire tivesse sido escrito originariamente em portugués, Neste relatério hi um Preficio em que o autor condena os estrangeiros que tiram conclusdes apressadas ¢ errOneas de suas observacdes feitas em viagens freqiientemente de pequena duragao. Além disso condena aqueles que pretendem comparar o Brasil com 0 Mundo Europeu, 0 que nao Ihe parece adequado. Jul- gando a Provincia de Minas Gerais a mais civilizada do Pafs, toma-a por termo de comparagio. Afirma, ainda, nesse preficio, que nenhum francés antes dele visitara Minas Gerais, Goids, Sio Paulo, etc. Nos capftulos que seguem, relata Saint-Hilaire o percurso que fez ¢ 0 que observou em: Santo Anténio dos Montes Claros, Corumbé, Montes Pireneus, Meia-Ponte, Jaragué, Ouro Fino, Ferreiro, Vila Boa ou a Cidade de Goiis. Fala sobre 0s indios Caiapés, 0 ouro ¢ os diamantes do Ro Claro, da Volta a Vila Boa, do Inicio da Viagem da Cidade de Goids a Sio Paulo, das Aguas Termais ditas Caldas Novas, Caldas Velhas e Pirapitinga, do Arraial de Santa Cruz, dos Indios Mesticos de Paranafba da Cachoeira de Furnas, do Rio das Velhas ¢ 0 Arraial de Santana, do Arraial de Farinha Podre e da Travessia do Rio Grande, que realizou em 24 de setembro, entrando, entio, na Provincia de Sio Paulo. Como se depreende deste elenco sumério de assuntos abordados, 0 presente relat6rio de Saint-Hilaire é, como todos os de sua lavra, rico em informagies. ‘Apraz-me cumprimentar D. Regina Regis Junqueira por sua feliz tradugio. Como diretor da Série “Reconquista do Brasil”, da qual este livro é parte, tive que fazer algumas intervengées apenas, em matéria cientifica, para maior pre- cisio, Acrescentei algumas notas de rodapé para esclarecer ou atualizar certos assuntos. Desejo felicitar a Editora da Universidade de Sao Paulo ¢ a Livraria Itatiaia Editora, por mais este empreendimento, ¢, especialmente 0 piblico, 0 principal beneficiado por este trabalho. Sao Paulo, abril de 1975. MArto Gurarirs FERRI 12 PREFACIO Confici demasiadamente nas minhas forgas. Quando voltei ao Brasil acha- va-me esgotado, e em breve vi-me obrigado a interromper meus trabalhos. Pra- ticamente quinze anos, que poderia ter dedicado a eles, foram perdidos devido a males cruéis que por trés vezes me acometeram, Em conseqiiéncia, nio deve causar surpresa 0 fato de haver intervalos tio longos entre minhas diferentes publicagoes. Tao logo comecei a me restabelecer de prolongada enfermidade, que ainda desta vez consegui vencer, dediquei-me a redigir o relato de minha viagem a Goids. Procure’ esquecer 0 presente, tio doloroso para mim, e me vi em ima- ginacao sob o belo céu do Brasil, numa época em que, évido de conhecimentos, eu percorria os sertdes desse vasto pais quase tao descuidado do futuro quanto seus prdprios indigenas. Publico hoje este trabalho estimulado por viajantes de todas as nacionali- dades e principalmente pelos brasileiros, melhores jufzes das coisas que Ihes dizem respeito do que os europeus, os quais muitas vezes se surpreendem — forcoso € confessar — por nfo encontrarem num pais ainda em formagio os infinitos recursos que Ihes oferecem suas prdptias patrias. Com redobrado cui- dado ¢ redobrada atencéo, a fim de registrar com exatiddo até os pormenores mais insignificantes, esforcei-me por mostrar que nfo fui indigno da indulgéncia com que me trataram. Quando iniciei minha viagem a Goiés eu contaya com uma grande van- tagem, qual seja a de dispor, por fora das recordagdes de minhas viagens an- teriores, de outros meios de comparacao além dos fornecidos pela Alemanha e a Franga, paises que alcancaram um elevado grau de desenvolvimento através dos esforcos de inumerdveis geracdes. Eu havia nfo somente percorrido 9 litoral do Brasil como também passata quinze meses na regido mais civilizada da Provincia de Minas Gerais, onde tamanha foi a benevoléncia com que me acolheram que acabei por me identificar com os interesses de seus habitantes. Achava-me quase na posicfo de um mineiro que, apés ter terminado os estudos em sua terra, tivesse desejado conhecer também outras partes do Brasil. A Provincia de Minas € uma espécie de padrao, por assim dizer, do qual me sirvo para julgar todas as outras que percorri mais tarde, resultando desse confronto que, ao descrever estas tiltimas, sempre acrescento alguns dados novos, que completam meus re- Intos anteriores. Infelizmente — lamento ter de admiti-lo — a comparagiio nao sera favo- rivel a Goids, infortunada regitio entregue ha longos anos a uma administragio ‘quase sempre imprevidente ¢ com freqiiéncia espoliadora; e eu iria encontrar di ferengas ainda mais marcantes ao comparar a parte oriental de Minas Gerais com a regidio ocidental, que de um modo geral foi poyoada pelo refugo das co- marcas mais antigas, Muitos sero tentados a acreditar que minhas descricdes, ao se referirem a uma época jf tio distante, perderam a sua atualidade. Nao se deve julgar, po- rém, o interior da América segundo os padrdes europeus. Nas regides escassamen- 13 te povoadas as coisas mudam com extrema lentidao. Faltam a cles os elementos que propiciam um progresso rapido, Uma populaco rala, disseminada por vasti- des imensas e entregue & sua prdpria sorte, atormentada por um clima ardente, sem nenhum estimulo e quase nenhuma aspiracio, néo deseja ¢ nio sabe mudar nada. O botanico George Gardner percorreu em 1840 uma pequena parte do sertdo que visitei em 1818 e viu o que eu proprio tinha visto — nada mais. De resto, em meus relatos nfo somente me referi a tempos anteriores as minhas viagens, registrando a historia dos lugares por onde passei, como também mencionei neles épocas mais recentes, citando os autores que anotaram algumas ligeiras modificagdes ocorridas posteriormente. Este livro poder, pois, ser en- carado como um esboco de uma monografia das regides ja descritas por mim. Muitos anos ainda irdo passar antes que se veja, do alto dos Pirencus, algum trago de cultura, e muito tempo iri decorrer até que o S. Francisco seja nave- gado por embarcacdes de maior porte do que as frageis canoas que deslizam sobre suas Aguas. Mas aquelas belas regides desérticas contém os germes de uma grande prosperidade. Tempo vird em que cidades florescentes substituirdo as mise- réveis choupanas que mal me serviam de abrigo, ¢ entio seus habitantes poderio desfrutar de uma vantagem que raramente encontramos na Europa, pois saberio com certeza pelos relatos de alguns viajantes, quais foram as origens ndo apenas de suas cidades mas também dos seus mais insignificantes povoados. “As via- gens” disse Chateaubriand, ‘'sio uma das fontes da hist6ria”.