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DICIONARIO TEMATICO DO OCIDENTE MEDIEVAL VM O?,ru mM: | JACQUES LE GOFF & JEAN-CLAUDE SCHMITT 19 OF ESTADO Idade Média comega no século V quando se dé 0 desmoronamento do mais poderoso Estado, cuja lembranga vai perdurar, 0 Império Romano. Império de uma cidade que se tornou progressivamente imenso espaco terti- torial,’ Império Romano sofria da ambigiiidade de sua propria nature eu ideal civico, de inicio limitado a Roma, estendeu-se & Itélia, mas dele partilha- vam apenas os magistrados ¢ os militares vereranos. O carter meramente pre- dador de sua construcao territorial perpetuou-se no fiscalismo. Para acumular recursos, era neces’ rio expandir o Império: ora, a propria dilatagio do espa- 0 controlado tornava as conquistas mais dificeis, menos rentaveis quando a agitacao das populaci com o Império Parta no Oriente absorviam o essencial dos recursos. Sem po- der aumentar a pressao fiscal, os imperadores arriscaram-se em manipulagdes monetitias, provocando, por muito tempo, inevitével enfraquecimento eco- némico. O sobressalto produzido pela militarizagao do Império, depois pela sua cristianizagao no reinado de Constantino, prolongou sua existéncia, mas nao Ihe deixou tempo para uma mudanga em profundidade. Efetivamente, o Impétio Romano desmoronou apenas no Ocidente. No Oriente, subsistiu um império que chamamos de bizantino ¢ cujas provincias do Egito e da Siria, desde o final do reinado de Herdclio, foram tomadas pe- los arabes. Seus stiditos, até a queda final de Bizancio, diziam-se “romanos”. Na verdade, esse império representou um dos modelos possiveis da evolucao ¢ da adapta es germénicas no Ocidente e a concorréncia exacerbada io do sistema roman um imperador que conjugava sacralidade crist ¢ magistratura antig: , pratica de associagio ¢ valorizacao da legitimida- de dindstica (os “porfirogénetas”, nascidos no palicio imperial), que davam certa estabilidade a instituiga0; uma aristocracia civil animada pelo ideal do servigo a0 marinheiros, que garantiam a defesa da coletividade, Entretanto, submetido a miiltiplas presses dos povos eslavos ou eslavizados (biilgaros, russos), do Isla (arabes, turcos) ¢ do Ocidente (normandos, depois cruzados), esvaziado de sua substancia econémica por seus “aliados” venezianos ou genoveses, 0 Império Bizantino revelou-se incapaz de se regenerar, ¢ do século XII até seu desaparecimento, em 1453, sua decadéncia parecia inevitével. ado; uma populagio de camponeses-soldados (os estratiotas) ou 397 Dicionério Temético do Ocidente Medieval AS NOVAS ESTRUTURAS POLITICAS DO OCIDENTE Foi, paradoxalmente, a amplidio do desmoronamento do Ocidente que permitiu a emergéncia de novas estruturas politicas. Se 0 tiltimo imperador romano acabou eliminado em 476, de ha muito 0 poder jé pertencia a pode- rosos apoiados por seus figis: generais de exércitos “romanos” abandonados a si mesmos, chefes celtas de populagées desromanizadas ou grandes proprieté- tios de terras protegidos por bandos de mercenatios (os buccelarii), mas sobre- tudo reis germanicos, chefes de guerra de coalizées de tribos ¢ de remanescen- tes populacionais que migram através da pars occidentalis. Seu poder era o de um chefe sustentado por uma elite de guerreiros que lhe deviam fidelidade ab- soluta, mas esperando dele sustento e fortuna, poder que se exercia nao sobre um territério mas sobre um povo. A autoridade e 0 poder magico do chefe getmanico, manifestado exteriormente no rei franco por seus cabelos longos ¢ por um nome préprio sua familia, seu mund (0 rei era protetor, pacificador ¢ justiceiro) deviam ser legitimados pelo sucesso no campo de batalha; ele es- tava & mercé do menor revés. Entretanto, o Império nao desapareceu sem deixar profundos vestigios. A aristocracia senatorial ¢ provincial estiveram sempre presentes, mesmo quando seus membros emigravam para 0 campo: 0 fisco ¢ 0 tributo levantados nas ci- dades nao haviam desaparecido. Sobretudo os quadros administrativos — pro- vincia, diocese, cidade — tornaram-se ativos gracas & Igreja crista; os bispos, alids, freqiientemente pertenciam a familias senatoriais e eram, nos séculos V ¢ VI, 0s verdadeiros responsiveis pelas cidades. Os reis germanicos perceberam logo as vantagens que podiam tirar de uma relago com eles. Mas os francos se- io quase os tinicos a tirar proveito dessa alianga, na medida em que seu rei Clovis converteu-se ao catolicismo, enquanto a maior parte dos outros sobera- nos optou pelo arianismo. Clovis, batizado em Reims, no Natal de 496 ou 498, entrou em Tours, em 508, ostentando a purpura do triunfo e fez-se aclamar consul — 0 imperador do Oriente, Anastécio, parece ter-lhe concedido as insig- nias do consulado — ¢ Augusto. Ele reuniu em 511 0 primeiro concilio das Ga- lias, em Orlean: . Quando burgtindios, alamanos e turingios sio atraidos para a érbita dos francos, quando os ostrogodos sto desbaratados pela efémera re- conquista bizantina ¢ os visigodos pela conquista arabe, a monarquia franca torna-se 0 cadinho das novas estruturas politicas do Ocidente. Mas essa emergén Excessiva- ia é uma histéria longa ¢ movimentada. mente vasta, a dominacio franca ajusta-se mal ao carter simultaneamente pes- 398 Estado soal ¢ familiar da realeza germanica; 0 poder se exerce mais sobre os homens que sobre a terra ¢, sendo patrimonial, 0 territério controlado pelos reis fran- cos é dividido ow reunido ao sabor de sucessées mais ou menos pacificas, Os reinos parciais — os Teilreich — alcangam no decorrer dos anos suficiente estabi- lidade para que o sentimento de pertencer 4 mesma comunidade se desenvol- va, ao menos no seio das elites aristocraticas: Austrésia, Néustria, Borgonha e mesmo Aquitania, componentes do reino dos francos. Para exercer 0 poder de mando (bannum), os soberanos enfraquecidos pelas rivalidades familiares de- vem, dai em diante, obter a qualquer preco a cooperacao ¢ 0 apoio dessas eli- tes. E que o velho problema dos recursos do Estado se agravara: 0 desapareci- mento progressivo das estruturas administrativas reduziu os tributos ¢ as tenta- tivas de restauracao de uma fiscalidade piiblica haviam malogrado. © monar- ca distribui as terras do fisco assim como seu préprio bem patrimonial a seus fiis ¢ aos grandes que 0 sustentam, mas quando 0 reino dos francos deixa de crescer, na segunda metade do século VI, o sistema chega ao fim com a ruina definitiva da familia do soberano ¢ 0 progresso das tendéncias centrifugas. ‘A monarquia franca vai ter, entretanto, uma segunda oportunidade. Os principais beneficidrios da decadéncia merovingia foram, na Austrésia, mem- bros da linhagem dos Pepinidas. Pepino II, apoiado na regio mais dinamica (canto pelo renascimento do comércio da Europa do norte como pelas possi- bilidades de expansio gracas & cristianizagio das regides germanic s do norte e do leste do Reno) ¢ dispondo de imensos dominios de seus ancestrais pater- nos (familia de Santo Arnoldo) e maternos (Pepino de Herstal), assegura logo © poder na Austrésia e sua hegemonia na Néustria apés a batalha de Terry (687). Esse é um poder de fato, baseado no poder territorial ¢ nos acordos com as aristocracias locais: cessétio a fachada dos reis merovingios (os “reis indolentes”) em nome dos quais se exerce o verdadeiro poder. A morte de Pepino II abala essa estructura, porém seu sucessor, Carlos Martel, acentua 0 dominio da familia, Ele confis- ca os bens dos seus adversétios ¢ sobretudo grandes quantidades de terras da Igreja para repartir com seus préprios fidis, seus vassalos. Dispondo, assim, de um formidavel exército, péde intervir na Frisia e na Saxdni para conferir legitimidade ficticia ao sistema, é ne- e também na Aquitania e na Provenga. Sua vitéria sobre os arabes em Poitiers e seu apoio a misses de cristianizac4o restauram a imagem denegrida pela espoliacao das igrejas. O brilhante éxito militar de Carlos Martel nao pode, com efeito, dis- simular a brutalidade e rapacidade do seu poder. Seus sucessores