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A ECONOMIA SOLIDARIA DIANTE DO MO- DO DE PRODUGAO CAPITALISTA’ Luiz Indcio Germany Gaiger RESUMO: literatura atual sobre a economia soldi converge em afit mar o catiter alternativo das novas experiéneias populates de autngestio © coopengie econdmica: dada « ruptura que intzoduzer nas zelagbes de produgio capitalists, eas representariam a emergéncia de um novo mo do de organtzacio do trabalho das afividades econdmieas em geral. O ttabalho discute o tema, tetomando a teoria marxista da trunsicao © anal snd, sob esse pesma, dados de pesquisis empisieas zecentes sobte os cendimentos soliditios. Delimitands fe da germinagiio de uma now. 4 tese anterior, conclu estar. ‘forma social de producao”, cu ji tendéncia € abrigar se, contraditoriamente, sob 0 modo de producio capitalista, Extra, por fim, a8 conseqiiéacias tedrcas e poliieas desse en tendimento, posto que repide, em termos no antagonieos, a preseaca de laces socisis atipieas, no interior do eapitalismo, PALAVRAS-CHAVES: trabalho, cooperacio, alternativas, Karl Mars, teansi sho, UM DEBATE TEORICO E POLITICO Na paisagem social dos iiltimos anos, é visivel a presenca cres- cente de grupos informais, associagées ¢ empresas de trabalhadores, organizadas em bases cooperativas ¢ em regime de autogestio. [m- bora sua forma mais comum sejam as cooperativas (de producao, prestacio de servicos, comercializacio ou crédito), tais principios tém sido observados em distintas onganizages econdmicas, num verda- cit poliformismo institucional, de empreendimentos sit diferentes setores produtivos — da produgio familiar 4 inddstria de tegorias de trabalhadores. No Brasil, o fato tem gerado uma profusio de estudos empiricos (Gaiger, 1996; Singer & Souza, 2000) ¢ de formulagdes téoricas (Mane, 2000; dos em transformacio — envolvendo diversas 1 Base trabalho & fruto de estudos do Grupo de Pesquisa em Economia Solidtia da ‘Universidade do Vale do Rio dos Sinos (www.ccosolorg.br), com apoio do CNPq da FAPERGS. A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 Artigos 182 ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA Cattani, 2003), além de debates de natureza politica (Singer e Macha- do, 2000), a0 mesmo tempo em que se multiplicam estudos compara tivos entre paises ¢ continentes nos quais fendmenos similares se veri- ficam (Laville, 1994; Defourny, Develtere ¢ Fontencau, 1999; Santos, 2002) Segundo as teses correntes? iniciativas representariam uma opeio efetiva para os segmentos sociais de baixa renda, forte- mente atingidos pelo quadro de desocupacio estrutural ¢ pelo empo- brecimento. [Em diferentes paises, pesquisas apontam que 0s enpren- dimentos solidiios, de timida reaco & perda do trabalho € a condigées extremas de subalternidade, estao convertendo-se em considerivel mecanismo gerador de trabalho ¢ renda, por vezes aleangando niveis de desempenho que os habilitam permaneceram no mercado, com perspectivas de sobrevivéncia (Nyssens, 1996; Gaiger ef al, 1999).> A caracterizagao da economia solidaria ¢ 0 balanco das princi- pais teses acerca do seus fatores explicativos, ou do sew potencial transformador, dados os diferentes aspectos a observar, demandaria um artigo especifico, conforme indicado em linhas gerais em outros trabalhos (Gaiger, 2003b; 2003c). A bem da verdade, desde o sée. XIX registram-se tentativas de instituir formas comunitirias © democriti- cas de organizar a produco € 0 consumo, em resposta a aspiragdes de igualdade econdmica © & necessidade de garantir meios de subsis- téncia para a massa de trabalhadores. A expansio atual desses empre- endimentos remete tanto a capitulos anteriores dessa hist6ria, quanto a correntes de pensamento € acio politica. Suas raizes mais longin- quas situam-se no sée. XIX curopeu, quando a proletarizacio do mundo do trabalho provocou 0 surgimento de um movimento operi rio associativo e das primeiras cooperativas autogestionitias de pro- ducio. Fissa experiéncia esteve intimamente ligada a matrizes intelec- tuais que, desde entio, evoluiram por caminhos diversos: socialistas utépicos, anarquistas, cooperativistas, cristios socialistas. © caldea- mento operado entre essas vertentes, 4 medida do aparecimento de 2 Duss coletineas, entre outms, contém elementos importantes desta discussio: Keaychete, Lara ¢ Costa, 1999 ¢ Ponte Je, 2000, DA primeies pesquisa nacional sobge o tema, de catiter empisico compacado, promovida pela Rede de Estudos e Pesquisas UNITRABALHO, sexi publicada em breve: Gaiger, L. (Ong, Sonne eexportiniar de omomia midara wo Brat! no pret ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger 160 experiéncias semethantes em outros continentes e dos episédios mar- cantes na histéria politica do séc. XX, conduziu a uma profusto de abordagens ¢ & entrada em cena de novas referéncias, particularmente ‘no campo do pensamento cristio ¢ do socialismo (Gaiger, 2003a), Ao lado da ampla gama de experiéneias ditas de economia soli dria, cotejam- vergentes, mas nio mutuamente redutiveis, tais como empresas de eco nomia popular, empresas sociais ¢ cooperativas populares, por sua vex vincula- das a leituras interpretativas igualmente em confluéncia, como eommo- ‘mia do trabalho, soineconoma, socialsmo antogestionsri, economia plural, ter eine setor, economia da didiva © outeas. Apenas no momento, registram- se as primeiras tentativas, valiosas, de ordenamento € clarificacio des- sa ampla gama de abordagens (Franca Filho, 2001; Cattani, 2003)-4 © quadzo promissor da economia solidaria, além de carrear ra- pidamente o apoio de ativistas, organizacses sociais ¢ Srgios piibli- cos suscitou um interesse especial sobre o problema da viabilidade desses emprcendimentos, bem como sobre a natureza € o significado contido nos se: producao e do trabalho. Setores da esquerda, reconhecendo ali uma nova expressio dos ideais hist6ricos das lutas opexirias ¢ dos movi- mentos populares, passaram a integrar a economia solidéria em seus debates, em seus programas de mudanea social e em sua visio estra- tépica de construcio socialista. Vendo-a scja como um campo de tra- balho institucional, seja um alvo de politicas piiblieas de contencio da pobreza, seja ainda uma nova frente de lutas de cariter estratégico, visdes, conceitos e priticas cruzam-se intensamente, interpelando-se € buscando promover a economia solidiria como uma reyfosta para os excluidos, como hae de um modelo de desenvolvimento comprome- ¢ formulagdes conceituais hoje em boa medida con- tracos sociais peculiares, de socializacio dos bens de les € leituras te6rieas foi propiciada pela Revi de Giiniss Sosiaie da UNISINOS, em seu mimero temitico 59, de 2001, A Sstematizagio teésico conceitual deve avancar 4 medida que se concluam teses sobre a economia solidisia, aguakmente em miimero expeessivo nas Univetsidades brasileias. Teri impulso” igualmente na reeém eriada Rede de nestigdorer Latinoarericanas de Economia Soca y Saliva RILESS. 