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40 OSWALD SPENGLER Devemos hoje ajustar contas definitiva- mente com ésse modo de ver. O cepticismo, a tinica atitude filoséfica possivel nesta época (mais ainda: a tnica digna dela) nao permi- te tanto desperdicio de palavras. No entanto, por essa mesma razéo, ndo deixarei de con- testar as opinides que se desenvolveram da ciéncia natural do século passado, Nosso trata- mento e classificagio anatémicos do mundo animal acham-se inteiramente dominados (como era de se esperar em vista de suas ori- gens) pelo ponto de vista materialista. A ima- gem do corpo, tal como ela se oferece aos olhos do homem (e s6 aos do homem), e, a fortiori, 0 corpo dissecado, preparado quimi- camente e maltratado pelas experiéncias de- ram lugar a um sistema que Lineu fundou e que a escola de Darwin ‘aprofundou com a paleontologia. & um sistema de particularida- des estaticas e oticamente observaveis, ao la- do do qual encontramos outra ordem comple- tamente diferente e destituida de sistema, uma ordem dos modos de vida que se revela apenas na convivéncia ingénua, através dessa afinidade intimamente sentida do Ego e do Tu, que qualquer camponés, bem como qual- © HOMEM E A T#CNICA 41 quer poeta, conhece. Gosto de meditar sobre a fisiognoménica dos modos em que se mani- festa a vida animal e sdébre as espécies da alma animal, deixando aos zoologistas a sistemd- tica da estrutura corporal. Revela-se entio uma hierarquia, do corpo e nao do espirito, completamente diversa. A planta yive, embora s6 seja um ser vi- vo no sentido restrito. Com efeito, ha vida nela ou em térno dela. Ela respira, ela se ali- menta, ela se multiplica, dizemos nés. Mas na realidade ela,é simplesmente 0 teatro dés- sés processos que constituem uma unidade com os processos da Natureza em térno, tais como o dia e a noite, os raios do sol e a fer- mentaciio do solo. Assim sendo, a planta mes- ma nao pode querer ou escolher. Tudo acon- tece com ela e nela. A planta niio escolhe a sua posigaéo, nem o seu alimento, nem as ou- tras plantas com as quais exerce as funcdes de reprodug&o. Ela nfo se move, mas sim 6 movida pelo vento, pelo calor e pela luz. Acima dessa espécie de vida alca-se ago- ya a vida livremente mével dos animais. Mas dessa vida hé dois estédios. Ha uma espécie, representada em todos os géneros anatémicos 42 SWALD SPENGLER desde os animais unicelulares até Pedes e os ungulados, e cuja Figgins = sua manutencéio do mundo imével das 2 lantas, pois estas néo podem fugir nem de- ‘ender-se, Acima, porém, dessa espécie exis- te uma segunda: a dos animais que vivem de outros animais ¢ cuja vida consiste em matar. Neste caso a presa mesma é mével, e em alto grau, e, além do mais, 6 combativa e bem do- tada de toda a sorte de austicias. Esta segun- da especie se encontra também em todos -os géneros do sistema. Cada gota d’égua 6 um campo de batalha, Nés que temos a luta da terra tao constantemente ante nossos olhos que chegamos a aceité-la como natural, e até mesmo a esquecé-la, estremecemos de uae E eee eae as formas fantasticas das ‘ofundezas do m: i en eo eae processa essa vida de O animal de rapina é a fi i da vida mével. Significa riigeaei) ‘de berdade a seu favor e contra os outros, 0 ma- ximo de responsabilidade propria, de singu. laridade; significa também o extremo de ne- cessidade onde ésse eu s6 se pode afirmar lutando, vencendo e destruindo. O fato de 0 HOMEM E A TECNICA B ser o tipo humano um animal de rapina con- fere-lhe uma alta dignidade. Um herbivoro é por destino uma presa. Procura por meio do véo fugir a essa sina, mas os animais de rapina precisam de vitimas. Um dos tipos de vida 6, em sua esséneia mais intima, defensivo; 0 outro, ofensivo, duro, cruel, destruidor. A diferenga se faz visivel mesmo na tatica dos movimentos. De um la- do 0 habito do véo, o dom da velocidade, da evasio, de negar o corpo, de ocultar-se. De outro lado, vemos o movimento retilineo do ataque, o salto do lefio, o yoo arremessado da Aguia. Existem negagas e artimanhas tanto no estilo do forte como no do fraco. A asti- cia no sentido humano, isto 6, a astiicia ativa, 6 atributo apenas dos animais de rapina. Com- parados com éstes, os herbivoros ‘sao obtusos, nado apenas a pomba “inocente” e o elefante, mas também as espécies mais nobres dos un- gulados: 0 touro, 0 cavalo e 0 cervo. S6 quan- do cegos de raiva ou sexualmente excitados & que sfio capazes de lutar; de outro modo deixam-se domar e uma crianga facilmente os poder conduzir. ‘Além dessas diferengas entre as espécies 44 ‘OSWALD SPENGLER de movimento, ‘existem outras, ainda mais marcadas, nos orgios dos sentidos., Porque elas sio acompanhadas por diferencas na ma- neira de apreender, de ter um “mundo”, Em si mesmo todo o ser vive na natureza dentro de um ambiente, nao importando que éle per- ceba ou nao ésse ambiente ou que seja ou nio notado dentro déle. 5, porém, a relaco—mis- teriosa, inexplicével por qualquer raciocinio humano — que se estabelece entre o animal 0 ambiente, por meio dos sentidos do tacto, da ordem e do intelecto, que transforma o sim. ples ambiente em um muhdo circundante. Os herbivoros superiores sfio governados pelo ou- vido, mas acima de tudo pelo olfato (*)3 08 car- nivoros superiores, por outro lado, dominam com os olhos. O olfato é um sentido caracte- risticamente defensivo. Com o nariz o animal fareja o quadrante e a distancia do perigo, dando assim aos movimentos de fuga a dire- ¢4o conveniente: 0 afastamento de alguma coisa. Mas o 6lho