Pepino III (0 Breve) e sobretudo Carlos Magno souberam transformar o poder de fato em 399 Diciondrio Temdtico do Ocidente Medieval verdadeiro poder de Estado, cuja legitimidade parece doravante incontestavel: eles sucedem os tiltimos Merovingios ¢ concluem uma série de acordos com 0s papas. A coroagio imperial de Carlos Magno, em 800, sera a apoteose. E indispensével mencionar esses acontecimentos para compreender 0 Estado carolingio, que foi o primeiro Estado medieval. Nao se pode dizer que a monarquia merovingia tenha sido algo além de um esbogo de Estado, No entanto, em profundidade a situa¢io merovingia perdurou: 0 poder nao tinha outro recurso senio 0 que ele possuia ou usurpava; 0 Estado carolingio per- manece um Estado predador. Mas desde entio ele tem uma maior eficiéncia. O sistema de redistribuigio em favor dos grandes funcionarios por intermé- dio de verdadeiras insticuigdes (a vassalidade, a recomendacio, 0 juramento prestado ao imperador e sistemas de transferéncia da terra como o beneficio ou o precirio) que permitem estabilizar ¢ regular a relagdo social é a propria esséncia do poder. O soberano e seus representantes na terra, condes, bispos ¢ missi dominici, esforcam-se por controlar esse sistema multiplicando as visitas de inspegdo, mantendo vivas ¢ ativas as instituigdes publicas (os tribunais, o exército) ¢ fazendo observar as disposigGes tomadas pelo monarca € seus con- selheiros e consignadas nos capitulares. Ea espantosa série de conquistas de que Carlos Magno € autor (Frisia, Saxénia, Francénia, Baviera, reino lombar- do, Gétia, Marca da Espanha) irriga com sangue revivificante 0 velho orga- nismo do reino dos francos. No entanto, nao € esta a contribuigao essencial de Carlos Magno. E a construgao ideolégica de uma monarquia crista: fazendo-se coroar imperador em Roma, Carlos garante a renovatio imperii, o renascimento do império de Constantino. Cercado de letrados anglo-saxdes (Alcuin), lombardos (Paulo Diécono) ¢ aquitdnios, o imperador desenvolve sistematicamente uma imita- tio imperii, Mas ele nao é nem um novo Constantino nem um novo Davi, 0 regente do povo eleito. Davi Salomao foram desde 0 comeco constantemen- te evocados pela propaganda carolingia em detrimento dos bizantinos. Mas como Davi, Carlos era a uma s6 vez rex et sacerdos (rei e sacerdote), embora isso nao implicasse para o soberano carter sacerdotal, apenas a funcao de pre- gador fiador da ortodoxia: isso simplesmente quer dizer que sob sua autori- dade e protecao, os povos ¢ a Igreja devem viver em paz. Carlos Magno e os intelectuais que 0 cercam conceberam assim uma monarquia profundamente crist na qual a questao dos dois poderes (do rei e da Igreja) esta resolvida an- tes de ter sido efetivamente colocada por um papado decadente. 4oo Estado RESTAURAGAO DO IMPERIO F ASCENSAO DAS MONARQUIAS O edificio carolingio nao tardaria a desmoronar. Desde meados do sécu- lo IX, os ataques dos vikings, htingaros e sarracenos tinham posto fim a sua expansio triunfante: na defensiva, o Império entra em fase de contraga0. O velho problema da patrimonialidade do reino ressurge com as lutas ferozes que opéem os filhos de Luis, 0 Piedoso: nao apenas o Império esté dividido a ponto de o titulo imperial acabar por perder toda a significagao, mas os reis rivais multiplicam as ofertas para garantir a fidelidade dos poderosos. Eles es- tao de tal forma ofuscados pela competicao imperial que preferem delegar seu poder de mando aos condes que agrupam numerosos condados sob sua attto- ridade para assumir os encargos da defesa contra os invasores. Assim nasce no Império uma série de principados, enquanto 0s tiltimos Carolingios desapare- cem, uns apés outros, despojados de suas terras ¢ de seu prestigio. A pulveri- zacio do poder ptiblico acentua-se ainda mais no século X e prossegue no XI. © poder de mando de origem piiblica nao desaparece, mas despedacado re- parte-se segundo uma hierarquia variével no seio das elites da aristocracia mi- litar, dos