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ao Bernardino Gonzaga Jo ISBN 85-02-01267-3 Copyright © 1993, Jodo Bernardino Garcia Gonzaga Todos os direitos reservados Dados Internacionais de Cataloga¢do na Publicagdo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gonzaga, Jodo Bernardino Garcia A Inquisigao em seu mundo / Jodo Bernardino Garcia Gonzaga. — 4. ed. — Sao Paulo : Saraiva, 1993. Bibliografia. ISBN 85-02-01267-3 1, inquisigdo |. Titulo. 93-2169 CDD-272.2 Indices para catélogo sistematico: 1. Inquisigao : Perseguigées religiosas 272.2 editors SARAIVA ‘Av. Marqués de S60 Vicente, 1697 — CEP 01139-904 — Berra Funda — Tel.: PABX (O11) 826-8422 Caixa Postal 2362 ~ Telex 1126789 — FAX (011) 626-0606 — FAX Vendas: (011) 825-3144 — Séo Paulo-SP. 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CONDIGOES DE VIDA DO POVO INDICE APRESENTAGAO occcssssssssssssssessesstsssssssssossnnsnssossnsnensseseeee ul INTRODUGAO .. 7 A JUSTIGA CRIMINAL COMUM..... 21 1. Necessidade aqui do seu exame, 21; 2. Justica feudal, 22; 3. Jus- tiga Eclesidstica, 24; 4. Reaparecimento do Direito romano e sistema processual inquisitério, 25; 5. Absolutismo do poder real, 26; 6. Ine- xisténcia do principio de igualdade, 26; 7. Cerceamento da defesa, 27; 8. Pris’o processual, 28; 9. Sistema das provas legais, 29; 10. Tortura, 31; 11. Principio da legalidade dos delitos e das penas, 34; 12. Princfpio da personalidade da responsabilidade criminal, 35; 13. Principio da proporcionalidade entre o crime e a pena, 36. MEDIDAS PUNITIVAS DO DIREITO COMUM .. 37 1. Penas privativas da liberdade, 37; 2. Penas restritivas da liberda- de, 38; 3. Penas privativas de direitos, 40; 4. Penas patrimoniais, 40; 5. Penas corporais, 40; 6. Reforma humanizadora, 45. 41 EXPLICAGOES PARA O RIGOR JUDICIAL wens 1. Geral aceitagao do rigor, 47; 2. A proliferacao de crimes, 48; 3. Dificuldades para a sua apuracdo, 48; 4. Finalidades das penas, 49. 51 1. As cidades e as moradias, 51; 2. Presenga da morte, 52; 3. Fome, peste, guerra, 53; 4. A-Medicina, 55; 5. Insensibilidade, 56; 6. As navegacdes maritimas, 56. A PRESENCA E O PROBLEMA DA RELIGIAO 59 1, Religiosidade popular, 59; 2. Lutas religiosas, 61; 3. Os cigance, 64. VI. VI. VIL. Ix. XI. XIL JOAO BERNARDINO GONZAGA O MISTERIO JUDEU 1. O ‘‘povo eleito”’ e a diaspora, 65; 2. Perseguicdes em Roma, 66; 3. As cruzadas, 68; 4. ‘‘O inferno da Idade Média’’, 69; 5. Restri- ¢des impostas, 70; 6. Generalizada malquerenga popular, 71; 7. Fun- damentos religiosos, 71; 8. Fatores sociais, 74; 9. Fatores econémi- cos, 75; 10. Responsabilidade coletiva, 77; 11. Idade Moderna, 77. DIREITO PENAL E RELIGIAO 1. O mutdvel campo do Direito Penal, 79; 2. Estreitos vinculos com a religido, 80; 3. Sistema teocratico puro, 80; 4. Pena apaziguadora da ira divina, 80; 5. Principio politico nacionalista, 81; 6. Crimes religiosos, 82. . DIREITO PENAL CANONICO .... 1. Formagao do Direito Canénico, 85; 2. Direito Penal Canénico, 85; 3. Regras processuais, 87; 4. Adocdo da tortura, 87; 5. Confluén- cia de jurisdicdes, 90. ANTECEDENTES E NASCIMENTO DA INQUISICAO ..... 92 1. Heresias no império romano, 92; 2. Idem, na Idade Média, 93; 3. Reagdes da Igreja, 95; 4. Nascimento da Inquisi¢4o, 97. . EXAME CRITICO DA INQUISIGAO. o...-sssssecessesesrseeneeneeees 100 1. Interesse que o tema desperta, 100; 2. Acusacdes a Inquisigéo, 103; 3. Fé da Igreja em sua missdo, 106; 4. Principio da unidade religiosa, 107; 5. As crengas heréticas, 109; 6. Cerceamento liber- dade religiosa, 112; 7. Perspectiva juridico-penal do problema, 116; 8. O pensamento de Santo Agostinho, 116. O PROCEDIMENTO INQUISITORIAL ......s.ssesseesessererseniees 119 1. Modelos do Direito laico, 119; 2. Organizagdo do tribunal e atos processuais, 120; 3. Regras processuais de Direito comum e de Direi- to Can6nico, 122; 4. Interrogatério dos acusados ¢ tortura, 124; 5. Cerceamento a defesa, 128; 6. Classificagdes dos hereges, 129. O SISTEMA PENAL DA INQUISICAO 131 1, Finalidades das penas seculares ¢ can6nicas, 131; 2. San¢des impos- tas pela Igreja, 133; 3. Freqtientes mitigagdes, 136; 4. Pena de mor- te, 136, 5. Medidas patrimonais, 141. 4 XIIl. XIV. XV. XVI. XVI. XVII. iNDICE 9 A INQUISICAO NA ITALIA E NA FRANCA va 142 1. Italia, 142; 2. Judeus italianos, 147; 3. A crise franciscana, 148; 4. Franga, 152; 5. O processo dos templarios, 155; 6. Joana D’Arc, 156. A INQUISIGAO NA ALEMANHA E EM OUTROS PAISES. MAGIA E BRUXARIA ee 159 1, Alemanha, 159; 2. Outros paises, 161; 3. Magia e bruxaria, 161. A ESPECIAL SITUACAO DA ESPANHA 1. Invas’o muculmana, 170; 2. Inquisicg&o medieval, 171; 3. A Recon- quista, 172; 4. Unificagao nacional, 173; 5. Presenca da religido na Reconquista, 174; 6. Dificil posic&o da Igreja, 176; 7. Nascimento da moderna Inquisi¢ao espanhola, 180. A MODERNA INQUISICAO ESPANHOLA. PRIMEIROS MOVIMENTOS ..........ccs:scscssseseseeeseserseeeseeeeeenes 183 1. Inicio. da atividade inquisitorial, 183; 2. Torquemada, 185; 3. O problema dos infiéis, 186; 4. Judeus e marranos, 189; 5. Mouros e mouriscos, 197; 6. Observacdes complementares, 202; 7. Regras pro- cessuais e medidas repressivas, 204. A MODERNA INQUISICAO ESPANHOLA. NOVOS PROBLEMAS ae 1. Anseios de liberdade, 207; 2. Erasmo de Rotterdam, 208; 3. Mis- ticismo, 209; 4. Magia e bruxaria, 212; 5. A Reforma protestante, 212; 6. Crescimento da censura, 215; 7. Correntes liberais, 219; 8. Caminho do ocaso, 221. 207 A BNQUISICAO EM PORTUGAL .....esecccesesseseseeeeteseesereanes 222 1. Perfodo medieval, 222; 2. Ainda e sempre, os judeus, 223; 3. Es- tabelecimento da Inquisicao, 227; 4. Os trabalhos inquisitoriais, 230; 5. Oscilagdes no relacionamento com o Estado, 233; 6. Periodo Pom- balino, 236; 7. Triunfo do liberalismo e extincZo do Santo Oficio, 237. EP{LLOGO oo. eeeesceeseesseesesseeseeseeeesessenesesseenseesacesessnesseseneesesae 238 OBRAS CONSULTADAS. ....cssceccsssessseesetesseseseesacsenenesesenes 240 APRESENTACAO Eis mais um livro sobre o candente tema da Inquisig¢ao. Pode- ~se dizer, porém, que é obra um tanto diferente das congéneres. O autor, Prof. Dr. Jodo Bernardino Gonzaga, é advogado famo- so e docente de Direito Penal hé muitos anos. Em seus estudos, deparou com o fendmeno “‘Inquisicdo’’; esta, famigerada como é, mereceu-lhe especial atencdo. Certo é que se estendeu por centtirias, ou seja, desde o século XII até o século XIX; comecou, pois, na Idade Média Ascendente, atravessou.o pertodo do Renascimento e prolongou-se pela Idade Moderna. Como entender tal fenédmeno, comentado geralmente com andtemas e censuras passionais? A fim de compreender os acontecimentos, 0 autor quis recorrer aum auténtico principio de historiografia: néo se podem compreen- der os antepassados e seus feitos com objetividade e justica se ndo se reconstituem as grandes linhas de pensamento da respectiva épo- ca; cada ser humano é filho do seu tempo e, por isto, profunda- mente marcado pela cultura do seu século. O Prof. Jodo B. Gonzaga realizou a sua tarefa com especial co- nhecimento de causa, pois estudou os procedimentos penais da justi- ¢a medieval e pds-medieyal. No livro agora entregue ao ptiblico, ele dedicou nd@o menos do que os oito primeiros capttulos @ recompo- sig¢do das condigées de vida do povo na Idade Média e @ descrigao das medidas punitivas da época. Ele o fez com minticias muito vivas e coloridas, que talvez surpreendam o leitor contempordneo, mas que ndo impressionavam os homens de outrora; para estes, o rigor judicidrio era um elemento de sua cultura. E por qué? Como? Aqui se acha algo de importante, que bem distingue a mentali- dade moderna da medieval. Os medievais eram mais dados ao ri- gor da Logica e as verdades metafisicas do que a ternura dos sen- timentos; 0 raciocinio abstrato e rigido neles prevalecia sobre 0 sen- so psicoldgico (ainda ndo conheciam a moderna psicologia das pro- Sfundidades!)'. Em nossos dias verifica-se quase 0 contrdrio: muito (1) Tenham-se em vista as grandes Sumas, tipicas da Idade Média; s4o constru- ges arquiteténicas movidas pelo raciocinio ¢ seus silogismos rigorosamente concate- nados. 