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Os Anos Annie Ernaux
Os Anos Annie Ernaux
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ANNIE ERNAUX
Os anos
Tradução
MARÍLIA GARCIA
Sumário
Capa
Folha de rosto
Sumário
Epígrafe
Os anos
Notas
Sobre a autora
Créditos
Temos apenas a nossa história e ela não é nossa.
ANTON TCHEKHOV
Todas as imagens vão desaparecer.
Marianne de ma jeunesse
cigarro, os bombardeios
a aurora boreal que tinha anunciado a guerra
as bicicletas e as carroças nas estradas durante a Debacle,
as lojas saqueadas
as vítimas vasculhando os escombros à procura de suas
fotografias e de seu dinheiro
a chegada dos alemães — cada um à mesa situava
precisamente onde, em qual cidade tinham chegado —, os
ingleses sempre corretíssimos, os americanos sem
cerimônias, os colaboracionistas, o vizinho de cada um
durante a Resistência, a fulana que teve a cabeça raspada
na Libertação
Le Havre destruído, não tinha sobrado absolutamente nada,
o mercado negro
a Propaganda
os alemães fugindo, atravessando o rio Sena em Caudebec
montados em cavalos exaustos
o camponês que solta um peido em um compartimento de
trem onde estão os alemães e diz para todos ouvirem “se
não podemos dizer nada vamos fazer com que eles sintam”
Tendo como pano de fundo comum a fome e o medo, as
histórias eram contadas com o uso do “nós”, dos pronomes
indefinidos e construções impessoais.
Eles falavam do general Pétain dando de ombros, velho
demais e já gagá quando, na falta de outro melhor, foram
atrás dele. Imitavam o voo e o estrondo dos mísseis V2
rodando no céu e interpretavam o horror vivido, simulando
as deliberações nos momentos mais dramáticos, o que será
que eu faço agora, para manter a atenção de todos.
Era possível ver e ouvir tudo aquilo que nunca tinha sido
visto nem ouvido desde que nascemos, e que nem
acreditávamos ser possível. Alguns lugares que obedeciam
a normas existentes desde sempre e que só permitiam a
entrada de pessoas autorizadas, tais como universidades,
fábricas, teatros, de repente abriam suas portas para todo
mundo e permitiam que ali fizessem de tudo, exceto o que
estava previsto para aquele lugar: discutir, comer, dormir,
se amar. Não havia mais espaços institucionais e sagrados.
Professores e alunos, jovens e velhos, executivos e
operários, todos se falavam, as hierarquias e as distâncias
se dissolviam milagrosamente na conversa. Não havia
espaço para os cuidados oratórios, a linguagem cortês e
refinada, o tom pausado e as circunlocuções: esta forma de
distância por meio da qual — nos dávamos conta — os
poderosos e seus servidores — por exemplo, o jornalista
Michel Droit — impunham sua dominação. Aos brados, as
vozes falavam de modo brutal, se cortavam sem desculpas.
Os rostos exprimiam cólera, desprezo, prazer. A liberdade
de atitude e a energia dos corpos furavam a tela. Se era
isso a revolução, então, ela estava lá, em todo o seu
esplendor, na propagação e relaxamento dos corpos,
sentados em qualquer lugar. Quando Charles de Gaulle
reapareceu — afinal, por onde esteve? esperávamos que
tivesse ido embora para sempre —, atacou o movimento de
modo grosseiro e, com a boca deformada de nojo, usou uma
palavra antiga para designá-lo, que significava, ao mesmo
tempo, “zona”, “lambança”, “titica”, “mar de lama”. Sem
saber o sentido do que ele estava dizendo, percebemos
todo o desdém aristocrático que ele sentia pela revolta,
reduzida por ele a uma palavra relacionada ao excremento
e à cópula, ao balbucio animal e aos instintos libertados.