principes aos condes, dos condes aos casteldes ¢ dos casteldes aos mais poderosos senhores. Ai, esse poder encontra um outro, 0 do senhor ru- ral sobre scus homens, seus dependentes. © Estado nao mais se resume a uma relagio social privilegiada entre o soberano ¢ a atistocracia militar: cle esté compreendido no conjunto de relagSes sociais que estruturam essa classe aris- toctitica; é exatamente isso que constitui a revolucio feudal. O Estado poderd, entretanto, restabelecer-se € reformar-se. Dois fatos de estrucura em parte explicam isso. Em primeiro lugar, a atividade econdmica mantém-se, ¢ rapidamente apés 0 ano 1000 conhece mesmo um extraordind- rio crescimento, que vai durar até o século XIII. As cidades do Ocidente, em decadéncia desde o século III, crescem e multiplicam-se; a produgao dos cam- pos enquadrados nos senhorios, gracas aos arroteamentos, a diversificagéo ¢ intensificagao das culturas, nutre uma populagéo em pleno crescimento. O grande comércio renasce, uma grande indtiseria téxtil (Flandres, Itélia do nor- te) aparece; 0 contexto econdmico é, portanto, favordvel. Posteriormente, com o Império Carolingio desmoronado, a Igreja manteve-se: mais uma vez 08 invasores sio convertidos. Sem dtivida, a instituicao episcopal, quase inte- grada ao Estado carolingio, sofre com sua ruina e a instalagéo do feudalismo, mas a fundacio de mosteiros (como Cluny) dispensados pelo papado da tute- la episcopal, permite uma reforma profunda ¢ uma regeneracao do monasti- 4or Diciondrio Temético do Ocidente Medieval cismo. Essa Igreja reformada conserva intacta a meméria histérica ¢ a cultura juridica e ideolégica oriundas do passado romano e carolingio, e esta pronta a fornecer dirigentes de valor a um Estado renascente. Mas esse renascimento estatal serviu-se de duas vias bem diferentes. Na pe- riferia do Império Carolingio, onde 0 processo de decomposicao nao estava com- pletamente acabado, a dinastia nacional saxénica apoderou-se da coroa da Ger- mania; aureolada pela sua vitéria sobre os htingaros (955), 0 rei da Germania Oto I, esposo de Adelaide, herdeira do reino da Itdlia, restaura o titulo imperial. O Império Otdnida, iniciador do Ostsiedlung, o “impulso germanico para 0 Les- te’, reencontra a dinamica conquistadora necessiria & sobrevivéncia de todo im- pério predador. Por outro lado, a relagio social que ainda constituia a estructura de divisio dos poderes estava simultaneamente abalada e diversificada, tendo como intermediarios as grandes linhagens patrilineares que se arrogam o direito de dominar os grupos nacionais que, no interior do Império, haviam obtido re- lativa autonomia, Isso nao se resume apenas & aristocracia militar, porque as ci- dades, tanto na Itélia quanto na Alemanha, desempenham um papel cada vez mais importante, Mas se no inicio esses elementos esto a favor do Império, vol- tam-se depois contra ele; as grandes familias edificam principados territoriais que ido seguir evolucio propria, enquanto 0 movimento comunal na Itélia do nor te deixou, inexoravelmente, a Itilia fora do alcance dos imperadores. Sempre prestigioso, o poder imperial esvazia-se de contetido; sem fiscalidade antes do século XV, dispondo apenas de alguns recursos que lhe oferecem as cidades do Império que ele pade obrigar, logo 0 poder do imperador depende unicamente do poder que possui enquanto principe territorial; © poder de Frederico Il esta embasado no seu reino da Sicilia como 0 de Luis da Baviera, dos Luxemburgo ¢ dos Habsburgo dependerio de seus principados patrimoniais. No plano ideolégico, se os imperadores otdnidas visam restaurar 0 edi- ficio carolingio, serao levados a modificar sensivelmente sua ideologia. O mo- delo cristéo é doravante mais 0 de Cristo que de Davis a teologia politica dos dois corpos do rei que esse modelo estimula ¢ fundamental para o renascimen- to da idéia de Estado no Ocidente, facilitando a distingao entre 0 corpo fi co do rei e 0 corpo imortal do rei, personificacéo do Estado. Contudo, a rela~ a0 do Cristo com o Estado Romano, de uma parte, e com Pedro, de outra, também esté destinada a oferecer a matriz. de uma relacéo estével entre o Im- pério ¢ a Igreja. O concurso desta era necessério aos imperadores oténidas ¢ 0s seus sucessores sdlios, e até meados do século XI eles ajudaram-na a se re- formar e escapar do feudalismo. Mas a reforma da Igreja tem sua prépria I6- Estado gica: estando a salvagao da Igreja na sua constituigao como ordem auténoma inteiramente diferente da dos leigos, ela devia, por certo, enfrentar de inicio 0 feudalismo, mas em seguida também o Império. A segunda fase da reforma — que se chama de gregoriana — arrasta consigo um conflito de extrema violén- cia, que se estenderd até 0 século XIII ¢ terminaré apés a morte de Frederico II, em 1250, com a vitdria do papado ¢ a ruina das pretensdes hegeménicas do Império, Em todos os planos, 0 fracasso do modelo imperial era inevitével. Uma nova estructura politica, porém, emerge lentamente no préprio co- racio do desastre carolingio. Dessa aristocracia militar que passou a exercer co- letivamente o poder ptblico distinguiam-se gradualmente dois poderes, a mo- narquia feudal ¢ a Igreja, Mas essa mesma Igreja, apds haver de inicio ajudado, voltava-se contra o poder imperial, agindo poderosamente a favor das monar- quias feudais, A reforma, hé pouco evocada, havia tido como objetivo funda- mental na sua primeira fase escapar ao arbitrio e a violencia inerentes ao feu- dalismo. Mesmo os senhores ¢ detentores de parcelas da autoridade publica (quantos bispos nao eram também condes em suas cidades2) ¢ os clérigos arris- cavam-se a serem absorvidos na tormenta. Os imensos bens da Igreja eram pre- sa tentadora para os feudais, que a espoliavam pura e simplesmente, ou que ga- rantiam a membros de sua familia a posse hereditaria dos mais importantes be- neficios ¢ dos dominios que mais Ihes interessavam. Para salvar a Igreja, a Re- forma visava, antes de tudo, separar completamente a ordem dos leigos da dos clérigos; fora do mundo dos leigos, a ordem eclesidstica estaria livre para cum- prir stta misao, regenerar a sociedade crista e conduzi-la pelo caminho da sal- vacio. Nessa perspectiva, 0 celibato dos sacerdotes (até entao longe de ser a norma) tornava-se empresa essencial; no rocante ao intercambio de mulheres, a ordem eclesisstica exercia estrito controle dos lagos de parentesco e reforgava 0 valor sacramental do lago conjugal. Outro meio de acéo sobre a aristocracia guerreira era a “paz de Deus”, que visava disciplinar, senao impedir, a violénci feudal, proibindo a guerra em certos perfodos ¢ excluindo de suas devastagdes as mulheres, as criangas ¢ todos os que estavam sob protecao da Igreja. Progra- ma ambicioso, que se chocava com forte oposicéo no proprio seio da Igreja, cu- jos dirigentes eram quase sempre origindrios dessa mesma atistocracia guerrei- ra que ele tratava de combater. Os reformadores eclesissticos ficaram felizes em encontrar a alianga dos monarcas feudais: os reis, nao tendo as pretensdes uni- versais dos imperadores, nao se mostravam perigosos nesse plano. Entre o Loire ¢ 0 Mosa, onde se situava 0 epicentro da revolugao feudal, apenas uma monarquia subsiste inicialmente, a dos Capetingios. Eles nao sio, 403 Dicionério Temético do Ocidente Medieval provavelmente, os mais poderosos principes feudais do reino, ¢ de inicio sua le- gitimidade nao é clara, Somente eles, entretanto, so reis, e sagrados: apoian- do-se nessa forca moral, vio fazer reconhecer stia posi¢éo excepcional no reino € tornar, pouco a pouco, a monarquia feudal uma instituigéo de envergadura diferente da dos principados feudais, por mais poderosos que eles momenta neamente fossem. Quando o movimento de paz langado pela Igreja se enfra- quece, eles o tomam sob sua responsabilidade; os bispos recrutam por sua con- ta milicias comunais que os reis utilizam com vassalos submissos a0 seu pré- prio ban [poder de mando] para defender o reino ¢ manter a paz, aplicando os