12 JOAO BERNARDINO GONZAGA se apela para a psicologia e o sentimento, por vezes com detrimen- to de principios perenes; estes cedem nao raro a critérios subjeti- vos e relativistas. De modo especial, o senso metafisico dos medie- vais se revelava na valorizacdo da alma e dos bens espirituais. Tao grande era o amor @ fé (esteio da vida espiritual) que se considera- va a deturpacao da fé pela heresia como um dos maiores crimes que o homem pudesse cometer*. Isto ndo quer dizer que os medievais, fossem insensiveis ou bér- baros. Dentro da sua fidelidade @ verdade e das suas categorias culturais, procuravam cultivar a justiga e a benevoléncia. Um dos textos mais tfpicos a propésito é o retrato do Inquisidor tragado por Bernardo de Gui (século XIV), tido como um dos mais seve- ros inquisidores: “O inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade religiosa, pela salvagado das almas e pela extirpagao das heresias. Em meio as dificuldades permaneceré calmo, nunca cede- ré a@ célera nem @ indignagdo. Deve ser intrépido, enfrentar o peri- go até a morte; todavia ndo precipite as situagdes por causa da au- ddcia irrefletida. Deve ser insenstvel aos rogos e as propostas da- queles que o querem aliciar; mas também ndo deve endurecer o seu coracdo a ponto de recusar adiamentos e abrandamentos das penas conforme as circunsténcias. Nos casos duvidosos, seja circuns- pecto; nao dé facil crédito ao que parece provdvel, e muitas vezes nao & verdade; também nao rejeite obstinadamente a opinido con- tréria, pois o que parece improvdvel, freqiientemente acaba por ser . comprovado como verdade... O amor da verdade e a piedade, que™ devem residir no coragdo de um juiz, brilhem nos seus olhos, a fim de que suas decisdes jamais possam parecer ditadas pela cupidez e a crueldade’’ (Pratica VI, Douis 232s). Além disto, é de notar que muitos dos réus sentenciados podiam gozar de indulto, que os dispensava total ou parcialmente da sua pena, Podiam também usufruir de licenca para sair do cdrcere e ir tirar férias em casa; em Carcassonne (Franca), por exemplo, aos (2) E esta concepcSo que explica 0 seguinte texto de So Tomas de Aquino: “£ muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que faisificar a moeda, que ¢ o meio de prover A vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moe- das ¢ outros malfcitores sio, a bom direito, condenados & morte pelos principes se- culares, com muito mais razdo os hereges, desde que sejam comprovados tais, po- dem n&o somente ser excomungados, mas também em toda justica ser condenados a morte”? (Suma Teoldgica H-Il, 11, 3c); essa fé era tio viva ¢ espontanea que difi- _cilmente: se admitia viesse alguém a negar com boas intencdes um sé dos artigos do Credo: 4 APRESENTACAO 13 13 de setembro de 1250, 0 Bispo deu a uma mulher chamada Ala- zais Sicrela permissdo para sair do cdrcere e ir aonde quisesse até a festa de Todos os Santos (1° de novembro), ou seja, durante se- te semanas. Licenga semethante foi dada por cinco semanas a um certo Guilherme Sabatier, de Capendu, na ocasido de Pentecostes (9/05/1251). Raimundo Voiguier de Villar-en-Val obteve uma licen- ¢a que expirava no dia 20/05/1251, mas que lhe foi prorrogada até o dia 27. Outro caso € o de Pagane, vitiva de Pons Arnaud de Preixan, que, encarcerada, obteve licenga para férias de 15/06 a 15/08 de 1251. Os prisioneiros tinham o direito de se afastar do cdrcere para tratamento de satide por quanto tempo fosse necessdrio. Sdo nume- rosos os casos de que se tem nottcia: assim, aos 16/04/1250, Ber- nard Raymond, de Conques, obteve a autorizagdo para deixar a sua cela propter infirmitatem. Aos 09/08 seguintes, a mesma per- misso era dada a Bernard Mourgues de Villarzel-en-Razés, com a condig¢éo de que voltasse oito dias apdés obter a cura. A 14/05 a mesma concessao era feita a Armand Brunet de Couffoulens; e a 15/08 @ Arnaud Miraud de Caunes. A 13/03/1253 Bernard Borrel foi posto em liberdade propter infirmitatem, devendo voltar ao cér- cere quinze dias apés a cura. A 17/08 seguintes, Raine, filha de Adalbert de Couffoulens, foi autorizada a permanecer fora do cér- cere quousque convaluerit de aegritudine sua (até que ficasse boa da sua doenga)... A repetigdo de tais casos a intervalos breves, e as vezes no mesmo dia, mostra que ndo se tratava de excec¢ées, mas de uma rotina bem definida. Também havia autorizagdo aos presos para ir cuidar de seus. familiares em casa. As Yezes os problemas de famtlia levavam os Inquisidores a comutar a pena de prisdo por outra que permitisse atendimento @ familia. Até mesmo os mais severos praticavam tal gesto; sabe-se, por exemplo, que o rigoroso juiz Bernard de Caux em 1246 condenou @ prisdo perpétua um herege relapso, chamado Bernard Sabatier; na prépria sentenga condenatéria, observava que, o pai do réu sendo um bom catélico, ancido e doente, o filho po- deria ficar junto do pai enquanto este vivesse, a fim de lhe dispen- sar tratamento. . Acontece também que as penas infligidas aos réus eram abran- dadas ou mesmo supressas: a 3/09/1252, P. Brice de Montréal ob- teve a troca da prisio por uma peregrinagdo @ Terra Santa. Aos 27/06/1256 um réu que devia peregrinar a@ Terra Santa, recebeu em troca outra pena: pagaria 50 soidos de multa, pois ndo podia viajar propter senectutem (por causa da idade ancid). Sdo conheci- 14 JOAO BERNARDINO GONZAGA dos também os casos de indulto total: o Inquisidor Bernardo de Gui, em seu Manual, apresenta a formula que se aplicava para agra- ciar plenamente o réu. O mesmo Bernardo de Gui reabilitou um condenado para que pudesse exercer func6es ptblicas; a um filho de condenado que cumprira pena, reconheceu o direito de ocupar lo e exercer funcdes ptiblicas. Assim, seja citado um exemplo entre vari outros: Em 1305 o Inquisidor de Carcassonne provocou, por seus rigo- res, a revolta da opinido publica: os habitantes de Carcassonne, Albi e Cordes (Franca) dirigiram-se a Santa Sé. As suas queixas foram acolhidas pelo Papa Clemente V, que aos 13/03/1306 nomeou os Cardeais Pierre Taillefer de la Chapelle e Béranger Frédol para fazer um inquérito do que ocorria na regido; enquanto este se pro- cessava e as pris6es eram inspecionadas, estava suspensa toda per- quisigdo de hereges. Os dois prelados iniciaram a visita aos cdrce- res de Carcassonne nos tltimos dias de abril; encontraram af qua- renta prisioneiros que se queixavam dos carcereiros; estes foram lo- go substituldos por outros mais humanitérios; aos detidos foram assinaladas celas recém-reformadas e ‘foi permitido passear per car- rerias muri largi ou em espago mais amplo; os guardas receberam a ordem de entregar aos prisioneiros tudo o que fosse enviado pelo rei Ou por seus amigos para a sua manutengdo. Os dois Cardeais visitaram outrossim os caérceres de Albi aos 4/05/1306; mandaram retirar as correntes que prendiam os encarcerados, designaram ou- tros guardas, mandaram melhorar as condigées sanitdrias das pri- s6es, abrindo janelas para a penetragao de luz e ar. Bonifacio VIII, tido como um Papa austero, mandou rever vd- rios processos de condenagdo de hereges; com efeito, trés meses apés assumir o pontificado, aos 29/03/1295, mandou revisar o pro- cesso do franciscano Paganus de Pietrasanta; aos 13/02/1297 anu- lou a condenag¢ao, por heresia, de Rainero Gatti de Viterbo e seus dois ‘filhos, porque Sora proferida na base de um testemunho man- chado por perjurio. Em 1298 0 mesmo Papa mandou restituir aos filhos de um herege os. bens confiscados pela Inquisig¢do. Intimou também aos Inquisidor da provincia de Roma, Adéo de Coma, que deixasse de perseguir um cidaddo de Orvieto jd absolvido por dois Inquisidores. Sabe-se também que o Papa Honério IV (1285-87) aboliu, na APRESENTACAO 15 Toscana, as terriveis Constituig6es que o Imperador Frederico II havia editado contra as heresias. Este fato nos leva a considerar outro aspecto do fendmeno ‘‘In- quisigao”’: A Inquisic¢do nunca foi um tribunal meramente eclesitstico; sem- pre teve a participagao (e participagao de vulto crescente) do poder régio, pois os assuntos religiosos eram, na Antigii de Média, assuntos de interesse do Estado; a repressdo das here- sias (especialmente dos cdtaros, que pilhavam e saqueavam as fa- zendas) era praticada também pelo braco secular, que muitas vezes abusou da sua autoridade. Quanto mais o tempo passava, mais o poder régio se ingeria no tribunal da Inquisicdo, servindo-se da re- ligido para fins politicos. Dois casos significativos a tal propésito foram: 1) em 1312 a condenaga&o dos Templarios, contra os quais o rei Felipe IV o Belo da Franga (1285-1314) moveu a Inquisi¢ao, desejoso de possuir os bens da Ordem dos Templarios, quando con- denada e abolida; 2) em 1431 a condenagao de Joana d’Arc, a jo- vem guerreira que incomodava a Coroa da Inglaterra pelo seu ze- lo cristao e patridtico. Alids, quanto mais a histéria avangava, tanto mais absolutistas se tornavam os reis do Ocidente europeu, de tal modo que ndo podiam tolerar outra instancia judicidria auténoma (a eclesidstica) ao lado da insténcia judicidria civil; esta deveria mais e mais valer- -se dos tribunais eclesidsticos para implantar os interesses dos mo- narcas. A prepoténcia comecgou com Felipe IV o Belo da Franca e atingiu o seu auge na Espanha e em Portugal a partir do século XVI: o desejo de unificar a populagaéo da peninsula ibérica, com- posta de cristdos, judeus e mugulmanos, levou os reis daqueles dois patses a pedir e obter do Papa a instalagaéo da Inquisiggdo em seus territérios; os soberanos acionavam a Inquisigdo segundo os seus propésitos, mediante homens por eles nomeados, provocando sérios conflitos com a Santa Sé, que mais de uma vez se recusou a reconhecer o procedimento da Inquisig¢do na pentnsula ibérica; alids, no final da vigéncia desta instituigdo, jé nao se dizia Inquisi- ¢do Eclesidstica, mas sim Inquisicao Régia. A estes fatos outros se poderiam acrescentar. Um juizo justo sobre o passado exige que se apontem também os elementos ate- nuantes e as justificativas daqueles que foram responsdveis pelos Processos da Inquisigdo. ‘ O Prof. Jodo Bernardino deu provas de sincero amor a verda- de procurando retratar imparcialmente os tracos caractertsticos da 16 JOAO BERNARDINO GONZAGA Inquisigéo. Quis oferecer ao grande piblico os elementos indispen- sdveis para uma avaliagdo justa e objetiva dos fatos histéricos. Possam os leitores desta obra beneficiar-se das coordenadas que o autor thes apresenta na base de muita leitura e pesquisa! E possa o proprio mestre