5 Cajos teflexos mais notétios sie. o Farner Branikire de Beomomia Soliiria ea Secretaria Navonal do Kcommia Soldivia, do Ministério do Trabalho e Emprego, ambos ctiados em 2003. A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 108 ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA tido com os trabalhadores, como », na qual se manejam com freqiiéncia teses ¢ categorias da economia politica mar xista - leito de navegagio tradicional do pensamento da esquerda ~ sustentando argument ies € respostas de natureza, sobretudo, ideo- ogica e progtamética. Nesse contexto, as tentativas de teorizar 0 te- ma, com os cuidados que a tarcfa requer, corem o tisco de serem apreciadas diretamente por seu impacto politico, por scus efeitos de legitimacio sobre as elaboragdes discursivas politieamente em con- fronto, dotadas de clevado grau de finalismo, de ingredientes tcleolé- gicos proprios das ideologias. O fato é suscetivel de ocorrer sobretu- do com as formulacdes mais audaciosas, que associam a economia solidaria a um novo mado de producio, nao-capitalicta (Viriba, 1997; Singer, 2000; Verano, 2001), quer pela insuficiente explicitacao conceptual das mesmas, quer porque tendem a no serem vistas como problema- tizagoes do tema, ou hipdteses revisaveis, mas sim como respostas seguras, chancelando tomadas de posicio e juizos definitivos. Assim, convém ir devagar com 0 andor. ‘Tomada como uma sentenca afirmativa, a tese em tela possui conseqiiéncias amplas © profundas, pois resolve de vez, com a questio principal acerea do ca- iter alternative da economia solidatia: © advento de um novo modo de produgio, como buscarei demonstrar, representa in limine a supe- 10 do modo de produeio capitalista ¢ das formac Ihe correspondem, a instauracio de algum tipo de sociedade pés- capitalista, cujas caracteristicas tornar-se-iam historicamente predo- minantes. Interpretacdes ligeiras dessa importante questiio podem, em verdade, manifestar uma pressa de encontrar respostas trang zadoras, por sua aparente eficacia politica, pressa de que parecem r sentir-se os grupos de mediacao, desorientados com a regressio da agenda social, a faléncia dos modelos de transicio ao socialismo € a caréncia de teorias crediveis que respaldem uma nova (ou apenas re- tocada) estratégia de intervencao. Como assinala José de S. Martins (1989, p. 135), hi anos instalou-se uma crise na intelectualidade de cesquerda, por sua dificuldade em produzir uma teoria da pratica afual € real das Classes subalternas. O fato talvex revele um fendmeno cicli- Co, posto que esse desencontro entre teotia € pritica, a primeira es- 's socials que ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger 108 tando em descompasso, registrou-se em outros momentos da nossa historia politica (Souza, 2000) Naturalmente, os fatos avalizam uma visio politicamente oti- mista sobre o papel da economia solidéria, Nao ha diividas de que 0 concreto real, manifesto em tais acontecimentos “é 0 verdadciro ponto de partida (do pensamento) e, em consegitinca, o ponto de partida fan én da intuigdo € da representagao” (Gorender, 1978, p. 39). Todavia, ppara ultrapassar esse ponto de partida c aceder a0 concreo pensado, que reprodu racionalmente o real, o pensamento necessita de um traba- Iho de elaboracio que transforma intuicdes ¢ representacdes — aqui, do senso comum militante — em conceitos. Entre os acontecimentos a teoria bi uma lacuna a ser preenchida, nio num salto, mas percor- rendo um caminho de ida e volta. Um meticuloso vai-e-vem, em que ‘0s dados empiricos e as formulacdes abstratas se esclarecem e vem adequar-se mutuamente, tornando inteligivel a realidade, sob forma de proposigdes, que nio sto simples reedi¢io da teoria, tampouco uma reproducao pura do real — na primeira alternativa, estariamos cristalizando a tcoria € encerrando-nos em grades interpretativas apri- oristas € inquestioniveis; na segunda, ocultando involuntariamente nossos conceitos e premissas implicitas.© A intengio desse trabalho é estabelecer esse movimento, a par- tir da teoria em que se situa originalmente a categoria nado de produgio, inadvertidamente ou niio colocada no ceme do debate sobre 0 cariter alternativo da economia solidiria. Passos nessa directo foram dados em ocasides anteriores, inicialmente com objetivo de sugerit a ade- quacio e o valor interpretative da teoria de Mars, acerca da produgio ¢ da reproducio das grandes formacdes histéricas (Gaiger, 1998); mais adiante, buscando evidéncias empiricas, analisadas com aquela teoria de fundo, de modo a verificar seu poder elucidativo e articu- hador das conclusdes aleancadas (Gaiger, 2001b). tarefa que propo- ho, agora, impde um ‘atamento sistemdtioo das categorias e da teoria da transicao em Marx, para confronti-las com os resultados apurados ©A realidade histories — como toda realidade — existe puramonie, independentemente de que a conhecamos, Nisso consiste sua objetividade, Mas, ddesile que a queitimos conheect, sta existencis perde a purge © se tora referencil a0 sujeito de conhecimento. Por isso, 0 “dado puto” é uma fiecio, uma ilogicidade.” (Gotender, 1978, p. 43). A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 186 ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA cem pesquisas ¢ com suas respectivas terpretagdes. Ha um agudo senso de filigeanas, uma riqueza pouco conhecida na teoria da transi- ao de Marx,’ que a vulgarizacao nos meios intelectuais © militantes tratou de climinar, fixando-a em regras gerais supra-hist6ricas, des- providas de qualquer capacidade heuristica. © texto é uma tentativa de explorar essa riqueza. Suas conclusd parcialmente a tese do novo modo de produgio, antes evocada; espero que sejam apreendid funcio te6rica primordial, de ponto de partida estimulante a0 seguimento do nosso trabalho inte- lectual, matizam ¢ contradizem s, também el: em st AS GRANDES CATEGORIAS ECONOMICAS DE KARL MARX Sabemos que modo de pmdugio & a categoria mais fundamental e englobante, cunhada por Marx, para expressar sinteticamente as prin- cipais determinagdes que configuram as diferentes formacdes hist6ri- cas, Essas determinagdes encontram-se no modo como os individuos, de uma dada sociedade, organizam-se no que tange & producao, & dis- tribuico © ao consumo dos bens materiais necessirios A sua subsis- relat téneia; mais pre: de produgio, em correspondéncia com um estado historico de desen- volvimento das forcas produtivas. mente, na forma que assumem O emprego do termo modo de producio, nos textos de Marx, to- davia no € univoco. O fate provocou apreensdes diferenciadas, tipologias suplementares. (modos de producio _periféricos, secundirios, etc.) € tipos incompletos, como © mado de produgio simples® Vomando por base a exegese cuidadosa realizada por autores dedicados ao assunto, tais entendimentos ficariam sem guarida, sendo por outro lado necessirio reconhecer, 20 menos, um outro uso comum nos escritos de Marx, em que mado de prduio possui um. cariter_meramente descritivo, referindo-se a uma certa forma conereta de produzir (artesanato, manufatura) ou, mais amplamente, a 7 Na confertncia profeida no X Congresso Beasileito de Sociologia Fortaleza, (09/2001, intitulada “Sociologia e sociedade; hetangas perspectivas", Gabriel Coha salientou que Marx possui todos os ingredientes para uma’ ref coryanizada sobre o problema do tempo; do fomgo dar iramisit,acrescentata "Bm que 0 tabilhadr 0 peoprictiio dos meios de produgio, o» poe em movimento, individuilmente ou em diminutas unidades de producio, yeralmente familiares, € negocia seu produto em condigdes que fogem & sua lopes e dominio. ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger 167 nato, manufatura) ou, mais amplamente, a um estigio geral de desen- volvimento tecnolégico (maquinismo, grande indstria) A distinclo, como veremos adiante, tem interesse. Segundo M. Godelier, nesse caso Marx esté designando um mado material de produ fio, isto &, “os elementos ¢ as formas materiais dos diversas processos de trabalbo, pelos quais as membms de uma sacedade agen sobre a natureza que os cerca para extrairers os meins materiais neessirins ds suas necessidades, prdusirem e ropro- ducirem as condicdes materiais de sua existénia social” (981, p. 169). Pro- duzindo bens semethantes, modos materiais de producio podem re pousar, ou no, sobre idéntica base técnica. Um modo material de producao nao existe jamais isolado dos arranjos sociais do proceso de trabalho, a que corresponde um acionamento determinado das forcas produtivas ao alcance dos agentes econdmicos. Vice-versa, a instauragio plena de um mado de prducda exige engendrar previamente um nove mado material de pmduzio, que The seja proprio ¢ apropriado, pois isso € 0 que Ihe faculta dominar © conjunto do processo de pro- ducio social e subverter as instituicées que ainda sustentam a ordem social, contra as novas necessidades de desenvolvimento. A alteracao profunda do modo de apropriacio da natureza é a0 mesmo tempo, requisito e vetor de toda nova formacao social (Godelier, 1981), O conceito de modo de producto diz respeito 4 totalidade his- torica, dada pelo conjunto de relagdes que vinculam os individuos e grupos ao processo de producio, no sentido amplo de suas condigées materiais de existéncia, compreendendo igualmente a circulacio € troca dos bens materiais (Godelier, 1981). Representa a forma estru- turante de cada sociedade, pela qual sio providas as suas necessidades materiais, em um dado esti ne, como elemento distintivo, comporta um mecanismo social espect- fico de criacio, controle ¢ apropriacdo do excedente social gerado pelo trabalho, o que Ihe confere uma légica ¢ tracos proprios, imanentes & sua reproducio € a0 padrio dinimico de sua evolucao historica (Sha- nin, 1980, p. 61), O modo de producio capitalista na racteristicas da vida econémica, até entio s jio do seu desenvolvimento. [im seu cer- ce da reuniio de quatro ca- paradas: a) um regime de producio de mercadorias, de produtos que no visam seno ao mer- cado; b) a separacio entre 03 proprictirios dos meios de producio A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 188 ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA os trabalhadores, desprovidos € objetivamente apartados daqueles meios; ¢) a conversio da forca-de-trabalho igualmente em mercadori- a, sob forma de trabalho assalariado; d) a extracao da mais-valia, so- bre o trabalho assim cedido ao detentor dos meios de producio, co- mo meio para a ampliacao incessante do valor investido na produgio. © capitalismo esta fundado numa relagio social, entre individuos d gualmente posicionados face aos meios de produgio ¢ as condigies de posta em valor de sua capacidade de trabalho, Uma tela ta, que se efetua, “atnanés de uma colaboragin ilussria, mas ndio menos real, das trés classes bédsicas, 0s assatariados, os capitalistas ¢ os proprietrios fundid ris, na qualidade de donos dos fatores respansineis pelos cuss da producto de mercadorias.” (Giannotti, 1976, p. 164). No curso do seu desenvolvimento, 0 capitalismo provocou uma continua transformacao da sua base técnica, mediante enorme impulsio das forgas produtivas.? Criando sua base prépria, renovan- do-a continuamente segundo suas necessidades, o capitalismo realiza © que mais importa num modo de producio: instaura processo que vem a tepor a sua propria realidade, a reproduzi-la historicamente. Por isso mesmo, formas econdmicas desprovidas de uma estrutura relativamente auto-suficiente, capaz de reconstituir continuamente as relagdes de expropriagio © acumulacio de excedentes préprias Aque- las formas, nio remeteriam ao modo de produ anilise, sob pena de retirar dessa categoria “seus iavghte analiticos mais importantes.” (Shanin, 1980, p. 65) Ti 0 caso da economia camponesa, ou da producio simples de mercadoria, a menos que sejam vistas co- mo formas incompletas, ret ent trora dominantes. No presente, tais formas passam ordinariamente a funcionar como momentos do ciclo de acumulacio do capital, muito Ao classis- io como unidade de s de modos de produgio ou- * Como records Singer, “As revolucoes industiais tomar se economicamente shiveis pozque a concentexcao do capital possibiitou o emprego de vastas somas atividade inventiva ena fahieagio de novos meins de producto e distuicio.” (2000, p. 12), Assitala Glinnoté: “IE somente para evitar que se cologue aum mesmo nivel de tealidade 0 modo de producio capitilista e 0s modos de producio subsidiitios, que se tora entio coaveniente reservar a categoria de modo de producio para designar o movimento objetivo de reposigio que integrs, num mesmo process0 auténomo, « produgio, a distibuieio, a troca ¢ © conwmo, deiwindo outeos snomes pata as formas produtivas subsidirias, que o modo de producio capitalists cexige no seu procesto de efetivarao.” (1976, p. 167) ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger 109 ‘embora possam dispor de margens de autonomia apre Parem os intersticios do proceso capitalista.!! Os tempos atuais, de cacurulagia flexsel, possucm como caracteristica, justamente, © empre- g0 de formas variadas de organizacio do trabalho, em que as relacbes de producio adquirem uma natureza aparente diversa, sendo todavia partes de uma mesma estratégia de acumulacio (Harvey, 1993), livre ademais da obrigacio de tolerar a resisténcia de coletivos de trabalho estiveis, veis, a0 ocu- Por certo, intimeras formas secundérias podem surgir, expan- dir-se e desaparecer durante a vigéncia de um modo de producio, como bem demonstra, na historia, a vitalidade das formas nao domi- nantes de vida material. Sempre existiram margens de liberdade entre esses niveis de organizacio das priticas sociais e econdmicas, sendo a economia capitalista, em verdade, prédiga em exemplos. A questo esti cm saber como o capitalismo atua ao fundo da cena, como tais formas existem e perduram, submetendo-se ou reduzindo sua vulne- rabilidade diante do modo de producao. Ou ainda, como tais formas, a partir de seu lugar subalterno ou periférico, podem encetar movi- mentos de alargamento do seu proprio campo ¢ da sua I6gica interna, subtraindo-se, em alguma medida, ao controle do capital. Para isso, € nece frio saber se tais formas sio tipicas 0 cas para 0 modo de producio vigente. A ques ceira categoria, implicita nos textos de Marx ¢ decorrente de sua pre~ ‘ocupacio em distinguir a gparéncia da estratura intema de toda relacio Soc al. A estrutura nuclear de um modo de produgio, seu cariter distintivo, repousa no conjunto de propricdades de que se reveste 0 processo de apropriacio da natureza, nas mlasies mifiuas que nele se engendram entre 16s individuos, conforme sua posigio diante das condigdes € dos resulta- dos dos diversos processos de trabalho e segundo as funcdes que desem- penham. Ou seja, tal estrutura esti determinada pelas relagdes sociais de produgio que Ihe corsespondem, por uma forma social de producao, mediante a qual é extorquido 0 sobre-trabalho do produtor direto, ini 10 conduz a uma ter- Desde seus primézcios, 0 capitilismo valeu se de formas de organizacio do ‘trabalho que escapam as estntas condigdes de assalariamento © de extmcio de mais valia, No séc. MIX, por exemplo, a substituicio do sistema doméstico pelo sistema faba] fot longa ¢ percorzeu diferentes eaminhos, havendo 6 maguinisimo, fem certos casos, surtido um efeito multiplicador do trabalho a domiciio, ja em plena eta industtal (Foblen, 1974). A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 180 ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA Cada modo de produgio é caracterizado por uma forma social de producao