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O SONO DOGMATICO
DEFREUD
Kant, Schopenhauer, Freud
Pierre Raikovic

Jorge Zahar Editor


O SONO DOGMÁTICO gumentação que não pondera sobre os aná-
DEFREUD temas que pronuncia?
Ka_nt, Schopenhauer, Freud
Em meio ao turbilhão de ataques lançados
Uma resposta da filosofi a à psicanálise e por Freud contra a filoso fia, percebe-se que
uma tentativa de elucidàr filosofi camente o o único filósofo a merecer elogios de sua
conceito de inconsciente: são esses os obje- parte é Schopenhauer. Claro, há também
tivos do psiquiatra e filósofo Pierre Raikovic Kant - em quem Freud buscou várias ve-
. neste livro polêmico e corajoso. zes apoiar-se -, mas logo se constata que é
unicamente a visão schopenhaueriana de
Segundo o autor, ao buscar uma autonomia
epistemológica para a psicanálise, Freud Kant que lhe motiva as alegações. Porém,
Schopenhauer é uma fonte peculiar: ele é o
teria tentado de todas as maneiras desvin-
·primeiro a tentar uma sistematização da
culá-la da filosofia. E mais que o fato de
perspectiva antifilosófica e, por esta razão,
rejeitar posições distintas das suas, surpre-
é o autor que Pierre Raikovic toma como
enderia a veemência com que Freud o faz:
base para sua empreitada.
aqueles que não apreendem a realidade como
ele cometem tantos erros, e se entregam de Este livro investiga os caminhos que leva-
tal forma à ilusão, que se tomam presas de ram Freud a acreditar que podia questionar
processos psicopatológicos. a relação da psicanálise com outros siste-
mas de pensamento que não se identifica-
Ao mesmo tempo que a descreye como pato-
vam com o seu. Mesmo porque, a despeito
lógica, Freud sustenta que a filosofia jamais·
da evidente insuficiência de sua argumen-
levou em consideração aquilo que, no pen-
tação. o freudismo nã.o teria recebido de seu
samento, escapa à consciência. A psicanálise
adversário filosófico uma verdadeira re.~pos­
veria nesta pretensa carência uma razão a
ta. Ora, isto que parece uma hesitação da
inais para afinnar que a metafísica sempre
fi losofia condenaria Freud a permanecer
se absteve de ir a fundo na questão do pen-
como um corpo estranho na história das ma-
samento, nada fazendo senão perseguir qui-
nifestações do espírito.
meras.
A partir do momento em que recusamos, com
o autor, a considerar evidente a autonomia PIERRE RAIKOVIC, psiquiatra e fil ósofo, fa-
que Freud reivindica para sua reflexão, tor- leceu em 1993.
na-se necessário buscar as condições do
surgimento desta última. Como seria possf-
vel admitir, sem submetê-las a exame, as
conclusões de um saber que afirma não ter
outra fonte senão ele próprio e que, para jus-
tificar a ambição de existir apenas per se,
chega ao ponto de depreciar qualquer outra
atividade do espírito por meio de uma ar-
Pierre Raikovic

O SONO DOGMÁTICO
DEFREUD
(Kapt, Schopenhauer, Freud)

Tradução:
TEilESA RESENDE

Revisão técnica:
M ARCOS COMARU
~stn em reoria
psíauttJlítica. UFRJ

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
Título original:
ú sotntneil dogmatique .de Freud
(Kant, Schopenhoutr, Freud)
· Tradução autorizada da primeira edição francesa.
publicada em 1994 por SyntMlabo, de Le Plessis-Robinson.
França. na coleção Les Empê<:heurs de Penser en Rond
Copyright @ 1994, Les Empêcheurs de Penser en Rond
Copyright Q 1996 da edição para o Brasil:
Jorge Zahar Editor Ltda.
rua M~xico, 31 sobreloja
20031-144 Rio de Janeiro, RJ
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ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 5.988)

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Uvros, RJ.

Raikovic, Pierre .
· R 129s O sono dogmático de Freud: (Kant, Schopen-
bauer, Freud) I Pierre Raikovic; tradução Teresa
Resende Costa; revisão técnica Marcos Comaru. -
Rio de J:llleiro: Jorge Zahar Ed., 1996
(Tr:lllsmissão da psicanálise).
Tradução de: Le sommeil dogrnatique de Freud:
( Kant, Schopenhauer, Freud).
ISBN 85-7110-372-0
1. Freud, Sigmund. 1856-1939. 2. Psicanálise
e filosofia. I. Titulo. 11. Série.
CDD - 150.1 952
96- 1472 CDU - 159.964.2
Sumário

INTRODUÇÃO, 7

I. A POLÊMICA ANTIFILOSÓFICA DE FREUD, 11


A filosofia e o problema do inconsciente, 14

ll. A PRESENÇA SCHOPENHAUERIANA NO TEXTO FREUDIANO, 22


Fara da se, 22
A acusação de plágio, 24
A atração por Schopenhauer, 26

llt. UMA LóGICA DA APARêNCIA, 54


O inconsciente: uma idéia transcendental, 55
O kantismo segundo Schopenhauer, 79
O freudismo, avatar do kantismo, 82

IV. A ARMADILHA DO IRRACIONAL, 92


O período racionalista, 92
A inversão do pensamento freudiano, 116
O questionamento da natureza humaTUJ da mulher, 126
Um breve retorno do racionalismo, 140

CONCLUSÃO, 150
•• O trabalho teórico - e disso me convenço cada dia
mais- faz pelo mundo mais do que o trabalho prático;
se o mundo das idéias for revolucionado, a realidade
não poderá pennanecer tal qual é."

Hegel, 2~ de outubro de 1808


"Carta a Niethammer"
Introdução

A filosofia não esclareceu verdadeiramente o sentido do processo que


Freud intentou contra ela, quando sustentou ser este campo privado
de qualquer afinidade com o real e proceder de modo delirant~ com
relação à atividade do espírito. Posta diante de tal desafio, a filosofia
não reiterou, desta vez, aquilo que jamais deixou de fazê-lo desde
que se viu acusada de um antifilosofismo cuja origem é tão remota
quanto o ceticismo e a sofística dos gregos: não tanto para elaborar
uma refutação dos argumentos do adversário, mas antes para reanimar
- valendo-nos aqui de uma fonnutação de Husserl - "a luta contra
o ceticismo[ ...] a fim de [procurar] prendê-lo, num espírito realmente
radical, a suas raízes principais últimas e, a partir daí, subjugá-lo
definitivamente". 1 Em outras palavras, a reflexão filosófica não pôde
superar uma tal hostilidade,2 uma diferença tão radical. Um pouco de
luz pode fazer-se sobre esta inaptidão - que por si só já merece uma
reflexão - , se lembranno-nos de uma observação de Eric Weíl em
que este, vendo no homem duas possibilidades, a violência e o discurso,
assinala, a propósito da violência que se fez discurso, que ela "é um
problema para a filosofia (ao passo que) a filosofia não é um proble-
ma para a violência que debocha do filósofo ou o afasta quando o
encontra atravancando o caminho não delineado que, por si, é a sua
realidade" .3
Face à polêmica de Freud, a filosofia demonstrou principalmente
querer pôr-se a salvo do problema, como se ela houvesse percebido
que este novo adversário lhe armasse uma cilada parecida com a que
Royer-Collard via ocultada por um ceticismo a que predizia vitória
certa em caso de enfrentamento com a filosofia: "Não se reservou ao
ceticismo sua parte: tão-logo penetrou no entendimento, ele invadiu-o
c~mpletamente." 4

7
8 o sono dogmático de Freud

Quando se coloca a questão da psicanálise, a tilosofia pode


exprimir-se de maneiras diversas, mas estas se encontram todas no
âmbito da abstenção. Ou bem a filosofia ignora o texto freudiano e,
intcrpel_ada sobre o assunto, responde que sua essência a desobriga
de elucidar-lhe a relação com a obra de Freud, ou bem ela desconhece
o alcance e a especificidade dos enunciados psicanalíticos, reconhe-
cendo-se, então, nela, algo como uma complacência face a certas
conclusões freudianas que lhe reclamam, no entanto, uma tomada de
direção nosográfica, e daí seu aniquilamento. Exemplo desta atitude
da filosofia é o caminho seguido por certos comentaristas contempo-
râneos que levam a sério, mas de forma não suficientemente crítica,
o texto psicanalítico. Apesar do anátema proferido contra a filosofia
desenvolver-se de acordo com raciocínios que não participam de um
modo filosófico do pensar, estes filósofos, leitores de Freud, desejam
que a filosofia retire de si, tais quais lições, aquele ensinamento que
é, nas suas palavras, necessário para que cesse a adequação que um
deles vê entre a modernidade e "a anulação que atinge o pensamento
filosófico" .5 Para chegar-se a tal situação, seria necessário que a
filosofia se entregasse a uma leitura resignada dos textos de Freud,
que não se aplicasse a fazer-lhes a crítica interna, numa palavra, que
não se visse forçada a explicá-los.
O ensaio qu'e P. Ricoeur consagrou aos textos do fundador da
psicanáli se reflete com bastante clareza esta disposição de espírito.
Além do m~s; trata-se da única obra conseq üeote- em líng~a francesa
- que um filósofo tenha consagrado a Freud depois de um ensaio
filosófico- único e exclusivo - publicado trinta anos antes.6 Dado
o renome do autor, o texto de Ricoeur pôde ser considerado como
uma espécie de reconhecimento da psicanálise pela filosofia. Seu autor
admite logo de saída que a filosofia deve reconhecer-se mutilada, que
o Cogito acha-se ferido depois do encontro com o freudísmo. O co-
mentário faz com que apareçam pontos obscuros e incoerências no
seio do texto freudiano; P. Ricoeur, a todo instante, parece querer
encontrar a razão disso, não numa carência de Freud, mas na ilusão
em que nos teria feito cair um modo pré-psicanalítico do pensar que
jamais deixou de orientar nosso entendimento no sentido de uma pura
aparência. Assim, a decepção experimentada diante de umfreudismo
que se revela inapto para dar sentido ao Eu, antes de ser decepção
para a filosofia, deveria, segundo nosso autor, "ser primeiramente
atribuída ao 'ferimento' e à 'humilhação' que a psicanálise inflige a
nosso amor-próprio" .7 O filósofo que existe em P. Ricoeur parece ter
introdução 9

certo escrúpulo de ler os textos de Freud apoderando-se de razões de


ordem filosófica para circunscrever a significação da mensagem freu-
diana; dessa maneira, ele dá provas de e vidente constrangimento para
apreciar a validez do texto e m questão à luz do "eu penso, eu existo" .8
Em seu comentário, vemos P. Ricoeur confrontado com uma
atividade racional desdobrando-se à sua frente de fonna desconhecida,
mas onde ele, apesar de tudo, constata que ela visa, em última análise,
comô a filosofia, um saber integraL Do princípio ao fim de sua obra,
FREUD mostra sua determinação de esclarecer as causas e os princípios
últimos daquilo que retira dos discuros dos pacientes, na instância de
um consci~nte que podemos identificar com um condicionado. Por
sinal, a partir do aparecimento em seus textos de uma dimensão dita
"metapsicológica", constatamos que seu trabalho se orienta ainda
mais nitidamente na direção daquilo que corresponde a uma outra
espécie de Metafísica. A análise de sua leitura faz-nos ver que P.
Ricoeur percebeu o essencial da perspectiva de Freud que consiste -
assim como o interior da reflexão filosófica - no desdobramento de
uma razão da qual pode-se dizer que, à sua maneira, procura " em
algum lugar seu repouso na regressão do condicionado, o qual, na
verdade, não é ainda - em si e no que toca a seu simples conceito
- dado como real, mas pode completar a série das condições recon-
duzidas a seu princípio...9
P. Ricoeur, às vezes, chega mesmo a dar ao desmantelamento
freudiano da filosofia um estatuto que vai aLém daquele a que geral-
mente atribuímos uma hipótese da qual ainda não sabemos se será ou
não demolida. Assim, dentre as muitas ocorrências onde ele parece
ver como admissíveis as lições da psicanálise, o autor da Philosophie
de la volonté (Filosofia da vontade) deixa-se surpreender participando,
a contragosto, da destruição completa da filosofia; ele, com efeito,
confessa: " Ao fim deste processo destinado a desfazer as pretensas
evidências da consciência, eu já não sabia mais o que objeto, sujeito
e até mesmo pensamento significavam." lO
Este comentário permite compreender por que modo a, reflexão
filosófica pôde achar-se posta como questão da interpretação genea-
lógica, dando provas de uma resignação cuja fi nalidade parece ser a
de escapar de um aniquilamento, o que, no entanto, só irá conduzi-la
a desvalorização de si mesma. Quando ela parece não lembrar-se de
sua essência, a filosofia mostra-se mais pronta a comprometer-se do
que a enfre ntar a idéia da diminuição de seu públi'co. É o que observava
F. Alquié quando, querendo definir o estado de espírito da reflexão
10 o sono dogmálico de Freud

filosófica contemporânea, assinalou que, em nos nossos dias, esta,


"não desejando mais ver-se i solada [ ... }, consente .em ser contami-
nada" .11 •
Diante desta espantosa atitude da filosofia, uma questão se põe:
o que é o freudismo'? E para responder é preciso que partamos -
para examiná-lo minuciosamente- da própria polêmica antifilosófica
a fim de sabermos se, através dessa, seria possível atingir a essência
do freudismo. O modo de agressão de que se vale o psicanalista
vienense constitui, talvez, o ponto de apoio necessário para qualquer
trabalho de elucidação da psicanálise e de seu conceito primeiro, o
Inconsciente. Não tentar penetrar no interior desta subversão equiva-
leria, para a filosofia, a dar um destino a uma carência, e a deixar
que se acredite, com base na famosa expressão que anuncia "o fim
da Metafísica", não passar esta última de um ornamento ingênuo e
fora de moda.

NOTAS

I. Husscrl, E., Philosophie premiêre, trad. A.L. Kelkel, Paris. 1970, t.l, p.85.
2. Em vinude desta ausência de confrontação, a fil osofia não pôde conquistar,
aqui, aquilo que Heidegger teria chamado de sua autêntica liberdade, "aquela
liberdade (verwinden) {que} se assemelha à de um homem que 'domina' (verwun-
den) a dor e que, em vez de livrar-se dela ou esquecê-la. nela se aloja". Heidegger,
M., " Le toumant''. in Questions IV, ttad. Lauxerrois l e Roels C., Paris, t 976,
p.144.
3. Wcil, E., Logique de ln phiwsophie. Paris, 1970, p.58.
4. Citado in Brocharei, V., Les sceptiques grecs, Paris, reed. 1969, p.393. E Brochard
ainda acrescenta: "Mais um pouco e se estariam impedindo os filósofos de ocu-
parem-se de certas coisas como se impedem as crianças de brincar com fogo''
(ibidem).
5. Granier, l, Le discours du monde, Paris, 1977, p.5.
6. Dalbiez, R., La mithode psychanalytique et la doclrinefreudienne, Paris, 1936.
1. Ricoeur, P.. De l'interprélalion. Paris, 1965. p.416.
8. "Este conceito não é de Freud e de forma alguma é nossa intenção impô-lo à
leitura de Freud ou, por astúcia, achá-lo em sua obra. É um conceito que formo
para ter a compreensão de mim mesmo quando leío Freud" (íbidem).
9. Kant, E., Critique de la rai.son pure. trad. Trémesaygues, A., e Pacaud. B .•
Paris, 81 ed., 1975, p.421 .
10. Ricoeur, P .. De l'imerprétation. op. cit., pAIO.
11. Alquié, F., La nostalgie de l'êlre, Paris, 1973, p.6.
CAPÍTULO I

A polêmica antifilosófica
de Freud

Se há uma luta considerada como característica do freudismo é a que


este trava para suprimir qualquer descontinuidade entre as ordens da
normalidade e da patologia no campo da vida psíquica. Freud afirma,
com efeito, ao longo de sua obra, que nada de essencial separa o
pensamento em geral do pensamento que deixou de pertencer-se. As-
sim, desde a Traumdeutung, para.fazer aceitar a idéia de que a psi-
copatologia constitui a melhor abordagem possível da vida psíquica
normal, ele nos assegura que "a doença - aquela a que muito jus-
tamente se dá o nome de funcional - não supõe nem a destruição
do aparelho, nem a criação de novas c1ivagens internas" 1 e que, a
partir daí, " é necessário interpretá-la de maneira dinâmica, como
reforço ou enfraquecimento dos componentes de um jogo de forças
cujas funções normais dissimulam muito o efeito" .2 Este mesmo par-
tido será tomado no final de sua obra Esboço de psicanálise, quando
querendo de novo definir o campo da psicologia, Freud dá como
impossível " estabelecer cientificamente uma linha de demarcação entre
os estados nonnais e anormais" .3
Tal concepção implica, no que diz respeito ao estatuto do pen-
samento, uma posição que rompe radicalmente com a da tradição
filosófica. De fato, a instauração de uma continuidade entre o normal
e o patológico faz com que levemos a sério materiais provenientes
de um Inconsciente cujos "procedimentos [... ] não obedecem às leis
lógicas do pensamento para os quais o princípio da contradição é
nulo" .4 Ora, de acordo com a tradição da Metafísica ocidental, o
pensamento que não respeita os princípios fundamentais da lógica-
o princípio da não-contradição e o do terceiro excluído- não é mais
verdadeiramente um pensamento e só poderia fonnar conceitos con-
traditórios, julgamentos ou raciocínios ilegítimos. No livro primeiro

11
12 o sono dogmático d~ Freud

da Metafís ica, Aristóteles enuncia claramente: " O mesmo atributo não


pode ao mesmo tempo pertencer e não pertencer ao mesmo sujeito,
sob a mesma relação.'' 5 E o fil6sofo põe-se a vilipendiar aqueles que
seriam capazes de reconhecer a permanência do pensamento até no
interior dos estados patológicos, aqueles mesmos que se subtraem às ·
leis necessárias do pensamento em geral. Sustentar, diz ele, que um
pensamento delirante continua sendo um pensamento é ser um inimigo
da razão, ainda que" Homero [ ...) tenha manifestamente compartilhado
desta opinião, pois representou Heitor, delirando em conseqüência de
seu f~rimento, deitado pensando outros pensamentos, o que supõe que
mesmo aqueles que são privados de pensamento têm pensamentos,
embora não sejam estes os mesmos:•6
Em outras palavras, não reconhecer o corte entre o pensamento
normal e o pensamento patológico, recusar a aceitar as exigências do
princípio da não-contradição, fazer, portanto, coexistir os contraditó-
rios equivale, para Aristóteles, a sustentar que não há verdade nem
erro; este é um procedimento característico da Sofística, este relati-
vismo individual suscitado pelos impasses do problema da atribuição.
Podemos, dessa forma, compreender perfeitamente por que a
recusa de uma fronteira entre a loucura e a razão tenha levado Freud
a entrar em polêmica com a" fiJosofia do conceito". E não deveríamos
nos espantar com o fato de, muitas e muitas vezes, encontrarmos nos
textos do promotor da psicanálise uma condenação à. filosofia. Por
outro lado, só podemos ficar surpresos· quando constatamos os con-
siderandos. Freud recusa a filosofia enquanto esta, pMa ele, é fruto
de um processo patológico; ele identifica a filo sofia com uma desordem
que quer persuadir-nos ser sem valor, mas constituindo - em razão
mesmo de sua natureza mótbida - um perigo para a razão em geral
e para a pesquisa científica em particular. Durante esta luta, nós o
encontramos, de repente, passando em revista as tendências nonnativas
de sua disciplina que irão reforçar-lhe a argumentação. Diversas en-
tidades nosográficas são então ~xpostas em sua acepção pejorativa. É
preçiso frisar que este banimento da filosofia não constitui um desvio
no interior do discurso de Freud, mas que · este último aqui procede
. de forma interativa, em nome das regras que concemem a uma higiene
mental militante.
Em suma, paralelamente e em contradição com a abolição da
fronteira entre o normal e o patol6gico que permanece um dos deter-
minantes de sua perspectiva, vemos o fundador da psicanálise resta-
belecer uma separação definitiva entre estas duas ordens da vida psí-
a polêmica amijilosójica de Fre..d

quica, mas somente quando surge a questão da filosofia. Assim, em


19 I4, em " Introdução ao narcisismo", ele escreve que a filosofia atua
como a paranóia;7 um ano depois, em " O inconsciente", afinna dis-
cernir, neste modo de pensar, uma forma e uma matéria que caracte-
rizam a esquizofrenia: " Não se pode negar que nossa fi losofia adquire
- na expressão .e no conteúdo - uma semelhança, que não gosta-
ríamos de ver-lhe, com a maneira de agir dos esquizofrênicos," 8 Em '
1925, em "Resistências à psicanálise"9 e depois em termos quase idên-
ticos, em um texto de 1932, ele volta a colocar a filosofia no registro .
da psicose. 10
Dessa maneira, vemos Freud desacreditar a filosofia cçm um
argumento de autoridade que decide serem os mé~icos os únicos a
deter o direito de decretar se são ou não patológicas as produções do
espírito, sejam estas quais forem ; aos filósofos , nada restaria senão
ignorar a natureza psicopatológica de seus textos. Não podemos aqui
deixar de lembrar uma passagem da Introdu ção à psicanálise, quando
Freud dá este estranho conselho a seus interlocutores: " O domínio
dos fenômenos neuróticos lhes é desconhecido; se vocês não forem
médicos, somente terão acesso a ele através daquilo que me\IS ensi-
namentos podem proporcionar-lhes, e o julgamento de melhor apa-
rência não tem valor quando quem o formul~ não está familiarizado
com os materiais que estão em jogo." 11 Vale dizer que o fi lósofo
jamais saberia ser advogado em causa própria. O psicanalista se pre-
valece aqui da autoridade conferida às ciências da natureza, por con-
seguinte também à medicina, e ele se considera abalizado para falar
como se qualquer eventual adversário de sua teoria fosse, pelo simples
fato de ser oponente, um inimigo da~ Naturwissenchaftlehre, então
em franca ascensão.l2 Estas afirmações derivam de um modo de per-
suasão assinalado já por J. Locke, em Um ensaio sobre o entendimento
huTtUJno, quando faz o levantamento dos diversos tipos de argumentos
destinados a impedir o adversário de contra-atacar. 13
O movimento persuasivo de F.reud desdobra-se fazendo uso de
dois outros temas, sendo que o primeiro trata da natureza pat~lógica
da filosofia: de uma parte, temos a ausência de realidade do objeto
desta última, e de outra, a afinnação segundo a qual ~dltosofia jamais
soube de um pensamento que fosse, em princípio, desconhecido da
consciência espontânea. Fora isso, Freud quer tomar-lhe o fardo ainda
mais pesado recusando o conceito de Weltannschau11g, graças ao qual
a reflexão filosófica estaria empenhada num ~nútil e.sforço especulativo.
Freud deveria fazer um exame sério deste conceito antes de remexer
14 o sono Jogmótico de Frer.ui

em seus destroços. Em todo caso, não é verdade - contrariamente


ao que afinna nas Novas conferências introdutórias sobre a psicantilise
-,que "estivesse reservado a nossos contemporâneos levantar uma
presunçosa objeção ao pretenderem que um conceito desta ordem
fosse tão mesquinho quanto desesperador, além do fato de ele não
levar em conta as exigências do espírito e as necessidades da alma
humana" . 14 Os sistemas filosóficos estão longe de se deixar levar por
uma "descrição do mundo tal como ele se refletiria no cérebro do
pensador, daquele pensador geralmente tão distanciado da realidade'~, IS
mas é ·constante o esforço dos filósofos no sentido de impedir ao
espírito que siga esta inclinação natural.
Freud se esquece de que, se assim for, está referindo-se a si
mesmo: afinal, não foi ele quem fez de tudo isso um dos sustentáculos
da interpretação que proporcionava a.seus pacientes? Tanto assim que,
nos Estudos sobre a histeria, escreve que o psicoterapeuta age, "na
medida do possível, como instrutor no ponto onde a ignorância pro-
vocou algum medo e, como professor, ele mostra uma concepção do
• mundo, livre, elevada, maduramente refletida... " .16
Mais que o fato de rejeitar posições diferentes das suas, é a ma-
neira como ele rejeita que espanta. Para justificar a sua oposição a
determinado sistema, Freud não se funda no conceito do erro à maneira
de Platão o~ Descartes e nem se apóia na noção de ilusão, como o
faz Kant ao denunciar a inutilidade do esforço metafísico.t7 Para o
psicanalista, aqueles que têm uma apreensão da realidade diferente
da sua cometem tantos erros e se entregam tanto à ilusão que se
tomam presas de processos psicopatológicos.

A filosofia e o problema do inconsciente

Ao mesmo tempo que ele a tem como patológica, Freud sustenta que
a filosofia jamais levou em co~sideração aquilo que, no pensamento,
escapa à consciência. 18 A psicanálise vê nesta pretensa carência uma
razão a mais para afinnar que a Metafísica sempre se absteve de ir a
fundo na questão do pensamento, que nada fez senão perseguir qui-
meras.
Ora, as coisas não se passam bem assim. Na realidade, embora
a filosofia não se separe do problema da vinualidade no pensamento,
ela jamais foi levada a formar o conceito de um inconscier;tte no
sentido qué Freud dá à palavra: uma "instãneia" autônoma e dinâmica
a polêmica amijilosójica de Frer.ui lS

-descrita em tennos quase espaciais - que encerraria representações


condenadas a ficar dissimuladas na consciência se as reflexões de um
terceiro não fossem descobri-las.
É preciso observar que Freud conhece, daquilo que foge ao âmbito
da consciência, apenas o que permanece oculto "em" um inconsciente
e isto através da representação "coisificante" da vida do espírito. Pela
concepção freudiana, o inconsciente deriva de uma construção objetiva
pertencente à uma espécie de física mental que participa da ciência
natural. Não lhe sendo possível perceber que a filosofia forma seus
conceitos tão longe quanto possível desta atitude, Freud não conseguiu
atinar com a problemática do não-consciente na filosofia.
Aqui também o posicionamento de Freud situa-se numa análise
seio nuances de uma filosofia que soube, no entanto, mostrar que
reduzir o pensamento à consciência não era sua última palavra. Do
contrário, como entender, remontando-nos até à filosofia antiga, que
Plotioo pudesse afirmar, na .. Quarta Eneada", que "é preciso com-
preender que a lembrança existe não somente quando, no presente,
percebemos que lembramos, mas também nas disposições da alma
que acompanham impressões ou conhecimentos anteriores; pode su-
ceder que a alma possua estas disposições sem ter deias consciência,
mas estas disposições terão muito mais força se a alma conhecê-las;
quando a alma sabe que tem uma disposição, ela é, sem dúvida,
diferente desta disposição; mas se ignorar que a possui, corre o risco
de ser ela própria aquilo que possui" _19
Poder-se-ia acreditar que esta crítica de Freud à ausência do
não-consciente na reflexão filosófica estaria baseada naquilo que a
filosofia de Descartes pennitiu filtrar-se até ao senso comum. De fato,
o autor das Meditações metafisicas parece aderir sem restrição a esta
doutrina da transparência do pensamento na consciência que encon-
tramos resumida numa famosa passagem da Terceira Meditação.20
Mas, para o próprio Descartes, esta é uma doutrina que não
permite eliminar a questão da virtualidade no pensamento, pois é
necessário que a consciência proceda consigo mesma uma progressão
e esteja totalmente presente em si mesma. Assim, a propósito das
idéias inatas que existem em mim desde meu nascimento sem estarem
sempre presentes na minha consciência e que não são •• pura produção
ou ficção de meu espírito" ,21 deveria afirmar Descartes: "Quando
digo que alguma idéia nasceu conosco, ou que ela se acha naturalmente
impressa em nossas almas, não entendo que eta se apresente sempre
16 o sono dogmático de Freud

em nosso pensamento, pois desse modo não haveria nenhuma, mas


entendo apenas que temos em nós mesmos a faculdade de produzi-la." 22
Os discípulos de Descartes não deixaram também, por sua vez,
de abordar a questão de um esconderijo do pensamento cujo destino
é o de não se dar a ccmhecer. Pierre Nicole, por exemplo, eyoca a
limitação de uma consciência que, talvez, não se contente com fazer-se
passar por qualquer coisa que não seja ela mesma aos olhos de outrem,-
mas que procede como se disfarçando diante dos próprios olhos, pois,
observa ele, "freqüentemente escondemos de nós mesmos aqueles
desejos que, ao mesmo tempo, são nossos e reinam em nós, mas que
fingimos ignorá-los e não vê-los distintamente por medo de sermos
obrigados a contradizê-los" .23 · ·
É ainda NiéoJe que, a partir de um texto de Cícero, observa co-
mo este, falando de ·uma aversão sentida inconscientemente, mostra
como tinha ele, ·Cícero, todos os motivos para querer ocultar de si
mesmo sentimento tão negativo. Seria necessário a mediação de uma
terceira pessoa para que se fi zesse luz; e Nicole relata: " Alguém mais
s'util poderia ter percebido que havia no espírito de Cícero um veneno
oculto que se manifestou, como ele próprio confessa, embora lhe fosse
desconhecido:" 24 Ultrapassamos, aqui, aquilo que Freud chama de
pré-consciente; as experiências psíquicas dissimuladas não são atin-
gíveis de forma imediata; para que emerjam à consciência é preciso
que um terceiro passe a atuar ou que, com o passar do tempo, o sujeito
"se traia", por exem.plo, através do comportamento que será observado
por alguém capaz de dar sentido àquilo que, para o interessado, é
incompreensível.
Todos os grandes nomes do cartesianismo têm, do não-consciente,
uma noção que não permite definir o pensamento pela consciência
exclusivamente. No caso de Spinoza, esta noção corresponde a uma
idéia inadequada que se produz de forma espontânea na consciência
- naquilo que será, para· Fre ud, o sistema Consciente-Pré-consciente
- , e tudo que el;l faz é indicar o estado de nosso corpo em sua
afetação pela presença de um objeto. As idéias inadequadas não de-
rivam de um processo de inteligibilidade. elas são detenninadas pelo
corpo exterior e pela alma enquanto esta achar-se afetada por este cor-
po ex.terior. 25 Spinoza substitui a dicotomia cartesiana do claro e dis-
tinto pela idéia de uma afetação, espontaneamente consciente,' a partir
da qual poderemos desvendar a idéia adequada que, sozinha, exprimirá
sua causa. Compreender a essência do corpo exterior, não confundi-la
mai s com o efeito _que este corpo produz sobre nós, enquanto somos
afC?tados por este objeto, é um trabalho. Uma idéia adequada corres-
a polêmic<l <lntifilosófica de Freud 17

ponde, portanto, não ao conteúdo representativo da idéia, mas a seu


conteÍido expressivo. Vemos que esta consciência se encontra limitada
a uma posição subordinada e determinável, e que a ordem do não-
consciente é o seu determinante. Estamos assim a anos-luz de distância
das declarações de Freud que pretendem que a fi losofia conheça apenas
"os fatos conscientes" no sentido como a psicanálise entende este
termo; vale dizer, como conteúdos representativos da consciência psi-
cológica (ou consciência empírica). ·
Em Kant, somente é psicologicamente consciente a consciência
e mpírica que é a consciência dos fenômenos imanentes, quer dizer,
das modificações su·bjetivas do eu. Trata-se de uma consciência ime-
diata que conheçe apenas a afinidade dos fenômenos, não as condições
desta afinidade fenomenal a que corresponde a consciência transcen-
dental - psicologicamente inconsciente - que toma possível a uni-
dade subjetiva da consciência.
. Para apreendermos a consciência transcendental é necessário todo
um procedimento que visa explicitá-la, pois, embora a consciência
transcendental seja implícita e não consciente, ela é ao mesmo tempo
fundadora da consciência empírica. Por meio do desvendaq~ento das
condições da represe ntação é possível dizer que a consciência empírica
é imediata. ao passo que a consciência transcendental só é atingível •
de forma mediata. Apesar de ser logicamente primeira, ela não o é
cronologicamente, numa perspectiva genética.
Percebemos delinear-se aqui uma possível aproximação com a
psicanálise: esta sai do consciente para, através do tempo, atingir
aquilo que fundamenta este consciente que é, por natureza, incons-
ciente. T anto para o paciente submetido ao tratamento psicanalítico
q uanto para a consciência individual que aprende a fílos~far existe
um terceiro elemento em comum, o tempo, que permite revelar aquilo
que ficaria dissimulado na consciência. Claro, poder-se-i·a objetar a
este paralelo -:- entre o aprendizado do saber-filosofar e o tratamento ·
psicanalítico - que aquilo que falta àquele é o que caracteriza este,
ou seja, a presença de um terceiro que é um outro sujeito, o psicanalista.
E se quisermos respeitar a psicanálise na forma e no conteúdo, qualquer
possibilidade de uma auto-análise se acha excluída. Para legitimar a
de Freud, só há uma solução: aquela que consiste em admitir que o
entendimento do promotor da psicanálise devia responder, nãó mais
a um entendimento discursivo, ou seja humano, mas a um entendimento
intuitivo, divino, um ímel/ectus archetypus; conceito que foi por Kant
mencionado pela prill'!eira vez em 177226 e elucidado vinte .anos mais
18 o sono dogMátit::o Je Frt!!lllll

tarde, quando ele o retoma na CriJiaz IMjCIICulti.aJe do jldm. Tomar


clara, sem o auxíJio da presença de um lermro. sua propria dinâmica
inconsciente, tal como esta é defmida pot" Freud. seria a tarefa de um
entendimento apto a pensar junto os cootraditdrios~ o que é impossível
a um entendimento humano. ·
Na Crítica do fa.cul.tltuk do juúP. Kant explica o que deveria ser
um entendimento capaz de apreender os coottadilórios: buscaodo cir-
cunscrever a contingência ligada, a princípio. a nosso entendimento,
ele quer "distingui-lo dos outros entendimentos possíveis..,_27 Seus
esforços para pensar os entendimentos conduziram-no a conceber um
mundo onde o fenômeno não derivaria mais, como é o caso do en-
tendimento discursivo humano, da causalúlade mecânica. mas agora
da finalidade; desse modo, ficaria abolida a diferença entre númenos
e fenômenos ou, em tennos psicanalíticos, entre consciente e incons-
ciente, o que tornaria possível o desvendamento do Inconsciente através
do trabalho de uma única consciência individual; verificar-se-ia. assim,
a única possi bi )idade de uma auto-análise. Kant começa por demonstrar
que o entendimento humano- o entendimento discursivo- apóia-se
sobre as partes para elevar-se ao todo, sendo as partes a causa do
todo; as partes do todo, aqui, constituem aquilo que a psicanálise
capta através da sucessão dos fragmentos do discurso do paciente, e
o todo, a globalidade da vida psíquica que é detenninada pelo Incons-
ciente. Para um entendimento que fosse intuitivo e marchasse ao con-
trário; isto é, de um todo - que pode fazer o objeto de uma apercepção ·
-para as partes, poderia realmente dar-se o caso de uma figura onde
o Inconsciente (o todo) se deixaria apreend~r por uma consciência
única, uma vez que a dimensão desta, constituída pelas partes do todo,
permitiria apreender de fonna não mediata aquilo que as uniria entre
si. Neste caso, a apreensão do todo é princípio de possibilidade da
ligação que existe entre as partes, vale dizer, entre as diferentes re-
presentações que chegam até à consciência. De fato, Kant propõe este
modelo de entendimento elaborado a partir do entendimento humano,
mas ocultando determinações não pertencentes a este último. 28 É so-
mente por meio deste intelecto arquétipo que se desenha a possibilidade
de pensar junto os contraditórios, tarefa impossível ao entendimento
humano que, como a consciência em Freud, não poderia captar uma
coisa sem respeitar as próprias regras, as regras da Jógica.29
Freud, por conseguinte, coloca-se como o único que pode praticar
uma auto-análise, e logo que tentamos imprimir uma detenninação
filosófica a esta experiência ímpar- tomando como referência suas
a polêmica alllifilosófica de Freud 19

próprias declarações- nós nos damos conta daquilo que esta tentativa
implicaria.
A unicidade da posição afirmada por Freud sobre suas possibi-
lidades não pára aqui. Quando lemos sua obra não podemos deixar
de surpreender-nos com a estranha semelhança que ela apresenta com
muitas das passagens de O mundo como vontade e como representação
de Schopenhauer e, em particular, com a homologia entre a metapsí-
cologia freudiana e os" Suplementos", no segundo livro de O mundo...
Por outra parte, em meio ao turbilhão dos ataques lançados por
Freud contra a filosofia, percebemos que o único filósofo a merecer,
a seus oJhos, elogios é Schopenhauer. Claro, há também Kant - em
quem Freud várias vezes procurou apoiar-se - , mas rapidamente
percebemos que se trata unicamente da visão schopenhaueriana de
Kant o que lhe motiva as alegações. Mas Schopenhauer é uma fonte
realmente particular: com ele, surge na história da filosofia um dis-
cípulo de Kant de fato curioso; Schopenhauer afinna continuar o
Criticismo valendo-se da autoridade - e com razão - da Ideologia
e, através desta, dos empiri·stas.ingleses e dos enciclopedistas franceses.
Ele é o primeiro a tentar uma sistematização da perspectiva antífilo- -~?
sófica e, por esta razão, pode ajudar-nos a elucidar o ponto litigioso
do texto freudiano; não é possível deixar, como se fosse algo perfei-
tamente natural, este último retomar um dos argumentos do antifilo-
sofismo desde a sua origem - referimo-nos à irrealidade da filosofia
- e interpretar, de forma sistemática, não só a reflexão filosófica mas
também OJ,ltras m aneiras do pensar, como se tudQ não passasse de um
processo delirante. ·
Cumpre-nos, portanto, investigar com atenção os caminhos que
levaram Freud a acreditar que podia questionar a relação da psicanálise
com outros pensamentos que não fossem os seus. Mesmo porque, a
despeito da evidente insuficiência de sua argumentação, o freudismo
não recebeu de seu adversário filosófico uma verdadeira resposta. Ora,
isto que parece uma irresolução da filosofia concede a Freu,d o direito
de - mas ao mesmo tempo o condena a - ficar como um corpo
estranho na história das manifestações do espírito.
Freud, pelo menos uma vez, confessou ter tomado conhecimento
da obra de Schopenhauer; trata-se de uma espécie de confidência feita
numa carta aLou Andréas Salomé,30 onde ele informa ter lido a obra •
de Schopenhauer por obrigação e sem prazer. Daí a necessidade de
examinar com cuidado que tipo de relação existe entre os dois textos.
20 o sonn dogmático de Freud