regozijar-se por ter elaborado uma obra valiosa e original sobre tema t@o complexo! Pe, Estévéo Tavares Bettencourt O.S.B. INTRODUGAO A Inquisicfo € tema que nado morre. Nos ataques dirigidos 4 Igreja Catélica, ela aparece sempre, qual perpétuo ritornello a gi- rar com as mesmas frases, as mesmas imagens, as mesmas criticas. Estas sdo verossimeis, porque fundadas em fatos histéricos objeti- vos, colhidos na vida real, e, a forca de repetidas, adquirem apa- réncia de incontestavel verdade. Rememoremos 0 quadro estereotipado que os opositores descre- vem. Nascida oficialmente no comecgo do século XIII e durando até o século XIX, a Inquisigaéo dedicou-se, dizem eles, a semear 0 terror e a embrutecer os espiritos. Adotando como método de tra- balho a pedagogia do medo, reinou, de modo implacavel, para im- por aos povos uma ordem, a sua ordem, que nao admitia divergén- cias, nem sequer hesitagdes. Ao mesmo tempo, pretende-se que o que havia por detrds dela, nos bastidores, era um clero depravado, ignorante e corrupto, em busca apenas do poder politico e da ri- queza material. Inutil tentar alguém escapar-Ihe. Dotado de natureza tentacular, o Santo Oficio via tudo, se infiltrava por toda parte, até no reces- so dos lares, onde as paredes tinham ouvidos. Obrigava os fiéis a se tornarem espides ¢ delatores, dessa maneira montando densa re- de de informantes ocultos. Gragas a isso, manteve perfeito contro- le social, exigiu modelos de comportamentos, impediu o livre deba- te e o livre arbitrio, sufocou dissidéncias, exerceu a censura e assim — eis a absurda conclusdo que nos impingem — a Igreja teria con- seguido entravar por longo tempo o desenvolvimento cultural da humanidade. As censuras, oferecidas com requintes de exagero, sao de duas ordens: policiamento ideolégico e crueldade. Servindo-se da Inquisi- cao, a Igreja submeteu os povos sob seu dominio a verdadeira ca- misa de forcga, devassou o intimo das pessoas ¢ transformou em crime, passivel de fogueira, o simples ato de pensar em desacordo com ela. Abolido ficou o sadio direito, que cada ser humano de- ve possuir, de fazer suas opcodes. Prosseguem os adversdrios, sempre montando quadros muito co- 18 JOAO BERNARDINO GONZAGA loridos: a arma utilizada para submeter as pessoas era o terror. Para que alguém fosse preso, bastava mera dentincia secreta. A partir dai, o acusado se via submetido a alucinante processo, fei- to sob a égide do segredo e da dor: desconhecia a identidade de quem o delatara e das testemunhas que contra ele depunham; es- condiam-lhe as provas colhidas; ignorava 0 conteido das acusa¢ées, mas, sem embargo, exigiam-lhe se confessasse culpado e admitisse que, no rec6ndito da sua alma, era um herege. Negavam-lhe a as- sisténcia de.um advogado, o réu devia permanecer totalmente sozi- nho, 4 mercé dos algozes. Para extorquir-Ihe 0 reconhecimento do seu crime (0 crime de ter pensamentos prdprios!), submetiam-no afinal 4 tortura. Tudo isso se passava 4 sombra, nos pordes das masmorras inquisitoriais. O pobre infeliz que fosse apanhado ingres- sava em escuro labirinto, onde desaparecia para dele nunca mais se ter noticia; ou, quando acaso ressurgia a luz do sol, muito tem- po depois, era para ser conduzido 4 fogueira, na praca publica, em meio a festivo auto-de-fé. Todos os bens que ele e sua familia possuiam eram confiscados. O historiador francés Jean-Pierre De- dieu declara que, ‘‘ao ler a descricfo de certos casos, chorou de emogdo diante da grandeza de um miartir, ou de raiva ao ver o que se fazia‘em nome de Cristo’”’ (op. cit., pag. 8). Fala-se em centenas de milhares, alguns escritores avangam ou- sadamente até ‘‘milhdes’’ de pessoas sacrificadas pela intolerancia. Os judeus foram atingidos duramente, em massa, trucidados, expul- sos dos seus lares e reduzidos a miséria. Com freqiiéncia os subme- teram.ao tremendo dilema de escolher entre o batismo forgado ou a morte. Na Espanha, a Inquisic&o atingiu o climax do seu desen- volvimento e nela paira, como ave de mau agouro, a sinistra figu- ra de Torquemada, convertido pelos detratores em protétipo de crueldade fandatica. E riquissima a bibliografia que se compraz nessas evoca¢ées, com livros cujos titulos freqiientemente j4 predispdem o espirito de quem os vai ler. Citemos dois deles: Martiri del Libero Pensie- ro e Vittime delia Santa Inquisizione, de Antonino Bertolotti, e Gli Orrori delta Inquisizione, de Di Féréal, E. Briffault e M. de Cuendias, T4o cerrada e tenaz campanha montada sobre esse espec- tro-de violéncias acaba influenciando até mesmo estudiosos catdli- cos do mais alto tomo. O que haverdé, ou nado haverd, de verdadeiro nisso tudo e de que modo deveremos interpretar aquilo que é verdade? Lecionan- do Direito Penal desde ha muitos anos e interessados no estudo da Histéria desse ramo juridico, sempre nos sentimos atraidos pe- INTRODUGAO 19 lo enigm4tico problema da Inquisi¢4o, que, afinal de contas, cons- tituiu uma manifestagdo da Justiga Criminal do seu tempo. Decidi- mo-nos por fim a enfrentar o desafio quando deparamos com es- ta contundente observagio de André Frossard, que tanto admira- mos, em sua excelente coletanea Dieu en Questions: na Inquisic&o, escreve ele, ‘“‘néo se vislumbra qualquer traco de cristianismo’’. Como a explicaremos pois? Parece-nos muito intrigante o seguin- te: os tribunais de fé, é inegdvel, foram violentos, usaram métodos processuais e penais que consideramos reprovaveis; levaram efetiva- mente a padecimentos e 4 morte multiddes de pessoas, somente porque elas ousavam ter suas conviccdes. Tudo isso nos causa a nds, hoje, forte repulsa. Como entdo conciliar, eis a questao, tan- ta prepoténcia e tanta maldade com a suave figura de Jesus de Nazaré; com a virtude da caridade, que deve ser o farol mAximo a iluminar o caminho da Igreja? Prosseguindo: como entender o fato de que com a Inquisicdo, a despeito do acima dito, no fluir dos séculos conviveram tantos papas, tantos doutores, tantos santos, tantos piedosos sacerdotes ¢ leigos, tanta gente boa enfim, que a dirigiram, que a apoiaram, que dela participaram, que a defenderam, ou, pelo menos, que a presenciaram com naturalidade, sem protestar? O grande Sio Do- mingos de Gusmao é considerado um dos seus inspiradores. Teriam todos 0 corac&o cheio de fel e estaria toda essa gente embrutecida pela ma fé? Sera crivel.que, durante tao largo tempo, a Igreja ha- ja abandonado Cristo? Os trabalhos inquisitoriais ficaram sobretu- do a cargo, como seus principais responsaveis e artifices, dos ‘‘fra- des brancos’’ pregadores, os dominicanos, e dos ‘‘frades menores’’, os humildes seguidores do poverello de Assis. Impossivel € imagi- nar a cena de um frade franciscano, supostamente pleno de amor, alegria e compreensdo, a torturar ferozmente algum infeliz; e, nado obstante, isso aconteceu. Tantos aparentes paradoxos, concluimos, tém como causa ini- cial de incompreensdo este grave erro: transporta-se em bloco a In- quisicdo para a atualidade, a fim de, julg4-la dentro da atmosfera, das necessidades e das categorias mentais modernas, radicalmente diferentes do universo em que ela viveu. Desse modo, torna-se im- possivel aceita-la e forcgosamente ela horroriza. Ai precisamente, ali4s, residem a malicia dos seus atacantes e o interesse que mos- tram pelo assunto. Partindo da correta idéia de que a Igreja se pro- clama ‘‘imutavel’’, eles alertam para o perigo de deixd-la tomar de novo as rédeas do Poder, com o que voltariam as perseguicdes in- quisitoriais, com suplicios e fogueiras. Dessa forma, esté-se confun- 20 JOAO BERNARDINO GONZAGA dindo o essencial com o acidental. E ébvio que a imutabilidade do dogma catélico nada tem a ver com a disciplina eclesidstica, que pode perfeitamente variar, conforme as circunstancias de cada momento histdrico. A Inquisicdo, enquanto instituigao humana, nasceu e permane- ceu imersa no mundo que a envolvia, que a explica e que a mode- lou. Logo, sem conhecer esse mundo, nado poderemos julga-la. Por isso, quisemos proceder metodicamente na nossa investigagao. Co- mo o Santo Oficio integrou a Justica Criminal da sua época, tor- na-se preciso saber de que modo se comportava essa Justica. Em seguida, verifica-se que a inteira Justiga, tanto a comum como a eclesidstica, esteve sob a influéncia de um complexo de fatores, que criavam toda uma peculiar formacdo cultural. Eram condicdes culturais, politicas, sociais, econdmicas, religiosas, cientificas, que moldavam certo estilo de vida, muito diferente do nosso. Com o presente estudo, tentamos desvendar essa trama. Impde-se igualmente lembrar a envolvente religiosidade da épo- ca. Ao homem de hoje, forjado por intenso processo de seculariza- ¢4o que se iniciou com a Idade Moderna na civilizac4o ocidental, torna-se incompreensivel que a religido, outrora, haja assumido o papel de poderoso e efetivo ordenador da vida social. Também merece ser exposta a sina do povo judeu, que se apresenta com freqiiéncia na linha de frente dos queixosos contra o Santo Officio. Os historiadores que examinam a Inquisi¢éo se tornam muitas vezes enfadonhos devido a excessiva mengao, que fazem por dever de oficio, de nomes, datas e episédios. Isso procuramos evitar o quanto possivel, a fim de aligeirar nosso trabalho. Mais do que um relato exaustivo, com elenco de fatos, o que buscamos foi en- tender o fenémeno histérico. Tal sendo nosso objetivo, cingimo-nos a examinar a Inquisicio européia, deixando de lado suas manifestagdes nas Américas, que daquela foram simples apéndices. Essa extensdo de pesquisa pare- ceu aqui dispensavel. No curso do relato, ao mencionarmos algum escritor, sua obra que citamos é a indicada na bibliografia final. A Biblia Sagrada de que nos servimos é a traducdo feita pelo Pe. Anténio Pereira de Figueiredo, edig&o Barsa, 1965. I. A JUSTICA CRIMINAL COMUM 1. Necessidade aqui do seu exame. 