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BEATRIZ GOIS DANTAS vové NAGS E PAPAT BRAR.:O: Usos e abusos da Afri Dissertacgdo de Mestrado presentada ao Programa de Pés~ Graduag&éo em Antropologia Social da Universidade Estadual de Cam pinas. CAMPINAS 1982 A MEMORIA da Professora Josefina Leite Campos, que com £é e competéncia me iniciou na aventura da Antropologia. de Bilina de Laranjeiras, com quem aprendi que inicier "€ilhos de santo" & também um ato de competéncia e Fé. AGRADECIMENTOS: De diferentes modos, nessoas € instituigdes con tribufram para a realizacdo deste trabalho. Aqui expresso-lhes o meu agradecimento: A Universidade Federe ae Sergipe, pela onortu nidade de afastamento para cursar «) Mestrada, e 4 CAPSS/PICD, pela concessdo de Bolsa de estudo, os professores Maria Manuela Carneiro da Cunha, orientadora, e Peter Fry, coorientador, que juntos viram nas cer a id&ia deste trabalho, acreditaram nele ¢acompanharam sua. elaboracdo, animando~me com seu entusiasmo, discussdes, suges tées e amizade. Ros colegas e professores do Mestrado em Antro pologia Social da UNICAMP, varticularmente ®ubem César Pernan des, Mariza Corréa, Mauro Almeida, Antonio Augusto Arantes Ne to e Carlos Rodrigues Brandao, pelas criticas ¢ susestdes, so bretudo quando da apresentacdo do »rojeto desta dissertac2o. A Gisélia Gdis Santana que teve a paciéncia de decifrar meus manuscritos que Francisco José Costa Dantas re visou em sua forma final. Ros muitos vais, mies e filhos de sento de Le ranjeiras, em particular aos membros do Terreiro de Bilina,que me aceitaram com meu "querer saber para estudo" diferente do seu saber vivéncia. Aos muitos parentes consanguineos e afins - e foram tantos: pais, sogros, irm&éos, commadres - que, cuidando dos meus filhos ou deslocando-se nara Campinas, deram-me sem pre apoio nos momentos mais dificeis. A Ibaré Jinior e Silvie,os filhos, que partilha ram comigo a disciplina e os sacrificios impostos pela elabora co deste trabalho, amenizados e dicnificados pela presenca 2 mica e estimutante de Ibaré, companheiro de jornada. ENDICE INTRODUGAG 6 wk I~ A CONPIGURACAO DO PRESTIGIO EM YERKETROS DE XANG! - Os “de fora" classificam os terreires. .... Os terreiros se Véau a si wesmoS » + ee eee = Sobre as diferengzs. 2. ee eee aw Ne 1 - As diferengas vistas pelos "de dentro"... . - A importancia dos terreiros vista pelos "de dentrd! -Oidealeoreal.. ... eee ee ee eee A importancia dos terreirce vista pelos " ews 1 - As razdes do sucesso. - eee ee ee ee Notas, se ee ee ee ee ee TL - ONAGO FALA DE SI. 6. eee ee ee ee co - Da Histéria ao mito. . 2... eee ee ee - 0 culto danéstico aos orixés .. 1-1 ee ee © relato sobre ag origens. «ee + ee ee ee RON e ' - A histéria da mae de santo. ss ee ee ee 4.1 - "Papai branco" see ee ee ee 4.2 - "VowS nagS". wwe ee ee ee ee ee 4.3. - O trabalho... . ee ee ee ee 4.4 -A predestinagdo. . se ee ee ee 5 - Os descendentes de nagés e seu lugar no grupo. 6 - A heranga africana do terreiro nagé. . . . - - 6.1 - Os sinais da ortodoxia africana... . - Notas. ee eee eee ee III - © NAGO PALA SOBRE OS OUTROS. » ee eee ee et 1 - Malés - os que desapareceram por fazer o mal . 2 - De africano a toré~a trajetéria dos misturados 3 - Toré - da tradicio indfgena degenerada ao que trabalha com Exu para fazer oMal. ... 2... = Umbanda - a que cobra dinheiro da imandade. . "crentes - os gue no conbina con nds... - ~ Igreja Catélica-equela "can qvan nds mistura". Sone ' ~ A légica do "puro" e do “misturado" no terret FO NAG. eee ee ee ee ee Notas, 2 ee ee pag. 12 13 15 20 21 22 24 30 32 35 38 36 4h 43 46 46 49 54 55 60 63 63 7 81 84 87 91 94 94 Ive aA CONSTRUCKO EO SIGNIFICADO DA "PUREZA NAGO". . 1 - Os diferentes centornos os “nagés puros" 2- A Africa e o resienalismo nordestino . . 2.~ A exaltagio do nagd e a “democracia cultural". 5 = 3,1 - 0 confronts entre a Lei e a Ciéncia-Nina Rodrigues. 6 eee ee ee 3,2 - 0 didlogo entre a Lei e a Ciéncia - Anos Teinte. 26. ee ee ee 3.2.1 - 0 caso de Pernambuco... 3.2.2 - O caso da Bahia... .- 3,3 - Os Congressos Afro-Brasileiros e a poou larizacio ia heranga africana, exdtica, primitiva ¢ estética. 2... ee - A significagio da "Volta 4 Africa" e da exalta co do "nagd puro" Se ee - Africa negada x Sfrica exaltada, um paralelo entre a Umbanda e o Candomblé. .. . 1. Notas. 6 ee ee ee ee ee Vv - 0S USOS DA APRICA PELO TERRETRO NAGO. . . . 1 - As tradicdes e o culto ao passado da cidade. . 2 3 - 0 Nagd e os "brancos" - o recorte sobre digdes populares 2. ee ee 2,1 - 0 padre, as tradicées e o NagS . . - A linguagem da Africa como estratégia de vivéncla 6. ee ee ee Notas. 2. ee ee te ee ee CONCLUSKO, 6 eee ee ee ee ee BIBLIOGRAPIA 2 2 2. ee ENTREVISTADOS. © ee ee ee ee GOSSARIO. © ee ee ee ANEXOS: FOTOGRAFIAS, . .. 1 + ee ee eee 105 205 109 iis 120 125 128 133 141 172 176 179 188 191 197 207 209 215 IETRODUCAO Os estudos sobre aschamadas religides afro-brasi leires (1), particularmente sobre o Candomblé*, tém privilegia do como campo de anlise os contefidos culturais e as especifi cidades desses contefidos, quando nado a procura de suas vincula ges genéticas. Isto tem remetide constantemente & Africa e es sa busca incessante de africanismos, que se inicia no século passado com Nina Rodrigues, tem tomado feigdes diversas, desde © cotejo mecdnico e simples Ge tragos culturais cuja semelhan ¢a com congéneres africanos 6 apresentada como prova de “sobre Vivéncias" (Rodrigues: 1935, 1977; Ramos, 1951, 1961) (2}até os estudos que tentam mostrar a persisténcia dos tracos culturais como parte de um sistema religioso africano alternative e fun cional (Herskovits, 1967; Ribeiro, 1952), ou ainda como expres sio de um verdadeiro pensamento africano (Bastide, 1971, 1973 Santos, 1976}. Dessa busca 2a Africa emerge a valorizagio da pu xeza dos camdomblés. Paralelamente, a tradicgHo nagd* (3) é ele vada 3s culminancias de africanidade e apresentada como modelo de culto de resisténcia no qual a manutenc&o da tradigdo da A frica e dos valores africanos permitiria uma forma alternativa de ser, se nao a nivel das relagdes econémicas