(!) Hoje dispomos de documentos preciosos sobre a histéria do Rio de Janeiro nos despretensiosos ¢ veridicos relatos de Léry, o primeiro francés de certa instrugio que visitou as costas do Brasil.(?) Nenhum outro francés, antes de mim, jamais percorrera Minas Gerais, Goids, S. Paulo, etc. Se alguns exemplares dos meus relatos resisti- rem ao tempo e ao esquecimento, as geragdes futuras talvez encontrem neles informagées de grande interesse sobre essas vastas provincias, provavelmente transformadas, entdo, em verdadeiros impérios. E ficardo surpreendidas ao verifi- carem que, nos locais onde se erguerdo entéo cidades présperas e populosas, havia outrora apenas um ou dois casebres que pouco diferiam das chocas dos selvagens; que onde estardo retinindo nos ares os ruidos dos martelos e das mAquinas mais complexas ouviam-se apenas, em outros tempos, o coaxar de alguns sapos ¢ 0 canto’ dos passaros; que, em lugar das extensas plantacdes de milho, de man- dioca, de cana-de-agticar, e das Arvores frutiferas, o que havia eram terras co- bertas por uma vegetagio exuberante mas inétil. Diante dos campos cortados por estradas de ferro, e talvez mesmo por veiculos mais possantes do que nossas locomotivas de hoje, as geragdes futuras sorririo ao lerem nos livros que houve um tempo em que o viajante podia considerar-se afortunado quando conseguia percorrer, numa jornada, quatro ou cinco léguas. Sempre que me vali de informagoes fornecidas por escritores que me pre- cederam ou me sucederam, tive 0 maximo cuidado em citar-lhes os nomes, & quando os conhecimentos que eu tinha das regides mencionadas por eles nto me permitiam concordar inteiramente com a sua opiniéo procurei sempre deixar bem claros os motivos que me levaram a isso. Um autor brasileiro afirmou(?) que a ciéncia lucraria mais com a retificacdo dos numerosos erros que se acham espalhados em livros sobre a geografia e a etnografia do Brasil do que com a publicagto de dados inéditos. Nao podemos deixar de concordar com essa opinido quando vemos inclufdas em obras clis- sicas as palavras de desprezo que o inglés Mawe escreveu sobre o Brasil desde que este pais deixou de ser uma colénia de Portugal. Impus-me, pois, a penosa (1) Pretieto do Viagem & América. (2) 0 primetro trancés nfo fol Léry, mos André Thevet, com a obra Ler singularités de ta france Antaretique, que é de 1558. 0 livre de Léry é de 1578. 8) “Vide Méverus Brasiliense: 1843 ‘4 1845: Rio do Junciro. 14 tarefa de assinalar os ertos que me pareceram indiscutiveis nos livros referentes as regides que descrevo aqui, esforcando-me também por corrigir os que escapa- ram a mim préprio. Até as obras mais perfeitas esto sujeitas a falhas. E quando homens tio rigidamente amigos da verdade como 0 Abade Manuel Aires de Ca- sal, 0 Monsenhor José de Souza Pizarro € Araujo, 0 Dr. Pohl e o General Rai- mundo José da Cunha Matos também se enganam as vezes, quem poderia gabar- -se de jamais ter cometido erros? Por forga das observagées criticas feitas por mim, visando a alcancar o fim a que me propunha, este livro apresenta um mimero talvez excessivo de notas, cuja leitura, aliada A do texto, sera sem diivida cansativa em alguns pontos. E? aconselhavel, pois, que o leitor deixe de lado as notas, para Ié-las ao fim de cada capitulo, A fim de facilitar a consulta, tive o cuidado de indicar as notas de cri- tica no quadro geral, sob o titulo de Retificagoes. © General Raimundo José da Cunha Matos frisou a necessidade de se con- servar a nomenclatura jé consagrada pelos habitantes do Brasil.* Se cada viajante se achasse no direito de escrever como Ihe aprouvesse os nomes das lncalidades ¢ regides por onde passasse, em breve reinaria na geografia uma confusao inex- tricdvel. Fiz, pois, todo o possivel para nio alterar em nada a nomenclatura geo- grdfica, esforcando-me igualmente por dar a grafia correta de nomes de pessoas. plantas e animais, Existe uma infinidade de arraiais, fazendas e rios no Brasil cujos nomes — estou pronto a reconhecer — sio escritos de varias manciras diferentes, mesmo por pessoas instrufdas. Sempre que isso ocorria eu sé me aventurava a registré-los depois de consultar as mais altas autoridades no assunto, Meus conhecimentos de etimologia também me foram bastante iiteis, 2 além do mais decidi deixar-me guiar sempre pelos usos e pelo bom senso. E’ bem possivel que, apesar dos esforgos que fiz para consultar todas as obras publicadas sobre o Brasil, em varias linguas, muitas delas me tenham esca- pado, Infelizmente ainda nao existe na Franga uma agéncia onde possam ser encontrados os livros publicados na América, ¢ nio fora a extrema prestimosi- dade do Sr. Araujo Ribeiro, Embaixador do Brasil em Paris, do Dr. Sigaud, mé- dico do Imperador D. Pedro Il, de Ferdinand Denis, o homem que, mais do que hinguém na Europa, conhece o que ja foi escrito sobre a América portuguesa, ¢, enfim, do meu jovem amigo Pedro d’Alcintara Lisboa, adido da legacio brasi- leira, eu no teria tido acesso a varias obras de grande importincia impressas no Rio de Janeiro, em Pernambuco ¢ em S. Paulo. Que eles recebam aqui toda a minha gratidao. Tive ocasido de indicar varias vezes, nesta obra, diferentes quantidades em pesos e medidas brasileiras. Ao lado dessas indicagées, porém, serio encontradas as cifras equivalentes em nosso sistema métrico. Para a conversao dos valores monetétios, sempre tomei por base © par, ou seja, 160 réis por 1 franco. Pelo quadro sinéptico publicado por Horace Say em seu excelente trabalho intitulado Histéria das Relagdes Comerciais Entre a Franca e o Brasil, é facil verificar que cra essa, & época de minha viagem, a cotagao do dinheiro brasileiro, Haverd sempre uma grande lacuna na Geografia botanica da Europa. Mal conseguimos fazer algumas conjecturas provaveis sobre a natureza das plantas que