NOTAS

I. Freud, S., L 'interprél. .. ·.,n des rêves, trad. I. Mcyerson, reed. D. Berger, Paris.
PUF, 1967, p.5J7.
2. Ibidem.
3. Freud, S .• Abrégé de psychanalyse, trad. A. Bennan, reed. J. Laplanche, Paris,
PUF, 1975, p.69.
4. Freud, S., " La personnalité psyd!ique", in Nouvelles conférinces sur· la psy-
chanalyse, trad. A. Berman, Paris, co!. "Idées" , Gallimard, reed. 1978, p.69.
5. Aristóteles, Métaphysique, trad. J. Tricot, Paris, 1974r 3, l005b 19-20.
6. 1bidem, r 5, 1009b 27-30.
7. Freud, S., "Pour introduire Ie narcissisme'' . in IA vie sexuelte. trad. 1. Laplanche,
Paris, PUF, 1969, p. J00-1.
8. Freud, S., '' L'inconscient'' . in Métapsychologie, trad·. J. Laplanche e J.-8 Pon-
talís, Paris, ~oi. " ldées", Gallimard, reimpr. 1983. p.\22-3.
· 9. Freud, S., '' Résistances à la psychanalyse". in Rev1w juive, Genehra, 15 mar.
1925, I, 2, 209-.19.
10. Freud, S., " D'une conception de l'univers" , in Nouvelles conférences sur la
psycltanalyse, p.210-l.
11. Freud, S .. lmroduction li la psyclumalyse, trad. S. J ankélévitcb, Paris, col.
" ldées", Gallimard, 1978, p.210.
12. " A concepção segundo a qual a psique é, em si, inconsciente permitiu fazer
da psicologia um ramo, semelhante a todas as outras, das ciências naturais" (Freud,
S., Abrégé de psychanalyse, op.cit., p.20-l).
13. Locke, J., Essai philosophiq~ concemant L"entendement humain, trad. P.
Cosre. Paris, 1972, p.S73.
14. "o rune conception de l'univers", in Nouvelles conférences sur la psychanalyse,
op. cit., p.209. ·
15. Ibidem, p.231.
16. Freud, S., Études sur l'hystérie, trad. A. Berman. Paris, PUF, 1967, p.228. (0
grifo é nosso.) ·
. 17. Kant, E., Cn"tique de la raison pure, op.cit., p.36.
18. Dentre as muitas passagens onde Freud admite. uma adequação da reflexão
filosófica com uma consciência única, tomemos aquela em que ele diz que "desta
forma, (esbarra-se) na contradição dos filósofos que, embora considerando o
'consciente' e o 'psíquico' como idênticos, alegavam não poder representar para
si o absurdo do 'inconsciente psfquico'. Mas, paciência, a melhor coisa era dar
de ombros para esta idiossincrasia dos filósofos" (freud. s:, Ma vie etla psycha-
nalyse, lrad. M. Bonaparte, Paris, col. "(dées" , Gallimard, reed. 1981-, p.40).
19. Plotino, Ennéades. trad. E. Brehier, Paris, Les Belles Lenres. 1927. IV, 4, 4.
20. " Por pensamento, entendo tudo aquilo que está de tal forma em nós que
imediatamente nos apercebemos do que seja", Descartes, R., " Méditations m~-
a polêmica antiftlosóficâ de Fr~ud 21

taphy~iques", in CEvres philosophiques, org. F. Alquié, Paris, Gamier-Flammarion,


1967, p.586, A.T., IX, 124.
21. Méditation m, A.T., 4 1.
22. Troisiemes objections et réponses, A.T., IX, 147.
23. Nicole, P., Essais df! morale, u, p.88, citado in Lewis, G., Le problerne de
l 'inconsc:ient et le . cartbianisme, Paris, co!. ·• Dito", PUf, 21 ed. I 985, p.240.
24. Nicole, P., ibidem, p.l63, citado in Lewis, G., Le probleme de L'inconscient
et le cartésüvzisme, op.cit.. p.241.
25. Spinoza, B., L 'ithique, trad. Ch. Appuhn, Paris, Vrin, xxvn.
26. Kant. E., " Lettre à Marcus Herz du 2 1 f~vrier, 1772", in CEvres philosophiques
de Kant, trad. J. Rivelaygue, Paris, Gallimard, co!. "Pléiade". 1980. u, p.692.
27. Kant. E.. Critique de la faculté de jl4ger, trad. A. Philomcnko, Paris, Vrin,
1979, p.220.
28. Kant, E., Critique d~ la faculté de juger, op.cil., p.220-l. "Nós dev~mos,
simultarieamente, pensar um outro entendimento em relação ao qual - e isto
anterionnente a qÚalquer fim que lhe seja atribuído- possamos représentar, como
necessária, aquela concordância (Zusammenstimmung) das leis da natureza com
nossa faculdade de julgar, a qual somente é pensável para nosso entendimento
por meio da ligação dos fins [ ...)Também podemos conceber um entendimento
que, por não ser como o nosso. discursivo, e sim intuitivo, parte do geral-sinlélico
(chl intuição de um todo enquanto tal) ;to particular, quer dizer, do IOdo para as
partes, portanto, um entendimento que, igual à sua representação do todo. não
compreende em si mesmo a contingência .da ligação das partes para tomar possível
uma fonna determinada do todo. ao passo que esta se impõe ao nosso entendimento
que deve partir das partes- pensadas como causas gerais (ais allgemein-gecklchten
Gründen) -para as diferentes formas possíveis que podem ser subsumidas como
conseqüências." (Os grifos são de Kant)
29. Kant, E., "Se então não quisermos representar-nos, como convém a nosso
entendimento discursivo, a possibilidade do todo como dependendo das partes,
mas se nós quisermos representar-nos segundo o entendimento intuitivo (arquétipo)
a possibilidade das partes (em sua natureza e em sua ligação) como dependendo
do todo, uma vez que esta qualidade é própria de nosso entendimentp, isto só se
poderá fazer de uma maneira tal que o todo compreenda o princípio da possibilidade
da ligação das partes (o que seria uma contradição no modo do conhecimento
discursivo)" (l ). (Ibidem, p.221.) ·
30. Correspondance avec Lou Andréas Salort!L, p.l26.
CAPÍTULO ll

A presença schopenhaueriana
no texto freudiano

Fara da se

No decorrer de toda sua obra, Freud irá defender-se do fato de ter-se


valido de outras fontes, contrariamente à idéia em geral admitida e
expressada por Goethe da seguinte fonna: " Não é somente aquilo que
nasceu conosco que nos pertence, mas também o que sabemos adquirir
e constitui uma parte integrante de nossa substância." 1 E apesar de, ..
normalmente, situá-la entre as ciências da natureza, iremos encontrar
Freud também reafirmando a total independência da psicanálise, re-
jeitando uma aproximação que era de esperar-se em virtude da ani-
mosidade que demonstra com relação à filosofia. a qual. para com-
batê-Ia, freqüentemente opõe às Naturwissenschaften. Por exemplo,
numa carta a Jung, datada de 30 de novembro de 1911 , Freud expressará
sua hostilidade, na conclusão dos trabalhos de Sabina Spielrein, em
termos que mostram o quanto lhe é difícil aceitar qualquer aproximação
de sua perspectiva com a da biologia: " O que me parece mais duvidoso,
é que a Spielrein quer subordinar o material psicanalítico a pontos de
• vistas biológicos; esta subordinação é tão condenável quanto uma
sujeição à filosofia, à fisiologia ou à anatomia cerebral." 2 Parece; por
conseguinte, que sua preocupação não reside tanto numa semelhança
com u m certo modo do saber que o obrigaria a admitir a existência
de uma contribuição exterior. O que o preocupa ele diz de forma
m•1ito concisa, aind a nesta mesma carta: " A psicanálise/ara da se." 3
Evocando as premissas de sua reOexão, Freud não reconhece qualquer
.. precursor; dessa maneira, ele manifesta o desejo de que a psicanálise
seja considerada como engendrada ex nihilo, ou seja. antes dela o
nada. As razões por <Jlle Freud se recusa a reconhecer a existência de
uma filiação da psicanálise não são claras. Pretender que não se infira
e,.,~ x? 11 a~ - · tt!xto frtudiano 23

q,~er efemento dit' reflexOO: ~res à dele é o mesmo que ex-


pressar uma vontade ~ ~-se fora do c:!ievú. ccmo se imune aos
deitos do passar dO· t.ml(!O-. ft.CUI[,. sem dú-vid'<it, optou por esta atitude
pm- medo de que ~qeer efn • sua perspectiva com o exterior
pudesse servir de ptO"ta: à> ~tãaci2 de uma filiação da psicanálise.
E a ~~an.á:lise se· piilt' COAW• pacam;~ma desta espécie de perseidade
m :"«mdicaâ; a~· diirá. Freud: .. & fii:l minha própria análise
da- qual bem deplressa senti ne.c~ pude fazê-la através de uma
série de souhos que me- pmniiti.nm seguir a trilha de todos os acon-
llaiimentos de minlia iMinciaL.."' Con:tude·. não podemos deixar de
oli!sc:rva.E que e~. soohos. de qae fala - q.ue_ são· os seus sonhos -
nie roostit.uem o material expmc:acial ~rior que iriam servir de
poato de partida para sua busca.
Não saberru;,s. se O> dcseoo desmto pero pr.omotor da psicanálise
~'tov de wna csco.l1ia. ddi'l'leradla:. w ~ sobr.etwfo, resultou de uma
COiill~âO de faws.; parece qut rtão. depender' de nada e bastar-se
t~ a si mesmo j~ foi empecil'lw· para aquele que afirma:
'"O cspt&diido isofamentro: tinha v~ e não era desprovido de
CU3111Bl- & IJãn tiDfla um livro v-a li:r sobre os assuntos que me
~. não tirtlr.a d'e e:saYM' ~s de adversários mal-infor- •
1B1100s,. aio sdii·qalcp'u infiuiDcia c nada tinira a pressionar-me." 5
Freud irá reitaar ririas vau EpC· jamais tentou aprender a fi-
losofar. que indusi~ se ~ "~t ck: fazê-lo, felicitan-
do-se,. -=ssas oci.asiõe$,. por ter-se assim pesencado daquilo que con-
sidera wn eutrave à busca e ms remllados de seus trabalhos. Que
significaram emão para ele aqadr:s dois. aoos. passados ouvindo os
ensina.mentos de Fnmz Bm~~ano? Freud jamais aladiu ao fato, nem
mesmo pua usá-lo como aplic:'açio do que diz. sobre suas relações
com a filosofia..
Em MDrlul vidtl t a psit:Dúlw. ele deixa bem claro que " usou
de lodos os cuidados pua' não ~lÕIUI{-.st} da filosofia propriamente
dita...6 A acn:dila'mo5 no que ~ baw:ria aqui UDr perigo o u pelo
menos uma tentação fXi1 de ser evitada,. pois que ele apresentava,
segundo suas próprias palavras. "UJBa íacapacidade constitucional.. 7
para filosofar. Dessa fonna,. a filosofia lhe scne de antimodelo e
podemos ver aqui mna das possíveis explicações para a indetennina-
ção notada ao longo de sua obra e que nos faz lembrar das pertinentes
observações de Cb. Perelman e L Olbn:cbts-Tyteea ao refletirem
sobre este modo do pens.: '"'Um traço importanle distingue, no entanto,
o sono dogmácico d~ Frtud

esta argumentação (aquela pélo antimodelo) da outra que é a pelo


modelo: enquanto, nesta última; a pessoa visa - ainda que canhes-
tramente - estar em concordância com alguém e, por conseguinte,
a conduta adotada será reJativamente conhecida, no argumento do
antimodelo a pessoa se vê encorajada a distinguir-se de alguém, mas
nem por isso poderá sempre inferir daí uma conduta realmente pre-
cisa.'' 8 ·.
Sendo a reflexão filosófica designada como o lugar de todos os
obscurecimentos possíveis, somos levados a acreditar que a verdade
só pode residir em algum lugar oposto a este abismo. E, quando J.
Boutonier pede sua opiniãQ "sobre questões de ordem metafísica",
Freud começa por responder que "os problemas filosóficos e seus
fundamentos (lhe] são estranhos, que [ele] nada sabe sobre isso, e
tamJY.luco sobre a filosofia de Spinoza" .9 Trata-se da r~posta que,
em geral, Freud dava quando se mencionavam suas relações com
alguma reflexão filosófi ca de que se dizia completamente ignorante.
Mas quando Juliette Boutonier lhe fez uma pergunta mais precisa
sobre a filosofia de Spinoza, como lembra P.-L Assoun, 10 Freud, pelo
menos por uma vez, não se prendeu a essa declaração de incompetência;
o que ele, então, acrescentou surpreende, pois, com efeito, podemos
ler: "Se me sobrasse tempo e disposição para isso, eu poderia, pos-
sivelmente, dar-lhe meu ponto de vista." 11 Dessa forma, Freud parece
sugerir que esse pano de fundo que ·é, para ele, a filosofia não seria
inacessível á uma apreensão psicanalítica. Por outro lado, a inapreen-
sibílidade, por sua própria existência, se faria reveladora dos limites
do alcance de sua perspectiva.

A acusação de plágio

Freud mencionou o nome de Schopenhauer e a quest.ão da semelhança


entre seu texto e o do filósofo depois da publicação de ur:n artigo de
Juliusberger, psiquiatra berlinense, membro de uma das muitas socie-
dades schopenhauerianas da época. O médico alemão havia descoberto
nos textos psicanalfticos uma foima e certos temas que já conhecia
da leitura de Schopenhauer. Freud alude à publicação de Juliusberger
deixando transparecer certo desapontamento em virtude do efeito que
certamente a publicação iria produzir sobre o público. Uma vez notada
a semelhança de seus escritos com os ·de Schopenhauer, Freud se
a preunça schopenhaueriana nu texto freudiano

mostra visivelmente ainda mais ansioso para tentar convencer seus


leitores de que jamais teve qualquer coisa a ver com a filosofia. Esta
forma de pensar, afi011a ele, somente teria atrapalhado alguém que
tivesse se empenhado em levar a termo uma elaboração do tipo daquela
a que ele se aplicara e lhe permitira formuJar uma perspectiva que,
fora de dúvida, compreende realmente o que é a vida psíquica. É
preciso observar que, até então, Freud fala desta acusação de plágio
sem indignação e sem pensar em desmenti-la; somente lhe importa a
repercussão. Com efeito, ele escreve a Abraham: " Juliusberger soube
tirar bom partido das citações que busquei em· Schopenhauer, mas
minha originalidade está ostensivamente em baixa." 12 Segundo Freud,
até para ele foi objeto de espanto esta semelhança de seus trabalhos
com os de Schopenhauer, que Juliusberger mostra ser inegável. Será
um de seus discípulos, Otto Rank, que o levará a descobrir a similitude
entre os dois textos: "No que diz respeito à teoria do recalcamento,
eu certamente teria chegado a ela por meus próprios meios, livre de
qualquer influência que me apontasse os caminhos. Desse modo, du-
rante muito tempo eu a considerei como original, até o dia em que
Otto Rank pôs sob meus olhos uma passagem de O mundo como •
vontade e como representação, onde Schopenhauer procura dar uma
explicação para a loucura." 13 E Freud prossegue, tomando a existência
mesmo desta similitude como prova de que nada sabia dos trabalhos
do filósofo até o momento em que elaborou sua teoria: " O que diz
o filósofo na passagem onde trata da repulsa que sentimos por ter de
actitar este ou aquele lado doloroso da realidade está perfeitamente
de acordo", 14 afirma ele. com efeito, "com a noção de recalcamento •
tal como a concebo; o que posso dizer é que uma vez mais devO'
minha descoberta à insuficiência de minhas leituras" .1s Se Freud pôde
revelar o mecanismó do recalcamento é porque ignorava a descrição
que fizera· Schopenhauer deste, pois - acompanhando-lhe sempre o
raciocínio - uma homologia como esta entre as duas pÚspectivas só
demonstra que sua ignorância da filosofia foi bem o que l.rte permitiu
descobrir o método da investigação que iria resultar na psicanálise.
Dizer que quanto maior a semelhança entre os textos A e B de autores
diferentes e que, por ser o texto B cronologicamente posterior ao A,
maior deverá ser a certeza de poder concluir que o autor de B ignorava
o conteúdo de A, é, no mínimo, uma afirmação surpreendente. No
entanto, todos os que haviam realmente "lido e relido" as análises
de Schopenhauer, particularmente os textos em que o filósofo define
conceitos que a prática psicanalítica permitiu, também ela, isolar, e
sem intluêucia e~ nada ~úam pele &m líliiiiCSmD de I!CRm
"" lido e ~lido"'. pccsseg.tre ~ ~· dcixa:r entrever aqui
mais uma prova de desoouhccer a obrai qwe o xusavam de ter ptagi.aQ·o.
O desenvohi!menUJ. deste rxi«fmí.o. é teahnente surpreendente ~ acu-
sado de plágio por Juliusbefger. Freild começa por drzet que jamais
leu textos filosófiCo&, iJU:lusi-«e os de SdwpeRtta~r~ Ca:utdaasdo
este' pooiO como St plbo sap,. comado~ w neo:buma pon. de
*
afuma que a leitura telUOI"P rtbõfic:os. amdas t0das- as tentativas. para
etacidar o que J:ldes. se C'llaln!; e se e~ o promQtO( da. psi(;pJise.
ainda. assim ~u: fuu IIER dc5aJilerta de tal ome-,. isso só fu
provar que ele jamais ~e na pn:saça., tais textos.; 1:1ma trao.sfe-
rêucia dedu1iv.a realmente smgtdlll"'_r&-
Aliás., qWIIId() foi obsenada a dcsco.wi;ettíiJ'Ite semelh.mça emre
seus trabalbos e os:., ~gK;a:mente aateriores, de Se~. a
primeira reação de Fmid,. roroo devemos. es&atr lcabradiro&;. 'Alio foi a
de querer des'Cu]pu-se, mas. a de ~-!e coow um fif&'ofo ba.Yiia
conseguido, muilos aos mtes: dele, cnça;r as graades li.t'lllas de 1lmJ.a
reflexão - no caso a sua - jáí que wn procediment0 fifosófico na.da
poderia dever à experiêucia. Em A t~~fK.ÚStia e 11 vitta ii.Utintwal. sua
.. Quarta cooferência", Freud reSJK*Ie a esta qoeslão. Nada bá aqui.
segundo ele, que nio seja m&ito fácil de oompreenclef. '"'Talvez vocês
irio dizer, dando de ombros, mas. isso é a filosofa de ScbopeManer
que o senhor nos está expondo e Dio uma teoria cicotífica~ E. por que
não, meus senbores e minhas senhoras. um pensador' ousado Dão teria
• adivinhado aq~~ilo que depois a observação penosa e fria iria c:onfu-
mar! 17Dessa forma. para Jcntar banalizar uma aproximação ID05tnda
como evidente C, ao mesmo tempo, procurando negar que houvesse
conformidade entre os dois pensamenlos, ele, como se falasse algo
sem importância, acrescenta: .. tJU., do Mais,. no.r.sas idiios nMI silo
uatam~n.:te as de Schopenhofl~r..." .15

A atração por Schopenhauer

A maneira pela qual todo sistema se dá ao trabaJho de apreender a


realidade é necessariamente tributária de ootras reflexões que conver-
gem para o mesmo fim, e uma determinada doutrina poderá ser en-
tendida como nutrida daquilo que ela buscou no passado e naquilo
que a circunscreve. Como diz M. Guéroult: .. Cada filosofia, peJa sua
pretensão ao ser, põe;-se à parte de qualquer ou,tra Quando nio é isso.
aquilo que ela deixa subsislir de uma outra é apenas um.a carne de
que se nutre, que transforma num outro ser, des(ruidoT daquele do
qual se beneficia.... 19 E Kant resume a solução deste problema comum
a todo texto na seguinte af"trJDaÇão: .. Quando om autor estudao. com
espírito livre de pn:conceitos. os peasamentos de outros e deles se ·
apropriou através de uma reflexão cujo desenvolvimento acompanhou
passo a passo, ele ~ oo meu enlendet, deixar ao leitor a liberdade
de avaliar suas teses JlOVaS e di'Vetgeoles.rr20
Convém, inicialmente. iuvestip se a obra do fllósofo de Frank-
furt prestava-se a esae tipo de empréslimo. Sabemos hoje que outros
se apoderaram de partes inteiras de seu sistema cuja esnurura parece
tomar possível tais operações.. De falo, como assinalou A. Philonenko,
Schopeohaocr ... revestiu sua intuição de um sistema l--1 [e }, em
conseqüência. existe orna solução de cootiDuidade catre a idéia e a
sistemálica que não euoont'raJ'DoS em outtos p6s--t.anti81105" _21 A exis-
tência deste plano de clivagem na estrutnra dos textos scbopenbaoe-
rianos explica que tenha sido possível a mais de um autor exrnir
facilmente dela o que lhes parecesse ~o ao enriquecimento
das próprias perspectivas. Assim, por exemplo, a propósito de certas
passagens de Gunro e paz. L Chestov observa: "Estas linhas:- To1stoi
tirou-as quase textuabnente de O tmfndo como vontadl! e cOIII() rr:-
prl!sentação, bem como toda a sua teoria da morte."22 E Philonenko
diz mais: .. ~ assim que Tolstoi pôde pegar a intuição sem o sistema
e que há seguidores de Schopenhauer que nem chegam a saber da
existência uns dos outros."23
Voltando ao caso de Freud, já dissemos como ele, apoiando-se
na noção de recalcamento, havia sustentado que a homologia entre
os dois textos, fato que não contestava, era exclusivamente devida ao
acaso e de fonna nenhuma a seu suposto conhecimento dos' textos,
contrariamente àquilo que denunciara Juliusberger, para quem a filo-
sofia schopenhaueriana continha já os elementos da perspectiva psi-
canalftica. Esclarecer a questão do empréstimo feito por Freud aos
textos de Schopenhauer não poderá, evidentemente, constituir um fim
em si. Não se trata, no que toca a nossa pesquisa, de partir de uma
elaboração para procurar as causas psicológicas e históricas, mas de
apreendermos aquilo que é a condição de possibíHdade e alcançar,
então, as próprias estruturas da ati vidade racional. Parafraseando aqui
Kant, não teria feito Freud parte daquela mesma classe de "contes-
tadores" à que pertence também Schopenhauer?
28 c sono dog.máticc de Freud

Quando afirma que "o Eu· representa aquilo que se denomina


razão" ,24 Freud sustenta que a principal função desta instância é a de
proteção da individualidade; depois de lemb~arAqu~ " o p~pel constru-
tivo do Eu consiste em intercalar, entre a ex1genc1a puls10nal e o ato
próprio a satisfazer esta última, uma atividade intelectual que, após
considerar o estado de coisas presentes e as experiências passadas,
irá, através de tentativas experimentais, avaliar as conseqüências da
linha da conduta pretendida" ,2s e le estipula que "o Eu passa a ser
dominado pela preocupação com a segurança. Sua missão é a da
conservação do Self que· o Isso parece negligenciar" .26 • _
Para definir aquilo que em cada indivíduo caractenza a funçao
do intelecto, Schopenhauer se valeu também do termo conservação,
frisando que " o intelecto tem por função natural cuidar da conservação
27
do indivíduo, uma tarefa que, em geral, lhe é difícil de cumprir" .
Em Schopenhauer, a preocupação de preservar esta individualidade
enquanto tal é o que anima aquilo que há de racional no indivíduo,
ao passo que em Freud ela se manifesta através do desdobr~mento de
uma ·estratégia defensiva cujo sentido polemológico está perfeitamente
presente no primeiro; o autor de O mundo como vonta_de e co~o
representação via o indivíduo prisioneiro de um remaneJamen~o In·
• terior necessário a sua sobrevivência como indivíduo. E a finaltdade
que dava a esta estratégia era a de tomar mais suportáveis as repre·
sentações que, se fossem livres para aceder, tais com~ são, à co~s·
ciência, teriam constituído um perigo para a manutençao de uma In-
dividualidade que exige um mí~imo de coesão interna. ainda que à
custa de·um desconhecimento. Desta form a, podemos ler em O mundo
conw vontade e como representação que " o intelecto tem de resignar-se
a esta revira~olta, por mais penosa q'ue lhe seja, pois a vontade o
exige i.mperiosamente: ou melhor dizendo, as resistências manifestadas
a propósito desta mudança não partem da inteligência [... ], mas ~a
própria vontade que, parcialmente, é atraída para uma representaçao
pela qual, por outra parte, sente repulsa_. Esta representação, na rea-
lidade, por um lado, a interessa porque ela a anima, mas ao mesmo
tempo o conhecimento abstrato lhe diz que esta representação lhe
causará inutilmente um choque penoso ou indigno, e será neste mo-
mento que a vontade tomará uma decisão de acordo com este último
conhecimento obrigando o intelecto a obedecer." 28
Quando Schopenhauer fala de uma "decisão'' da Vontade, de-
vemos lembrar-nos que Freud igualmente admitiu que no Inconsciente
• se tomavam " decisões" .29 Freud, aqui, foi levado por Schopenhauer
a pre.rença schopenhdueriana no textn freudiano 29

a enunciar uma contradição cujas conseqüências visivelmente não sou-


be avali ar. Dizer que o Inconsciente é lugar de decisões dá no mesmo
que sustentar que existe, nele, uma atividade que pennite a escolha
entre uma afirmação e uma negação. Isso, po rtanto, é não só afirmar
que o Inconsciente encerra a negação -coisa, por sinal, que Freud
constante mente rejeita - ; mas também aceitar a idéia de que o prin-
cípio do terceiro excluído- que está na base de toda decisão- rege
o funcionamento do Inconsciente. Com efeito, não se pode, numa
decisão, admitir uma solução inte rmediária para aquilo que é o próprio
enunciado do princípio do terceiro excluído. Ora, Freud, que não
reconhece a negação no interior do Inconsciente, não admite igual- •
mente que este último esteja sujeito aos princípios da lógica.
Isso não altera o fato de Freud acreditar-se, a partir daí, autorizado
a achar que há, no aparelho psíquico, uma determinada estrutura que
decide sobre a estratégia defensiva, uma organização cuja natureza
teleológica é, para ele, a de proteger o indivíduo e que já existia nas
análi ses de O mundo como vontade e como representação. Schope-
nhaucr discemia um conjunto de operações que tinham por objetivo
proteger a consciência individual dos conteúdos representativos que
ela não teria suportado, ou antes, os conteúdos repr.esentativos que a
Vontade decidia serem perigosos para a preservação da individuali-
dade. Através da leitura de sua principal obra tomamos conhecimento
das detenni.nações essenciais daquilo que Freud irá, mais tarde, de-
nominar recalcamento. Nos "Suplementos", livro n, Schopenhauer
descreve a e1aboração de uma estratégia intrapsíquica cujo procedi-
mento será, em todos os sentidos, o do futuro recalcamento freudiano.

Encontramos operando um movimento que, como um campo de forças,
permite ao sujeito suprimir ~ o u manter afastado - do c ampo da
consciência uma representação decorrente de seu elo com uma incli-
nação que lhe seria insupt>rtável se tivesse de integrá-la ao conjunto
daquilo que é capaz de dizer de si próprio; bem antes de Freud,
Schopenhauer escrevia que " muitas vezes n.ã o sabemos o que dese~
jamos ou tememos. Podemos acalentar um desejo por muitos anos •
sem confessá-lo para nós, sem mesmo chegar a ter dele uma clara
consciência; é que sua revelação parece perigosa para nosso amor-
próprio, para a boa opinião que precisamos ter de nós mesmos; mas
tão logo o desejo se concretize, a alegria sentida nos ensina, não sem
alguma confusão, que havíamos desejado aquele acontecimento com
todas as nossas forças; seria o caso, por exemplo, da .morte de um
parente próximo de quem somos herdeiros" .30
30 o sono dogmático de .FnuJ

Para ~ar apreensível o determinante de tal estratégi~~


lança mão de uma imagem que coneribuiu para simbolizar a~
esta noção capital da psicanálise. Trata-se do famoso guardiao que
Freud "instala" na antecâmara e que "yigía cada tendência psíquica,
fazendo-a passar pela censura que a impede de entrar no salão, caso
não seja ela de seu agrado" .3 1 A metáfora logo nos faz recordar aquela
de que se serviu Schopenhauer, muito parecida na linguagem e de
sentido rigorosamente idêntico: o intelecto, depois de ter "investigado
e pesado uma quantidade de dados" 32 esperava pela decisão de uma

Vontade inconsciente •• que fazia sua entrada como o sultão na sala
do Divã para pronunciar como de costume uma permissão ou uma
recusa" _33 Se o Inconsciente promulga uma permissão ou uma recusa
não importa, para Freud, o que conta é que esse mecanismo seja
passado no plano do valor conclusivo da sentença. Ele, com efeito,
não deixa de explicitar, na Introdução à psicanólise, que" a diferença
é bem pouca e o resultado praticamente o mesrrio se o guardião envia
determinada tendência quando ela ainda está na soleira da porta ou
se ele a faz passar depois de já ter penetrado no salão" .34 Ao fim de
reflexão idêntica, Schopenhauer havia atribuído interesse ao resultado
final da investigação do sultão, escrevendo, então, que a Vontade
" pode certamente apresentar diferenças de grau, mas não uma diferença
essencial" .35
O guardião de Freud36 - como o s ultão de Schopenhauer -
constitui uma verdadeira pessoa,37 pois somos obrigados a reconhecer
nele a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, o bem do mal,
além da faculdade de justificar os motivos de suas decisões face a
outros seres racionais. Haveria, portanto, no interior do Inconsciente,
um princípio de conhecimento que indicaria formalmente ClQUilo que
é útil ou que pode ser funesto para determinado indivíduo como tal,
e isto quaisquer que· sejam as mudanças próprias a todo e qualquer
indivíduo. Segundo Freud - e Schopenhauer- na instância incons-
ciente aloja-se uma função que transcende o indivíduo. Uma tal fa-
culdade é mantida um pouco à sombra: nós só a percebemos através
de uma metáfora onde evitamos elucidar aquilo a que ela quer dar
acesso. Ao mesmo tempo, deixamos aparecer somente uma consciência
que tivemos o cuidado de desvalorizar de tal maneira que a descre-
vemos como se estivesse sendo sacudida de um Jado para outro por
d~ci sões para ela imprevisíveis que, no entanto, são mais justificáveis
que aquelas que a razão poderia promulgar. De fato , os decretos que
visam assegurar a sobrevida do indivíduo são promulgados por esta
31

faculdade i.aconscieale de discriminõlÇão -


p<UeCida com .. a segunda
inteligêocia~ dos Estudos sobre a ~ria - que se n:vela mais
etiàeoae. Tora-se eutalllf'O(e do processo denunciado por Husserl
quando obsen>a. a propósito do empirismo de J. Locke., que " no fundo
é~ o mesmo mélodo: imaginamos alrás da tabula da consciência
um sujeito que sabe e opera pelo pensamento IOdo o que deveria
sobrev~r justamente como operação de consciênca na própria tabu/4,
quer d1zer. na própria consciência interna, mas que gostaríamos de
veementemente negar na interpretação" ..38
Se o conteúdo daquilo a que Freud dá o notn«} de recaJcamento
já está inscrito em o mundo conw vonlalk e como representação,
tudo que a presente pesquisa tem a fazer é elucidar como o fundador
da psicanálise prova a existência do Inconsciente e comparar o de-
senvo!vimento de seu pensamento com o de Schopenhauer quando
este VISa estabelecer a existência da Vontade.
Para fundamentar sua demonstração, Freud apóia-se numa des-
valorização da percepção, pelo menos da maneira como julga poder
apreendê-la em Kant. No ano de 1915, em " O inconsciente", Freud
escreve que .. a hipótese psicanalítica da atividade psíquica inConsciente
nos aparece, por um lado, como uma foona derivada do a nimismo
primitivo [ ... ], e por outro, como a progressão levada, por Kant, à
nossa concepção da percepção externa. Da mesma maneira que Kant
nos.pr:evine para não esquecennos que nossa percepção tem condições
subJetivas e não a considerarmos idêntica ao percebido inconhecível, •
da mesma maneira a psicanálise nos convida a não colocarmos a
percepção de consciência no lugar do processo psíquico inconsciente
que é s~u objeto.'' 39 Baseando-se numa carência de princípio do ato
perceptivo para demonstrar a existência do Inconsciente e sustentando
que esta privação se encontra estabelecida na filosofia de Kant, Freud
comete uma grave distorção da Crítica da razão pura, ao fazer dos
enunciados conclusivos desta um fenomeoismo subjetivo. Com uma
~nterpretação do kantismo desta ordem, Freud nada mais faz do que
JUntar-se a certa corrente observada ao longo do século XIX e que não
é mais apanágio excJusivo do schopenhauerismo. A fim de dar uma
idéia dos motivos que levaram grande parte da crítica do século XIX
a falhar na apreensão do kantismo, A. Philonenko cita, em A obra de
~a~t, es~e julgamento de V. Cousin sobre o filósofo de Kõnigsberg:
O •deabsmo transcendental e subjetivo de Kant, já tão profundamente
cético por si só, teria produzido sistemas de um ceticismo ainda mais
declarado e muito parecidos com os de Berkeley e Hume." 40 Esta
32 o sono dogmá&ico de Freud

leitura do Critícismo, contudo , não basta para demonstrar a sujeição


de Freud ao texto schopenhaueriano. Quando muito, ela nos leva a
observar que, em concordância com o que dizem comentaristas.como
Victor Cousin, K. Fischer e N. Hartmann, Freud se teria limitado a
expor uma interpretação do kantismo que nada tem a en~inar-nos
sobre o "como" de sua leüura. Enquanto todos aqueles le1tores -
que partiCipam de uma interpretação antropológica da_ Cr~tica da razã~
pura, inclusive Schopenhauer - esforçaram-se por JUStificar a parti-
cularidade de suas leituras da filosofia kantiana, nos textos de Freud,
em vão buscaríamos tentativas de justificação como estas que, no
entanto, bastariam para autenticar a interpretação tendenciosa dos con-
ceitos kantianos como sendo própria de quem a fez. O próprio Scho-
penhauer consagra longas linhas procurando confrontar seu ponto de
vista com os de Kant, e podemos, da leitura de O mundo como vontade
e como representação, ficar sabendo o porquê do desvirtuamento_ ope-
rado por seus comentários. A exposição de motivos schopenhauenanos
justificando determinada compreensão da Crítica da razão pura tem
importância bastante para contribuir de maneira notável para o escla-
recimento da aporia contida no texto; esta interpretáção do Criticismo
faz com que Schopenhauer entre para a genealogia de certas correntes
de uma modernidade que se pôs a serviç1r do antifilosofismo. Se
estamos ou não de acordo com tal apreensão do kantismo - uma
apreensão que é parcial e o violenta- não vem ao caso, não é esta
a intenção do presente estudo.
Começamos a poder elucidar a natureza e o alcance da inspiração
schopenhaueriana em Freud a partir do instante ein que estuda~o~ o
procedimento racional seguido pelo filósofo de Frankfurt para distin-
guir a existência do Ente supremo, vale dizer, da Vontade que, em
seu sistema, se revela o determinante último de qualquer ente. Quando
faz a justificação do Querer inconsciente, Schopenhauer parece se
apoiar num ·ensinamento kantiano onde ele pretende encontr~r uma
desvalorização da percepção que tornaria necessário o reconhecimento
da Vontade. De fato, em O mundo como vontade e como representação,
ele sustenta que "a percepção empírica total dos objetos que se apre-
sentam a nós, por ser ela essencialmente e principalmente determinada
[ ...] pelas formas e funções de nossa faculdade de conhecer? torna
inevitável que a representação dos objetos seja radicalmente distinta
da essência deles [ ...e] jamais ultrapassaremos a representação, quer
dizer, o fenômeno, se partirmos do conhecimento objetivo, vale dizer,
da representação; ficaremos do lado de fora das coisas, sem penetrar
a presença schopenhauerÚlntJ no texto freuditJno 33

no íntimo de seu ser, sem conhecer aquilo que elas são em si e por
si. Até este ponto estou de acordo com Kant." 41 Schopenhauer irá,
então, opor a esta incognoscibilídade do mundo exterior uma possi-
bilidade de conhecimento de nova espécie que se assenta sobre o
mundo interior e que deverá poder basear-se na fonnulação das de-
terminações do Eu enquanto vontade: •• Mas face à verdade que ele
[Kant] estabeleceu, enunciei uma outra que constitui seu contrapeso;
nós não somos somente o sujeito que conhece, pois pertencemos nós
mesmos à categoria das coisas a serem conhecidas, nós mesmos somos
a coisa em si, e em conseqüência, se não pudermos, partindo de fora,
penetrar no íntimo das coisas, no próprio ser delas, resta-nos um
caminho aberto que parte de dentro para fora: este será, de certo modo,
uma via subterrânea, uma comunicação secreta que, por urna espécie
de traição, irá,. de súbito, introduzir-nos na fortaleza contra a qual
fracassaram todos os ataques vindos de fora." 4 2
Freud retomará exatamente o mesmo discurso quando for sus-
tentar que nem todo saber é inapreensível, pois se aquele que está
fundamentado no mundo exterior é impossível, o conhecimento do
mundo interior abre-se à investigação. No trecho em que apela para
a autoridade de Kant, escreve Freud: " ... não irá demorar muito para
termos a satisfação de saber que a correção da percepção interna não
oferece dificuldade tão grande quanto a da percepção externa e que •
o objeto interior é menos inconhecível do que o mundo exterior" .43
Aquilo que corresponde ao "objeto interior" de Freud - e que
Schopenhauer chama o ''interior da fortaleza" - é determinado por
fatos psíquicos, os mesmos que são vistos desacreditados a partir de
Descartes e que Schopenhauer decidiu, ao contrário, retomar porque
os considera como providos de uma cognoscibilidade superior à do
mundo exterior. Kant dava como inconhecível uma tal experência do
Eu porque ela se densenvolveria unicamente num tempo subjetivo,
· não permitindo, por isso, ao Eu de sei: objetivado no tempo da física.
Justamente porque as representações do Eu- do Eu enquanto vontade
- só se desenvolvem no tempo (e não também através do espaço e
da causalidade, como é o caso das representações do mundo exterior)
é que Schopenhauer acredita poder descobrir aqui uma via privilegiada
para abordar a coisa em si que é a Vontade sobre a qual, diz ele, é
em si inconhedvel.
Para fornecer as provas da existência desta Vontade, Schopen-
hauer se vê obrigado, em seguida, a demonstrar que ela é, ao mesmo
tempo, una no universo e está presente em cada ser individual. E
34 o sono dogmático de Freud