e politicas, ao menos a nivel ideolégico. £ o que propée, por exemplo, Roger Bastide através do "principio do corte" pelo qual se explica ria que negroes que se integram como forga de trabalho na socie dade capitalista tenham uma autonomia ideolégica que seria ga yantida pela sua insergao religiosa em grupos de origem africa na, guardiaes de um acervo cultural e um pensamento que reme, tem 4 Africa (Bastide, 1971). Considerando os candomblés, sobretudo os candom blés mais “puros" como reduto de africanidade e de resisténcia, os autores que adotam essa vostura metodolégica implicitamente aceitam que a presenca, no Brasil, de tragos culturais origina rios da Africa, necessariamente, indicam resist@ncia do negro. transformar africanismos em provas de resisténéia & ratificar © pressuposto que o significado dos tracos culturais & determi * - Os termos marcados com asterisco constam do glossario, no final do trabalho. nado por sua origem, sem se atentar para o fato de que tracos culturais, reais ou supostamente origidrios da Africa, podem ter significados diversos na sociedade brasileira. Nao se le vando iste na devida conta, busca-se a Africa no Brasil e dessa busca incessante emerge o modelo nagé construfdo com os dados empiricos des terreiros* baianos, onde o nagO persistiria em “pura”, sendo este modelo transformado em cate sua forma m goria analitica pelos estudiosos que, significativamente, pri vilegiam como campo de estudos os terreiros mais tradicio- mais (4). Quando se ocupam dos outros, o nagd mais "puro" @ sempre tomado como ponto de referéncia. Nesta perspectiva a umbanda*, a Macumba*, os Candomllés de Cabocio* e Angola*, na medida em que se afastam do modelo, s&o tidos como “degenera osas menos interes. dos", "deturpados", “sobrevivéncias reli santes", avaliagdes que permeiam os trabalhos que véo de Nina Rodrigues no fim do céculo passado a Roger Bastide em anos re centes. © que est& gubjacente neste raciocinio @ que 0 modelo "nagd pero" representaria realmente uva continuidade de culturais africanas que para aqui transplantadas instituigde: @ conservadas gracas 4 meméria coletiva negra se reproduzian guardando fidelidade 4s origens, inclusive nos seus signifi dos, tornando-se assim sinais de resisténcia. Em contrapartida, os que se misturavam com outras tra@igées, degenerando da sua 2 pureza original, tornavam-se mais integrados. Obviamente gragdo ¢ resisténcia passam a ser avaliadas pelo grav de “pure za", esta definida a partir dos tragos culturais encontrados nos terreiros, e tidos como africanos, Abandonando essa postura metodolégica e retoman- do pistas de pescuisas propostas por Ivone Velho, Peter Fry e Patricia Birman (velho, 1975; Fry, 1977a e Birman, 1980), inte ressa-me justamente tentar entender o que significa essa busca obstinada da Africa e, particularmente, a glorificagaéo da tra @igko "nagd mais pura", feita por toda uma corrente de intelec tuaig. Mas também estou interessada em ver a questéo pelo ou tro lado, ou seja, na perspectiva daqueles que se identifica como descendentes de africanos, especificamente nagds, e que apresentam a fidelidade & Africa como um sinal distintivo de si. Tentarei introduzir na andlise um aspecto,que de certo modo, tem sido deixado & margem nos estudos sobre candom blés, ou seja, a sua dimensdo organizacional no contexto sdcio cultural e polftico da sociedade mais ampla. Na medida em que a busca da Africa era o objet vo basico da pesquisa sobre religiées afro-brasileiras, priv legiava-se a cultura, concebida como entidade objetiva, * como etemento determinante da identificagio dos eultas com dadas tradigdes étnicas que, transplantadas para o Brasil, se adapta vam @ se perpetuavam como podiam mediante mesanismos de aul turagao. . Nesse tivo de andlise a cultura aparece como um sistema autOnomo, e se ignora a sociedade global na quai se de ille Herskovits, cuja proposta de trabalho se faz no sentido de eg senvolvem os contatos inter&tnicos e culturais. Mesto Mel: tudar o Candomb1é como uma totalidade, enfocando os aspects da organizag&o social e econdmica e nao simplesmente os reli giosos (Herskovits, 1967}, de certo modo isola e unidade = de culto do contexte mats amplo da sociedade brasileira ou consd, @era essa relacio apenas no que toca ao sinerctismo, e assim, ao tentar compreender os cultos negros como um sistema alter nativo, "uma aub-cultura que se integra na matrta da cultura Brastletva geval” Qlerskovits, 1954), ressalta nio apenas = @ id&ia de continuidade da tradig#o africana mas tem ainda uma visio muito restrita ao nivel cultural, Partindo de uma critica & Antrepologia e parti. cularmente aos culturalistas, por tratarem = cultura como algo abstrato que paira acima do contexto socioligico, Roger Basti de se propSe estudar os condicionamentos sociais das religides afro-brasileiras. Nessa perspectiva a manutengdo dessas formas religiosas deveria ser pesquisada em conexdo com a estrutura dual da sociedade, pois a "luta das etvttizagdes & somente um aspecto da luta das ragae ou das classes econdmtcas..." (Basti de, 1971:961, Caberia assim analisar a atuacto dos atores“afri canos" portaderes, conforme assinala Roger Fastide, de uma "fi losofia pragmAtica e utilitarista", nesse ccntexto em que seus interesses de grupos dominados eram antagénicos aos interesses dos dominantes. Bntretanto, se interesses de grupos negros truturalmente inferiores aparecem na anélise da evolugdo histé rica dos cultos, explicando-se por eles, por exemplo, o desapa recimento dos deuses africanos da agricultura gue deixam de ser cultuados no Brasil e em contrapartida, o realce dado a orixis guerreiros como Ogum* (Bastide, 1971:97) ov ainda, o fato do Candomblé representar um centro de apoio e integragfo para oo negro desprotegido da p&s-aboligdo, no seu todo, porém, a and lise do Autor termina por diluir os interesses dos grupos domi, nados numa mirfade de fatores, tais como solidariedade entre senhores e escravos e, apés a abolicgho, introduz 0 chamado "principio de corte" para explicar porque o negro continua 3 fricano sendo ao mesmo