hoje foram substituidas por nossos campos de cereais, nossas vinhas © nossas plantagoes de oliveiras. Fiz 0 possivel para evitar que semelhante falha ocorresse na hist6ria natural do Brasil, procurando registrar a topografia botinica das varias rregides que visitei. Dessa forma, no dia em que suas terras forem invadidas pelas culturas, a sua vegetagio primitiva ndo ficard esquecida Gostaria de ter feito um trabalho mais completo. Nas primeiras paginas desta obra anunciei que, como foi feito no meu livro Viagem Pelo Distrito dos + Hinerario, 15 Diamantes e litoral do Brasil, uma série de nfimeros indicaria ao leitor uma des- crigdo ordenada das plantas caracteristicas de cada regiao. Mas o relato de mi- tha viagem jé estava terminado ¢ eu me vi forcado, por motivos de saiide, a deixar Paris ¢ ir passar o inverno no sul da Franca, Para que eu pudesse fazer a des- cricdo de certas plantas, seria preciso que adiasse por um ano a publicagdo desta obra. Na minha idade, e com a satide arruinada, isso seria arriscado. A descrigao das plantas tipicas de Goids seré encontrada — assim espero — no final do livro que estou escrevendo sobre S. Paulo e Santa Catarina, Meu amigo José Feliciano Fernandes Pinheiro, Bario de S. Leopoldo, um escritor que prestou grandes servicos a seu pais e cuja perda todos os brasi- leiros lamentaram, pediu-me insistentemente, h4 ainda bem pouco tempo, que publicasse 0 relato de minha viagem Provineia do Rio Grande de S. Pedro do Sul, onde o comheci ¢ cuja hisidria ele soube tracar tio fielmente, Se me resta- rem ainda alguns anos de vida, considerarei como um dever satisfazer-lhe a vontade. O apoio que o Ministro da Instrucio Publica vem de dar a esta obra cons- titui outro forte motivo para que eu redobre os meus esforgos ¢ dé continuagao aos meus trabalhos. Mas sou forgado a reconhecer que, aconteca 0 que acon- tecer, a maior parte das pesquisas que fiz sobre o Brasil ficaré perdida, e quase me sinto inclinado a exclamar, como um célebre escritor que, também ele, vivew muitos anos em longinquos paises: “Felizes os que chegaram ao término de sua viagem sem deixarem 0 porto, e que ndo palmilharam como eu, inutilmente, a terra.”* + chatesubriand, 16 SUMARIO Carfruro I — IN{CIO DA VIAGEM A PROVINCIA DE GOIAS, 0 ARRAIAL. DE SANTA LUZIA . © autor atravessa a Serra do Corumbé e do Tocantins, 21. Registro dos Arrependidos, 21, Corpo de fanciondrios do Registro, 21. Sua finalidade, 21. Enorme atraso no pagamento dos soldos dos militares do posto, 22. Fatos que mostram quio pouco se viaja_na regiao, 22, Planalto de nove léguas, 22. Taipa, 22. Fazenda do Riacho Frio, 23. 0 eérrego do mesmo nome, 23, Morro do Aleerim, 28. Sitio de Garapa, 38. Carneiros; tecidos de la, 23. Chegada ao Azraial de Santa Luzia, 24, Pestas famosas na época de Pentecostos, 24. Como as mulheres andam’na rua, 24. Retrato de Joio Teixeira Alvarez, Vigdrio de Santa Luria, 24. Extensio da pardquia cuja sede é esse Arraial, 25, Localizagio de Santa Luzia, 26. Praca Pablica, 25. Igrojas, 25. Ruas ¢ casas, 25. Histéria do arraial; abandono das minas; a agricultura, fonte de renda de seus habitantes; a triste situagdo da regio, 26. 8. Joao Evan- gelista, chacara do Vigario de Santa Luzia, 28. Experiéncias com certos pos de cultura, 28. Projetos do proprietério, 25. Cariruto IT — SANTO ANTONIO DOS MONTES CLAROS. 0 ARRAIAL DE CORUMBA. OS MONTES PIRENEUS. 0 ARRAIAL DE MEIA-PONTE. As torras situadas depois de S. Joio Evangelista, 29, As queimadas, 29, Causa da floragio prematura das plantas da regiao, 30. Fazenda de Ponte Alte, 80. Terras situadas depois dessa fazenda, 30. Uma Vellozia notivel, 20. Morro do Tigao, 30. 0 Arraial de Santo Anténio dos Montes Claros, 80. Sua Capela, 30. Sua tinica casa, 30. Terras situadas depois de Santo Antonio, 31. Ribeirao dos Macacos, 31. Miséria, 31. A mancira como saldou sua divida um comprador, $1. Terras adiante de Macacos, 51. A palmeira denominada indaié, BL, Vegetacio, 31. Uma dormida ao ar livre, 82, Comprimento das Iéguas, 22 0 Arraial de Gorumbé, 32, Visita de dois sacerdotes, 32. Excursio aos Montes Pireneus, 38. Descricéo pormenorizada desses morros, 83. 0 autor se perde ¢ volta a Corumbé, 33. Terras situadas entre Corumbi eo Arraial de Mein. Ponte, 34. 0 arraial, 95. Visita ao comandante e ao Vigirio, 36. Localizagio de ‘Meia-Ponte, 96. A pardquia da qual arraial 6 sede, 36. Suas casas, suas Tuas, suas igrejas, 36, Panorama que se avista da praca piblica, 96, Bscolas, 37, Hospfcio dos Irmios da Ordem Terecira de S. Francisco, 37. Salubridade, 37, Historia do Arraial de Meia-Ponte, 37. Seus habitantes atuais, em sua majoria agricultores, 37. O fumo e 0 toucinho como produtos. de exporta- do, 87. Cultura do algodociro, 37. Uvas excelentes, 38, Mendicancia, 38, Calor excessivo, 38. 0 Abade Luis de Camargo Fleury, 38. Carfruto III — OS ARRAIAIS DE JARAGUA, OURO FINO E FERREIRO Terras situadas adiante de Meia-Ponte, 41, Fazenda de Santo Anténio, 41. Diseussiio com o seu proprietirio, 42.'0 interior das casas é interdio estranhos, 42. poca em que viajam as tropas de burros, 42, Regido situada adiante de Santo Ant6nio, 42. Grandes Matas, 42. 0 Arraial do Corrego de Jaragué, 42, Sua localizaeio, sua histéria, suas minas, 43. Cultura das terras circunvizinhas, 48. Doengas, 43. Caso médico interessante, 431. Serra de Jaragud; sua vegetaciio, 48. Retrato do capelio de Jaragud, 43. Os mulatos, 44, Polidez dos habitantes do interior no trato com forasteiros, 44. Igreja de Jaragué, 44. Singular costume das mulhores, 44, Bom gosto © habilidade dos goianos, 44. 0 Mato Grosso, 45. A regifio se torna menos deserta nas proximidades da capital da provineia, 45, Rancho da Golabeira, 45. Encon: 21 29 41 17 Carfroxe IV — VILA BOA, OU_A CIDADE DE GOIAS .. Carfruxo V — OS INDIOS COIAPOS Carfruio VI — 0 OURO E OS DIAMANTES DO RIO CLARO 18 tro com uma tropa, 46. Rancho das Areias, 46. Seus moradores, 46. Dissa- bores causados'ao autor pelo seu arriciro, 46. Os arrieiros do Brasil, 46, ‘Tédio eausad® pela companhia constante das mesmas pessoas nas viagens, 46. Sitio da. Lnje, 46. 0 missiondrio eapuchinho, 46, Os ladrdes nao constituem uma, ameaga;, 48. Cortesia dos brasileiros do interior, 47. Mandinga, 47. A festa de 8. Jodo, 47. 