2. Jus- tiga feudal. 3. Justica eclesidstica. 4. Reapare- cimento do Direito romano e sistema proces- sual inquisitério. 5. Absolutismo do poder real. 6. Inexisténcia do principio de igualda- de. 7. Cerceamento da defesa. 8. Priséo pro- cessual. 9. Sistema das provas legais. 10. Tor- tura. 1]. Principio da legalidade dos delitos e das penas. 12. Principio da personalidade da responsabilidade criminal. 13. Principio da proporcionalidade entre o crime e a pena. 1. As censuras apresentadas contra a Inquisic&o giram, invaria- vel e incansavelmente, em torno das idéias de intolerancia, prepo- téncia, crueldade; mas, ao assim descrevé-la, os criticos abstraem, ou referem muito de leve, 0 ambiente em que ela viveu. ‘Forcam por trata-la quase como um acontecimento isolado e, medida pelos padrées da atualidade, se torna incompreensivel e repulsiva para © expectador de hoje. Sucede porém que esse fenédmeno foi produto da sua época, in- serido num clima religioso e em certas condigdes de vida, submeti- do a forga dos costumes e de toda uma formacdo cultural e men- tal, fatores que forgosamente tiveram de moldar o seu comporta- mento. Por isso entendemos indispens4vel suprir grave lacuna: an- tes de examinar a Inquisic&0, é preciso conhecer de perto o mun- do que a envolveu, tao diferente do nosso. Sobretudo, ndo nos ol- videmos de que o Santo Oficio equivaleu a uma Justica Criminal, de sorte que nado € possivel entendermos o seu procedimento sem preliminarmente saber como atuava a Justiga Criminal comum, ou laica,-que lhe foi contemporfnea e que lhe serviu de modelo. Es- ta era uma Justiga assinalada por profundo atraso, com métodos toscos e violentos, mas por todos encarada com naturalidade, apro- vada e defendida pelos mais sAbios juristas de entao. Neste e no seguinte capitulo, tragaremos. pois um quadro, que 22, JOAO BERNARDINO GONZAGA merece ser minucioso, da situagdo judiciaria secular. Recuando a momento histérico anterior, faremos primeiro uma sintese muito apertada da Justica feudal e da primitiva Justica eclesidstica, para depois examinar detidamente a longa fase do Direito comum que se estendeu desde o século XIII até fins do século XVIII. Sao cerca de seis centtrias, que a Histéria do Direito Penal designa como ‘‘pe- riodo da vinganga publica’, porque se caracterizou marcantemen- te pelo desprezo as garantias individuais e por extrema brutalidade. 4 2. No regime feudal a jurisdic&o pertencia ao senhor da terra e se exercia sobre todas as pessoas que nesta viviam. As regras processuais adotadas eram costumeiras e basicamen- te as mesmas, tanto nos assuntos civis como nas questdes de natu- reza criminal. Vigorava o chamado ‘‘sistema acusatério”’, reduzin- do-se o julgamento a um confronto, em termos de rigorosa igualda- de, entre dois particulares, nobres ou homens livres. N&o se formara a nocdo do interesse ptiblico em punir os cri- mes. Conseguintemente, 0 direito de acusagdo somente pertencia 4 pessoa lesada, ou, se esta houvesse morrido, a sua linhagem. Sem a presenca de uma vitima, queixando-se, ndo era possivel instaurar 0 pleito. O procedimento era publico, oral e formalista. No dia fixado, as partes compareciam pessoalmente perante a assembléia formada pelos seus pares, sob a presidéncia do senhor feudal ou de um seu representante. O autor apresentava sua queixa de viva voz, através de rigidas férmulas tradicionais, sem cometer nenhuma falha que permitisse ao adversério proclamar nula a demanda. Em seguida, competia ao acusado responder de imediato, uma vez que o silén- cio equivalia a uma confissdo. A defesa tinha de consistir em nega- gdes exatamente ajustadas aos termos da acusacdo, refutando-a pa- lavra por palavra, de verbo ad verbum. Os litigantes deviam também prestar o juramento de que diziam a verdade, sempre que possivel acompanhados de pessoas de bem, que endossassem suas posicdes. Eram os conjuratores. A prova tes- temunhal, caso existisse, era igualmente formalista: as testemunhas depunham oralmente, diante das partes e da assembi¢ia, limitando- -se 4 pronunciar certas formulas indicativas de que a raz4o estava com este ou aquele contendor. Mais do que o contetido das suas declaragdes, o que importava éra apenas o numero de testemunhas concordes. As regras indicavam quantos depoimentos bastavam pa- ra que se desse como provado certo fato. I. A JUSTIGA CRIMINAL COMUM 23 Na hipotese de os juramentos ndo serem aceitos e de inexistirem testemunhas suficientes, restavam dois outros expedientes, oriundos do antigo Direito germanico: o duelo e os ‘‘Juizos de Deus’? ou ordélios. Ambos se baseavam na mesma crencga, de um Deus sem- pre presente no mundo, a interferir nos negécios humanos. Provo- cava-se pois a intervengdo divina, para que apontasse 0 culpado e nao permitisse a condenacdo de um inocente. No duelo, batiam-se acusador e acusado, reconhecendo-se razéo Aquele que vencesse. Nao deixava de haver ai alguma perspicacia: esperava-se que 0 mentiroso, sabedor da prépria culpa, que Deus também conhecia, lutasse com menor ardor, mais facilmente sen- do derrotado. Finalmente, se por qualquer motivo ndo conviesse o duelo, re- corria-se aos ordalios. Se o acusado insistisse na sua inocéncia, era ele (e as vezes também suas testemunhas) submetido a alguma pro- va que ensejasse a Deus a revelacio da verdade. Os métodos varia- ram muito, mas em regra consistiram na ‘‘prova do fogo” ou na “‘prova da 4gua’’. Por exemplo, o réu devia transportar com as maos nuas, por determinada distancia, uma barra de ferro incan- descente. Enfaixavam depois as feridas e deixavam transcorrer cer- to nuimero de dias. Findo o prazo, se as queimaduras houvessem desaparecido, considerava-se inocente 0 acusado; se se apresentas- sem infeccionadas, isso demonstrava a sua culpa. Equivalentemen- te ocorria na “‘prova da agua’, em que o réu devia por exemplo submergir, durante 0 tempo fixado, seu braco numa caldeira cheia de agua fervente. A expectativa dos julgadores era de que o culpa- do, acreditando no ordalio e por temor a suas conseqiiéncias, pre- ferisse desde logo confessar a prépria responsabilidade, dispensan- do o doloroso teste. Se o imputado fosse nobre de muito alto nivel, um principe, um conde, era-lhe permitido indicar algum subordinado seu | para feudal o juiz se reduzia a mero Arbitro, limitando-se a verificar a presenca ou nao de provas formais con- cludentes. O julgamento era imediato, oral e dele ndo cabia recur- so. Reconhecida a culpa do réu, as san¢gdes aplicadas eram normal- mente de natureza patrimonial. Firmou-se assim um sistema processual conhecido como ‘‘acusa- tério’’, dotado das seguintes caracteristicas: necessidade de iniciativa 24 JOAO BERNARDINO GONZAGA da vitima, sem 0 que o processo n&o se instaura; igualdade de di- reitos entre as partes, com instrucdo contraditéria e pitblica; forma- lismo; processo, por fim, enderegado somente a satisfazer o interes- se individual lesado, e n4o o interesse piblico de repressdo aos cri- mes. _ Como bem se compreende, tudo quanto acima esta exposto uni- camente se aplicava aos nobres, aos cavaleiros, aos homens livres. Os membros das classes servis estavam inteiramente submetidos a vontade dos seus senhores, sujeitando-se a medidas punitivas discri- cionarias. 3. Concomitantemente, se foi estruturando a Justica da Igreja, dotada de espirito por inteiro diverso. De comeco, somente se aplicava ao clero. O religioso que co- metesse alguma falta devia purgd-la. A alma transviada precisava ser reconduzida ao rebanho. Os objetivos a alcangar eram, pois, a recuperacdo do faltoso e, quicd, a tranqiiilizagao da comunida- de. Tratava-se mais propriamente de uma Justica disciplinar do que judicidria; e, a vista dos seus objetivos, é natural que adotasse re- gras com eles condizentes: a apurag&o dos fatos devia ser discreta, isto é, secreta, para o bem do acusado e para evitar escandalo pi- blico. A confissio do réu passou a ter importancia capital, visto constituir indicio de arrependimento, suscitando esperancga da alme- jada regeneracdo. Tudo enfim se passava em outro plano, totalmente distinto das jurisdicdes feudais. Para ter inicio 0 processo, admitiu-se a denun- tiatio de qualquer fiel. Logo, porém, o Direito Canénico preferiu © procedimento de oficio, em que a autoridade eclesidstica desenca- deava as investigacdes téo logo percebesse a possibilidade de algu- ma irregularidade. Com o papa Inocéncio HI, no século XIII, e com o quarto Concilio de Latrao, em 1216, firmou-se 0 método da inquisitio. No procedimento per inquisitionem, permitia-se ao juiz, mesmo sem acusador, abrir um processo e nele livremente co- her as provas conducentes ao julgamento. Na Igreja nasce, desse modo, 0 que se veio a chamar de “‘siste- ma processual inquisitério’’, caracterizado