tempo brasileiro. Texmina por concluir que o Candonblé e outros tipes de religiées africanas tém re sistido a todos os caos estruturais, encontrando sempre o meio de adaptar-se a novas condigées de vida ou novas estruturas so ciais (Bastide, 1971: 236/240), induzindo desse modo 0 leitor a pensar que afinal o Candombié se manteve por uma capacida de intrinseca da civilizagao africana em autoperpetuar-se. Nesse particular, a andlise de Roger Bastide com porta algumas ambiguidades e até certo ponto estaria contraria A sua afirmagio de que o "scetioligico determina a cultural’ (514) © préxima da abordagem culturalista que nao sé privilegia = @ cultura, mas também enfatiza a continuidade historicamente rea lizada dessa bagagem cultural através de grupos constituidos ée remanescentes de etnias africanas (especificamente sudane ses) ou seus descendentes, que no Brasil continuariam apegados & xeligiZo dos seus ancestrais devido ao cardter conservantig. ta de tais populagées ou a wma forga especial da cultura em preservar-se. Autores como Abner Cohen e Fredrick Barth (Cohen, 1969 e Barth, 1969) véem a relacao entre etnia e cultura de m9 do diferente, ac deslocarem o enfoque do &tnico dos conteiidos culturais para a andlise do gxupo. Descartando a vis&o tra@icional de etnia como correspondendo 2 uma unidade cultural mantida em isolamento so cial e/ou geogréfico, Fredrick Barth considera o grupo &tnico como uma forma de organizag&c social em que ee enfatiza a inte xagio. Apesar disso, 0 grupo no se dilui pois mantém um com plexo organizado de comportamentos e relacdcs que marcam fron a teiras étnicas entre "os de dentro” e "os de fora". Na const: ¢ao e manutengfo dessas fronteiras, tragos culturais sio usa dos como marcas diferenciais, mas apenas algumas dessas dife rengas sao consideradas significativas pelos atores e¢ néo a so ma total das diferengas. © foco central da investigagao & 2 frontetra Biniea que define o grupo endo a matéria cultural que ele encerra” (Barth, 1969:15). Por seu lado Abner Cohen considera os grupos Stii cos como grupos de interesse que manipulam partes de sua culty ra tradicional como meio de efetivar a articulagSo do grupo sa busca do poder. Assim a etnicidade antes de ser um fendmeso cultural @ vista como um fendmeno essencialmente politico foi o segmento afro-br, sileiro de Laranjeiras, pequena cidade da zona agucareira = de Sergipe, ¢ particularmente um terreiro que se auto-identifica e & xeconhecido pelos demais como "nagé-puro". De 1970 a 1976 acompanhei de perto a vida desse terreiro, seus rituais, sua rotina, o relacionamento da mie de santo com os outros terreiros e com diferentes segmentes da so cledade mais ampla. A aceitacio da minha presenga por parte do grupo foi bastante facilitada por wm trabalho anterior que rea lizara sobre a Taieira*, um ritual orgenizado pela mae de santo @ avresentado no contexto catélice da festa de Sao Benedito.Por essa via eu me tornara conhecida de muitos membros do terreiro © privava da amizade da mje de santo, qve um dia me sugeriu que escrevesse um livro também sobre o Xangd. Isto veio de encontro a uma id&ia que eu hd muito acalentava e passei entdéo, a fre- quentar a casa com 0 propésito declarado de estudar o xangd e escrever um livro como fizera com a Taieira’ Ser focalizada em livro, ter seu nome escrito em letra de forma e suas fotos publicadas como dirigenteda ‘aieira fora, decerto, uma experiéncia gratificante para a mae de santo. Exbora, de certe feita, tenha deixado entrever como o livro ao tornar pfiblico um saber que era sd seu, a privara do monopdlio de informago sobre a Taieira’, era evidente que o livro era ele mento de aumento de seu status. A idéia de que eu escrevesse um um livro sobre o Xangd dava~lhe a possibilidade de inerementa- lo e aumentar o seu prestigio e a oportunidade de iniciar um no vo ciclo de trocas en que a informagio sobre o Xangd era ‘retri, pulda com pequenos favores, contribuigdes para as festas ¢ visi tas constantes, as quais terminavam por valorizar @ posigao eo status religioso da mie de santo e seu grupo de culto, Afinal, © seu terreiro nagd, e nao os outros, 6 que fora escolhide pela “professora da Universidade" para fazer pesquisa, e isto refor gava a ideologia da singularidade do nagd. Eu estava ciente da interferéncia que o pesquisador - observador provoca navida dos observados e percebia que a minha presenga junto ao terreiro en trava no jogo de avaliagSo de prestfyio das casas de culto, e interpretei como uma estratégia para tornar essa presenga mais prolongada, se nao efetiva, a tentativa para que se intensifi, casse a minha vinculagéio com o grupo de culto. As pessoas deste recomendavam-me com inststéncia, por exemplo, que eu “ndo andas ve de terreivo em terreive” argumentardo que & “arriscado a se nhova andar por at por esses torést pois esses torenetroo® sao natvadoz ¢ a senkora pode pegar cotsa ruin", Transferia-se as sim para a pesquisadora um padrao de conduta que faz parte do cddigo de ética dos membros do grupo, sob a alegag&io de que eu era "quase uma nagS", Em varias oportunidades a mio de santo ne advertia: "a senfora tem santo"* ou “8 santo* forte que protege a senhora", afirmac3o que trazia impiicita a idéia de que essa proteg’o poderia ser aumentada se eu o cultuasse convenientemen te. A proposta contudo ficou no ar n&o chegando a ser formulada verbalmente. Fram evidentes porém as tentativas para que cu me vinculasse mais estreitamente 4 vida do terreiro, se ndo atra do vés do batismo* que fixaria o meu santo, ao menos atxa estabelecimento de um parentesco ritual via apadrinhamento da mie de santo substituta. Com efeito, o convite que me foi diri gido para servir de madrinha quando esta foi sclenemente inves, tida na chefia do grupo nde foi apresentado como uma simples gentileza, mas como uma revelagio da falecida me de santo que teria aparecido em sonho para transmiti-la, Estabelecer um vin culo mais estreito do pesquisador com o grupo de culto era nao sé uma forma de assegurar por mais tempo a presenga deste noter reiro,mas também de garantir