0 Rio Uruguai, 47. 0 Arraial de Ouro Fino,d8. Seu rancho; sua localizagie; sua pobreza, 48. Estradas ruins, 48, Pouso Alto, 48. © Arrainl de Ferreiro, 48, Recomendagoes do Coronel Francisco Leite, 48, Historia de Vila Boa, 49. Vantagens ¢ desvantagens de sua localizagio, 60. B banhada pelo Rio Vermelho; suas pontes, 50. Tgrejns, 50. Ruas e easas, 50 Pragas Pblieas, 51, Palieio do Governador, 51. Casa da Contadoria, 51. Cimara Municipal, 51. Casa de fundigio do ouro, 51. Populagio, 51. Doen: gas} papeira, 51, Auséncia de recursos médicos, 52. Ocupagio dos habitantes Boa, 62. Lojas, 52. Artesios, 52. Alimentagio, 62. Falta de recursos para o desenvoivimento da sociabilidade, 63. Os casamentos sio raros, 53. ‘As razées disso, 58, Maus exemplos dados ao povo por aqueles que deveriam orlenté-lo, esclateed-10, 68. As mulheres de Golds, 54. 0 gosto pela eachaga, 54. Falta de eserdpulos, 64. Um jantar no paldcio, 55. Desericio do interior do prédio, 55, Retrato ¢ dados sobre a vida do Capitio-geral Fernando Delgado Freire de Casto, $5, Retrato de Raimondo Nonato Hineinto, 86. Deserigio nario, 57. de sua casa, 56. 0 Padre Joseph, mi Saida de Vila Boa, 59. Terras situadas depois dessa cidade, 69. Dormida ar livre no lugar-denominado As Areins, 60. Carrapatos, 60. Terras situadas depois de Areias, 60.Uma palmeira de folhas em leque, 60. Gorgu- Tho, 60, A Serra Dourada, 60. A drvore-do-papel, 61. Terras situadas adiante de Gorgulho, 61. Aldeia de S. José, 62. Sua historia, 62. Deserigio da aldeia, 62. Regime a que estio submetidos os fndios Coiapés, 63. Comparacao entre esse regime e-o adotado pelos jesuitas com relacio aos indios do Visita aos Coispds em suas plantagSes, 63. Suas casas; suas dangas; seus nomes, sua lingua; vocabuldrio; suas caracteristioas, 64. Sombrio futuro Ga Aldeia de S. José, 69. Doencas dos Coiapés, 69. Sua instrugao religiosa, 89. Observagdes sobre os deveres de seu vigario, 70. Sua indistria, nas fases primitivas e semicivilizads, 70. Como sdo feitas as cestas que eles chamam de jucunus, 70. O que, entre eles, substitui os leitos, 70, Cabo as mulheres earregar os fardos, 70. Como cozinham elas a carne, 71. Bebida forie, 71. Costumes adotados por oeasiao das mortes, nascimentos ¢ easn- mentos, 71. A festa do touro, 71. Visita a Dona Damiana, 71. Partida de S, José, 73. A Fazenda @’E] Rei, 73. Seu gado, ¢ 0 fim a que se destina, 79. Um indio Xavante, 74. Idéia geral das terras que se estendem desde a Fazenda d'El Rei até o Rio dos Pildes, 74. Dormida ao relento em ‘Tapera, 75. A Aldola Maria, 75. Pouso ao relento & beira do Rio Fartura, 76. Carrapatos, 76. Noites frias, 70. Dormida ao ar livre em Porco Morto, 76. Jornada tediosa, 76. A Torre de Babel, 77. Pastos queimados, 77. Pousada & beira do Rio dos Pilées, 77. Dados sobre esse rio, 77. Consideragoes sobre ‘© minhocdo dos goianos, 78 O lugarejo de Piloes, 79. Sua localizagio & beira do Rio Claro, 79, Stas casas, sun igreja, 80. Sua histéria ¢ a da explo- ragio dos diamantes do Rio Claro, 80. Seus habitantes se ocupam unicamente com a exploragio do ouro e dos diamantes, 81. Vantagens que teriam em cultivar a terra, 81. Jéias de ouro das mulheres, 81. Cagadores némades de ouro e de diamantes, 81. Os trés processos de extragio de ouro e de diamantes do Rio Claro, 82, Os eseravos dos diamantes, 82. O destacamento militar acantonado no lugarejo de Pilées, 82. Facilidade que tém os contra- bandistas © eriminosos de eseapar ao controle da lei, 83. Meu pequeno diamante, 88. Informagdes sobre o Rio Claro, 83. Insetos daninhos, 84. Initil tentativa de formar uma colegio de peixes, 84. 49 58 8 Capfruro VII — VOLTA A VILA BOA see 85 © autor retorna a Vila Boa pelo caminho direto, 85. Firmiano adoece a0 comer mel silvestre, 86. Informagoes gerais sobre a viagem do Rio dos Piles a Vila Boa, 86. Como se reconhecem 08 locais onde os tropeizos faze pouso quando nfo ha habitagies nas proximidades, 87. Noite passada ao ar livre em Mamoviros, 87. Torras situadas entre Mamoeiros ¢ 0 Rancho do Guarda-Mor, 87. Rastros de onea, 88. O Rancho, 88. Terras situadas depois dele, 88. Vegetacio singular, 88. Pousada ao ar livre em local pitoresco, 88. Conversa com Firmiano sobre o seu piolho-gigante, 89. Fazenda do Jacu, 89, As terras despovoadas nas vizinhangas de Vila Boa, 90. A razio disso, 90. Vista que se descortina nos arredores da cidade, 90. Chegada, 90. 0 gover- nador da provineia finge nao aereditar no contrabando de diamantes do Rio Claro, 91. Visita a um missiondrio, 91. 0 esforgo feito para manté-lo em Goiis contra sua vontade, 91. 0 Abade Luis Antonio da Silva e Sousa, 91, Método de clarificagio da cera indigena, $1. 0 Conde da Barca, 91, Temperatura, 92. Deserigio das queimadas dos ‘pastos, 92. Carfruto VIII — INfCIO DA VIAGEM DA CIDADE DE GOIAS A S. PAULO. Q|MATO GROSSO. UMA FAZENDA MODELO. 0 ARRAIAL DE BOM Dados gerais sobre a viagem de Golds a S. Paulo, 98. 0 autor passa por outro eaminho para ir de Vila Boa a Meia-Ponte, 94. Terras situadas depois de Areias, 94. Sitio dos Coqueiros, 95. A palmcira macatba, 95. Terras situadas depois de Coquetros, 95. Franca, 95. Deserigdo geral do Mato Gros- 0. 95. Monjolinho, 96. As Cavefras, 96. Temperatura, 96. A festa de Pente- costes, 96. Lagoa Grande, 97. A seca, 97. Sitio de Gongalo Marques, 97. Um bando'de ciganos, 97. A fazenda de Joaquim Alves de Oliveira, 97. Retrato do seu proprietario, 98. Descri¢io de sua casa, 98, Como ele trata seus eseravos, 98, O engenho-de-agicar, 99. As méquinas de descarocar 0 algodao e de ralar mandioca, 99. Excelente sistema de cultura, 99. Bscoamento dos produtos da terras, 99, Exportagio do algodio, 100. A absurda idéia de uma moeda pro- vineial, 160. O autor deixa a fazenda de Joaquim Alves; 100. Descrigio geral da regio situada entre Meia-Ponte ¢ 0 Arraial de Bom Fim, 100. Sitio das Furnas, 101, Negociagdes com a dona da easa, 101. 0 paiol, 101. Regio adiante de Furnas, 101. Sitio da Forquilha, 101, Exibigto de pra: taria, 102. As terras depois da Forquilha, 102, Fazenda das Antas, 102. Comerciantes de Araxé, 102. O missiondrio, 102, As terras depois da fazenda das Antas, 102, Mudanca de temperatura, 103, O lugarejo de Piracanjuba, 103. As terras mais adiante, 103. 