julgamentos da justiga real. O principio monarquico, com a cumplicidade da Igreja, aumenta seu prestigio e seu poder legitimador as regras préprias do feu- dalismo ¢ amplia muito sua eficiéncia, ao menos a partir do momento em que foi respeitado, No coracéo da anarquiia ¢ da violéncia arbitrarias do feudalismo, a monarquia feudal coloc: -se como a imagem ¢ a garantia da legitimidade e da sacralidade do poder, da justica ¢ da paz: a insisténcia dos Capetingios em sua posicao de “teis cristianissimos” assinala sua singularidade ¢ sua eminéncia. Ora, mesmo se a ago dos Capetingios do século XII, Luis VI ¢ Luis VIL, é valorizada pelo talento ¢ inteligéncia excepcionais do abade de Saint-Denis, Su- gen, a monarquia capetingia logo teve de lutar pela defesa do reino contra uma estrutura politica concorrente. Em 1066, de fato, o duque da Normandia con- quistow a Inglaterra e, transformando completamente a sociedade ¢ 0 sistema po- litico anglo-saxao, I4 introduziu o feudalismo e edificou uma monarquia feudal Mas a periferia britinica era para essa nova monarquia apenas uma zona de do- minagio extensiva: a frente sobre a qual ela empenhou toda a sua energia era con- tinental, sobretudo quando o plantageneta Henrique II anexou 8 Normandia 0 Duas principado angevino de sua familia ¢ a Aquicinia de sua esposa Eleono monarquias feudais concorrentes defrontam-se, entéo, para 0 controle do mes- mo espaco essa relagao dialética faz delas duas estruturas orientadas principal- mente para a guerra, em conformidade com as mentalidades ¢ 0 género de vida da aristocracia feudal de que elas aparecem como o prolongamento. Em suma, durante os petfodos precedentes, os diferentes regna nao eram sendo miiltiplas facetas do todo ini al, o Império, disputadas entre os mem- bros da mesma familia, que concorriam entre si corrompendo suas respectivas clientela: : a guerra era uma estrutura endégena. As monarquias feudais, 20 contratio, caracterizavam-se pot uma relagio dialética de concorréncia em que a guerra era uma estructura exégena; qualquer que fosse sua fraqueza aparente, 05 reis iro desde logo aparecer como chefes naturais de suas aristocracias guer- 404 Estado reiras: assim se explica 0 sucesso em Saint-Denis do hasteamento da auriflama (estandarte real) contra 0 Império, no século XII. Essa relacdo reproduziu-se, com 0s mesmos efeitos, no caso das monarquias da Peninsula Ibérica (Leao, de- pois Navarra ¢ Castela, Aragio, depois Portugal): a preponderiincia da estrucu- ra feudal af era menor ¢ as comunidades rurais ¢ urbanas desempenharam um papel mais importante; mas também concorreram entre si na sua propria zona para apropriar-se, controlar ¢ valorizar as terras tomadas aos mugulmanos na Reconquista, vasta empresa guerreira. A monarquia feudal apresenta, assim, duas faces contrastantes: uma de paz, de justica e de religido; outra, de guerra. Mas elas sao insepariveis ¢ o desenvolvimento de uma passa pelo da outra. NasciMENTO Do Estapo Ao final do século XIII, ocorre uma mudanga decisiva que contém em germe a evolucéo furura e a transformacéo da monarquia feudal no que se pode denominar Estado moderno, pois esta forma de Estado é 0 ancestral di- reto, sem descontinuidade, do moderno Estado europeu atual. Tempo marca do pela personalidade singular de Sao Luis, a concorréncia entre as duas gran- des monarquias ocidentais assume uma violéncia ¢ uma amplitude novas com Eduardo I ¢ Filipe, 0 Belo: Eduardo, conquistando 0 Pais de Gales e em se- guida a Escécia, pretende governar sua Aquitinia como soberano, no momen- to em que Filipe no quer abandonar nenhuma de suas prerrogativas sobera- nas na Gasconha ou em Flandres. A partir de 1291, os dois reis iro gastar na batalha grandes somas nao somente para equipar ¢ pagar exércitos em que os profissionais desempenham um papel cada vez mais determinant, como tam- bém para financiar aliangas diplomadticas através de toda a Europa. Estimou- se que, em 1294, Eduardo I cobrou de impostos uma quarta parte da