mais um ponte de apoio entre pes- soas de camadas médias e com relativo acesso a certos setores tnstitucionais, Era enfim alargar para além da classe baixa, on de habitualmente recruta seus membros, a sua rede de relagdes sociais, com as vantagens que dai decorrem, Quando me ausentei para cursar o mestrado em Cam pinas (1978/1979}, enbora continuasse informada sobre os aconte cimentos mais significativos da vida do terreiro e assumigse mj, nha contraparte nesse sistema de troca, distanciei-me fisicamen te do grupo. Este afastamento deixou-me mais & vontade, quanéo do meu retorno ao campo, para transitar pelos outres terreiros em relagio aos quais a minha mobilidade era, de certo modo res trita, pois enguanto era muito frequente a minha presenga no ter reito nagd, a expectativa deste era que eu também respeitasse as fronteiras entre ele e "os outros". Desde muito eu acompanha va & distfncia o que se passava nos demais terseiros, particu Jarmente suas relacgées com o nagé, mas sé agora me sentia 4 von tade paxa visitd-los, estendendo assim o meu campo de observa cdo para perceber como se configurava o segmento afro-brasilei- ro local, os critérios émicos (6) de classificagdo dos terrei ros @ atribuigio de status e o relacionamente entre eles e a so ciedade mais ampla. Isto constitui o tema do capitulo I desta dissertago e serve como pamto de fundo para s analise do nagé, pois sendo a etnicidade um conceito relacional torna-se operati va en face da presenga de outros, com quem o nagd disputard fidis e clientes no mercado de bens simbélicos. Nos dois capf{tulos seguintes a valavra @ dada ao a partir nagd para que ele fale de si ¢ sobre os outros. No das representagées da mie de santo nacd sobre si © sobre o seu terreiro, procuro ver como ela busca legitimar-se pela Africa, & qual estaria ligada velas origens ("bistéria" do terreiro ¢ genealogia dos chefes) © por uma heranga cultural que teria si do ortodoxalmente conservada sem “mistura", o gue constituiria a marca da sua distintividade no segmento afro-brasiicira ig cal. Mo capitulo III, com base nas representagides da m&e de santo nag sobre os outres terreiros @ sobre a Religido Catélica retomo as dicotomias NagS-Toré e Puro-Misturado, esbo gadas no capitulo I, para analisar as categorias subjacentes a este esquema de classificacio (Africano-Indio ¢ Bem-Mal), mos trando através da combinagio com a Tereja Catélica (o que ao degenera a pureza nagd), como os delineamentos da pureza e da mistura seguem as linhas dos dominantes ¢ dominados ra estruty ra social. “A ConstrugSo e o Significadc da Pureza Nag6"cons tituem o tema do capitulo Iv onde, alargando o meu campo de and lise, procuro mostrar que a pureza nagd nuo resulta necessaria mente da fidelidade a uma tradigo, mas de uma construgZo na gual og intelectuais tém papel destacado. Nesta perspective a fidelidade 3 Africa é apresentada como um sinal distintivo do io Nordeste e entra como componente do regionalismo dos anos 39. Mostro também como o “nagd puro" & transformado de feitigaria on "verdadeira religifo", reduzida porém a aspectos exdticos - primitivos-estéticos, e ainda como nesse traémsito do candorbié, alvo de perseguic#o policial para o candomblé nag6 exaltade,ele @ usado como simbolo da negSo e da democracia cultural brasilei, r No filtimo capitulo restrinjo o meu campo de analiv se novamente ao nagS de Laranjeiras para verificar como 0 nov: manto intelectual de exaltagio do africano, enfocado no capitu Jo anterior, se reflete numa pequena cidade do Nordeste e como © serreiro nagd tendo firmado sua exclusividade de tradigio a fxicana mais pura, @ usa no mercado concorrencial de bens simbé licog em busca de sua sobrevivéncia. il. 1 ~ © termo afro-brasileiro tem sido objeto de criticas que de nunciam a sua carga ideclégica associada a pressuoostos evo lucionistas e racistas (Velho, 1975: 12/15}. Embora concor= de com essas criticas e esta dissertagdo seja uma tentativa a mais de romper com a metodolocia que estA subjacente 3 criacgao do termo afro-brasileiro, continuo usande-o,por nao ter encontrado nos termos alternativos propostos um que me satisfizesse, Cultos necros ou relicides negras tém o incon veniente de adscrever, a nriori, significados que podem nao encontrar correspond@neia na nratica social desses grupos veligiosos; cultos de possessdo alaraa por demais 0 — canwo @e observacio incluinde formas religiosas protestantes, Em face degsas dificuldades continuo a empregar o termo afro- brasileiro, incorrendo assim nos mesos riscos do uso Go termo “primitivo", que apesar de sua forte carga ideolégica continua tendo uso corrente na Antropologia pelas dificulda des de substituicao. 2 - Ra Bibliografia, junto a esta data, que 6 a da edicdo por mim consultada, aparece, entre parénteses, quando foi possi vel localizar, a data da la. edic&o, o que permite situar a obra em sua época. 3 - Crengas e sobretudo praticas rituais através das quais: se pretende estabelecer vinculacdo de certos candowblés as tra, digdes religiosas de erunos africanos procedentes do Daomé e da Nigéri. 4- Terreiro & um termo que desiqna tanto o local do culto como © grupo relicioso e suas ordticas, em funcio das cuais se avalia seu tradicionalismo, ou seja, sua fidelidade & Afri ca, Em Salvador 0 Gantois ou I1é Ososi, o Engenho Velho ow 116 Tyé Iy&-Nass6, 9 So Goneale do Retiro mais conhecido como Axé OpS Afonja e, com menor frequéncia, o Alaketu ou 11é Moroialaia, s&o invariavelmente apresentades come — o# mais tradicionais pelos estudiosos, desde Nina Rodrigues no século passado até Juana Elbein dos Santos nos dias atuais. Do mesmo modo, os estudos sobre candomblés resultam de cb servacdes nesses terreiros. Assim 6 que no Gantois trabalha ram Nina Rodrigues e Artur Ramos. 0 Engelho Velho é tomado como padrao por Edison Carneiro na elaboracao Ge"Candomblés da Bahia". Roger Bastide usa dados j4 publicados velos seus antecessores sobre os_candombias tradicionais, sendo aceite como membro do Axé Ops Afonja, que mais modernamente serve de base aos estudos de Juana Elbein dos Santos, enquanto o Alaketu foi estudado por Jean Ziegler. ver Lima (1977:49/50). 