0 Arraial de Bom Fim, 108, Sua localiza Go, 103, Suas ruas, sua praga, sua igreja, suas casas, 104’ Suas jazidas, 104. Cultura das terras, 104. Facil escoamento para os produtos da terra, 104. Poeira vermelha, 104. A festa de N.S“ da Abadia, 105, Cariruto IX — AS AGUAS TERMAIS DITAS CALDAS NOVAS, CALDAS VELHAS E CALDAS DE PIRAPITINGA . ~ 107 Deserigio geral da vingem de Bom Fim a Caldas, 107. Sitio do Pari, 108. Exemplo de longevidade, 108. Resultado do eruzamento da raga branea com negra, 108, Uma queimada, 108, Sitio de Joaquim Dias, 108, Habitagdes quase sempre em grupos, 108,'Sitio de Gregorio Nunes, 109, Um anciéio, 109, Os homens de ontem e de hoje, 109. Arvores que florescem antes de ter folhas, 109. Sitio de Francisco Alves, 110. Habitagdea que indicam apenas ‘a miséria, 110. Costumes dos habitantes do lugar, 110. Terras situadas depois de Francisco Alves, 110. Insetos, passaros, mamiferos, 110. Sapezal, 110, Chegada a Caldas Novas, 110. Boa acolhida, 111, Excursio a Caldas Volhas, 111. A Serra das Caldas, 111. O Ribeirdo'de Agua Quente, 112. As trés principais fontes de égua mineral, 112. Historia de Caldas Velhas, 112. A verdadeira nascente do Ribeirio de Agua Quente, 112. 0 autor sobe a Serra das Caldas, 118. Deserigio de seu cume, 113, Descrigdo de Caldas Novas, 113, 0 Cérrego das Caldas, 114. Calor, 114. Terrenos auriferos, 114. Caldas de Pirapitinga, 114. Regresso, 115. A festa de S. Luis, 115. Chegada a Santa Cruz, 115. 19 Carfruvo — X 0 ARRAIAL DE SANTA CRUZ. UMA PENOSA CAMINHADA. Histéria do Arraial de Santa Cruz de Goids, 117. Seus atunis habitentes, 117. Sua miséria, 118. Sua localizacio, 118, Suas jazidas, 118. Suas ruas, casas ¢ igrejas, 118. Limites do julgado de que Santa Cruz ¢ sede, 118. Populagio, 118. Sitio Novo, 119, Terras situadas entre essa. propriedade e o Rio Corum: 4, 119. Esse rio, 119. Uma tropa de burros, 120. Sitio de Pedro da Rocha, 120, Algumas malas ¢ um burro, 120. Descrigdo geral da regifio situada entre 0 Corumba ¢ 0 Paranatba, 120, Sitio da Posse, 120, Emigrantes gera- listas, 121. Condigdes atmosférieas, 121. © Brago do Verfesimo; seu rancho, 121, 0 Sitio do Verissimo, 121. Calor, 121. Desconfortos, 121. Uma jornada fatigante, 122. 0 Sitio do Ribeirdo, 122, Parada desngradivel, 122. Fertili- dade, 122, Dificaldade de escoamento dos produtos da terra, 122, Mosquitos perniciosos, 122. José Mariano, 122. 0 Sitio do Rincho, 122. Falta de meios de instrugio e de assisténcin religiosa para os habitantes da regits, 122. Fazenda dos Casados, 129. Incéndio na mata, 124. cariruto XI — AINDA A PROVINCIA DE MINAS. OS {NDIOS MESTIGOS DO PARANAIBA ... © Paranafba, limite da Provincia de Golds, 127. Dados sobre esse rio, 127. A travessia, no’ Porto Real do Paranafba, 128, Soidados minciros, 128, Distrito privilegiado coneedido aos indios mestigos, 128. Mosquitos irritantes, 128. A Aldeia do Rio des Pedras, 128. Sua localizacio, suas casas, 129. Deserigio dos fndios que @ habitam, 129. Seu capitio, sua historia, seus’ privilégios, 129, A agriculturs, sua principal ocupago, 131. Bscoamento dos produtos de suas terras, 181. Auséneia absoluta de assisténcie espiritual e de meios de instru. gio, 181. 0 vocabuldrio dos indios, comparado com o da lingua geral e 0 diale- to de S. Pedro dos {ndios; ortografia; prontincia; consideracies sobre as mu- dangas sofrida pela lingua geral, 182. Aldeia da Estiva, 134. Sun localizagio, sua historia, 134. Dados sobre seus habitantes, 184. As nuvens de mosquitos a3 margens do Rio da Estiva, 195. A ebandonada Aldein de Pisarrio, 135. A Aldeia da Boa Vista, 135.'Seus habitantes, 135. Uma festa, 195 Reflexses sobre a maneira como os homens de nossa’ raga se portam ‘om relagio aos fndios, 196, A felicidade dos indios mestigos do Paranaiba, 136. Vantagens da mistura de ragas, 196, Resultado dessis misturas, 196, Por que a antro- pologia uma cifnein ainda quase ignorads, 187. Carfruto XII — A CACHOBIRA DE FURNAS. 0 RIO DAS VELHAS E A 20 ALDEIA DE SANTANA. 0 ARRAIAL DE FARINHA PODRE, TRA- VESSIA DO RIO GRANDE A Fazenda das Furnas; a cachocira situada nas vizinhangas, 199. Mosquitos, 140, Poeira vermelha, 141. 0 Rio das Velhas, 141, Destacumento acantonade fis margens desso rio, 141. Direitos alfendegarios, 141. Ordem dada ao coman- dante do destacamento para deixar a regio; conseqtiéncias dessa ordem, 142. Um tirano em pequena eseala, 142. Aldeia de Santana; sua localizacio, casas, sua historia, 143. Retrato de alguns indios anclios, 143. A apatia dos indios, 148. Dona Maria Rosa, 143. Dificuldade que encontra o autor para anotar algumas palavras da lingua dos Chicriabis, 144. 0 seu voeabulério, 145. Um dialeto altamente sistematizado, 146, Manciras de prontneia que caracterizam a raga americana, 146. Deserigdo de uma paisagem, 146, Tra. vessia do Rio das Velhas, 147, Terras situadas do outro lado do rio, 147. Sitio da Rocinha, 147, Mudangas de domicilio, 148, Ldéias religiosas de Mareelino, 148. Dormida ao relento & beira do Uberava Verdadeira, 148. Um anclao, 148. Uma tropa, 149, Pendor dos brasileires para 0 comércio, 149, Dias extremamente quentes sucedendo.se a noites frins, 149, Tijuco, 149. Inconvenientes dos ranchos, 150, Lanhoso, 150. Aspecto da regiio situada depois desse lugar, 150. 0 Arraial de Farinha Podre, 150, Sua localizagio, suas easas, sua igreja, sua hist6ria, 150. Terras vizinhas muito favoravels & cultura ¢ & criagto de animais, 151. Perspectivas futuras, 151. José Ma- iano adoece, 161. 0 autor é atormentado pelos bichos-de-pé, 152. Os agricul. tores de Farinha Podre, 152, Terras situadas depois desse arraial, 152. Guarda da Posse, 152. Remédios regionais, 152. A aprazivel regifo situada depois de Posse, 153, 0 Rio Grande, 153. Suas margens, sua insalubridade, 158. Como 6 feito a sun travessia, 164. 0 autor entra na Provincia de Sia auto, 154. 