massa monetéria em circulagao na Inglaterra. Niveis semelhantes de fiscalidade tinham sido alcangados anteriormen- te, em especial no auge da rivalidade entre Filipe Augusto ¢ os Plantagenetas, porém agora o esforco devia durar. Dos incessantes conflitos franco-ingleses, anglo-escoceses, franco-flamengos do inicio do século XIV, passa-se sem solu séo de continuidade & Guerra dos Cem Anos. ‘Tanto a freqiiéncia quanto 0 elevado nivel da c ga fiscal levam os soberanos a inovar e a passar de uma fis- lidade feudal a uma fiscalidade de Estado que, a despeito das repetidas ex- periéncias no decorrer do século precedente, é a0 menos em parte novidade. Da fiscalidade feudal a monarquia guarda 0 conceito de auxilium, de “ajuda 405 Diciondrio Temitico do Ocidente Medieval ao suserano”, ¢ é importante constatar que 0 “Estado moderno” nasceu onde se desenvolveu o feudalismo (¢ onde foi importado pelos normandos ou pe- los cruzados). Mas a fiscalidade do Estado rompe com o cardter amplamente arbitrario da cobranga feudal, feita de uma mistura de costumes ¢ de “doa- Ges” ou de empréstimos que sao apenas uma espoliagio aceita devido & rela- cao de forcas. Para manter essa cobranga por mais tempo, é necessdrio de- monstrar sua legitimidade e, pelo consentimento negociado com os represen tantes dos que iro pagar, tornar a recusa fiscal dificil, senao impossivel. Para isso, existe o aparelho juridico e ideoldgico necessédrio: cle se desenvolvera ha- via jd um século, e para o proprio uso (especialmente para a Cruzada) da Igre- ja, que integrara no direito canénico principios jurfdicos do direito romano (particularmente 0 principio quod omnes tangit ab omnibus tractari et appro- bari debei)' ¢ os indispensaveis mecanismos de representagéo ¢ delegagao de poder. Com a ajuda dos clérigos que estao a seu servico, os reis buscam de- monstrar que a guerra cria uma situagio de necessidade: eles sio forgados a mobilizar homens e dinheiro para defender seu reino, e, defendendo 0 reino, defendem os bens de todos os stiditos, sendo pois natural que estes contri- buam com seus prdprios bens para a defesa comum. Mas ao taxar 0 conjunto de seus stiditos porque sao seus stiditos, ¢ nao somente seus vassalos (com a obrigacao de eventualmente taxar seus préprios homens), os reis nfo executam uma simples mudanca de escala, mas uma ver- dadeira subversio do sistema politico, que vai bem além da multiplicagao do numero de contribuintes. Efetivamente, trés mudancas fundamentais decorre- ram dessa medida: em primeiro lugar, ela ignora as diferengas de estatuto en- tre os homens ¢ os poderes intermedidrios; livres ¢ nao livres, clérigos ¢ leigos, nobres ¢ nao nobres, todos tém vocagio para, um dia ou outro, ser contribuin- tes. Por outro lado, 0 conflito logo envolve os reis do Ocidente e 0 papado: a humilhagao de Bonifacio VIII em Anagni, depois o exilio do papado em Avig- non, mostram bem a vitéria do Estado. Quanto & isengao fiscal que Carlos VIL acabou por conceder & nobreza (com, no final, a mudanga da monarquia fran- cesa em monarquia absoluta) é mais excecao do que regra; a vassalidade como a servidao esto por isso mesmo destinadas ao se enfraquecerem enquanto re- ages sociais determinantes. Em seguida, j4 que o Estado se reserva 0 direito de apelar em caso de necessidade aos bens de seus stiditos, é preciso que esses 1. “O que atinge a todos deve ser aprovado por todos” . (N.T) 406 Estado bens existam e sejam protegidos: contra a arbitrariedade da violéncia feudal ¢ a flutuagéo dos variados tipos de terra que favorecem o feudalismo, 0 Estado por intermédio de seus juizes vai permitir e proteger o desenvolvimento da pro- priedade individual. Enfim, para negociar 0 assentimento do stidito, o Estado estabelece com ele um dislogo que se opera, ao menos em parte, por intermé- dio de assembléias representativas como o Parlamento inglés, os Estados fran- ceses ou as Cortes ibéricas, e criou uma comunicagio “politica”, posto que em toda parte os contribuintes iro