5 - Kang € o termo que em Pernambuco, Alagoas e Sergipe é mais usualmente emoregado para designar os cultos conhecidos aa Bahia como Candomblé, 6 - Emico se refere & visio nativa, que estA apoiada em termos conceptuais ¢ categorias dos nréprios pesquisados, enquanto © &tico se baseia nos conceitos € categorias do ves«uisador, constituindo-se assim numa verspectiva analitica (ver Barris 1968). I CAPITULO A CONFISURACAO DO PRESTIGIO EM TERRETROS DE XANGO Laranjeiras, que foi no s&culo passado uma flo- xescente cidade da zona agucareira de Sergipe, 6 tida nlo ape nas como o foco inicia! e 0 reduto mais forte da tradigfo nag neste estado (Oliveira, 1978), mas também camo uma cidade onde proliferam con vigor os chamados cultos afro-brasileiros. Na rea uxbana funcionam 16 centros de culto e quase igual niimero se distribui pelos diversos povoados do mu nicipio (1). Este tem rma Area de 161 km* e.uma populagio de 13,280 habitantes, dos quais 5.150 residen na sede municipal. Emboxa a rede de influéncia dos terreixos nfo se circunscreva aos limites municipais, nem mesmo estaduais, parece elevada a concentragdo de casas ce culto na localidade. A minha pesquisa foi limitada & sede municipal e trabalhei com 10 terreiros, concentrando-me particulamente em um deles. A identificagio que esses terreiros fazen de si e dos outros, o reconhecimento social da importancia desiguai que ihes é atribufda pelos préprios participantes dos cultos e pelas pessoas "de fora", serdo os temas desenvolvidos neste ca pitulo, que visa estabelecer a configuragao do prestigio nun mercado de XangS (2). Terreiro @ a expressdo usualmente empregada tan to pelos participantes dos cultos os "de dentro" como nessoas nao participantes, os “de fora", para indicar o lecal a ao mesmo tempo o grupo religioso. Aparece também a designag&c Ge casa de santo* e centro”, esta mais frequentemente usada quando se indaga sobre o nome do terreiro, Aparece invariavelmente nos alvardés de funcionamento concedides pelas Federagdes de Cultos Afro-Brasileiros e de Umbanda aos terreiros registrados, sendo também usada por aqueles que resistem em registrar-se. 0 terreiro, via de regra, compreende um chefe e seus seguidores, geralmente chamados "filhos de £6*! Ao conjun to, di-se, por vezes, o nome de irmandade”, Os termos filho de 13 santo’e pai ou mie de santo* sio pouco usados, sendo mesmo re jeitados por alguns chefes de terreiros quando empregades pelo pesguisador, sob a alegagSo de que wm mortal nao scde ser pai ou mae de um santo. © texmo santo* indica tanto orixis* africanos co mo entidades caboclas, estas mais conhecidas come encantados Todos os terreiros visitados tinhar altares com santos” aos quais se dedicam festas realizadas cc toques* de tambores e dangas, ao menos uma vez por ano. Alguis deles po rém nao tém wn corpo de fiéis (filhos de £8*) ,dericando-se qua se que exclusivamente As consultas, chamadas loculmente de re paros*, e aos trabalhos*, expresso que engloba. ura série de atividades voltadas para a solugio de problemas imedietos. 5s tes terreiros existem pois em fungdo da prestagic de servigo a uma clientela que é atendida individualmente e nfo cria vinew los em relago ao centro. Prescindindo de um corpo de fiéis, estes realizam suas festas com o concurzo de filhos de £6* de outros centros gue af vdo dangar, o que & inconcevivel para ou tros terreiros onde dangar na roda* @ prerrogativn exclusiva dos seus membros. Estas e muitas outras diferengus sao traba Ihadas de modo a constituir uma diferenciagéo no interior do segmento local dos cultos afro-brasileiros, dizezenciagae que se expressa sobretudo na oposigaéo entre terreiros de nagd e terreiros de caboclo. 1 - 0s "De Fora" Classificam os Terreiros Na identificag&o dos terreires, os termos nagé e caboclo surgem como indicativos de categorias de classificagao manejadas com certa familiaridade nao sé pelos dirigentes e participantes dos cultos, como também pela populagado da cidade de um modo geral. A partir de conversas informais, entrevistas rea lizadas com pessoas de diferentes camadas sociais e de reda~ ges de alunos das 7a. e $a. séries do 19 Grau, conclui-se que os nao participantes des cultes ao se referirem aos terreiros, usam a oposigao nagé-caboclo, mas preferencialmente empregam nagod-toré. 4 + x. a : ; Toré & expresso da qual tém sido registrados significades diversos ora aparecendo como instrumento musical, ora como danga, mas sempre associada a indios. Em Alagoas, na regiao do baixo S&o Francisco, toeré aparece como uma "pantante do catimhS,* cesimania onde os cabo elos ou os encantados, atendendo ao "nestre",bat gam para ensinar rendddos, eomo num eandomolé de eaboelos", (Cascudo, 1969:708, grifos no origina) Sem restringir-se a esse aspecto puramente cura tivo, € como sinGnimo de terreirs de caboclo que o termo 6 usa do em Laranjeixas, Apresenta contudo, ao menos nesta cidade ,wma conotagdo pejorativa nao tendo sido usado por nenhum chefe de terreiro caboclo para indicar o seu préprio centro de culto, embora o usem, algumas vezes,para indicar terreiros de cutrem, sobretudo dos seus rivais, A carga negativa que reveste o tempo toré* se tora mais intensa no seu derivado torezeixo* que se aplica aos participantes dos cultos de caboclo. Tor ou caboclo & categoria que se opde a nagd. Este & termo genérico que no Brasil designava grupos provenien tes do Sul e do Leste da Repiblica Popular do Benin (antigo Daoné) ¢ do Sudoeste da Nigéria, entre os quais se incluem os Ketu, Sabe, 016, Egb&, Ijex4, Ijebu. Como lembra Juana Elbein dos Santos, a exemplo da palavra Iorub&4 na Nigéria, o termo na gd no Brasil foi aplicado coletivamente a diversos grupos vin culagos por uma lingua comum e que teriam chegado ao Brasil nos fins do século XVIII e inicio do XIX, concentrando-se nos estados do Norte e Nordeste, particularmente em Salvador e Re cife (Santos, 1976:29). Atualmente nagd & indicativo de um conjunto de pr&ticas e crengas tidas cano de origem africano-ioruba, atra vés das quais se define uma nagdo de Candomblé. (Serra, 1978: 37/38). Para os habitantes de Laranjeiras,af existe um- terreiro nagé que opsem aos demais, tidos como torés. A clag sificagio 6 pois sumaria, exclufdo 0 nag6, tudo o mais & toré, terreiro de caboclo. Um pouco mais matizada 6 a classificagao dos di rigentes de terreiros que se vera em seguida. 