especifica. Nas sociedades tribais primitivas, pelas rela- es de parentesco, que ordenavam a apropriacao do territério, chave para garantir os meios de subsisténcia; no feudalismo, pela manumis- sio das obrigacdes servis, exercida pelos senhores da terra sobre quem nela trabalhava; no capitalismo, pelas relagies assalariadas, en- -trabalho — o proletariado —¢ os deten- tores dos meios de produeao — a burguesia. Mais do que um contrato juridico, o vinculo salarial € 0 mecanismo que permite a apropriacao do trabalho excedente no interior do processo produtivo, sob forma de mai desta, por meio do ineremento da produtividade do trabalho e do ex- cedente extraido, contra os quais ao trabalhador indefeso pouco resta fay tre os vendedores da forea- Jia, conduzindo subseqiientemente a um patamar superior Por isso, 0 trabalho doméstico, integrado na Idade Média ao regime dominial da economia agricola e artesanal (Neers, 1965), mu- dou radicalmente de sentido com 0 aparecimento do empresirio bur gués, cuja finalidade de ganhos crescentes, nas relacoes com os traba- Ihadores que aos poucos foi subordinando, redundou na proletatiz: ao destes e na sua destituic2o progressiva do dominio objetivo e sub- jetive de seu préprio trabalho. A introdugio dessa nova légica teve variantes regressivas, como o smeating-sistem,? empregado em cidades como Nova Yorque ¢ Londres ainda em meados do sée. XIX (Pohlen, 1974). Mais tarde, a evolugao do maquinismo culminou com o regime fordista ¢ taylorista, estabelecendo-se o limiar para a plena exploracio do trabalho assalariado, sob forma de mais. gias adotadas pelo atual capitalismo avangado, de segmentagio do processo produtive, emprego de operirios polivalentes ¢ adocio de contratos de trabalho precirios, nada mais valia relativa. As estraté- io do que variagdes juri- dico-formais da relacio assalariada, com fim na continuidade da acu- mulacio (Harvey, 1993). A chamada economia camponesa é um caso ilustrativo das formas sociais de produgao capazes de adaptarem-se a modos de pro- dugio das quais sio atfpicas. Seu trago peculiar, comum As diversas apariges hist6ricas, é 0 fato de as relacdes de produgio re- as Literalmente, sistema de suor ou tanspitacio. ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger 191 pousarem na unidade familiar € na posse parcelar da tetra. A familia define a existéncia ¢ a racionalidade do campesinato, rege sua organi- zacio interna © suas interagdes com 0 meio circundante. © céleulo econdmico, a aprendizagem ocupacional, os lagos de parentesco, os Principios de respeito ¢ obediéncia, as regras de sucesso, eis alguns sinais impressos pela din4mica familiar sobre o cotidiano camponés."* ‘Todavia, o campesinato reproduz-se a si mesmo, mas nio 4 sociedade inteira. Mlém disso, os sistemas externos de exploracio do excedente ‘com os quais se relaciona, sio via de regra mais significativos do que ‘08 mecanismos prdptios ao seu modo de vida, Nao é possivel com- preender © funcionamento das unidades de producio camponesa sem ‘© seu contexto societitio. Nessas totalidades hist6ricas, cles aparecem ‘com as suas singularidades, por vezes inerradicdveis, a0 mesmo tem- po que adquirem feigdes introjetadas desde a estrutura social mais ampla. Eles transitam entre modos de producio; para isso adaptam- se, acomodam-se ou... rebelam-se. UMA FORMA SOCIAL SOLIDARIA DE PRODUGAO? O fenémeno da economia solidiria guards economia camponesa. Em primeito lugar, porque as relagtes soci de producio desenvolvidas nos empreendimentos econémico rios so distintas da forma assalariada, Muito embora, também agi 105 formatos juridicos e os graus de inova¢io no contetido das rela- ‘cOes sejam variiveis ¢ sujeitos & reversio, as priticas de autogestao ¢ cooperigio dio a esses empreendimentos uma natureza singular, pois modificam o prinefpio ea finalidade da extracio do trabalho exceden- im, naquelas priticas: a) predomina a propriedade social dos soli te. A eis de produgio, vedada a sua apropriacio individual ou sua alic~ nacio particular; b) o controle do empreendimento ¢ o poder de deci- sio pertencem A sociedade de trabalhadores, em regime de paridade de direitos; ¢) a gestio do empreendimento esta presa a comunidade 3 © fato de que esse cotidiano transcende a matetalidade econsmica e compreende a vida social e cultural, inflesionada a partir da mattiz famillat, nos prin oaira faa interpretasio conomistta dn teoria de Nats, pots se trata de compreendes, a partir da I6gica social que preside a organizagio da vida material, as diferentes formas da existéncia humana. A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 82 ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA de trabalho, que organiza 0 processo produtivo, opera as estratégias econémicas ¢ dispie sobre o destino do excedente produzido (Vera- no, 2001). Eim suma, hé uma unidade entre a posse € 0 uso dos meios de producio." De outra parte, a cooperagio mostza.se eapaz de converter se no elemento motor de uma nova racionalidade econdmiea, apta a su tentar os empreendimentos através de resultados matetiais efetivos de ganhos extra-ccondmicos. Pesquisas empiricas vém apontando que a coopera gestio © no trabalho, no Tugar de contrapor-se aos imperativos de eficiéncia, atua como vetor de racionalizacio do pro- cesso produtivo, com efeitos tangiveis ¢ vantagens reais, comparat vamente ao trabalho individual e & cooperacio, entre induzida pela empresa capitalista (Gaiger et al, 1999; Peixoto, 2000). trabalho consorciado age em favor dos proprios produtores e con- \ssalariados, fere A nocio de eficiéncia uma conotagao bem mais ampla, referida igualmente 4 qualidade de vida dos trabalhadores € & satisfacio de objetivos culturzis e ético-morais A densidade dos vinculos coletivos certamente é variivel, por vezes restringindo-se a meros dispositives funcionais para cconomias de base individual ou familiar, por vezes alcancando a socializacio plena dos meios de producto € sobrepondo, aos interes um, a sorte de um empreendimento associativo plenamente autoges- tioniio. O éxito deste passa a decorer decisivamente dos efeitos positi- vos do seu cariter cooperative (Gaiger, 2001b). Ademais, o trabalho ¢ xerce um papel nitidamente central, por ser fator preponderante, senio exclusive, em favor do empreendimento. Nessa condicao, determina de cada uma racionalidade em que a protecio Aqueles que detém a capacidade de trabalho torna-se vital.15 Ao propiciar uma experiéncia efetiva de dignidade e eqiiidade, o labor produtive é enriquecide do ponto de polimorfismo caracteristico das diversas iniciativas populates incluidas no rol da economia soliditia, nio impede que se opere uma reducio desta morfologia a seus trios essencias, como se faz agui, para klentificar a estrutura interna de suas relagoes consttuintes, posto que nessas reside a sua Logica de desenvolvimento, mesmo om estado de potenei. #0 fendmeno foi observado hi mais tempo, sates da atual crise do mercado de tabulho provocads pel westruturagio produtiva do capitalismo: "O nivel de dlemissdes aas emptesas autogeridas 6 priticamente invariinte a cutto pevo & certumente menos variivel que nas empresas capialistas.” (Vanek, 197%, p. 266, ped Coutzot, 1999, p. 108), ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger 190 vista cognitivo e humano. O maior interesse ¢ motivagio dos associa- dos, © emprego, mutuamente acordado, da maior capacidade de tra- balho disponivel, a divisio dos beneficios segundo o aporte em traba- Iho, so fatos relacionados