Freud, com o Inconsciente, se verá confrontado com o mesmo pro-


blema; iremos, aliás, encontrá-lo levando com sucesso sua demons-
tração através deum procedimento idêntico ao de Schopenhauer. Para
pôr em evidência a universalidade da Vontade, o aUlor de O mundo
como vontade e como representação parte da constatação de que cada
um de nós tem possibiJídade de fazer, pois existe uma consciência.
A partir desta evidência, ele enuncia que podemos passar para uma
outra evidência: a cada indivíduo corresponde uma consciência. Est~
não só detém o conhecimento como também as manifestações do
• opeÇt.Ç (apetite); na esfera desta apetência, não há dificuldade em
considerar como idênticas todas as consciências, sejam humanas ou
animais, pelo menos do ponto de vista particular: em cada ser vivo
reconhecemos imediatamente aquilo que tem origem nesta Vontade,
como desejos, temores, etc. Como explícita Schopenhauer, trata-se de
um raciocínio por analogia que permite reconhecer esta identidade
de essência nos humanos e nos animais e que se situa no plano das
motivações de seu comporlamento. Disso, concluímos que, em O mun-
do como vontade e como representação, cada ser animado encerra
uma mesma Vontade: "Nós praticamente só conhecemos a consciência
como uma qualidade dos seres animados [ ...] aquilo que sempre se
encontra em cada consciência animal, mesmo a mais imperfeita e a
mais fraca, aquilo que lhe constitui a base é o sentimento imediato
de uma apetência ora satisfeita , ora contrariada, em· graus diversos
[ ... ] Sabemos, co~ efeito, que o animal quer, sabemos inclusive o
que ele quer, o ser e o bem-estar, a vida e a persistência na espécie;
e como os objetos desta vontade são idênticos aos da nossa, não
hesitamos em atribuir ao animal todos os afetos da vontade que ob-
• servamos em nós mesmos [... ] Todos os atos e todos os gestos que,
nos animais, exprimem movimentos da vontade, nós imediatamente
os compreendemos, por analogia, com nosso próprio ser." 44
Encontramos o mesmo raCiocínio nos textos fundadores da psi-
canálise, quando Freud, perseguindo fim idêntico ao de Schopenhauer,
esforça-se por mostrar, também ele, que o psiquismo individual encerra
um mesmo fundamento, a saber, o Inconsciente. Ele relata que, para
demonstrar a existência de um mesmo Inconsciente em cada individuo,
em cada aparelho psíquico, é preciso, antes de mais nada, ter provado
a existência de uma consciência em cada um; para tanto, basta seguir
um procedimento perfeitamente habitual, um raciocínio que, parafra-
seando Schopenhauer, ele qualifica de "inferência per analogiam" ,
o que lhe permite passar do reconhecimento da existência de sua
a presença schopenhaueriana no texto freudiano 35

própria consciência ao reconhecimento de uma consciência em qual-


quer ser individual. Freud escreve que "a hipótese do inconsciente é
também uma hipótese perfeitamente legítima na medida em que, ao
estabelecê-la, nós não nos afastamos nem um pouco da maneira de
pensar que, normalmente, supomos correta. A consciência em cada
um de nós. somente proporciona a consciência de seus próprios estados
psíquicos; o fato de outro homem ter também uma consciência, isto
apenas significa uma inferência estabelecida, per analogiam, para tor-
nar o comportamento deste homem co.mpreensível, fundamentando -nos
na percepção daquilo que ele diz e faz (mais justo, por sinal, do ponto
de vista psicológico, seria descrever as coisas da seguinte maneira:
nós atribuímos, sem que isto exija qualquer reflexão especial, a todo
ser fora de nós, nossa própria constituição, por conseguinte, 1ambém
nossa consciência; e nossa compreensão pressupõe esta identifica-
ção)." 45
Para passar do reconhecimento da consciência em cada indivíduo
ao reconhecimento do Inconsciente, Freud adota procedimento similar
ao de Schopenhauer. É no conjunto dos atos e das representações(" na
própria pessoa") que devemos aplicar o mesmo raciocínio: seria acon-
selhável generalizar, diz Freud, a constatação de que, em cada psiquis-
mo individual, existe uma ordem daquilo que só aparece logicamente
como fazendo parte integrante do psiquismo; os processos psíquicos
assim determinados, e que não são acessíveis à consciência podem,
então, ser vistos como processos psíquicos inconscientes, o que sig-
nifica, para Frcud, que eles são parte integrante desse Ente denominado
"Inconsciente" ; mas escreve ele: " A psicanálise nada exige, fora o
fato de que este procedimento de inferência seja também aplicado à .
próprja pessoa, embora certamente não exista tendência constitucional
para fazê-lo. Ao dar este passo, é preciso que se diga que todos os
atos e todas as manifestações que observó em mim e que sei conectar
com o resto de minha vida psíquica devem ser julgados como se
pertencessem a uma outra pessoa e que se deve exp1icá-los atribuin-
do-lhes uma vida psíquica." 46 Freud encontra-se, aqui, na genealogia
de uma segu nda ordem de pensamentos que corresponderia a uma
pessoa que é, ao mesmo tempo, uma outra e a mesma. De qualquer
maneira, ele continua sempre naquela impossibilidade da lógica tra-
dicional - interposta por Schopenhauer - , que, sendo ela própria
avatar do hilemorfismo aristotélico, não pode pensar, ao mesmo tempo,
o indivíduo e o pensamento.
36 o sono dogmático de Freud

Schopenhauer, para demonstrar a existência de uma só Vontade


em todo e qualquer espírito individual. e depois Freud, para tomar
evidente a necessidade da presença de um mesmo Inconsciente em
cada aparelho psíquico, apóianHe os dois naquilo que parece cómum
a todos os psiquismos; em seguida, deste reconhecimento de um uni-
versal, presente em cada indivíduo, eles deduzem uma coisa comum:
• no primeiro, a Vontade inconsciente e no segundo, o Inconsciente.
Tal modo de demonstração levanta o problema da relação existente
entre esta coisa comum que é una e aquela que existe em cada indivíduo.
Sobre a Vontade, Schopenhauer diz que ela " é completamente inde~
pendente da pluralidade. embora suas manifestações no te~po e ~o
e spaço sejam infinitas. Ela é una; não à maneira de· um ~bJeto cuJa
unidade somente é reconhecida pela oposição com a pluralidade pos-
sível, tampouco à maneira de um conceito de unidade que só existe
pela abstração da pluralidade. Mas ela é como qualquer coisa que se
acha fora do espaço e do tempo, fora do princípio de individualização,
. de p Iural'd 47
quer dizer. de qualquer perspectiva t . ad e. " .
Através desta maneira de apreender a umdade da Vontade, d1s ~
cemimos uma espécie de r~atismo das essências que nos conduz à
controvérsia dos universais. De fato, Schopenhauer levanta de novo
esta quest.ão, problema que Freud. por sua vez, irá veicular com sua
noção de um Inconsciente que está .presente no universo e , simulta-
neamente, da mesma forma em cada indivíduo. Já Pierre Abélard
criticava todas as linguagens que transformam os acidentes em subs:
tância por meio de uma substantificação dos atos e das qualidades. E
o
este o 'tipo de alteração que constatamos em mundo como vontq.de
e como representação onde Schopenhauer, a partir do fato de que
todos os indivíduos manifestam desejo, angústia, cólera etc.. forma
daí o conceito de uma coisa, a Vontade, que é definida cpmo um
Ente. Freud procederá rigorosamente da mesma maneira com relação
· aos comportamentos, atos falhos, sonhos: o Inconsciente é .um Ente
·- u~ Ente do qual podemos dizer que é absoluto na medida em que.
para ele, tal conceito exprime a idéia de que este Inconsciente é o
lugar da substantificação das qualidades da vida psíquica que resultará
~uma coisificação; esta era já a solução admitida na primeira teoria
de Guíllaume de Champeaux, ela própria paradigma da posição dos
reai s na discussão sobre os universais. Esta problemática será retomada
por Ereud, para quem o complexo de Édipo. apesar de uno, está
igualmente presente em cada homem; somente os acidentes, isto é, as
a preset.JÇa scltopenhaueriana no texto freudiano 37 t
diversas modalidades possívei~ da resolução do complexo, farão que
os indivfduos se diferenciem entre si.
Nós nos damos coma da extensão da conformidade dos dois
textos quando comparamos as características do Inconsciente com as
da Vontade schopenhaueríana. Assim, a Vontade é definida, sobretudo,
como se indene contra os efeitos do decorrer temporal; o Wille zum
Leben era zeitlos, pois Schopenhauer estabelecia que esta Vontade
" em si e por si [ ...]permanece; somente ela é imutável e indestrutível,

isenta dos danos da idade ; ela não é física, mas metafísica, não pertence
ao mundo fenomenal , ela é aquilo que aparece no fenômem~" .48 Freud
não dirá coisa diferente a respeito do estatuto do Inconsciente face .à
questão da temporalidade; com efeito, ele sustenta que, " no Isso, nada
que correponde ao conceito do tempo [... ). nada de modificações do
processo psíquico no curso do tempo" .49
Para Schopenhauer, o intelecto ignora a existência da Vontade,
recusa também a idéia desta e mesmo a idéia desta recusa; O mundo
como vontade e como representação exprime um tal xroptG~oç (se·
paração) entre o intelecto consciente e a Vontade inconsciente através
de uma imagem carregada de surpresas e desconfianÇas que não po-
demos deixar de sentir, ao descobrir em seu próprio território, a pre·
sença de seres tão pouco familiares que necessariamente os identifi·
camos com invasores estrangeiros. Schopenhauer mostra que o "in-
telecto permanece de tal forma fora das resoluções e deci~ões secretas
da vontade que ele só consegue apreendê·las, por vezes, de surpresa, .
pondo-se a espiá-las como se tratasse de uma vontade estrangeira" ;50
idéia idêntica e expressão idêntica da idéia são encontradas em Freud ·
'
quando ele descreve a parte consciente do Eu - correspondente ao
intelecto schopenhaueriano - que "representa aquilo que chamamos
de razão" ;51 esta instância enfrenta as "impulsões instintivas" de um
Isso cuja descrição faz parelha com a do Wille de Séhopenhauer; ·
Freud fala, também ele, da surpresa e desconfiança daquiJo que per·
manece consciente no Eu e emprega, também ele, a imagem de uma
força estrangeira para explicar a maneira pela qual o consciente con·
sidera aquilo que é originário de camadas profundas do aparelho psí-
quico. Em "Uma dificuldade da psicanálise", a propósito da. "terceira
humilhação" por que deve passar a humanidade, em virtude mesmo
da descoberta freudiana segundo a qual o homem viveu até o advento
desta na i lu são de que era" soberan.o em sua própria alnuz". 52 tomamos
conhecimento de que, na esfera do Eu. "surgem subitamente pensa-
mentos, sem que saibamos de onde vêm [ ...] esses hóspedes estran- •
38 o sono dogmático de Freud

geiros que parecem até mais fortes que aqueles que estão submelidos
ao Eu [ ... ], ou então sobrevêm impulsões que parecem provir de uma
pessoa estrangeira; embora o Eu as n~gue, ele se vê assustado e é
obrigado a tomar precauções contra elas. O Eu fala para si .mesmo
que existe aqui uma doença, uma invasão estrangeira, e redobra a
vigilância, mas não pode compreender por que se sente tão estranha-
mente incapaz." 53
Dentre as críticas dirigidas à psicanálise, talvez a principal seja
a de que ela nos tenha levado a abdicar da razão, daquela força que,
segundo Descartes, "é a única coisa que nos faz sermos homens e
~ nos distingue dos animais" .54 A crítica torna-se ainda mais severa
pelo fato de a razão perder seu status de soberana para ficar na condição
de simples cidadão privado de seus direitos cívicos. Parece que de
tanto ir atrás das pegadas de Schopenhauer, Freud acabou fazendo da
razão (ou da consciência, pois, nele, os dois termos são intercambiá-
veis) uma criatura incapaz, e viu-se, em seguida, na impossibilidade
de organizar uma sociedade composta de seres tão desunidos. É o que
dá a entender Henri Ey quando escreve: " ... ao jogar. no Inconsciente,
toda a estrutura do ser consciente, o aparelho psíquico se dissolve.
Esta é, em nossa opinião, a principal contradição do sistema do In-
• consciente freudiano. Ela constitui, no próprio Freud, uma inversão
de sua intuição fundamental e primeira do Inconsciente. Este, pela
coerência lógica de seu sistema. é e deve ser 'autônomo' , quer dizer,
tem de subtrair-se radicalmente à consciência sob pena de con:fundir-se
com o Pré-consciente e perder, em definitivo, seu sentido absoluto de
renúncia e de negação [ ... ], uma das exigências da doutrina constan-
temente reafirmada por Freud (até 1915) e reafirmada por todos seus
discípulos como dogma é a de separar o Jcs. do Cs . Ora, basta repor-
tar-nos ao que acabamos de expor sobre as infiltrações e confusões
das três instâncias ou ·sobre a retomada da questão do recalcamento
para convencermo-nos de que Freud novamente voltou a atacar este
ponto. Sobretudo em Das Unbewusste, quando a separação entre os
dois sistemas Bw-V.bw (Consciente-Pré-consciente) e U.bw (lncons-
ciente) é, aqui, preenchida pela teoria das 'ramificações' do incons-
ciente e de uma dupla censura - ou ainda em Das Jch und das Es,
quando nos convida a lembrar que não há duas variedades de incons-
ciente, mas uma só e que ele, ao invés de separar o Pré-consciente
do Inconscienle , de preferência os aproxima." 55
A emergência do tema da eminência do Inconsciente é insepa-
rável, na pena de Freud, do aparecimento de determinações que já
a presença schopenhaueriana no uxro freudiano

conhecemos de Schopenhauer. O fim do reinado da razão e também


da impossibilidade de qualquer relação entre a ordem do querer in-
consciente e a esfera racional são duas determinações essenciais deste
.irracionalismo que vamos encontrar cada vez mais nítido em Freud.
Uma das principais dificuldades do texto psicanalítico desaparece
quando ele se encontra confrontado com a questão de saber qual é o
determinante último do recalcamento. A não-unicidade da resposta
impedirá Freud de elaborar o cânon das leis do funcionamento do
aparelho psíquico e esta carência irá pesar muito na validade da in-
terpretação psicanalítica. No decorrer da leitura dos textos de Freud,
iremos descobrir. com efeito, que o princípio deste mecanismo origi-
nário c fundador da psicanálise, que é o recalcamento, ora é o cons-
ciente, ora o inconsciente. Esta indeterminação bem como a influência
sempre crescente do Inconsciente sobre o determinismo da vida psí-
quica - proporcionais à progressão do tempo no texto freudiano -
correspondem à idéia-chave de um schopenhauerismo que está assim
resumido por C. Rosset: "Entre o Querer e o intelecto, não existe
qualquer relação possível: o domínio do Querer é tal que ele aniquila
suas próprias dependências e rompe, de um só golpe, qualquer relação
com estas." 56 Rosset ainda acrescenta que, "ao inverter os termos da
relação, Schopenhauer exagerou na subordinação das funções intelec-
tuais: ele as tirou de cena e de tal fo rma que, se uma nova força das
funções volitivas não comandar tudo, nada mais ela explicará" .57
Na impossibilidade de elucidar a relação entre Vontade e intelecto,
Schopenhauer, sem qualquer constrangimento, vale-se de imagens que
supostamente deixam transparecer esta relação: por diversas vezes,
ele compara a Vontade com um fogoso cavalo cujo cavaleiro, não •
conseguindo dominar o animal, vê-se transportado a um Jugar onde
não tinha intenção de ir. Outra variante versando sobre tema quase
igual é a que diz: "Aquilo que representa as rédeas e o freio para um
cavalo indomável, representa o intelecto para a vontade humana." 58
Também Freud irá recorrer a estas mesmas imagens quando tentará
passar a seus leitores a natureza da relação entre o consciente e o
inconsciente. Como o filósofo de Frankfurt, por várias vezes, ele em-
pregará a figura do cavalo e do cavaleiro, o primeiro representando
o Inconsciente, e o segundo, a parte consciente do Eu. Dessa forma,
em "O Eu e o Isso" , ele nos ensina que " o Eu em suas relações com
o Isso é como um cavaleiro que Lo Eu] tem por missão dominar a
força superior do cavalo, com a diferença apenas de que o cavalejro
procura fazer isso com as próprias forças, enquanto o Eu se vale de
40 o sono dogmálicv tk F~ud

forças emprestadas. Esta comparação talvez possa ser levada um pouco


mais longe. Freqüentemente, o cavaleiro, se ele não quiser separar-se
de seu cavalo, tudo que tem a fazer é conduzir o animal onde este
quer ir, ·e o mesmo sucede com o Eu que, geralmente, traduz em ação
a Vontade do Isso como se ela fosse sua própria Vontade."S9 Freud
retoma esta metáfora em " A personalidade psíquica", onde ele nos
diz que "a relação do Eu com o Isso pode ser comparada à do cavaleiro
com sua cavalgadura. O cavalo fomece a energia necessária à loco-
moção, o cavaleiro tem o privilégio de designar o objetivo a ser
atingido e guiar os movimentos do possante animal. No entanto, no
que diz respeito ao Eu e ao Isso, a relação está longe de ser sempre
ideal e sucede· freqüentemente que o cavaleiro é obrigado a ir lá para
aquele lugar onde seu cavalo gosta de conduzi-lo."60 Freud quer com
isto dizer que a instância inconsciente, isto é, o isso, é uma segunda
pessoa que visa um fim, a maioria das vezes, diferente daquele do
Eu consciente - lá, naquele lugar para onde seu cavalo gosta de
conduzi-lo.61
O promotor da psicanálise, aqui, tal como Schopenhauer antes
dele, procede a uma inversão da relàção classicamente estabelecida
desde o m:pt \jf\)XTIÇ de Aristóteles (Sobre a alma, título de uma obra),
• entre o vous e o l'opcl;t.ç (apetite). Mas esta súbita primazia da ape-
tência sobre a razão não permite responder a questão da natureza do
determinante último do recalcamento, bem como de imagens empre-
gadas do tipo cavalo e cavaleiro; dessa forma, só podemos concluir
que não existe um domínio de jure tanto numa como na outra destas
duas ordens de determinações. Como relata H. Ey: " A.J. Westerman
HolsÚjn observava recentemente que a comparação da união substan-
cial do Eu com o seu inconsciente seria mais apropriada se fosse feita
com um 'centauro' ."62
Quando ele áfirma que "a vontade é a substância do homem e
J o intelecto seu acidente" ,63 Schopenbauer transporta para uma cons-
ciência explfcita toda uma corrente da história do pensamento que
jamais, até então, fora formulada tão sistematicamente em sua oposição
à Metafísica; lançado na trilha de Schopenbauer, Freud dá uma virada
na direção da eminência de um Inconsciente cujo enunciado constitui
um anacoluto no desenvolvimento cronológico de seus trabalhos. Re-
tomando a antinomia substância-acidente empregada pelo filósofo,
Freud irá transpô-la para a oposição "essência-qualidade", filosofi-
camente inadequada; dirá ele em "O Eu e o Isso,. que "a psicanálise
se recusa a considerar a consciência como formando a essência da
a 11resença scltopenlrtJueriana 110 tv:ro freudiano
41 f
vida psíquica, mas vê na consciência uma simples qiUllitúule desta" _64
Ele enunciará em termos parecidos, em " Esboço de psicanálise", que
" o Eu é sobretudo determinado por aquilo que ele proprio viveu, ou
seja, pelo acidental e o at!Jal" .65 De fato, ligar o consciente - aqui,
o Eu é aquilo que a consciência imediata é, pois Freud o define por
sua oposição às instâncias do Isso e do Supereu que têm em comum
a capacidade de representar o passado - ao .. acidental", ou seja, à
contingência da experiência sensível, implica necessariamente que este
plano esteja em oposição a um outro que não se acha sujeito ao passar
do tempo; é isto que coloca Freud, ao afirmar que, no interior do
aparelho psíquico, aquilo que é inconsciente é intemporaJ. •
Embora tenha privilegiado a via da percepção interna, isto depois
de sua tese de doutorado,66 Schopenhauer, uma vez tendo colocado
explicitamente a questão, é levado a reconhecer que a Vontade não
é verdadeiramente cognoscível. Ele fala de um abismo e de profundezas
insondáveis; escreve que "o conhecimento que podemos ter dessas •
coisas é [ ... ] transcendente, quer dizer, que o conhecimento não está
situado nas funções de nosso intelecto e, por isso, estas funções não
podem realmente apreendê-to. Daf, resulta que o conhecimento abre
no nosso pensamento um abismo cuja profundidade impede uma clara
e completa visão de conjunto; a nós somente é dado o direito de lançar
Já alguns olhares isolados, apropriados para nos deixar conhecer esta
unidade numa determinada condição das coisas, ora do lado objetivo,
o ra do subjetivo; tudo isto leva ao surgimento de novos problemas
que não garanto poder resolver totalmente." 67
Freud exprime as mesmas reservas quando coloca a questão do
conhecimento do Inconsciente. Por essa ocasião, os textos do psica-
nalista, realmente, falam .do Inconsciente como sendo de natureza
incognoscível; contudo, em texto de época muito posterior, ele admitirá
o fracasso de qualquer tentativa feita para obter-se uma autêntica
apreensão desta instância sobre a qual diz ser, pela própria essência,
encoberta: " Não esperem que eu forneça sobre o Isso muitos detalhes
novos, exceto o seu nome. O Isso é a parte obscura, impenetrável, de
nossa personalidade, e o pouco que sabemos dele nós aprendemos
através do estudo da elaboração do sonho e da formação do sintoma
neurótico. Este pouco que sabemos tem, além de tudo, um caráter
negativo e somente pode ser descrito por comparação com o Eu." 68
Uma tal confissão de impotência com relação à possibilidade de co- •
nhecer o Inconsciente está em contradição com bom número de pas-
sagens que encontramos ao longo da obra freudiana, por exemplo,
42 o sono dogmático de Freud

este trecho em "O inconsciente", onde Freud enuncia que, mesmo


inconscientes, as representações são perfeitamente conhecíveis e que
esta qualidade psíquica de "inconscientes" não necessita, para ser
apreendida, de conceitos diferentes daqueles normalmente utilizados
na apreensão dos conteúdos psíquicos conscientes. Freud parece, por-
tanto, ter-se esquecido daquilo· que em geral proclama, vale dizer, a
a.Y..sência de qualquer delenninação de ordem lógica no interior do
Inconsciente, quando expõe que este último encerra "estados psíquicos
inconscientes [que] podem ser descritos ao lado de todas as categoriaS
que aplicamos a atos psíquicos conscientes, como sejam, repre-
sentações, tendências, decisões e outras coisas do mesmo gênero" .69
Mesmo o leitor pouco atento perceberá nos textos de Freud algo
como um eco do pensamento de Schopenhauet que, volta e meia, se
faz sentir no decorrer da obra freudiana. É sabido que, para Freud, o
• psiquismo está subordinado ao determini smo; uma posição, aliás, di-
versas vezes, por ele reafirmada; por exemplo, quando, nas Cinco
psicanálises, assinala a importãn'cia de um princípio, o do "determi-
nismo psíquico" ,70 cuja descoberta, conforme ele mesmo nos ensina,
se deve a C.G. Jung. A mesma idéia iremos novamente encontrar na
Psicopatologia da vida cotidiana, quando critica aqueles para quem
uma parcela da vida psíquica escaparia ao determinismo, fazendo,
então, observar que, "ao deixar de fora uma parcela de nossas funções
psíquicas, por não serem passíveis de explicação por parte da repre-
sentação do objetivo em vista do qual elas se realizariam, nós desco-
nhecemos a extensão do detenninismo a que está submetida a vida
psíquica" .71 Ora, depois da sua tese de doutorado, Da quádrupla raiz
do princfpio de razão suficiente, Schopenhauer defende este determi-
nismo com idênticos enunciados que, por sinal, serão retomados em
O mundo como vontade e como representação, quando estabelecerá
que "a presença das representações e dos pensamentos em nossa cons-
ciência se encontram tão fortemente submetidos às diferentes formas
do princípio de razão quanto está o movimento dos corpos com relação
à lei da causalidade. Do mesmo modo que um corpo para entrar em
movimento precisa de uma causa, também um pensamento para entrar
na consciência precisa de um motivo que lá o introduza. Este motivo
é ou exterior (impressão exercida sobre os sentidos), ou interior (pen-
samento que leva a um outro em virtude da associação." 72
Quando deseja dar uma imagem da vida psíquica, Freud começa
por declarar, com relação ao pensamento, que só se tem conhecimento
certo sobre dois pontos, a saber: o cérebro, de origem somática, e o
a presença sclwpenhaueriana no rexto freudiano 43

pensamento consciente. Procurando representar um intermediário entre


eslas duas extremidades apreensíveis, Freud estabelece que " a vida
psíquica é a função de um aparelho ao quaJ atribuímos uma extensão
espacial e que supomos formado de várias partes" ;73 e acrescenta:
" nós o figuramos como uma espécie de telescópio ou de microscópio,
ou de qualquer coisa no gênerp" , 74 imagem já empregada por Scho-
penhauer, em O mundo como vontade e como representação. para
tornar compreensível justamente a sucessão que, segundo ele, carac-
teriza o pensamento em sua manifestação na superfície da consciência:
" ... nosso intelecto pode ser comparado a um telescópio cujo campo •
de visão seria muito restrito, pois nossa consciência não se acha em
estado estável , mas em fluxo perpétuo" .75
Sabemos, por fim , que Schopenhauer reconhece, no caráter perene
da interrogação metafísica do homem, a admiração de princípio in-
duzido pela divergência entre a Vontade e a inteligência; já Platão
considerava a admiração como fon te de qualquer filosofar; 76 é o que
exprime Schopenhauer quando sustenta que "o homem é um animal
metafísico" .77 Contudo, como expõe Schopenhauer, esta interrogação
filosófica pode exteriorizar-se de dois diferentes modos: ou bem a
razão apodera-se, sozinha, desta forma de pensar e ambiciona afirmar
a verdade c não mais que a verdade, ou bem a razão não se restringe
a esta rigorosa busca e aspira a tocar o absoluto de maneira mais
imediata, exigindo, então, acesso ao absoluto para todos, mesmo para
aqueles que não se preocupam com a interrogação filosófica. Assim
se move o espírito que, nas religiões, se apóia na crença de que a
verdade, de cujo ataque racional quer esquivar-se, foi, num detenni-
nado tempo e num determinado lugar, revelada ao gênero humano
por um homem providencial: " A verdade .não saberia aparecer em •
sua nudez diante do povo" ,78 escreve Schopcnhauer que, pondo-se
além da divisória que separa a religião do esforço filosófico , introduz
a necessidade do absurdo nas palavras da Igreja. Ele, com efeito,
afirma que as religiões têm necessidade de seus mistérios e que " afir-
mações diretamente contrárias à razão, bem como absurdos mais que
palpáveis, constituem ingredientes básicos de uma religião bem ela-
borada; pois tais coisas são a própria marca de sua natureza alegórica
c o único meio de dar a conhecer ao senso comum, ao entendimento
inculto, aquilo que não poderia ser compreendido de forma clara por
ele, uma vez que, no fundo, a religião trata de uma ordem de coisas
sui generis, da ordem das coisas em si, a qual não está submetida às
leis do mundo dos fenômeno s; em conseqüência. a religião apresenta
44 o sono dogmático dt Freud

sempre os fatos e as verdades sob forma fenomenal, não só os dogmas


absurdos, mas também os dogmas inteligíveis que não passam de
alegorias, de simples adaptações à inteligência humana." 79 Para re-
forçar sua opinião sobre a necessidade de introduzir--se o absurdo na
religião, Schopenhauer busca o apoio de um dos Pais da Igreja, Ter-
• tuliano, do qual lembra estas palavras: "Isto é perfeitamente crível
porque é absurdo." 80 E uma vez mais descobrimos, em Freud, uma
idéia já identificada em Schopenhauer quando, em O futur(l de uma
ilusão, ele explica que, pelo fato de as doutrinas religiosas "serem
subtraídas às exigências da religião, é preciso sentir-lhes interiormente
a verdade"-,8 1 e que uma das técnicas de persuasão usada pela religião
consiste em apresentar argumentos absurdos com a finalidade de fa-
' zer-se escutar. Isto, insiste Freud, é "o Credo quia absurdum dos Pais
da Igreja,. .82
Tanta concordância entre os dois textos - seria possível (mas
para quê?) ainda relacionar outros exemplos - não poderia, eviden-
temente, ser fruto do acaso e tampouco resultar simplesmente do fato
de pertencerem ambos a uma mesma corrente de pensamento. Com
relação à obra de Schopenhauer, as inúmeras similitudes encontradas
em Freud correspondem, cada uma delas e a cada vez, à exploração
de um mesmo instrumento objetivando um só fim. Assim, um racio-
cínio, qualificado nos dois autores como analógico, destina-se, no
filósofo , a separar a existência da Vontade, antes de ser retomado
pelo psicanalista para justificar, por uma transferência dedutiva idên-
tica, a existência deste mesmo Ente que ele designa pelo nome de
Inconsciente.
Mesmo onde a similitude não é tão flagrante, mesmo quando o
conteúdo manifesto do texto freudiano não se encontra já nos textos
de Schopenhauer, descobrimos que as opções psicanalíticas são como
um determinável face ao texto filosófi co que é o determinante delas.
O contexto filosófico da redação de Freud revela inegavelmente uma
atitude calcada em cima da de Schopenhauer, sobretudo quando Freud
comenta alguma reflexão kantiana onde imediatamente percebemos
uma distorção de sentido, igual à que Schopenhauer fizera em sua
leitura. Todas as vezes que o filósofo tenta explicar uma visão particular
sobre algum ponto da Crítica da razão pura - que esta apreensão
do kantismo seja, ou não, contestável, não é o que aqui vem ao caso
- corresponde, em Freud, a uma retomada da mesma ótica, mas -
e a diferença é capital - jamais escJarecendo o .. como" de uma
transfonnação que é apresentada ao leitor como se fo::se evidente e
a presença schopenhauerwna no rexro freudiano 45

da lavra do psicanalista. Assim, no quarto capítulo de Mais além do


princípio do prazer, lemos um comentário da filosofia kantiana que.
se já era surpreendente peJo seu tom, mais surpreendente será pelo
conteúdo; esta passagem representa um dos exemplos mais revel adores
da incapacidade de Freud para compreender o sentido daquilo que ele
bebe nos textos de Schopenhauer. No meio do capítulo, aparecem
algumas linhas que Freud julga útil intercalar no relato que faz sobre
o modo do aparecimento dos receptores das .excitaçõe$ externas; ve-
jamos o que escreve ele: ".Eu me pennito, en passant, abordar ligei-
ramente uma questão que mereceria uma discussão mais aprofundada.
Em vista de certos dados psicanalíticos que, atualmente, possuímos,
é possível pôr em dúvida a proposição de Kant segundo a qual o
espaço e o tempo seriam formas necessárias de nosso pensamento •
(denken). Sabemos, pÔr exemplo, que os processos psíquicos incons-
cientes são in temporais." 83 O próprio tom desta passagem parece su-
blinhar a convicção do autor sobre o que afirma; ele se sente em
condições de fazer uma correção - e que correção! - na filosofia
transcendental, onde declara ter descoberto um erro colossal, um erro
que a psicanálise se encarregaria, finalmente, de corrigir. O problema
para Freud é que Kant jamais afirmou - até muito pelo contrário -
que o espaço e o tempo fossem formas necessárias do pensamento.
A fim de que fique bem clara a desmesura da polêmica antifi-
losófica que Freud acha útil inserir no meio de um relato centrado
em torno de considerações propriamente psicanalíticas, toma-se ne-
cessário mostrar que o caráter intemporal das condições do apareci-
mento das representações não é somente uma contribuição da filosofia
de Kant, mas também fruto de um trabalho de fases cronologicamente
anteriores sobre uma reflexão filosófica que nunca deixou de colocar
o problema da relação entre o conhecimonto e o tempo; o que bem
demonstra ser este um problema que já vem de longe.
Foi sobretudo com o advento do Eu na história da filosofia que
surgiu a relação do tempo com ·a razão. Claro, existe Boécio, a partir
de quem vemos o conhecimento não ser mais o ato - considerado
~m restrição nem reserva - que consiste ein apoderar-se da essência
das coisas. Mas, para a filosofia antiga, o conhecimento era aquilo a
que acedia um indivíduo que, de tanto desbastar o que encerrava em
si de individual, podia apreender- tendo tomado o vouc; (objeto da
reflexão) conatural ao v01')ta (pensamento) - a essência dos objetos.
tanto a essência daqueles resultantes de uma tEXVTI (arte) como a
essência dos seres individuais da natureza, das figuras matemáticas e
46 o suno dogmático d~ Fr~ud

das qualidades morais. A questão da subjetividade, por conseguinte,


não se punha realmente para a filosofia grega, exceção feita, como
assinalou Husserl, para as tentativas de uma sofística que somente se
valia desta interrogação para denunciar a inanidade da reflexão filo-
sófica. Para Boécio. o conhecimento deriva dos meios que determinado
ser tem de conhecer: segundo ele, há duas faculdades de conhecimento
que diferem uma da outra pelo papel que, aqui, tem a temporalidade:
tanto a razão humana é uma faculdade limitada, que pede por um
certo deco1Ter temporal para poder efetuar-se, quanto a inteligência
divina é aque la de um Ser q ue apreende qualquer conhecimento em
um instante. Há entre a razão humana e a inteligência divina, explica
Boécio, a mesma relação que existe entre a mão e o olhar quando
ambos têm de inteirar-se da redondez de um corpo físico: enquanto
a mão precisa necessariamente de certo tempo para percorrer a su-
perfície do corpo e constatar-lhe a curvatura, o oJhar percebe esta
mesma redondez "de uma só vez e no seu todo (totum simul)" .84 O
conhecer não depende da realidade metafísica das coi sas, mas, essen ·
cialmente, das faculdades do conhecer. A inteligênc ia divina, em re-
lação à razão humana , para Boécio, é capaz de, sozinha, apreender
"de maneira absoluta com um único olhar do espírí to••85 em virtude
da imutabilidade de Deus, de sua eternidade. É eJa que explica como
Deus, sozinho, pode englobar simultaneamente todos os instantes do
tempo. Somente a inte1igência divina pode pensar ao mesmo tempo
o antes e o depois do conhecimento. A razão humana pode percorrer
todas as fases de uma existência, mas se esta for infinita. ela ficará,
em relação a si mesma, determinada no tempo, não passando então
de d ispersão e sucessão absolutas, perpetuidade e não eternidade.
A expressão tola simul será adotada pelos sucessores de Boécio
quando forem abordar a questão da eternidade e suas relações com a
temporalidade, quer dizer, quando colocarem a questão do entendi-
mento divino e sua relação com o entendimento humano. Descartes
usará, depois de São Tomás,86 esta mesma expressão tola simul para
designar certos aspectos de nosso espírito que, até à época de ·sua
reflexão, eram propriedade apenas do intelecto divino. Às objeções
de Gassendi, que não conseguia entender como a ignorância de um
homem a respeito de detenninadas qualidades divinas não fosse im-
pedimento para que ele tivesse acesso à idéia de Deus, Descartes
responderá: " Não pense [escrevia a Gassendi] que a idéia que temos
de Deus se forme pelo aumento sucessivo das perfeições das criaturas;
ela se forma toda e de uma só vez (rota símul) daquilo que concebemos,
a presença schopenhalferiana no texto fr~udíano 47

através de nosso espírito , como ser infin ito, incapaz de qualquer espéc ie
de aumento."87 Se esta faculdade é suscetfvel de vir a ser nossa. ela
dará testemunho daquilo que nosso espírito é capaz de fazer com os
próprios pensamentos desta fac uldade que exclui o antes e o depois;
e isto sucede, para retomar aqui a fórmula de Kant, quando a razão
" nos engana com a ilusão de uma extensão do entendimento puro" ,88
no caso, pelo uso transcendente da primeira máxima da razão pura.
Descartes transpõe para o ser humano aquilo que a tradição somente
v ia em Deus, tal como o faria Kant quando interiorizou no homem o
espaço e o Lempo que, para Newton, eram órgãos sensoriais de Deus.
É esta idéia do antes e depois do conhecimento - retomada na
Crítica da razão pura, quando Kant irá querer unir os dois termos
para, além de pensá-los simultaneamente, saber o" como" desta relação
- que irá constituir-se no essencial do problema transcendental. Po-
demos, portanto, dizer que o conteúdo da expressão tota simu/ encon-
tra-se igualmente em Kant, ao nível da sfntese da diversidade, na
Dedução subjetiva da primeira edição de 178 1. O " desenrolar suces-
sivo da díversidade"89 somente pode proporcionar a unidade da in-
tuição pela "compreensão deste desenrolar (die Zusammennehmung
desselben)" 90 e esta apreensão é em si intemporal a fim de que possam
ser percebidas as modificações da consciência empí-rica que também
estão sujeitas à dispersão do tempo e são objetos de uma consciência
psicológica. Tais mudanças, para serem percebidas corno tais, neces-
sitam de um "eu fixo e permanente" ;91 então levadas pelo flu xo dos
dados do sentido interno, elas são possíveis de serem apreendidas em
sua diferença, à condição de que esta possa instaurar-se entre o mo vente
e o idêntico, que escapa, no que lhe diz respeito, à dispersão temporal.
Para Kant, a consciência transcendental não pode ser, em si mesma, •
o objeto de uma consciência empírica, mas por causa de seu status
fora do tempo, e la pode ter condição de apreender as representações
q ue se escoam no tempo. Quanto ao tempo percebido conscientemente,
este é, em si, determinado por um tempo puro, intemporal e permanente
que é aquele de uma consciência pura cuja intemporaJidade é fonnulada
de maneira exemplar pela "Dedução subjetiva" das categorias, tal
como se acha exposta na primeira edição da Critica da razão pura.
Somente a afinidade dos fenômenos é psicologicamente consciente
no interior da consciência empírica: a consciência pura, também cha-
mada de apercepção transcendental, é, de fato , inconsciente, e somente
ela realiza a unidade objetiva da consciência, o que pennite a objeti-
vidade dos fenômenos. Torna-se, portanto, evidente que a intempora-
48 o sono dogmático de Freud

Jidade do conhecimento - na realidade, já entrevista antes do nasci-


mento da filosofia moderna, por exemplo com Plotino92 - é, em
Kant, fruto do desdobramento cronológico do em-si de uma reflexão
filosófica cuja lógica é o determinante da sucessão histórica dos sis-
temas.
Que teria acontecido se, como sustenta Freud, o tempo houvesse
sido um dos determinantes - junto com o espaço- do conhecimento?
Uma passagem da " Dedução subjetiva" dos conceitos puros do en-
tendimento responde a esta questão: " Se ao contar, esqueço que as
unidades que tenho no momento diante dos olhos foram sucessivamente
adicionadas por mim umas às outras, eu não reconheceria a produção
do número por esta adição sucessiva de uma unidade à unidade, nem,
conseqüentemente, o número, pois este conceito consiste unicamente
na consciência desta unidade de síntese." 93 A consciência transcen-
dental de~e . por conseguinte, necessariamente, satisfazer a uma in-
temporalidade que permite, sozinha, reconhecer a identidade de um
fenômeno que se repete, mas no tempo. Um reconhecimento desta
ordem exige o conceito de objeto: " Assim, o conceito de corpo, de
acordo com a unidade do diverso que ele nos leva a pensar, serve de
regra para nosso conhecimento dos fenômenos externos. Mas, se ele
pode ser uma regra das intuições, isso é unicamente porque representa,
em determinados fenômenos, a reprodução necessária do seu diverso
e, conseqüentemente, a unidade sintética na consciência que temos
dele. Dessa forma, o conceito de corpo toma necessário, na percepção
do exterior a nós, a representação da extensão e, com ela, as da
impenetrabilidade, da forma etc." 94
Precisamos de uma regra cuja aplicação exclua p tempo e que
tome necessário, a priori, a reprodução do diverso. Esta necessidade
de unidade conceitual não pode ser determinada pelo sentido interno
que é, ele próprio, determinado pelo tempo. Esta condição, original
e transcendental, nada mais é do que a apercepção· transcendental;9 5
• é a consciência pura ou transcendental% que é, ela própria, intemporal;
contrariamente à consciência empírica, que é a consciência' psicológica
ou natural, a consciência transcendental corresponde a "um eu fixo
e permanente" ;97 ela escapa, bem como o conjunto do aparelho trans-
cendental, a qualquer apreensão da consciência imediata e sdmente
pode ser percebida por meio da reflexão crítica.
Dessa fonna, Freud realizou aqui um ataque que não nos foi
difícil demonstrar ter sido precipitado e injustificado; ele quis fazer
crer - e sem dúvida disso estava convencido - ter sido o prim~iro
a JJresença scbope1rhaueriatul M lexlo freudiano 49

a di scernir que o pensamento se desdobrava a partir de uma condição


inlemporal. Mas ao fazê-lo, Freud não se contentou apenas de formular
um julgamento mal fundado, eie valeu-se do mesmo impulso para
avivar uma polêmica cujo conteúdo, no entanto, o traía no que toca
às fontes. Realmente, afirmar que o autor da Crítica da razão pura
considera o espaço e o tempo como formas necessárias do pensamento
é o mesmo que amputar da Crítica a " Dedução transcendental" e o
" Esquematismo transcendental"; isso é fazer uma leitura de Kant
rigorosamente idêntica à que foi feita por Schopenhauer. Convém
lembrar que o autor de O mundo como vontade e como representação,
das 12 categorias kantianas só conservou a da casualidade.98
Esta interpretação- bem como todas as tentativas de justificação
a ela relacionadas - permitia a Schopenhauer ter uma compreensão
muito pessoal da Analítica kantiana e, mais especialmente, enunciar
qu~ o pensamento só podia derivar do ~s.paço e do tempo, afirmando
nesse sentido: " Que o espaço e o tempo [... )não passam de maneiras
pelas quais se realizam no cérebro o processo da apercepção subjetiva;
e isso já é suficiente para demonstrar a impossibilidade do pensamento
de abstrair-se do espaço e do tempo." 99 Esta formulação é a que
encontramos na digressão sobre Kanl, em Mais além do princípio do
prazer, onde Freud, retomando por sua própria conta a interpretação
schopenhaueriana somente j~lga a filosofia kantiana - sobre a qual
se apóia explicitamente para justificar a pertinência da metapsicologia
- por um prisma deformador que leva a Crítica da razão pura ao
plano do ps i~ológico, confundindo a ordem do tempo com o curso
do tempo ·e fazendo coincidir o tempo determinado empiricamen~e
pela diversidade sensível com o tempo puro a priori. Pelo fato de
nada saber sobre a emergência do não-consciente na história da filo-
sofia, Freud dá provas de uma deficiência de graves con.seqüências.
Ter descoberto, ele mesmo. no discurso de seus pacientes. elementos
que lhe escapavam, num momento em que ia ao encontro de uma
teoria que discorria explicitamente sobre um Ente em princípio ina- •
cessível à consciência imediata. o levou a formar um conceito, o do
Inconsciente. Mas qualquer que seja a maneira a qual investiguemos,
·ainda veremos aqui, neste presente estudo, que a perspectiva de Freud
não chegou a sair da esfera do consciente. Quando se esforça por ·
descrever o Inconsciente, Freud nada mais faz do que atribuir.-lhe
aquilo que pensa poder retirar dos objetos da consciência psicológica:
. porque esta lhe parece coerente. temporal e limitada, ele vai fazer do
Inconsciente uma ord~m do ílogismo, da intemporalidade e do ilimi-
50 o sono dogmático áe Freud

tado. O fundador da psicanálise não percebeu que tais atributos do


Inconsciente deveriam impedi-lo de criticar aqueles que se li mitam
ao plano exclus ivo do consciente.