do animal apace visa um alvo. O fato mesmo de os dois olhos dos gran~ @) Uexkill: Biologioche Weltanschawung, © HOMEM E A T#ONICA 45 des carnfyoros, bem ¢omo os do homem, pode- rem fixar-se num ponto do ambiente permite ao animal fascinar a presa. Nesse olhar hostil esta j4 implicito para a vitima o destino a que nao pode fugir, o salto do momento imediato. Mas ésse ato de fixagéo de dois olhos dirigi- dos para diante e paralelamente é equivalen- te ao nascimento do mundo no sentido da pos- se do mundo pelo Homem — isto 6, como um quadro, como um mundo ‘diante dos olhos, como um mundo nfo apenas de luzes e céres, mas de distaneias em perspectiva, de espaco e de movimentos no espago, de objetos situa- dos em determinados pontos. Essa maneira de ver que todos os earnivoros superiores pos- suem — os herbivoros, como por exemplo os ungulados, tém_os olhos orientados lateral- Inente, dando cada um déles uma impressio diferente e sem perspectiva — traz j4 em si a idéia implicita de dominio. A imagem do mundo é o mundo circundante dominado pe- los olhos. Os olhos do animal de rapina de- ‘terminam as coisas de acérdo com sua posi- cao e distincia. Bles apreendem o horizonte. Medem nesse campo de batalha os objetos e as condigées do ataque. Um a farejar, o ou- 46 ‘OSWALD SPENGLER tro a espreitar, — o veado esta para o falcio assim como 0 escravo esté para o senhor. Ha um sentimento infinito de férga nesse olhar largo e tranquilo, um sentimento de liberdade que brota da superioridade e se apoia na con- ciéncia de um maior poder e na consequente certeza de nfo ser presa de ninguém. O mun- do é a presa, e désse fato, em tiltima anilise, nasceu téda a cultura humana. E, finalmente, o fato dessa superioridade inata se tem intensificado nao apenas para fo- ra do mundo luminoso e das suas disténcias infinitas, mas também para dentro, relativa- mente a espécie de alma de que sao dotados os animais fortes. A alma — ésse qué de enigmatico que sentimos ao ouvir esta pala- vra, mas cuja esséncia nfo é acessivel a ne- nhuma ciéncia; essa chispa divina neste-cor- po vivo, que neste mundo divinamente cruel e divinamente indiferente tem de dominar ou de capitular — a alma é 0 contra-polo do mundo luminoso que nos cerea. Daf 0 fato de |\ o pensamento e 0 sentimento humanos esta- rem sempre prontos a aceitar a existéncia de uma alma césmica dentro déle. Quanto mais Sdlitério é o ser e mais resoluto se mostra no er 0 HOMEM © A TECNICA at formar um mundo para si mesmo, contra t6- ‘das as outras conjunturas de mundo a seu re- lor, tanto mais definida_e forte é a témpera de sua alma. Qual é 0 oposta da alma de um leio? A alma de uma vaca. Os herbivoros substituem a férca da alma individual pelo grande numero, pelo rehanho, pelo sentir e pelo fazer em comum das massas. Quanto menos, porém, um individuo precisa dos ou- tros, tanto mais poderoso éle 6. O animal de rapina 6 inimigo de todo o mundo. Nao to- Jera nunca um igual em seu antro. Aqui es- tao as raizes do verdadeiro conceito régio de propriedade. A propriedade 6 0 dominio no qual exercitamos poder ilimitado, o poder que conquistamos em batalha, que defende- mos contra nossos pares, que mantivemos vi- toriosamente. Nao é o direito a um mero ha- ver, mas sim 0 soberano direito a fazer 0 que queremos com 0 que é nosso. Uma vez que compreendemos essas coi- sas, chegamos & verificagio de que existe a ética do carnivoro e a ética do herbivoroy Es- t4 fora do alcance de qualquer um alterar is- so. Trata-se de algo que pertence A forma intima, ao sentido e A tAtica de téda a vida. 48 ‘OSWALD SPENGLER # um simples fato. Podemos aniquilar a vida, mas nao lhe podemos alterar o caréter. Um animal de rapina domesticado e cativo — qualquer jardim zoolégico nos oferece exem- plos disso — fica mutilado, tomado de sauda- de césmica, interiormente morto, Alguns dé- les fazem voluntariamente a greve da fome, quando capturados. Os herbivoros nada per- dem no processo de domesticaciio. Essa é a diferenca entre o destino dos herbivoros e o do animal de rapina. Um dés- ses destinos apenas ameaca; o outro, exalta. Aquele deprime, empequenece e acobarda; @ste eleva por meio do poder e da vitéria, do orgulho e do édio.. E a luta da natureza- interna com a natureza-externa jé nio de- ve ser considerada miséria como afirmava Schopenhauer, ou “luta pela existéncia”, co- mo achava Darwin, mas sim um grande sen- tido que enobrece a vida, o amor fati de Nietzsche. & a esta espécie e nfo & outra que o Homem pertence. QUATRO O HOMEM no é nenhum simplério, “pom por natureza” e estipido; nem um semi-macaco com tendéncias técenicas, co- mo Haeckel o descreve e Gabriel Max © pin- ta: (*). Por sdbre ésses quadros cai ainda a sombra plebéia de Rousseau. Nio, a tatica de sua vida é a de um espléndido animal de rapina, corajoso, astuto e cruel. Vive de ata- car, de matar e de destruir. Ble quer, e des- de que existe sempre tem querido, ser senhor. Significara isso, entretanto, que a ee ca é na realidade mais antiga que o homem? {ay Fol o tmpactente deménio da clasificasto, que assom- ica Se anntomistas puros, que aproximos 0 homem do mactco a anse mais, eases mesos onatomistes eitlo loje em dla co se ie rvpchar essa conclsSo malto apressada ¢ superficial esande eemanpo, Kanach gic fol dawinisa; Det Werder setice Menechhee (O. Advento da Humanidads) 1920. 