Nem percebemos que não tinha surgido nenhum líder
operário. Com certo paternalismo, os dirigentes do Partido
Comunista e dos sindicatos continuavam pautando as
necessidades e os desejos. Eles se anteciparam para
negociar com o governo — que já quase não se manifestava
—, como se não fosse possível conseguir nada melhor do
que o aumento do poder de compra e a diminuição da idade
da aposentadoria. Ao ver o acordo de Grenelle ser firmado,
com uma articulação pomposa que usava palavras que
tínhamos esquecido como usar três semanas antes (as
“medidas” “consentidas” pelo governo), sentimos que tudo
tinha esfriado. Tínhamos esperança outra vez vendo a
“base” recusar a abdicação de Grenelle e Mendès France
em Charléty. Mergulhamos outra vez na incerteza com a
dissolução da Assembleia e com o anúncio das eleições.
Quando uma multidão sombria invadiu o Champs-Élysées,
com Debré, Malraux — o estrago inspirado por seus
comentários não salvava mais da servidão — e outros,
braços dados em uma fraternidade artificial e lúgubre, ficou
claro que tudo tinha acabado. Não dava mais para ignorar
que havia dois mundos e que era preciso escolher entre os
dois. As eleições não constituíam uma escolha, mas uma
recondução dos notáveis para seus lugares de origem. De
todo modo, metade dos jovens não tinha ainda 21 anos, não
podia votar. Na escola, nas fábricas, a CGT (Confederação
Geral do Trabalhador) e o Partido Comunista ordenaram que
todos voltassem ao trabalho. Achamos que o porta-voz
deles, com elocução lenta e grave, típica de falsos
camponeses, tinha nos enganado. Eles ganharam a
reputação de “aliados objetivos do poder” e de traidores
stalinistas, figuras que se tornariam, no local de trabalho, o
alvo de todos os ataques.
Ela não sente ter uma idade específica. Sente uma certa
arrogância de mulher jovem em relação às mais velhas,
uma condescendência com as mulheres já na menopausa. É
improvável que um dia se torne uma delas. Não se
incomoda com a predição que um dia fizeram de que
morreria aos 52 anos. Parece uma idade aceitável para
morrer.
Anunciaram que o clima esquentaria na primavera, e
depois no outono. Mas nunca aconteceu nada disso.
Comitês de ação escolares, autonomistas, ecologistas,
antinucleares, objetores de consciência, feministas,
homossexuais. Havia uma efervescência de muitas causas,
mas elas não se juntavam. O resto do mundo também
estava passando por inúmeras convulsões, da
Tchecoslováquia à interminável Guerra do Vietnã, passando
pelo atentado na Olimpíada de Munique, e por sucessivas
juntas na Grécia. O governo e Marcellin reprimiam
tranquilamente as “ações esquerdistas”. E, ainda por cima,
a morte tão brusca de Pompidou (acreditávamos que ele
tinha apenas hemorroidas). Na sala de professores, os
cartazes do sindicato voltavam a anunciar que aquela greve
“contra a degradação das nossas condições de trabalho”
faria “o governo voltar atrás”. Imaginar o futuro se limitava
a marcar na agenda as férias, logo no começo do ano letivo.
Ler o Charlie Hebdo e o Libération fazia com que se
mantivesse acesa em nós a crença de que pertencíamos a
uma comunidade voltada para o prazer revolucionário e
para o trabalho, à espera de um novo mês de maio.
cama 2 mil
poltrona Emmanuelle 1 mil
armário de remédios 50 etc.
2. Jornal ilustrado católico para jovens mulheres lançado em 1937. (N. E.)
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6. Livro didático em dez volumes sobre literatura francesa da Idade Média até o
século 21, lançado em 1948 e adotado nas escolas por décadas. (N. E.)
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8. Expressão pejorativa para espiões, neste caso referindo-se aos agentes anti-
OAS que faziam uso de práticas que não eram oficialmente permitidas à polícia
ou ao exército. (N. E.)
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9. Referência a uma anedota relacionada ao jogo de bridge usada para alertar
jogadores iniciantes. (N. E.)
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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida,
arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a
permissão expressa e por escrito da EDITORA FÓSFORO.
Ernaux, Annie
Os anos [livro eletrônico] / Annie Ernaux ; tradução Marília
Garcia. — São Paulo : Fósforo, 2021.
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