NOTAS

1. Goethe, J.W. von, Maximem tmd rejle.xwnen, t.XXXVIll, p. IIO, citado in Andler,
Ch., Nieczsclre. sa vie ec sa pensée, Paris, Gallimard, 1958, 1.1, p.9 .
2. Freud, S., Jung, C.G ., CoiTcspondance, trad. Fivaz-Silberman R., 1.11, p.230.
3. Ibidem.
4. Freud, S., Concribution à J'hi.ttoire du mouvement psychanalytique, trad. S .
Janké lévi tch, in Cinq leçons sur la psychanalyse, o p cit., p.88.
5. Ibidem, p.90.
6. Freud, S., Ma vie et la psyc:hanalyse, trad. M. Bonaparte, Pnris, co!. "ldées'',
Gallimard, rced. 1981 , p. 74.
7 . Ibidem.
8. Perelman. Ch., e Olbrechts·Tyteca, L., Traicé de l 'argumentation. La nouvclle
rhétorique, Bruxelas, Ed. de I' Université de Bruxelles, 31 ed., 1976, p.493-4.
9 . Freud, S., "Lettre à J. Boutonier'', li de abril de ! 920, citado in Bullezin Seé
Française de philosophie, jan.-mar. I 955, n.l , p.3-4.
10. Assoun, P.-L., Freud, IA philosophie et Jes philosoplles. Paris, PUF, 19 76,
p.24.
11 . Freud, S ., "Lettre à J. Boutonier", op.cít., ibidem.
12. Freud, S .. e Abraham. K., Correspondance, trad. E. Cambon e 1.-P. Grossein,
Paris. Gallimard, 1969, p.J03.
13. Freud. S., " Contribution à \' histoire du mouvement psychanalytique" , trad.
S . Jankélévitch, in Cinq /eçons sur la psyclwnalyse, op.cit., p.80.
14. Ibidem. O grifo é nosso.
15. Ibidem. p.80-l. O grifo é nosso.
16. " Entretanto, outros leram e releram esta passagem sem fazer a descoberta em
questão, e provavelmente o mesmo teria acontecido comigo, se tivesse na mocidade
um pouco mais de gosto por le ituras filosóficas ." (Ibidem, p.82).
17. Freud, S., " L'angoisse et la vie instinctuelle" , in Nouvet.les conférences sur
la psychanalyse, op.cit. , p. I 41.
18. l bidcm. O grifo ~ nosso.
19. Guéroult, M., Plailosophie de l'histoire de la phílosophit, Paris, Aubier, 1979,
p.74. .
20. Kanl, E., L 'unique fondement possible d'une démonstration de l'ui.slence de
Dieu, trad. S. Zac, Paris, col. La Pléiade. Gallimard, p.330.
a prtunçu schopenhaueriana no lt!.no freudiano 51

21. Philonenko, A. , artigo " Schopenhauer", in Hisroire de la J1hifosof1hie, Paris,


col. "La pléiade". Gallimard, 1974, uu, p.49.
22. Ibidem.
23. lhidem.
24. Freud, S., ·• Le moi ct !e ça", in Essais de psycha11alyse, op.cit., p.l 93.
25. Freud. S.. Abrégé de psychanaZvse, op.cit., p.74.
26. Ibidem. O grifo é nosso.
27. Schopenhauer, A. , Le monde cmnme volonté et comme représenration, op.cit..
p.834. O g rifo é nosso.
28. Ibidem, p.906 . O grifo é nosso.
29. Cf. s upra, p.32.
30. Ihidem, p.908.
3 1. Freud, S. , /mroduction à la psychanalyse, op.cit., p.276.
32. Schopenhauer, A., Le monde commc volonté ez comme représentation , op.cit.,
p.904.
33. Ibidem.
34. Frcud, S., lntroduclion à la psychanalyse, op.cit., p.276.
35. Schopcnhauer, A .. Le monde comme vofonté et comme représentation, op.cit.•
p.904.
36. Podemos encontrar traços da ligura do " guardião" o u do ·· poneiro" no Filebo
de Platão, onde estes personagens têm de presidir a escolha entre os diversos tipos •
de saber e evitar, deste modo, que se questionasse a un idade da consciência
filosófica; com este propósito, Sócrates pergunta a Protarco: .. Q ueres então que,
como um porteiro espremido c coagido pela turba, eu ceda, abra as portas e d eixe
afluir para dentro todas as ciências, para que a ciência menos pura se misture com
a que é pura?" (Platão: Filcbo, trad. A. Dies, Paris, Les Belles Leures, 1941 ,
62c).
37. Viria a propósito lembrar aqui a definição de pessoa dada por Ch. W olff
"Chamamos de pessoa o ser que conserva a lembrança de si mesmo, quer dizer,
que se lembra de ser aquilo mesmo que foi anteriormente neste ou naquele estado"
(Ch. Wolff, '' Psychologia rationalis", 741, citado in Lalande, A., Vocabulaire
technique et critique de la philosophie, artigo ·• Personnalité'' , Paris, PUF, J2i. ed.
1976, p. 758.
38. Husserl, E., Philosophie premiere, op.cit., t.l , p.l94.
39. Freud, S ., " L'inconscient", in Métapsychologie, op.cit, p.74.
40. Philonenko, A., L 'auvre de Kant, Paris, Yrin, 1975, t.l , p. I04.
4 I. Schopenhauer, A .• Le monde comme vokmté et comme repr ésentarion, op.cit.,
p.890.
42. Ibidem.
43. Freud, S., " L 'inconscient". in Mi tapsychologie, op.cit., ibidem.
44. Schopenhauer. A., ú monde comme vownté et comme représentation, op.ciL,
p. 900-l. O grifo é de Schopenhauer.
45. Freud. S., "L'ínconscient", in Métapsychologie, op.cit.. p.70-l.
52 o sono dogmático de Freud

46. Freud, S .. " L' inconscient''. in Mérapsychologie, op.cit.. p.71.


47. Schopenhaucr, A .• Le monde comme volonté er comme représenturion, op.cit. ,
p. ISS-6. Os grifos são de Schopenhaucr.
48. Schopenhauer, A.• Le monde comme volomé et wmme représencarion, op.cit.,
p.944.
49. Freud, S., "La personnalité psychique", in Nou~·elles conférences sur la psy-
chanalyse, op.cit., p. IOO.
50. Schopenhauer, A.. Le monde comme vo/onté et comme rep'résenlation, op.cit.
p.907.
51. Freud, S., '' Le moi et le ça", in &sais de psychan.alyse. op.cit., p.t 93.
52. Freud, S., " Une difficulté de la psychanalyse", in Essais de psychanalyse
appliquée, trad. M. Bonaparte e E. Marty, Paris, col. " ldées", Gallimard, reimp.
1983, p.l43.
53. Ibidem. p. I44.
54. Descartes. R., Discortrs de la méthode, op.cit., Édit. F. Alquié, 1.1, p.568-9.
AT., VI, 2.
55. Ey, H., La consdence, Paris PUF, 21 ed., 1968, p.403-4.
56. Rosset, C., Sclzopenhauer, philosophe de J'absurde, Paris, PUF, 1967, p.44.
57. Ibidem, p.46. ·
58. Schopenhauer, A.• Le monde comme volonti el comme représentalion , op.cit.,
p.9 I I. .
59. Freud, S., " Le moi et le ça", in Essais de psychanalyse, op.cit., p.l93-4.
60. Freud, S., "La personnalíté psychique", in Nouveiles conférences sur la psy-
clwnalyse, op.cil., p.l03-4.
61. Ibidem. O grifo é nosso.
62. Ey, H., La conscience. op.cit, p.398.
63. Schopenhauer, A., Le monde comme vo/onté et comme représentation, op.cit.,
p.898.
64. Freud, S., ·• Le moi etle ça", in EssaiJ tk psyciUJnalyse, op.cit., p.l79. O grifo
é nosso.
65. Freud. S., Abrégé de psyciUJnnlyse, op.cit., p.6.
66. Schopenhauer, A., De ((j quadruple racine du príncipe de raison suffironte,
· trad. J. Gibelin. Paris, Vrin, 1972, §42.
67. Schopenl)auer, A., ú 11(()11.(/e contJne volonté et. comme représentation, op.cit.,
p. l045.
68. Freud. S., ·~ La personnalité psycmciue", in NouveUes eot~férences sur la psy-
chanalyse, op.cil., p.99.
69. Freud, S., " L' inconscíent", in MéÚzpsychologie, op.cit., p.69.
70. Freud, S., Cinq leçons sur la psychanalyse, op.cit, p.32.
71. Freud, S., Psychopathologie di la vie qwJtidienne; op.cit., p.258.
72: Schopenhauer;·A., ú monde comme volonlé tt comme repriseniDtion, op.cil., ·
p.819: O grifo é de Schopenhaucr. · · · ·
a presença sclwpeniUJueriana no te:no freudiano 53

73. Freud, S., Abrégé de psychanalyse, op.c it., p.3.


74. Ibidem. O grifo é nosso.
75. Schopenhauer, A., lA monde comme volortli et comme représentation, op.cit.,
p.824. O grifo é nosso.
76. Platão: Trecho de Teeteto ou sobre a ciincio, de acordo com a tradução
francesa de A. Dies, Paris, Les Belles Lettres. 1967: "É bem próprio de um filósofo
esre, sentimento: o admirar-se. A filosofia não tem outra origem, e aqu~le que fez
de /ris a filha de Tlraumas pareu enuntkr bem de genealogia" (I 55d).
77. Schopenhauer, A.• Le monde comme volonté et comme reprisentation, op.cit.,
p.851. .
78. Ibidem, p.858.
79. Ibidem, p.858-9. Os glifos são de Schopenhauer.
80. Ibidem, p.859.
8 1. Freud, S .. L'avenir d 'une illu.sion, op.cit., p.39.
82. Ibidem. .
83. Freud, S., " Au-delà du principe du plaisir" in Essais de psychmwlyse, op.cit.,
p.34-5.
84. Boece: Consolation de la phüosophie, trad. J.-L de Mirando!, Paris, édit. de
la Maisnie, 1981. p.303.
85. Ibidem. p.305.
86. Saintlbomas: Som.me théologique, l, IO, art. I: " Ultrum conveniente r difiniatur:
aetemitas quod est interm~nabilis 'vilae tola simul et perfecta po.ssessio."
87. Descartes, R., Réponses aux cinquiemes.objections, É.d. F. Alquié, 1.11, ·p. 817.
88. Kant, E.• Critique de la raison pure, op.cit., p.252.
89. Ibidem, p.ll2a.
90. Ibidem.
91. Ibidem, p.120a.
92. Plotin: Ennéodu, IV, ~· I, 12, o-p.cit., «lPOVOÇ rta&l 1l V01l6UJ.
93. Kant, E., Critique tk la raison pure, op.cit., p.ll6a.
94. Ibidem, p.l I 9a. ·
9S. Ibidem, p.I20a.
96. Ibidem.
97. Ibidem.
98. Schoj>enhauer-, A.• Le monde comme volonté et comnu: reprisentation, op.cit,
p.560. .
99. Ibidem, p.706.
CAPÍTULO UI

Uma lógica da aparência

A razão aborda a questão do indivíduo sob modos diversos, mas em


função de uma referência permanente que é a sua quase impossibilidade
de manter a coerência no curso desta tentativa. Como escreve P. Bérubé,
.. tais como a agulha magnética atraída por um pólo longínquo, [as
doutrinas que visam a individualidade] oscilam apontando claramente
na direção de um mesmo ponto no espaço; mas, quando elas querem
traduzir na linguagem dos filósofos a apreensão do objeto, parece m
ficar loucas como uma bússola nas vizinhanças do pólo" . 1 Não obs-
tante, numerosos leitores de Freud acreditaram encontrar na psicanáli se
uma abertura para o problema do conhecimento do indivíduo, achando,
sem dúvida, que, de certa maneira, Freud havia não só conseguido
refutar o adágio escolástico omne indivíduum ineffabile, como também
conseguira esclarecer essa interrogação fundamental da metafísica
onde Kant via " um dos abismos do espírito" .2
Evidentemente, acha-se excluída a possibilidade de que a psica-
nálise possa permitir esta experiência numenal da qual dizia Kant não
poder esperar que fosse algum dia atingida, em virtude da falta de
um espírito provido " de um entendimento que, ao tomar consciência
de si próprio {durch dessen SelbstbewustseinJ, fornecesse, ao mesmo
tempo, a diversidade da Intuição" .3.
Nosso propósito será o de demonstrar que, ao tentar desatar o
nó górdio do conhecimento do indíviduo ou pelo menos ao procurar
avançar no seu conhecimento, Freud fez uma escolha inadequada quan-
do se deixou inspirar pelo precedente do Wille. Logo de saída. torna-se
claro que Freud foi levado a prover o Inconsciente de leis de fundo-
• namento interno que obedecem aos princípios da não-contradição c
do terceiro excluído sem os quais nada se poderia enunciar;4 o que
não o impediu, entretanto, de estabelecer que o Inconsciente se defi -

54
uma lógica da aparência SS

nisse pela coexistência dos çontraditórios. O Inconsciente aparece,


assim, como pertencente tanto à esfera do consciente quanto à do •
irracional; ele seria, por conseguinte, como um segundo consciente
que, separado pela "barra", ficaria inacessível à consciência psicoló-
gica, apesar de não funcionar diferentemente desta última.
Parece que Freud, a partir daí, chegou a esta grave inconseqüência
depois de ter atrelado seu esquife teórico à fi losofia de Schopenhauer,
sem ter elucidado aquilo que era, para este, a oposição da representação
e da Vontade, sem ter descoberto que a Vontade, aquele Ente-Caos,
substratum das representações e dos corpos, não conhecia em seu seio
a causalidade- pois o filósofo sustenta que o princípio da razão só
se aplica ao mundo fenomenal - ; tal, no entanto, é o motivo que fez
precipitar Freud nas ilusões transcendentais que resultam de um uso
imoderado do segundo princípio da razão, as mesmas que a reflexão
kantiana já havia claramente denunciado. Voltando a cair no âmbito
da anliga questão do conhecimento de um Ser absoluto, suporte da
manifestação, problema inerente ao modo do filosofar ontoteológico,
Freud coisificou aquele Ser a que dá o nome de Inconsciente, trans-
portando-nos a uma teologia afirmativa que acredita poder determinar
a natureza do Ser dos seres. Já Fílon de Alexandria reprovava, por
terem "aplicado à Causa universal também as idéias que haviam feito
de si mesmos", aqueles a quem dava o nome de " amigos do corpo",
opondo-os aos "amigos da alma" e considerando-os " providos de
uma natureza relativamente pesada e obtusa" .5 A esta advertência, o
propósito kantiano empresta inteiro apoio. Melhor ainda, ele a cir-
cunstancia de tal maneira que somos obrigados a perguntar-nos como
a lição que a primeira Crftica dá sobre este ponto pôde ser desconhecida
de Schopenhauer e, do mesmo modo, também desconhecida daqueles
que a tomaram como modelo.

O inconsciente: uma idéia transcendental

A "Dialética transcendental" , segunda divisão da Teoria transcen-


dental dos elementos da Critica da razão pura, mostrou a tendência
principiai da razão para consubstanciar a idéia do Ser dos seres, para
realizar a condição de qualquer pensamento. Uma reflexão como esta
deveria, portanto, permitir-nos apreender aquele outro c~nceito :ta
razão que é o Inconsciente. Esta busca nos levará a descobnr na razao,
entre outras inclinações principiais, aquela que visa atingir o Ser por
56 o sono dogmático de Freud

uma ilusão de natureza ainda não elucidada. Eis aqui uma idéia da
qual Kant, sem tê-la levado a uma consciência explícita, deu suas
detemiinações numa análise da faculdade dos princípios. Da mesma
fonna que as idéias do Eu, do Mundo e de Deus, esta idéia não se
situa no plano da experiência possível, mas, contrariamente a estas,
este conceito da razão difere da ordem da unidade de modo a corres-
ponder àquele da pura diversidade. Esta idéia, que podemos chamar
de idéia de vida, será o determinante da obra de Schopenhauer. Quando
se conhece a dependência do freudismo face às linhas de força do
sistema de Schopenhauer, toma-se evidente a necessidade de eluCi-
dar-se a gênese do texto deste último para atingir-se a problemática
originária e fundadora da psicanálise. ·
Ao proclamar-se sucessor de Kant, Schopenhauer introduz certa
ambigüidade, na verdade, uma conseqüência direta do uso excessivo
do poder de interpretação. Com efeito, o texto kantiano mantém real-
mente oculta a origem desta ambigüidade. Kant, por sinal, havia an-
tecipado tal possibilidade ao observar que "nada há de extraordinário
no fato de que possamos compreender·melhor um autor do que ele
próprio pode compreender-se, e se tal acontece é por não ter sido ele
capaz de determinar suficientemente sua concepção" ;6 isto leva a
supor certas determinações incluídas no pensamento de origem que
não puderam ser transpostas pelo autor à uma consciência explícita.
Esta compreensão da sucessão dos sistemas remonta a Aristóteles que
se revela, assim, o promotor do conceito da história da filosofia. Numa
passagem da Metafísica, Aristóteles opõe ao termo PouJ.ta9at o de
~uxp9pouv para significar que os filósofos deixam perceber, em seus
textos, determinado pensamento apesar de não o enunciar explicita-
mente. P. Aubenque citava esta observação do estagirita para mos-
trar-nos a possibilidade de estabelecer uma distinção nos filósofos
entre "sua consciência de si psicológica [...J e sua consciência de si
absoluta" .1 E a propósito dos partidários da teoria das idéias, Aristó-
a
teles insiste: "Embora os partidários desta doutrina não articulem
com muita clareza, é, no entanto, isto que eles têm tendência a dizer.''s
Como a maioria dos leitores do século XX, Schopenbauer fez da
Crítica da razão pura urna obra antropológica, confundindo o a priori
• com o inato e rebaixando, para usar a palavra de A. Philonenko, a
noção kantiana de método à condição de órgão; o que relega o idealismo
transcendental da Crítica a um estado psicológico que ainda era aquele
da Dissertaçãp de 1770: " Já na Doutrina da ciência, Kant percebe
uma transformação de sua fil~sofia que lhe trai tanto a fonna como
uma lógica da aparincia 57

o conteúdo. Ele, certamente, teria ficado ainda mais amargurado se


ti vesse presenciado a verdadeira metamorfose por que passou sua
filosofia das ciências da natureza na Naturalphilosophie de Schelling.
Que diria ele se tivesse visto a interpretação que deu Schopenhauer
à sua "Estética transcendental" em O mundo como vontade e corno
representação? Sob certos aspectos, estamos no direito de considerar
a totalidade do idealismo alemão como uma traição à filosofia trans-
cendental kantiana. Nem Fichte, nem Schelling, nem Schopenhauer
foram fiéis ao espírito kantiano." 9
Costuma-se atribuir a distância que separa a filosofia de Ka.nt
da de Schopenhauer àquilo que este último considera como desprezível
na Dedução kantiana das categorias e no Esquematismo transcendentaL
Na realidade, esta distância acha-se subordinada a uma diferença m~s
de origem. Para Kant, o discurso sobre o indivíduo enquanto tal, da
mesma maneira que o discurso pelo indivíduo enquanto tal não podem
ambos corresponder a um conhecimento universal e necessário. Afinal,
que pode significar o discurso num " indivíduo humano [... ] que [... ]
não é exatamente humano na medida em que ele é indivíduo e não é
indivíduo, e na medida em que é humano?.. 10 Mas o conhecimento
supõe (e esta, a mudança operada por Kant) um a pcsteriori, quer
dizer, uma sensação ou matéria de fenômeno que remete a determi-
nações do individual. Portanto, sem este a posteriori, sem aquilo que
é determinado em parte pelo individual, não se pode falar, diz a Critica
da razão pura, de conhedmento, mas apenas de pensamento; o co-
nhecimento não pode separar-se do individuo enquanto tal; um para-
doxo certamente: tão· longe desce o entendimento na determinação
das espécies que acaba sendo esta a única maneira, segundo Kant, de
apreender-se o geral; "o conhecimento dos fenômenos em sua deter-
minação universal (que somente é possível pelo entendimento) exige,
afirma Kant, uma especificação infinitamente continuada de seus con-
ceitos e urna progressão constante na direção das dife~nças que ainda
permanecem e das quais se fez abstração no conceito da espécie e
mais ainda, no conceito de gênero" . 11 A outorga, a partir da Dissertação
de 1770, de um estatuto do conhecimento sensível coloca Kant diante
de dupla exigência: integrar os dados da sensação, portanto, das de-
terminações do individual, e conseguir urna fonna onde o conheci-
mento não seja afetado pela mobilidade deste individual. ' 2
· A Crítica da razão pura deriva, certamente, daquela "razão fi-
losofante" de que fala M. Guéroult, daquela faculdade que não pode
ímpediNe de buscar um conheciment~ dos objetos do mundo fl'sico,
58 o sono dogmático de Fretul

sempre e em qualquer parte legítimos, e é isto que faz a razão idenlifícar


este saber com a negação do individual. Quando. na Resposta a Eber-
hard, Kant afirma que " os objetos como coisas em si fornecem a
matéria das intuições e mpíricas [ ...], mas f... ) não são a matéria de-
las" ,13 entendemos perfeitamente que, entre aquilo que é "fornecido"
pelas coisas em si e aquilo que constitui a matéria do conhecimento,
se situa o individual , chamado por Kant, em" A estética transcenden-
tal", de " efeitos de nossa organização particular" .14 As qualidades
parecem inerentes aos fenômenos , como o sabor e a cor, elas não
podem dar qualquer representação universal e necessária: para o mesmo
indivíduo, um determinado objeto será apreendido de maneiras diversas
de acordo com o tempo; a um dado instante, determinado objeto será
apreendido diferentemente por um e outro indivíduo, quer dizer, de
acordo com o espaço, " ... aquilo que, originariamente, não passa de
fenômeno , por exemplo, uma rosa, tem, em sentido empírico, o valor
de uma coisa em si que, no entanto, do ponto de vista da cor pode
parecer diferente a cada um que a olhe" . 15 Tais representações "não
são, por conseguinte, representações a priori, mas fundam-se na sen-
sação" 16 que é, ela própria, "a matéria de conhecimento" .17 Aquilo
que aparece como propriedades das coisas corresponde apenas a " mo-
dificações de nosso sujeito, modificações que podem ser diversas se-
gundo os diferentes indivíduos·· . 18 Mas caso este elemento individual
tenha papel necessário no conhecimento, este só pode ser o de dar
oportunidade a nossas facóJdades de conhecer de se porem em ação;
e estas faculdades nós vamos encontrá-las na maior parte dos textos
da Crítica limpando aquilo que provém do individual. Tal unificação,
que se apóia no a posteriori e na matéria que a diversidade dos conceitos
do entendimento constitui para a razão, é determinada por um a priori
que deriva, em última instância, desta mesma razão que "é o poder
que nos fornece os princípios do conhecimento a priori . Dessa forma,
a razão é aquela que contém os princípios que servem para conhecer
qualquer coisa inteiramente a priori. " 19
O a priori é aquilo que não é matéria .da experiência, sendo o
termo Erfahrung, aqui tomado no sentido de intuição empírica. Tra-
ta-se, portanto, de uma negação daquilo que tem a marca do individual:
" Por con hecimentos a priori iremos entender, daqui por diante, não
os que derivam desta ou daquela experiência, mas aqueles que são
totalmente independentes de qualquer experiência." 20
Quanto ao conceito de " puro", éle se aplica a representações
totalmente destituídas de determinações individuais: "Dou o nome de
uma lõ~ü:a da aparência 59

puras (no sentido transcendental) a todas as representações nas quais


não se encontre qualquer coisa daquilo que pertença à sensação.'<!J
Trata-se de negar o individual, o contingente, de deixar que subsista
apenas o a priori: '' ... se no conceito emprrico que você tem de um
objeto [Objects], seja ele corporal ou não-corporal, você deixar de
lado todas as propriedades que conhece peJa experiência, haverá uma
delas, no entanto, que você não poderá remover, aquela que o faz
pensar como substância ou como inerente a uma substância [ ... ]. É
preciso, portanto, que você, levado pela necessidade com que um
conceito se lhe impõe [euch aufdringt], reconheça que ele tem seu
lugar a priori no seu poder de conhecimento."22
Kant também dá ao termo "experiência" o sentido de uma ex-
periência científica no interior da qual se efetua a síntese dos dados
intuitivos. Nos Prolegômenos, quando opõe os julgamentos de per-
cepção aos julgamentos de experiência, ele define a experiência por
oposição a uma percepção que deriva do individual: " ... se o quarto
está quente, o açúcar doce, o .absinto desagradável, estes são julga-
mentos de valor, simplesmente subjetivos. r...] chamo estes julgamen-
tos de julgamentos de percepção. O mesmo não acontece com o jul-
gamente de experiência. O que a experiência me ensina em certas
circunstâncias, ela deve, ao mesmo tempo, ensinar a mim e igualmente
a qualquer outra pessoa, a validez não se restringe ao sujeito, nem à
sua disposição momentânea." 23
A " Estética transcendental" não esclarece suficientemente as con-
dições desta experiência que requer a intervenção de um entendimento
que elabora O diverso da intuição. É o que se encontra várias vezes
assinalado em " A analítica transcendental", sobretudo, no início da
" Dedução transcendental": " O diverso das representações pode estar
dado numa intuição simplesmente sensível. vale dizer, aquela que é
somente receptividade, e a forma desta intuição pode resid' r a priori
na nossa capacidade de representação, sem ser outra coisa que não
seja a maneira pela qual o sujeito é afetado."24 Este diverso, que não
necessita da intervenção da espontaneidade sintetizantc do entendi-
mento, responde ao individual; ele é a representação da maneira pela
qual as disposições singulares, tais como se acham ~qui e agora, vão
recepcionar aquilo que emana do objeto. Para que a representação
atinja universalidade e necessidade, é preciso que esle diverso possua
uma ligação e ele somente a terá pelo entendimento: " A ligação (con-
junctio), em geral, jamais pode vir-nos dos sentidos (durch Sinne ill
uns Kommen) , nem, conseqüentemente, estar contida (zugleich) na
60 o sono doRmático de Freud

forma pura da intuição sensível; pois ela é um ato da facul dade de


representação; e; como temos de chamar esta última de en tendimento
para distingui-la da sensibilidade, qualquer ligação {... ] é um ato do
entendimento ao qual devemos dar o nome (díe Benennung) geral de
síntese, para que assim tique, ao mesmo tempo, assinalado que nada
podemos representar-nos como ligado ao objeto (Object), sem o termos
ligado a nós mesmos, e que; por todas as representações, a ligação
(Verindung) é a única que os objetos (Objecte) não podem fornecer,
mas somente o próprio sujeito pode efetuar, uma vez que ela é um
ato de sua espontaneidade." 25
Kant faz uso da noção de experiência segundo duas perspectivas.
· Ele começa por identificar a· experiência com a intuição empírica, .ou
seja, com as modificações subjetivas que variam, para um mesmo
objeto, em função do espaço e do tempo e que são modificações de
ordem psicofisiológica. Mas esta dimensão individual, necessário pon-
to de partida e condição de qualquer conhecimento, vai dar lugar, sob
a ação unificadora da síntese categórica do entendimento, a uma ex-
periência ("nossa experiência") que, a partir deste momento, será
destituída de suas primeiras determinações individuais.26 A passagem
de uma para o utra espécie de experiência corresponde à ação de um
a priori- que se instala na razão- sobre um a post~ riori que traduz
os modos não-mediatos da receptividade de nosso espírito. ·
Saber se o a posteriori tem ou não papel determinante na síntese
fe ita pelo a priori dá no mesmo que colocar o problema da relação
entre o sujeito transcendental - o .. Eu penso", idêntico em cada
indivíduo - e o eu empíriéo. É uma questão não elucidável, pois se
a apercepção empírica permite expor a singularização do sujeito, como
observa G. Lanteri-Laura, .. então, o tipo de existência singular que
podemos imaginar não ultrapassa um modo de ser onde tudo aquilo
que determina a singularidade escapa ao próprio sujeito e conserva
uma radical conting~ncia" .27
A primeira parte da " Análise transcendental", a " Analítica dos
conceitos", recusa conceder um papel ao a posttriori na síntese cons-
titutiva do conhecimento: a matéria do fenômeno, que encobre as
determinações do individual, é apenas determinável, nunca determi-
nante, sendo que o a posteriori nada tem a ver com a maneira pela
qual vão as categorias informá-lo. Assim, uma representação que me
ensina que tal coisa é tal sem deixar-me saber que ela pode ser outra
coisa não é um conhecimento. 28 Aliãs, seria o caso aqui de uma rep-
resentação? Com efeito, "o Eu penso deve (muss) poder acompanhar
uma lógica da aparência 61

todas as minhas representações; pois do contrário estaria representado


em mim qualquer coisa que não poderia de modo algum ser pensada.
o que equivale a dizer q ue a representação seria impossfvel, ou então
que, pelo menos, e ta nada é para mim" .29 O parágrafo " 14" da "De-
dução dos conceitos puros do entendimento" enuncia que so~ente
podemos fazer um julgamento disj untivo sobre a relação entre o objeto
e a representação: ou bem a representação é determinada pelo a pos-
teríori e então, não sendo subtraída da indeterminação do individual,
ela não pode ocasionar qualquer conhecimento universal e necessário;
ou bem a representação é determinante e torna possível o objeto.30
O entendimento tem um papel unificador e a unidade absoluta
é unificadora pelo recurso à generalidade~ o que pela " Analítica dos
conceitos" é enunciado do seguinte modo: " Todos os julgamentos
são [...) funções da unidade em nossas representações, pois que à uma
representação imediata substitui uma representação mais elevada que
contém a prime ira, bem como várias outras, e que serve ao conheci-
mento do objeto, de maneira que muitos conhecimentos possíveis
estão reunidos num só." 31 É um mesmo movimento na direção da
unidade, pela generalização, que iremos encontrar na esfera da razão:
esta, chamada faculdade dos princípios, conduz o entendimento à
unidade de seus próprios conhecimentos, os quais, sem a razão, não
teriam qualquer propensão para se reagruparem quando se unirem:
" A unidade sistemática ou racional dos diversos conhecimentos do
entendimento é um princípio lógico que serve Já, onde o entendimento
não pode chegar sozinho a estabelecer regras, para vir em sua ajuda
por meio de idéias e, ao mesmo tempo, fornecer, na diversidade de
suas regras, uma unidade fundada sobre um princípio (uma unidade
sistemática) e, com isso, uma ligação tão extensa quanto .possível." 32
O entendimento não encerra em si mesmo qualquer regra que dirija
mais sua própria espontaneidade na direção da unidade dos conheci-
mentos. Suas regras se limitam a ligar a diversidade da intuição,
somente determinando as condições da experiência e não fornecendo
conhecimento por meio de princípio.33 ·
A atividade· da razão esconde esta c·arencia aprimorando a ação
da faculdade das regras que o entendimento estabelece.34 É a força
heurística de um principio racional que o conhecimento encadeia em
sistema ·sob a ação diretota de uma idéia, a Idéia " de um todo ·do
conhecimento q'ue antecede o conhecimento dete ttninado das partes
e que contém as condições necessárias para determinar, a priori, a
cada pa~e o seu lugar e sua relação com a.~ outras". 35 Uma tal es-
62 o Yono dogmáticn de Freud

pontaneidade racional leva, sobretudo, o cmendimento a conceber:


fora da experiê ncia, conceitos úte;.; para o conhecimento experimen-
taJ.36
Mas, o uso dos princípios da razão pode de imanente passar a
transcende nte, sem que se perceba, com a razão aumentando a extensão
dos conceitos do entendimento, fora de qualquer intuição sensível.
Disto resulta aquilo a que Kant dá o nome de aparência transcendental.
O entendimento acredita ter atingido o conhecimento dos seres sin -
gulares, incondicionados e que seriam eles próprios as condições de
todas as condições do condicionado; esta ilusão faz com que se con-
siderem estes seres singulares como diferentes dos fenômenos, embora
mantenham-se estes úllimos na esfera de qualquer ser e conhecendo
tudo que esteja a eles relacionados. A aparênc ia transcendental não
é, primeiramente, consciente; ela não pode ser de maneira imediata
o objeto de uma consciência empírica. E depois que se tem dela
con sciência, ela ainda subsiste, "zombando da razão" , como se não
tivesse sido desvendada: "A dialética transcendental, por conseguinte,
se contentará em descobrir a aparência dos julgamentos transcendentes
e, ao mesmo tempo, em impedir que ela .nos engane; mas se esta
aparência (como a aparência lógica) também dissipa-se e deixa de ser
uma aparência, é algo que a dialética j amais poderá alcançar. Estamos,
com efeito, lidando com uma ilusão natural e inevitável que repousa
em princípios subjetivos dados por ela como objetivos, ao passo que
a dialética lógica, na soluçlro dos paralogismos, tem apenas que mostrar
um erro na aplicação dos princípios ou uma aparência artificial em
sua imitação." 37
Aquilo que os comentaristas da Crítica da razão pura, em geral,
retêm dela é o papel unificador dado à razão. Assim, exprime-se F.
Alquié quando observa que "a teoria kantiana da razão traduz, sobre-
tudo, uma nostalgia da concepção leibniziana: os princípios racionais
unificam fazendo com que os casos particulares sejam regidos pelas
regras gerais, por conseguinte, segundo as exigências de uma identi-
ficação lógica'' .38 Realmente, quando define a estrutura lógica que
subentende o trabalho realizado pelo pensamento metafísico, Kant
insiste, na maior parte da " Dialética transcendental" , neste aspecto
unificador da espontaneidade racional. E, de fato ; na maior parte da
Crítica, assistimos à unificação dos diversos sucessivos que são, pri-
meirameme, a intuição sensível unificada pelo entendimento, depois,
os conceitos e os julgamentos do entendimento que, formando uma
diversidade para a ra7.ão, são unific ados por esta que " procura, no
uma lógica du aparência 63

raciocínio, levar a um número muito pequeno de princípios (de con-


dições gerais) a grande variedade dos conhecimentos do entendimento
e, assi m, operar, aqui, a mais alta das unidades" .39 No entanto, no
final da "Dialética", vemos surgir um poder da razão que empurra o
entendimento não mais na direção de uma unidade, mas para a diver-
sidade dos conhecimentos.
A propósito da noção de princípio, convém já observar, a partir
deste momento, que a Crítica da razão pura fala dele - seja no
singular, seja no plural - empregando, por vezes, o tcnno " máxima"
bem antes que, no fim da " Dialética transcendental" , possamos es-
c larecer esta imprecisão termino lógica. Por sinal, jamais serão verda-
deiramente esclarecidos estes princípi os da razão; como assinala Hus-
serl, " todos os conceitos transcendentais de Kant, aqueles do Eu da
apercepção transcendental, aqueles das diversas faculdades transcen-
dentais, aquele da coisa em si r... l, são conceitos construti vos que
resistem, por questões de princípio, a um esclarecimento definitivo" .40
O q ue realmente sabemos é que a "Dialética" di stingue " a razão do
ente ndimento chamando-a de o poder dos princfpios" .41 Em conse-
qüência, mesmo se desta diversidade dos princípios Kant houvesse
deduzido a urudad~ de um princípio que fosse determinante da atividade
racional, esta diversidade marcaria a espontaneidade principal. Aliás,
certos comentaristas, como Vaihinger ou R. Verneaux. não deixaram
de assinalar que o termo " ra7.ão" tem no texto kanti ano e até mesmo
no próprio seio da Crítica da razão pura, vários sentidos possíveis.
Isto se deve ao fato de a unidade do conhecimento ser, aqui, o objeto
de uma intenção, não um terminus ad quem acessível : " A razão pro-
cura, no raciocínio, levar a um número muito pequeno de princípios
(de condições gerais) a grande variedade dos conhecimentos do en-
tendimento e, assim, operar, aqui, a mais alta das unidades."42
Claro, a " Dialética" põe o problema da relação existente entre
os princípios no interior da própria razão; mas até o final da Crítica
subsistirá certo grau de indeterminação com relação ao assunto. Será
a partir desta ambigüidade que Schopenhauer justificará seu sistema:
irá pretender ter encontrado em Kant a recomendação do uso quase
exclusivo do segundo princípio da razão.
Para Kant, o raciocínio é, antes de tudo, mediato; ele é de ordem
silogística. Ora, o silogismo estabelece uma relação entre o condicio-
nado e a condição: a conclusão do silogismo, o consequente, é o
condicionado, enquanto que o antecedente, as premissas, representam
a condição (a menor é a condição da regra que é a ·maior). A natureza
64 o simo dogmático de Preud

da razão é a de procurar a condição do condicionado: de estabelecer


uma conclusão (um condicionado) e fazê-la procurar aquilo que é a
condição deste condicionado, ou seja, da conclusão que o silogismo
acabou de enunciar. A razão irá, por conseguinte, proceder por um
encadeamento de silogismos, onde a conclusão (condicionado) de um
silogismo serve de menor ao silogismo seguinte; trata-se de um pros-
silogismo regressivo onde se substituem sujeitos menos gerais por
outro mais genérico.
Aliás, segundo a obra de Kant intitulada Lógica, "depois de
Aristóteles, se a lógica praticamente não ganhou em conteúdo, não
foi pelo fato de sua natureza ter-se constituído em empecilho" .43 En-
contramos, com efeito, na Crítica da razão pura, bem como nos textos
do estagirita, as principais orientações de uma lógica que apreende o
raciocínio na pura extensão; por exemplo, no começo da "Dialética
transcendental", Kant afirma que "na conclusão de um silogismo, nós
restringimos o predicado a um objeto, depois de haver pensado ante-
riormente, na premissa maior, em toda a extensão sob certa condi-
ção" .44 Kant, aqui, é herdeiro de Aristóteles: sabemos que Hamelin
demonstrou, nas " Primeiras analíticas", que a expressão EV ol..ro ewm
significa "ser totalmente da extensão de" . 4 ~ O silogismo tomado, as-
sim, na Critica da razão pura, em completa extensão, não passa de
uma subaltemação; isto permite dizer que, com relação à espontanei-
dade racional tal como é apreendida, ela é o que há de mais universal,
ou seja, no que diz respeito ao número, é aquilo que está o mais longe
possível do indivíduo que explica, no que toca ao número, o que está
mais próximo do indivíduo.
Todo o aparelho transcendental kantiano está elaborado de acordo
com o esquema de urna atividade do entendimento e da razão que
tem por objetivo retirar, dos. dados da intuição, aquilo que procede
do individual. Já, na "Estética transcendental", constatamos que o
autor diferencia a intuição empírica do conceito por meio da oposição
exi stente entre o singular e o geral; a Lógica dirá também que "a
intuição é uma representação singular (representatio singularis) e o
conceito uma representação geral (representati_o per notas commu-
lles)" .46 O entendimento, orientado então, pelo primeiro princípio da
razão, irá proceder por generalizações sucessivas, apreendendo os ob-
. jetos da experiência na fon'na de conceitos cada vez mais universais,
remontando através de gradações sucessivas à árvore de Porfírio e
atingindo a idéia de substância, aquilo que há de mais universal, aquilo
que contém o menor número possível de determinações porque ocúltà,
uma lógica da aparêncw 65

virtualmente, todas as diferenças. E, adotando a forma do silogismo,


Kant mostra a razão atingindo a Idéia da alma-substância (o Eu), a
idéia do Mundo ou a idéia de Deus. A razão, diz Kant, assim remon-
tando não exige que a série seja completa no que diz respeito ao.s
condicionados, mas deve sê-lo no que toca às condições. Como diz
F. Alquié, "para explicar o determinado, eu posso negligenciar o
futuro. Mas preciso de um princípio primeiro, de um começo absoluto.
Contrariamente a Hegel, para quem o absoluto é resultado, aquilo que
foi encontrando sua razão naquilo que é , e aquilo que é naquilo que
será, Kant busca o absoluto no começo" .47 Remontamos, dessa forma,
à totalidade das condições do condicionado, vale dizer, ao incondi-
cionado que serve de princípio à síntese do condicionado, e desem-
bocamos na idéia transcendental que deriva do uso transcendente do
primeiro princípio da razão pura. E, se ele determina a unidade do
conhecimento, a sistematização de todo conhecimento, um tal uso
deste princípio ultrapassará os limites da experiência possível. A razão
fornece ao entendimento a ilusão de um conhecimento que se baseia
nos seres: ela é uma faculdade não somente lógica, mas também um
constituinte que considera as idéias como seres (o Eu, o Mundo e
Deus) dos indivíduos que são, aqui, apreendidos sob o ângulo de sua
própria unidade. Assim, é determinado o Deus da metafísica, como
aquele de Leibniz que apenas encerra afirmações e nenhuma negação.
Há, portanto, pelo menos um princípio subjetivo que, no seio da
razão, responde pela metafísica e pela experiência científica - aquela
em que um conhecimento não é fato variável segundo a dispersão
espacial e o decorrer temporal - , idêntica em qualquer parte e em
qualquer tempo, para qualquer consciêiJcia individual não importa
qual seja esta. Este princípio, que vai além do determinado, explica,
ao mesmo tempo, a unidade do conhecimento e sua necessária siste-
matização. Todo o esforço de Kant, ao longo da "Analítica dos con-
ceitos" e na maior parte da " Dialética transcendental .. , tende a jus~
tificar, por um lado, a adequação entre um princípio e conceitos que
não derivam da experiência e, por outro, de uma experiência que se
submete a um taJ a priori. A primeira máxima da razão lógica fornece
a unidade ao diverso que a multiplicidade dos conceitos do entendi-
mento representa para a razão, enquanto que a máxima é usada não
mais de fonna imanente, mas transcendente, ou seja, ao ultrapassar
os limites da íntuição sensível, ela se toma princípio da razão pura;
o que faz o entendimento crer na existência de seres individuais que
são pura unidade: as idéias. da razão pura, as do Eu, do Mundo e de
66 o sono dogmático de Freud

