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ISMAIL XAVIER O DISCURSO CINEMATOGRAFICO a opacidade e a transparéncia 32 edigdo Revista e ampliada PAZ E TERRA © Ismail Xavier Fotos: Acervo Cinemateca Brasileira CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) Xavier, Ismail, 1947- X19d discurso cinematogréfico: a opacidade e a transparéncia, 3° edicao ~ Sao Paulo, Paz e Terra, 2005 ISBN 85-219-0676-5 Inclui bibliografia 1. Cinema ~ Estética. 2. Cinema - Filosofia I. Ticulo ILS 03-1822 CDD-791.4301 CDU-791.43.01 EDITORA PAZ E TERRA SIA Rua do Triunfo, 177 Santa Efigénia, Si0 Paulo, SP — CEP: 01212-010 Tel: (O11) 3337-8399 Esmail: vendas@pazererra.com.br HomePage: www.pazeterra.com.br 2005 Impresso no Brasil / Pinted in Brazil PREFACIO Ha quase trinta anos, 0 livro O discurso cinematogréfico resiste bravamente como a mais importante obra sobre teoria cinematogrifica produzida no Brasil, mesmo considerando a ex- celéncia de outras contribuigoes que vieram depois, algumas inclusive do mesmo Ismail Xavier. Varias geragoes de profissionais do cinema, audiovisual e comunicacio em geral se formaram nas universidades tendo este livro como a sua principal referéncia bibliogréfica. As razbes si0 simples de elucidar. Em primeiro lugar, Xavier tem uma vasta bagagem de leituras, abrangendo praticamente tudo 0 que de importante foi pensado ¢ escrito no terreno dos estudos de cinema desde as suas origens até as mais recentes discusses sobre o atual reordenamento do audiovisual. ‘Tem também uma invejvel capacidade de condensagio e sintese, sabendo extrair da babel dos debates entre as diferentes tendéncias tedricas o seu fundo conceitual mais importante, para depois destilar isso tudo numa linguagem clara ¢ acessivel, mas sem comprometer a complexi- dade das questdes discutidas, nem sacrificar a necessdria densidade conceitual em nome de qualquer didatismo simplificador. E além de tudo isso, é um autor com opiniao: nao apenas apresenta objetivamente as varias reorias, mas se posiciona com relacio a elas. Eis porque um livto como O discurso cinematogrfico demandava uma edigio nova e atualizada. Evidentemente, um livro publicado originalmente em 1977 reflete as discusses que estavam em proceso naquele momento. Nos anos 1970, 0 processo de recepgio do filme ¢ 0 modo como a posicao, a subjetividade ¢ os afetos do espectador sio trabalhados ou “programa- dos” no cinema mereceram uma atengao concentrada da critica, a ponto desses temas terem se constituido no foco de atengio privilegiado tanto das teorias estruturalistas, psicanaliticas € desconstrucionistas, quanto das andlises mais “engajadas” nas vérias perspectivas marxistas, feministas ¢ multiculturalistas. Nessas abordagens, o aparato tecnoldgico ¢ econémico do cine- ma (na época chamado de “o dispositive”), bem como a modelagao do imagindrio forjada por seus produtos foram submetidos a uma investigacao minuciosa ¢ intensiva, no sentido de veri- ficar como o cinema (um certo tipo de cinema) trabalha para interpelar o seu espectador en- 6 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO quanto sujeito, ou como esse mesmo cinema condiciona o seu puiblico a identificar-se com ¢ através das posigdes de subjetividade construidas pelo filme. Quando 0 “dispositivo” é oculra- do, em favor de um ganho maior de ilusionismo, a operacao se diz de sransparéncia, Quando 0 “dispositive” é revelado ao espectador, possibilitando um ganho de distanciamento e critica, a operacio se diz de opacidade. Opacidade e transparéncia ~ subtitulo do livro — so os dois pélos de tensio que resume o essencial do pensamento daquele periodo. Nesta nova edicio, Xavier optou por nao interferir no texto original de 1977 (¢ no apéndice de 1984). Em compensacio, adiciona a esta edigao um capitulo novo, que dé conta do posterior avanco da teoria — e também da sua dispersio ou desconcentragio em torno apenas de alguns temas hegeménicos. Esse capitulo adicionado ¢ praticamente um livro novo — como se fosse um Discurso cinematogrdfico 2 — onde, novamente com notavel poder de sintese, Xavier traca 0 percurso do pensamento tedrico desde a critica do “desconstrucionismo” dos anos 1970 até 0 surgimento de novas perspectivas de andlise. De fato, de 1977 para cé, 0 pensamento predominante nos anos 1970 foi submetido a uma revisio as vezes bastante dura. As teorias daquele perfodo pressupunham uma concep¢io um tanto monolitica do que era 0 cinema “dlassico” e essa concepsio comesou a se mostrar problemdtica quando as atengies se voltaram para um numero imenso de filmes “comerciais” ¢ até hollywoodianos que néo referendavam 0 modelo. Por outro lado, a concepgio que se fazia da atividade do espectador ou do processo de recepgao era demasiado abstrata ¢ rigida: 0 espectador era visto, nesses sistemas tedricos, como uma figura ideal, cuja posigio c afetividade encontravam-se estabelecidas a priori pelo aparato ou pelo “texto” cinematogréfico, nao cabendo portanto nenhuma consideragio a respeito de uma possivel resposta auténoma de sua parte. © novo capitulo acrescentado oferece ao leitor uma espécie de mapa conceitual dos novos caminhos perseguidos pelo pensamento cinematogrifico a partir dos anos 1980: a critica dos modelos tedricos do estruturalismo e da psicandlise (David Bordwell, Noel Carroll), os novos modelos da semio-pragmatica (Roger Odin, Francesco Caseti), a retomada da tradigio baziniana em perspectiva contemporanea (Serge Dancy), o retorno ao cinema das origens (Tom Gunning, Miriam Hansen), as perspectivas feministas (Laura Mulvey, Mary Ann Doane), as riticas da cultura (Fredric Jameson, Jean Louis Comolli, Paul Virilio), as incursées de fundo filoséfico (Slavoj Zizek, Stanley Cavell, Gilles Deleuze), os estudos culturais (Raymond Williams, John Fiske, Jesus Martin-Barbero), o diélogo com a pintura (Jacques Aumont, Pascal Bonitzer) ou com a miisica (Michel Chion) ou com as outras artes visuais ¢ audiovisuais (Raymond Bellour, Philipe Dubois) ¢ a recente “inversio do principio” operada por Jacques Ranciére. ‘Trata-se de uma verdadeira viagem pelo pensamento contemporaneo do cinema, do audiovisual ¢ da cultura inteira do presente, onde Xavier faz 0 papel nao apenas de guia, mas também de protagonista, j4 que, em muitos momentos, ele nao esta apenas comentando o pensamento dos outros, mas também dando forma ao seu proprio universo conceitual. Tl PREFACIO Mas, ainda que um certo fundamentalismo ortodoxo dominante nos anos 1970 renha passado pelas necessirias corregGes e relativizagées nas décadas seguintes, o essencial daquela discussio permaneceu de alguma forma e é bom que nao seja esquecido. E muito instrutivo notar como a dialética da opacidade e da transparéncia, anunciada como moribunda no cinema ena tcoria mais recente, retorna agora com toda forca nos novos ambientes computacionais Uma autoridade nessa érca como Oliver Grau, em seu recente livro Virtual art, From illusion to immersion (Cambridge: The MIT Press, 2003), discute as determinagGes ideol6gicas do ilusio- nismo na rcalidade virtual no video game c o faz numa ditegio teérica que lembra estrcita- mente as discuss6es em torno do “dispositive” nos anos 1970. Ele se pergunta se ainda pode haver lugar para a reflexio critica distanciada nos atuais espacos de imersio experimentados através de interagéo. Mostra também como as técnicas de imersio com a interface oculta (cha- mada ingenuamente de “interface natural”) afeta a instituigéo do observador e como, por outro lado, interfaces visiveis, fortemente acentuadas, tornam o observador mais conscio da experién- cia imersiva ¢ podem portanto ser condutoras de reflexao. Se a historia se repete em ciclos, ¢ conveniente, vez por outra, retornar aos modelos de pensamento do passado no apenas para constatar 0 que foi superado, mas também para avaliar o que podemos estar perdendo. Arlindo Machado NOTA INTRODUTORIA A 3¢ EDICAO Quando da primeira edicdo deste livro, organizei a apresentagao das teorias a partir de um eixo que marcava a oposi¢ao entre “opacidade e transparéncia”, partindo da diferenga entre estilos de composigao da imagem ¢ do som no cinema. Num extremo, hao efeito-janela, quan- do se favorece a relagdo intensa do espectador com o mundo visado pela camera — este € cons- truido mas guarda a aparéncia de uma existéncia auténoma. No outro extremo, temos as opera- ges que