8 pe. J equntn, B jostamenteno,"sema” mesmo que © bones 2 cmon a margem e fora de 1688 0 ordem, sendo mul pemilve we “trates partes de ava estrutura corporal ¢ aberrado em o¥ sin igo nto nos inteessa aqul. © que estamos extndando ¢ su Mas ite ages desi, em sun alma, ele € wm animal de captor 4—O8.T. ee fuse OSWALD Certamente nao. Ha uma enorme diferenca entre o homem e os outros animais. A técnica déstes tiltimos é uma técnica genérica. Nao é inventiya nem suscetivel de desenvolvimento. O tipo abelha desde que existe tem construi- do seus favos exatamente como o faz agora, e ha de continuar a construf-los assim até a sua extinedo. Os favos pertencem A abelha como'a forma de suas asas e a cr de seu cor- po. As diferengas entre a estrutura corporal e o modo de vida s6 existem vistas do angulo do anatomista. Se partirmos da forma interna da vida em vez de’da forma externa do cor- po, veremos entao a tatica de vida e a distri- buigéo do corpo como uma tinica e mesma coisa, expressdes ambas de uma mesma tea- lidade organica. A “espécie” é uma forma, nao do visivel e estatico, mas da mobilidade —uma forma niio do ser-assim mas do fazer- assim. A forma corporal é a forma do corpo ativo. As abelhas, as térmitas e os castores er- guem construgdes admirdveis, As formigas conhecem a agricultura, a construcio de estra- das, a escravidao e a guerra. A arte de criar os filhos, de erguer fortificagées e organizar 0 HOMEM © A TSCNICA Bi as migracées se acha largamente difundida na natureza. Tudo que o homem pode fazer esta ou aquela espécie de animal j& tem feito. Sio tendéncias que existem adormecidas sob a forma de possibilidades dentro da vida m6- vel. O homem nada realiza que nfo seja rea- lizdvel pela vida como um todo. No entanto, no fundo tudo isso nada tem a ver com a técnica humana. A técnica da espécie 6 inalteravel. Eis o que significa a palavra “instinto”. Estando o “pensamento” animal estritamente ligado ao agora e aqui imediatos e nio conhecendo o passado e 0 futuro, nao conhece também a experiéncia e ‘a preocupacéo. Néo é verdade que entre 0s animais as fémeas se “preocupem” com os filhotes. Preocupac&o é sentimento que pres- supde visio mental futuro a dentro, interésse pelo que esté por acontecer, do mesmo modo que remorso implica em conhecimento do que aconteceu, Um animal nao pode odiar nem desesperar. O cuidado da eria é, como tudo mais que se mencionou acima, um impulso obscuro e inconciente como os que se encon- tram em muitos tipos de vida. Pertence & es- pécie e no ao individuo. A técnica genérica 32 OSWALD SPENGLER nao é apenas inalterdvel, mas também impes- soal. Pelo contrario, hé até um fato tmico com relago & técnica humana: o de que ela é in- dependente da vida do género humano. £ o winico caso em téda a histéria da vida em que o individuo se liberta da coag&o da espécie. Precisamos meditar longamente sébre essa idéia se quisermos apanhar-lhe a imensa sig- nificagao. A técnica na vida do homem é con- ciente, arbitréria, alterdvel, pessoal e inven- tiva. Aprende-se e é suscetivel de melhora. O homem se fez criador de sua tatica de vida. Esta 6 a sua grandeza e a sua fatalidade. E 4 forma interna dessa criatividade chamamos cultura, — possuir cultura, criar cultura, pa- decer pela cultura. As criagdes do homem sfo a expresso de sua existéncia em forma pessoal. CAPITULO III A ORIGEM DO HOMEM: A MAO E 0 INS- TRUMENTO A méo como érgao do tacto ¢ da agéo, — Diferenciacdo entre 0 fabrico das armas ¢ 0 uso delas. — Liberagdo relativa a coagéo da espécie. — “Pensamento do dlho” ¢ “‘pensa- mento da mao”. — Meios ¢ fim. —O Homem como criador. — O ato singular, — Natureza e “arte”. — A téenica humana 6 artificial. — Homem versus Natureza, — A tragédia do Homem. cINCO ESDE quando existe ésse tipo de carni- voro inventivo? Ou, entao, 0 que vem dar no mesmo, desde quando existe o ho- mem? Que é 0 homem? Como veio a ser ho- mem? Eis a resposta: através da génesis da mio. A mio é uma arma sem igual no mun- do da vida mével. Comparémo-la com a pa- ta, o bieo, os cornos, os dentes e as barbata- nas dos outros animais. Para comegar: o sen- tido do tacto se acha em tal grau concentra- do na mao que esta pode ser quasi conside- vada o 6rgao tdctil, no mesmo sentido em que os olhos sfio os orgéios visuais e os ouvi- dos os orgaos auditivos. A mao nao s6 dis- tingue o quente do frio, 0 sélido do liquido, o duro do mole, mas também, acima de tudo, © péso, a forma, o lugar das resisténcias, ete., — em suma, as coisas no espaco. Além e aci- ma dessa funcdo, porém, a atividade da vida se retine de modo t4o completo na mio que téda a postura e marcha do corpo tomou — simultaneamente — a configuragio dela. Nao hd nada em todo o mundo que se possa com- parar a ésse membro capaz igualmente de toque e de acdo. Aos olhos do animal de ra- pina que contemplam “teoricamente” 0 mun- do, ajunta-se a m&o do homem, que o domina praticamente. A sua origem deve ter sido stibita, com relagdo ao ritmo das correntes césmicas. Ela deve ter acontecido tao abruptamente como um relaémpago ou um terremoto, & maneira das coisas decisivas que na histéria do mun- do marcam época, no sentido mais alto da expresso. Neste ponto.temos de outra vez nos li- bertar da idéia — sustentada no século pas- sado e baseada nas investigacdes geolégicas de Lyell — de um processo de “evolucio”. ‘Uma variacdo assim lenta e fleugmatica adap- ta-se bem & maneira de ser dos ingleses, mas nao corresponde & Natureza. Para apoiar a teoria recorre-se a milhdes de anos, uma vez que dentro dos periodos de tempo mensura- veis nada se revelava désse processo, Mas na verdade nao poderiamos distinguir as diver- sas camadas geolégicas se nao houvessem si- 