ent&o por estas notas: a autoridade dispde de poderes para, por sua iniciativa, encetar uma acdo penal; liberdade do juiz para colher as provas que enten- da necessarias; procedimento secreto, em que avulta o interesse em obter a confissdo do réu. 1. A JUSTICA CRIMINAL COMUM 25 4. Voltando ao Direito comum, acrescentemos que o empiris- mo da Justica feudal, com seu sistema acusatério, a foi tornando, no passar do tempo, inaceitavel. Varias forg¢as concorreram para extingui-la. O crescimento das cidades levou cada vez mais ao desenvolvi- mento de jurisdicgdes icipais, com regras proprias e outras for- mas de julgamento. ém fortalecendo o Poder central, dos reis, que comegaram a se inclusive na administracéo da Justia. io inicial para domi cortes senhoriais consistiu na criagdo 2 das decisdes las nos feudos, come- ¢gou a caber apelo de processos escritos. no Corpus Ji veio a chamar ‘‘r te suscitou enorme no Corpus Juris um conjunto pratico, comple! sAbias. Acresce que o Direito imperial romano vinganga publica’, calcado num sistema inquisi- na Igreja, mas com estes acréscimos: proces- ‘esa inexistente ou fortemente cerceada, lar- signado como tério, tal como e: so secreto e escrito, go emprego da tortu 26 JOAO BERNARDINO GONZAGA istir trés jurisdicdes penais: a central, le cidades ou, conforme o exercida p eclesiastica, restrita as pais, de regides mais ou menos e: questdes que importavam a Igreja. os que a Inglaterra constituiu uma excec4o na Euro- i Direito romano. Mante- julgado por seus pares. Em regra, esse pais ndo empregou a 5. A Justic¢a comum do longo periodo em exame (séculos XIII a XVIII) desconheceu quase todas as garantias individuais que per- meiam as ordens juridicas da atualidade. Comegando pelo plano constitucional, lembremos que a triparti- ¢4o politica dos Poderes do Estado somente veio a ingressar no mundo civilizado em fins do século XVIII, por influéncia de Mon- tesquieu: o Estado repartido entre Poderes Legislativo, Executivo e. Judicidrio, cada qual soberano e independente na sua drea de competéncias. Isso, sem dtvida, propicia ndo sé a liberdade da Justic¢a, mas também lhe permite agir com mais equilibrio e impar- cialidade. Antes, o rei enfeixava em suas mdos todas as fungdes: dele emanavam as leis; ele as aplicava depois, administrando; e, por * fim, ao rei cabia também julgar, pessoalmente ou por seus dele- gados, as violagdes daquelas leis. Tamanha concentra¢géo de po- deres, ja de per si teria de acarretar maior rigor na puni¢ao dos crimes, encarados como intolerdveis ofensas as ordens do sobera- no, que as julgava. De imediato, também, o absolutismo real le- vou a espantoso alargamento do crime de lesa-majestade. Todos Os comportamentos que atingissem, ainda que longinquamente, os interesses do monarca, ou de membros da sua Casa, eram castiga- dos com requintado rigor, quase invariavelmente recebendo a pe- na capital. ; 6. Faltava o principio, hoje constitucional, da igualdade de to- dos: perante a lei e a Justica. Por expressas disposigées legais, as pessoas eram tratadas diver- samente, no processo e nos métodos punitivos, de acordo com a classe social a que pertencessem. Aos nobres, dificilmente se aplicava a tortura. As penas eram também executadas diferentemente. Por exemplo, a de morte, para I. A JUSTICA CRIMINAL COMUM 27 os nobres, consistia na decapitacaio, enquanto o plebeu era levado a forca. Cominavam-se, isto é, indicavam-se na lei sangdes distintas, con- forme a categoria do acusado. Eloqiiente exemplo disso é o Livro V, Titulo XXV, sobre o crime de adultério, das Ordenacdes Filipi- nas, que Felipe III de Espanha outorgou a Portugal em 1603: ‘‘Man- damos, que 0 homem, que dormir com mulher casada, e que em fama de casada stiver, morra por ello. Porém’se o adultero for de maior condigao, que o marido della, assi como, se o tal adulte- ro fosse Fidalgo, e o marido Cavalleiro, ou Scudeiro, ou o adulte- ro Cavalleiro, ou Scudeiro, e o marido pedo, ndo faréo as Justigas nelle execugado, até nol-o fazerem saber, e verem sobre isso nosso mandado”’. 7. Eram também ignorados principios, que reputamos basicos, de Direito Processual e de Direito Penal. No Direito Penal encon- tra-se a indicac&o dos fatos considerados criminosos e as respecti- vas penas. No Direito Processual Penal estao as regras que devem pautar a apuracdo do crime e sua autoria. No Direito moderno, uma a¢do penal se deve compor necessa- riamente com trés personagens: o acusador, quase sempre represen- | tado pelo Ministério Publico, o defensor e o juiz, eqitidistante das partes, que preside a colheita das provas por elas indicadas, even- tualmente ordena outras provas e, apdés ouvir os debates, profere sua decisio. Bem se entende que essa posicdo sobranceira do ma- gistrado Ihe facilita julgar com inteira imparcialidade. Ademais, vigoram atualmente o principio da publicidade do pro- cesso, no sentido de que as partes tém total direito de acesso a to- dos os atos nele produzidos, e 0 principio da plenitude da defesa, que de nenhum modo pode ser cerceada. Outrora, nada disso existia. O juiz dispensava a presenca de um acusador e de um defensor. Direito da Igreja, também ele tratava diretamente com o suspei que era compreensivel dian- te do objetivo visado, de promover essoa que se trans- viara e perante quem o juiz atuava lente como um guia espiritual. Por manifesto sofisma, transport © mesmo sis- tema para a Justica comum, em que a meta a al era muito diferente, ou seja, o puro e simples castigo do crimi oS Nao se admitia pois a presenca de um advogado, ou, quando isso veio mais tarde a ocorrer, a defesa era cuidadosamente entra- vada. O réu devia defender-se sozinho. As Ordenacdes francesas de 28 JOAO BERNARDINO GONZAGA 1539 advertiam expressamente no art. 162 que ‘‘en matiéres crimi- nelles ne seront les parties aucunement ouyes par le conseil ne mi- nistére d’aucune personne; mais répondront par leur bouche des cas dont ils sont accusez’’. O processo freqiientemente tinha origem em acusacoes secretas, ocultando-se a identidade dos delatores. Todos os atos subseqtien- tes eram mantidos também em segredo, de tal sorte que o réu nado s6 ignorava a origem e o contetido da acusac&o que lhe faziam, mas desconhecia igualmente as provas produzidas. Nos primérdios do sistema inquisitivo, ndo era assim, porque, seguindo os usos do Direito Canénico, as acta inquisitionis eram transmitidas ao acu- sado. Isso determinavam, por exemplo, as Ordenacées francesas de 1254. Depois, o segredo se impés, e todo o material acusatério pas- sou a ser escondido. Como diziam as Ordenagées francesas de 1498 no art. 110, ‘quant aux prisonniers et autres accusez de crime, ausquels faudra faire proces criminel, ledit proces se fera le plus diligemment et secrétement que faire se pourra, en maniére que au- cun n’en soit averti, pour éviter les subornations et forgements qui se pourroient faire en telles matiéres’’. Portanto, justificava-se a ocultagao com a necessidade de impedir que o réu, conhecendo as provas, as viesse a adulterar. Um escritor da época defendia tam- bém o sigilo para evitar a fuga do réu e a impunidade dos crimes: quando o culpado ‘“‘sauroit que le crime est prouvé contre luy, il s’en pourroit fouyr et ainsi demourroient les delicts impunis’’. Como conclui Esmein (op. cit., pag. 153), ‘todas as garantias da defesa desapareciam pouco a pouco. O processo se tornara ab- solutamente secreto, no somente no sentido de que tudo se passa- va longe dos olhos do publico, mas também no sentido de que ne- nhuma comunicagao das pecas era feita ao acusado. A este se foi sucessivamente retirando a assisténcia de conselheiros e a livre fa- culdade de arrolar testemunhas de defesa. Submetido a interrogaté- trios hdbeis e freqiientemente pérfidos, ameagado de tortura, ele fi- cava preso em terrivel engrenagem. Verifica-se mesmo que apds as Ordenagdes de 1498 a pressdo se tornou mais forte; as Ordena- gdes de 1539 consagram novos rigores’’. _ 8. Conhecemos duas espécies de pris&o: a penal, que se segue a uma condenac4o, como medida adequada ao crime; e a proces- sual (ou preventiva). Esta ultima nao é pena, mas tem objetivos exclusivamente processuais (garantir a presenca do réu na Justica, evitar que ele fuja ante a perspectiva de préxima condenag4o, im- pedir que ameace ou corrompa testemunhas, etc.). I. A JUSTICA CRIMINAL COMUM 29 A prisdo processual pode portanto atingir pessoa inocente, que sera depois absolvida. Exigem-se, de conseguinte, extrema prudén- cia e parcim6nia na sua decretacéo, que as leis atuais costumam cercar de muitas cautelas, inclusive somente a permitindo em casos graves. Em regra, 0 réu se deve defender solto. Antigamente, havia indiscriminado emprego dessa medida, bas- tando quaisquer pequenos indicios para que fosse imposta. Ao con- trério do que sucede hoje, em principio todo acusado devia perma- necer detido durante o processo. Ainda em 1764, Beccaria clamava contra-o abuso, que persistia, consistente em dar total arbitrio aos magistrados ‘‘de aprisionar um cidadao, de tirar a liberdade a um inimigo por frivolos pretex- tos, e deixar impune um amigo a despeito de haver indicios mais fortes de culpa’. Queria esse autor que as leis estabelecessem com preciso quais as hipédteses em que o acusado poderia ser