reforgam a consciéncia da imagem como um efeito de superficie, tornam a tela opaca e chamam a atengio para 0 aparato técnico ¢ textual que viabiliza a representacao.Tal oposigio se ajustava ao debate tedrico de meados dos anos 1970, momento em que se criavam as nogées em consonancia com os desafios trazidos pela pritica do cinema nas verses mais radicais do underground norte-americano ¢ do cinema curopeu pds-1968, este que teve no Godard de Vento do leste, nos documentirios de Jean Daniel Pollet ¢ no cinema conceitual de Jean-Marie Straub seus exemplos mais discutidos. No Brasil, era o momento em que o “cinema de invencao”, ou “experimental”, operava também no terreno da desconstrugao. Desde entao, 0 campo das idéias ¢ teorias cinematograficas se expandiu em variadas des de modo a criar um novo quadro conceitual para o debate, o que exigiria um outro ponto de vista para a apresentagio das teorias dentro do espirito didético, de introdugao, presente no corpo deste livro. Neste longo periodo, as idéias que emergiam do préprio contexto dos cineas- ire- tas ¢ dos criticos conviveram com uma intensa produgao de textos tedricos vinda das universi- dades, uma vez que 0 dado diferencial entre 1977 e hoje foi a consolidagao da pesquisa acadé- mica. Esta explorou os campos da andlise formal (o drama, a narrativa, a composigio visual ¢ a trilha sonora) ¢ a intrincada relagdo entre 0 cinema e as outras artes, num mundo em que a interpretagéo de experiéncias estéticas mostra que nao € mais possivel montar um sistema das artes distintas, especificas, como se fez durante algum tempo e como tentaram fazé-lo os pri- meiros defensores do cinema como arte auténoma. 10 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO Tal como os cineastas em seu trabalho, tedricos e criticos tém enfrentado 0 desafio trazido pelo impacto do avango tecnolégico que desestabiliza a prépria definicao do cinema. A ténica é contabilizar perdas ¢ ganhos, reconhecendo que o seu destino esté attelado a0 dos outros suportes da experiéncia audiovisual (0 video, a imagem e som digitais). Transformacoes do mundo pritico rebatem sobre a teoria num momento em que, no plano da reflexao, hé maior complexidade nas relagGes entre a teoria do cinema e a filosofia, e hé um enorme avanco dos estudos histéricos viabilizados pela parceria entre as universidades e as cinematecas. A diversi dade do que foi produzido e as rotagdes havidas no eixo dos debates exigiram, numa atualiza- 40, praticamente um novo livro caso adotasse 0 mesmo padrao de exposigao das teorias ¢ dos programas estéticos. O discurso cinematogrdfico, em seu formato original, tem se mantido de grande utilidade nos cursos de cinema. O testemunho dos colegas atesta a sua renovada procura, 0 que me faz rer que os parametros que o nortearam foram coerentes ¢ eficientes na configuragao do percur- so da teoria até 1977. Nesta nova edi¢do, optei por nao intervir no corpo do texto. Descartei eventuais alteragGes de passagens que posso hoje julgar esquemiticas. Preservei o livro de 1977 sua unidade (incluindo o Apéndice 1984). O dado novo vem no final desta edigao; em texto complementar, fago um breve mapeamento do intervalo que nos separa da primeira, mais a titulo de indicagao do que de explicagao dos tépicos e tendéncias que emergiram como respos- tas ao debate jé apresentado no livro. Optei por um recorte que organiza o campo a partir de um eixo que se ajusta as indagaGes sobre a transparéncia ¢ opacidade, mas traz ao centro a questio do dispositivo cinematogréfico, foco maior da polémica ocorrida nos anos 70, capitulo final da primeira edigao. Ismail Xavier, julho de 2005. SUMARIO Introdugio ... 13 I. A janela do cinema e a identificagao 17 II. A decupagem classica... 7 IIL. Do naturalismo ao realismo critico . 41 A. A representacao naturalista de Hollywood 41 3. As experiéncias de Kulechov .... 46 c. O realismo da “Visio de Mundo” ... 52 . O realismo critico explicitado... 57 IV. O realismo revelatério ¢ a critica 3 montagem . 67 |. O empirismo de Kracauer ¢ 0 humanismo neo-realista 67 8. O modelo de André Bazin 79 C, As correcées fenomenolégicas ¢ a “abertura” 89 V. A vanguarda ... 99 A. O anti-realismo ¢ 0 cinema de sombras .... 99 8, Cinema pottico e cinema puro C. O advento do objeto ¢ a inteligéncia da maquina p. O modelo onirico 11 E. A imagem arquétipo 115 118 F. O olhar visionario ¢ a questo epistemoldgica . 12 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO VI. O cinema-discurso e a desconstrugio ... 129 A. Eisenstein: da montagem de atragdes ao cinema intelectual... 129 B. O impacto das ciéncias da linguagem ... 137 c. A desconstrugao 146 VII. As falsas dicotomias ... 165 Apéndice 1984... 171 175 As aventuras do Dispositivo (1978-2004) .. Indice onomastico ... 212 Indice de revistas... V A VANGUARDA A. O ANTI-REALISMO E O SOMBRAS Desde 0 Manifesto das Sete Artes, es- crito por Ricciorto Canudo e publicado em Paris, em 1911, é possivel encontrar a exal- tagio das ricas possibilidades da nova arte, entendidas como algo essencialmente ligado ao “valor poético” da imagem. No exame das concepgdes que sustentam tal valor poético € possivel encontrar um caminho para en- tender a relagdo entre cinema e realidade na visio de Canudo ¢ de outras figuras da van- guarda dos anos 1920. O trago comum aos diferentes “ismos” daquele periodo é sua oposigao a uma tradi- Gao classica, resumida na proposigao da arte como “imitagao”, é iquilo que era entendi- do como uma nova versio mais moderna — © realismo artistico tal como cristalizado na literatura ¢ na representagao pictérica (ante- rior ao impressionismo) do século xix. Vista dentro de uma perspectiva mais ampla, tal oposicao ao estabelecido, néo im- plica necessariamente que o projeto das vé- rias vanguardas adquira como definiggo ab- soluta a qualificagao de anti-realista. Se, em suas virias vers6es, a vanguarda apresenta como caracteristica imediata a ruptura com técnicas e convengées préprias a uma forma particular de representagao, esta ruptura esta articulada com um discurso teérico-critico onde © novo estilo encontra suas justifica- Ges em visbes especificas da realidade, dis- tintas daquela que presidiu o projeto realista do século xix. O pintor impressionista dird que sua visio e seu modo de pintar sio mais fiis 2 pura sensacio visual e as propriedades dinamicas da luz do que 0 realismo que o precedeu, preso a regras responsdveis por uma representagao convencional e irreal do mun- do visivel. Cézanne dir que todo o seu pro- jeto liga-se & pintura que provém da nature- za; € muitos criticos favoraveis ao estilo cubista dirao que 0 novo espaco pictérico é 1 com as condigées da vida moderna ¢ as novas descobertas da ciéncia do que velhas receitas académicas. Fernand Léger sera explicito na proposigao da van- guarda como um mais rico ¢ mais profundo mais compat 100 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO realismo. O cineasta ¢ o pintor surrealista dirao que o mundo surreal que emana de suas imagens € mais real, como 0 préprio nome o indica, do que o real captado ¢ organizado pelo nosso senso comum. Em suma, falar das propostas da van- guarda, significa falar de uma estética que, a rigor, somente ¢ anti-realista porque vista por olhos enquadrados na perspectiva constitu da na Renascenga ou porque, no plano nar- rativo, julgada com os critérios de uma nar- ragio linear cronolégica, dominada pela 16- gica do senso comum. Afinal, todo ¢ qual- quer realismo é sempre uma questao de ponto de vista, e envolve a mobilizagao de uma ideo- logia cuja perspectiva diante do real legitima ‘ou condena certo método de construgao ar- tistica. Como o olhar renascentista e uma certa concepgao de narrar constitufa o estilo dominante, as novas propostas por mais que teoricamente se vinculassem a projetos “rea listas” dentro de outros referenciais, ficaram associadas a anti-realismo. Isto, em princi. pio, denora apenas sua investida contra con- vengoes vigentes. Este é um aspecto da questo. Ao lado disco, ha que se considerar a enorme contri- buigio que o proprio discurso da vanguarda ofereceu A estratificagao da equagio segun- do a qual vanguarda se identifica com anti- realismo. Investindo contra a propria idéia de representacao (mimese) e propondo a ati- vidade artistica como criagio de um objeto (entre outros) auténomo e dotado de