0 HOMEM EA TECNICA 59 do elas separadas uma das outras por catas- trofes de natureza e origem desconhecidas; e nao poderiamos conhecer as espécies das criaturas fésseis se estas no tivessem apare- cido de stibito, mantendo-se invaridveis até a sua extinc&o. Nada sabemos dos “antepassa- dos” do Homem, a despeito de todas as nos- sas investigagées e da anatomia comparada. © esqueleto humano desde que apareceu tem sido exatamente o que é hoje. Em qualquer reuniao popular podemos encontrar até o ho- mem de Neandertal. %, pois, impossfvel que a mao, a postura erecta do corpo no marchar, a posicéo da cabega e o mais.que segue se tenham desenvolvido sucessivamente e de ma- neira independente. A coisa téda aparece junta e de repente (*). A historia do mundo ©) Quanto a essa “evolugiio”, em geral afirmam os darwi- ‘que # posse de ermas tSo admiriveis como essas favoreceu © comservou a espécie na luta pela Vida. Mas o certo ¢ que 28 fa arma JA completamente formada poderla constituir uma ‘vanta- gem. A arma, durante 0 processo de evolugio — ¢ dizem que esse process durou milénias ~ teria sido uma carga indtil e te- ra trazido mals prejulzes que benelicios & espécie, Como ima- Ginar.o inisio de tal evolugho? Esta caca das causas ¢ dos efet- tos, que no fim de contas so formas do penstmento humano, e noo do vir-a-ser do mundo, torna-se um tanto imbecil se espe- rormos penetrar com cla nos segredos désse mundo. ‘OSWALD SPEN avanga de catastrofe em catastrofe, quer pos- samos compreender e provar o fato, quer nao. A isso chamamos hoje, segundo A. de Vries, Mutagéo ('). E uma mudanga interior que subitamente se apodera de todos os exempla- res duma espécie, naturalmente “sem-tom- nem-som”, como tudo mais que se passa na realidade. & 0 ritmo misterioso do real. Mais ainda: nao s6 a mio do homem, a marcha e a postura devem ter surgido jun- tas, como também — e éste ponto ninguém até hoje observou — a mio e o instrumento. A mio inerme nao tem utilidade por si s6. Exige uma arma para se transformar ela mes- ma em arma, Assim como os instrumentos foram modelados de acérdo com a forma da mao, a m&o tomou também a configuracio do instrumento. E insensato procurar separd- los a ambos no tempo. % impossivel que a mao jé formada tenha exercido atividade, Tesmo que por curto tempo, sem o instru- mento. Os mais remotos restos humanos e 0s (1), H. de Vries: Dle Matationstheorie (1901, 1903) (A ‘Teoria da. Mutagio). \_ TEC! mais remotos instrumentos tém a mesma idade. O que se dividiu, entretanto — nao cro- nolégica mas logicamente — foi 0 procs so técnico, de sorte que a producio do ins- trumento e 0 seu uso sfio coisas diferentes. Assim como existe uma técnica de fabricar yiolinos e outra de tocar-violino, do mesmo modo ha uma técnica de construir navios e outra de navegar, — a arte de fazer bestas ea arte de manejé-las. Nenhum outro animal de vapina escolhe jamais suas armas. Mas 0 homem ndo s6 escolhe como também as faz, de acérdo com suas idéias individuais. Com isso obtém uma tremenda superioridade na luta contra seus semelhantes, contra os ou- tyros animais e contra a Natureza. Isso significa sua liberac&io da coacdo da espécie — fendmeno tnico na historia de t6- da a vida déste planeta. Com isso 0 homem comeca a ser, Faz sua vida ativa em larga eseala indepéndente das condicées do corpo. O instinto ‘genérico ainda persiste com plena forea, mas déle se separou um pensamento e uma acao inteligentes que nao dependem da espécie. Essa liberdade consiste na liberdade OSWALD SPENGLER de eseolha, Cada um fabriea as suas pro- prias armas, de acérdo com sua habilidade e raciocinio préprios. O descobrimento de gran- des acervos de instrumentos falhos e abando- nados sao testemunhos eloquentes do cuida- do désse primitivo “fabricar conciente”. Se, a-pesar-de tudo, ésses espécimes siio tao semelhantes que — embora com justifi- cacio duvidosa — possamos deduzir a exis- téncia de “culturas” diferencdveis, como a acheulense e a solutrense, e até mesmo che- gar dai a estabelecer — desta vez certamente sem justifieacio — paralelos de tempo nas cineo partes do mundo, deve-se isso ao fato de que essa liberagio da coacio da espécie surgiu a principio apenas como uma grande possibilidade e esté muito longe de ser indi- vidualismo ji realizado. Ninguém gosta de parecer extravagante, nem tampouco de imi- tar os outros. De fato, cada qual pensa e tra~ balha para si mesmo, mas a vida da espécie é tao poderosa que a despeito disso o resul- tado 6 semelhante em tddas as partes — co- mo no fundo acontece até mesmo hoje. Assim, pois, além do “pensamento dos olhos”, do olhar agudo e compreensivo dos © MOMEM BA TECNICA Ss _# grandes animais de rapina, temos agora 0 “pensamento da mio”. Do primeiro desen- volveu-se nesse entretempo 0 pensamento, que é teérico, contemplativo, observante — a “re- flexfio” e a “sabedoria”. E agora, do segun- do nasee o pensamento ativo e pratico, nossa “asticia”, a “inteligéncia” propriamente dite © élho indaga sdbre causa ¢ efeito; a mio irabatha segundo o principio dos meios ¢ ¢ fim. A questio do proprio e do imprép © critério do fazedor — nada tem a ver co: a verdade ou a falsidade, que sio os valor do observador. E um fim, um alvo, é um fa- to, ao passo que uma conexéo de causa e efeito 6 uma verdade, Dess’arte surgiram 03 diferentes modos de pensar dos homens-de- verdade — 0 sacerdote, o estudioso, o filéso- fo — e dos homens-dos-fatos — 0 politico, o general, 0 comerciante. Desde entéo, pois, até mesmo. nossos dias, a milo que