com a cooperacio, no sentido de acionar ‘ou favorecer um maior rendimento do trabalho associado, A medida que essas caracteristicas acentuam-se, provocam uma reversio do proceso ocorrido nos primérdios do capitalismo, quan- do 0 trabalhador foi separado dos objetos por ele produzidos © con- verteu-se em propriedade de outrem, em mercadoria adquirida ¢ des- tinada a0 uso do capital. A autogestio © a cooperacio sio acompa- nhadas por uma reconciliacao entre o trabalhador e as forcas produti- vvas que ele detém e utiliza, Nao sendo mais um elemento descartivel € nfo estando mais separado do produto do seu trabalho, agora sob seu dominio, 0 trabalhador recupera as condicées necessarias, mesmo se insuficientes, para uma experiéncia integral de vida laboral e ascen- dea. um novo patamar de satisfacio, de atendimento a aspiragdes nto apenas materiais ou monetatias. Por conseguinte, as relacoes de pro~ ducio dos emprcendimentos solidarios nao sio apenas atipicas para o modo de producio capitalista, mas contrarias 4 forma social de produ- ‘cao assalariada: nesta, 0 capital emprega o trabalho; naqueles, os tra- balhadores empregam o capital ‘A critica marxista do capitalismo est centrada na andlise das re- laces de producio."” Por conseguinte, a defesa de uma alternativa econdmica, quando linea mio desta abordagem, deve sustentar-se em evidéncias de que, no modelo alternativo proposto, tais relagies ad- quirem outro cariter ¢ possuem chances reais de vigéncia historica, ‘ou seja, refletem interesses subjetivos dos trabalhadores ¢ respondem a condigdes objetivas. \ exigéncia nao se deve, entio, a um gosto ou % Embora 0 modo de producio constitua “uma totilidade orginica e um processo reiterado de producio, distabuieio, circulacio e consumo de hens materias, todas clas fases distints e, 40 mesmo tempo, interpenetradas no uir de um processo linico.. € a producto que perteacem « determinagio fundamental « © poate secortente.” (Gorender, 1978, p. 23). \ esse primado da producio sobte as dem esferas da vida econémiea’ (Mars, 1976, p. 1017), seguese a hipotese de investigagio, metodologicamente materialist, anunciada ao Preficio (Mats: 1974, 1p. 22-5), postulando uma hierirquia invatiate emtze as fungdes socias, na qual a funcio de produgio da vida material detém um poder expliatvo precedense sobre as demais A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 198 ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA viés economicista, mas a uma necessidade metodolégica prioritivia (Gorender, 1978 p. 25). Esse tratamento leva a entender 0s empreendimentos solidiios como expresso de uma forma social de produgiio espeeffica, contraposta forma tipica do capitalismo c, no entanto, com cla devendo conviver, para subsistir em formagies historicas ditadas pelo modo de produ- 20 capitalista. No dias atuais, as inovagdes principais que a nova forma traz ¢ mostra-se capaz de reproduzir concentram-se no ambito das relagdes intemas, dos vinculos miituos que definem © processo social imediato de trabalho e de producto dos empreendimentos sol darios. A economia solidaria nao reproduz em seu interior as relagdes capitalistas, pois as substitui por outras, mas tampouco climina ou ameaca a reprodugio da forma tipicamente capitalista, a0 menos no horizonte por ora apreensivel pelo conhecimento. Argumentos cor rentes em defesa da profundidade da mudanca contida na economia solidatia, considerando a melhora significativa nas condiges de vida advinda do trabalho numa empresa autogestiondria, 0 fortalecimento que tais fatos representam para a luta geral dos trabalhadores ¢, por outro lado, a necessidade para esses de aprendizado de um novo mo- delo econdmico (Singer, 2000, p. 18), em verdade dimensionam a transformacao social a longo prazo, o que retira de perspectiva, por um outro caminho, entender a alternativa solidiria, cm si mesma, como a posta abrangente ¢ profundo que o termo contém. Ii esclarecedor observar 0 que se passa com um exemplo im- portante de economia solidaria, praticado nos coletivos de producio que se multiplicam nos assentamentos rurais, sob forma de coopera tivas agropecutias ¢ outros formatos associativos. A socializagio da terra e do trabalho, quando em graus avangados, rompe com a légica a tradicao da pequena producio familiar ¢ introduz vinculos de ou- tra natureza entre os “‘trabalhadores rurais” (agora, assim chamados). Modifica-se, portanto, a forma social de producao. Contudo, na grande maioria dos caso ¢as produtivas, permanece intocada ou superficialmente alterada, 20 menos por um certo tempo; o modo material de producio nao difere daqucle empregado antes pela economia familiar, sobretudo quando essa jd incorporava uma parcela razodvel das inovacdes tecnolégicas em marcha de um nove modo de produgio, no sentido a base técnica, derivada do estado das for- ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger 198 promovidas pelo capitalismo. Do mesmo modo, é com os agentes deste que os assentados transacionam, é diante de suas instituicées que devem reafirmar os seus interesses.” Podemos igualmente pensar nas empresas autogestiondrias pre- sas a cadeias produtivas ou a contratos de terceitizacio, para concluir que esse déficit de autonomia atesta 0 cariter incompleto da emanei- pacio do trabalho solidario diante do predominio do capital, seja ma esfera da citculacio ¢ distribuicio, seja na renovacio continua das forcas produtivas. Como assimilar a bas derna, especialmente naqueles setores de maior densidade tecnolégica complexidade organizacional, sem fazer “compra casada” com 0 contetido social, introduzido pela logiea produtiva capital peetivos processos de trabalho? Nio obstante, conforme Mars, no seio da velha sociedade que se geram as novas condigées materiais de existéncia. Nao é ne- cessirio que a mesma esteja exaurida para dar curso A dialética entre as forcas produtivas ¢ as rclagdes de producio. Pode ocorres, ainda, que formas no essencialmente capitalistas sejam representadas como se 0 fossem, pelo efeito de dominacio ideolégica do modo de produ- io dominante.® Donde resta a questio de dessobrir as possibilidades, Iatentes ou encobertas, para que esses novos agenciamentos do pro- cesso de trabalho e dos fatores produtivos, inseminados por novas sclagdes entze os tabalhadores, encontzem caminhos propulsores, rumo a uma funcio ativa nos préximos ciclos histéricos. técnica da economia mo- nos res A TEMPORALIDADE LONGA DAS TRANSIGOES Nos termos da teoria proposta, a éransio significa uma pas: gem, de uma sociedade estruturada sobre um modo de producio de- terminado, ineapaz de se reprodurir, a uma outra sociedade, definida por outro modo de producio. Nao se resume, portanto, mudangas momentineas ou setotiais, mesmo as de cariter evolutivo, cujo efeito normalmente € um novo acomodamento 4 ordem vigente, por meio 5 Da posteia para fora dizem eles, o que conta é a leé dos eapitalistas ™ A comegat pelo fato trivial de que todo agente econdmico, pari angatiar algum reconhecimento, é forgado a apresentar se come enprsin de um tammo qualguct, seja.0 04 0. A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 196 ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA da subordinagio de légicas sociais especificas 4 logica geral dominan- te. Apenas em circunstincias especiais, tais mudaneas podem eriar gradualmente as condigdes de superacao daquela ordem, na medida em que sua resultante global seja 0 incremento dos dbices, internos ou externos, 4 reprodueao do sistema econémico