leis proprias de organizagao, o pintor modernis- ta tende a destruir a visio do quadro como janela que abre para um duplo do nosso mundo. Num primeiro momento, tal rup- tura prevalece sobre qualquer consideragao. mais detida a respeito do tipo de “realidade” depositada na superficie da tela. Uma arte que busca provocar estranheza, que denun- cia sua presenga ostensiva como objeto nao natural e trabalhado, e que nao permite um acesso imediaco (sem mediagao de uma te ria) As suas conveng6es € critérios construti- vos, tende a desencorajar as tentativas do lei- tor em relaciona-la com realidades existen- tes fora da obra. O que nao impede que, no seio mesmo deste aparente irrealismo, uma legitimagio do novo estilo seja proposta a partir de sua compatibilidade com um certo tipo de realidade, de tal modo que as velhas idéias de “captagao do essencial” ¢ de “reve- lagio das profundezas” sejam reintroduzidas. Posto isto, vejamos como se desenvol- vem as varias propostas “anti-realistas” no caso especifico do cinema. A construsio do “cinema poético” compativel com os diver- sos “ismos” da vanguarda implica em traba- Ihar contra a reproducio “natural” e contra a idéia de mimese no préprio terreno onde tal naturalidade de tal perfeiga0 mimsética pare- cem estar inscritas no prdprio instrumento € na propria técnica de base. Diante deste pro- blema, conforme a vanguarda particular que se considere, a resposta ser4 diferente. O ataque frontal & aparéncia realista da imagem cinematogréfica vem, inicialmente, de uma tendéncia especifica marcada por uma ostensiva pré-estilizagdo do material colocado em frente & cimera: a tendéncia expressionista. A mesma que, 20 longo da histéria do cinema, receberia um duplo ara- que, sendo alvo dos defensores dos varios realismos ¢ alvo dos teéricos da vanguarda. A VANGUARDA lol Os primeiros nunca estiveram dispostos a aceitar a “artificialidade” dos métodos de representagao expressionistas ou a metafisi- ca proposta através destes métodos; os segun- dos nunca perdoaram ao expressionismo a sua “sacrilega” violagéo dos principios da especificidade cinematogréfica ao apelar para 08 recursos estilisticos que se tornaram céle- bres a partir de O gabinete do doutor caligari (1919). Na diregao da vanguarda ou na di- rego do realismo, pode-se dizer que sempre predominou uma frente tinica em defesa dos privilégios da camera e da montagem como momentos de introdugao do estilo na arte cinematogrifica. Kracauer concorda com Moussinac ¢ Epstein na proposta de que nao élegitimo basear uma estética do cinema na claboragio artistica do material a ser filma- do, reduzindo-se a cimera ao simples papel de registro, ¢ 4 montagem a praticamente nada, Nao foi exatamente isto que 0 expres- sionismo fea, mas esta ficou sendo sua eti: queta. O que nao surpreende, uma vez que seu procedimento mais caracteristico ¢ ev dente foi justamente a pré-estilizagio como forma de “trait” o realismo da imagem foto- grifica. Sem duivida, sua marca € a elaboracéo de um espago dramédtico sintético artificial- mente construido por um trabalho cenogr’- fico que procura os mais diversos efeitos, exceto a criagdo da ilusio de profundidade segundo leis da perspectiva. E Caligarié evi dentemente o extremo exemplo de tal méto- do. Utilizando superficies, paredes ¢ solos pintados num estilo marcado por distorgoes, linhas curvas ¢ formas distances daquelas encontradas no espago natural, este filme transporta para o ambito cinematografico estruturas espaciais ¢ formas préprias a0 mundo do teatro nao naturalista ¢ ao espaco pict6rico da arte moderna. Neste sentido, cria uma linha de associagGes que ainda hoje in- duz.as pessoas a qualificar de expressionista qualquer distorca0, exagero ou despropor- Géo manifestas na tela do cinema. Igualmen- te, outros filmes expressionistas, com seu caracteristico jogo de sombras, criam uma tradicgao que associa ao expressionismo 0 es- tilo forografico marcado pela nao definisio da toralidade do quadro, num forte contras- eis e zonas de trevas. O te entre zonas vi: que 0 expressionismo nao associou a si - isto sem diivida estd manifesto em alguns fil- mes desta tendéncia — é a nao obediéncia 3 regras de continuidade e aos padrdes de coe- réncia espacial proprios & decupagem cléssi- ca, jé amadurecida o suficiente naquele mo- mento para que a decupagem de Caligariseja encarada como ruptura. ‘Trabalhando contra a superficie clara, a decupagem clara, contra 0 gesto natural ¢ o drama inteligivel segundo leis naturais, a obra expressionista privilegia 0 comporta- mento obscuro, de seres humanos que se deslocam estranhamente num espaco cheio de dobras e, desta forma, instaura um espa- g0 dramético regulade por forcas distintas. Contra a textura de um mundo continuo e claro, o olhar expressionista quer libertar-se da priso dos estimulos imediatos, abrindo brechas nesta textuta do mundo e procuran- do recuperar uma nogio de experiéncia onde 0s sentidos voltam a ser a “ponte entre o in- compreensivel ¢ 0 compreensivel”, tal como odizo pintor August Macke. O jogo de som- 102 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO bras ¢ as distorcGes sistemacicas, tendentes a agugar as caracteristicas basicas da forma, procuram constituir uma experiéncia sens vel modelada segundo estruturas primordiais da “alma humana’ ~ 0 projeto € reintrodu- zit no nosso cotidiano a “sensagio do cos- mos’. Um objeto nao € apenas um objeto, ha sempre um além por tras da sua presenca imediata: “mesmo a matéria morta ¢ espiri- to vivo” (Kandinski). ‘Ao quebrar a continuidade do espago, 20 instituir suas dobras ¢ suas sombras, 0 drama expressionista quer reintroduzir as marcas do invisivel, desmascarar 0 mundo visfvel. A sombra provoca o desnudamento ¢ € poderosa justamente porque constitui a presenga mais nitida da forma pura sem as diluig6es que a textuta material impée. Nela, temos a esséncia sem os acidentes da super- ficie. “A forma é a expressao exterior de um. contetido interior” (Kandinski, Der blaue reiter almanac, 1912). Na perspectiva expres- sionista, tal contetido ganha definigio atra- vés da nogdo de incompreensivel ¢ através da idéia de percepgao direta do segredo das coisas: “idéias incompreensiveis se expressam em formas compreensiveis” € a “forma é um mistétio para nés porque é a expresso de misteriosos poderes. Somente através dela és percebemos os poderes secretos, o Deus invisivel (August Macke, “Masks”, Der blaue reiter almanac, 1912). A idéia de uma esséncia encarnada ¢ a pritica de um idealismo platénico surgem como resposta 2 mentalidade positivisea sin- tonizada com o progresso recnolégico ¢ ma- terial. Encontramos no contexto expressio- nista uma postura dramarica de revolta, de chamado a recuperacéo de uma esséncia hu- mana supostamente perdida, numa atitude que se julga anunciadora de uma nova era de espiritualidade: “uma grande era se inicia, 0 acordar espiritual, a tendéncia crescente de recuperagio do ‘equilibrio perdido’, a neces- sidade inevitavel do cultivo espiritual, o de- sabrochar do primeiro lirio. Estamos no miar de uma das maiores épocas que a hu: manidade jamais experimentou, a época de uma grande espiritualidade. No século x1x, apenas acabado, quando parecia haver 0 com- pleto florescimento — a grande vit6ria ~ do i- material, os primeiros elementos ‘novos’ de uma atmosfera espiritual formaram-se pra- jes forneceram € ticamente despercebidos, vao fornecer 0 alimento necessério para ao florescimento do espirito” (Editorial escrito por Kandinski ¢ Franz Mare para o Der blaue reiter almanac) Em tal apostolado, o essencial ¢ a rela: géo “alma a alma”, a possibilidade de atra- vessar a superficie material e atingir a comu- nicagao direta das forgas espirituais dentro de cada um de nés. A arte, como lugar privi- legiado da construcio de formas ¢ da intui- gio reveladora, afirma-se como a experién- cia fundamental: o lugar da expresso nua da interioridade e da comunhio através do extase, Quanto ao cinema, como sucessor ime- diato do teatro de sombras, ele € 0 veiculo . Eo expressionismo vai abor- por exceléne dé-lo como o lugar do nao-discurso, como um além da linguagem. O olhar expressio- nista aponta a cimera para as formas essen- ciais capazes de revelar a “alma humana”, as forcas do coragio (como no filme Metrépolis, A VANGUARDA 103 realizado por Fritz Lang em 1926) e 0 Deus