Deus são seres individuais, absolutos e incondicionados; eles consti-


tuem um dos termos extremos da generalização e da classificação,
dois procedimentos que vemos sempre sendo postos em prática. tanto
no seio do entendimento quanto no da razão; eles correspondem àcjuilo
a que J. Tricot dá o nome de um "Ser puro cujo conteúdo é tão pobre
que mal se distingue do nada." 48
Do individual, que é recebido pela intuição e é a matéria do
fenômeno, ao a priori, passamos, pela via da generalização, à Idéia
transcendental, Indivíduo apreendido sob o ângulo único de sua uni-
dade. Nos sistemas metafísicos, sobretudo no de Leibniz, este ·Ente,
tal como Kant lhe define as determinações, está separado de maneira
absoluta de qualquer outro ente. Uma vez que nenhuma negação en-
cerra, ele não pode conhecer em si qualquer diversidade ou qualquer
sucessão, não importam quais sejam; ele é, para o pensamento, pura
necessidade, como o era o Uno da primeira hipótese do" Parmênides",
ou seja, "se o Uno é uno".
Se interrompermos aqui o estudo da Crítica da razão pura, como
o fazia Léon Brunschvicg que, como puro idealista, reprovava Kant
por ter introduzido a questão do conteúdo do conhecimento, percebe-
mos que o a priori, puro unificador do conhecimento, atua na síntese
do a posteriori sem que este influa em alguma coisa na determinação
da síntese a que se acha submetido. Constatamos, então, que, de acordo
com as linhas de força da "Analítica dos conceitos", nada separa a
"Crítica" do dogmatismo r'\cionalista que ela diz combater. Esta pers-
pectiva é a da unidade que uma razão determinante fornece ou suscita,
em sua espontaneidade, através do primeiro princípio, o da homoge-
neidade, e isto quando este não se acha atenuado pelo segundo prin-
cípio, o da especificação. Devemos estar lembrados que o princípio
da homogeneidade, também chamado princípio lógioo dos gêneros,
orienta a atividade do entendimento de tal modo que ele leva a di-
versidade da intuição sensível à unidade da apercepção de acordo com
a síntese categorial; quando esta orientação principiai da razão não é
utilizada de maneira transcendente, falamos também de uma máxima
da razão lógica que orienta o entendimento para uma unidade sempre
mais elevada por meio de um representante da generalização. No
entanto, esta mesma máxima toma-se princípio da razão pura quando
encontramos determinada a série das condições do condicionado, ou
seja, o Incondicionado. Este princípio determina a ilusão que constitui,
por exemplo, o Deus da Metafísica, Ser individual que é, então, apreen-
uma lógica da aparência 67

dido como pura unidade e é aquele que vai do Primeiro Motor aris-
totélico ao Deus de Leibniz.
Esta perspectiva, que explica a eclosão dos sistemas metafísicos
depois da filosofia de Aristóteles e que mostra a sucessão das doutrinas
como reflexo da estrutura das Faculdades do conhecer, revela-se, em
suma, uma lógica da filosofia. De fato, ela não é um esclarecimento
daqueles "objetos da razão cuja variedade é infinita" ,49 mas a partir
desses objetos, do que é determinado - como a matemática e a física
puras, a Metafísica é também um conhecimento determinado, ou seja,
no que lhe compete, um conhecimento dos sistemas em sua sucessão
histórica - , ela, uma vez que o conhecimento transcendental é um
conhecimento que "se ocupa menos dos objetos do que de nossos
conceitos a priori de objetos" ,50 busca saber como é possível uma
ciência desse determinado que é a história da filosofia. O esforço da
razão para compreender os objetos da Metafísica foi , freqüentemente,
qualificado de negação do individual5 1 que é apreendido na forma
daquela mobilidade própria das determinações de qualquer ser indi-
vidualizado sensível, mobilidade que coloca, por sinal, o indivíduo
Fora do alcance da atividade racional.
O individual obedece a necessidades, a disposições que não ces-
sam de variar e cuja ausência de pennanência se dá na esfera da
sensação. É clássico dizer que o indivíduo pode ser pensado segundo
uma ou segundo outra das duas perspectivas que são, por um lado, a
unidade do indivíduo, e por outro, a unicidade deste mesmo indivíduo,
correspondendo esta última àquele pano de fundo que foi, para a
reflexão filosófica, a noção do individual. Junto com a tradição aris-
totélica, Kant recebeu de herança um hilemorfismo que continua a
impor suas condições: é preciso pensar o indivíduo - tanto faz que
seja ele um ser individualizado como um objeto de pensamento -
segundo um dos dois termos dos pares das noções forma-matéria ou
unidade-unicidade. Ora, a forma sozinha, ou uma só unicidade jamais
puderam explicar todas as determinações do indivíduo; quando o aris-
totelismo, apoiando-se nos textos do estagirita, for colocar o problema
da individuação, ele encontrará certamente textos que lhe parecerão
permitir fundar a gênese dos seres individuais sobre uma única forma,
mas será, por outro lado, confrontado com outros textos - não menos
detenninantes - onde a individuação se fará por uma única matéria.
Esta. questão do indivíduo reside no centro dos esforços da reflexão
filosófica; depois de ter sido, durante vários séculos, objeto de dis-
cussões, ao tempo da escolástica medieval, ela se viu novamente posta
68 o sono dogmático de Frêud

por Leibniz quando escreveu a Ar'nauld, em 30 de abril de 1687, que


"aquilo que não é verdadeiramente um ser não é também um ser' .52
Quando para assinalar a inanidade da noção do progresso em filosofia,
faz observar que esta última " não se desenvolve progredindo, [que]
ao contrário, ela representa todo um trabalho no sentido de expor e
esclarecer sempre um mesmo pequeno número de problemas", Hei-
degger ilustra perfeitamente a perenidade da questão do indivíduo.
Assim é que dirá ele: "se a filosofia mostrar-se estagnada ou em
declínio, de maneira nenhuma será pelo fato de ter ela interrompido
seu avanço, mas por ter ela perdido seu centro" .53
Como frisa A. Lalande, a propósito das noções de unidade e
unicidade que se ligam ao indivíduo, .. de acordo com os problemas,
um ou outro destes caracteres se apresenta em primeiro plano e parece
dar o sentido do termo (individualidade)" .54 É a diferença entre aquilo
que designa cada um destes dois termos que explica a impossibilidade
de pensá-los· simultaneamente. Para H. Berr, com efeito, "a palavra
'individualidade' possui duplo sentido, conforme consideremos o fato
de ser ela una, significando unidade, ou o fato de ser ela única, sig-
nificando unicidade. A unicidade aloja-se numa concentração de ele-
mentos, numa s(ntese; a unicidade resulta da div~rsidade dos elementos
concentrados."55 Kant será o primeiro- a partir da Dissertação de
1770 - a romper com esta negação absoluta do individual, na medida
em que outorga um status ao conhecimento sensível. Com a CrÉtica
da razãó pura, o individual será problematizado pelos conceitos do
a posteriori que são matéria de conhecimento.56 No entanto, outorgar
um status ao sensível, opondo-se, assim, à filosofia tradicional que,
por exemplo, em Leibniz, considera o sensível como um inteligível
confuso, exige uma capacidade de, simultaneamente, pensar forma e
matéria, unidade e unicidade. Kant não podia. portanto, terminar a
"Analítica transcendental" no fim da "Analítica dos conceitos", a
não ser que caísse no puro idealismo. Mas o Idealismo transcendental
obriga a que se leve em consideração aquilo a ser conhecido, estabe-
lecendo uma distinção entre uma Lógica transcendental e uma Lógica
geral que " abstrai qualquer conteúdo de conhecimento" .57 A Lógica
transcendental, no que lhe toca. deve explicar " as condições sob as
quais devem ser dados os objetos em concordância com os conceitos,
do ·contrário, eles seriam destituídos de conteúdo e, conseqüentemente,
não passariam de simples formas lógicas e não conceitos puros do
entendimento" .ss
uma ú5gica d4 aparê11eia 69

Face à solução extrema que teria constituído, no seio da Crltica·


da razão pura, uma linha de determinações segundo a qual o conhe-
cimento seria pura unidade e face às conclusões de uma "Analítica
dos conceitos" que faz da conexão entre o a priori e o a posteriori
uma relação de forma e matéria,59 perspectiva puramente extensivista,
ela mesma, resultado da ação do primeiro princípio da razão pura
sobre o entendimento, Kant introduz explicitamente, no final da "Dia~
lética transcendental", uma segunda máxima da razão, também cha-
mada princípio de especificação, que toma o entendimento mais pre-
disposto para a diversidade nos conhecimentos, e isto através de uma
apreensão compreensivista do raciocínio. Este segundo princípio da
razão está como se justaposto ao primeiro, o que deixa intacto o
caráter extensivista da perspectiva que deriva da "Analítica dos con-
ceitos". A limitação da extensão do conceito pela ação do segundo
princípio será efetuada, na Crítica, de forma imprópria a seu escla-
recimento. Segundo o ensinamento de Arnauld e NicoJe, "esta restrição
ou contração da idéia geral, com relação à sua extensão, pode ser
feita de duas maneiras. A primeira é por meio de uma idéia distinta·
e determinada que juntamos à outra, tal como a idéia geral de um
triângulo quando lhe acrescentamos a idéia de que ele possa ter um
ângulo reto: desta maneira. estaremos restringindo a idéia à uma única
espécie de triângulo que é a do triângulo retângulo." 60 Mas, em Kant,
não se trata de fazer uma limitação deste tipo; a " Dialética transcen-
dental" se contenta em afirmar que o segundo princípio da razão "(de
penetração ou discernimento) atenua muito a superficialidade do pri-
meiro" ;61 o que deixa na indeterminação a influência deste princípio
de especificação. Tal irresolução nos leva àquilo que tinham em mente
Amauld e Nicole quando enunciaram o "como" da outra maneira de
restringir a idéia geral: "A outra (maneira) será acrescentando-lhe
uma idéia indistinta e indeterminada de parte; por exemplo, quando
eu digo algum triângulo, com isso, está-se dizendo que o termo comum
se tomou particular, porque ele não será mais extensivo senão a uma
parte dos sujeitos a que, antes, se estendia; sem que, não obstante, se
tenha determinado qual seja esta parte em que ele se viu restringido." 62
A existência de um segundo princípio, além de esclarecer, final-
mente, o uso que faZ Kant de um plural para discorrer sobte a razão
como uma faculdade dos princípios, explica que esta última "mostra
(...] dóis interesses opostos: de um lado, o interesse da extensão (da
universalidade) com relação aos gêneros, e de outro, o da compreensão
(da determinação) com relação à variedade das espécies, pois o en-
70 o so11o dogmático de Freud

tendimento, no primeiro caso, pensa muitas coisas sob seus conceitos,


enquanto que no segundo, ele pe nsa mais em cada um deles" .63 E, o
exame deste '' duplo interesse" da razão mostra que cada um destes
dois fins é determinado, um pelo primeiro, o outro pelo segundo
princípio. É o que explica Kant nas seguintes linhas: " Numa deter-
minada pessoa, é o interesse pela diversidade que conta (segundo o
princípio da especificação) e, numa outra, é o interesse pela unidade
(segundo o princípio da agregação) . Cada uma delas acredita formar
seu julgamento a partir da visão do obje to (au.c; der Einsichl des
Objects ) e ela o fundamenta unicamente conforme tenha uma ligação
maior ou menor com um dos dois princípios que não se baseiam em
fundamen tos objetivos, mas somente no interesse da razão, e, por isso,
melhor seria que fossem chamados máximas do que princípios."64
O conhecimento deriva, por conseguinte, da ação de uma das
duas máximas da razão no que diz respeito aos conceitos do enten-
dimento, ou da resu ltante da ação delas. Mas, mesmo que achemos
que uma pode atenuar a outra, o. problema permanece, pois o conhe-
cimento não se separou do individual na medida em que ele depende
da " pessoa" considerada. Kant observa que " uns (sobretudo os espe-
culativos), de certo modo inimigos da heterogeneidade, buscam sempre
a unidade do gênero, outros (sobretudo os espíritos empíricos) buscam
incessantemente decompor a natureza em tantas vatiedades que se
chega quase a perder a esperança de poder j ulgar os fenômenos pelos
princípios gerais" .65 Esta pessoa não disporá do mesmo saber que
aquela outra. O a priori da raz.ão66 não é apenas unificador;· ele pode
também ser sede de um possível fator de diversidade no seu modo
de ação sobre o entendimento. Uma tal estrutura das formas subjetivas
puras, do a priori do conhecimento, pode, fi nalmente, vir a esclarecer
aquela aporia da Crftica da razão pura constituída pelá questão do
status dado à matéria do conhecimento. Na medida em que não retira
qualquer caráter determinante deste a posteriori - e com razão, pois
ele não pode ir além daqueles únicos e concJusivos enunciados da
"Analítica dos conceitos" - , Kant, movido pelo mesmo espírito, se
mostra ambíguo com relação a uma revolução copemicana cujo ad-
vento foi por ele própno apregoado,67 pois o reconhecimento de um
papel qualquer para a matéria na síntese constitutiva do conhecimento
implica uma informação passada ao sujeito pelo objeto, a não ser que
aceitemos que a diversidade possa derivar da espontaneidade racional.
Mas isso seria justificar uma dimensão da diversidade- ale "Ufa junto
da dimensão unificadora - no seio da espontaneidade· racional. Com
uma lógica da aparincia 71

efeito, será aceitando uma diversificação racional a priorí que pode-


remos compreender este j ulgamento de A. de Muralt que não tem a
menor dúvida em colocar o autor da Cr(tica da raziio pura em lado
oposto ao da intencionalidade do conhecimento: " Kant recusa a in-
tencionalidade do conhecimento, quer dizer, substitui a informação
intencional do sujeito pelo objeto, a informação constitutiva da matéria
objetiva pelas fonnas subjetivas puras." 68 Em suma, ter concedido
. um status ao sensível e, ao mesmo tempo, querer ficar fiel à revolução
copemicana, implicava necessariamente que Kant sentisse também a
necessidade de alojar a diversificação do conhecimento no seio da
espontaneidade racional. Tal é, na verdade, o método que resulta do
texto kantiano e que pennite a seu autor tentar resolver o impasse
constituído pela heterogeneidade de princípio do par forma-matéria,
uma diferença de estrutura e de função que é avatar do hilemorfismo
aristotélico. Mas esta heterogeneidade aparecerá, na "Analítica dos
princípios" , irredutível, abrindo na problemática kantiana do conhe-
cimento uma cisão de que se beneficiará Schopenhauer quando for
desenvolver sua própria perspectiva. A tentativa kantiana para superar
esta dualidade, introduzindo o sensível na questão gnosiológica, se
faz, portanto, ao preço da colocação de um princípio de diversidade
no seio da razão.
A " Analítica dos conceitos" , por conseguinte, não pode responder
a questão do conhecimento se quisermos que este permaneça universal
e necessário e integre os dados da intuição sensível. Será esta segunda
condição, depois de ter sido ela quase dispensada pela " Analítica dos
conceitos", que será retomada pela " Analítica dos princípios". Se
Kant não pôde satisfazer-se com a primeira parte da '' Analítica trans-
cendental" , talvez seja porque, nela, o a posteriori não tivesse qualquer
papel na síntese do conhecimento. Na " Analítica dos princípios". ao
contrário, o a poszeriori, ou seja, aquilo que encerra o individual, não
deixa de marcar sua presença na síntese.
Para resolver o problema da atribuição de um papel determinante
ao a posteriori, há um primeiro método que consiste em discernir, na
diversidade da intuição, ligações e r~lações já presentes como, por
exemplo, as relações de causalidade. Esta unificação dos elementos
da diversidade seria análoga às relações das categorias que o enten-
dimento estabelece na forma de julgamentos. Seria possível, assim,
procedermos a uma síntese categoria! que não poria dificuldades se
não fosse a necessidade, observada por Kant, de fazer bom uso das
categorias e dos princípios, como ele mostra numa famosa passagem
n o so11o dogmático d~ Fr~uó

da Critica da razão pura.69 Mas neste caso, o papel reservado a um


a posteriori já esrruturado em vista da síntese aperceptiva do en.lefl ~
dimento a que o a postuiori deve submeter-se tira todo o carák:r de
universalidade e necessidade de qualquer coobecimmto que dele se
derivaria; isto porque agora teríamos de lidar exclusivamente com a
consciência que acompanha uma percepção, ou seja, uma consciência
empírica que, como mostrou K.ant. na " Analítica dos conceilos".
" acompanha diferentes representações (e) é, em si. dispersa e sem
relação com a idenlidade do sujeito. Esta relação, ponanto, ainda não
se opera pelo fato de eu acompanhar verdadeiramente alguma re~
sentação, mas sim porque eu acr~scento uma representação à uma
outra (zu der andern) e tenho consciência de sua síntese." 10 Mas será
à uma solução como esta que acabará chegando Kant nos Postulodos
do pensamento empírico, quando admite que o conceito de urna coisa
deve ser determinado pela matéria dos sentidos para ser dito real.71
O caráter determinante do a posk!riori encontra~se assinalado nova-
mente nesta outra passagem dos Postulados do pensamento empírico
quando Kant afirma: .. Não é da existência das coisas (das substâncias),
mas somente de seu estado que podemos conhecer a necessidade, e
isso, na verdade, por meio de outros estados dados na percepção e
segundo as leis empfricas da causalidade." 72
Estes enunciados pressupõem que o a posteriori encerre deler-
minações que lhe são próprias, mesmo que continuemos a admitir que
só a síntese categorial assegura a objetividade ao objeto dado no
sentido. Ora, o reconhecimento de tais determinações contrariam as
conclusões da " Analítica dos conceitos" onde afirma Kant que qual ~
quer ligação, mesmo a que podemos apreender no objeto, provém da
espontaneidade do entendimento,73 isto é, qualquer ligação que recuse
a possibilidade de provir da iotuição.74
. . Há, e m suma, uma nítida oposição entre as duas partes da " Ana~
lítica transcendental": a primeira, por recusar o fato de a matéria do
conhecimento ser responsável pela síntese constitutiva, e a segunda,
ao contrário, por lhe reconhecer um papel na determinação desta última.
O mesmo sucede com aquela redençlio do sensível promovida por
Kant quando, na " Analítica dos princípios", enuncia, no final do
Esquematismo transcendental, que as categorias recebem sua signifi~
cação da sensibilidade. K.ant, '-om efeito, diz, nesta parte da Critica,
que "as categorias sem esquema são somente funções do entendimento
relativas aos conceitos, mas elas nio representam qualquer objeto.
Sua significação lhes advém da sensibilidade que efetiva o entendi~
uma lógica da aparência 73

mento, ao mesmo tempo, que o restringe." 75 Fora isso, devemos {" Pri~
meira analogia da e~periência") buscar o critirio empirico da perma-
nência que é , segundo Kant, " uma condição necessária e a única que
permite aos fenômenos serem determináveis como coisas ou objetos
numa experiência possível" .76
No equilíbrio que Kaot supõe existir entre as duas máximas da
razão, subsiste uma indeterminação que deixa em aberto uma via para
um possível uso exclusivo da segunda máxima da razão lógica. Esta
irá tomar-se princípio da razão pura tão Jogo lhe façamos um uso que
ultrapasse os limites da experiência possível. De certa maneira. não
é assim que evoca K.ant aquela pessoa que de tão especulativa tem
seu entendimento orientado apenas pelo primeiro princípio, ou aquela
outra que se entrega ao empirismo mesmo com risco de ver-se na
dependência exclusiva do segundo princípio da razão? O uso imode~
rado do segundo princípio da razão pura só pode levar o entendimento
a uma apreensão, agora em compreensão, que não mais respeita a
atribuição per se, mas somente per accidens.
Dessa forma, vamos ao encontro da perspectiva dos nominalistas
para quem a compreensão se define de maneira puramente subjetiva,
como sendo o conjunto das notas que explicitam t:lão somente o estado
da ciência num dado momento. mas lambém as disposições individuais.
E a compreensão do conceito nada é senão a coleção de qualidades
empiricamente constatadas. Há confusão dos fatos com a essência que
qualquer atitude racional necessariamente conhece quando, pretendeo~
do esta última invocar a seu favor o empirismo, quer dar às suas
definições um valor universal e necessário.
Quando o segundo princípio da razão é utilizado sozinho e sem
qualquer relação com a noçlo de necessidade que deve existir entre
um conceito e as notas que lhe são atribuídas, nós nos aproximamos
de uma compreensão infinita onde qualquer elo necessário é negado.
Temos. ent:W, uma sucessão e uma diversidade absolutas. Na primeira
parte da " Dialética". por sinal, quando defme a aparência transcen-
dental. Kant fala dos princípios da razãon - por nós já tratados aqui
- , fazendo, ao longo de sua exposição. o uso do plural. Tal como
as idéias do Eu, do Mundo e de Deus, que resultam de um uso trans-
cendente do primeiro princípio da razão e foram denunciadas como
ilusões, o segundo princípio pode ver~se objeto de uma aplicação que
leva o entendimento a sair dos limites da experiência. A segunda
máxima da razão lógica toma~se princípio da razão pura quando fa~
14 . o sono dogmático de Fmul

zemos dela um uso não mais imanente, mas transcendente; o princípio


de especifi cação, então, deixa de ser regulador para tomar-se consti-
tuinte. Q~ando afinna, nos " Prolegômenos.. , que ·· a totalidade abso-
luta de qualquer experiincia possível não é, ela propria, uma expe-
riência" , 78 Kant quer com isto dizer que podemos atingir conceitos
que j amais são dados na experiência por intermédio da sensação. Se
há os conceitos que derivam do uso transcendente do primeiro prin-
cípio, nada impede, segundo o texto kantiano, que haja também aqueles
que sejam provenientes do uso transcendente do segundo princípio da
razão: apenas sucede que Kant j amais levou as conseqüências de tal
uso a uma consciência explícita. Para que uma máxima da razão lógica
se tome princípio da razão pura, é preciso que se leve ao entendimento
a totalidade das condições, mas não a totalidade dos condicionados
(dos dados empíricos). Com o segundo princípio, o raciocínio exige
a totalidade daquilo que condiciona as qualidades atribuíveis a um
sujeito. Estas condições não são mai s - como sucede com o primeiro
prinCípio da razão pura - um Ser absoluto que, tal como a idéia do
Eu, do Mundo ou de Deus, é pura unidade. Na esfera do segundo
princípio, as condições do condicionado não são outras senão a tota-
lidade das coisas e suas qualidades . Trata-se, aqui, do fruto de uma
atitude racional que põe, como condições do condicionado, uma di-
versidade. cada vez mais poderosa, uma diversidade que escapa aos
sentidos. A condição última desla condições, ou seja, o Incondicionado
q ue deriva do uso transcendente do segundo princípio, é um Ente -
a razão usa, aqui, igualmente, seu poder constituinte, pois a perda da
imanência de seu uso lhe retirou a força reguladora - e este Ente
condiciona todas as qualidades possíveis dos entes pelo fato de já
encerrá-las. Este Ente - do qual tudo podemos afinnar- é idêntico
à totalidade das coisas e das qualidades destas coisas; ele as contém
de fonna desordenada e pode, por este motivo, receber todos os con-:
trários. As conseqüências. das propriedades de um tal Ente tomam-se
evidentes: se levarmos em consideração apenas a compreensão, como
o determina um uso exclusivo - que, por isso mesmo, muito rápido
se toma transcendente - do segundo princípio da razão pura, 79 aca-
baremos, na ausência de ligações necessárias entre as determinações
de um tal Ente, indo ao encontro de silogismos artificiosos que im-
pressionam por silogi smos cujo rigor é só na aparência. Citaremos o
exemplo dado por J. Maritain destes silogismos em pura compreensão:
" ... podemos, com razão, ligar entre si os conceitos triângulo e isós-
celes, porque isósceles se aplica a uma categoria de triângulos. Mas
umll lógica du aparência 75

estaremos raciocinando errado se deduzíssemos daqui que em todo


triângulo a altura e a mediana se· confunde m."80
Na " Analítica dos princípios", onde discemimos a ação deter-
minante do segundo princípio, Kant esforça-se por dar um papel à
hipótese de um sujeito na perspectiva de uma deontologia do trabalho
intelectuaJ. Levando o entendimento a uma apreensão compreensivista,
o segundo princípio procura fazer com que os conceitos sejam, tanto
quanto possível, detentores do maior número de notas com relação
ao objeto considerado. Assim, no que diz respeito a Kant, como ele
próprio diz, poderíamos observar que "o conceito deve encerrar aquilo
que está representado no objeto que ele subsome" .81 O segundo prin-
cípio leva os conceitos a descerem, por sucessivas gradações, na clas-
sificação da árvore de Porfírio da qual sabemos que vai das noções
de substância à de indivíduo. Este princípio de especificação orienta,
portanto, a atividade do entendimento para aquilo que mais se aproxima
do indivíduo, distanciando-se da idéia de espécie e mais ainda da de
gênero. A fim de conhecer os fenômentos, o entendimento precisa ser
orientado em sua atividade e na determinação de seu campo por esta
segunda máxima, o que lhe permi te apreender diferenças sempre me-
nores. Já vimos como o primeiro princípio da razão podia ter um
valor heurístico insubstituívcl nas ciências, e que o uso hipotético
assim fei to da razão não de via dar ao entendimento nada que não
fosse uma unidade projetada do conhecimento.
A ilusão transcendental consiste em conside rar esta unidade como
determinada, particularmente, nos Seres que são pura unidade.82 Ve-
remos o segundo princípio da razão induzindo o entendimento " a
buscar aquela diversidade e sempre dela suspeitando, embora ela não
se manifeste aos sentidos" .83 E Kant mostra, referindo-se às ciências
da natureza, que este segundo princípio, mesmo estando e m oposição
ao primeiro pelas características de sua ação sobre o entendimento,
tem tendência a arrastar o primeiro princfpio para fora da experiência
sensível: " Para descobrir que há terras absorventes de diversas espécies
(as terras calcárias e as terras muriáticas) foi preciso uma regra anterior
da razão que propôs ao entendimento o problema de buscar a diver-
sidade supondo a natureza ser suficientemente rica para que se pudesse
nela pressenti-la." 84
Da mesma forma que a razão compele - por intennédio do
primeiro princípio que nela se aloja - o entendimento a absorver a
unidade sistemática como detenninada, em vez de considerá-la pro-
76 c' snno dogmó.1ico de Freud

jetada, ela, quando exerce sua espontaneidade pela via do segundo


princípio, incita o entendimento a fazer da diversidade sistemática
uma diversidade determinada e concretizá-la numa idéia da diversidade
absoluta Sej a nesta ou naquela das duas orientações que ela é capaz
de impor ao entendimento, a razão manifesta sua força constituinte.8.5
E da mesma forma, no que diz resi)eito ao primeiro princípio,
irá Kant mostrar que o seu uso não exigia que a série fosse completa
com relação aos condicionados; ele enunciará. a propósito do segundo
princípio, que " esta lei, na verdade, não exige coisas que podem
tomar-se objetos para nós, uma infinídadtt real sob a relação das di-
versidades" .116
Para resumir o que já foi dito, a razão, submetida às diretivas
de seu segundo princípio, encontra a conc;lição geral de seu julgamento
numa maior diversidade. Esta condição, enquanto regra, vê-se sub-
metida à mesma interrogação, ou seja, que devemos buscar a copdição
<la condição. A diversidade é ·tomada na qualidade de uma certa uni-
dade, ela mesma relativa àquilo que comporta mais diversidade. Da
condição de todas as condições deriva um incondicionado que é di-
versidade absoluta. O entendimento deve, portanto, poder fazer derivar
as diversidades, já tendo deixado o domínio da intuição sensível, de
uma totalidade incondicionada face à qual a limitação das coisas não
procederia da negação.
Quando seu interesse a faz seguir o segundo princípio, a razão
não é somente uma faculdade distribuidora que diferencia, umas das
outras, as regras do entendimento. Mesmo quando a diferenciação
oferecida pela diversidade deixa de ser acessível aos sentidos, o prin-
cípio de especificação leva a razão a oriéntar o entendimento na direção
de conceitos sempre mais inferiores, conceitos cuja compreensão au-
men~ na medida em que, claro, diminui a extensão. O uso do princípio
de especificação além dos limites da experiência possível leva a razão
a ver a série de todas as diversidades possíveis como acabada e,
naturalmente, ele., aqui, acaba por não ter mais ligações entre estas.
A conclusão de um tal incondicionado permite explicar qualquer di-
versidade que fosse possível encontrar na esfera do condicionado.
Há, portanto, para este modo de atividade da razão, um incon-
dicionado que é diversidade e sucessão absolutas, sem qualquer unidade
nem identidade. Na medida em que, nesra segunda orientação, ela
pennanece constituinte, a razão leva o entendimento a dar como de-
tenninada a idéia de um Ente que será o Caos primeiro, o qual jamais
lllnliJ lógica tÚJ aparência 77

será personificado como pôde ser a idéia de um Ser divino. Ele será,
em contrapartida, quase sempre, entendido e representado como uma
substância natural amorfa, à maneira da Vontade de Schopenhauer.
Esta Idéia de uma nova espécie, que podemos definir deduzindo-a
das condições da possibilidade de uma Idéia geral, também não deriva
dos dados da sensação e tampouco se situa na mesma esfera em que
se acham os conceitos do entendimento. 87
Por causa da perspectiva extensivista da " Analítica dos concei-
tos", Kant, freqüentemente, viu-se alvo dos ataques de filósofos que
defendiam o ponto de vista da compreensão. Mais perto de nós, seria
o caso de O. Hamelin e de G . Rodier que tiveram, a contragosto, de
reconhecer que se eles não levassem em consideração o ponto de vista
da extensão estariam incorrendo no risco de enfrentar uma atividade
racional capaz de elaborar silogismos tão artificiosos quanto este:

Todo homem é mentiroso


Ora, todo filósofo é homem
Logo todo filósofo é mentiroso.88

Num procedimento assim, supõe-se que tenha sido atribuído, de


maneira induzida, o universal "mentiroso", não a alguns indivíduos,
mas a qualquer homem. Não se levou em conta a extensão do con-
ceito-sujeito .. homem" com relação ao conceito " mentiroso" . Neste
exemplo, foi apenas considerado o ponto de vista compreensivista:
pelo fato apenas de que, empiricamente, constatamos que esta nota
"mentiroso" poderia ser atribuída a e sse homem e, talvez, a alguns
outros, tomamos esta atribuição acidental por uma atribuição que tem
valor de necessidade. Em conseqüência, se continuássemos a proceder
desta maneira, o conceito-sujeito poderia ver-se atribuído a uma in-
finidade de notas cuja atribuição a um mesmo sujeito é suscetível de
ser contraditória. Esta sucessão e esta diversidade - absolutas, pois
nada as limita - devem estar fundamentadas em condições. A razão,
por conseguinte, somente poderá chegar a um incondicionado que,
agora, não será mais unidade e identidade absolutas, mas pura diver-
sidade. E a natureza constituinte da razão, muito rápido, terá de atribuir
a existência a este Ser que será a condição de todas as representações
e de todos os seres.
Inversamente ao que se passa com as ·Idéias do Eu, do Mundo
e de Deus que "se ocupam da unidade sintética incondicional de todas
78 o so11o dogmático de Freud

as condições em gera1" 89 e com esta Idéia problematizadora da di-


versidade, já não se trata mais agora de encontrar várias funções do
raciocínio do qual derivaria uma multiplicidade de Idéias. Não importa
qual seja a forma do raciocínio (se por meio de silogismos categóricos,
hipotéticos ou disjuntivos), iremos sempre dar numa única e mesma
Idéia que é a do incondicionado, seja no que diz respeito ao Eu, ao
conjunto de fenômentos ou ao Ser dos seres. Esta determinação racional
explica o porquê de, na perspectiva antifilosófica, haver indistinção
entre os planos gnosiológico, cosmológico e ontológico.
Toda a tradição médica, uma constante presença nas elaborações
que se opõem à filosofia, dá testemunho de confusão parecida. Como
observa J. Bemardt, a propósito da natureza da corrente antifilosófica
que subentende a teoria da alma-harmonia, " a idéia de que os médicos
pitagóricos se teriam mostrados inclinados a fazer da alma uma simples
característica do organismo supõe a dependência dos conceitos gerais
do prático a um exercício estritamente profissional" .90 Esta idéia,
capaz de problematizar a diversidade, é uma realidade extrafenomenal,
aquela que Kant sustenta não poder ser conhecida. O filósofo de
Konigsberg, com efeito, rejeita este incondicionado da diversidade na
ordem da coisa em si, daquilo que não pode ser pensado. Schelling
discemiu perfeitamente que a realidade não-fenomenal de que fala
Kant poderia estar igualmente abaixo ou acima da experiência sensível:
nas Lições de Munique, encontramos este julgamento segundo o qual
"Kant imagina [ ...] ter dado fim a qualquer metafísica que visasse
um conhecimento supra-sensível. Mas ao fazê-lo, foi mais longe do
que pretendia. Pois, se é verdadeiramente impossível aplicar os con-
ceitos do entendimento ao supra-sensível, disso resultará que o supra-
sensível não é somente inconhecível - ele nem sequer poderá ser
pensado. Mas Kant se põe, então, em contradição consigo mesmo.
Pois ele, pelo menos, não chega ao ponto de neg!U a existência (Exis-
tem:) do supra-sensível; ele até o pressupõe em sua construção da
experiência. Mas, no fundo, o que é esta coisa em si como ele a
chama? .Não estaria também ela na esfera do supra-sensível? Segura-
mente, ou pelo menos, na do extra-sensível, do não-sensível. Ora, ele
aqui só pode ter com relação a ela duas possibilidades: ou bem ela
está acima, ou bem está abaixo da experiência sensível. Ela estaria
abaixo da experiência sensível, se fosse pensada como um simples
hypokeimen.on, um simples substrato, uma pura matéria desprovida
de qualquer qualidade atuaJ." 91
uma lógica da DJJarê11cin 79