17 11 139 CAPITULO 1 INICIO DA VIAGEM A PROVINCIA DE GOIAS. O ARRAIAL DE SANTA LUZIA © autor atraveesa « Serra do Corumbé ¢ do Tocantins, Registro dos Arre- pendidos, Corpo de funciondrios do Registro. Sua finalidade, Enorme atraco no pagamento do soldo doe militarce do posto. Fatos que mostram quao potieo se viaja na regido. Planalto de nove léguas, Taipa, Fazenda do Riacko Frio. 0 cérrego do mesmo nome. Morro do Alecrim, Sitio de Garapa. Car- neires; tecides de Ud. Chegada ao Arraial de Santa Luzia, Festas famosas na época de Pentecostes. Como as mulheres andam. na rua, Retvato de Jodo Teixeira Alvarez, vigdrio de Santa Lucia, Eztensdo da pardquia euja sede ease arraial, Localizagdo de Santa Luzia, Praca Piiblica. Iprejas, Ruas e casas, Histéria do arraial; abandono das minas; a apricultura, forte de renda de seus habitantes; a triste situacdo da. regido. 8. Joao Evangelista, chécara do Vigdrio de Santa Lucia. Experiéncia com certos tipos de cultura. Projotes do proprietario, Depois de ter seguido por um planalto que encima a Serra do S. Francisco © do Paraiba, um pouco além de Paracatu, desci o morro para chegar ao Regis- tro dos Arrependidos, no limite de Minas com Goifs. Ao entrar numa nova provincia eu ia também atravessar outro divisor de 4guas, a Serra do Corumba e do Tocantins, que jé mencionei em outro relato (Viagem ds Nascentes do S. Francisco) ¢ que forma um Angulo com a Serra do §. Francisco e do Paranaiba, A casa do registro, situada nas proximidades da jungio das duas cadeias, 6 bastante espagosa e de um s6 andar. Compie-se, d mancira brasileira, de uma construgdo central e duas alas pequenas, ligadas entre si por uma varanda, que é coberta pelo prolongamento do telhado.(*) Diante da casa hé um rancho bastante amplo e aberto de todos os lados, como os que se encontram na estrada do Rio de Janeiro a Minas. & af que os viajantes e 0s tropeiros se abrigam. ‘A guamigio do registro compde-se unicamente (1819) de um alferes, que 6 0 comandante, e de um soldado — ambos pertencentes 4 Companhia de Dragies —, de um pedestre © de um fiel. Todos os que vém do Rio de Janeiro com mercadorias recebem uma guia no registro de Matias Barbosa(?) © a apresentam af. Os fardos sio pesados a fim de se verificar se nada thes fot subtraido, e as taxas sio pagas em Vila Boa ou em qualquer outro posto da provincia, Como garantia de que os viajantes que vém de Goifis nfo trazem diamantes ou ouro em pé, eles so também revistados no Registro dos Arre- pendidos, o que é uma formalidade inttil, pois os contrabandistas poderfio escapar {acilmente desviando-se uns poucos metros do posto para entrarem na provincia. As mercadorias que, oriundas do Rio de Janeiro, tém in mente Minas como seu destino mas que, por uma razo ou outra, sio mais tarde enviadas a Goids, tornam a pagar as taxas correspondentes do Registro dos Arrependidos, embora j4 o tivessem feito a entrada de Minas. (2) Viozem petas Provtnetas do Ro, de Janctro, ete. G) Ovegacto de Atnitas Barbosa ¢ tims poste fiscal sftuado ua estrada que Usa o Rio de Janeiro aban, ab tronic entre as Gund proviscian “Viagem plan ‘Provincas do. Ato’ de janeiro, 2 Ao chegar ao Registro apresentei minha carta-régia a0 comandante, que nfo revistou minha bagagem mas, por outro lado, ndo me ofereceu um lugar na sua varanda, deixando que cu me fosse alojar humildemente no rancho dos tropeiros, onde passei a noite atormentado por ferozes pulgas. No dia seguinte, pela manha, ele entregou-me uma carta para o gover nador da provincia ¢ me pediu que apoiasse o pedido que nela fazia, Havia trés anos que aquele homem ja idoso no recebia o seu soldo, © mesmo acon- tecendo com o soldado ¢ o pedestre, e ele rogava ao general que nao deixasse morrer de fome a ele ¢ a seus comandados, Antes de minha partida (28 de maio) ele anotou o meu nome no seu registro. Lancei um rapido olhar ao livro e verifiquei que desde o dia 19 de fevereiro néo havia entrado ninguém na Provincia de Goids, e no entanto era aquela estrada que fazia a ligagio com o Rio de Janeiro e com grande parte da Provincia de Minas (1819). Depois de ter deixado o Registro dos Arrependidos, segui pela Serra do Corumbé e do Tocantins, mais ou menos na diregao do Leste, para ir a Vila Boa, capital da Provincia, depois de passar pelos arraiais de Santa Luzia © Meia-Ponte.(#) ‘Apés subir a serra por alguns instantes, achei-me num planalto imenso, deserto e bastante regular, coberto ora de pastagens naturais salpicadas de 4rvores raquiticas, ora exclusivamente de gramineas, de algumas outras ervas e de subarbustos, Quanto as drvores, registrarei unicamente um Solanum, de frutos grandes como macs, a que dio o nome de fruta-de-lobo (Solanum Iycocarpum, Aug. de S, Hil.), e vérias Apocindceas, entre as quais a que é usada na regido como purgativo e € chamada tiboma (Plumeria drastica, Mart.) Todas as plantas, ressecadas pelo ardor do sol, tinham uma colora- gio amarela ou cinza, que afligia o olhar. J4 no se viam mais flores, © 0 aspecto da regio fazia lembrar Beauce logo apés a época da colheita, Unica- mente 0 clegante ¢ altivo buriti, elevando-se do fundo dos brejos, desfazia essa ilustio. Todo mundo afirma que hé nesse planalto um grande nimero de animais selvagens, mas que nessa época do ano eles se escondem nas grotas, onde o capim ainda se mantém fresco. Os pdssaros eram também raros até 0 planalto, quando por ali passei, pois meus acompanhantes cacaram durante um dia inteiro e conseguiram matar apenas trés. Percorri nove léguas em dois dias nesse vasto planalto, mas nao sei dizer se foi no sentido de seu comprimento ou de sua largura. ‘Ao fim do primeiro dia de viagem parei num sitio denominado Taipa ow Sitio Novo, situado numa baixada pantanosa, na orla de um bosque cor- tado por um Ttiacho, Esse sitio, que abrigava duas ow trés familias, compu- nha-se de algumas casinhas feitas de barro cinzento, umas cobertas de palha, outras de folhas de buriti (1819). Nenhuma delas tinha janela, e as portas, muito frégeis, fazendo lembrar as nossas treligas, eram feitas com folhas de buriti dispostas verticalmente ¢ ligadas umas as outras com cipé. Cansado das longas e constantes caminhadas, permaneci um dia em Taipa para repousar e pr em ordem as minhas colecSes. Para isso, porém, teria sido preciso que dispusesse de um lugar mais trangiiilo, Eu compartilhava com duas turmas de tropeiros um rancho aberto de todos os lados, e durante todo fo tempo em que me ocupei com as minhas plantas fui particularmente impor- (2) Iinesirlo aproximado desde © Registro dos Arrependidos até 0 Arritsl de Sante Lurk Do Registro até Taipa (habltseto) _...... 