invisivel. Ancorado na idéia de expresso como encarnagio direta do espirito na ma- téria, tal cinema nao discursa, nem sequer forografa o real; ele tem “vis6es”. B. O CINEMA POETICO E O CINEMA PURO) ‘Ao lidar com a supervalorizacao da sualidade em seu poder revelatério ¢ em sua capacidade de superar as convencées da lin- guagem verbal, a vanguarda francesa cami- nha numa direcao bastante distinta do cine- ma de sombras. Na sua perspectiva, a expres- sao do essencial ¢ a emergéncia do poético ocorrem num espaco de clareza, no proprio seio da “objetividade” da reprodugao foto- grafica. Tal “objetividade”, sera celebrada, sendo assumida como a alavanca fundamen- tal para o cinema no scu caminho rumo a supera¢ao da narrativa realista € rumo A su- premacia de sua dimensao poética. Na sua luta contra o discurso, contra 0 que é assumido como linguagem convencio- nal, a vanguarda privilegia a imagem cine: matogrifica naquilo que ela tem de “visio direta’, sem mediagdes, ¢ naquilo que cla tem de especial frente a visio natural. Para Ca- nudo ¢ Delluc, além de ser a expresso nao discursiva de algo ~ a idéia € de que o cine- ma no fala das coisas, mas as mostra (como. em Bazin ¢ Mitry) — a imagem do cinema é dotada de um poder de transformagio que desnuda 0 objeto ou 0 rosto focalizado (no claro, a diferenga da postura expressionista). Aqui, configura-se uma antecipagio de Ba- zin, mas a crenga no poder revelatério no se combina com a defesa de um cinema nar- rativo centrado em torno da figura humana cinema da vanguarda purista (nao incluo aqui o surrealismo ¢ 0 dadaismo) quer justa- mente quebrar as hierarquias de tal realis- mo, € sua maior aspiragao € dissolver 0 ho- mem e o social dentro de um universo ho- mogénco, onde a tinica ordem ¢ tinica inte- ligéncia possivel se define no nivel da nacu- reza, Nao aquela do naturalismo burgués ou aquela que a razio explica, mas aquela nacu- reza “sdbia” dotada de subjetividade e de finalismo, cuja apreensao sé pode ocorrer como um ato de intuigo para 0 qual con- corre fundamentalmente a sensibilidade. ‘Nesta perspectiva, 0 cinema é também pon- to culminante de uma liturgia — a verdade que ele revela ¢ “indizivel” ¢ origina-se nas virtudes da propria imagem luminosa. Nao € fruto de um trabalho discursivo, da articu- ago de elementos ou da construcao de um espago que cria um lugar para as coisas. resultado apenas da presenga bruta de cada elemento, respeitado em seu desenvolvimen- to continuo, dentro de um ritmo que lhe é caracteristico. O importante € cada imagem singular e seu poder gerador de uma nova experiéncia do mundo visivel. O cinema ¢ instrumento de um novo Iitismo e sua linguagem € poética justamen- te porque ele faz parte da natureza. © pro- cesso de obtengao da imagem corresponde a um proceso natural — é 0 olho 0 “cérebro” da camera que nos fornecem a nova ¢ mais perfeita imagem das coisas. O. nosso papel, como espectadores, é elevar nossa sensibil dade de modo a superar a “leitura conven- cional” da imagem e conseguir ver, para além do evento imediato focalizado, a imensa 104 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO orquestragao do organismo natural e a ex- pressao do “estado de alma” que se afirmam na prodigiosa relagio cimera-objeto. Tal leitura convencional estaria intima- nos mente ligada aos condicionamentos qui sa “razao estreita” impde, na medida em que promove uma relagao com o visivel marcada por objetivos de ordem pratica e nao respei- ta aquilo que de mais profundo existe nas coisas, Uma relacao sensorial mais integral com 0 mundo ¢ a apreensao de sua “poesia” cornar-se-ia possivel gragas 2 nova arte € sett poder de purificacao do olhar. Ao celebrar fundamentalmente a rela- 40 cimera/objero, tal liturgia do “olhar pu- rificado” deve instalar-se na brecha criada pela desintegracao do espago dramético e narrati- vo. Pata que a verdade da Natureza e do “ser natural” que existe dentro de nds se revele, & preciso dissolver as concatenagées narrativas as rensoes elaboradas dentro de convengdes proprias ao teatro. Ou seja, para que a “obje- tividade” da imagem seja compativel com 0 “cinema poético” é preciso que ela se organi. ze de modo a explorar as “revelagées” vindas de cada relagio cimera/objeto. E preciso abrir guerra contra 0 encadeamento dos eventos a partir de seus efeitos priticos, pois a narragao 0s explora em sua “exterioridade” ¢ no em sua “interioridade”. O que de mimético existe na reprodu- Gio cinematografica fica accito e redimido hha medida em que a mimese proposta no se esgote na “exterioridade dos fatos” ¢ seja ca: paz de atingir a “profundidade” do enfoque postico (expresso de um estado de alma) contra a “superficialidade” das concatenagoes légicas. Dentro de tal perspectiva, a discussio sobre os critérios de decupagem/montagem tende a se concentrar no problema do rit- mo. As questoes relacionadas com a cons- truigo de um espaco coerente perdem rele- vancia eas reflexdes dos teéricos se dirigem para o clogio as virtudes plisticas de cada camera-objeto particular. O pri to plano atrai para si as maiores especula- goes, dada a sua associagao com tragos como detalhe revelador, intimidade, movimento secteto, visualizacao do invisivel. A monta- gem s6 recebe especial atencao no pensamen- to de Moussinac, cujo cinema pottico estar baseado na nogdo de ritmo em seu modelo musical, um ritmo formalizado e produzido em fungao de relagdes quantificdveis. O re- ferencial musical sera assumido de maneira mais radical por cineastas e estetas como Germaine Dulac, Viking Eggeling ou Hans Richter. Nao surpreende que sua estética te nha como ponto de chegada a realizacao do “cinema puro”. Este, correlato ao abstracio- nismo pictérico (também referenciado ao modelo musical em sua teoria) vai mais lon- ge na desintegragao do referencial realista Nao s6 proclama a dissolugio da narrativa ou a eliminagao do espago dramatico; exige a supressio de qualquer vestigio mimético, de qualquer referéncia a um espago-tempo natural exterior ao filme, ¢ toma como tni- ca realidade a din&mica da luz ¢ os seus efei: tos geométricos ¢ ritmicos na superficie da tela. Dentro destes principios, Richter, Eggeling ¢ Dulac realizam, nos anos 1920, alguns de seus filmes, buscando procedimen- tos destinados a reduzir a experiencia cine- matogréfica a seus elementos mais puros. rela nei- A. VANGUARDA Neste caso, perde o sentido 0 uso de expresses como decupagem, uma vez que a montagem de linhas, figuras geométricas ou 0s jogos de luz e sombras, nao se produz atra- vés da filmagem de “cenas” divididas em pla- nos, mas através da filmagem “quadro a qua- dro”, onde cada fotografia corresponde ao registro de uma imagem pictérica ¢ abstrata. A técnica utilizada nas experiéncias do cine- ma puro &a mesma que encontramos na rea- lizagao dos desenhos animados, com a dife- renca de que o cartoon de maior divulgagio comercial corresponde & constituigao de um espaco narrativo ¢ antropomérfico (lembre- mos Walt Disney). No cinema puro, temos uma seqiiéncia de imagens nao figurativas. No caso do cinema de Richter, caleula- das variagGes em torno da figura retangular (retngulos brancos em tela preta ou vice- versa) constituem a matéria para um estudo da relagéo superficie/profundidade: a redu- a0 do cinema e seus elementos mais puros —0 branco € © preto ~ € vista como 0 cami- nho certo para a andlise do filme como obje- to em si mesmo, como algo dorado de quali- dades préprias, como luz projetada numa superficie ¢ nada mais. Dentro desea estéti- ca, trata-se de investigar o funcionamento da petcepcio, as modalidades de resposta do espectador diante de um estimulo que esté aquém da “representagao”, aquém da presen- ga de objetos reconheciveis mergulhados num espaco tridimensional — 0 espago s0- cial de seres humanos ¢ objetos. Se este espa 0 pode ser projetado na tela gracas & ilusdo criada pelas leis da perspectiva inscricas no proprio aparelho (lentes forograficas), 0 ci- neasta abstrato busca a recusa deste ilusio- 105 nismo ¢, ao mesmo tempo, encaminha sua pesquisa para o nivel sensorial. Ele quer for necer um estimulo que produza no especta- dor uma reagao capaz de ensinar a este como cle percebe e capaz de o fazer entender 0 que 0 “cinema em esséncia”, como objeto, an- tes que as luzes projetadas na superficie da tela sejam organizadas pelo projeto ilusionista do