O kantismo segundo Schopenhauer

É uma certa idéia, " tim simples substrato". como diz Schelling, que
Schopenhauer vai retomar ao colocar-se como sucessor de Kant.
Para Schopenhauer, a Vontade é a coisa em si, aquela realidade não
fen omenal. E a possibilidade que ele vê de apreender esta ordem última
do sistema que se dispõe a construir estaria num procedimento bastante
particular, aquele mesmo procedimento que irá responder por uma
ati vidade racional guiada pelo segundo princípio da razão pura. Depois
da " Introdução" de sua tese de doutorado. A quádrupla raiz: do prin-
cípio de razão suficiente, a maneira pela qual define Scbopenhauer
os princípios da razão e pela qual lhes atribui uma patef!1idade kantiana
tem tudo para surpreender-nos. Ele começa por lembrar que os dois
princípios racionais estabelecidos pelo seu mestre92 foram prefigurados
por Platão no Filebo. Numa passagem deste diálogo, Sócrates e"põe,
com efeito, que ao lado de uma necessária apreensão da unidade,93 é
igualmente necessário pôr-se, ao mesmo tempo, em busca da diver-
sidade.94 Nestas duas regras enunciadas pela filosofia platônica, Scho-
penhauer situa a fonte dos dois princípios da razão emitidos por Kant
na " Dialética transcendental". Sem dúvida, podemos reconhecer, no
princípio da homogeneidade, o avatar desta regra estabelecida no· Fi-
lebo e segundo a qual é necessário " procurar em cada caso uma forma
única" .95 Tal é o sentido do preceito ensinado por Kant quando lemos,
na Crítica da razão pura, que " esta hannonia se encontra também na
na.t ureza, é isto que supõem os filósofos na regra de tão conhecida
escola: que não devemos multiplicar os princípios sem necessidade
(etttia praeter necessitarem notl esse multiplicanda)" .9 6 Realmente~ já
desde o começo de sua reflexão, Schopenhauer tomou definitivamente
o partido de uma perspectiva bem determinada, perspectiva, sem dú-
vida, também presente na Crítica da razão pura, mas que, embora
seu autor não lhe tenha reservado um lugar exclusivo, o filósofo de
Frankfurt nem por isso deixará de privilegiar com .um papel que ul-
trapassa muito em importância ao que se encontra no texto kantiano.
Por ter-se limitado ao uso exclusivo do princípio de homogenei-
dade, a filosofia, diz Schopenhauer, ignorou preceitos que ele só en-
controu em Platão e Kant. A acreditar-se nisso, estes dois filósofos
teriam sido os únicos em toda a história da filo sofia que souberam
pri vílegíar a via da diversidade. Será assim que de sua pena sairão as
seguintes palavras: " Apesar de extremamente recomendada, encontro
a última dessas leis (a lei da especificação) pouquíssimo aplicada a
80 o sono túJgmáJico de Fr~ud

um princípio capital de qualquer conhecimento, o princípio da razão


suficiente., 97
Considerando a sucessi-va multiplicidade dos sistemas que vão
de Platão a Kant, Schopenhauer avalia que a inanidade dos esforços
de todos os metafísicos que deixaram gravados seus nomes na história
da filosofia se deve ao fato de terem eles ficado presos ao uso restrito
do primeiro princípio. 9B
_Scbopenhauer não esclarece a natureza da relação entre os dois
princípios da razão. Imaginamos que, conservando apenas o princípio
da especificação, ele não atribua qualquer status ao primeiro princípio.
A leitura que faz da Crítica da raZ/lo pura, aliás, confirma este seu
procedimento. Quando quer justificar a origem kantiana da orientação
do princípio que preconiza, ele extrai da Critica uma passagem cuja
escolha nos deixa realmente surpresos. Para sabermos, na realidade,
o que diz Kant do segundo princípio da razão, basta reportarmo-nos
ao capítulo da ''Dialética transcendental", no qual o filósofo de Ko-
nigsberg faz um estudo dos papéis dos princípios da razão, bem como
da maneira por que cada um deles age sobre a orientação e do modo
de atividade do entendimento.99
Em seguida, chegamos ao capítulo da Crítica do qual Schope-
nhauer irá extrair um único parágrafo a fim de mostrar Kant preco-
nizando o uso exclusivo do princípio de especificação. Mas precisamos,
antes, falar um pouco sobre este capítulo: trata-se, no final da Critica,
de um conjunto de páginas intitulado " Arquitetônica da razão pura",
de onde convém retirar, aqui, o essencial para que fique bem ressaltado
o curioso uso que faz Schopenhauer de algumas linhas que isola nesta
parte.
A razão reconhece, também aqui neste capítulo da Critica, que
tem por objetivo a busca de unidade. Quase todo o capítulo é consa-
grado ao assunto. Para o nosso propósito, algumas proposições ex-
traídas dele são suficientes: .. Sob o governo da razão nossos conhe-
cimentos em geral não poderiam fonnar uma rapsódia, mas devem
fonnar um sistema" 100 e Kant esclarece: " Entendo por sistema a uni-
dade dos diversos conhecimentos sob uma idéia." 101 E esta idéia "tem
necessidade de um esquema, ou seja, de uma diversidade e de uma
ordenação das partes que sejam essenciais e determinadas a priori de
acordo com o princípio do fim" . 102 Somente o esquema "que resulta
de uma idéia (...) fundamenta uma unidade arquitetônica" .103 Esta
busca de unidade volta a ser afinnada quando Kant irá explicitar que
se" a legislação (die Gesetzgebung) da razão humana tem dois objetos:
u1na· lógica ila aparênCia

a natureza e a liberdade ·[ ... ] ·é porque ela abrangé tanto a lei física


quanto a tti inotal, primeiro em dois ·sistema·s particuliues e~ depois,
num único sistema filosófico" . 104 .. ' · · · .. · · · ' : · :· . .
A unidade arqui'tetônica é tal que o sistema ' que · delà' ·deriva
encerra ·partes ·onde· c11da unia tem seu ·tugar, não aéidetitaTinente, mas
por causa· da·afinidade destás partes ·entre si e· pór causa ~a idéia que
comanda'· o fim e 'a forma.' de umTodo. OepOinie fazer um·esbóÇó
o ride a Méiafísica s·e subdividâ:m rnetáfísica: da·nature2:a e metafísiéa
dos costumes, Kairt busca, nuin pàrágrafo deste mésmo capítulo; mos-
trar que a Metafísica ilãó deve sd<;~nfundida co~ qualquer atividade
racional. Tràta:se, aqui; de derionciar a confusão que ·existiu desde
sempre entre dois 'tipos de conheciinent~: '!E ·preciso admitir q~éa
distinção de doiS elementos de rioss·ó conhecimento, em que um está
completamente a priori em n9~so poder, enquan~o que o ou.tro só
pode ser obtido a'posieriori da experiên~~a. s'empre penrianeceu muito
obscurá~ e que, por conseqüência, nem ·a delimit'ação' de . utn modo
parlic!.)lar .de corihe~imento riem,
ein . seguida, á idéi~_justá de UJlla
ciência [ .. :]jamais p!Jderani ~er estab~ieddas." lO$ Antes do Criticísmo,
fonnulav~--se a questão dizendo 'q úe a Metat~sica se oe~pava .dos p_ri-
m~iros pnncíp'ios do conhecimento na .medida em qut!' bastava visar
os princípios que satisfizessem um grau mais elevado de generaJidade.
Desta maneira, não se conseguia distinguir o racional do empírico,
pois há princípios empíricos que são gerais: .. Sucedeu, então; que os
próprios filósofos, tendo fracassado no desenvolvimento da idéia de
sua dêncra,.não·puderam dar a seus trabalhos nem:um fim determinado
nem uina direÇão segtu·a e . qoe, oom ·um ptanO tão. arbitrariamente
delineado, igooraram coisas que·deveriam· considerar, {... J fazendo :de
sua:ciêncía -algo desprezívet .~n JQ6:._.... ' .. ! . . .. : ·. ·. . . .

··, Neste capítulo.- Kant; portanto, expõe expliCitam6'ilte· que· a:·na-


tureza. científica de um conhecimento deriva · de ·sua:·sistematização
sob orna mesma idéia. Esta coordenaçãO em .sbttma~.esta·suOOrdímição
dos·conbecimentQS, como no caso daS parte$- em um tOdo, ·sâo:.iguais
às noções-qUe dão testemunh():da atividade: do prinieiro\princípio= ;da
razão. Porque os filósofoS, como acabou dê·dizer Ka:nt: '9uase 'Sempre
se afastaram daquelaS;" coisas·qtJe ·deVeriam considerar" •:é. que :o autor
da ·Crftica;enuncia;:no .início do·pai4gtafo pre(ledente·; •:,s~ · da maior
iinpo{tância úoliJr· conhecimento$ que se ·distinguem •der; OUtrOs · pela
espétie •e pcda...origem;. ~.impedi,.()Sl..:usim.,; .com todo·. o·•cuidado,-.de
mistorarem;:-.se e•confundiran--se,com :aqueles a: qo~ est~ pelo ·uso,
nbnnalmeate •1igados, Aquilo-que f.u:; •o . ;qúútlico· na. sepáração· das
82 o sono dogmático dt Freud

matérias, o matemátíco .em sua teoria pura das grandezas, deverá tam-
bém fazer o filósofo para poder determinar com segurança a parte
que tem um particular modo do conhecimento no uso corrente do
entendimento, bem como seu valor e sua influência. 107
Ora, Schopenhauer, no início de sua tese Da quádruplá raiz ... ,
pretendendo apresentar-se como seguidor de Kant e mostrar que os
dois, ele e Kant, comungam do mesmo ponto de vista no que toca ao
uso quase exclusivo do segundo princípio da razão. cita, inteiramente
fora de qualquer contexto do capítulo" A arquitetõnica da razão pura" ,
as frases de Kant mencionadas acima, com intenção de fazer esquecer
que, quando o filósofo de Ko nigsberg fala, aqui, da necessária busca
de uma diversidade dos conhecimentos não tem outro o bjetivo senão
o de obrar para que se chegue, no fim de tudo, à unidade de que fala
a Metafísica.
Vemos assim Schopenhauer armado para construir seu sistema,
aquele que ele estará constantemente expondo através das sucessivas
edições de O mundo como vontade e como represenlação. Será ape-
lando para uma caução kantiana que irá pretender - de maneira
indevida - enfrentar o sucesso j á em franca ascensão - estamos em
1813 - de Hegel e outros idealistas pós-kantianos, encarniçados ini-
migos seus.

O jreudismo, avatar do kantismo

A partir do momento em que reconhece nos textos de Schopenhauer


os conceitos chaves da psicanálise; 108 o leitor de Freud se vê obrigado
a considerar a obra do filósofo de Frankfurt como estando na base da
teoria freudiana, apesar das reiteradas afirmações em contrário do
psicanalista. Mas afinal nós não percebemos nos textos de Freud aquela
distorção na leitura dos conceitos kantianos que é tão característica
da reflexão schopenhaueriana? E também não é verdade que, na redação
psicanalítica, nada há que justifique tal deformação? Diferente do
autor de O mundo como vontade e como representação, Freud jamais
explica o "como" da leitura que faz de Kant. Ele usa, sem riunca
trazê-los à plena luz, conceitos de origem kantiana que se vêem trans-
• formados por uma ótica psicologizante. As semelhanças entre os dois
textos são muitíssimas e, sobretudo, demasiado evocadoras, chegando
mesmo, no caso de Freud, à repetição de imagens utilizadas por Scho-
penhauer e que Freud emprega sempre com objetivo idêntico ao do
filósofo. Não é possível, portanto, acreditar no psicanalista quando
uma lógica da aparência 83

ele afirma não ter tido conhecimento dos textos do fi lósofo de Frankfurt
antes de ter redigido o essencial de sua obra. É evidente que o neu-
rologista de Viena efetuou à vista dos tex tos de Schopenhauer um
empréstimo que participa da idéia de plágio, daquilo que o levou a
introduzir em seus textos particularidades da filosofia kantiana, sem
que, no entanto, alguma vez, se tivesse dado conta disso. A reflexão
schopenhaueriana é, desta maneira, determinante para o texto psica-
nalítico, apesar de parecer que Freud jamais tenha pensado nas con-
seqüênc ias de uma " inspiração" tão especial.
Quando se tratava de construir a própria teoria, aquele que se
valeu de argumentos psiquiátricos contra a filosofia não hesitou em
seguir um filóso fo, é verdade que dos mais particulares. Assim é que
Freud irá contentar-se em decalcar aquilo que Schopenhauer dizia da
Vomade para saber o que deveria ele pensar daquele Ser primeiro de
que tinha necessidade por acreditar sentir-lhe os efeitos. E Freud estava
longe de pressentir que o eixo em tomo do qual construíra seu trabalho
era, pelos textos schopenhauerianos interpostos, avatar de uma aporia
encerrada no sistema kantiano. É mais do que certo que Freud ignorava
como o filósofo de Frankfurt teria construído seu sistema em cima
desta aporia. E, igualmente, ignorava como, forçando os textos de
Kant, pudesse Schopenhauer ter tão rapidamente "resolvido" c;:sta
aporia.
Estamos lembrados de que é na " Dialética transcendental" onde
encontramos um dos pontos capitais do sistema kantiano, aquele mes-
mo que revela uma razão que não chega a libertar-se das determinações.
do individual. A solução de Kant, que consiste em deixar ao lado do
primeiro princípio da razão um segundo princípio suscetível, em de-
tenninadas pessoas, de tomar-se determinante, lembra a definição do
tvooÇov (confonne a opinião comum) que é matéria da dialética em
Aristóteles, no caso de estarmos referindo-nos à definição que lhe dá
Tomás de Aquino em seu comentário das " Analíticas.. : " A razão
inclina totalmente para um dos membros da contradição, mas com
receio de que o outro seja verdadeiro." 109
Na Crítica da razão pura, vemos predominar Uf:Il uso determinante
do primeiro princípio com rela.ção ao segundo, e 9 texto parece "in-
clinar totalmente" para o ponto de vista da unidade do conhecimento,
para o ponto de vista da extensão. Entretanto, Kant deverá levar em
consideração aquilo que fez entrar o sensível no conhecimento. Neste
texto, nada impede que se faça um uso transcendente do segundo
princípio. Quando quer botar na boca de Kant - para, certamente,
o sono· dogmálico de FTtüd

beneficiàr-s-e de.· sua ·autotidade . :. . ;._ que·somente deve· importãr o se.:.


gundo membro ·da corttradrÇão, o séguncio pi:indpio,-Schopenhauer.se
comporta,' face à refl~ião ..·kanti·ana; qm1o aqueles ·qàe Aristóteles ·es~
tigtnatizava ao su'steritafqúé '" pro·curar sem'' ter, àntes, explorado :as
d~ficuJdàdes éfl1 iodos :os:sentidos: é caminhar às :cega:s e arriscai rrâo
poder teéonhecer se~ num: dado momento', ' foi· ou não · encontrado ·o ·
que se· procurava" . 1w Orá, parece · qoe ·á maneira usada por Sdió~
penhauer para p'assar da l'arcoptci '(dificuldade, incerteza no julgar)
a l'E'\)TCOpta (facilidade, ·ausência de dúvida) constitui a problemática
oi'igiriária ·da noção de lricorfscie·nte. · · ··
Devemós, pór conseguinte; estar· atentos· à pertinênCia do áviso
que.dirige Michel Henry a qualquer pesquisa que estaria subordínad!i;
sem sabê-lo, a uma problémática mais originaria do que ela própri'a.
É, com efeito, um, modo de octÍ]tação como este que está encerrado
na formaÇão do conceito de Inconsciente. Se o prorriótor da psicanálise
pareée ter encontrado·sozinho, a partir unicámen.te de süa.S observações
clíniCas, ·aquele ·<( algo1' contra o qual estavam Sempre colidindo·seús
esforços tenlpêuticos, a elucidação· do conceito de tal obstácillo pro:.
cederá desta filiação que ele tornou n·ecessário esclarecer para cohse:.
guir apreender .á·essência do freudisrno,'objeti·v o, aliás, da presente
pesquisa;·O auior de A essência da manifesiaçao observava que um á
problemática derivada de outra, sem que ela tenha disso consciência,
comporta múltiplaS zonás de sombra, <HambéiTI ensinàva quê ·~ antes
de pretender otiter uni res ultado, não importa' q\fal 'sejá, ·qualquer ·ques·-
tão deve procurar:tornái-se transparepte parn ·si.' mesmá; ela"deve,
primeiro, ·s er capaz ·de diier se· a pioblematiéa que institUi pode ser
considerada..con'lo otiginÜia· e··fundaniental ou ;se; ào ebiltrário; -ela
está subordinada a uma pesquis:a ·anterior da·qu-al-se móstrâ deperídente:
Neste ú1dm<> -caso, ela implica ·neeêssariainénte·pressupostbs,:.,itilizi
resu-ltados· detenninados·que não Qbteve sozinha, ou -fez uso & ·certa!
idéias que não Se· preocupa·.em ·oot.ar a:Jimpó:'' ut É·rie~te··stritido, ~ri!
conseqüência do próprio·empréStimo que toma Frtud da obra de Scbó-:
penhauer e da semelh~ça raciÓOalli'gàdll-' a esta. que; ·é preeiiQ éntendet
á necessidade de uma apreerisio-filOsófica·dos &exms psicanalíticos,
aquilo qtié ·~entendido como: um eco d<H1unoso afürisn'lo 'dé Aristótelài
segund& o qual é . necesslirio·~.mpr~ ·fllo~ar.
·O savoir-./riire· p~ícoJ6giOO =suscitadO, em Frcud, peJa prática ·(ld
primeiJls ~icdtérapias deriva oo ,tnfhfntatrient<> d&q~;~ilo· !C:om qutt o
pútic-o· se -vê~ voltas rom Mla·dupll::tentati\la dê compNehder -oa
siofomàs e faz!~lbs deSaparecer. :Uma' aqoisíÇaG:~mO :esta, de ·ordem
·wM lógiCa dà aparêit_cia

clínica, teria conhecido, sem dú~ida·; diferente desenvolvimento se ela


não se achasse apoiada naquela apologética do absurdo que é a fil osofia
de . Sch~peneyauer,. Frel;ld não se limitou . a um uso regul.ador desta
co;nti1biüção· ·exterria.''Muito "pelo' Cót'lti'ãrio;·· considero\i. a _· n ~}~~ - de
V.o~ta~~ ,çomo ~m. :· ~.ce.ptá~ulo" ,. onde tin.h.a.. ~«?rt~.~a d~ .ést~.r . ~~c.~t-.
r'~ndp Qs furid'amiritõ:$ ~k·repi:esent~~s qti~..eHJ1.l o discut~o· <;te }~u.~
paêiêntes. ·Duvida-se q~e J(eu~•. ·q~an~o P,r~.~r?u !iic?ÍJ>O~ar. ~taq~n-.·
d.amentQ, t,enh:t tenta<J9., princip,~,m~n.~e.. ~~r . alcancç . u.ni_v~,rs<l:l a_:iim.
m~Qd~''qu~ ...elJl .~~~.;Qri~m.._ paj-é(:l~ .élev~·r : sei. ~peti~s ~~~~u~i~o.
p~to, de dimenslo ·individuabFreu.d nem.seqoer .apontQu.qQalquer-
erro ot.i ilusão nas perSpêetivas diferentes da: sua;.~e:jamai·& ct>rrsjtie~u·
till doi.Jtriha; Ctúnologicamente anterior, ó)tno ·'fazendo pane ··de üin'
tÓdo' para cujà apreens'ãó té~ia 'qui 'le\;ár';b~
o cori.tá
.uma' antêr!ôrf~a~e:
de modo a.lgt.l.~ d;ec~n:~t:tte .~ J~!llP<?:. ·.... ·.· ..'.-.: ·. ..· .' ·.: .. ·:· ::.:. .. .'
Quando evoca ·aquil9. que d~ve· s~r', a :i~~i~ dire~rii: ·.d~ qua.lguer:
e
~etp~Q~ogia cien.t Í~~a, i$tQ ~U~ COIÍ,t~Xl~:~~~~ ·~éfend~a (to~o. C~StQ
a ciência em geral contra todos os que., ousavam ~usa-lo ~e ,~er .es.-
carnecido da fé, Freud en~nci~ um~: regpt.à qu~ r:3:faJ,llente .$~ ~lJ.b::
meterá. Ele, com efei~p•.af1nna qu~ ".a:. ~ansform~çã?.. ~~.,QJlinj.Qe$.
científicas significa evolução, progressp e ,não ~em()li,ção. :·l!lll~: Ie,i •
que, de início tínhamos.como. univers~lmetlte. V~id~, S~ rev~la.,Ç9IDO
sendo ~penas ca&Q particular. de U':fia tegalidade.. míli.s compr~psiva,
ou.-que vemos. ter seu domínio limitad~ ,por .outr,a lei · ~~. s.Q.: .mai~
tarde, iremO's- descobrir.'" I u Para a validade de seus resultados,'é:muito
co~sti'iÜJgédor saber que Freud acreditót;a pOder·p~sar pór·cima deste
pri·n~íplQ, . metOaoJpgid> com a . ~ua ril:an~i~a de fotmÍÜ'. côhc~to's.:
o o :e
expnmir julgamentos sobre perspectivas que; enioora ariteriO.r~ à,sua,
estavam,ligadas à m~~ ~~ .Pr9blemáf:ic~ ... , . . · . .. ,, .~ : ... \ ·
Foi muito prejudicial para sua própria reflexão ter rejejfa_cl.o. se,-n
conhecer, não tanto os :Sistemas dos qlósqfos,. ma~ . os métod~s ç os
modos de pensar que lhes haviam permitido a formulação. J.á ·PQ que
toca às reflexões de onde imaginamos, com todo o direito, ter .r~~ir~
algum conhecimento, pois, apesar de vermo-nos confrontados...~ .cada
vez, com um obstáculo intransponível, a intenção aqui é pega.::idéias
para transpô-las a outra parte. Ortega y Gasset expõe com .uwif~ cl~eza
a dificuldade de tal empreitada, ao discoqer..S9t?re:a:maneira .ÇQIDO a
Escolástica procedeu com relação à filpsofi~ aristo.élica~ ·:um .trans- •
porte integral das ' idéias' é[...) ilusório:.SQ~ente se. transporta .o .talo
e a flQr e, taJ.v~z. j.unto ;a .um pequeno ra~o. o fn1to da estaç~: aquilo
que é imediatamenté útil." ~u . ..: · · ·. ,
86 o so11o dogmático de Frtud

NOTAS

I. Bérubé, C., La conn.ai.uance de l'individutl au Moyen Age, Paris-Montréal,


PUF, 1964, p.295.
2. Como lembra A. Philonenko na Introdução de sua tradução da Critique de la
fa culté de juger de Kant (Kant, E., Critique d~ la facufré de juger, op.cit., p.l 3 ).
3. Kant, E., Critique de kl raison pure, op.cit., p.ll6b.
4. Em "Le refoulement", o representante da pulsão está descrito, pois que ele se
encontra recalcado no Inconsciente, como se" continuando a organizar-se, a formar
rejeições e a estabelecer ligações" (" Le refoulement", in Mitapsychologie, op.cit.,
p.49). Freud insiste em explicar que, posto à parte a separação do sistema Cs-Pcs,
o Inconsciente não conhece atributos diferentes daqueles das outras instâncias e
ele assegura que ·•o recalcamento somente perturba, de fato, a relação com um
psiquismo, o do consciente" (ibidem).
5. Fflon de Alexandria, Quod Deus sil inunutabilís, op.cit., vm, p.56.
6. Kant, E., Critique de kl raiso11 pure, op.cit. , p.263.
7. Aubenque, P., Le probleme de f'être cllez Aristote. Essai sur la problématique
aristotélicienne, Paris, .I"UF, 1962, p.79.
8. Aristóteles, Métaphysiqu~, op.cit., B , 6, J0002b27.
9. Philonenko, A.. L'auvre de Kant, op.cit., t.l, p.I0-1.
10. Weil, E., Logique de la philosophit, op.cit., p.26.
11. Kant, E., Critique de la raison pure, op.cit., p.26. O grifo ~ nosso.
12. É pela matéria do fenômeno, pelo o posteriori, que o individual está presente
na sfntese da apercepção e de tal maneira que leva Octave Hamelin a afmnar.
" ...Kant é o mais profundo de todos os partidários da individuação pela matéria
[ ...] É precisamente da infinita multiplicidade do espaço e do tempo que Kant
deriva aquilo que há de invencivelmente individual no indivíduo." Hamelin, 0.,
Essai sur les ilim~nts principau.x de la représentation, Paris. F. Alcan &lit., 2l
ed.• 192S, p .204.
13. Kant, E., Réponse à Eberhard, trad. R. Kempf, Paris, Vrin, 1973, p.63. O
grifo ê de Kant.
14. Kant, E., Critique de la raison pure, op.cit., p.60.
15. Ibidem.
16. Ibidem.
17. Ibidem, p.76.
18. Ibidem, p.60.
19. Ibidem, p.46.
20. Ibidem, p.32. O grifo é de Kant.
21. Ibidem. p.54. O grifo é de 'Kant.
22. Ibidem, p.34b. O grifo é de Kant.
23. Kant, E., Prol~gomenes à toute métaphysique future qui pourra se présenler
comme science, trad. J. Gibelin, Paris, Vrin, 1974. §19, p.68-9.
Ulllii lógica da aparincia 87

24. Kant, E., Critique dt la raison pure, op.cít., p.l 07-8b.


25. Ibidem, p.l07-8b. O grifo é de Kant.
26. Além do "conhecimento pela experiência" da citação precedente, há muitos
exemplos onde, em Kant, o termo "experiência" (Eifahrung) implica uma síntese
categoria! sem a qual uma experiência desta ordem "jamais teria o caráter de
conhecimento, mas ao contrário o de uma rapsódia de percepções que nunca se
encontrariam todas ao mesmo tempo em qualquer contexto segundo as regras de
uma consciência (possível) universalmente ligada e que, em conseqüência, não se
prestaria também à unidade transcendental e necessária da apercepçlio" (ibidem,
p.J61).
27. Lanteri-Laura, G., PMnomimJlogie de kl subjectivité, Paris, PUF, 1968, p.328.
28. Tal é o sentido desta passagem onde Kant afinna: "Que eu possa empiricamente
ter consciência do diverso determinado como simultâneo ou sucessivo, isto depende
das circunst!ncias ou de condições empíricas. Em conseqüência, a unidade empfrica
da consciência, por meio da associação das representações, refere-se a um fenômeno
totalmente contingente." (lbldem, p. l 17b.)
29. Ibidem, p. IIOb. O grifo é de Kant.
30. Ibidem, p.I04.
3 L Ibidem, p.87-8.
32. Ibidem, p.455. O grifo é de Kant.
33. "O entendimento não poderia[...] fornecer-nos conhecimentos sintéticos por
conceitos, e são precisamente estes conhecimentos a que dou, cabalmente, o nome
de princfpios, embora todas as proposições universais, em geral, possam ser,
relativamente, chamadas princípios." (Ibidem, p.255-6.) Ou ainda: ".É claro [ .. .]
que o conhecimento por prindpios (em si) é uma coisa inteiramente diferente do
conhecimento pelo entendimento; pois este último, embora podendo também pro-
ceder de outros conhecimentos na forma de um princípio, não repousa (na medida
em que é sintético) no simples pensamento e não encerra qualquer coisa de universal
por conceitos." (Ibidem, p.256.)
34. Quando, no início da "Dialética transcendental''. define a razão e a compara
com o entendimento, Kant escreve: "Se dizemos que o entendimento é o poder •
de levar os fenômentos à unidade por meio das regras, é preciso que se diga que
a razão é a faculdade de levar as regras do entendimento por meio de princfpios
à unidade." (Ibidem.) ·
35. Ibidem. p.454.
36. Como observa Kant, "reconhecemos ser muito diffcil encontrar a urra
puro, a água pura, o ar puro etc. Precisamos. contudo, dos conceitos destas
coisas (os quais, em conseqüência, no q ue diz respeito à pureza perfeita, somente
retiram sua origem da razão), para determinar propriamente a parte que cada
uma destas causas naturais tem no fenômeno; reduzimos, assim, todas as ma·
tériàs às terras (de certo modo ao simples peso), aos sais e às substâncias
combustíveis (corno à força), enfim, à água e ao ar, bem como a vefculos (às
máquinas por mei o das quais atuam os elementos mencionados), a fim de
explicar as ações químicas das matérias entre si segundo a idéia de um me-
canismo. De fato , apesar de não exprimirmos realmente desta maneira, esta
88 o sono·dogiiUÍiico de Freud

influência da razão sobre as di vis~ .dos físiJ;os é. muito fácil de1ser percebida.'.'
(Ibidem. O grifo é de Kant.) ..
3.7- lbictem, p.~5.3-•k: .. '· ..
38..Aiquié. F..,.Lo critiq~ ~ieiUie de ll.nnét4phynque, op.clt., .p\l8.
39. Kant, E., Critique"'de la =raison ·p~. ôp.cü:, ·p.258.·
40." H_us5eri,E:,·.ú.i .Crist:_#~s scienàs i~~p~~n~s;·_~p.c_it. , p.2i6. · .. · .
41 . I<a"nt, F·• Cr!t.~q_~ 1~ "tà ra4o?·f-~~; ;op:~fi:.p,iss..QgriéQ é. ~e. K~t.. . ..
42. [!>idem, .p,25.8. .. : . . . . . . ... ,. . .
43. Kant, E., iogique, trad: L. Guillennit, Paris, Vrin, 1979, p.20.
44. Kant;:Ei, CrilÍI/114·de la raú.ón pUrt!, ·op:cit.t p:267. J · ,. ··
45.· Hamelin, O., u syst~~ d'Aristote, Paris, Vrin, .1976, p.J77: ·; ·
46. Kan~ E., Logique; op.cit, p;99 .. O grifo: ~ de ·Kant~ ) · · ·' ·.
47. Alquié, F.,l..a critique kântuiW de ià milaPhysi'que, · op."Cit~ p:37. · ·· · ·
48. trico~ i . r;aiié de. Iogiq~ fo~lte~ Paris. _vrin, 197"3, p.17: ·.' . · . ,. , ...
49. Kant, E., Critique de la raison pu~, oP..ck. _ p.45. · ,;· . . ·· ..
50. Ibidem, p.46.
51 . Weil, E., Logique de la philosoplúe, op.cit., cf. em particul~, o parágrafQ, ." L.e
savoir comme négatíon de l'individu", p.33 sg. ·· · · :' ..
52. Leibniz•.G.W., " Lettre à AmauJd du 30 a~rif t'687'' . in CE~vfes 'ciwisíÚ, ~t.
L Pre-nant; Paris; Auóier· Moritajgne,···t972; ti, p.252. O grifo é 'de: Uibrui · ·
53. }ieide&ger, ~.; ~ntÚpr~Wt! 'iJ~~nplogiqu~ di la Crjtique de la ·~is~~
pure de Kailt, trad. E. Maitinéaú, Paris• .Oaiiimard. 1982, p::ii :· ·
54. Lalan~. J\., Vo~ulaire . recff!U.q~ ·~, C~itÚÍ~ lk ·l(,_'phiJ9sóp~ op.ci~:~.
p.497. . . . . ' ·., --· . . .. . . . . :. .· ·, . '' . . ..
5S . .Qerr, H.,.Avant~pr.op.o&. tús u:posis tk la 111. seJ}IQine illt~~tioM/e:tk SJP!tN:re
.n u ~'l..'ind~vid~l.ité \ .citado. in Lcw.is, G.,-L:itulividwJlité.st!ÚJil Dt!..SCQT./u, op.cit,
p.3, n. 8. O gófo é nosso. .. . .
~6. Co!DO expõe-A, de Muralt.:-~.... a·oomposição,dJ represa)tação é dupla: ·ç ada
um de se~,~s ~lem~ntQS çorresponde:l~.l por uma parte 8CM)bjeto.(;ma&éria) e poc
outra p~ a.o sujeito (f~);. Mttrait. .A., IA CJJtJScit!nç~ ttTMUceN:Wal.ale -dtw-
le cr#ic~ /uuJ.rien. EsSIIIi. pu runi~: d'op,tll:"eption~ P$ri~. Aubier~Montaigne.
1958, p.l7. . ' ...
57. Kant, E., Critiqw: tk la raison plln, op.cit, p. l48. ,. ..
~. Ibidem, p, I·SO. :. ..
59. " Estão aqw:dois.conoeitos que:servem·dé princípio· a qualquer outrueflexlo,.
pois estão in$eparâvelrncnte ligádOs a ·qualquer_uso do entendimento. O ·primeiro
significao ~ná~ M"t ~e; o '~; sua determinaç&J?!··(Ibidem, p-:235.)·
60. Arnailid, 'A.:· e NicOJC.; ·p.~' t.a ·logiijài -oâ t•an th pmst!r,' ~iis, Flamm;.nori,
1970, p:88: . . . .. :.:: . . ·. . . . . : . . ' ._. : . .. "' :: ·: . ....
6l. ícapt, E., ç~ir(q.~,'#e ,la. ~~; ~.cit~ p.4~9. ·. ..,_... _.. .".
62. Ámau!d ..!'\.t··~ ~~. ~~ ~ :iog~ ~ -l'~t1 .• ~r, ôP-~l, i~ .~.· .
63. Kant, E., Crilique:tk:i. .IVIÜID«.~·~.cit., ibidetrL O: zrito.~ de Xant. . ··. .
Ul1ill lrigü.-a .da ~rincia

64. Ibidem, p.465-6.


65. Ibidem, p.4S9. · ~ •• 1,

66. A identificação do a priori e da razão panicipam dos dois sentidos •positiv-Os


atribuídos à noção de a priori; fora a definição do a priori como sendo inde~~te
d~, q.IJ~9ue.r..e.~~êpc.ia,... ver:n~s; Kant ,c~nsid~r'\f esta npção-COIT\O P.!'OV~Áe.l)te da
razãq (Sel}~o.qu~. a outrlj..-signif.ica&ão positiva é a que temo. ~p.riqri .como çondi~
9.a.~perl_~,a).; .9es~~ fq~ma, . pcircebemOS que a ~efini~O do .a j1nori Cons.i~·
es~~ c~_Qceitq .cpm9 .idên~c~ ~- razãO; . o qo~ se~ ~ado. po{. ~~~ .·.qlW!~O.
observa que " a razão é o poder que nos fornece os prj~cíP,~0~ . 4o . ~qhed mepto •
a pri<':d.· ·~-- (l~i~e~ 1 P-?16~). . . .
67,.. Jl;lj.dem •. p.l ~9, . . . .. ... . . . . . . . , ..
68. Muralt, A.· de, La t~itaphysíque ·du phénoine~e. Le;
~rigines médÚvak~o et
1'!!4W_oratifJn M ÚJ. I!.~.nsie p_hinom~r,wlogfq'!e. Pa,ri~ •.. Yrin, 9.Ql. "~epn~·:., ,IJ185,
p.l2( . . . . ' '· . .. . . . .. ,,,. .. . . :- ...... ···
69. " ... Um médico, úm j uiz ou. um estadista pod~ terna_ca~teçá ~ui~~ ~~~
r~ras de patolQgia, de jurispnidência· ou de I?C!Iítica, a um &QIU capllZ .de 'faze~
de!~' 'sábios' prÓfessores''jj~~às mâ.térias;·rio .e.nt~ntd.. eleS.podem fad J'meoté se
enganar na aplicação das' regras; ou p<)rque th~s falte ·o julgamento 'fiatUràl seiil'
qüe,:· éÓntudo;..uu~s ' frute '•ehteridinieriro, . p'ois se •'eles 'podem ~ef' perfeitamen~ ~ '
geral in abstracto, são capaies tantbém de distinguir ·se u~· caso é ·co'nteiidó ;,f.
conértto; uu·entlo porque não ·roram s uficientemente· l!xerc~s nesr.e julgamentO
por exemplos e dificuldadeS reái&." Kant; ·E.,,Critiq.w Je.:ltz raison plire; op;dt,
p.l~·9, .:. • • , .. : • • • '. '... • .. : I
70. ~Ibidem; p: i lb; O grifo :é de Kant. ..
7f.' ... Se·'(o ·conée'iM de uma coiki) está ·ligado à 'J)ercepÇão (à sensaÇio corito'
inii~iia dOS' 'sentidO'$) e ~fnadó po'r 'ela p<jr .meio do entendimentO', o 'objetd
(dáS Ob}ect >é J'e'aJ .... ·(R>idêm; p.211.) ·· · · .. · ' .. · ·"
72. Ibidem, p.200. ·.··.- ...-: ·
13. -~id~.:_.,. r08b:_., ·· · ·
74, ~.b'ídem: . ,, ~ ··· '·' · ·. ··· ·:·:·
75, lbiliem• .p.l56. .; . .. .. . .
76: :Ibidem, , ..182. · ·. · .. ~ .... : · · ....
77.· Ehtre'·as-:ii'luitas citações possíveis, podemos teteresta fra5e extrllfda da lntro•
dü~;ãó· à'.Dialétka, onde veremos que; paca··Kant, ·a àj:>arêncill·trarisCen'dentàl ·nãd
é frúto ·de urit ónico princípiO, rria$ dos .pónéfpios:' " Cbamaretnos de: imanentes
os princípios cuja aplicação sé mantém totalmentt dentro dós limites da -experiência

possfvel, e de transc~tes aqueles que saem destes limites." (lbidem. .p.252.,
O grifo é de Kant.) . ,. . , ... ,. . . · ...
18:;·.~ &. Prolés011J~tl4s .à. tOut~·miklp/aysiqw:._.futurt!. qui.pourr~->fe pr,úente..r
comme scknce, op.cit., §40, p.106. O grifo é de Kant.
79,. ". ~ -u~ ladp o, iate.~se- ~a ~e.~ão {"'..)de outrg,. ~ da coJl'preen~ão.," . Kant,
1;,.,. Çr,jtiq,.e ~- !p ~ pun•.op,çit., p.459. . . . .-
80. Mariiaín,.-J.., ~Éiimenu -de phiwsoplúe,- t.JJ·L' ordre des ·concepts, 1.1 : Petite
logique,·Paris, .P.. T~i . 2Y. ui. .-1966, ·p.52.
o sono dogmático de Freud

81. Kant, E., Critique de la raison pltre, op.cit., p.l50-l.


82. Kant, E., Critique de la raison pure, op.cit., p.455.
83. Ibidem, p.460.
84. Ibidem.
85. Como lembra F. Alquié, ela '' não é somente uma simples faculdade de com-
paração que aproxima umas das outras as leis postas pelo entendimento. Ela é
uma força constituinte e o fato de não conseguir constituir seu objeto não poderia
fazer-lhe perder esse caráter que lhe é essencial''. Alquié, F., ÚJ critique ktlntienne
de la métaphysique, op.cít., p.31.
86. Kant, E.• Critique de la raison pure, op.cit., ibidem. O grifo é de Kant.
87. "Esta lei da especificação não pode também ser tirada da experiência." (Ibidem,
p.460).
88. Exemplo tirado de J. Maritain, "Petite logique" in Eléments de philosophie,
op.cit., p.51-2.
89. K.ant, E., Critique de la raison pure, op.cit., p.273.
90. Bemhardt, J. , Platon etle matérialisme ancien. ÚJ 1héorie de l'âme-harmonie
daru la philosophie de Platon, Paris, Payot Édit., 1971, p.62.
91. Schelling, F.W.J., Contriburion à l'hiszoire de la philosophie motkme. Leçons
de Munich, trad. J.-F. Marquet, Paris, PUF, 1983 , p.99.
92. Há um terceiro princípio, o princípio da realidade das formas, ou lei da
afinidade dos conceitos, que é como uma união dos dois primeiros.
93. Platão, Philêbe, apud trad. de A. Dies; Paris, Les Belles Lettres, 1941, 16cd:
..... tudo aquilo que se pode dizer que existe é composto de um e muitos, e contém
em si, originalmente associados, o limite e o infinito. Uma vez que as coisas estão
assim ordenadas, é preciso indagar sempre, em qualquer conjunto, não importa
qual, e procurar em cada caso uma forma única que, realmente, lá, acharemos
presente."
94. "Se depois, então, de apreendermos, esta última forma, começarmos a
investigar se há duas, três ou qualquer outra quantidade dela e, em seguida,
fizermos o mesmo com cada uma das novas unidades, até que, daquele primitivo
um, se veja que ele não somente é um, múltiplo e infinito, mas também a
quantidade exata que ele atingiu [ ... ) mas os sábios de nosso tempo concebem
o um sem qualquer método, ou muito rápido, ou mais lentamente e, depois
do um, passam logo ao infinito; quanto aos intermediários, eles os ignoram,
ao passo que saber respeitá-los é o que distingue em nossas discussões, a
maneira dialética da maneira.erística." (Ibidem, 16d-l7a.)
95. Ibidem, 16d.
96. Kant, E., Critiqu~ de la raison pure, op.cit., p.458
97. Schopenhauer, A., De la quadruple racine du príncipe de raison suffisante,
op.cit., §2, p.J 6.
98. "A comparação da filosofia kant1ána com filosofias anteriores a ela ensina
que, se observarmos nossas faculdades intelectuais, a aplicação do princípio
de homogeneidade, por se ter negligenciado aquele que se lhe opõe, engendrou
numerosos e persistentes erros." (Ibidem.) Em seguida, ele afirma a necessidade
uma lógica da aparência 91

de recorrer-se ao segundo princípio sob o pre1exto de que "a aplicação do princípio


de especificação foi a causa dos maiores e mais importantes progressos". (Ibidem.)
99. Kant, E., Critique de la raison pure, op.cit., p.452-66.
100. Ibidem, p.558.
101. Ibidem.
102. Ibidem.
103. Ibidem, p.559.
104. Ibidem, p.562-3.
105. Ibidem, p.564.
106. Ibidem, p.565.
107. Ibidem, p.563-4. Citado igualmente em Schopenhauer, A., De la quadruple
racine du príncipe de raison suffisante, op.cit., §2, p.l6.
I08. Ficou estabelecido, no capítulo n do presente trabalho, que o Inconsciente,
a defesa, o recalcamento, a ab-reação, estão já definidos, para citar apenas aquele:;
conceitos com relação ao essencial de seu conteúdo em O mundo como vontade
e como representação.
I09. Saint Thomas, Comm. in Aristotelem, Anal. Poster. I, I; citado in Le Blond,
J.M., LogÍJllli! et Méthode chez Ari.stote, Paris, Vrin, reed. 1970, p.IO.
110. Aristóteles: Métaphysique, op.cit., 8, 995a, 35.
111. Henry, M., L'es.sence de la manifestation, Paris. PUF, 1963, t.l, p.2.
112. Freud, S., L 'avenird'une illusion, trad. M. Bonaparte, Paris, PUF, 1971, p.79.
113. Ortega y Gasset J., L'evolution de la théorie déductíve, l'idie de príncipe
chez Leibniz., trad. J .-P Borel, Paris, Gallimard, 1970, p.l58.
CAPÍTULO IV

A armadilha do irracional

O período racionalista

Confrontado, no fim de tudo, com a questão do estatuto.d Q pensam~nto,


Freud jan1ais levou esta in.terrogação a uma consciência explícita. Ele
só abordou o problema do conhecimento através daquela .·~ luz.natural?'
de que fala Descartes, quer dizer, de maneira não-reflexiva. N9 entanto,
o conteúdo. manifesto dos primeiros textos do psicanalista dão teste-
munho, para o leitor atento, da. implicação· de uma.razão cuja essência
é a de conhecer a verdade conformemente à concepção tradicional da
atividade noética, aquela capaz de transparecer até no senso comum
a partir da dupla influência dos ensinamentos da escolástica e do
cartesianisrno. A razão aqui é" aquele poder de julgar bem e distinguir
o verdadeiro do falso" 1 que Descartes, já nas primeiras linhas do
Discurso do método, nos faz observar. Nada leva-nos a prever, então,
que o nosso autor iria mudá-la posteriormente para uma faculdade
cujo fundamento será de ordem biológica, o que transfonnará a pers-
pectiva psicanalítica num relativismo individual. Mas, por enquanto,
limitemo-nos exclusivamente ao estudo das obras iniciais de Freud.
Neste estágio de suas pesquisas, notamos facilmente que Freud, se-
guindo então a tradição do pensamento ocidental, via nas desconti-
nuidades manifestas da vida do espírito -sendo que sua originalidade
residia no fato de reconhecê-las nos lapsos, atos falho's e sintomas -
o efeito de distúrbios afetivos que ocultam o verdadeiro na consciência.
As representações falacio sas, que ele ainda considera corno respon-
sáveis pelos sintomas, aparecem por motivos fortuitos e não porque
resultam da essência da faculdade de conhecer. Freud coloca em termos
de erro o problema desses distúrbios que vê como perturbações ligadas
às paixões.