comanda, que dirige, a m&o de punhos cerrados é a ex- pressiio de uma vontade. Tanto, é assim que temos realmente uma grafologia e uma qui- rosofia, para nao falar em figuras de lingua- gem como o “punho de ferro” do conquista- 64 i OSWALD SPENGLER dor, a “mao habil” do financista e a “mao” do artista ou do criminoso. Com a mao, sua arma, e com 0 seu pen- samento pessoal o homem chegou a ser cria- dor. Todos os animais permanecem dentro dos limites da atividade da espécie e nfo en- riquecem de modo nenhum a sua vida. Entre- tanto o Homem, o animal criador, espalhou por todo o mundo tais tesouros de pensamen- tos inventivos que éle parece perfeitamente autorizado a dar & sua breve histéria 0 no- me de Histéria Universal, e a olhar o que 0 cerca como “humanidade”, tendo o resto da natureza como um fundo, um objeto e um meio. A atividade da mao pensante chamamos. feitos. J& existe atividade na existéncia dos animais, mas os feitos s6 comegaram com 0 Homem. Nada caracteriza melhor essa dife- renga que a histéria do fogo. O Homem vé (causa e efeito) como surge o fogo, e 0 mes- mo véem muitos dos animais. Mas sé 0 Ho- mem (fim e meios) pensa num processo para provocar 0 fogo. Nenhum outro ato nos dei- xa como ésse a impress&o do sentido da cria- cio. Um dos mais fantasticos, violentos e © HOMEM E A TECNICA 85 enigmaticos fenémenos da Natureza — o raio, 0 incéndio da floresta, o vulcio — é chamado a vida pelo proprio Homem, contra a Natureza. Que se teria passado na alma do Homem quando pela primeira vez éle viu o fogo que sua prépria mio provocara? 5- OT. A SEIS OB a impressio poderosa désse ato singu- lar, livre e conciente, que assim emerge da uniforme “atividade da espécie”, ativida- de essa impulsiva e coletiva, tomou forma a alma humana verdadeira, alma mui solitaria (mesmo comparada com a dos outros, animais de rapina), cheia de expresso pensativa ¢ orgulhosa, alma de quem conhece o seu pré- prio destino; alma dotada dum incoerciyel sen- timento de poderio que se concentra no punho habituado aos feitos; alma inimiga de todos; alma que mata, que odeia, decidida & con- quista ou 2 morte. Essa alma é mais profun- da e mais apaixonada que a de qualquer ou- tro animal, Acha-se ela em oposicao irrecon- cili4vel ao mundo inteiro, do qual a, separa seu proprio carater criador. 6 a alma de um rebelde. O homem primitivo preparava sua gua- rida, solitério como uma ave de rapina, Se varias “familias” se reuniam num bando, era 0 HOMEM E A TECNICA a um bando da forma mais livre e frouxa. Nao se podia-falar ainda em tribus e muito me- nos em povos. Essa horda é uma reuniao aci- dental de uns poucos machos — que dessa vez nao lutam uns com os outros, —e de suas mulheres e dos filhos dessas mulheres. N&o tém sentimento de comunidade. Vivem em perfeita liberdade. Nao constituem um “nds” como o simples rebanho composto de exem- plares duma espécie. A alma désses solitdrios fortes 6 total- mente guerreira, desconfiada, ciosa de sua propria forca e de suas pri Ela conhece © sentimento nao s6 do “eu” como do “meu”. Conhece também a embriaguez dos sentidos quando a faca corta a carne do inimigo, quan- do o cheiro.de sangue e a sensacdo de espan- to penetram juntos a alma triunfante. Cada “homem” verdadeiro, mesmo nas cidades dos periodos superiores das Culturas, sente em si mesmo de tempos em tempos os fogos ador- mecidos dessa alma primitiva. Nao ha aqui o menor vestigio dessa lamentavel estimacaio das coisas eomo “titeis” e “economizadoras de trabalho” e muito menos désse desdentado sen- timento de compaixiio, reconciliagao e désse 68 OSWALD SPENGLER anseio de paz. Em vez, porém, disso, hé o profundo orgulho de se saber temido, admi- rado e odiado pela sua ventura e pela sua forca, e a necessidade urgente de vinganca com relacio a tudo, tanto aos seres vivos co- mo As coisas — pois todos constituem, pelo simples fato de existirem, uma ameaga a ésse orgulho, E essa alma avanca cada vez mais, num sempre crescente alheamento de téda a Na- tureza. As armas dos animais de rapina sio naturais, mas o punho armado do homem com a sua arma artificialmente feita, medi- tada e escolhida, nfo é natural. Aqui come- ga a “Arte” como conceito contraposto a “Natureza”. Cada processo técnico do homem é uma arte e sempre foi descrito como tal; assim temos, por exemplo, a arte de atirar com 0 arco, de cavalgar e de guerrear. As artes da construgio, do govérno, do sacrificio, da pro- fecia, da pintura, da versificacfio, da experi- mentacio. cientifica... Cada obra do homem é artificial, antinatural, desde a producdo do fogo até as criacdes que, nas Culturas supe- riores, sio especificamente consideradas “ar- arr an wes © HOMEM B A TSCNICA 6, tisticas””. O Homem arrebatou a Natureza © privilégio da criagio. A “vontade livre” é em si nada menos que um ato de rebeldia. O homem criador se libertou dos lacos da Na- tureza e com cada criagio nova se afasta ca- da vez mais dela, torna-se cada vez mais seu inimigo. Isso 6 “Hist6ria Universal”, a historia de uma dimensio fatal que se ergue, ineoercivel, sempre crescente, entre o mundo do homem e o universo — a histéria de um rebelde que cresce para erguer a mio contra a prépria mie. Aqui principia a tragédia do homem porque a Natureza é o mais forte dos dois, O Homem continua a depender dela, porque a despeito de tudo ela o inclue, como a tudo mais, no seu seio. Tédas as grandes Culturas sio derrotas. Racas inteiras, interiormente destruidas e quebrantadas, permanecem en- tregues 4 esterilidade e 4 decomposic¢io