cinema de ficsio. Tais luzes serio organizadas segundo projetos pictéricos marcados por diferentes orientagdes, conforme o cineasta em ques- tao, tendo as varias perspectivas, como traco, comum, a valorizagio das caracteristicas plis- ticas da imagem e as propriedades fisicas do objeto-cinema. Varias formas de cinema de animaca dro a quadro” de imagens e desenhos pinta- dos pelo cineasta-artista plistico, articulam- se com diferentes propostas jé presentes no nivel da pinura (desde o abstracionismo geo- métrico até um simbolismo recuperador das mais diferentes mitologias ocidentais e orien- tais). Um cinema muito especifico emerge. Como diz Robert Breer, figura basica no atual cinema grifico americano, aquele cinema que se define por uma “evolugao das formas de- rivadas da pintura do autor”. Como outros praticantes do cinema grafico (Harry Smith. Len Lye, Jordan Belson), Robert Breer é um homem que vem de um trabalho original em (0, caractetizadas pela filmagem “qua- pintura, prolongando suas pesquisas dentro de um contexto filmico, 0 que implica em lidar com a movimentagio das configuragoes visiveis ¢ com o estabelecimento de uma duragio definida para cada imagem em par- ticular, propondo um tipo de leitura ao e: pectador, 106 (© DISCURSO CINFMATOGRAFIC A tendéncia a considerar o filme-obje- to chega a uma formulagio mais radical no momento em que, nos anos 1950 ¢ 1960, Peter Kubelka, Gregory Markopoulos ¢ 0 préprio Breer passam a trabalhar com o fo- tograma (cada uma das forografias que com- poem a pelicula cinematografica) como uni- dade basica da experiéncia visual da plaréia, Dar privilégio a cada fotograma como fonte de uma configuracao diferente das outras, € atacar 0 principio, num determinado mo- mento considerado cientifico, de que o es- pectador ¢ incapaz de perceber, como uni- dades separadas, cada um dos fotogramas. Pois bem, é justamente este principio que vai constituir um dos alvos da vanguarda americana, de Markopoulos a Brakhage, pas- sando por Breer, Kubelka e outros. Contra a tradicao, eles vao defender a tese de que € possivel enxergar cada forograma c, portan- to, o cineasta deve concentrar sua mensagem, carregando cada 1/24 de segundo com uma nova configuragio, como se a seqiiéncia de fotogramas fosse uma série de hieroglifos a serem decifrados. Markopoulos vai inserir esta idéia do cinema de single-frame (foto gtama individualizado) dentro de um proje- to de cinema narrativo: 0 género mito-poé- tico, Brakhage vai inserir tal ataque (a0 que cle considera um “preconceito” do mundo cientifico) dentro do seu projeto global de ataque as limitagdes que a cultura — como conjunto de convengées que condiciona a percepgao — impde ao nosso olhar; € vai montar seus filmes sem preocupar-se com 0 velho problema do “limiar da percepgio”. Breer vai trabalhar mais sistematicamente com 05 efeitos da ripida sucessio de cores com a introdugio da série descontinua de fotogramas como estratégia de ataque ao ilu- sionismo ou, mais precisamente, como ten- tativa de revelagao, para o espectador, daquilo que est por trds do ilusionismo do cinema janela. O modelo musical reaparece, reviven- do os ideais de Dulac, mas agora dentro de uma nogao mais matematica. Os fotogramas isolados, como notas, constituiriam as uni- dades bisicas de uma construgao rfemica apta a produzir experiéncias sensoriais de mesmo nivel que a experiéncia auditiva fornecida pela musica. O modelo chega a sua formula- 40 mais radical em Kubelka, que propde e executa filmes curtos extremamente clabo- rados no nivel da relagao matematica entre fotogramas ¢ extremamente voltados para a nao figuragio, para a apresentagio de um objeto dado & percepgio como algo indepen- dente e fechado em si mesmo. Com Kubelka, © cinema puro afirma-se como sucessio ma- temética de luz (tela branca) obscuridade (tela totalmente preta), numa produgio que realiza o velho sonho do cinema com “parti- tura”, Se as cépias de Arnulf Rainer (1960) de Kubelka se perderem, qualquer pessoa poderd refazer o filme, uma vez que cle apre- senta apenas luz pura e auséncia de luz, al- ternadas segundo certas relages numéricas. O flickering cinema (tela piscando segundo certas leis mateméticas) inicia sua carreira ¢ vai constituir tema de especulacao de Conrad € outros, preocupados com as modalidades da experiéncia sensorial. ‘A matematizagio © 0 modelo musical ligam-se 4 critica & continuidade ¢ Kubelka chega a inverter as tradicionais definigdes do cinema: “O cinema nao ¢ movimento. O ci: A VANGUARDA 107 nema é a projegio de foros (stills) — ou seja, imagens que nao se movem — num ritmo acelerado” (Kubelka, entrevista a Jonas Me- kas, in New forms in films, p.80). Dentro desta definigao, a articulagao basica de um filme se dé no intervalo entre dois fotogra- mas: “Onde esta entao a articulagao do cine- ma? Eisenstein, por exemplo, disse: € a coli sao entre dois planos. Mas ¢ estranho que ninguém nunca tenha dito que nao é entre dois planos mas entre dois fotogramas. entre os forogramas que o cinema fala” (idem, p-80). Na afirmagéo do filme como objeto dotado de uma textura prépria, é a técnica de base ¢ sao 0s cuidados essenciais aos olhos dos inventores do cinema, que recebem 0 ataque do cineasta. Dentro do projeto histé- rico que geta 0 mecanismo reprodutor do movimento (0 cinematégrafo de Edison ¢ Lumiére), a ilusao de continuidade ¢ um horizonte essencial — condigao para a simi- laridade entre a tela de cinema ¢ 0 mundo. Neste caso, a recuperagio da descontinuida- de, daquela descontinuidade que realmente acontece na projegio do filme, significa tra- er para o nivel da percepgio a presenga ime- diata da pelicula cinematogréfica como ob- jeto, com suas propriedades fisicas (série de forografias dispostas de um certo modo). O pedaco de celuldide prevalece sobre a idéia de imagem representativa — nao ha aqui ne- nhuma auséncia (objetos, mundo) que este- ja sendo visada pela presenca da imagem for- necida. Nao somos remetidos a nada que nao seja 0 objeto (filme) que se mostra, Ele € 0 discurso que fala apenas de si mesmo. Cada filme é uma auto-definigao. Para Jonas Mekas, este cinema, como arte, atinge seus niveis mais altos “em dire- € ao a uma iluminagao estética mais sutil menos racional”, E, neste movimento, equi- para-se is outras artes em suas tendéncias mais modernas. Se lhe dissermos que ha muita abs- tragao no encaminhamento desta forma par- ticular de negar o projeto ilusionista, Mekas nos responde negativamente. Num desvio empirista para um homem devotado ao ci- nema visiondrio e poético ~ ou melhor, numa demonstragéo do quanto hé de comum en- tre empirismo e poesia visionétia — ele assu- me que nada é mais concreco do que a pre- senca imediata do objeto c as sensagaes dele derivadas; “O cinema, mesmo aquele mais ideal e mais abstrato, permanece em sua ¢s- séncia concreto; permanece a arte do movi- mento, luz ¢ cor. Quando deixamos os pre- conceitos ¢os pré-condicionamentos de lado, nos abrimos para a concretude da experién- cia puramente visual e cinestética, para o “rea: lismo” da luz e do movimento, para a pura experiencia do olho, para a matéria do cine- ma. “Assim como o pintor teve que se cornar consciente da matéria da pincura ~ a tinta ou10 escultor, igualmente, da pedra, madeira ou marmore; assim também, para chegar 2 sua maturidade, a arte do cinema teve que assumir a consciéncia de sua matéria ~ luz, movimento, celuldide, tela” (Mekas, Movie journal, p.219). C. © ADVENTO DO OBJETO E A INTELIGEN- CIA DA MAQUINA Hans Richter, nos anos 1920, fora pega fundamental na inauguragio do cinema puro 108 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO ou abstrato. Depois da Segunda Guerra, quando o palco principal do “cinema posti co” transfere-se para os Estados Unidos, cle vai reintroduzir no seu cinema a presenga dos “objetos externos”. Nesta sua nova fase, res- peitada a figuragao das coisas ¢ aceita a pre- senca dos objetos na tela, a ruptura com 0 mundo natural faz-se através do deslocamen- to e da integracao destes objctos numa nova ordem constituida de valores plésticos-ritmi- cos. O objeto cotidiano, o fragmento da miquina, a imagem familiar, sao destacados dos seus contextos ¢ convidados a participar numa combinagao de outra natureza, nao pela sua funcionalidade, mas pelas suas qua- lidades plasticas. Ou seja, sua presenga na tela € organizada de modo a tomar sua for- ma e textura um puro esperdculo. Ballet mécanique (1924), de Fernand Léger, cons- Gitui o modelo de tal “orquestragao de ritmo ¢ forma” onde o brilho de determinadas su- perficies, iluminadas de diferentes formas ¢ combinadas em diferentes séries, fornece 0 material para um “novo realismo” (na expres- sao de Léger). O artista francés fala nas no- vas condigGes de percepgao que caracterizam a vida urbana na sociedade industrial e quer produzir um cinema apto a fornecer uma experiéncia compativel com a nossa nova relagao com os objetos ¢ com as maquinas. Através de suas imagens, trara-se de explorar as possibilidades plisticas do objeto cotidia- no, liberto de nossa visio utilitéria, que o aprisiona ao Ihe definir certas fungdes. Em Léger, trata-se basicamente de operar com a imaginagao, romper com a narragio e 0 dra- ma teatral — celebrar 0 “advento do objeto” ¢ fazer do cinema uma arte exclusivamente plastica, de montagem, propriaa fornecer em sua mais sofisticada versio aquilo que, em certa medida, jd é fornecido pelo espeticulo das ruas, pelas técnicas de decoracio de vi- trines ¢ por toda esta transformacao ambicn- ral que, sem duivida, tem suas influéncias decisivas na sensibilidade do homem. Em relagdo & interagéo homem/ambiente, Eps tein terd uma formulagao mais incisiva ¢ mais aristocratica, falando da “nova inteligéncia que seria prépria aos cultores da vida mo- derna, No esquema de Epstein, 0 cinema ocuparia um lugar privilegiado na modela- gem desta nova inteligéncia: “E impensavel que um tal instrumento nao venha a ter in- fluéncia sobre 0 pensamento. As maquinas que o homem inventa tém sua inteligéncia & qual recorre a inteligéncia humana” (Ecrits de Jean Epstein, p.244) Um misto de temas futuristas e técni: cas cubistas inspira as formulagdes de Léger ¢ Epstein, com diferencas. Do manifesto pela cinematografia futurista de 1916, reaparece aidéia de celebragio da maquina e do objeto manufaturado, e a dissoluggo do homem numa ordem mecanica, com a transforma- gao da arte num discurso das coisas. A mo- dernidade ensinaria a retirar 0 homem do centro do mundo ¢ a deslocar 0 palco dos grandes dramas. Ao celebrar o advento da maquina e do objeto industrial, Léger nao assume as im- plicacées ideolégicas contidas no programa futurista. A nogio de que fazer cinema e manipular imagens e explorar possibilidades contidas num certo material ¢ assumida den: tro de uma racionalidade diferente. A seu modo, ele dissolve a hierarquia humanista € A VANGUARDA 109 © primado da consciéncia, transformando 0 objeto no centro do discurso. Em tal des- jivo é a desinte- centramento, 0 passo deci gracao do espaco social, refletida no estilo da decupagem. O primeiro plano, maior in- vengao do cinema segundo toda a vanguar- da francesa, assume literalmente a fungao de produzir uma nova percepgao ¢ a idéia de enquadramentro como um “retirar do con- texto” é levada as suas tltimas conseqiién- cias, A nogio de “novo realismo”, de con- cretude, liga-se & proposta de celebrar, pela plastica, a presenca de cada objeto, de cada pedaco do mundo material dado em espeté culo para os olhos. Indo além das preocupagoes mais eco- logicas de Léger, Jean Epstein penetra num terreno ontoldgico ¢ fala de “personalidade”, de “vida prépria” contida em cada fragmen- to isolado pelo quadro cinematografico. Ao lado do poder de revelacao psicolégica fren- te a um rosto, 0 cinema para Epstein tem um poder animico frente aos objetos ¢ aos elementos naturais, A diferenga da nogao de concreto que preside o espeticulo naturalis- ta ~ preso a nogio de fato & cadeia de acon- tecimentos vinculados por uma relagio de causalidade — a concretude de Léger e Eps- tein pressupde a descontinuidade, 0 nao en- cadcamento de fatos, a ordenagio em série segundo critérios fora do espaco e do tempo do senso comum. “O primeiro plano fere também de outro modo a ordem familiar das aparéncias, A imagem de um olho, de uma mao, de uma boca, que ocupa toda a tela — no s6 porque aumentada em trezentas ve- zes, mas também porque vista fora da co- munidade orginica — assume um carater de autonomia animal. Este olho, estes dedos, estes labios, jd s4o seres que possuem, cada um, suas préprias fronteiras, seus movimen- tos, sua vida, sua finalidade préprias. Eles existem em si” (Ecrits, de Jean Epstein, p.256, texto escrito em 1946). Abrindo guerra contra a percepcio que prevalece na vida cotidiana dos homens, Epstein vai construir o referencial mais sis- tematico na tentativa de justificar a imagi- nagio poética em sua oposi¢io ao cinema dominante ¢ na tentativa de demonstrar a profunda afinidade entre as estruturas do fil- me como objeto e as novas revelagies da fisi- ca moderna, Como Kracauer, ele parte de uma interpretacao particular dos dados da ciéncia e, como Kracauer, formula uma pro- posta que atribui 2 nova arte uma funcio decisiva na cultura moderna. No entanto, sua interpretagdo, desde os anos 1920, sempre caminhou em diregao oposta & do teérico alemao. Para o poeta, cineasta e teérico fran. cés, o cinema € 0 lugar de um aprendizado especifico; ele éa via de acesso para uma nova € mais verdadeira percepgao do espaco-tem- po em que estamos inseridos. “Se, hoje, qual- quer homem medianamente culto consegue representar 0 universo como uma continui- dade com quatro dimensdes, em que todos os acidentes materiais resultam da articula- ao de quatro varidveis espago-temporais: se esta figura mais rica, mais dinamica, mais verdadeira talvez, substituiu pouco a pouco a imagem tridimensional do mundo, assim como esta substituiu primitivas esquemati- rages planas da terra e do céu; sea unidade indivisivel dos quatro fatores do espaco-rem- po esté paulatinamente se tornando tio evi- 110 (© DISCURSO CINEMATOGRAFICO dente como a inseparabilidade das tres di- mensacs do espago puro, isto se deve muito a0 cinematégrafo, a ele se deve esta ampla penctracao da teoria 4 qual Einstein e Minko- wski, principalmente, ligaram seu nome” (idem, p.284, 1944), De que modo pode o cinema desem- penhar tal fungdo? Primeito, porque na sala de espeticulos estamos em todo lugar ¢ em parte nenhuma; somos dotados de uma ubi- gitidade que transforma nossa visto do mun- do. Ao ser-no-mundo de Merleau Ponty ¢ ao homem “em situagao” do existencialismo, Epstein opie o ser-em-toda-parte ¢o homem, imagindrio, o mesmo que a antropologia de Edgar Morin vai discutir nos anos 1950. Em segundo lugar, porque, acima de tudo, o « nema € © reinado da descontinuidade. No proprio processo de registro, tal descontinui- dade esté impressa ¢, por sua vez, a monta~ gem cria um universo fragmentado, cuja con- tinuidade, mesmo no mais simples filme narrativo, é produto de uma sintese da nossa consciéncia. Portanto, nos dois niveis, o que © cinema demonstra ¢ a convencionalidade deste mundo integrado ¢ “sem vazios” que julgamos habitar. O espago-tempo de Ep: tein é cheio de curvas ¢ a temporalidade se desenvolve segundo diferentes trajetos locais; © presente, cada instante, ndo é senio o lu- gar de uma concorréncia (celebrada no cine- ma pela montagem ou pela superposicao de imagens). A identidade do objeto ou da pes- soa que vemos na tela ¢ relativa; vemos sem- pre particularidades. A experiéncia cinema- togrifica mostra que a unidade do espago ¢ uma ficgdo em nossa cabega. E o principio de causalidade deixa de nos aparecer como algo inerente & natureza. O cinema é uma reeducagio pelo absurdo. Principalmente quando o cineasta sabe organizar 0 material de modo a produzir uma ficcio magica ca- paz de deflagrar a experiéncia reveladora. Para tal, cle deve seguir a “inteligéncia do préprio cinema’, desta maquina de sonhos, que nos demonstra a relatividade de tudo ¢ a equiva lencia das varias formas possiveis. (© procedimento fundamental capaz de coroar 0 proceso de revelagio, promovido pela inteligencia da cémera, ¢ a alteragao de velocidades permitida pela projegio cinema- togrifica. E af que se cristaliza a relatividade da nogao de tempo. Em camera lenta, so: mos capazes de acompanhar os minimos movimentos que compéem uma expressio facial que carrega uma emogao, ou somos capazes de estudar os movimentos de ani- mais ¢a evolugio de processos naturais. Atra- do registro descontinuo ¢ lento do cres- cimento de uma planta ou do deslocamento de um acidente natural, obremos uma séric de