15 2 - Os Terreiros Se Véem a Si Mesmos Os chefes de culte, via de regra, tém um bam co nhecimento dos terreiros da cidade e alguns deles chegaram a enumerar quatorze casas de santo”, sua localizagdo, dirige e nagéo*. Ao classificar os terreiros, alguns deles fize; uso de categorias nado enumeradas pelos "de fora", apresentan‘o assim um quadro de identidades mais nuangado,que inclui 4 rentes nagées africanas como Ketu*, 1jex&*, Jejé*, Angola” ,aiém do Nagi identidade que o dirigente faz do seu terreiro, passando qui:e Essas especificagées contudo aparecem sempre na avtc~ sempre despercebida aos demais chefes de culto, para os qui’s © que nBo € nagd ou caboclo ou associagSo des dois, & simples. mente misturado* ou enrolado*. Veja-se o quadro abaixo. QUADRO I Classificagéo dos terreiros segundo os dirigentes @e culto (3) TERREIROS |AUTO-IDENTIDADE CLASSIFICACKO PELOS OUTRO: PAIS DE SANTO 1 Caboclo Caboele ou Tord . 2 Caboclo Misturado . 3 Caboclo Caboclo ou Toré/Misturado 4 Nagd Nagé (adjetivado de “puro"" Ie gitimo", no") Nagd. Nag6/Caboclo-nagé Ob& {nagd) Ketu,Tje]Nagé-caboclo/Nagé-angola /Cabo x&, Angola,Caboclo,|clo ou Toré / Misturado Jeje.) Nago, Ketu, 1jexa,|Cabocle ou Toré/Enrolado 7 Caboclo 8 Angola Cabcelo ‘ou Tors. 9 Jeje Caboclo ov Toré 10 N&o tenho nagdes | Toré/misturado 16 Nesse quadro de classificagao, misturado emerge como uma categoria que parece ter dupla significagdo, ora & sindnimo de caboclo, ora indica fus&o de cabosio, nagd e ou- tras nagdes. £ interessante observar que 0 adjetivo " puro" correlatos, que aparecem com frequéncia associados a um ter reiro nag, jamais foram usados en relago a algum terreiro caboclo. Retornarei, no devido momento, 2 essa questao do "pu ro" e do "misturado", do nagé e do caboclo. Por ora tentarei buscar os vincvlos existentes entre os tecreires, com o fim de estabelecer elos de ligagdo entre a auto~identificagio e a identidade atribufda pelos outros, na medida em que esta pare ce elaborada em cima da “histéria do teczeiro", muito colada A vivéncia do seu dirigente e as suas vizculagdes anteriores com outros centros de culto, onde afinel, teria recebido sua formagao. © que se pretende & uma breve reconstituigao da histéria dos terreires e as ligagées de uns com os outros, & base do que se procurar4 pensar a maior ou menor eguivaléncia entre auto-identidede e identidade atribufda. Graficamente a vinculag&ée entre os diversos ter yeiros poderia ser assim representada: NAGO GABOCLO £ OUTROS Op rtenene Ho eessH90 Qyrsteite nose wo vinewio ve omen Ep TRAIETORIA 69 TERRCIRO oy metutweia a Tome-se como ponte de partida o terreiro nagi (o 4) onde essa equivaléncia & total. Representaria a continuidade de um terreiro des antigos escravos africanos, dos quais descen aia a chefe criovla, hd alguns anos falecida (1974), que o diri giu por mais de cinquenta anos seguindo sempre a tradigZo rece bida dos ancestrais nagés e conservando-a até os dias de hoje. A histéria do terreiro 6, que se auto-define como cba, (nagS) e secundariamente como jeje, ketu, ijexé, angola caboclo, seria scmelhante 4 do anterior. Mas, a partir de um da do momento, o dirigente que o regeu por mais de meio século tam bém falecido h4 youcos anos, teria nBo apenas atualizado a tra digo dos nagés 2 outras nagdes africanas através da Bahia, mas também incorporado ao terreiro culto dos caboclos. Tornou-se “misturado". Sua influéncia na formag’o de outros terreiros da cidade é muito grande. Pelo processe de fiss%o que rege o cres- cimento dos cultcs, dele derivam diretamente 0 terreiro 1, que se auto-define caboclo, o 7, nagé, ketu, ijex, caboclo por au to-definigo eo 9, que se identifica como jeje, Teria influen ciado também, indiretamente, mais dois outros terreiros, cujos chefes nao se ligam a ele por filiagio de fé mas frequentavam— no habitualmente no passado, Trata~se do 2 que se diz caboclo e & aceito como tal, e do 5 que se auto-define como nagd, sendo classificado pelos demais dirigentes de culto ora como nagé,ora como caboclo-nagS. A hist6ria deste filtimo terreiro remontaria também aos africanos, que teriam deixado"santos da Costa*" sob a quarda dos seus descendentes crioulos. Estes, sob a influéncia do terreiro 6 teriam "misturado" nagd com caboclo, Durante mui tos anos os dirigentes do terreiro, que se sucediam dentro da paventela (41, seguiram a dupla tradig&o de eulto até que = ha aproximadamente, oito ou dez anos atr4s, sua chefe, sob pretex to de que os santes e africanos estavam zangados ¢ castigando a, empreendeu o “retorno &s origens", Aproximou-se do terreiro nagé, o "nagd puro”, e soh a imposig&o deste, teria suspenso as praticas caboclas. Encontra-se assim no limiar da fronteira ¢ enquanto uns chefes de culto aceitam seu retorno ao nagd,outros véem-no ainda como um cabocio-nagé. Quanto ao terreiro 3, deriva de um famoso ¢ hoje extinto terreiro caboclo da cidade. 