es- piritual, como caddyeres abandonados no campo. A luta contra a Natureza é uma luta sem esperanca, e no entanto o homem a leva até o amargo final. CAPITULO IV O SEGUNDO ESTADIO: FALAR E EM- PREENDER © “fazer” coletivo. — Hé quanto tempo i se fala com palavras? — Finalidade da lin- guagem: a emprésa coletiva, — Finalidade da emprésa: exaltagio da poténcia humana, — Separagao do pensamento e da mao: 0 traba- tho do diretor 0 trabalho do executor. — Ca- becas ¢ méos: a hierarquia dos talentos, — Organizagéo. — Existéncia organizada: esta- do € pove, politica e economia, — A técnica € 0 mimero*dos homens. — Personalidade e ‘massa. remy" SETE Q)e4x70 tempo durow a era da mio armada —isto 6, desde quardo o ho- mem é homem? Nao sabemos. Seja como for, o total de anos nao importa, embora hoje ainda o estimemos em cifra muitissimo ele- vada. Nao é um assunto de milhdes de anos mem mesmo de varias centenas de milhares, Nao obstante, devem ter transcorrido muitos milénios. Verifica-se agora, porém, a segunda mu- danea que marcou época. Foi tao abrupta e imensa como a primeira, e como ela transfor- mou o destino do homem desde os alicerces. Foi mais outra verdadeira “mutagao” no sen- tido anteriormente explicado. A arqueologia prehistérica observou isso faz muito tempo, e de-fato as coisas que se acham em nossos mu- seus de sibito comecam a ter um aspecto di- ferente. Aparecem vasos de barro, tracos de “agricultura” e “criagho de gado” (embora se empreguem aqui impropriamente ésses ter- 76 ‘OSWALD SPENGLER mos que designam coisas muito mais moder- nas), construcdéo de cabanas, sepulturas, indi- cagées de viagens. Um novo mundo de idéias técnicas e de processos se anuncia. Do ponto de vista dos museus — excessivamente super- ficial e obcecado pela simples ordenzgaio dos achados — foi feita a distingiio de duas Ida- des da Pedra, a mais velha e a mais nova, a paleolitica e a neolitica. Esta distincéio, po- rém, hd muito tempo vem sendo olhada com inquietantes diividas, e nestes tltimos decé- nios se fizeram tentativas para substitui-la por outra. Os estudiosos, porém, se apegam ainda A idéia da classificagio de objetos (co- mo indicam termos como mesolitico, mioliti- co, mixolitico) e dai nao vio para diante. O que mudou nao foram os utensilios, mas sim o Homem. &, uma vez mais, apenas par- tindo de sua alma que se pode destobrir a his- téria do Homem. Podemos fixar a data dessa mutaciio com razofvel preciso se a situarmos 14 pelo quinto milénio antes de Cristo (*). Dois mil @) Segundo as pesquisas de De Geers em t8eno da ceri smnica listada da Suécia, (Reallexikon der Vorgeschichte). 0 HOMEM EA TECNICA aT anos mais tarde, quando muito, as Culturas superiores comecam no Egito e na Mesopo- tamia. Na verdade, o ritmo da histéria se processa tragicamente. Até ent&io milhares. de anos quasi nfo contavam absolutamente; agora, porém, cada século se torna importan- te. Em saltos violentos a pedra se aproxima rolando do abismo. Mas na verdade, que foi que aconteceu? Se nos aprofundarmos mais neste novo mundo de formas das atividades do homem, logo perceberemos as mais fantasticas e com- plicadas das relacdes. Em todas essas técnicas, uma pressupée a existéncia da outra. A ma- nutengao de animais domesticados exige 0 cultivo de forragem, a semeadura e colheita de plantas nutritivas requerem por sua vez a existéncia de animais de tiro e de carga; estes, por seu turno, pressupdem a construcio de cercados. Cada tipo de edificagio exige a preparacio e o transporte de materiais; e © transporte, por sua vez, requer estradas, animais de carga e barcos. Que é, em tudo isso, a transformagiio “espiritual”? A resposta que ofereco aqui esté: — ag&o coletiva por meio, de plano. Ps 8 OSWALD SPENGLER Até ent&éo cada homem tinha vivido sua pré- pria vida, feito suas préprias armas, seguido sua propria tatica na luta didria. Ninguém precisava do préximo. Tudo isso, porém, mu- da subitamente. Os novos processos ocupam longos perfodos de tempo; em alguns casos, anos inteiros. Pensemos, por exemplo, no tem- po que decorre entre a derrubada de uma arvore e a partida do bareo que com ela se construiu. A histéria se divide numa série de “atos” separados e bem ordenados e de “en- redos” que se desenvolvem paralelamente uns aos outros, Para ésse proceso coletivo a con- dic&o prévia indispensdvel era um meio — a linguagem. O falar em frases e palavras, portanto, nao pode ter comecado antes nem depois, mas deve ter surgido entéo — rapidamente como tudo quanto é decisivo e, além disso, em es- treita conexio com os novos métodos do ho- mem. Pode-se provar isso. Que vem a ser “falar”? 1 sem diivida um processo que tem por finalidade fornecer informagiio, uma atividade que é exercida continuamente por uma quantidade de séres © HOMEM E A TECNICA Bia iia Silat ilin | humanos. O “discurso” ou “linguagem” é apenas uma abstracio disso; é a forma inte- rior (gramatical) do falar e, portanto, das palavras. Essa forma deve ser propriedade comum e ter uma certa permanéncia para que possa servir de meio de informagio. Demons- trei em, outra parte que o falar em sentengas precedido de formas mais simples de co- municagao, tais como simbolos visuais, sinais, gestos, gritos de adverténcia e ameaga. Todas essas coisas continuam a existir ainda em nos- sos dias, como auxiliares da palavra, na me- lodia da dicgio, na énfase, no jégo de gestos e (no discurso escrito) na pontuagio. Nao obstante, o falar “fluente” é, por forea do seu contetido, qualquer coisa de com- pletamente