fotografias que, projetadas em 24 quadros por segundo, nos revelam a vida ali concen: trada em seus ritmos caracteristicos fora do nosso alcance na percepg4o comum, Na con- cepsao de Epstein, no cinema, manipulamos 6 tempo, invertemos a diregio dos processos ¢ violamos a segunda lei da termodinamica. Tudo isto demonstraria como a oposi- 40 animado/inanimado € arbitréria e pro- duto dos limites do nosso senso comum, e como a fixidez da qualidade das coisas é re- lativa, a0 mesmo tempo, deixaria claro todo © aprendizado que nos espera na necessiria revisio de nossos referenciais. Se o universo se mostra em sua descontinuidade ¢ se 0 tem- ve A VANGUARDA ut po se multiplica e se inverte, para Epstein, € a propria nocio de real que se esfumaca, pelo menos aquela nogao que terfamos herdado através de longa trajetéria da cultura ociden- tal. O que nao o impede de se apoiar em elementos particulares desta tradicao para coroar sua visio de mundo e seu discurso sobre 0 olho “surreal” do cinema. Em seu idade e em sua interesse pela teoria da relat dissolugio das especificidades do mundo social e humano, Epstein apdia terpretagio muito particular dos novos re- sultados da ciéncia, basicamente encami- nhando-se para a fundamentagio de uma sé numa in- nova religiao a partir dos elementos aqui enumerados. O discurso cinematogréfico — poético, livre, ancorado numa nova inteli- géncia inscrita na propria maquina que ele utiliza — € © ponto culminante de uma liturgia: aquela que define um certo panteis- mo moderno. Epstein nao apenas nos diz: “Nao sobra senio um reino: a vida’. Mas procura nos especificar os fundamentos de te mundo desdiferenciado: “Nao 6 a vida estd em toda parte, mas também o instinto ¢ a inteligéncia ea alma” (idem, p. 389). E conclui: “A vida é uma esséncia universal, manifestagao primordial da existéncia div na, Jé que a mesma vida move todas as ap: réncias, o mesmo Deus, tinico ¢ uno, consti- tui o principio imanente de todas as coisas” (idem, p.390) Este pantefsmo, associado ao culto da inteligéncia e extrema atengao pelos aspe tos quantitativos dos dados sensiveis, cami- nha em diregao & definigio de uma certa or dem oculta dirigida pelos nimeros ~ a filo- sofia de Epstein afirma-se como um neopi- tagorismo. Anticartesiano, ele defende o pri mado da imaginagao, basicamente como for- ma de experimentar, pela montagem e pelos enquadramentos cinematogtaficos, as varias ficgdes possiveis, as varias ordens que def riam realidades imaginatias, entre as quais a do “senso comum”. O “cinema do diabo” de Epstein € he- rético ¢ alquimista. Na sua batalha contra 0 naturalismo ¢ 0 cinema narrativo, a sua ima- gem é uma transubstanciagao do real ¢ seu discurso podtico € uma reivindicacio pelos direitos e pela legitimidade de uma visio magica do mundo. D. © MODELO ONIRICO No inicio da década de 1950, Buftuel escteve: “O mistério, o elemento essencial de qualquer obra de arte, esta em geral ausente dos filmes. Autores, diterores ¢ producores, com sacrificio, conservam nossa paz, deixar do hermeticamente fechada a janela que leva ao mundo liberador da poesia. Preferem fa- vet a tela refletir temas que poderiam inte- grar a continuidade normal de nossa vida cotidiana, tepetir mil vezes o mesmo drama ou fazer-nos esquecer as duras horas do tra- balho didtio. E tudo isso € naturalmence san- cionado pela moralidade habitual, governo, censura internacional ¢ religido, dominados pelo bom-gosto e enlevados pelo humor in- sipido ¢ outros imperativos prosaicos da rea- lidade” (Conferéncia “Cinema: instrumen- to de poesia”, 1953, publicada no livro Luiz Butiuel de Francisco Aranda) No mesmo texto, ele cita suas conver- sas com Zavattini, figura basica do “cinema 112 © DISCURSO CINEMATOGRAFICO prosaico” que ele mais respeita — 0 cinema neo-tealista. Nesta conversa, Bufiuel explica diferenga basica entre 0 cinema que ele quer, um cinema poético e aberto para o fantisti- co, € 0 olhar neo-tealista: “Como jantava- mos juntos, 0 primeiro exemplo que se ofe- receu a mim foi o do copo de vinho. Para um neo-realista, eu disse a ele, um copo é um copo ¢ nada mais; vocé o vé retirado da prateleira, cheio com liquido, levado & cozi- nha onde a empregada o lava ¢ as vezes 0 quebra, 0 que resulta no seu retorno ou nao etc. Mas, este mesmo copo, observado por seres diferentes, pode ser mil coisas diferen- tes, porque cada um carrega de aféto 0 que vé; ninguém vé as coisas como elas sdo, mas como seus desejos ¢ seu estado de espirito 0 fazem ver. Eu luto por um cinema que me mostre este tipo de copo, porque este cine- ma vai me dar uma visio integral da realida- de, vai alargar meu conhecimento das coisas e das pessoas, vai me abrir 0 maravilhoso mundo do desconhecido, de tudo aquilo que eu nao encontro nes jornais nem na rua” (mesma conferéncia). Quando ele nos fala de uma visto inte- gral da realidade, Bufuel esté levando em conta o principio bésico formulado por Breton desde o primeiro manifesto surrealis- ta: a uansmutagio dos dois estados aparente~ mente contraditérios, sonho ¢ realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade. E ¢ 0 proprio Bufuel quem cita Breton, na sua sintética formula, propondo a dissolucao da diferenca entre o real eo fantas- tico propria ao senso comum: “O que é mais admirdvel no fantastico é que cle nao existe, tudo é real” (Breton citado por Bufuel). Em 1924, no mesmo ano em que Fran~ cis Picabia e René Clair realizavam Entriacte, filme que introduz no cinema os dispositivos de choque ¢ os ataques as convengaes da boa arte préprios a0 comportamento dadaista, Breton langava o primeiro manifesto surrea- lista. Se quisermos nele encontrar alguma referéncia explicita ao cinema, encontramos apenas uma tinica frase: “O cinema? Viva as salas escuras!”. E, evidentemente, uma série de propostas cuja formulagio dirigida ao tra- balho poético em literatura praticamente solicita um transplante para o terreno cine- matogrifico. Isto, em termos de critica, seri feito por Robert Desnos, 0 poeta surrealisca que durante toda a década de 1920 batalhou por um cinema apto a projetar na tela o “maravilhoso surrealista”. Como Buel trin- taanos depois, Denos, em sua coluna critica, constata uma auséncia: a do cinema livre, poético e maravilhoso, E o filme dadaista de René Clair ¢ 0 nico que satisfaz a sensibili- dade surrealista. O que muito se deve a certas afinidades de espirito e de atitude entre esses dois movimentos: aagressao ao senso comum, 0 cultivo do humor aliado & ironia frente as convengoes burguesas ¢ as regras estéticas vigentes; em alguns aspectos, 0 surtealismo, que “oficialmente” inaugura-se em 1924, é um desdobramento, numa direcéo espect ca do Dadaismo de 1916-1920 ~ mais cen- tralizado ¢ mais canalizado para o cultivo de um método do que o anticonformismo anar- quista ¢ a autofagia dos movimentos Dada. Posto de lado Entr‘acte, Desnos s6 vé no cinema a distancia entre as possibilidades posticas ¢ a pobreza da pritica dominante, a mesma pobreza que revolta Bufiuel nos anos A VANGUARDA 3 1950. Desnos nao se envolve nas contendas que partem da dicotomia entre cinema nar- rativo-comercial ¢ cinema poético de va guarda. Diante da tendéncia naturalista do cinema griffid Epstein esta longe de constituir uma alrer- nativa, Contra 0 esteticismo da vanguarda, Desnos propée o cinema autenticamente liberador, segundo os principios surrealiscas: um cinema de sonho, de aventura, de misté- rio ¢ de milagres; um cinema que, como Bufiuel o exige, incorpore a sua imagem a dimensio do desejo, sem repressoes. O fundamental para o surrealismo € 0 rompimento de um citculo: 0 do desejo su- blimado e inscrito nas convengées culturais c estéticas de um cinema que cultua a suges Go, que usa a montagem como construgio de um espaco verossimil ¢ 0 corte como re- pressao da imagem proibida. O cineasta sur- realista quer atingir 0 maravilhoso, ¢, para tal, precisa hutar contra o cinema que cele- bra a estabilidade do mundo de frustragdes cotidianas ou fornece uma experiéncia esca- pista bem comportada que nada mais faz se- no aprisionar o espectador no circulo de suas fantasias. O cincasta surrealista quer denun- ciara rede de censuras articuladas com a es- tética do cinema dominante. O filme sur- realista deve ser um ato liberador e a produ- sao de suas imagens deve obedecer a outros imperativos que nao os da