92
a amwdilha do irracional 93

Esta primeirã fase de sua conceituação mostra o intelecto levado


a tomar uma fal sa direção de forma acidental, no sentido em que 0
entendia Aristóteles em sua definição do <Y\)IlÕ e rpcwc;, ao expor: "É
por acidente que se aporta em Egina. quando não se partiu com intenção
de ir para'lá, mas que lá se chegou levado pela tempestade, ou apanhado
por piratas. " 2 Em suma, Freud explica o sintoma por um des vio fortuito
do espírilo, à maneira dos moralistas que tinham a falsidade do jul-
gamento como conseqüência das imprevisíveis desordens do coração.
Estamos aqui muito longe daquela apreensão do patológico que des-
cohriremos em textos ulteriores. Iremos, então, ver " o aparelho psí-
quico" manifestando uma estratégia defen siva q ue escapa à consciênc ia
e mostrando, por princípio, o determinante último da representação
em geral, portanto, das representações que correspondcm àquele des-
conhecimento do qual derivariam os sintomas .
Pelo fato de a relação entre a facu ldade racional e a esfera afetiva
colocar necessariamente um problema para a reflexão psicanalítica,
toma-se necessário examinarmos como foi que· Freud se viu levado
a modificar seu julgamento acerca desta relação. Assim, embora ele
não explicite esta problemática, não nos é difícil perceber que a es-
tratégia defensiva, na época das primeiras psicoterapias, comprova o
racionalismo de um procedimcnro que estava em evolução. iremos
acompanhar este trabalho de elucidação do qual j á. dissemos ter sido
o único meio de esclarecer um freudismo que não está consciente de
si mesmo, tal como o Cogito não-expresso de que fala M. Merleau-
Ponty: "Ainda não se pensa e tem necessidade de ser revelado .'' 3
Freud considera os sintomas de que se queixam os histéricos .
como erros. O terapeuta supõe, à origem dos sintomas, uma perturbação
sobrevinda acidentalmente · no funcionamento do aparelho psíquico.
Ele vê esta perturbação como conseqüência do caráter predominante
que tomam subitamente determinações individuais no exercício da
faculdade de conhecer, a qual, por causa disso, nos limitados domínios
da atividade psíquica, se toma uma faculdade de desconhecer. As
manifestações clínicas. seriam, assim, testemunho da .má utilização da
faculdade de conhecer, e o terapeuta considera as próprias manifes-
tações deste:·u so e~rado ·como sendo uma prova de ql.l~ ela permanece
inal~rada · no que .toca à sua esSência. A patologia não mQdifica. em
nada a .. naturezw da razão. Ela nada mais é do que a:quilo.provocado
pelo mau uso da razão.. O aparecimento do sintoma é apenas.um passo
em falso devido ·àquilo com que se, vê · envolviqa a razão, uma pro--
blemática que não era a sua e. que. ela jamais deveria abordar.
94 o sono dogmálicn de Freud

O terape uta consi dera que, nos momentos em que se mostra


perturbada, a razão não sabe mais servir-se de seu poder, porque
aparecem os distúrbios " loca lizados" no interior do aparelho psíquico,
aquela dimensão espacial - em princípio metafórica - que tem por
objetivo tornar mais facilmente compreensível o caráter heterogêneo
dos fatores patogênicos. Tais desordens podem mostrar-se parecidas
com certos tipos de distúrbios causadores daquelas pai xões que tanto
haviam preocupado moralistas e confessores -bem antes de Descartes
ter escrito As paixões da alma. As desordens consistem num simulacro
da destruição de certos conteúdos representativos da consciência in-
dividual. Se não forem desviados, estes conteúdos representativos co-
locarão a consciência diante de uma situação que constituirá uma
ameaça para a salvaguarda da individualidade psíquica, ameaça que
a consciência somente poderá apreender através dos sentimentos de
angústi a e culpa. Ao invés disso, a consciência acabará por encerrar,
no seu campo, representações que, no caso de não revelarem mais a
verdade sobre o objeto, terão por finalidade essenciaJ ocupar o espaço
que deveria ser atribuído às idéias ameaçadoras.
No livro lll de A ética, Spinoza formula idéia parecida: "Quando
o espírito imagina coisas que diminue m ou impedem o poder de agir
de um corpo , ele esforça-se, tanto quanto pode, para lembrar de coisas
que excluem a existência das primeiras." 4 Pelo fato de as carências que
constata na esfer2. da vida psíquica consciente serem de ordem mnésica,
Freud deduz que a consciência individual preferiu· retirar certas rep-
resentações de seu próprio campo. A menos, supõe ele ainda que,
depois de determinadas o bservações que faz, a consciência considere
mais eficaz, ela própria, não reconhecer suas representações. Seja
como for, tal evitação da parte da consciência se explica pelo fato de
que aquelas vorstellun.gen estariam correndo risco de não serem com-
patíveis com a manutenção da coesão da individualidade psíquica.
Esta e xpJícação dos sintomas psíquicos tem a ver com uma concepção
tradicionaJ segundo a qual a desordem manifestada pelo erro corres-
ponderia - a despeito de uma razão cuja natureza é a de conhecer
apenas ·O ser e o verdadeiro - à emergência contingente de uma
alteração de origem corporal que pode conseguir, por este meio, per-
turbar o próprio exercício da razão. Tal concepção parte do pressuposto
de que o aparelho psíquico não destrói qualquer representação. O
verdadeiro esqu~imento é impossível, donde ele deduz que, para não
pensar em um conteúdo demasiado doloroso, é preciso enviá-lo a um
" lugar" do espírito que, por estar longe do campo da consciência,
a armadilha do irracional 9S

preserva esta de ter de acolhê-lo. Já Lei bniz, numa carta de 1671


endereçada a Arnald, repetidas vezes, assinalava esta indestrutibilidade
das representações: "(do fato de que] o verdadeiro lugar de nosso
espírito é um certo ponto o u centro, eu deduzo certas conseqüências
notáveis sobre a incorruptibilidade do espírito, a impossibilidade da
suspensão do pensamento, a impossibilidade do esquecimento [...] o
pensamento consiste no esforço (conatus) como o corpo no movimen-
to" .s
Nestes esboços do freud ismo, o esclarecimento da aparição dos
sintomas equivale à explicação que dá Descartes do erro, pois tanto
para o psicanalista como para o fil ósofo , a razão é a medida· do ser.
É por não pensar somente aquilo que existe que o espírito se engana.
Para convencenno-nos do fato de que Freud realmente começou a
atrelar suas pesquisas à esta perspectiva, basta vê-lo dando ao paciente
interpretações que considera como informações necessárias e suficien-
tes ao preenchimento do enorme furo surgido no conhecimento, furo
que se mostra, também ele, patogênico. Como se no rastro de Descartes,
Freud exclui a possibilidade de pensar aquilo que não existe. Quando
a concepção cartesiana afirma que, re almente, o erro só pode derivar
de uma vontade única, ela quer, com isso, signifi car que o entendimento
não poderia pensar o fal so, o não ser. Tal parece ser também a posição
de Freud, para quem, neste .período de sua obra, os sintomas estão
como detenninados, em sua eclosão, por uma perturbação própria a
este aparelho psíquico e não a um outro, no momento da evolução
histórica deste referido aparelho psíquico e não de um outro quaJquer.
A razão, no que lbe toca, segue os dados de uma problemática que
surge com a irrupção, na esfera do pensamento, de u m elemento in-
dividual, contingente. A psicoterapia, como Freud a concebe, tem,
assim, a tarefa de reduzir este elemento pertubador proveniente do
individual. Para tanto, ela irá tentar recoóduzi-lo à unidade da razão
e de seu objeto. E pelo fato de parecer que se admite estar o confuso
encobrindo o distinto, Freud imagina poder resolver a questão trans-
formando as idéias confusas em idéias claras.
A cura dos sintomas signifi caria para o paciente o aniquilamento
da iniciativa patogênica que. diante da esfera do racional ou da re-
presentação, bloqueia o individual que nele se encerra. Nessa época,
para o aprendiz de psicoterapeuta que ainda é Freud, e de acordo com
uma tradição que remonta ao " Teeteto", aquilo que .se deixa deter-
minar, no homem, por aquilo que ele tem de individual, vale dizer,
pela sensação, é a negação do verdadeiro. Mas a razão, d esde que se
o .wno dogmático de Freud

saiba fazer dela um us-o marcado pela retidão - e é este o ·objetivo


do psicoterapeuta ~ conserva o poder de reencontrar o caminho da
verdade, porque ela terá condições de silenciar aquelas detei'lilinações
contingentes que conseguiram exprimir-se faiendo; passar~se pór co~
nhecirrientos no momento 'de uma · alteração de um ·ajustamento'·ôe'-
fensivo ·normal.
' Parece essencial observar, a partir daqui, urna primeira confusão
notada nesta perspectiva: Freud considera os sintomas como os equi-
valehtes, no plan<Ynoético, de uma õoÇa (opinião) que se faria passar
por uma EmOTilJ.l'll (ciência). Mas isso seria·aler-se a uma concépção
platônica que não vê muita diferença entre aquilo que é do domínio
da opinião e o que esta na ·esféra do: sonho ou da loucura·.: Tódo o
contingente, o individual· é visto como· uma· esfera que· encerraria -in-
distintamente erros, opiniões, crenças absurdas etc . .Que Freud faça
sua urna concepção que associa o esquecimento· de -um ·ndme a: ·um
err6 num problema de física ou uma cegueira hístérica·e qtie c'o!lsidere
isto como manifestaÇões de uin· mesrno ·estado estrutural, tudo bem .
Mas ésperava·se que·ele se desse ao trabalho de esclarecer:o ·"comó'i
da dêscoberta desta homologia~ Só que acontece justamente o contrário:
Freud irá adotar unia atidude que o acompanhará pelo resto da vida:
cheio de segurança, fará inúmeras afirmações que api'esent:ará corno
evidentes, sem jamais procurar esclarecer suas tótnadas de; posição -'-
para não. falar ·dos pressupostos que estas implicam', ·
se
Em·seus primeiros anos, a teoria freudiana- até que socórreSse
em Schopenhauer ~nos mostra uma raião qúe transeende a estratégia
def~nsiva do aparelho psíquico; Por· esta époea, Freud sustenta que
se póde apreender os pacientes sob dois ·diferentes ângulos::' ·de uma
parte, o psicoterapeuta lida com sujeitos cujos psiquismos estão: to-
rnados·:por ilma disfriíiÇâo~ mas l)Or outra, são estes mesmos· sujeitOs
que se mostram aptos à captar a :veracidade· do 'distursó: tei'apêutico.
E é por serem capazes-de· tal discernimento, : conforme ·parece:: ter
imaginado Freud', que estes sujeitos teriam possibiJidade dé' Jivrarwk
do distúrbio que se tornata'odelés'e que eStá ná origem dos ·siôtornas~
Será'nesta disposição pata apreender :o verdadeiro·qUe o psicólePápeuta
vê a-próva daquilo que faz a-razão transcender as dcl:em~inaçaes· ~pre
cámbiantes · ~ e 'intónscientes·.. .:. . ;. , da 'defesa;
Nesta fase· dos:; trabalhos; psicanalíticO&;., existe: uma' ratão que;
por sedaeuldade' de oonhecer~ dóiiHna seu objet(ll, penn~; exterror
à defesà e riio 'podetia,.~ · sua ·essanciái·'ser apreeedida ·em; RleiO'à
mobilidade desta' últim&. ~Pode-se, então,' explieitar'as rei~ d0 pen7
a-~ do irracional

sam~m:o e dos ~~SBWS cliefem:i:VO&, come· se segue: existem pro-


~ ~ívos; mas. basta qne se produza urna distorção desta ati-
vidade processual de coobecell e estes. ll""~esscs. que se encontram em
~· passarão a. sa: u:tilizad~Js pan Eltdros fim. que não sejam os do
CC!JtJlrecimento-. Estes pmcessgs s~ retomad0s, sendo que o retomo,
pm:ial ou total~ é o meio· de· ~los à defesa. Numa tal hipótese,·
a: raz.W tem.. ck fato-, IDllll.il fi!IDÇãio' ~va e nã0 uma função defensiva.
Esta primeiiJra f~Ç.ãO' da relação, em Fieud, entre a razão e a
defesa. i~ tl1illla pressuposição:. ex.i.ste uma: aptidão essencial, pró-
pria: aos· pn:K:essos. cogniti'VO~ q.u~ lhes assegura uma autonomia com
relação a um Eu que reage ao> indivídu0·. Mas, por não saber, em suas
observações clfrricas, distinguir a ciência dos atos racionais do vivido
propriamente dito que acompanha estes últimos, Freud confunde aquilo .
que Husserl chama "a evidência dos objetos ideais" com " a evidência
dos objetos individuais" .6 Dentro de uma mesma ótica, vamos vê-lo
apoiando-se, pata fundamentar seu método de pesquisa, em certas
circunstâncias do aparecimento dos sintomas e logo7 fazer destes as
condições últimas do aparecimento da representação. É este erro me-
todmJógic<>- que o impedirá de perceber a emergênci a, no interior de
seu próprio texto, de um anacoluto que o levará a passar desta primeira
perspectiva para aquela em que se descobrirão as manifestações, a
partir OOs. primeiros anos do século XX. com a invasão de um irracional
que fará com qur: ~lespíri to, cada vez mais, ceda espaço ao Inconsciente.
Tudo. se passará, então, nesta segunda fase da reflexão psicanalítica,
a>mo· se Freud oouv.esse admitido a hipótese segundo a qual a idéia
de mna autonomia essencial da razão se revelasse falaciosa. Ele, com
efcito. acabará per- coroceituar um Eu que, ac:t se defender, fará como
se os ~ cogrr~i've6 não fossem suas: próprias crias.
PoJ; on,. é preciso que: voltemos nossa a&emção pará alguns dos
~casos ~por Ftturdl e taJierlros extrair-lhes a proble-
mãlica fiiosóf"IICa.. Para explicar os sintomas. Fieud, inicialmente, re-
correu à.imagem OO· ccrpo esaradlo, visando tom-ar evidente a relação
causal entre () traumatismo sofrido pciD mmnduo e o obstáculo à
eficiência da IaZ.ãb, obstáculo que. em: si,. baua para expor o sintoma.
Será assim que, nos. Esttdes sdwe a hútaia,. iremos ler: "Mais apr<r
priado seria dizer que o trawnatisiXIO psíiqnico. e,. conseqüentemente,
sua Jembraça agem à maneira de um corpo esar.mho que, muito tempo
depois de sua irrupção. continua a ter um papel ativo." 8 E Freud nos
faz ver os histéricos. como sofrendo de remimscêneias que não de-
pendem de uma perturbação geoenlizada do psiquismo, mas do dis-
98 o sono dogmático de FreuJ

t~ciamento de certas representações, numa região do aparelho psf-


quJco onde elas não são atingidas pelos habituais efeitos do decorrer
temporal. Daí resu ltar, segundo nosso autor, contrariamente ao que
se obser.va nas lembranças, que estas reminiscências não poderão mais,
na ocas1ão de seu retorno à consciência, ser localizadas no tempo,
nem ter seus conteúdos modificados por este último. No decorrer de
suas observações sobre a histeria, Freud será levado a notar em seus
pacientes produções ideativas absurdas e incoerentes, como se recuadas
para além dos sinais de conversão. E sua maneira de explicar esta
insubmissão do pensamento às regras da lógica irá permitir-nos com-
preender como ele conceitua, por essa época, a relação de pensamento
e dos mecani smos de defesa.
Quando as assustadoras histórias de animais que Emmy von N.
" acrescenta" 9 ao relato que leu no jornal se revelaram não passar de
resíduos de terrores infantis, Freud faz questão de esclarecer que uma
confusão tão grande, por mais aberrante que possa parecer, sobrevém
numa paciente que, apesar de tudo, " parece perfeitamente normal" . 10
Se Freud fala de " delírio" 11 a propósito destes distúrbios, por outro
lado, fala também que Emmy é suscetível de tomar consciência da
natureza das imagens de que se queixa, espontaneamente, e dar, contra
sua vontade, respostas inapropriadas às perguntas que lhe fazetn. Foi
desta forma, como relata ela, que interrogada sobre sua idade, acon-
teceu de dar a presumível data da fabricação de um de seus móveis. l2
E Freud mostra as manifestações patológicas como se surgindo subi-
ta~ente de um furo aparecido no interior de um funcionamento psí-
qmco, normalmente respeitoso das regras da lógica, e que, não fosse
por acidentes assim, não mostraria a menor propensão para transgres-
s?es deste tipo. O termo " delírio" parece empregado, aqui, para as-
smalar a heterogeneidade do sintoma ao lado do conjunto da atividade
intelectual da paciente.1 3 A função representativa é apreendida como
se sua perfeita uniformidade fosse obscurecida por um estado mórbido
l~a!i~ado , desprovido de finalidade, à maneira dos músculos daqueles
hJ:ter.Jcos que se contorcem e se contraem sem que estas mudanças
morb1das tenham qualquer coisa a ver com a parte locomotora. Em
certos pontos, o aparelho psíquico parece como se intoxicado pelos
restos associativo~ não utilizados, e o tratamento de natureza catártica 14
devetá expulsá-los de um domínio que não poderia ter a fraqueza de
oferecer-lhes um lugar de abrigo.
. Por diversas vezes, e isto com objetivo terapêutico, Freud recorre
a Interpretações - que, por ~ora, nos co~vém chamar de explicações
a armadilha do irracional 99

- que ele apresenta aos pacientes envoltas po r um halo de evidência


a fim de afastar qualquer risco de rec usa da parte deles. O terapeuta
elabora uma estratégia que se apóia num pacto entre duas racionali-
dades, a sua e a da paciente . A atividade intelectual de Emmy lhe
parece, com efeito, isenta de qualquer traço mórbido e ele conta com
esta integridade que assegura à moça a conservação de sua capacidade
de compreender a veracidade das interpretações que lhe fornece. Esta
aliança deve, segundo Freud, bastar para vencer - melhor dizendo,
fazer desaparecer- os materiais patológicos tidos como responsáveis
pela doença. Por exemplo, quando Emmy von N. fal a do espisódio
onde conta ter visto levantar-se de uma cama a pessoa que acabara
de deixar numa peça ao lado, 15 Freud contenta-se com lhe dar, sobre
aquele tipo de visão, uma definição que ela poderia encontrar em
qualquer manual de psiquiatria: ele " explica-lhe que esta aparição é
uma alucinação e (ele) apela à sua inteligência" . 16 Também, quando
decide ajudá-la a desvencilhar-se das imagens aterrorizadoras relacio-
nadas a asilos, o terapeuta supõe, uma vez mais, que a paciente havia
guardado intacta a capacidade de pegar o sentido de suas explicações:
''Eu desloco estas imagens aterrorizadoras, apelo a seu discernimen-
to." 17 Da parte do entendimento de Emmy, que Freud avalia não ter
sido atingido pelo processo psícopatológico, ele deduz que uma função
judicativa não danificada deve permitir à paciente dar mais crédito
aos esclarecimentos de seu médico do que às descrições ansiógenas
daquela a quem chama de " uma imbecil empregada doméstica" . 18
Por meio desta estratégia terapêutica, Freud mostra que ele considera
a razão como sendo protegida contra uma vida psfq.uica que conhece
dependência do individual, no caso presente, a de uma organização
patológica. Sem dúvida, parece que a terapia se baseia no pacto entre
duas razões: a do terapeuta, supostamente sadia, que quer esclarecer
uma outra que apresenta distúrbios dos quais não soube preservar-se,
mas que, de forma nenhuma, significam que ela tenha perdido, por
natureza, sua capacidade de descobrir o verdadeiro. Freud supõe que
deveria bastar o esclarecimento daquilo que se ·tomara obscuro ou
daquilo que se acha pouco esclarecido, por meio de uma argumentação
fundamentada num trabalho bem definido, para que este objetivo fosse
afcançado, pois as duas faculdades de conhecimento, uma na presença
da outra, estão ambas vo1tadas para a descoberta do verdadeiro. O
terapeuta apóia-se na possibilidade - com relação à qual parece não
ter dúvida, seja qual for o grau dos distúrbios manifestados e a nature-
za deles - de poder transformar aquilo que parece evidente à deter-
100 o sono dogmático de Freud

minada consciência individual, em um dado momento, naquilo que


de fato isto é para qualquer espírito,. por exemplo, para o _seu. Admitir
que se pode, em qualquer lugar e sempre, a partir de uma verdade
para nós, chegar a uma verdade em si à qual seria possível fazer o
paciente ter acesso, supõe que se esteja certo da existência de uma
razão cujos enunciados conclusivos são, por princípio, os mesmos
para qualquer pessoa. Esta certeza permanece inalterada mesmo quando
o terapeuta se dá conta das variações - não importa se patológicas
ou se derivadas exclusivamente da influência do individual - obser-
vadas na realização deste poder de conhecimento que, para ele, é a
faculdade representativa. .
A propósito deste pacto entre duas racionalidades, f'reud dirá
que a razão é determinante daquilo que acontece na consciência. Ele
afirma que se um trabalho racional desenrola-se em boas condições
(tempo disponível, simpatia e habilidade do terapeuta) este trabalho
será capaz de resolver as dificuldades de ordem afetiva que revelam
os sintomas. Assim, dirá ele, no capítulo consagrado à " psicoterapia
da .histeria" : " ... nós especulamos sobre o interesse intelectual que
este trabalho suscita depois de pouco tempo no doente. Fornecendo-lhe
explicações, revelando-lhe o mundo maravilhoso dos processos psí-
quicos que possibilitam tais análises no conhecimento de nós mesmos,
transformaremos o paciente em colaborador e o levaremos a estudar
a si mesmo com um interesse objetivo próprio de um pesquisador.
Será, desta maneira. que chegaremos a abafar uma resistência funda-
mentada na afetividade." 19 Uma tal afirmação significa que a razão
permanece detenninante, pelo menos potencialmente, de todas as re-
presentações, mesmo daquelas que sofreram os efeitos do processo
patológico. Esta posição mostra igualmente que Freud pereniza a di-
cotomia razão-apetite, separando totalmente o representado, enquanto
tal, daquilo para o que tende o apetite.
Por enquanto, o promotor da psicanálise contínua um racionalista
de boa cepa. Quando enuncia em que consiste, para o paciente, o
discurso do terapeuta, Freud não difere muito dos moralistas e con-
fessores do século XVII que sabiam tão bem dissertar sobre os limites
da consciência: "Atuamos, tanto quanto possível, como instrutor, lá,
onde a ignorância provocou certo temor, como professor [ ...], como
confessor que, graças à persistência de sua simpatia e estima, uma
vez feita a confissão, dá uma espécie de absolvição." 20 Ao estipular
aquilo que, segundo ele, é a ajuda d.ada através da razão do terapeuta,
Freud não está muito longe de um Bossuet quando, a propósito do
a annadilha do irracional 101

papel fundamental que· tem a razão no afastamento do pecado, sustenta


ser "a razão, que na sua qualidade de desviar o verdadeiro mal do
homem que é o pecado, chama-se consciência" .21o exercício da razão
parece a Freud tão protegido contra qualquer perturbação acidental
q ue ele chega a formular a hipótese dos distúrbios de Emmy von N.,
apesar de tê-los qualificados como alucinatórios, serem decorrentes
unicamente de problemas de visão, a causa de fato das deformações
que estavam interferindo na percepção: "Emmy era muito míope e
suas alucinações poderiam ser perfeitamente provocadas pela falta de
nitidez de sua percepção visua!."22
Emmy von N. sente certo medo com relação ao futuro de seu
irmão. Este sempre fora considerado, na fanulia, uma espécie de aven-
tureiro e não era absurdo da parte irmã preocupar-se com sua. sorte,
sobretudo porque ele se tinha estabelecido em São Domingos onde
estourara uma revolução que a Europa acabava de inteirar-se. Emmy
passou a mostrar-se contrariada; ela, de início, aJegará que o banho
frio receitado como terapia é motivo suficiente para justificar seus
acessos de mau humor. Mas Freud sabe perfeitamente - e ela o
confirmará depois - que aquela brusca manifestação de irritabilidade
é principalmente causada pelas inquietantes notíCias vindas da América
Central. Contundo, o terapeuta atribui à desconfiança e à cisão do
co nsciente as .acusações feitas ao médico. Freud não ~nceitualiza
ainda, contrariamente ao que não deixaria de fazer anos mais tarde,
que o aparelho psíquico possa ver-se inteiramente determinado pela
preocupação de querer escapar a uma tensão forte demais e que prefira,
para manter a própria coesão, ver somente parte da realidade; no caso,
aquela que reage às conseqüências de um supo~to medo de banho frio
será preferida às representações que obrigariam a enfrentar a even-
tualidade da morte de ·uma pessoa querida. .
Desta forina, na época em que foram redigidos os Estudos sobr:e
a histeria, '.' a dissociação do consciente (...) é uma dissociação dese-
jada, intencional ou, freqüentemente pelo menos, introduzida por um
ato voluntário" .23 O psicoterapeuta dificilmente admite que um des-
conhecimento de tal monta possa, em princípio, escapar à livre escolha.
E, quando uma outra paciente, Lucy R., preferiu não admitir a repre-
sentação de uma cena que evocava o motivo por que o diretor de uma
instituição, onde ela trabalhava, reprimiu-a por não ter sabido impedir
uma mulher de beijar as crianças, Freud qualifica a amnésia da paciente
de "pusilanimidade moral" .24 E na passagem que consagra à psico-
102 o so110 dogmático d~ Freud

terapia da histeria, referindo-se à " uma histeria aguda, a um caso em


que os sintomas histéricos estão em plena efervescência e, conseqüen-
temente, com o Eu submerso em produções mórbidas", 2s diz ele que
o terapeuta, exatamente por isso, não deve, sobretudo, deixar-se levar
por um desânimo difícil de ser evilado face à magnitude dos obstáculos.
Observará, então, que a inutilidade do tratamento, bem como a ina-
nidade dos esforços daquele que conduz a análise são só aparentes.
Uma exortação dessa natureza ultrapassa o registro de conselhos téc-
nicos ou éticos para desembocar nl)ma perspectiva teórica onde o Eu
e a defesa são descritos como se mantendo um com o outro uma
relação de alteridade. De fato, mesmo quando os sinais do conflito
defensivo permitem ver uma razão que parece extravasar-se, será so-
mente do exterior, sem contaminá-la em profundidade que a defesa
pode assim perturbá-la. A razão está aberta a qualquer atributo próprio
da defesa. É realmente isto o que Freud quer dizer quando faz observar:
"É preciso perguntar a si mesmo, ainda que no caso de uma histeria
grave, se a supressão das produções patológicas não tem, a cada vez,
uma ação curativa quando protege o Eu do sujeito, aquele Eu que é
absorvido por sua defesa, subtraindo-o ao perigo de ser vencido, de
sucumbir à psicose e, talvez, por fim , até à demência." 26 Freud con-
sidera, aqui, que no caso de reforçar-se o Eu pelo trabalho do trata-
mento, este mesmo Eu terá mais chances de não ser submerso por
uma dependência de origem defensiva que, apesar de residir fora dele,
nem por isso deixará de constituir sério perigo. Face ao Eu - e,
portanto, face à atividade racional com a qual, agora, este último
coincide - põe-se a parte defensiva do aparelho psíquico em luta
contra o processo mórbido.
Mas este caráter isolado das perturbações, expresso pela imagem
do corpo estranho, será questionado na parte final dos Estudos sobre
a histeria. Freud retoma sua metáfora, mas contestando-a sob o pretexto
de querer precisar-lhe certos detalhes. O seu raciocínio tende a estender
o problema patogênico ao conjunto do aparelho psíquico, dando prova,
assim, da dificuldade que sentia para colocar a questão da relação
entre o nonnal e o patológico, questão, ela própria, ligada à do cons-
ciente e do Inconsciente, bem como à da representação e defesa. Freud
vai começar por colocar em dúvida a validez da hipótese que suben-
tende a imagem do corpo estranho, em seguida, irá mostrar-se inclinado
a aceitar a noção de invasão da totalidade do aparelho psíquico, in-
clusive de sua atividade racional. Enquanto redige os Estudos sobre
a armadilha do irracional 103

a histeria, esta extensão do conceito ainda limita-se somente a casos


de patologia. Será pela integração da filosofia schopenhaueriana que
se exprimirá a generalização da idéia de razão defensiva por natureza.
Este encaminhamento para o irracional irá confirmar-se, mais
tarde, quando deverá ser elaborado uma segunda tópica cuja necessida-
de parece ter sido motivada pelo fracasso do esclarecimento das re-
lações entre consciente e Inconsciente, fracasso que se mostrará par-
ticularmente ostensivo quando Freud tentará enunciar aquilo em que
consiste o determinante último do recalcamento, ou seja, quando ele
se verá confrontado com as perguntas: o que é recusado pela cons-
ciência, por quem e segundo que lei? Nas últimas páginas dos Estudos
sobre a histeria, a propósito deste questionamento do caráter localizado
dos distúrbios psíquicos, escreverá Freud: "Acrescentemos certas ob-
servações à imagem assim traçada da organização dos materiais pa-
togênicos. Havíamos dito, com relação a estes materiais, que eles
representavam o papel de um corpo estranho; o tratamento atua de-
sobstruindo o tecido vivo deste corpo. E, dessa forma, estamos, agora,
em condições de ver por onde peca nossa comparação. Um corpo
estranho, embora modifique as camadas de tecidos que o envolvem
e provoque nele uma reação inflamatória, não se liga de maneira
alguma a elas. Ao contrário, nossos grupos psicopatogênicos não se
deixam também facilmente extrair do Eu; suas camadas superficiais
integram-se por toda parte nos elementos do Eu normal e pertencem
tanto a ele quanto à organização patogênica. O limite entre os dois
é, em última instância, puramente convencional e se encontra tanto
num determinado lugar como num outro e, às vezes, toma-se mesmo
impossível localizá-los [ ...] A organização patogênica não atua real-
mente como um corpo estranho, mas, antes, como uma infiltração." 27
Há outras passagens onde, vez por outra, e de ·maneira aparen-
temente acidental, surge a idéia de que a defesa não pode ser fruto
de uma intencionalidade consciente. Assim sucede com a descoberta
que faz Elisabeth von R. de seus próprios sentimentos amorosos.
Quando Freud reflete sobre aquilo que deveria significar, para sua
paciente, o desejo amoroso que ela sentia pelo cunhado, ele dirá que
" no que toca a esta representação, havia, ao mesmo tempo, conheci-
mento e não conhecimento" .28 A descoberta de semelhante ambigüi -
dade talvez seja algo novo para Freud,29 mas será que o que dizia
Mademoiselle de Scudéry, em o Grand Cyrus, era tão diferente assim ?:
"Ela o amava sem imaginar amá-lo, e viveu tanto tempo neste erro
que aquela afeição já não estava mais em condição de ser superada
104 o sono doptthico de Freai

quando e la se deu conta disso." 30 É no " ~i.smo" supostamente


capaz de explicar esta ambivaiência que reside o uprogresso.. da con-
cepção de Freud com relação à idéia formulada pela romancista do
século xvn
Acabamos de ver Freud obrigado a modificar seu primeiro es-
quema- o do corpo estr3nbo - e Jogo iremos coostaUr sua inca-
pacidade de explicar uma "'realidade psíquica" que não poderia ser
traduzida na linguagem própria das coisas. Querer fiCai' ~ a tal
perspectiva, com efeito, será deixar na sombra aquilo que é a repre-
sentação, além do fato de que ióarnos encontrar aqui uma carência
muito maior de qualquer visão '' naturalista" aplicada ao pensamento.
Duas pedras quando balem uma na outra somente estabelecem relações
recíprocas no nível das respectivas superfícies e podemos determinar,
com e.xatidão, o deslocamento que, desse choque, resulta para cada
uma delas. É isto que, com certeza, constatou Freud quando se valeu
da imagem do "corpo estranho" . Mas o mesmo não acontece na esfera
do conhecimento onde a relação entre representações é só interioridade
c, antes de mais nada, rmanência. Ora, se ele renuncia a primeira
hipótese, obrigado a isto em virtude de seu caráter não heurístico,
Freud terá de dar maior complexidade a seus esquemas num sentido
continuamente .. coisificador" , multiplicando os tópicos, as instâncias,
as concepções do recalcamento, as teorias da pulsão. E q uando quer
resguardar o relatório da clínica, ele fala, de acordo com esta pers-
pectiva coisificadora, " da revolta de todo o Eu contra a aceitação
desse grupo de representações" 31 e , para explicar a rejeição, e le julga
nec~ssário " dar uma espécie de exposição algébrica do mecanismo
das representações'' ,32 a fi m de conseguir, por este meio, atribuir "ao
complexo ideativo desta excessiva inclinação inconsciente, uma certa
carga afetiva" ,33 o que permitiria dizer que "é esta Ciltima quantidade
que foi objeto da conversão" .34
Enfim, Freud sustenta que o aparelho psíquico " prefere" - in-
conscientemente - as manifestações somáticas às dores morais, por-
que as primeiras são mais suportáveis. Infelizmente, nada há para
provar esta" preferência" . Somente podemos deduzir que os problemas
físicos tenhani sido "escolhidos" pelo que se observou em certos
pacientes. Quando apresenta tal escolha como fruto da atividade do
aparelho psíquico , F reud deixa em suspenso a questão do saber quem,
em última análise, toma esta resolução de desconhecer. Sua resposta,
decididamente, não o satisfaz, pois, sob os auspícios de urna termi-
nologia titubeante, a mesma Questão irá ressurgir no decorrer de seus
a anruulillla do irracional lOS