4 leeyes Bo Twipa nté'a Fazenda do miseno Frio "<1. 3° ‘Bo Rlatho Pro até o sitio da Garopa 0.12 Bo Gurapa nié Senta Luglio sescrvsesecsics @ is * 1 tunado por um vento muito forte, que vinha soprando no planalto havia varios dias. Desci a serra no dia seguinte. Depois de percorridas cerca de cinco Iéguas © terreno comeca a mostrar um certo declive, mas um pouco antes jd se torna eascalhento ¢ de um tom vermelho-escuro, Arvores raquiticas ¢ de folhagem variada, com seus ramos entrelagando-se no alto, estreitam o caminho que vai serpeando entre elas, lembrando as aléias de um jardim inglés. Depois de descer do planalto por uma encosta cascalhenta e bastante ingreme segui por um terreno ainda montanhoso e logo depois cheguei a uma fazenda aprazivelmente situada & beira do Riacho Frio, que é orlado de drvores. Foi ali que parei. A Fazenda do Riacho Frio ¢ bastante extensa para os padres da regido. Nao obstante, a casa do proprietirio, coberta de palha, difere pouco da dos escravos. Na época era propriedade comum de algumas mogas ¢ de um homem ainda bastante jovem. Meu arrieito, José Mariano, vendeu as mocas algumas bugigangas, mas conforme 0 costume elas nfo vieram & nossa presenca. O irmao serviu de inter- medidrio, levando a elas as mercadorias para escolha ¢ informando qual o prego que se dispunham a pagar. Nao nos tinhamos afastado mais do que nove Iéguas da fronteira, e no entanto José Mariano jd recebeu ali parte do paga- mento em ouro em po (ver Viagem as Nascentes do S. Francisco, Cap. XV1). © Riacho Frio tem sua nascente a pouca distineia da fazenda do mesmo nome e vai desaguar no Rio de S. Bartolomeu, que atravessei a cerca de 1 Iégua dali. Esse rio, que tem pouca largura e dé passagem a pé na época da seca, 36 pode ser atravessado de canoa na estacdo das chuvas. Nessas ocasiGes suas guas causam, muitas vezes, febres intermitentes, provavelmente porque 20 engrossarem e s¢ espraiarem pelas terras arrastam consigo as Aguas estagnadas dos pantanos. ‘Um pouco adiante desse rio hd um pequeno posto militar, onde antiga- mente era cobrado um imposto sobre os cavalos e bois que entravam na pro- vincia, Cada boi era taxado cm 1.500 réis, mas esse imposto exorbitante, con- siderando-se a pobreza da regio, acabou por ser suprimido, e 4 época de minha viagem a tinica utilidade do posto era servir de abrigo a um velho soldado que contava quarenta anos de servico. Um pouco além subi um morro bastante alto, Arido e cascalhento, que tem o nome de Morro do Alecrim. As terras que se avistam do seu cume so montanhosas, despovoadas e sem sinal de cultura, e os campos se achavam, na ocasigo, ressequidos pelo ardor do sol. Como eu desejasse nesse dia, véspera de 1.° de junho, comemorar com ‘meus acompanhantes 0 aniversirio de minha chegada ao Brasil, s6 andei duas 1éguas. Parei no Sitio de Garapa,(*) que se compée de um aglomerado de humildes casebres. O proprietério tinha ido ao Arraial de Santa Luzia para a festa de Pentecostes, mas fui muito bem recebido por sua mulher. Quando ele chegou, encontrou © seu quarto ocupado com as minhas coisas. Nao obstante, acolheu-me com toda a amabilidade. A semelhanga dos proprietérios de Riacho Frio, ele também possuia um pequeno rebanho de cameiros, mas exclusiva- mente para aproveitar a sua 14, pois ali ninguém come a carne desses animais. Vi em sua casa cobertores feitos com essa 14 ¢ achei-os de boa qualidade, Quanto & pequena comemoraczo que eu pretendia fazer, resumiu-se no consumo de alguns frangos e de um jarro de ponche. Eu nfo tinha, entio, (4) A palavra gatapa destena hoje o caldo da canswte-apticar, mas se trata de um termo ‘evidentemente Indigena, Parece que or Indios empreravam-no antigamente park indicar as bebidas Goce que fabriewrim ‘como mel. iis aqui, com wfelte, como se erprime Roulox Barro em sus bea Vovoge au Bréstl, tractelde por Moreau em 1647’ “Os mals guubardos dos Tapulas foram ‘hel slivestre ‘¢ frutes, com os quale preparavam uma beberagem a que dio o nome de WWer‘ainna sfistotre Wes planter les plus remarquables, etc, 1, 300.) 23 motivo para me queixar de meus ajudantes. Pareciam satisfeitos, e eu nao exigia mais do que isso para me sentir tio feliz quanto possivel, levando em conta as circunstincias, Logo adiante de Garapa tive de subir um pequeno morro, mas a partir dai o caminho se apresentou perfeitamente plano, embora eu avistasse mon- tanhas baixas A direita e esquerda. A vegetagio era sempre a mesma, a regiio igualmente despovoada, os campos igualmente incultos. Atravessei varios riachos orlados por uma estreita fileira de drvores que ainda conservavam agradivel verdor. Tudo o mais estava seco, e raras eram as plantas que ainda tinham flores. Finalmente, apés uma jornada longa e tediosa, avistei Santa Luzia de Goiés,(*) 0 arraial a que me destinava. Levava uma carta de recomendacdo para o vigirio. Enviei José Mariano na frente, para que a entregasse, ¢ ele nao tardou a voltar, informando que estava sendo preparada uma bela recepco para mim. Acabava de ser reali- zada em Santa Luzia a festa de Pentecostes. Todos os fazendeiros das redon- dezas estavam reunidos no arraial, e no momento em que cheguei a praca piblica ia ser realizada uma cavalhada. O vigirio, Joao Teixeira Alvarez, rece- beu-me calorosamente. Sua casa, situada na praca, estava cheia de gente a espera de que 0 espeticulo comecasse. Serviram-se café e bolos, e todo mundo se debrugou nas janelas. Logo chegou um grupo de senhoras, que foram levadas para a sala, Imediatamente os homens se retiraram dali, reunindo-se na saleta de entrada. A cavalhada nfo tardou a comegar. Havia sido tragado na praca, com pé branco, um grande quadrado, a volta do qual se enfileiravam os espec- tadores, de pé ou sentados em bancos. Os cavaleiros vestiam o uniforme da milicia, Traziam na cabeca um capacete de papelo e seus cavalos estavam enfei- tados de fitas. Eles se limitaram a galopar pela praca em vérias diregdes, enquanto outros cavaleiros, mascarados e fantasiados de mil maneiras diferentes, faziam momices e trejeitos semelhantes aos dos