verossimilhanga e os do respeito as regras da percepgdo comum: Nao bastam as transformagées no contetido das cenas filmadas ¢ a liberagao do gesto humano que compéem sua narrativa. E pre- ciso introduzir a ruptura no proprio nivel da estruturagio das imagens, no nivel da no, a vanguarda de Dulac e construcao do espago, quebrando a tranqiii- lidade do olhar submisso as regras. Em sua defesa da montagem que obe- dece aos imperatives tinicos da imaginagio, a proposta surrealista implica numa agres- sao direta 4s convengGes da decupagem clis- sica, Em vez de caminhar em direcio a uma ilusdo de continuidade, a montagem cria uma cadeia associativa de imagens que frustra as expectativas de quem espera uma narragio trivial com referéncias de espago e tempo cla ras. Os leteiros de Un chien andalou (1929) sugerem uma cronologia; as imagens negam tal informacio, cuja presenca torna-se iréni- ca. A descontinuidade e 0 non-sense insta ram-se na sucessdo de gestos ¢ cenas articu- lados em diferentes espagos. Cada plano é lugar de uma nova definigao dos elementos em jogo: um objeto que nao estava ali no plano anterior, trangiiilamente aparece no plano seguinte: um gesto que se inicia num quarto de apartamento em Paris completa~ se rigorosamente num jardim distante; 0 es- pago ¢ 0 tempo transformam-se em “ocasiio” de eventos controlados por uma instancia que se recusa a obedecer as limitagées impostas pelo “principio de realidade” (Freud) Tal como na “escrita automatica” pro- posta por Breton no manifesto de 1924, 0 principio da “associaczo livre” instala-se na confeccéo da montagem cinematogrifica. E ral como na experiéncia de Breton ¢ Philippe Soupault no plano literario, Buiuel ¢ Salva- dor Dali compéem conjuntamente o tecido de ocorréncias de Un chien andalow, fazendo questio de explicitar o critério de combina- gao das imagens: “O produtor-diretor do fil- me, Buituel, escreveu o (roteiro) em colabo- 4 O DISCURSO CI ragio com o pintor Dali. Ambos partiram do ponto de vista de uma imagem onirica, que, por sua vez, buscava outras pelo mes- mo processo, até que 0 todo tomava forma de continuidade. E de se notar que, quando uma imagem ou idéia surgia, os colaborado- res a abandonavam imediatamente se nasc! da de uma lembranga ou de seu standard cultural ow se, simplesmente, tinha associa ¢a0 consciente com qualquer idéia anterior. Aceitavam como vilidas apenas aquelas re- presentagdes que, embora os comovessem profundamente, nao tinham explicacao pos- sivel. Naturalmente, rejeitavam as limitagoes da moralidade e razao costumeiras. A moti- das imagens, eta, ou procurava ser, | Sao to misteriosas vat puramente irracional inexplicaveis para os dois colaboradores como para o espectador. NADA, no filme, SiM- BOLIZA COISA ALGUMA. O tinico método de investigacio dos simbolos seria, talvez, a psi- canilise” (Historia do cinema francés, p.57) O discurso cinematografico nao deve imitar 0 verossimil (denominador real), tal como na decupagem classica. Ele deve imi- tar a articulagao dos sonhos, a légica de uma experiéncia que é 0 “preenchimento do de- sejo” por exceléncia. Para tal, ele est melhor equipado do que qualquer outra modalida- de de instrumento a disposigao do poeta: 0 seu material (imagens visuais e sonoras) apre- senta exclusiva afinidade com o material tra- balhado pelo inconsciente (tal como enten- dido por Freud), Justamente o inconsciente que o discurso surrealista, dentro de condi- goes diferentes das do sonho propriamente dito, quet expressar. As “condigdes de repre- sentabilidade” (Freud) que governam a ex- XEMATOGRAFICO pressio do desejo no sonho tém no cinema © seu modelo mais préximo. E tal afinidade entre material cinema- togréfico e material do inconsciente é dado fundamental para Buftuel e seus companhei- 10s; € por af € nao através de fidelidades pro- saicas a um falso real que se encontra a via liberadora, 0 poder transformador do cine- ma. O escindalo para o surrealista é que a producao dominante alimenta-se em parte desta afinidade, para nao produzir senio 0 filme inofensivo e nivelado pelas limitagées da sociedade. O cinema dominante trai as suas raizes inconscientes € representa a vit6- ia da autoridade e do conformismo sobre 0 “senso de liberagao” e sobre o desejo de sub- versio da realidade, afirmados na experién- cia onirica. Nao sendo um sonho (individual e so- litario) e, em se sabendo como nao-sonho, o discurso surrealista é um ato poético de libe- ragao frente as repressdes sociais; sendo uma experiéncia social e consciente, procura imi- tar a ldgica da experiéncia onirica para ser eficaz em sua subversao, uma vez que 0 seu imagindrio excita as profundezas da psiqué, dirigindo-se ao inconsciente na sua prépria linguagem. E somente neste caso, como manifestagio da linguagem do inconsciente com as estruturas préprias aos processos mentais primérios, que Bufiuel vé a tela do cinema refletindo a “luz adequada”: “a pu- pila branca da tela de cinema, bastar-Ihe-ia refletir a luz que lhe € propria, para explodit o Universo” (mesma conferéncia). ‘A questio do real fica superada. A con- tinuidade oferecida pela decupagem clissica perde sua autoridade e fungao. A dinamica A VANGUARDA 115 do psiquismo individual segundo Freud, marcada pela dialética natureza (instinto)/ cultura (leis), projeta-se para o dominio so- cial, ¢ 0 antiautoritarismo do projeto surrea- lista afirma a supremacia do imaginério ¢ propde © cinema como a demonstragao de seus poderes liberadores. E, A IMAGEM ARQUETIPO Em Maya Deren, a negagio do cinema narrativo légico-causal e a recusa de uma montagem criadora do espaco-tempo conti- nuo convergem com certas estratégias de “disjungéo” ¢ descontinuidade préprias a0 surrealismo. Mas, clas esto inseridas dentro de uma outta perspectiva. Tomemos o filme A choreography for the camera (1945). Den- tro de um corte semelhante ao que caracteri- za certas passagens em Un chien andalou, vemos um gesto iniciado, tendo como fun- do uma paisagem, completar-se numa sala de visitas; em seguida, a figura humana que acompanhamos, prossegue em seu movimen- to, cumprindo uma légica interna, saltando de espaco a espaco, indiferente as limitagoes do tempo e aos imperativos da gravidade ter- restre. Entretanto, a distingio frente ao ges- to surrealista provém do fato de que tal ges- to de dangarino, calculado ¢ cheio de dis: plina, prevalece sobre a natureza porque cle constitui uma forma. Porque, longe de ma- nifestar uma liberagio do inconsciente, ele é produto das forgas organizadoras da cultura eda consciéncia humana. Ou scja, ele é pro- duto daquelas entidades marcadas pela ca- pacidade de constituir formas especificas nao redutiveis ao império da natureza. Para De- ren, formas que adquirem um estatuto de perenidade, formas cheias de coeréncia in- terna — como o gesto do dangarino ~ e que afirmam os poderes da criatividade humana quando impulsionada pela sua necessidade de representacéo do “cosmos”, quando im- pulsionada pela necessidade de uma visio totalizadora que organiza a existéncia nas varias modalidades de cultura manifestas Deren quer um cinema-ritual; segun- do cla, néo como experiéncia religiosa, mas como exercicio consciente ¢ controlado, Como jogo de exploracao que dé lugar para a descoberta de estruturas de consciéneia que iluminam a relacao homem/cosmos, revelan- do diferentes facetas do existente. A arte, esta perspectiva, guia-se por um modelo classico; tal como na Grécia Antiga ¢ outras civilizages, transforma-se no lugar da expe- cia peculiar capaz de expressar as idias essenciais que a cultura apresenta no seu de- bate com as “formas invisiveis ¢ as relagies do cosmos”. E 0 artista moderno pode en- tao encarnar em si a formalizagio do mito e © mergulho nos meandros da subjetividade (tal como Jean Cocteau a partir de O sangue do poeta ~ 1930). Nesta encarnagio, Deren celebra a face junguiana de uma estética que comercia com a psicandlise, ¢ o fez contra a aptopriagao de Freud que fica & sua esquer- da, a saber: a surrealista Nao surpreendem os seus fregiientes ataques a estética da liberacéo surrealista, vista por ela como uma modalidade de naturalis- mo, como arte que “reivindicando a atitude cientifica frente realidade como sua fonte de inspiracao, resulta numa exaltagao roman- tica ou realista da natureza, ¢ finalmente se

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