novo. Desde Hamann e Herder vém os homens propondo a si mesmos a ques- tao da origem da linguagem falada. Mas se tédas as respostas oferecidas até hoje nos pa- recem pouco satisfatérias é porque a intengao da pergunta foi mal compreendida, Porque a origem da linguagem em palavras nao se pode encontrar na atividade mesma do falar. Esse foi o érro dos romanticos que — alheios como sempre A realidade — queriam derivar OSWALD SPENGLE o idioma da “poesia primordial” da humani- dade. E mais ainda: achavam éles que a pr6- pria linguagem j4 em si mesma era essa poe- sia original. — mito, poema e oragio, tudo a um tempo — e que a prosa era simplesmente qualquer coisa de posterior que se degradara para se acomodar ao uso comum de cada dia. Mas se tivesse sido assim, a forma intima da linguagem, a gramftica, a construgiio légica da sentenga, deveria ter um aspecto comple- tamente diferente. Na realidade sao precisa~ mente os idiomas primitivos, como os das tri- bus bantis e tureomanas, que mostram de maneira mais acentuada a tendéncia de mar- car diferengas claras, incisivas e inequivo- cas. (*) Isso por sua vez nos leva ao érro funda- mental désses inimigos declarados do roman- ticismo, os racionalistas, que vivem eterna~ mente apegados 4 idéia de que a sentenca exprime um juizo ou pensamento. Sentam-se éles a suas mesas-de-trabalho, cercados de li- (2) Tanto € assim que em muitas linguas a sentenga € uma palavra Galca e monstruosa na qual, por melo de prefixos © suc fixos classificativos, colocados em ordem regular, se exprime o ‘que se quer dizer. vros, e poem+se a fazer minuciosas investiga- cdes sdbre seu proprio modo de pensar e es- crever. Em consequéncia disso o “pensamen- to” se Ihes apresenta como o fim da lingua- gem falada e — como de hébito ésses pesqui- sadores fazem meditagées solitarias — esque- cem-se @les de que além do falar, existe o ouvir, além da pergunta ha a resposta, além do eu esté o tu. Quando dizem “linguagem” pensam no discurso, na conferéncia, na, dis- sertagfio. Sua opiniiio sobre a origem da lin- guagem 6 portanto falsa, pois éles a encaram como monélogo. A maneira correta de tratar o problema no 6 procurar saber como mas sim quando apareceu a linguagem em palavras. E uma vez formulada a pergunta, tudo em breve se esclarece. O fim da linguagem em sentencas, habitualmente mal compreendido ou ignora- do, 6 estabelecido pelo periodo em que se tornou um costume o falar assim (isto é, “fluentemente”) e revelado com absoluta clareza na forma de construir a oragiio. A linguagem nao nasceu por meio do monélogo nem as sentengas seguiram os ca- minhos da oratéria. Ela nasceu da conversa- son 82 | OSWALD SPENGLER cao entre varias pessoas. Sua finalidade nao 6 uma compreensio baseada na reflexio, mas sim um entendimento reciproco em conse- quéncia de pergunta e resposta. Quais sao, pois, as formas basicas da linguagem? Nao o juizo nem a declaracdo, mas sim a ordem, a expressio de obediéncia, a enunciacio, a per- gunta, a afirmacdo ou a negagaio. Eram sen- tencas originalmente bastante breves e inva- riavelmente dirigidas a outros, tais como “Fa- ga isto!” — “Pronto?” — “Sim!” — “Va- mos!”, As palavras como designadoras de conceitos (*) sdo apenas produtos da finali- dade da sentenga, de sorte que o vocabulario de uma tribu de cagadores é desde 0 inicio diferente do de uma aldeia de pastores ou do de uma populacio que habita a beira do mar. Originalmente o falar era uma atividade di- ficil e pode-se ter como certo que éle estava limitado ao estritamente necessdrio. Mesmo em nossos dias 0 camponés 6 pareo de pala- vras, comparado com 0 homem da cidade — @) © coneeito € a ordenagho de coisas, situaghes e ativi- ddades em classes de generalidade “prética’. O criador de cavalos néo diz nunca "cavalo", mas sim “egua tordilha”, “potro bato’, ete... F 0 HOMEM E A TSCNICA 83 que esta téo acostumado a falar, que nio po- de calar a béca e 6 capaz de, por mero des- fastio, tagarelar e entabular conversacéio quando nao tem nada que fazer, tenha ou nio tenha o que dizer. A finalidade primitiva da linguagem‘é a execugao de um ato, de acdrdo com uma intengio, tempo, lugar e meio. A construgio clara e inequfvoca do ato é o primeiro ele- mento essencial; e a dificuldade de fazer-se compreender, de impor aos outros a nossa yontade, produz a técnica da gramatica, da formagao de oragGes e construcées, os modos corretos de dar ordens, fazer perguntas, res- ponder, formar classes de palavras — tudo ‘isso baseado em intengdes e propositos pra- ticos e nao teéricos. O papel representado pela meditacio teérica nos prinefpios da line guagem falada foi praticamente nulo. Todo o falar era de natureza pritica e procedia do “pensar da mio”. ’ OITO Ay ‘A859 soletiva por meio de plano” se pode dar o nome mais curto de “em- présa”. A relagio que existe entre o falar ¢ 0 empreender é precisamente a mesma que existia antes entre a mio € o instrumento. O falar entre muitas pessoas desenvolveu sua forma interna gramatical na execucdo das emprésas; e, viceversa, o costume de levar a cabo tarefas se disciplinoy mediante 0 méto- do de um pensamento que lidava com pala- vras. Porque o falar consiste em comunicar alguma coisa ao pensamento de outrem. Se o falar 6 um ato, 6 sem diivida um ato intelec- tual com meios sensiveis. Muito em breve deixa de precisar da primitiva relac&io ime- diata com o ato fisico. No quinto milénio antes de Cristo uma inovaciio mareou época: o pensar, o intelec- to, a raz&o ou como quer que chamemos a is- 50 que, por meio