preso preventivamente, e ressaltava a gravidade do problema lembrando que os carceres do seu tempo continuavam sendo ‘‘a horrivel man- sdo do desespero e da fome”’. Anotemos também que as pessoas ficavam entregues aos capri- chos das autoridades, porque faltavam meios processuais expeditos para cortar os abusos. N&o havia qualquer providéncia legal, co- mo 0 atual habeas corpus, apta a fazer cessar prontamente os cons- trangimentos ilegitimos. : 9. No curso de um processo criminal, colhem-se varias provas. Como aprecia-las na fase do julgamento? Eis outro ponto em que o Direito antigo se encontrava em profundo atraso. Vigora presentemente o sistema chamado ‘“‘da livre convicgio”: © juiz possui inteira autonomia para avaliar as provas, dando a cada uma 0 peso que melhor Ihe aprouver; mas em seguida tem essa liberdade cerceada, porque lhe é imposto o dever, sob pena de nulidade, de justificar na senten¢a suas preferéncias e a conclu- sio firmada. Como excec4o, conserva-se também o antigo “‘siste- ma da intima convicc4o’’, em que a liberdade é plena, porque o julgador fica dispensado de explicar seu veredicto. No Brasil, tal segundo método é adotado somente nos julgamentos, pelo Juri, dos crimes dolosos contra a vida (homicidio, induzimento, instiga- ¢%o0 ou auxilio a suicidio, infanticidio e abortamento), quando os jurados leigos, ou juizes de fato, se limitam a responder secamen- te a quesitos, com apenas um “‘sim’’ ou um ‘‘ndo’’. Em qualquer dos dois sistemas acima, as provas nado possuem 30 JOAO BERNARDINO GONZAGA pesos predeterminados pela lei, mas devem ser avaliadas caso a ca- so. Nem mesmo 4 confissdo do réu é hoje atribuida eficacia absolu- ta, porque se sabe que ela pode ser falsa: o réu admite o crime por erro, por coac&o, em virtude de desequilibrio mental, etc., até mesmo pelo altrufstico propdsito de inocentar o verdadeiro cul- pado, que ele deseja proteger. Inexistem, no moderno Direito Pro- cessual Penal, restrigdes 4 prova testemunhal. Qualquer pessoa po- de depor em Juizo, inclusive as pessoas ligadas ao réu ou 4 viti- ma pelos lagos do casamento, do parentesco, da amizade ou inimi- zade. Idem os menores e os pobres de espirito, desde que saibam expressar seus pensamentos. O juiz atribuira depois, a cada depoi- mento, a credibilidade que merecer. A antiga Justiga Criminal comegou adotando o principio ‘da intima convicgao’’, com absoluta liberdade dos julgadores. Genera- lizou-se ent&o o arbitrio e, para evita-lo, surgiu outro sistema opos- to, muito rigido, conhecido como ‘‘das provas legais’’: o legislador e os jurisconsultos, @ priori, em abstrato, indicavam o exato valor de cada prova. Presentes tais ou quais provas na instrugdo da cau- sa, © juiz devia chegar a tais ou quais conclusdes. A inovagdo nasceu portanto com bons intuitos, mas produziu péssimos resultados. Era impossivel ao legislador prever a infinita variedade de situagdes da vida real. Quanto a sua natureza, o antigo Direito classificava as provas em testemunhos e confisséo, ou prova vocal; escritos e objetos, ou prova instrumental; presungdes, ou prova conjectural. Quanto a cada espécie, distinguiam-se as provas perfeitas, ou plenas, e im- perfeitas ou semi-plenas. Havia as presungdes invenciveis, chama- das de indicios manifestos, e as venciveis. Os indicios, a seu tur- No, podiam ser préximos ou remotos e, no final da escala, figura- vam os adminicules, indicios que sé valiam como apoio a outras provas (v.g., inconstancia das explicagdes do acusado, tremor na voz, sua ma fisionomia, etc.). Separavam-se ainda as provas e os indicios em gerais, porque validos para qualquer crime, e especiais, _ porque somente eficazes quanto a certos crimes. A seguir, vinham as regras disciplinadoras das incontaveis com- binagdes possiveis entre os varios tipos de provas, dai surgindo com- plicadissima trama de hipdéteses. Como ironizou Voltaire, ‘‘admi- tem-se quartos e oitavos de provas. Pode-se encarar, por exemplo, um ouvir dizer como um quarto, um outro ouvir dizer mais vago como um oitavo, de sorte que oito rumores, que no passam de eco mal fundado, se podem tornar uma prova completa”’. I. A JUSTICA CRIMINAL COMUM ~~ 31 A prova testemunhal foi cuidadosamente regulamentada, distin- guindo-se varias categorias de testemunhas. Para aceitar como de- monstrado certo crime, era prefixado o nimero de depoimentos concordes. Em geral, um sé depoimento, por melhor que fosse, nao bastava: testis unus, testis nullus. Inimeras pessoas ndo eram admitidas a depor, notadamente as mulheres e os criminosos. No século XVII, Muyart de Vouglans ainda apresentava longa lista de testemunhas inaceitaveis, terminando com “‘os pobres e os men- digos’’. Chegamos desse modo a absoluto e iniquo automatismo na apre- ciagdo das provas, em que nada importava a opinido do juiz. Mes- mo que este se achasse convencido da inocéncia do réu, era obriga- do a condené-lo, se estivessem presentes as provas teoricamente re- putadas para isso suficientes. Tal sistema gerou também, como conseqiiéncia inexoravel, o in- teresse em conseguir a confissio do réu, considerada a rainha das provas, a probatio probatissima, visto que a sua presenca bastava para condenar. Para alcang4-la, recorria-se 4 tortura. Est4 claro: se a confissao se tornara fruto tao cobicgado, tornava-se dificil re- sistir 4 tentag&io de sacudir a 4rvore a fim de obté-la. Conforme anotam os historiadores, os juizes provincianos, principalmente, perdidos diante da complexidade das regras sobre o material proba- tério, optavam pela saida mais facil e segura da tortura, que, le- vando a confissio, tudo simplificava. Transformava-se o réu em juiz da sua prépria causa, resistindo aos tormentos, para:salvar-se, ou a eles cedendo, para perder-se. Vigorou por acréscimo este principio, que hoje causa imenso espanto e que se enunciava em latim: ‘‘/n atrocissimis leviores con- Jecturae sufficiunt, et licet judici jura transgredi’’. Vale dizer, nos crimes atrozes, geralmente os mais dificeis de apurar devido aos cuidados que tomam seus autores, 0 juiz ficava liberto das regras legais sobre as provas necessarias, e podia condenar com base em elementos precérios. 10. A nota judicidria mais caracteristica dos séculos que esta- mos estudando foi no entanto o indiscriminado, geral e tranqiiilo emprego da tortura, também chamada ‘‘quest4o’’. A tortura de que agora falamos n&o possuia a natureza de pena, mas era um meio processual de apurac&o da verdade. ‘‘Quaestio est veritatis in- dagatio per tormentum’’, Foi contra ela, ainda existente no seu tempo, que Beccaria, em 32 JOAO BERNARDINO GONZAGA 1764, reservou os mais candentes ataques a Justiga, repetidamente qualificando-a de ‘‘fria atrocidade’’, ‘‘industriosa crueldade’’, ‘‘int- til prodigalidade de suplicios’’. Parece que, em maior ou menor grau, essa violéncia foi utiliza- da por todos os povos da Antigtiidade. O texto mais velho que dela nos da noticia acha-se em fragmento egipcio relativo a um ca- so de profanadores de tamulos, no qual aparece consignado que “se procedeu as correspondentes averiguacdes, enquanto os suspei- tos eram golpeados com bast6es nos pés e nas maos’’. Dir-se-4 que a tortura talvez constitua eterna fatalidade do gé- nero humano e que prossegue hoje existindo. Sim, é exato, basta lembrar 0 que ocorreu nos regimes totalitarios da Alemanha nazis- ta, da Italia fascista, da Russia comunista. Os franceses supliciaram prisioneiros na guerra de libertacéo da Argélia. Os agentes policiais, mesmo em paises civilizados, continuam utilizando tal recurso, e célebre ficou, nesse sentido, o ‘‘Third degree’ da Policia norte-ame- ricana. Sucede todavia qué hoje a tortura s6 se pratica clandestinamen- te, com repulsa do Direito e da opiniado publica. As leis modernas a qualificam como crime, ameacgando com severissimas penas seus autores. Mesmo quando adotada por governos autoritarios, ela se faz oficiosamente, as ocultas, ¢ tem a sua existéncia negada. séculos passados, ao contrario, os suplicios foram pacifica- men pelo legis! la Espanha, em meados do século XIII, Afonso X, 0 Sabio, iiilizava seus siditos explicando no Cédigo das Sete Partidas qu Srtura se justificava porque fora adotada pe- guos que fizieron torme la verdad ende dellos’’: ha, na Italia, na Espanha, em Portugal, por toda ‘malmente os acusados e, as vezes, também se mais malfeitorias I. A JUSTICA CRIMINAL COMUM 33 . No Direito germAnico, ao tempo da célebre Constitutio Cc Carolina, promulgada em 1532 por Carlos V, expressa- mente tia que deviam ser empregados tormentos no proces- so, Mesmo ¢ tratasse de fato manifesto, como na hipdtese de um ladrao em flagrante delito e com o objeto furtado ain- da em seu poder. As leis se limitavam a ordenar ou permitir a tortura, fixando algumas regras gerais para 0 seu uso, mas ndo especificavam no que ela poderia consistir. A forma e os meios a serem empregados para produzir a dor seriam aqueles que os costumes indicassem, ou que fossem inventados por executores imaginosos. Facilmente, pois, ocorriam excessos. Tomas y Valiente, em sua obra sobre o Direito Penal espanhol da monarquia absoluta, transcreve, 4 pag. 153, longo relatério datado de 1598, em que os Procuradores das Cortes castelhanas se queixaram ao rei contra a crueldade dos jui- zes, acusando-os de criarem ‘“‘novos