que sustenta aquela ordem, combinada ao aparecimento de bases substitutivas, geradoras de uma nova formacio social. Uma conseqiiéncia imediata reside em que a transicio ancora- c em processos de longa durac de infle- dio constituem momentos incomuns, de excepcional importincia na vida das sociedades, viradas histéricas em que se condensa e manifes- ta intensamente © movimento das coletividades humanas (Godelier, 1981, p. 162). Ela requer deficiéncias estrututais ctiticas, insoliveis no quadro do sistema existente, aliada a uma nova reunio de elementos, formando um todo cocrente, capa de se reproduzir e de impor a sua logica teprodutiva ao sistema social. Enquanto isso nio estiver de- monstrado, nio ha raza0 em defender a hipdtese de que estamos nes: sa iminéncia, ow nessa perspectiva.!” Numa linguagem lapidar, nao basta desejarmos ter a sorte de sermos protagonistas ou testemunhas oculares desse grande momento, tampouco repetirmos vaticinios pes- simistas ou catastréficos sobre a ordem presente, esperando com isso lada a der- rocada do capitalismo, ceifado que estaria por foreas endogenas auto- destrutivas, ou exposto a choques exteriores, com suficiente capaci- dade de abalo ¢ substituicio. » €, como tais, seus pontos apressar a sua ruina, Importa saber se, no horizonte, esti De outro lado, considerando 0 extraordinario avanco das forcas produtivas jf aleancado ¢ a bagagem de conhecimentos sobre a hist6- tia € a dindmica social com que contamos hoje, é plausivel admitir que a passagem a um modo de producio pés-capitalista resulte de uma acio deliberada, que provoque a dissolucao da ordem vigente, pela introdugio intencional de novas relagdes sociais de producto. A presenca destas induziria uma reorientagio das energias humanas dis- ® A insisténcia quase compulsiva em colocar o debate nesses termos, perceptivel nos meios intelectuais de esquetda tupostamente incumbidos de esclarecer ax consciencias, apenas prajudica a compreensio das reais dimensdes do problema © eoloca numa nebuloss, em gue os argumentos valem por sua afinidade com finimos pessoais e preferéncias ideoligicas ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger 17 poniveis na sociedade, reditecionando o desenvolvimento das forcas produtivas, de modo a corresponderem aquelas relacies a estabele- cer-se, efetivamente, um nove modo de produgao (outart, 1981). O risco desta via, tedrico ¢ pritico, est em supervalotizar 0 peso da vontade politica, a ponto de recair numa v rificou-se em boa medida nas malogradas tentativas de construcao do socialismo no sée. XX." o voluntarista, como ve- A tansicio tudada por Mars, do feudalismo ao capitalismo, cexigiu uma aniilise acurada sobre o aparecimento das condicdes histé- ricas que deram pleno curso a légica do capital — na fase da sua “a- cumulacio primitiva”. 'Tais condic6es, por sucederam 3 crise do feu- dalismo, a explicam parcialmente, mas mio foram jungio de fatores internos e externos anteriores & crise decorreu lento enfraquecimento do sistema feudal! 0 que deixou livre curso para o florescimento de novas priticas econdmicas, cuja expansao as levou a choques com os limites da ordem institufda, a entrarem em contradic com cla e, por fim, a suplanti-la. O epilogo patrocinado pelas revolugées burguesas sclou a destruicio daquele ordenamento, cuja forca inercial, todavia, se fez sentir por décadas no séc. XIX. ra causa. Da con- A historia t:az algumas licdes. Primeiramente, a forma capitalis- ta de producio, em sua gest superior, por ser propicia d e beneficiada pela expansio da atividade mercantil, ensejada de modo irreversivel com a crise do feudalism, 0, foi mostrando-se historicamente * Vale a zespeito weordar © cxtésio proposto por Morin e Kean (1995), 20 apontatom a necessidade de ideatificagmos, a cada momento histotico, a5 coctgaes intransponiveis, que -descartam certas possbilidades, dos fatores’ cujo feito coagente depende de protagonismo dos atures wociis, 2B vil lembear a controversin sobe a preponderincia dos fitores inteenos ou externos ao moda de producio feudal, fatores que minarsm as suas bases e 0 deicarim vulnerivel a processos subseqientes de dissolucio. Pars M. Dobby (1987) foi w insuficéncia do feudalismo como sistema de pzoducio, em conteaste om a3 necessidades efescentes de zenda da aobeeza, o que motivou em primeito ugar a ense do sistema feudal, razdes intrinvecas teriam provorado a disfuncionalidade deste, Pata P. Sweeey (1977), 0 feudalismo eaiu principalmente devido ao deseavohimento do comérdo ¢ da vida urbana; segundo de, © exescimento de uma economia de trocas no impse © fim de qualquer sistema servi, mas isso aconteceu ao caso particular do feudalismo medieval, devido, entre outros, a tevogicio paulatina de alguns atiibutor das obrigagocs sends, por iniciativa do proprio estamente senor. Ambos autores feconhecem 0 concurso de todos esses fatores, restando em questio 0 seu peso expecifico (a respeito, consultar Hilton sf, 1977) A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 188 ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA Desse ponto de vista, relativamente a uma transicio pés-capitalista, nao basta identificar as insuficiéncias do capitalismo, sua irracional dade © as necessidades sociais prementes que nao satisfaz. rio apontar uma nova légica de desenvolvimento, impulsionada sob 0 capitalismo — ainda que nio por ele - que seria melhor correspondida por relagdes sociais de um novo tipo; no caso, as baseadas no labor associado dos trabalhadores. Cabe identificar as propriedades daquela nova légica, caracterizar a sua forca € sua capacidade de expandirse para a toda a sociedade, alcancar paridade com a forma social de pro- ducio capitalista ou mesmo fazé-la recuar. Assim sendo, esta nova forma social estaria mais apta a impulsionar o desenvolvimento das (de outsas) forcas produtivas, renovando o modo material de produ- lo © gerando as bases para a supremacia de um novo sistema, Hisse desafio intelectual nem sempre pode encontrar, em sua época, as e déncias de que necessita. Como veremos, sinais nio despreziveis sio oferecidos por experiéncias de economia solidaria. Uma segunda licio consiste na necessidade de deixar patente como as contradig6es inerentes as relagdes capitalistas as tornam i- naptas para corresponderem aquela nova 16 verem-nas. Contradiges nao faltam ao capitalismo, mas isso. tam- pouco significa que esteja em colapso, ou que haja fatores que impe- am sua entrada em uma crise ag6nica, reiterativa (Kurz, 1992), inca~ paz de dar lugar, por um largo tempo, para outras formas promisso- tas, livres daquelas contradighes, im situagdes histéricas afastadas de momentos culminantes, nao é tarefa facil discernir os prenincios de contradig6es fatais, insu- periveis sem uma recomposicio profunda da ordem social. Fim todo © caso, nos meandros dos processos de maturagio do nove modo de producao capitalista, Marx captou algumas sutilezas, de clevado inte resse heuristico. Suas constatag6es dio conta de diferentes articula- bes entre as formas econdmicas singulares ¢ a totalidade social, se- gundo os estigios e modos de subsuncao que se instauram entre elas, Assim, num primeito momento, a forma de producio capital ta nascente, introduzida com 0 recrutamento ¢ 0 subseqiiente despo- jamento dos mesmos trabalhadores das oficinas artesanais domésti- cas, empregou o modo material de producio entio existente, com ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger 199 isso havendo iniciado a subordinacio do