subordinar seu acordo a concessdes € contra- partidas da parte do Estado, No Estado moderno, a taxacéo é bem mais facil (c rentavel) porque fundamentada no consenso. Assim, o stidito passivel de co- branga € antes de tudo um stidito ativo na politica, prefiguracéo do que seré, séculos mais tarde, 0 cidadéo moderno. No fundo, o Estado moderno cria um principio de participacao politica que é novo porque nao esté mais fundado no fato de o individuo pertencer a polis ele esté adaptado a um espaco extensivel, nao diferenciado, justamente 0 que o Império Romano néo havia conseguido. E sintomatico, sob esse ponto de vista, que a redescoberta da palavra “politica” e de sua plena significagao pelo viés da Politica de Aristételes coincida exata- mente com o nascimento do Estado moderno. As resistencias sociais no proprio scio dos “Estados modernos” sao fortes: resisténcias da aristocracia nobiliria e das burguesias que véem suas prerroga- tivas ameacadas; resistencias dos campesinatos oprimidos pela nova taxacio que se junta & imposta pelos senhores. De maneira geral, contudo, disputando 08 beneficios da distribuigao do dinheiro cobrado, as elites da sociedade politi- ca reconhecem a legitimidade da construgio estatal. O Estado transforma pro- fundamente a sociedade por sua prépria existéncia. E preciso povoar as admi- nistragdes ¢ as cortes; oficiais de justiga e burocratas de toda espécie sio cada vez mais numerosos, pelo menos proporcionalmente a uma populagio em pro- fundo declinio até meados do século XV. Os “salérios do rei” discribuidos aos soldados, os oficios ¢ os cargos piiblicos que conferem vantagens e autoridade, a benevoléncia ¢ compreensao dos tribunais reais: tantos privilégios levam a uma busca encarnigada, que obriga & concordancia mesmo aqueles que teriam podido contestar a agéo do Estado. Os partidos nobilidrios lutam menos con- tra as cobrangas do Estado do que para controlar sua redistribuigio em época de crise econémica ¢ social ¢ na qual a renda senhorial estagnou ou diminuiu. E necessério, no entanto, resguardar-se de toda teleologia ¢ anacronismo. As construgées estatais medievais sao varias e 0 “Estado moderno” é apenas 407 Dicionério Temitico do Ocidente Medieval uma dentre elas: a Inglaterra e a Escécia, os reinos ibéricos, a Franga ¢ os prin- cipados que a cercam ou dependem dela (Brabante ¢, de modo geral, os Esta dos borgonheses, Bretanha, Savdia), alguns principados do Império, Existem outras construgées: 0 Império, as monarquias “extensivas” da Europa do leste efetivamente dominadas pela nobreza, as grandes cidades italianas ou imperia que ainda mantém rotas comerciais, 0 banco e es para mobi 0 em melhores condigées var capital que as monarquias ocidentais, Por outro lado, na medi- da em quea guerra é a0 mesmo tempo causa e a melhor justificativa do desen- volvimento do Estado, Estado moderno, Estado de guerra, deve suportar as devastagies ¢ as vicissitudes de uma guerra que ele infatigavelmente alimentou. Uma era de feroz ¢ general lecionando impiedosamente os Estados mais competitivos: a propria comple- xidade do mapa politico da Europa no final do século XV mostra que 0 pro- cesso, na sua fase medieval, est ainda apenas no seu comeco. vada concorréncia abre-se, assim, para a Europa, se- Jean-PHitipre GENET Tradugao de Daniel Valle Ribeiro REMISSOES Assembléias — Direito (s) - Guerra e Cruzada — Império — Justica e paz — Moeda ~ Rei — Senhorio Orientagao bibliogrifica AUTRAND, Frangoise (ed.). Prosopographie et gentse de Etat moderne (rable ronde 1984). Paris, 1986. Naissance d'un grand corps de U Eat: les gens dr Parlement de Paris (1345-1454). Paris, 1981 BULST, Nithard ; DESCIMON, Robere ; GUERREAU, Alain (ed.). Ltar ou le roi. Les fondations de la ‘modernité monarchique en France (XIVE-XVIF siecle). Paris, 1996. : GENET, Jean-Philippe. La Ville, la bourgeoisie er la gents de Etat moderne (XII-XVIIE stele) Paris, 1988. CONTAMINE, Philippe. 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