géneros de tormentos refina- dos, que, por serem tao cruéis e extraordindrios, nunca jamais os imaginou a lei’’. Uma tipica sessio de interrogatério transcorria, em linhas ge- rais, deste modo. Algumas leis dispunham que o réu somente deve- ria ser supliciado varias horas apés haver ingerido alimentos, quan- do j& se achasse portanto enfraquecido. Exigiam-lhe entdo, primei- ro, 0 juramento de que diria a verdade. Em seguida, Ihe apresenta- vam os instrumentos que seriam utilizados, com explicagdes sobre © seu funcionamento. Se, para evitar 0 tormento, ou no seu desen- rolar, 0 paciente confessasse o que lhe era exigido, levavam-no pa- ra outro lugar, seguro e confortavel, onde ele deveria ratificar a confisséo. Se esta nao fosse ratificada, voltava-se 4 tortura, em dias subseqiientes. Em alguns sistemas legais, como por exemplo no espanhol das Sete Partidas, a quest’o podia ser repetida indefinidamente, seus unicos limites estando na obstinacdo do juiz e na forca de resistén- cia do paciente. Geralmente, porém, era estabelecido um numero maximo, que costumava ser de quatro sessdes. No século. XV, na Franca, explicava-se que se 0 suspeito ‘“‘par question de gesne ne veut riens dire ni confesser a la premiére fois le juge le peut bien mettre au second jour; et puis au troisiesme, et puis au quatries- me, s'il voit que le cas le requiére, et il y ait si grande présomp- tion et le prisonnier soit de fort courage’. Equivalentemente dispunham as Ordenaces Filipinas, que vigo- raram em Portugal desde 1603: ‘“‘Quando o accusado for mettido @ tormento, e em todo negar a culpa, que lhe é posta, ser-lhe-a re- 34 JOAO BERNARDINO GONZAGA petido em trés casos: o primeiro, se quando primeiramente foi pos- to a tormento, havia contra elle muitos e grandes indicios, em tan- to que, aindaque elle no tormento negue o maleficio, ndo deixa o Julgador de crer, que elle o fez; o segundo caso é, se depois que - uma vez foi mettido a tormento, sobrevieram contra elle outros novos indicios; 0 terceiro caso é, se confessou no tormento o male- ficio, e depois quando foi requerido para ratificar a confissao em Juizo, negou o que no termo tinha confessado. E em cada um des- tes casos péde e deve ser repetido o tormento ao accusado, e ser- lhe-ha feita a repetig¢do assi e como ao Julgador parecer justo; o qual sera avisado, que nunca condene algum, que tenha confessa- do no tormento, sem que ratifique sua confissdo em Juizo, o qual se fard fora da casa, onde lhe foi dado o tormento. E ainda se deve fazer a ratificagdao depois do tormento per alguns dias, de maneira que jd o accusado nao tenha dor do tormento; porque de outra maneira presume-se per Direito, que com dor e medo do tormento, que houve, a qual ainda nelle dura, receando a repeticdo, ratificaré a confissdo, ainda que verdadeira ndo seja’’ (Livro V, tit. CXXXIID). conforme assinala Cesare Cantu, os jurisconsultos deter- a tortura ‘“‘diferentes modos, com 0 sangue-frio do ifica e divide as operagdes praticadas nos enfer- esforcamos para abreviar a durac&o das as dores que elas ocasionam, fazia- 3 Pprocurava-se somente nado le- impediriam atingir 0 resulta- minay cirurgiao mos. Mas, enq Operagées cirlirgicas -se 0 contrario ao infligir a var 4 morte ou a desfalecimentos, do perseguido”’ (op. cit., pag. 44). irma-o G. Aubry (op. cit., pags. 186-7): ‘‘Na maioria dos irurgido ou um barbeiro assistia a aplicagao da tortu- rau de sofrimento do paciente e julgar se ele rtar mais. Nao constituia isso uma sado expirasse an-», se achava em agao humanitdéria, ma: tes de haver expiado inteiramente sua 11. Passando da 4rea processual para a do Direito Penal, ob-% Servamos que neste, desde o século XIX, se inscrevem trés princ-©y Pios cardeais de garantia individual: o principio da legalidade dos delitos ¢ das penas, o da personalidade da responsabilidade crimi- hal e o da proporcionalidade entre crime e pena. = > Consoante o principio da legalidade, nao ha crime sem lei ante- & rior que o defina, ndo ha pena sem prévia cominagao legal. A sua rapida difus&g, no século passado, foi facilitada por este enunciado L. A JUSTICA CRIMINAL COMUM ‘ 35 latino que Ihe deu Feuerbach: ‘‘Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege’’. Uma conduta s6 pode ser considerada como crime, pela Justi- ¢a, se, ao tempo em que foi exercida, ela ja estivesse assim qualifi- cada pela lei; e a pena a aplicar sera também aquela contida em lei anterior 4 conduta delituosa. O individuo, em suma, nZo pode ser surpreendido pela Justiga Criminal. Dai se seguem, como corolarios: a lei penal deve ser rigorosa- mente precisa na delimitagao do campo da ilicitude; ela néo pode ser retroativa; e esta banido, da tarefa repressiva, o recurso a ana- logia. Fiel a essas idéias, 0 legislador dos nossos dias apresenta-se cla- ro e sucinto. Com economia de palavras, procura oferecer exata compreensdo de cada figura delituosa, como verificamos por exem- plo nesta lapidar f6rmula com que o presente Cédigo Penal brasi- leiro define o furto: ‘‘Subtrair, para si.ou para outrem, coisa alheia mével’’. , ndo era assim. As leis penais se apresentavam confusas, curas. O legislador n&o se limitava a definir o crime, plificando, admoestando o leitor, oferecendo con- , Muitas vezes por paginas e paginas, de tal io.se sabia mais no que efetivamente consis- selhos e expli modo que, por tia aquele crime. Somente a titulo de curiosidade, veja-se, como amostra, esta passagem das Ordenagées Filipinas, que pelo menos tem o excepcio- nal mérito de ser sintética. O nome do crime é “‘Dos Mexeriquei- ros’: ‘“‘Por se evitarem os inconvenientes, que dos mexericos nas- cem, mandamos, que se alguma pessoa disser a outra, que outrem disse mal delle, haja a mesma pena, assi cfvel, como crime, que mereceria, se elle mesmo lhe dissesse aquellas palavras, que diz, que o outro tercejro delle disse, postoque queira provar que oO ou- tro o disse” (Livro V, tit. LXXXV). isio conceitual e a obscuridade das leis muito favore- julgadores. Inexistia qualquer seguran¢ga para juiz, a pretexto de interpretar os textos, ivel, ou nao, certo comporta- nal, era autoriza- os acusados, vis' facilmente podia consi mento. Para completar supo: do o recurso a analogia e, eventualmente, 12. Pelo principio da personalidade, unicamente deve pagar por um fato ilicito a pessoa (ou pessoas, em caso de co-autoria) pelo 36 JOAO BERNARDINO GONZAGA mesmo efetivamente responsAvel; isto é, somente quem estiver liga- do ao resultado danoso por duplo vinculo: da causalidade fisica e © psicoldgico, da culpabilidade. assado nao havia tais exigéncias, sendo freqiiente a pena anspessoal, comunicando-se a terceiros inocentes. Por igdes legais, podiam ser punidos, junto com o efeti- 6njuge, parentes colaterais, ascendentes e descen- * vo criminoso, dentes. As sobreditas Ordenacées Filipinas, antes de descrever longamen- te o crime de lesa-majestade, apresentam um intréito explicativo, com este raciocinio 4 evidéncia sofistico: ‘“‘Lesa Majestade quer di- zer traigdo commettida contra a pessoa do Rei, ou seu Real Sta- do, que he tao grave e abomindvel crime, e que os antigos Sabedo- res tanto estranharam, que 0 comparavam @ lepra; porque assi co- mo esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se po- der curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem e aos que com elle conversam, polo que he apartado da communicagéo da gente: assi o erro da traigéo condena o que a commette, e em- pece e infama os que de sua-linha descendem, postoque nao te- nham culpa’ (Livro V, tit. VI). Portanto, os descendentes do cri- minoso também seriam alcancados, mesmo que nada tivessem a ver com 0 ocorrido. ito cruéis, que se tornavam fatalmente is e a chamada ‘“‘morte civil’’. transpessoais: a c ado, mas também to- Ambas reduziam a miséria nao dos os que dele dependessem economic: le castigar com severidade, o legislador nao se preo- r o indispensdvel equilibrio, que deve existir, da pena. Notadamente, a sancao va até mesmo 13. cupava em entre o mal do mais comumente infligi delitos que hoje considerarfamos de e: A{ esto os principios, aos nossos olhos absurdos, que regeram o Direito Penal e o Processual Penal, nas nacdes mais civilizadas do mundo, até, digamos, a revoluc4o francesa. Resta agora verifi- car quais as medidas punitivas que eram utilizadas. II. MEDIDAS PUNITIVAS DO DIREITO COMUM 1. Penas privativas da liberdade. 2. Penas restritivas da liberdade. 3. Penas privativas de direitos. 4. Penas patrimoniais. 5. Penas corporais. 6. Reforma humanizadora. 