processo de trabalho. Alte- rou-se a forma, mas nada mudou nas forcas produtivas, materiais © intclectuais, ¢ no processo de transformacao material. [ssa apropria- ho do trabalho pelo capital, nas condigdes téenicas herdadas de for- mas sociais anteriores, configurou uma situacio de subunio formal, nao restando entio ao capital, para incremento da captacao do traba- Iho excedente, senio recorrer ao alongamento da jornada de trabalho, ow a intensificar 0 uta. A base técnica iniciamente subsumida pela nova forma capitalista nio foi um produto do seu préprio desenvolvimento, mas uma base temporitia para 0 mesmo. ritmo fisico, extraindo assim a mais-valia abso- A seguir, o imperative da acumulacio estimulou uma, a prine’- pio lenta, renovagio da base material, mediante aprimoramento da manufatura, maior divisio do trabalho e uso de novas ferramentas manuais. O sucesso das primeiras maquinas abriu a temporada de in- vengies sucessivas, precipitando a Revolugao Industrial. Com 0 ma- quinismo e a grande indstria, o capitalismo finalmente passou a con- tar com sua prépria base, com um modo material adequado, que se- guiu sendo extraordinariamente impulsionado. As leis do valor capita- lista realizam-se doravante em plenitude. As forcas produtivas perten- cem inteiramente ao capital, a extracio do excedente se vale da mais- valia relativa, o tabalho encontsa-se numa condicio de subuncio real, sobreposta aos mecanismos de subordi « tem como expresso da forma geral de producao capitalista sio rea- tivados sempre que o aumento do excedente, pelo camino da produ- tividade, revela-se ineficaz ou insuficiente. Assim, a nova forma social de producio é quem deu o impulso definitive 4 transformacio da ba- se material. Lissa nfio se modificou em razio de alpuma inexorabilida- de histérica, mas em resposta a uma nova digica scial, coneretamente posta em marcha na sociedade. Resultou entio nova correspondéncia, ensejando o dominio da forma capitalista sobre outras formas de vida econdmica precedentes € levando 4 maturagio do modo de produgio de mercadorias. A medida que avanca, o capitalismo dissolve, subme- te ou mantém reclusas outras formas sociais de producio.” clo ante ores c persis 7 Paza ess, is ve7es, a tnica safda é adotar a base material moderna ¢ evevar se 20 capital comercial e financeito, do que temos um exemplo cabal nos pequenos produtores rurais integrados 4 aproindstria, Nesse caso, a forma de produgio A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 20 ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA Dessa teconstituicio historica, vale sublinhar dois fatos: a) a nova forma social de producio capitalista originalmente aproveitou o modo material de producio jé existente; b) uma vex que seu desem- penho mostrou-se superior, diante da demanda ctiada pela expansio da economia mercantil, as relages de producio capitalista emergen- tes provocaram novo desenvolvimento da base material, havendo si- do tais relagies socais, por conseguinte, a condicio necessaria, embora parcial, dos novos avangos tecnolégicos. Fim futuras transigdes, os fatos obviamente no precisam ocorrer nessa ordem. Importa, no entanto, registrar o seu carter dialético, em que foreas ainda por rir insinuam-se como episédios a seu tempo laterais € pouco significat vos, através de mutagées quase imperceptiveis, sem virem, senio ao cabo de um longo perfodo histérico, a suprimir as estruturas de vida social as quais tenderio a sobrepor-se, em prazo mais curto, mas i- gualmente indeterminado. Nota final de extrema importincia, observando a transicio so- bre outro Angulo: © conceito de forcas produtivas compreende igual- mente os recursos ¢ faculdades intelectuais, 0 estado geral de conhe- cimento, sua difusio na populacio, a adocio ¢ manuseio das técnicas, a capacidade de organizacao do processo produtivo, ete. [2 justo falar de uma iransigao cultural, significando descompasso ¢ nove acomoda- ‘mento entre infra ¢ superestrutura (Houtart, 1981), ou entre possibili- dades sob esse prisma, requer a socializacao de novas priticas, sua extensio a0 conjunto da sociedade, ou a grupos e classes sociais; priticas que correspondem a novos modelos de conduta, a novas representag legitimadas ¢ instituinres (Houtart ¢ Lemercinier, 1990). Nesse campo também hé sinalizacdes da economia sol objetivas © capacidades subjetivas de utilizé-las. A transigio, familiar se reproduz sobre uma base nova, que cla no consegue desenvolver por si propa, sendo entio por essa base subsumids, a0 contain do acontecide nos peimordios do capitalise, Tata se de uma subrundo formal inser, que dix as formas sociais atpicas em situagio de instabilidade, mas aio as descredencia de todo a sobreviverem no interior do modo de producto capitalists ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger zor UMA ECONOMIA DO TRABALHO EM PERSPECTIVA Nas condigdi gestiondrios experimentam uma dupla subsuncio 4 economia capita- lista: de um lado, esto sujeitos aos efeitos da logica de acumula s atuais, os empreendimentos cooperatives auto- as regras de interedimbio impostas a0 conjunto dos agentes econdmi- cos, de conteiido eminentemente utilitirio; de outro, como forma de responder 4 premissa de produtividade competitiva, esto compelidos a adotar a base técnica do capitalismo, os processos materiais de pro- ducio por ele introduzidos continuamente, configuranda-se com isso uma subsunedo formal ieersa, de uma base sobre uma forma, similar- mente 20 caso da economia camponesa. Lissas eoergdes, naturalmen- te, cerceam a légica econémica solidiria, pois a obrigam a conviver com tensionamentos ¢ a conceder em seus principios. Que exigéncias apresentam-se aos empreendimentos solidarios, para que mantenham os scus tracos distintives? Penso serem trés: a) assumir a base técnica herdada do capitalismo, dela retirando benefi- cios para a sua forma social de produgio propria ou, ainda, aleangan- do deseavolver, paulatinamente, forcas produtivas especificas ¢ apro- priadas 4 sua consolidacio; b) cotejar-se com os empreendimentos capitalistas, dando provas de superioridade do trabalho associado pe- sante as relacdes assalariadas, a medida que impulsionam, em seu inte- rior, uma dialética positiva entre relagdes de producio e forcas produ- ) resistir As presses do ambiente econdmico, por meio de me- canismos de protecio e da externalizacao da sua légica cooperativa As tivas; rclacies de intercimbio e de troca. Se isto vier a ocorrer, estaremos presenciando uma experiéneia econémica genuinamente sob a dtica do trabalho, fundada em relacdes nas quais as priticas de solidarieda- de ¢ reciprocidade nao sio meros dispositives compensatérios, mas fatores operantes no imago da producio da vida material ¢ social. No atual ponto de partida, sejam quais forem os desdobramen- tos futuros, vale ter em vista um critério fundamental: apenas uma nova pritica — aquela de uma nova inser¢io no mundo do trabalho € da economia — pode gerar uma nova consciéncia © provocar, sucessi- vamente, novas mudaneas na pritica. Hsse € 0 requisito basico, posto nas experiéncias de economia solidétia atualmente em curso, que mo- tiva a ir em busca das possibilidades de cumprimento daquelas exi- A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 me ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA géncias. Cabe frisar, uma vex, mais, que o éxito em tal cumprimento nao significaré que os empreendimentos solidatios estejam em vias de sobrepujar as empresas capitalistas, tornando- tema econdmico