palhagos de citco. Durante esse espetdculo, bastante monétono, mantive conversa com 0 vigario, nfo tardando a verificar que, além de amével, ele era bastante instruido. Terminada a cava thada, todos se retiraram e as senhoras voltaram para suas casas. A nio ser em ocasides extraordinarias, as mulheres do interior do Brasil nao saem provavel- mente 2 rua senio para ir & igreja. Como em Minas,(*) as senhoras do lugar caminhavam o mais lentamente possivel, envoltas em longas capas de li, a cabeca coberta com um chapéu de feltro, sempre em fila indiana, jamais aos pares, eretas como estacas, mal erguendo os pés do chao, sem olharem para lado nenhum, quando muito respondendo com um leve aceno de cabeca aos cumprimentos que lhes. faziam. No dia seguinte 0 vigério esteve ocupado o tempo todo. Deu confissio a um grande mimero de fazendeiros pertencentes A sua parquia mas que mora- vam a varios dias de viagem do arraial. Esses homens s6 vinham ao povoado uma vez por ano, e para se confessarem e comemorarem a Pascoa aprovei- tavam os festejos ‘de Pentecostes, data que é celebrada no Brasil com grande regozijo ¢ solenidade. Poderia ter-me posto logo a caminho, mas havia tanto tempo que eu nfo tinha oportunidade de conversar com um homem culto, que resolvi prolongar minha estada em Santa Luzia, a fim de usufruir da companhia do vigirio, Joao Teixeira Alvarez sabia latim, francés, italiano e espanhol; conhecia os nossos melhores escritores do século de Luis XIV ¢ possufa uma seleta biblioteca com varias centenas de volumes, 0 que no pais era uma rari- dade, Além de ser um homem instruido, bondoso e amavel, ele era no clero brasileiro uma notivel excecdo, pois se achava imbuido do verdadeiro espitito (3), Bohl (eee, 1 210) ds Sante Luste 9 Huo decade, 3a terdade ex mn arma a jaioU, ¢ altidn,o era em 1802, tendo aldo elevndo & cidade entze 1052 1830. UNG) Viagem pelas Provincias da lo de Janciro, ete. se 24 da sua missio, Fazia sermBes todos os domingos, procurando incutir nos seus paroquianos o amor go trabalho e usando de toda a sua influéncia para con- vencé-los a abandonar seus errdneos métodos de agricultura. Um missionério capuchinho, de quem falarei mais tarde, tinha passado por Santa Luzia pouco antes de mim. O vigério reteve-o em sua casa por trés meses, confiando-lhe uma missdo e encarregando-o de pregar principalmente contra a ociosidade. O missio- nario identificou-se com as idéias do vigério e agradou extraordinariamente aos habitantes da regiéo, dando-Ihes muitos conselhos titeis sobre o cultivo da terra ¢ alguns indispensiveis ensinamentos, O trabalho apostélico de Joao Teixeira Alvarez nfo deixou de dar frutos, pois havia — segundo me garantiram — mais unido e honestidade em Santa Luzia do que em outras partes da Provincia de Goiés. Seus habitantes tinham bons costumes ¢ 0 concubinato ali era menos comum.(*) A paréquia da qual o Arraial de Santa Luzia(*) era a sede contava (1819) com uma populacio de 3 a 4.000 habitantes, disseminados numa frea de 50 Iéguas de comprimento por 30 em sua maior largura.(*), Dessa paréquia depen- dem dois povoados: Santo Antonio dos Montes Claros, de que falarei em breve, Nossa Senhora da Abadia, no Arraial de Couros.(?°) Aprazivelmente situado numa encosta, acima de um extenso vale, 0 Arraial de Santa Luzia estende-se paralelamente 2 margem direita de um riacho que passa no fundo do vale e tem o nome de Cérrego de Santa Luzia.(*) O arraial € cortado em duas partes desiguais, no sentido de sua largura, por um outro cérrego menos volumoso, que vai desaguar no primeiro. Embora extremamente estreito, o atraial alarga-se um pouco no meio, € € nesse ponto que est localizada uma praga quase quadrangular, onde se ergue a igreja paroquial, que bastante grande isolada, como sfo geralmente as igrejas dessa regio e de Minas. Seu interior é razoavelmente ornamentado, mas © teto nao tem forro. Além da igreja paroquial (de Santa Rita), existem outras duas, uma em cada extremidade do arraial. Uma delas é a de N. S.* do Rosario, que foi construida pelos negros & época em que se encontrava ouro em abun dancia nos arredores. Agora que o mimero de negros diminuiu bastante, e os que ainda restam — tanto os livres quanto os escravos — vivem na indigéncia, sua igreja esti em rufnas, A outra comecou a ser construida pouco antes de minha passagem por 14, ¢ as obras ainda estavam em andamento, apesar da extrema pobreza a que se achavam reduzidos os habitantes de Santa Luzia.(*2) Por af se vé como é arraigada nos brasileiros do interior (1819) a mania de construir templos initeis, 0 que, segundo os padres mais esclarecidos, nfo tem nenhum outro fundamento a nio ser uma vaidade pueril, ‘Nao devemos julgar os povoados do Brasil pelos nossos, pois em geral no passam de um amontoado de casebres miseriveis ¢ de ruas lamacentas. A maioria dos arraiais de Minas e Goids, cuja origem se deve as minas de ouro, ho de ter tido 0 seu encanto em seus tempos de esplendor, ¢ ¢ evidente que Santa Luzia foi um dos mais apraziveis. Suas ruas so largas e bastante regu- (7), Diz o General Cunha Matos que, ao visitar Santa Lauria om 1623, achou ous habltantes mats clvilizedes do que em todos es Tugires por que pussora a purur qe Barbacena, atriouindo Eise pouvdel fate uo ness excelente vigttios Achoseehts Ble que © paroco The entregost um morkvel felatdrto sobre = Justiga do Santa Luin {itn 1, 168; 11, 150),/Nhe me consta que ese teobaln fenha sido publiendo, Ya) .O Rome de Santa Lusia ¢ dado a varias locatidades do Brasil. Desnecessérto 6 dizer que ho se deve escrever San-Lucia, como fer um viajante. frances (Suz, Sous. 273). (G) “tuls Antonio da siivs e Sousa firma que o distrito de Santa Tusa ¢ limitado a teste pelo Julgado do 8. Homo, o gual depende de Minas, ¢ x ceste pelo de Mela-Ponte: ao sul imlta-se Som ‘Santa. Cruz’ distauve 10 legume dn sede do distrito: e fimalmente ao norte’ com Teuiras, (10) Base vurraial, extremamente padre, ensue trecho iniciel da Serra do S. Francisca’ v4) Tosatti. (it) Pobi fala apenag de um riacko ¢ Uke dao nome de Rio Yermelho. (22) A°tgeeja’altda ‘ado’ estava termmada em 2625 (Matos, Zein, E168). 25

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