1. Falemos .por fim dos castigos aplicados pela Justiga comum. Conforme o bem do condenado que atingem e a intensidade com que o fazem, as penas se classificam em: a) privativas ou restriti- vas da liberdade de locomog¢ao; b) privativas ou restritivas de direi- tos outros; c) patrimoniais; d) corporais. Com as penas privativas da liberdade, afasta-se o criminoso do ambiente social, mediante a sua segregacdo em local para isso des- tinado. Ao contrario do que se possa imaginar, a priséo, como pe- na, constitui algo muito recente na Hist6ria do Direito Penal. Até hd pouco tempo, ela quase sé existia como medida processual, ou preventiva, mantendo-se custodiado o réu a espera do castigo, de outra natureza, que lhe seria imposto no julgamento. Era a “‘pri- s4o processual’’, de que j4 falamos. Havia também a odiosa prisdo por divida, que pertencia porém aos dominios do Direito Civil. Inexistiam prédios especialmente construfdos para servirem a prisdo processual, mas sé aproveitavam estabelecimentos comuns, que oferecessem seguran¢a e aos quais era atribuida miltipla finali- dade. Tais presidios se transformavam em verdadeiros depésitos humanos, onde nao penetrava nenhuma preocupacao de tratamen- to humanitdrio. O' Poder Publico sequer se sentia no dever de ali- mentar os seus prisioneiros ou de Ihes dispensar cuidados nas doen- cas. Isso devia ser providenciado pelos familiares e, para acudir os réus pobres, que n4o tinham ninguém por si, havia. religiosos e religiosas que saiam esmolando pelas ruas, em busca de alimentos e remédios. : . Algumas instituigdes melhores e especiais para esse objetivo co- mecaram a surgir, desde o final do século XVI, mas foram raras. A primeira foi em Amsterdao em 1595, para homens, a que se se- guiu logo apdés outra, para mulheres. A fama dessas casas se difun- 38 JOAO BERNARDINO GONZAGA diu, de modo que aos poucos outras andlogas comegaram a apare- cer, em varios paises. Em 1704, o papa Clemente XI fundou em Roma 0 asilo de Sao Miguel, destinado a correcao de delingiientes jovens e a servir de abrigo para menores érfaos e ancidos invali- dos. Estabelecimento semelhante, para mulheres, foi erigido em 1735 pelo papa Clemente XII. . Instituigdes como essas foram todavia muito excepcionais. No geral, o que havia eram locais em que se aglomeravam nao sé cri- minosos a espera de julgamento, mas também massa heterogénea de pessoas que, por qualquer motivo, deviam permanecer segrega- das. A verdadeira reforma prisional somente se iniciou ao findar o século XVIII, quando o filantropo inglés John Howard percorreu os carceres do seu pais e viajou depois, de 1775 até 1790, visitan- do os presidios existentes no continente europeu. Recolhidas as in- formacGes, ele escreveu o livro State of Prisons, onde descreve o que viu. As condigdes por toda parte encontradas eram sempre horriveis. Num mesmo ambiente se amontoavam homens e mulhe- res, em total promiscuidade. Junto com réus de processos crimi- nais, alguns j4 criminosos empedernidos, conviviam criangas, men- digos, enfermos mentais, prostitutas e, inclusive, pessoas sujeitas apenas a prisdo civil por divida. Devido 4 absoluta falta de higie- ne, as febres grassavam livremente, dizimando os reclusos. O pré- prio Howard, alids, veio a falecer em 1790, vitimado por uma fe- bre carceraria que contraira na Russia. Ao contrario do Direito comum, o da Igreja logo adotou a pri- vacdo da liberdade como pena, recolhendo-se 0 condenado a uma cela para expiagao da falta cometida, para meditacdo e estudo. Is- so acabou influenciando o Jegislador laico, de tal sorte que, a par- tir do século XIX e até hoje, as penas privativas da liberdade se acabaram convertendo no eixo central dos modernos sistemas repres- sivos. Como lembranga da sua origem, nossos presidios conservam © nome de ‘‘penitencidrias’’, e neles as celas reproduzem as celas monasticas que os mosteiros destinavam as peniténcias. 2. Com as penas restritivas da liberdade ndo se aprisiona 0 con- denado, mas unicamente ele tem limitada a liberdade de locomo- “¢40. Elas outrora gozaram de muito prestigio e se cumpriam de modo extremamente duro. A meio caminho entre as restritivas e as privativas de liberda- de, foi de largo uso a pena de trabalhos forcados, em que os cri- Il, MEDIDAS PUNITIVAS DO DIREITO COMUM 39 minosos, acorrentados, se destinavam pelo resto da vida a servicos particularmente penosos, em minas, embarcacGes, etc!. Medida res- tritiva da liberdade foi também o envio dos condenados a territé- rios distantes, de além-mar, para contribuirem na sua colonizacdo. Nessa categoria existiram penas de exilio, degredo, desterro, relega- ¢4o, transportacdo, etc., que possuiam aquele traco comum, mas que se distinguiam entre si por algumas peculiaridades. Os paises colonizadores utilizaram amplamente essas penas, particularmente severas nos primeiros tempos das conquistas de regides longinquas, onde os condenados ficavam entregues a propria sorte. Tratava-se geralmente de penas perpétuas e de alta desumanida- de. Com elas, 0 que se queria era obter mao-de-obra escrava ou ga- rantir a posse das colénias. Aceitariamos de bom grado a sua utili- zac4o naqueles tempos, todavia, nZo fosse a circunstAncia delas se- rem em regra aplicadas ndo a crimes graves, mas mesmo a infragdes de escassa importancia: um banal furto ou até mesmo uma simples tentativa de furto bastavam para que se impusesse ao seu autor, pelo resto da vida, o trabalho escravo ou o envio as colénias?. (1) Cuello Calén (op. cit., pag. 153) conta que na Espanha existiu a pena con- sistente em remar nas galeras, “que se pode considerar como uma pena de pris&o, pois os condenados ficavam presos em argolas na galera, tornando-se esta assim seu carcere, um cArcere flutuante. Instituiu-se tal pena por ordem de Carlos I, em 31 de janeiro de 1530’’. A partir de ent&o, prossegue, ““devido a numerosos empreen- dimentos militares e maritimos e 4 crescente necessidade de bragos para remar nas galeras reais, apareceram varias disposigdes emanadas do mesmo monarca, de Feli- pe II, Felipe HI ¢ Felipe IV, que comutavam as penas corporais pelo trabalho nes- sas embarcagdes’’. As sentencas consignavam que o réu era condenado a “‘servir a remo, sem soldo’’. Também na Franca, diz G. Aubry (op. cit., pags. 192-3), tal pena foi comunissima, aplicando-se a crimes de mediana gravidade. A ela se recor- ria sempre que a marinha real francesa necessitava de mao-de-obra. Os condenados passavam por um. simulacro de exame médico, que os considerava ‘“‘bons para as galeras”, embora alguns, para escapar, houvessem amputado uma das m4os. Em seguida, marcavam-se os condenados na espddua com o infamante monograma “GAL”, € acorrentava-se cada um ao seu banco. Essa pena foi comunissima, acres- centa G. Aubry, inclusive durante o reinado de Luis XVI, no século XVIII. (2) Mostram-no as OrdenacSes Filipinas: ‘““Mandamos, que qualquer pessoa, que furtar um marco de prata, ou outra cousa alhea, que valer tanto, como o di- to marco, estimada em sua verdadeira valia, que a dita prata valer ao tempo do Jurto, morra por isso. E se for provado que alguma pessoa abrio alguma porta, ou entrou em alguma casa, que stava fechada, per a porta, janella, telhado, ou per qualquer outra maneira, e que furtou meio marco de prata, ou sua valia, ou dahi para cima, morra por isso morte natural. E postoque se the ndo prove, que furtou cousa alguma de dita casa, queremos que somente polo abrir da porta, ou entrar em casa com animo de furtar, seja agoutado publicamente com baraco e pregdo, e degradado para sempre para o Brasil’. 40 JOAO BERNARDINO GONZAGA ~ 3. Dentre as medidas que atingem direitos outros, que nao o de locomocdo, muito utilizada foi a pena de ‘‘infamia’’. Por expres- sa disposicao da sentenca condenatéria, o réu era oficialmente pro- clamado ‘‘pessoa infame’’, destituida de honra. Realmente brutal, como supressiva de direitos, foi entretanto a pena de “‘morte civil’. Com ela, convertia-se 0 condenado num morto-vivo. Poupava-se-lhe a vida biolégica; mas, para todos os efeitos juridicos, ele era tido como morto. Nestes termos a des- creve Cuello Calén: ‘‘Nenhuma pena privativa de direitos chegou a monstruosidade da que as antigas legislacdes instituiram com o nome de «morte civil». Quem a sofria era considerado morto pa- ta a sociedade, sua participagao na vida politica e civil cessava por completo. Essa barbara ficc&o desatava os lacos de familia, desa- pareciam a autoridade marital e o patrio poder; o condenado dei- xava de ser cidaddo e até perdia seus direitos patrimoniais, abria~ -se sua sucesso a favor dos herdeiros naturais; tampouco podia adquirir a titulo gratuito, por doacdo entre vivos, nem por testa- mento, nem podia dispor dos bens que adquirisse com seu traba- Iho. Esta pena foi suprimida em-toda parte, ndo sé por ser imo- ral, mas também por lesar os direitos de pessoas inocentes, vio- lando assim o principio tao firmemente proclamado da personalida- © de das penas. Nao obstante sua inconcebivel injustica, chegou até quase a metade do século XIX; em Franca, por exemplo, esteve em vigor até a lei de 5 de maio de 1854, que a aboliu’’ (op. cit., pag. 257). Para pequenas infragdes, havia o pelourinho, sem divida mui- to aviltante. O malfeitor nele permanecia exposto ao publico, ata- do pelos pés e mos, portando um cartaz que revelava o seu mau comportamento; e assim sofria toda sorte de abusos por parte da populaca que ali se aglomerava. 4. Na categoria das sancdes patrimoniais, inscreviam-se a pena de multa e a temida confiscacao de bens, em que todos os haveres do sentenciado passavam para o Tesouro real. Pena cruel, porque, com ela, ficavam reduzidos 4 miséria nao sé o delingiiente, mas também todos aqueles que dele dependiam economicamente. 5. Por derradeiro, falemos das penas corporais, ou seja, aque- las que recaem sobre o corpo do condenado, produzindo-lhe dor, lesando-lhe a integridade fisica ou privando-o da vida. Foram medidas tremendas, que constituiram a principal arma do

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