para, a seguir, colocar em risco © préprio capitalis- mo. O papel possivel da economia solidaria, a ser inquitido, é 0 de dar a prova palpavel de que a autogestio nao é inferior 4 gestio capi- talista no desenvolvimento das forcas produtivas (Singer, 2000, p. 28), por dispor de va de produgao especifica. ¢ disfuncionais ao si tagens comparativas, derivadas da sua forma social Passando em revista os trunfos de que objetivamente dispdem os empreendimentos autogestionarios, uma de suas caracteristicas tangivcis € a eliminacio da parcela do excedente antes apropriada pe Jo estamento patronal para fins privados, pois sua destinagio, agora, fica 20 arbitrio dos trabalhadores, quer somando-se 4 remuneracio do trabalho, quer sendo reinvertida na empresa. A coexisténcia de pro prietitios abastados, empresas insolventes ¢ folhas de pagamento in sorias, deixa de ter lugar. A supressio das relacoes assalariadas ¢ do antagonismo entre o capital ¢ o trabalho a clas intrinseco, desonera a empresa igualmente por diminuir custo supervisio, com estimulos pecuniarios a fidelidade e eficiéncia dos que ocupam funcdes no topo da hierarquia, com programas destina- dos a conquistar a adesio dos trabalhadores aos objetivos da empresa; em suma, com estratégias as mais diversas da empresa capitalista, fa- dadas a recompor continuamente 0 espitito corporativo, sempre que situacdes eriticas deixam a nu as contradicdes de classe que ineseapa- velment com estruturas de contzole ¢ atravessam, Além do mais, a empresa capitalista, a partir de certos limites, apenas pode flexibilizar os seus custos econdmicos assumindo em contrapartida os custos sociais decorrentes. Por sua vez, nas coopera- tivas e empresas autogestionirias, em que os ganhos sio socializados de per s%, 6 mesmo se admite mais facilmente com as perdas. O in- cremento unilateral da jornada de trabalho, ou sua reducao e conse- giiente abatimento das retiradas individuais, como estratégias de aj te As lutuacdes do mercado, uma vez aprovadas de forma democ ca e transparente, em boa légica sio a melhor garantia contra 0 de- semprego para os cooperados. De certo modo, a empresa associativa esti dotada de maleabilidade similar a dos autonomos profissionais ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003 use nse Gaiger 20 liberais, com a faculdade adicional de diluir custos fixos, assumidos individualmente nos demais casos, ¢ de poder ampliar mais facilmente sua planta produtiva ou de servigos (Sorbille, 2000, p. 151).2* Aduzindo um terceiro argumento, sendo 0 zclo ¢ a atitude de colaboragio dos trabalhadores, comprovadamente, indispensaveis a qualquer empresa € geralmente mais eficazes do que as estratégias patronais de convencimento ou coacio (Coutrot, 1999), com maior razio ha de verificar-se quando existe um vinculo imediato entre a performance do empreendimento € 0s be dos, 20 lado de menor rotatividade da forga-de-trabalho e da partilha dos valores e objetivos da organizacio. O interesse dos trabalhadores ‘em garantir 0 sucesso do empreendimento estimula maior empenho com 0 aprimoramento do proceso produtivo, a eliminagio de des- perdicios e de tempos ociosos, a qualidade do produto ou dos servi- cos, além de inibir o absentefsmo © a nepligéncia. Fifeitos como esses, sublinhados pela literatura especializada (Defourny, 1988; Carpi, 1997) e conferidos em estudos empiricos (Gaiger, 2001b), 20 deriva- rem da natureza associada ¢ cooperativa do trabalho € das caractet ticas participativas dos empreendimentos, Ihes conferem uma racio- nalidade propria, virtualmente superior a das empresas capitalistas que acionam os mesmos fatores materiais de produgao. cficios individuais auferi- Do ponto de vista dos fatores humanos, os fundamentos de- mocriticos da autogestio vém precisamente a0 encontzo dos requisi- tos de envolvimento ¢ participacio dos trabalhadores, preconizados pelos métodos de gestiio modernos. Células de producto, grupos de trabalho ¢ postos multifuncionais, a par outras técnicas de gerencia- mento horizontal ¢ responsabilizagio do trabalhador, tipicas das normas de gestio de qualidade em voga, acomodam-se com naturali- dade a estrutura participativa dos emprcendimentos solidrios.2* A Som divida esse & © motivo da proliferagio de cooperativas eatee profissionais ‘tradicionalmente vistos como independentes, ais como terapeutas, Contabilistas, consultores © outros * Resta como problema a feeqilente ineaistincia de um gereaciamento profissionsl, dotado do eabedal. especifico de conhecimentos desse campo ¢, sohtetudo, apropriado metodologicamente a um contexto organizacional de autogestio. A esse ptopésito, vale recordar que administrar uma empresa ¢ fangio de competincias adquitidas no lidar com problemas conetetos, dadas antes pela texperiéneia pritica socialmente comparrilaaca ¢ subsidianamente informadas pelo saber cientifico; este, nio necessts estar plenamente sistematizado e revestido de A060 CR Savon 9p 18121, one 2009 2m ARneMA SOLO ANTE GO MaBOOE FRADUCKD CAPTALTA formagio dos recursos humanos — seja escolar, técnico-profissional ou geral, visando ao desenvolvimento de uma cultura autogestiondria © a0 aperfeicoamento permanente ~ é favorecida pelo compromisso de todos com a empresa ¢ pelo papel decisivo exercido pelo fator traba- Iho; valoriza-se mais o “potencial de competéncia interna” (Peixoto, 2000, p. 55). Ora, educar simultaneamente para a participacio € para o labor produtivo equivale a formar trabalhadores-gestores ¢ a suplantar a divisio tipica da empresa capitalista, Des nova cultura profissional, dada pelo conjunto de competéncias produ- tivas, pelo envolvimento mituo com o futuro do empreendimento e, proprio a todo méier (Coutrot, 1999, p. 73), por uma de- ontologia referida a uma comunidade de pares. Vista de modo mais amplo, a questio incide na criagaio de no- vas forcas produtivas — nese caso, in/lectuais —impulsionada por uma nova forma social de produsio, a exemplo do ocorrido na aurora do capitalismo. Instaurada socialmente aquela demanda, pela presenea da nova forma, introduz-se © proceso inovador e criativo de desenvol- vimento das faculdades humanas, cuja solugdes, por seu turno, si0 suscetiv de 0 trabalho associado como tal equiparar-se a uma forga produtiva especifica da maior importincia, é factivel, nos empreendimentos au- togestionirios, que o avango das capacidades subjetivas tome © paso (a que venham a reconstituir-se progressivamente sobre outras ba: Desta feita, entio, a nova forma social de produgio nio estaria crian- do uma nova base t res tecnoligieas, instrumentos, ete.), mas sim em vias de absorver solugdes ja dispon veis (inclusive as chamadas tecnologias alternativas), convertendo-as 4 sua logica propria ws bases de uma conforme cis de retroalimentar a demanda, em ciclos sucessivos. Alem novacio dos processos materiais de produgao, forcando a ica em sentido estrito (nova sutoridade bierinquica par ter vigénca e set chamado a intervig, tanto mais se a cexpetiéacia a cle referida encontea se favoreeida pelo interesse matuo © pelo aptendizado coletivo (Singer, 2000, p. 19-2 Considerados os impasses de nossa atual marcha civilizacional, a supremacia sex sleancada no futuro por formas de producio supetiores, diante dos padrdes fmpares de produtividide e eficieacia do capitalismo, provavelmente repose em parimetros de outra ordem, relacionados, por exemplo, 4 racionalidade social ¢ & sustentabilidade. ‘oer GRA, Sader. 38,p 181211, ee 2003

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