0 8 se liga a um centro de outra localidade, enquanto o 10 se apresenta como prescindindo 18 de vinculos com outros terreiros e sua dirigente diz-se uma ilu minada*, que desenvolve sobretuéo consultas*, Tendo se filiado a uma das Federacdes de Umbanda esta tem incentivado o culto as entidades reunidas num elaborade santudrio e a realizacio de ri tuais piblicos efetuados com o concurso de filhos de santo* de outros centros, num esforgo evidente de transformar o que era um centro de consulta num terre vo de Umbanda. © esbogo da histéri.a dos terreiros, reconstrufda a partir das informagdes dos seis dirigentes, mostra que ha uma correlagao entre este e a classificago que 6 feita pelos de- mais chefes de culto, Tomando-s a oposigao caboclo-nagé como a vertente de classificagdo tem-s2 que, com exceg&o de um casc,ha correspondéncia, maior ou menoy entre a auto-identidade dos ter reiros e a identidade que Ihes & atribuida pelos outros. A Gini ca excegZo seria o 5 que reivinaica a identidade exclusiva com © nagd e este reconhecimento Ihe 6 negado por uma parte Gos che fes de terreiro, certamente em face das suas flutuagdes ao ion go da fronteira caboclo-nagd, Cov isto o terreiro 4 aparece com uma identidade exclusiva reconhvcida nfo sé pelos "de fora" mas também "por todos os chefes de clto do segmente afro-brasileiro “legitino", "verdadeiro" e "africano". Desse modo, recobrindo a oposigio na local, B visto como o Gnico terreiro nagé "pur gS x caboclo que é basica para os "de dentro" como para os "de fora", constréi-se uma outra oposigao entre "puro" x "misturad Em face da exist@ncia de um sistema émico de clas sificagao dos terreiros, indaga-se sobre a possibilidade de es tabelecer equivaléncia entre este e outros sistemas de classifi cag&o divulgados pela literatura sobre cultos afro-brasileiros, tais como Umbanda, Candomblé, etc, Como essa questdo & vista pe los laranjeirenses de um modo geral e pelas pessoas que partici pam dos cultos? Ao contrario de Xangd que & termo muito conheci do e usado para indicar indistintamente os terreiros eos = cul tos, Candomb1é e Umbanda quase nao sao usados. Significativamente num total de cinguenta e duas redagées de estudantes, Unhanda apareceu apenas uma vez, sendo apresentado como sindnimo de Candomblé. Este ltimo termo foi ugsado dez vezes, cito das,quais como sinénimo de Toré (caboclo) e oposto a Nagd; uma vez como "a designagao mats aproprtada pa pq indiear os cultoe", e outra como sindnimo de Umbanda (5). 19 Os dirigentes de culto também n3o usam estes ter mos, a ndo ser quando inquiridos sobre as diferengas entre as categorias caboclo e nagS. Mesmo assim apenas trés deles usaram nes. Seguem-se alguns depoimentos: "for3 % negdeto de caboelo, kas meu tio chamava ele de Candombié", (6) Ow entio: "Tore = Cundomblé pela Bahta. Tor’ & aqui mas o Candomblé da Bahia @ nate ketu, Toré @ mais Umbanda". (7) © que se deduz, além da existéncia de um sistema prdprio de classificag&o centrado nas categorias caboclo-nag6,é , quando solicitados a esclarecer este esquemz, os chefes de tarreiro tentam estabelecer equivaléncias com outro esquema de classificagdo, que supdem mais conhecido do pesquisador. Nesta tentativa nota~se que ha uma tendéncia a a- oximar o Toré ora do Candomblé da Bahia, ora da Umbanda, No entanto jamais se fez tentativa de estabelecer equivaléncias do Candomb1é com 0 Nagd. Seria de esperar-se que sendo o Nagé tido Jocalmente como o depositario da "tradico africana mais pura", atributo que om outros meios se reivindica para os candomblés mais antigos da Bahia, se fizesse uma aproximagdo entre ambos. Entretanto, na cidade, Candomblé foi associado ao pdlo mais"mis. turado" e desprestigiado que é o Toré, Para o mundo afro-laranjeirense a influéncia da Bahia sobre os cultos locais longe de incentivar a "preservagdo da pureza africana" teria agido no sentido de acentuar as "mis. turas". A este respelto a histéria dos terreiros 6 bastante elu cidativa, particularmente se vista a partir da casa de santo* 6 conforme visto anteriormente. A propésito da denominagdo dos cultos merece ser lembrado que nao sé em Laranjeiras mas em Sergipe de modo geral © termo mais usualmente empregado pelas camadas populares para designaé-los é XangS, tal como ocorre em Alagoas e Pernambuco. Isto parece intrigante quando se sabe da dependéncia econdmi ca e politica que marcou a histéria de Sergipe em relacSo a Bahia, onde og cultos so denominados de Candomblé. Esta denomi nag&o que em Sergipe & usual entre os letrados nao chegou a im por~se entre as camadas populares, o que indica também que a in flugneia da Bahia sobre o segmento afro-brasileiro de Sergipe nao 8 tZo avassaladora como fazem supor estudiosos da expanso do modelo de culto jeje-nagS baiano (Carneiro, 1964: 121/126) e 20 como podem sugerir a proximidade geogr&fica e a dependéncia his toricamente reconhecida no plano econdmico e politico. Esta quest&o da denominag3o dos cultos sera reto mada adiante. (Ver capitulo Iv) Voltando 4 questa da correspondéncia entre cate gorias émicas e as veiculadas pela ampla literatura sobre cul- tos afro-brasileiros percebe-se que h4 um descompasso entre cles, @ como o meu objetivo é, neste momento, ver como se percebem e se apresentam as diferengas dentro do campo religioso, trabalha rei com as categorias dos préprios informantes que tém como opo sigdo bisica: caboclo-nagd o que remete a eutra oposigio entre indios e negros. 3 - Sobre As Diferengas A suposta génese da tradicSo cultural veiculada por esses terreiros seria o ponto de partida paxa as diferengas observaveis entre eles, Os terreiros caboclos se ligariam en suas origens, aos Indios, enquante os nagds se vinculariam = 4 Africa. Esta idéia @ expressa por diversos agentes sociais de diferentes modos, conforme se pode ver a seguir: "ueu terreira & caboclo, Meu santo % 0 caboclo Res catea... Eu sou descendente de indio, A minka avo era india, Fot pagada « caseo de cavalo @ a dente de cachorro, no Amazonas @ ertada em Simao Dias Gel" (8), "Rog tempoe vd tras 86 tinha aqui em Laranjetras nagé e malé (...