da linguagem, se emancipou 0 HOMEM © A TRCNICA 85 da dependéncia da mao ativa — apareceu co- mo uma férca em si mesmo ante a Alma e a Vida. A reflexéo puramente intelectual, o “cAleulo” que nesse ponto surgiu — sibita, decisiva e radicalmente — consiste nisto: em que a acio comum é uma unidade tao defini- da como seria a agio pessoal de um gigante. Ou como Mefistéfeles diz ironicamente a Fausto: . +++ Mereo seis ureos, de seis urcos a férea ajunto 4 minha, Levo-me pelo ar, porque possuo ‘mais vinte e quatro pés... (1) O homem, animal de rapina, insiste con- cientemente em aumentar sua superioridade muito para além dos limites de sua forca cor- poral. A ésse seu desejo-de-mais-poder éle sa- crifiea até um elemento importante de sua pré- pria vida. O pensar e o calcular um efeito maior 6 0 que vem em primeiro lugar. E pa- ra conseguir isso éle se dispée a sacrificar um pouco de sua liberdade pessoal. Por dentro, entretanto, 0 homem se conserva indepen- (1) Goethe — Fausto (Tradugo de Castilio). Perr PPR PEO eR ee 86 OSWALD SPENGLER dente. Mas a Histéria nfo permite os passos a retaguarda, O Tempo, e por conseguinte a Vida, nao sao reversiveis, Uma vez habitua- do & aio coletiva e aos seus éxitos, ficou o homem cada vez mais fundamente preso a ésses vinculos fatais. O pensamento de em- présa exige um dominio cada vez mais firme sobre a vida da alma. O homem se tornou escravo do préprio pensamento. O passo que vai do uso dos instrumentos pessoais 4 emprésa comum implica numa ar- tificialidade crescente do procedimento. O simples trabalhar com material artificial (co- mo na ceramica, na tecelagem e na arte de fa- zer esteiras) nao significa ainda grande coisa, embora esteja muito mais impregnado de es- pirito e seja muito mais criador do que tudo quanto ficou para tras. Chegaram, porém, até nés vestigios de uns poucos processos que pressupdem de-fato grande forga mental e que se acham bastante acima dos muitos de espé- cie ordin4ria a respeito dos quais hoje nada podemos saber, Temos, sobretudo, os que nasceram da idéia de construir. Muito antes de qualquer conhecimento dos metais, havia minas de pederneira na Bélgica, Inglaterra, 4 OQ HOMEM EA TSONIGA, at Austria, Sicilia e Portugal; minas que certa~ mente remontam a ésse tempo; minas com pogos e galerias, com ventilacao, drainagem e instrumentos feitos de cornos de cervo ('). No perfodo neolitico inferior, Portugal e o noroeste da Espanha tinham estreitas ligagoes com a Bretanha (contornando a Franga me- ridional) e a Bretanha por sua vez tinha co- munigées com a Irlanda. Essas relacdes su- podem uma navegacio regular e portanto a construgao de navios capazes de enfrentar o mar, a-pesar-de nao termos déstes o menor conhecimento. Existem na Espanha edificios megaliticos de pedra lavrada de proporcdes gigantescas com cobertas que pesam mais de cem toneladas e que devem ter sido trazidas de muito longe e colocadas em seus lugares segundo uma técnica para nés desconhecida. Sera que na verdade compreendemos bem o que de reflexio, consultas, fiscalizagdo e or- dens foi necessério durante meses e anos sem fim para se poder extrair o bloco, para tras- ladé-lo, para distribuir as tarefas no tempo e (Ay Reallesikon dee Vorgeschichte (Dicionérig de. Prehisto- ria) ~ Tomo 1, Verbete: Bergbeu (mintrio). 88 _.: OSWALD SPENGLER no espaco, para delinear o plano e para em: preender e executar um trabalho dessa: natu- reza? Como comparar a prolongada medita- cho prévia necessaria para o transporte désse bloco por alto mar com’a simples producio de uma faca de pederneira? 86 0 “areo compos- to”, que aparece nas figuras pintadas em 1 chas, na Espanha, requer para sua constru- c&o, tendées, cornos e madeiras especiais, to- dos de origens diferentes, e ao-mesmo tempo um eomplicado processo de manufatura que levava de cinco'a sete anos, Ea “invengiio”, como ingenuamente dizemos, do carro — quanto pensamento, quantas ordens e quanta atividade ela pressupde, desde a determina- cao do propésito’e da espécie de movimento exigidos, da escolha e preparagio da estrada (um ponto habitualmente esquecido), da cap- tura ou domesticag&o dos animais pata a tra- céio — até as consideracdes a respeito do ta- manho, péso e amarramento da carga e da di- reco e abrigo de um combéio! Um outro mundo absolutamente diferen- te de criagdes surge da “idéia” de procriagio — a saber, a criac&io de plantas e animais 0 HOMEM BA THONICA ‘89, mediante a qual o homem se faz representan- te da Natureza criadora, imitando-a, modifi- cando-a, melhorando-a e violentando-a. Des- de o tempo em que o homem comecou a cul- tivar em vez de apenas apanhar as plantas nao ha diivida que éle as tem modificado con- cientemente de acérdo com seus propdésitos. Em todo_o caso os achados prehistéricos de exemplares vegetais pertencem a espécies que nunca foram encontradas em estado sel- vagem. Mesmo nos mais antigos achados de ossos de animais que indicam alguma forma de criago de gado, percebemos jA as conse- quéncias da “domesticacio”, a qual em parte, se nfo no todo, deve ter sido intencional e foi conseguida por meio de uma criac&o (*) de- liberada. O conceito-de-presa do carnivoro se amplia e inclue nao apenas as vitimas mor- tas na cacada, mas também o rebanho selva- ge que pasta em liberdade dentro (ou mesmo fora) dos cercados erguidos pela mo do ho- (1) “Hilzhelmer: Natiliche Rassengeschichte der Haussiiufe- tiere ~ 1926 (Histéria Natural das Ragas dos Mamiferos Domés- tcos).

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