} 08 caboelo quem formou fot Ma nud de Zuina, Fle aprendeu 14 na aldeia, Ble of entou 1g 2 veto de ld fugido” (9). Se @ através da ligagSo com os indios que se ex plica o Caboclo, é recorrendo-se 4 ligacio com a Africa que se explica a origem dos terreiros nagés: "@ nagéd @ nagdo de preto velho, dos negros escra vos africancs. Foram etes que detraram (10). "0 eulto afvo-braciletro filhos de Cbd "representa o dirette de tradigago e sucesedo da falectda pre sidente Joaguina Marta da Costa, afrteana de ort gen, filha da eidade de Oba, das aetvas de vagd ...F an. al "9 terreiro nagé de Bilina 2 dos tronco vetho dos africanc. # diferente de nds caboclo que ven dos indios" (12). Segundo os informantes a origem diferenciada dos cultos estaria na base des diferengas que separam os terrejiros nagés dos caboclos. Para "os de fora", ov seja os nao participantes dos cultos, essas diferergas se encontram nas entidades cultua das, na atuaco desses cantros quanto 4 pratica do Bem e do Mal e sobretudo no ritual, Foi em torneo desses aspectos que se de tiveram os estudantes que. em suas redagdes trabalharam sobre as diferengas (13), Segundo «stes, no Nagd cultuam-se os mortos os orixés, enquanto no Toré culiuam-se os caboclos eo "Co". Em decorréncia de sua vinculagZo com as forgas do mal o Toré "ytve de faser feitigo" enquanto o Nagd seria menos maléfico(14). Mas & sobretudo em relagdo ao ritual gue as dife rengas so expressas em maior nfimero ¢ com mais nuances, embora se restrinjam aos rituais externos abertos ao piiblico e conhe os*, As diferengas enumeradas’ dizem dos localmente como feste xespeito 4 época das festas, aos toques* dos tambores, as dan gas e as vestes. Estas, particvlarmente, sio citadas com alta frequéncia como sinal distintivo: "as vestes do nagd eGo bran- cas, as do toré edo colortdas 2 estampadas", 4- As Diferengas Vistas Pelos "De Dentro" Para os dirigentes de terreiros a diferenca funda mental entre os nagés e os caboclos & “trabalhar" ou "nio traba lhar” com a “esquerda", 0 que significa recorrer a Bxu, identi ficado como o "CAo", "o Inimigo" as "forgas do Mal". Significativamente, 4 excegfo de um deles que ape la para elementos diferenciadores no ritual (15), os chefes de terreiro, além de renortarem-se 4s supostas origens, limitaram se a trabalhar essa cposicao: “terretro de cabocle trabatha com esquerda" enquanto "nagé ndo trabalha com a esquerda”. Registre-se que num total de dez chefes de culto entrevistados, sete deles recorreram a este sinal diacritico, e 22 dentre estes apenas dois terreiros se auto-definiam como naga, os demais identificaran-se como caboclos ou caboclo-nagS (16). Importante também registrar que, embora fizessem uso desse cri tério diferenciador, alguns chefes de terreiro levantaram diiv: das quanto 3 sua veracidade sugerindo que o Nagd também = traba. Ihava com Exu, sob o disfarce de um outro nome. "Bilina ndo garanto que trabalhasse com a _esquer da. Mag ela tinha Rard* accentado, E Bard Bo ne me de Enu* pela nagGo nagé* (17). 7 Wao obstante, h& uma grance concordancia, mesmo © @ rendas no mercado entre dirigentes que competem por presti. magico-religiose local, em apresentar 0 Nagé como avesso 4 mani pulag&c do Mal e voltado para a praética do Bem. B significati vo 0 seguinte trecho do depoimento de um chefe de culto que se autodefine como Caboclo, referindo-se & dirigente do terreiro nagd: "... ela fazia aqueles bankoe, com aquela forga dos ovisds, ajudava e ndo precisava de Eau, Podta faser trabathos pra ajudar, mas néo arriava Bou. 86 usava ervas e bankos, gente aereia og = traba tho de chdo, com galinha, wachaga, Gleool, pédlve va e farofa que passa no compo de pove", (18). Desse modo, o fato de nfo “trabathar com a esquer da" no implica em descartar a existéncia de uma clientela gi, xando em torno do Nagé em busca da prestag&o de servigos. Como ser visto oportunamente, admite-se a existéncia dessa cliente la, que seria satisfeita em seus desejor através da habilidade do chefe do terreiro nagé em lidar com cs“orixas de frente*" e deles conseguir a solug&o dos problemas, sem a necessidade de recorrer a Exu. Desse modo, ao Nagd, ao cual, como foi visto, se associa a nog&o de “pureza" @ acrescentada a idéia de Bem, 5 - A Importéncia Dos Yerreiros Vista Pelos “De Dentro” Em face da multiplicidade de terreiros hoje exis tentes na cidade. uns recentes outros antigos, uns grandes ou tros pequenos, uns nagés outros caboclos, quais os terreiros ti dos como mais importantes? Na histéria dos centros acima esboca da em suas linhas gerais, o terreiro de nimero 6 se destaca so bretudo como terreiro-matriz donde se originaram varios outros. 23 Seria isso wn indicativo de import&ncia? Quais os critérios que num mercado de Xangd slo usados para reconhecimento de importan cia e prestigio? Nesta parte do trabalho tentarei ver como essa questSo @ percebida a partir "de dentro", ou sejz, pelos pré~ prios dirigentes dos cultos. Estes, quase por unenimidade, con cordam que os terreiros 4 e 6 sao os mais importantes da cidade, Na avaliagdo por eles feita estes dois aparecem mais ou menos equiparados, enquanto os que se lhes seguem fo 7, 0 5 € 0 9),es to deles muito distanciados em termos de reconhucimento de im port@ncia por parte dos chefes de culto (19) Para justificar a importancia etrikuida aos ter reiros 4 ¢ 6 usam os seguintes argumentos: "ado tevreiros que tam mats de cen anos", ou "edo antigos, hietdnioos”, "2m funda mento"*, "vieram dos afrteanos", "sabem faxer a5 coteas”, A es im muttos Ff tes acrescentam-se: "sdo terretvos grandes que thos" o nimero de "“carros que param na ua porta "por ger fa Lado no radio e na TV" ou ainda por "dangar na porta do paldeto 1a em Avacaju". Os critérios utilizados para atribuigao de impor tancia acs terreiros podem ser agrupados em dvas categorias, De um lado sinais externos, portanto indicadores através dos quais & possivel avaliar o sucesso de um terreiro: nfimero de filiados, transito livre em certos setores dominados pelas camadas supe, riores representados pelos meios de comunicagio, convite de go verno e presenca Gos ricos em busca de servigos magicos, De ow tro lado razSes internas gue estariam na base da explicagéo do sucesso tais como a origem africana do terreiro, sua antiguida de © a capacidade ritual do seu lider, elementos que teriam a ver diretamente com a forga® do terreiro, conceito importante nas interpretagdes @micas sobre o prestigio dos terreiros, a0 qual retornarei adiante. Convém chamar ateng&o para o fato de que os dois terreiros apontados como mais importantes, apesar das diferen gas de trajetéria em relagdo ao legado original ¢ A sua identi ficagdo, t&m muito em comum, Além da antiguidade que lnes @ a~ tribufda, na diregSo de ambos permaneceram nos filtimos cinquen ta anos negros que teciam convivido com os Gltimos africanos da cidade e com eles teriam se iniciado no culto. Ambos faleceram

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