trabalhos. Neste estágio das pesquisas, Freud formula a hipótese


de uma " revolta de todo o Eu" 35 le\lantando-se contra a presença de
determinada constelação representativa no campo da consciência. Em
virtude de ser o Eu, então, essencialmente consciente, temos de deduzir
que o recalcamento foi determinado pela consciência. Se, com efeito;
o problema do recakamento fosse colocado como derivado da parte
inconsciente do Eu, isto equivaleria a dizer que ele seria determinado
por urna espécie de segunda inteligência inconsciente, ela própria
inconsciente, e que atuaria por conta ex.cJusivamente da consciênda.
Em suma, nesses primeiros tempos do freudismo, qualquer que seja
a maneira que abordemos a questão, só e em último recurso, a cons-
ciência pode determinar um desconhecimento desta ordem. Aquilo
que é dado inicialmente, aquilo que é conhecido de maneira imediata,
vale dizer, o condicion ado - no caso, os distúrbios constatados - ,
é que constitui a única realidade a ser explicada. O resultado da pes-
quisa, ou seja, aquilo que condiciona o condicionado - quer, dizer,
o mecanismo inconsciente em questão - deverá justificar os distúrbios
constatados e nada mais que estes distúrbios. Da causa pesquisada,
podemos conhecer, evidentemente, apenas aquilo que já está no efeito.
O Inconsciente somente é suscetível de ser descrito a partir dos dados
exclusivos do consciente e aquilo que achamos saber do Inconsciente
só é obtido por meio de fonnas e materiais provenientes unicamente
da consciência.
No caso de Elisabeth von R., Freud dá a entender que, para ele,
tudo se passa como se houvesse de~coberto a existência de dois sujeitos
na moça, o primeiro, que amaria apaixonadamente o éunhado, é, · no
entanto, ignorante do segundo, aquele que, embora acessível à cons-
ciência imediata, sofre de uma astasia-abasia a que estaria limitado
aquilo que ele conheceria do amor do primeiro. Mas esta dicotomia
não permite a Freud fugir da questão do sujeito, pois. ele continou
sem poder elucidar a relação entre os dois termos da dicotomia.
A despeito da emergência episódica da idéia de um aparelho
psíquico subjugado pelo movimento defensivo que o anima, a maioria
dos textos de 1895 recusam, por princípio, tal eventualidade. Vemos,
aqui, a parte defensiva opor-se ao Eu e à uma razão que confundem-se,
segundo Freud. E no que toca à pesquisa da relação entre a defesa e
a representação, Freud será levado a estabelecer uma hipótese que
iremos encontrar ao longo de toda sua obra sob denominações diversas,
pois que, se ela não é o pensamento propriamente dito, o pensamento
defensivo que ele considera um falso pensamento, ela será tida como
J06 o sono dognuírico d~ Freud

uma "segunda inteligência" .36 Assim, quando relata uma observação


clínica onde a ausência de ligações entre os materiais que a rememo-
ração libera é manifesta, Freud admite que estes elementos, aparen-
temente desprovidos das ligações de necessidade que os uniriam, são
detenninados por uma " inteligência inconsciente". 37 Estes elementos
"de que carece o Eu" 38 não estariam mais, portanto, como se tragados
por um abismo onde nenhuma ordem reinaria. Lá, naquele lugar onde
se esboça um segundo sujeito cujos objetivos inconscientes seriam,
ao mesmo tempo, os de uma" inteligência não necessariamente inferior
ao Eu nonnal" .39 Esta hipótese freudiana é, sem dúvida, o resultado
de uma espontaneidade racional que, como eco das lições da filosofia
kantiana, orienta a atividade do entendimento na direção de uma di-
versidade sempre cada vez mais acentuada e que, por este movimento,
possui uma tendência a "atomizar" aquilo a que ela visa. Segundo
esta perspectiva, o aparelho psíquico ocultaria, num lugar situado
" fora" da consciência, materiais do passado cuja localização e dinâ-
mica dependeriam mais da incorporação dos objetos do que de uma
intencionalidade do espírito. A individualidade preservar-se-ia como
tal com vistas a jamais ter de estabelecer uma relação de alteridade
com aquilo que, nela mesmo, seria demasiado diferente do que ela se
julga ser. Ela se detenninaria relegando o inadmissível sob a forma
de" arquivos perfeitamente organizados" .40 Mas ainda aqui, não existe
nada capaz de per!nitir conhecer o determinante último de uma ação
que consiste em colocar estes materiais e não outros na fonna de
"arquivos". Quanto a este lugar onde nos é dito que estes materiais
estão arquivados em "perfeita ordem", ele parece bastante distanciado
daquele Inconsciente que, posteriormente, nos será descrito como um
" caldeirão borbulhante" onde tudo é caos.
Na descrição de tais estados patológicos, Freud deixa suspeitar
que, pelo menos nestes casos, o pensamento é defensivo. A repre-
sentação da realidade que o pensamento ambiciona deve submeter-se,
segundo ele, à alteração imposta pelas exigências consecutivas, uma
sempre possível incompatibilidade entre as diferentes partes do indi-
víduo. Os obstáculos encontrados durante o curso do tratamento, a
adesão do paciente às representações contraditórias - constituem,
para o terapeuta, tantos motivos para duvidar de uma concepção tra-
dicional da racionalidade que esta não lhe permite explicar aquilo
contra o que se choca o tratamento. Procurar de onde provém tal
condicionado leva sua razão a formular que este último deriva de um
incondicionado que faria parte de sua condição. Freud vê-se, portanto,
a armadilha do irracimwl 107

obrigado a colocar-se num plano que vai além da experiência, ou seja,


naquele de uma diversidade inobservável que, sozinha, justificaria o
conteúdo do discurso manifesto do paciente. Pelo fato de constatar
que, num mesmo sujeito. coexistem s·imultaneamente mais de um
sentido no que concerne a um mesmo objeto, Freud formula a hipótese
da existência de mais de uma inteligência. Desta maneira, basta-lhe
conceber um pensamento não consciente que escape à apreensão da
consciência imediata, uma ·•segunda inteligência" que parece forne-
cer-lhe a explicação daquelas descontinuidades observadas no discurso
e no comportamento, para que, na sua opinião, confinne-se esta divisão
do sujeito que estará sempre na base da perspectiva psicanalítica.
Contrariamente ao que normalmente afinnará, Freud não poderá
contentar-se com a factualidade apenas. E a este processo de pensa-
memo virá juntar-se seu encontro com o sistema schopenhaueriano.
Freud, sem dúvida, sentiu-se encorajado em sua adesão aos textos do
filósofo de Frankfurt pelas afinidades que ele lhes reconhecia com
aquilo para o qual sua experiência o arrastava irresistivelmente. As
modificações que estará constantemente fazendo nas conclusões dos
textos de 1895 terão como único objetivo chegar a uma apreensão
adequada das detenninações- que continuam ainda, para ele, ocultas
- de seus fracassos terapêuticos e do impasse teórico de sua elabo-
ração. É assim que assistiremos a uma nova atomização das instâncias
quando o Eu consciente se revelará incapaz de, sozinho, responder
pelo recalcamento. Esclarecer as instâncias da segunda tópica, por
exemplo, impõe tomar cada vez mais inconsciente um Eu que, do
contrário, impediria considerar aquelas últimas entidades, como o Su·
pereu ou o Ideal do Eu sobre as quais o menos que se pode dizer -
tratando-se, de um partidário declarado do respeito absoluto da fac-
tualidade - é que elas não se situam, tais como são dadas, no plano
da experiência.
Esta noção de pluralidade das inteligências é fundamental para
compreender o conceito de defesa e, conseqüentemen.te, toda a pers-
pectiva psicanalítica. Convém, por isso, determo-nos um pouco mais
neste ponto. Antes de continuar nossa leitura dos textos freudianos,
é necessário, com efeito, tomar explícitas e fazer um esforço para
justificar as referências de que nos serviremos, pois as veremos con-
sideradas como a medida de qualquer discurso relativo ao homem,
tal como aquela ~'tPllTIJC1l (medida) ou "ciência da medida [que] se
aplica a tudo que está em transformação" ,41 para ficarmos com a
108 o sono dogmático de Freud

definição que dá o Estrangeiro de O político diante de Sócrates, o


jovem.
A estratégi~ defeósiva do aparelho psíquico não pode conceber-se
sem a existência de uma outra inteligência ainda melhor adaptada -
" mais inteligente" - às detenninações internas e externas do aparelho
psíquico, bem como a um passado cujo aparente esquecimento é um
artifício supremo para preservar aquilo que, de acordo com esta " in-
teligência" , estaria em perigo. Ao lado de tal sagacidade, de tal ca-
pacidade para integrar todas as experiências do passado no prese nte
de uma apreensão, a inteligência consciente parece quase que atacada
de cegueira. Esta impotência, por sinal, não significa muita coisa
quando olhada sob a perspectiva freudiana que irá procurar conven-
cer-nos de que aquilo que é fruto da inteligência consciente não passa,
na maioria das vezes, de uma ilusão, certamente ·não consciente de si
mesma e nquanto tal, mas que não tardará a encontrar-se no domínio
do patológico.
É preciso ainda que nos ocupemos com esta outra indagação
fundamental: o que é o indivíduo para Freud? O psicanalista não
reconhece como autêntico aquele ser apreendido pela consciência,
aquele ser. pensante, mas pensando quase sempre errado, fantasiando
a realidade para poder sobreviver, preferindo a mentira e o disfarce
à apreensão do real. Mas poderíamos dizer do indivíduo submetido
ao reino do Inconsciente que ele é autêntico? Aceitar seguir os passos
de Freud em sua teoria será, com efeito, reconhecer como autêntico
somente o indivíduo capaz de elaborar e assumir uma estratégia de-
fensiva que veremos atuar apenas no terreno da patologia. Ou mesmo
que procuremos ater-nos mais ao espírito do que à forma do freudismo,
considerando como alvo do autêntico aquele diálogo intrapsíquico
entre consciente e inconsciente que o tratamento psicanalítico tenta
instaurar, continua difícil admitir que a realidade humana estej a, po r
princípio, fora de alcance, e isto não importa qual seja o esforço feito
com esta fin alidade, à exceção de um único, justamente o do tratamento
psicanalítico.
~stas observações mostram o quanto é necessário que elas sejam
exammadas com atenção, já desde os primeiros textos , desde aquelas
deduções das quais Freud se acreditou em condições de poder extrair
seu trabalho cHnico. É preciso esclarecer aquilo em que implicam as
hipóteses fonnuladas pelo psicanalista e, para tanto, saber o que há
de comum entre elas e em que consiste o seu horizonte filosófico. As
contradições inerentes à realidade humanà sempre intrigaram não só
a o.mJQI/iloo do irrtJC'ÍOfUII 109
j

filósofos, mas também dramaturgos e romancistas. A tentativa freu-


diana para levar as causas destas contradições à uma consciência ex-
plícita representa inegavelmente uma refiexio insubstituível. mas não
poderíamos admitir, sem reservas, uma tentativa de explicação que,
para construir, teve. primeiro, de estabelecer um hiato entre ela e tudo
aquilo que a precedeu ou, o que dá no mesmo, teve de denunciar a
tradição como tão enganadora quanto os clássicos exemplos das ilusões
dos sentidos, bem como o sonho e a loucura.
A inanidade da noção de pluralidade das imeligências foi posta
em evidência geralmente por aqueles mesmos que se viram desafiados,
na exp<)sição desta perspectiva, por empiristas ou filósofos cuja ma-
neira de pensar está ligada à uma idéia de ontoteologia. A este pro-
pósito, lembramos a critítica fonnulada por Plotino na passagem in-
titulada "Contra os gnósticos" e que se refere unicamente a VO'JlG1.Ç
VO'QO"'E<OÇ (faculdade de pensar) da Metafísica l: "'Não é necessário
[ ...] admitir várias inteligências das quais uma pensa e a O&Itra pensa
que ela pensa. Ainda que se admita que pensar e pensar que se pensa
sejam duas coisas diferentes, a inteligência é uma intuição ónica que
percebe seus próprios atos; é ridículo admitir uma tal diferença na
inteligência verdadeira [...} E se, aJém desta segunda inteligência que
pensa que a primeira pensa, fosse introduzido uma terceira inteligência
que afirmasse pensar que a segunda pensa que a primeira pensa, o
absurdo seria ainda mais evidente; por que, entio, não chegar ao
infinitor•z Compreendemos, assim, por que PJotino, nem na inteli-
gência nem no Ser, vê a última palavta de sua reflexio. Se eJe houvesse
admitido, como princípio de conhecimento, como Absoluto, um In-
telecto cuja imanência no inteligível não tivesse impedido uma trans-
cendência do conhecido face ao conhecimento, o princípio do conhecer
ficaria enfumado numa relação de dualidade e nio teria sido verda-
deiramente princípio. Pois nos sistemas construídos - como os de
uma ontoteologia- sobre o par de oposição forma-matéria, subsistem
sempre, em última instância, dois focos que podem ambos justificar
separadamente a realidade a ser explicada. Assim é que o aristotelismo
encontrará, nos textos do estagirita, a justificação de uma individuação
pela matéria segundo alguns, enquanto outros irão preferir a indivi-
duação pela forma, apoiando-se em textos não menos detenninantes.
E mostramos como, no seio da Critica da razão pura, embora o
clássico seja considerar a espontaneidade unificadora como aquilo qúe
é capaz de organizar e sistematizar o conhecimento, pode-se também
ver, lá, uma outra orientação racional que se opõe à primeira.
110 o sono dogmático de Freud

Querer fazer coexistir uma pluralidade de determinantes últimos


equivale a pretender contorn ar o princípio da não-contradição. É ad-
mitir uma fonna do sujeito poder, ao mesmo tempo, encerrar o co-
nhecimento e o não-conhecimento de uma representação. No caso de
uma figura como esta, podemos, sem dúvida alguma. supor que tal
sujeito contenha nele duas inteligências. Seria preciso poder discernir
qual das duas, num dado momento, tornou-se senhora do campo da
consciência.
Bastaria percorrermos os primeiros textos de Freud para extrair
o essencial das questões que estará sempre levantando a perspectiva
psicanalítica. Partindo da teoria do corpo estranho, Freud passa pela
imagem da infiltração de todos os tecidos, antes de chegar à eclosão
dos centros de decisão. E, em meio a estes últimos, Freud mostrará
aqueles que são não-conscientes - por exemplo, a .. segunda inteli-
gência" - , como os mais organizados e aptos a efetuar o trabalho
da censura da qual depende a conservação do indivíduo psíquico.
Trata-se, realmente aqui, de acordo com Freud, de uma recusa da
razão enquanto tal, pois ele reconhece que outras razões contribuem
para a efetuação da faculdade representativa através de uma redistri-
buição, a cada instante, do papel de cada uma.
Freud não se contenta de questionar apenas o estatuto da razão,
ele ataca também o problema da consciência. A partir dos Estudos
sobre a histeria, o psicoterapeuta imagina que "se fale, não sem razão,
de uma estreiteza do consciente" .43 Ele vê nesta estreiteza a carência
principiai da consciência. Esta, que dispõe apenas de um reduzido
conhecimento no plano tópico, vê-se, além do mais, apanhada de
supresa, por aquilo que irá eclodir em seu campo. O paciente " nada
percebe daquilo que tende a aparecer e esquece o que já forçou seu
caminho'' .44 A consciência não pára de enfraquecer-se ao longo de
toda a análise que Freud faz dela: a consciência revela-se especifica-
mente exígua e inerte na medida em que não passa, segundo ele, de
um joguete face às inumerávei s forças descobertas fora dela. Mas,
quando se trata de fazer aparecer a ação restritiva da consciência,
Freud deixa de descrevê-la como puramente passiva. Ela toma-se,
então, o artífice das deformações que derivam de seus atributos:" Todos
os materia is patogênicos atravessam, desta maneira, uma fenda estreita
para chegar como se fragmentados e distendidos na consciência."4S
Quanto à atividade racional, ela pode enganar a si mesma, sem
sequer identificar a representação que é levada à consciência como
a annadilha do irrcu:ional 111

fazendo parte de seu Eu: " ... eu me pus como nonna avaliar, durante
o curso da análise, o valor de uma reminiscência que surja sem levar
em consideração o seu reconheci mento pelo paciente" .46 Nessas últi-
mas páginas dos Estudos sobre a histeria, estamos, portanto, lo nge
do pacto entre as duas racionalidades que, no início da obra, se revelara
a idéia condutora do tratamento psicanalítico. A inteligência de um
dos dois protagonistas- no caso a do paciente- não é mais admitida
como apta a proteger-se contra o desconhecimento de representações
cujo traço subsistiria, entretanto, no interior do psiquismo individual.
O psicoterapeuta não confia mais senão nele próprio para decidir sobre
o que constitui - ou não constitui - parte integrante deste espírito
individual, dizendo que" é preciso ter cuidado para não superestimar-se
'a inteligência' inconsciente do doente" .47 Poderíamos objetar que se
a razão do paciente é questionada quanto à sua capacidade essencial,
o mes~o poderia ser fe ito com relação à do terapeuta. Por sinal, é o
que parece reconhecer este último quando escreve que "é preciso que
se desista, de uma vez por todas, de chegar-se ao âmago da organização
patogênica, de fonna mais direta" .48 Ainda que a atividade racional
do médico lhe permitisse atingir este objetivo, não será isto que fará
modificar a incapacidade do paciente para compreender a veracidade
dos dizeres do terapeuta. É o q ue frisa Freud quando observa que
'' mesmo admitindo-se que consiga adivinhá-la [a organização pato-
gênica ], o doente não poderia fazer qualquer uso da revelação que
lhe fosse feita e, por isso, seu psiquismo e m nada se modificari a" .49
Por conseguinte, Freud não faz mais da inaptidão da razão para
conhecer o verdadeiro, o real, apanágio de sujeitos dominados pela
doença. É evidente que, por esta época da perspectiva psicanalítica,
começa a emergir outra vez. aquele questionamento do estatuto da
razão segundo o qual o desconhecimento de certos elementos do real
pelos pacientes não é pró prio da neurose. " O prático está no direito
de exigir de um histérico associações lógicas, motivações semelhantes
às que ele exigiria de um indivíduo normal" ,so e a manutenção da
coerência lógica será, então, descrita como uma arma que se volta -
sem que disso tenha conhecimento- contra o paciente, poi s a coesão
do discurso não passa de um engodo que impede o terapeuta de ver
aquilo que a construção lógica esconde, ou até se ela esconde ou não
alguma coisa: " A narrativa que faz o doente parece acabada, consis-
tente. Nós nos encontramos, primeiro, diante dela como se na frente
de um muro tapando qualquer perspectiva e impedindo de adivinhar
112 o wno tiog,ático Ih Fr~ud

o que está ocurto po r tr.ás dele, inclusive, sem poder adivinhar se lá


atrás o 'ste a~~~a coisa ocl!lta." 51 Estamos aqm dí.ante de um típico
exem~ dos bmttes de quafquer tentativa de explicação somente pela
patologra. Esta constatação do fracasso não leva Freud a indagar-se
s.obre. seu método: ao contrário, ao invés de fazê-lo, ele passará a
questionar a essência mesma da razão. Do fato de que foi preciso
denunciar o pacto estabelecido entre duas racionalidades, deduzimos
que a c~~eira de~oberta nos pacientes existe, na realidade, em qual-
qUC:r S~Jetto. Es!a lmagem do muro que tapa qualquer perspectiva e
alrãs 00. qual nao é certo que encontremos alguma coisa, não é um
mom~nt~ ~ pesquisa percebido como um fracasso a partir do qual
devena tntCliai-se uma etapa nova e mais heurística. Freud não faz
mais do que enterrar-se na idéia de uma "barreira" intransponível
entre con~ciente e inconsciente. Nesse momento, ele poderia ter no-
vamente questionado sua hipótese. Seria o caso de lembrannos aqui
daquela passagem de A fenomenologia do espírito que nos deixa ver
Hegel no ~~me~to em_ que toma consciência do impasse em que
fatalmente ma carr se nao houvesse superado a oposição entre o. fe-
nômeno, o· devi.v e a lei deste devir.S2
Porque considera os atos racionais como objetos do mundo físico
que fazem sua aparição no campo da consciência, porque ele é, em
suma, prisioneiro de uma concepção .. coisificadora:" do pensamento,
Freud mostra que sua metáfora de um aparelho espacializado tem de
metafórico apenas o nome desde que foi levado a pô-la em prática.
Dessa forma, concebe a consciência corno wna fenda que se torna
cada vez mais estreita, sendo esta diminuição a causa da pobreza e
da deformação do conteúdo consciente, e em seguida, extrairá desta
conceituação da conscjência argumentos para sustentar a limitação do
papel desta última na faculdade representativa. Esta imagem de urna
consciência reduzida a uma fenda através da qual bem poucos objetos
poderiam abrir caminho. e assim mesmo não sem sofrer alterações
que os tomariam irreconbecíveis, permite perceber a que ponto uma
apreensão coisificante dessa ordem é capaz de revelar-se redutora. Tal
carência metodológica não precisava esperar pelo século do cientismo
p~a ser denunciada. Pascal já estigmatizava aqueles que "falam das
cmsas corporais espiritualmente e das espirituais corporalmente" ;53
esta perspectiva espacializada era já uma daquelas concepções que o
autor das Cartas provinciais visivelmente fora buscar para descrever
o erro no qual se atolam aqueles que "ao falar dos espíritos [...] os
a armadilha do irracional 113

consideram como em um lugar, e atribuem-lhes o movimento de um


lugar para outro, que ~ão coisas que pertencem somente aos corpos" .s•
Em "As psiconeuroses de defesa" ( 1894), Freud coloca, mais
explicitamente talvez, a questão da individualidade e de suas relações
com o pensamento e a defesa. Quando menciona aquele momento em
que "se produziu na vida representativa deles um caso de inconcilia-
bilidade" ,ss Freud tenta fazer ver de que maneira emergem os sintomas.
Ao aludir a impotência da pessoa para "resolver pelo trabalho do
pensamento a contradição entre esta representação inconciliável e o
seu Eu" ,56 Freud especifica a condição do aparecimento dos sintomas.
Ele se vê, então, levado a explicar, de certa maneira, que a indivi-
dualidade psíquica não está assegurada para sempre no que toca à sua
manutenção no tempo, que ela somente existe na medida em que está
incessantemente por fazer. A noção de " inconciliabilidade" que po-
demos ter de atribuir à " representaneidade" mostra que condições
devem ser preenchidas para que se mantenha a individualidade da
vida psíquica. Falar de condições da manutenção do indivíduo psíquico
enquanto tal remete-nos à idéia das condições da gênese desta indi-
vidualidade. O indivíduo jamais está, por conseguinte. constituído
para todo o sempre. Ele tem de estar constantemente mantendo-se
como tal. em graus diversos de sua realização, cuja patologia, em sua
diversidade, deixa entrever aquilo que podem ser as soluções encon-
tradas para disfarçar uma eventual ameaça de " desindividuação.. .
Aquilo que vemos Freud expor aqui num plano ôntico corresponde
àquilo que, no plano ontológico, Heidegger diz do Dasein; querendo
distinguir-se daqueles que confundem as coisas do mundo físico com
os sujeitos de conhecimento. Heidegger observa que o ente que é cada
um de nós jamais é dado, mas está num contínuo fazer-se, diferente-
mente daquilo que é uma coisa. Heidegger aborda dois movimentos
diametralmente opostos: por uma parte, ele se levanta contra os par-
tidários da .corrente naturalista que, como Schopenhauer, falam do ato
de conhecer em termos fisicalistas e, por outra, põe-se contra os par-
tidários da filosofia das essências, de inspiração platônico-aristotélica
que, negligenciando a questão da existência, admitem reduzir o indi-
víduo que eu sou àquilo que existe de uma vez para sempre.
O indivíduo, tal como o descreve Freud - e muitos outros antes
dele, inclusive Bergson - é uma heterogeneidade de necessidades,
tendências e funções que se encontram reunidas e mesmo sistemati-
zadas em um indivíduo. Uma vez que as tendências se acham em
114 o sono Mgmático de Freud

oposição umas às outras no interior do aparelho psfquico, podemos


dizer que nenhuma é perfeitamente acabada. E sendo o esquecimento
completo impossível, será o recaJcamento que permitirá ao indivíduo
psíquico persistir no tempo deixando a possibilidade ao " Eu que se
recusa [ ... ] a tratar como 'não-acontecida'"51 a representação incon-
ciliável. Esta contradição que a individualidade psíquica não poderia
tolerar se pennanecesse consciente é determinada pelo sentido que
toma esta ou aquela representação face à organização psíquica no
momento em que sobrevêm aquelas Vorstellungen. As próprias exi-
gências do · aparelho psíquico obrigam o consciente a lançar no In-
consciente - que suporta a coexistência dos contraditórios - aquilo
que estaria na fonte de uma incompatibilidade e que, desdenhando o
princípio da não-contradição no nível represemativo, não respeitaria
mais o princípio de unidade no plano do ser, de tal maneira que este
ser que é o indivfduo deixaria de sê-to e a individualidade em si
mesma se veria comprometida.
O aparecimento do si ntoma está correlacionado com a decisão
tomada peJo Eu de subtrair-se a uma contradição que o colocaria numa
posição insustentável. Encontramos aqui aquela perspectiva schope-
nhaueriana segundo a qual a mais importante das funções do Eu é a
conservação do indivíduo. Isto equivale a dizer que o conhecimento
deriva de uma causa final que é o respeito pelas condições da manu-
tenção da individualidade enquanto tal, condições que derivam elas
próprias daquilo que a consciência pode ou não suportar. É pelo fato
de a consciência do paciente não poder coexistir com tal representação
- enquanto representação consciente - que foi tomada (mas por
quem?) a determinação de subtrair esta Vorstellullg à consciência, de
considerá-la como " não sobrevinda". O restante - ou seja, o devi r
desse conteúdo tornado inconsciente - é função da intolerância re-
conhecida na consciência. É com o único objetivo de poder ser aceito
pela consciência que se infere, das queixas do paciente, todo um
trajeto, todo um mundo de mecanismos que assim são porque podem
evitar para a consciência o trabalho de ter de "considerar COII\O so-
brevinda" esta representação. Por outra parte, a não ser que se suponha
uma "segunda inteligência", fora a razão consciente não há outro
elemento capaz de determinar a escolha, já que não poderiam proces-
sar-se decisões no Inconsciente. Será, portanto, no interior da cons-
ciência que estarão alojadas as condições do aparecimento da repre-
sentação no campo da consciência e, pela mesma razão, o lançamento
da representação na esfera do Inconsciente. Começa a tomar corpo,
a armadilha do irraci01ral ns
aqui, a perspectiva que faz, do funcionamento psíquico, um todo or-
gânico cujo fim é o de evitar continuamente uma insuportável desar-
monia, algo equivalente, pode-se dizer, a um funcionamento psíquico
que tenderia para a harmonia, noção que não pode deixar de trazer-nos
à lembrança a teoria de Cebes e Símia no Fédon .
A questão das relações entre consciente e inconsciente encontra-se
posta já desde os primeiros trabalhos de Freud e ela implica a neces-
sidade de discernirmos o determinante último do recalcamento. Mas,
a despeito de certa evolução que começa já a operar-se e segundo a
qual parecia possível que " decisões" fossem tomados fora do Eu
conscien te e racional, o relato que, então, nos dá Freud sobre sua
relação com os pacientes continuava ainda naquela posição tradicional
que considera a racionalidade como fugindo - por bons motivos,
aliás- das perturbações. Assim é que ele afirma, num texto de 1905,
que o sentimento de desprazer constatado no paciente que se vê diante
do recalcado não significa necessariamente uma recusa de caráter
persistente. Ele, com efeito, escreveria: "Se você levar o doente a
aceitar, em virtude de um melhor entendimento , aquilo que, então,
ele havia rejeitado (recalcado) em conseqüência de um ajustamento
automático do despraZl' I', você terá realizado boa parte de um trabalho
educativo; como não fa lar de educação, quando, por exemplo, conse-
guimos persuadir uma pessoa que não gosta de levantar-se cedo e,
apesar disso, ela o faz. O tratamento psicanalítico pode, grosso modo,
ser considerado como uma espécie de reeducação que ensina a vencer
as resistências interiores." 58 Por meio de outra razão, no caso a do
psicanali sta, considerada como predisposta para o verdadeiro, a do
paciente deve ser levada a superar os obstáculos que parecem tê-la
alterado e que fazem com que não se descubra mais tão faci1mente
nela aquele objetivo ideal de qualquer razão constituída pelo conhe-
cimento dos valores. Sustentar que a educação é possível equivale a
aceitar a idéia de que haveria, na razão, uma afinidade de princípio
com verdades que seriam independentes das disposições individuais.
Igualmente, seria admitir que o paciente, tal como o escravo do Ménon,
fosse suscetível de encontrar aquele mundo racional de que não se
lembra mais por causa exclusivamente da influência nefasta de con-
flitos ligados aos apetites corporais. Dessa maneira, Freud pretendia
que fos sem vencidas fo~ças de resistencia, descritas como heterogêneas
na razão e atuando sobre esta do exterior. Nesta fase da elaboração
psicanalítica, a razão ainda não é , por natureza, defensiva.
116 o sono dogmático de Freud

A inversão do pensamento freudiano

Somos levados a distinguir dois períodos na obra de Freud em virtude


da mudança introduzida na relação emre a razão e uma defesa que é
aquilo através do que se atualizam as disposições individuais. Para
aqueles que têm bem presente no espírito o fato de as raízes do freu-
êlismo se terem nutrido do pensamento schopenhaueriano e de que a
principal idéia de O mundo como vontade e como representação par-
ticipa de um uso quase exclusivo do segundo princípio da razão pura,
o conceito de defesa aparece como um avatar daqueles .. interesses da
razão" que discemia Kant na Dialética transcendental. Kant, aqui,
estipula que há aqueles que estão orientados para a unidade do co-
nhecimento e há também aqueles que estão voltados para a diver-
sidadc.59 Ele não chegou, portanto, a separar o conhecimento do in-
dividual. De fato, seguir os enunciados conclu sivos da Critica da
razão pura, significa ser levado a reconhecer inclinações individuais no
seio da razão, signific a considerar que dois espíritos individuais podem
ter, cada um, conhecimentos diferentes de um mesmo objeto.
Esta diversidade no conhecimento deriva da pluraHdade das má-
ximas da razão que, escapando de uma apreensão imediata da cons-
ciência psicológica, são inconscientes. As máximas somente puderam
ser esclarecidas pelo trabalho crítico de Kant. O espírito individual
cujo entendimento é orientado pela primeira máxima da razão irá
encerrar um saber que será, sobretudo, unidade e que, pelo mesmo
movimento, será desconhecimento de uma diversidade que o teórico
dificilmente poderá apreender. Os princípios da razão são, assim, ao
mesmo tempo, fatores de conhecimento e desconhecimento para o
entendimento. Mas a espécie de saber não é determinada apenas pela
escolha que faz o espírito entre o primeiro e o segundo princípio, ela
é igualmente detenninada pelo uso que se faz de cada um deles.
Somente o uso imanente das máximas da razão permite-nos dizer
que conhecemos. Um outro uso destas mesmas máximas que transcenda
esse, que faça o entendimento ultrapassar os limites da intuição sen-
sível, não permite mais conhecer, mas somente pensar. Esta possibi-
lidade de usar transcendentalmente uma máxima da razão lógica, fa-
zendo dela um princípio da razão pura, prefigura o conceito de defesa
em Freud. O próprio Kant já falava da ilusão transcendental que deriva
do uso transcendente dos princípios da ·razão, insistindo particular-
mente no caráter incoercível de tal cegueira: "A dialética transcen-
dental se contentará [...) em descobrir a aparência dos julgamentos
a arnuuJilha do irracioMI 117

transcendentes e, ao mesmo tempo, em impedir que ela não nos engane;


mas que esta aparência (como a aparência lógica) também se dissipe
e deixe de. ser uma aparência, é algo que a dialética jamais poderá
alcançar."60 E Kant deverá concluir que esta ilusão está "insepara-
velmente ligada à razão humana [e que] [... ] ela não pára de zombar,
induzindo-a com freqüência a erros momentâneos que precisam ser
constantemente desfeitos" .61
Podemos falar de um certo dualismo da perspectiva psicanalítica
nesta fase inicial em virtude da radical separação que, então, existia
entre consciente e Inconsciente. Os primeiros textos de Freud mostram,
com efeito, as esferas do consciente e do Inconsciente como irredutfveis
uma à outra. No entanto, seu projeto terapêutico faz com ele já fuja
deste dualismo na medida em que se propõe a trazer para a consciência
representações inconscientes. Isso não impede que, postos à parte os
eventuais resultados do trabalho da psicanálise, Freud considere a vida
do espírito fundamentada em dois princípios inteiramente distintos.
O aparelho psíquico assemelha-se, aqui, ao piloto em seu navio,62
imagem evocada por Descartes que, no entanto, bem depressa se des-
vencilharia dela. Esta :x,roptcri.J.OÇ (separação) entre consciente e In-
consciente, que é um avatar da separação entre fenômenos e númenos
efetuada por Kant, irá pôr-se como um problema para Freud ao longo
de toda sua elaboração, obrigando-o a um trabalho de esclarecimento
no curso do qual encontrará tamanhas dificuldades que se verá cons-
trangido, a todo instante, a modificar a relação entre essas duas ordens
da vida psíquica.
A incapacidade ·de Freud para pôr em evidência o determinante
último do recalcamento tem sido constantemente lembrada nestas pá-
ginas_ Já está na hora de descobrirmos, através da cronologia de seus
trabalhos, as diferentes modalidades sob as quais o psicanalista se
acreditou em condições de responder a esta questão. Na primeira
conceituação de Freud, onde a razão difere, por essência, do individual,
o recalcamento consiste em manter afastados certos conteúdos repre-
sentativos da consciência. O Inconsciente identifica-se, então, com
determinado recalque, resultado da atividade de uma censura que age
na direção da consciência para o Inconsciente, numa perspectiva es-
sencialmente tópica. Nessa época, a censura parece perfeitamente de-
rivar da atividade da instância consciente. Tanto assim que, em 1894,
Freud fala do "esforço da vontade do paciente que consegue recal-
car a representação sexual inaceitável" .63 Em 1897, a atividade de
recalcar certos conteúdos representativos fora comparada à prática da
118 o sono dogmático d~ Freud

censura exercida sobre a imprensa, e Freud, numa carta a Fliess,


escreve ao amigo dizendo: "Você já teve oportunidade de ver um
jornal estrangeiro censurado pelos russos na passagem da fronteira?
Palavras, frases, parágrafos inteiros estão cobertos por tarjas pretas e
de tal maneira que o que sobra fica ininteligível." 64 O problema de
saber quem é, nesta primeira fase da obra de Freud, o responsável
pelo recalcamento irá fatalmente conduzir a uma só direção, ou seja
na de uma consciência no interior da qual se elaboravam decisões.
Com a assimilação da filosofia schopenhaueriana, abre-se o se-
gundo período da reflexão de Freud, nos primeiros anos do século
XX. E, como conseqüência lógica do irracionalismo do filósofo de
Frankfurt, os maus hábitos da razão não serão mais a conseqüência
de ocasionais aspirações desta, numa problemática para a qual ela não
fora feit.a, mas dados pela própria expressão de sua essência. A função
representativa passará a ser subjugada pela estratégia defensiva. É por
isso que, a todo instante, a consciência individual vê as representações
que aparecem em seu campo como determinada-; . no seu aparecer,
pela preocupação da manutenção da integridade de uma individuali-
dade psíquica que tem de estar sempre constituindo-se: a sobrevida
desta será questionada a todos os instantes, daí a necessidade, para o
aparelho psíquico, de proceder a ajustamentos defensivos sempre re-
novados.
Por esta época, Freud iria acabar problematizando a relação entre
a razão e os mecanismos de defesa segundo outro proceder, pois ele
começa a considerar a própria razão como um mecanismo de defesa.
Realmente, embora não nos seja mostrado ainda uma razão utilizada
como defesa em conseqüência de uma inversão da maneira de seu
pensar, já nos é possível entender que a atividade racional se acha
sujeita ao Eu, à manutenção desse Eu; o que, da parte de Freud,
equivale a dizer que a razão não é, por princípio, a faculdade. do
conhecer. Isto significa que não há razão enquanto tal e, sem dúv1da,
também significa uma conformação com a principal tese de Schope-
nhauer. Esta virada na maneira de apreender a relação entre a defesa
e a razão é, certamente, o conseqüente de uma mudança na conceituação
do recalcamento.
Segundo Freud, o recalcado foi primeiro um fragmento do cons-
ciente expulso da consciência. Depois, este movimento de rejeição
pela consciência se fez à maneira de uma desistência, com o apare-
cimento de um novo modo de recalcamento, o recalcamento originário
que " consiste no fato de que o representante psíquico (representante-
a armadilha do irracional 119

representação) da pulsão vê-se destituído de qualquer responsabilidade


no consciente" .65 O recalcamento secundário, o recalcamento propria-
mente dito, não é mais tributário senão apenas da repulsa proveniente
do consciente. O recalcamento, a partir de agora, será determinado
tanto pelo consciente como pelo Inconsciente: " ... estaríamos proce-
dendo errado se déssemos importância apenas à repulsa que, vinda
do consciente, atua sobre aquilo que está por ser recalcado. Levaremos
igualmente em consideração a atração que exerce o recalcamento ori~
ginário sobre tudo aquilo com que ele pode estabelecer ligações." 66
Além do mais, percebemos claramente que, a partir de 1913, por causa
desta evolução no sentido de um irracionalismo em que o Inconsciente
se transforma no determinante do destino das representações. portanto,
do consciente, o recalcado deriva, ao mesmo tempo, do consciente e
do Inconsciente, e isto sem que possamos reconhecer aquilo que equi-
vale a quaisquer das duas instâncias. O que significa dizer que, neste
estágio da Leoria freudiana, o recalmento bem como o conjunto do
funcionamento do aparelho psíquico não são mais passíveis de ser
elucidados. Pouco a pouco, o recalcado irá cada vez mais sendo de-
terminado pelo Inconsciente que deixará de identificar-se com esse
mesmo recalcado, contrariamente ao que se tê nos primeiros textos
de Freud. De fato, no que conceme ao destino do recalcado, chegaremos
em 1923 à idéia de um recalcado que "se confunde[ ...] com o Isso
do qual é apenas parte" .67 O Inconsciente, que não deriva mais da
censura, se confunde com aquela "substância natural" que preexiste
ao indivíduo. Mas nesse caso, que resta do recalcamento já que ele
é tido como uma função de interdição?
Estamos lembrados que, nos primeiros textos do psicanalista, o
recalcamento funcionava como uma censura que encontrava sua ener-
gia recalcada na consciência. Em seguida, sua reflexão sobre a cons-
ciência leva-o a considerá-la como uma superfície que podemos iden-
tificar com um " reflexo" da realidade exterior que , bem ou mal, dev.e
acomodar-se ao princípio do prazer. De um mundo exterior, percebido
por um sistema Consciente/Pré-consciente que expulsava certas re-
presentações para o Inconsciente, passaremos para um recalcamento
que deriva do Inconsciente. Realmente, deixando um pouco de lado
o ponto de vista tópico, Freud irá fazer prevalecer o ponto de vista
econômico, pois, daqui por diante, os ek.mentos foram recalcados
devido a uma retração de investimento, já que as representações in-
conscientes deixam de ser investidas para que não possam tornar-se
conscientes. Mas Freud vê-se, então, constrangido a denunciar as in-
120 o sono dogmático de Fr~ud

suficiências da primeira tópica. Será com a introdução de três novas


instâncias - o Eu, o Supereu e o Isso- que ele acredita esclarecer
com mais facilidade os mecanismos últimos da vida psíquica e poder
atingir, assim, um determinismo que considera essencial ver inerente
a esta. Aquela consciência, de onde procedia o mecanismo do recal-
camento, é substituída, portanto, por um Eu que Freud mostra como
escapando em grande parte ao estado consciente. De senhor - talvez
contestado - o Eu consciente passou à condição de escravo, pare-
cendo, segundo Freud, "com uma pobre criatura submetida a uma
tripla servidão: do mundo exterior. da libido do Isso e da severidade
dó Supereu [...] Ele não é somente o auxiliar do Isso; ele é também
um escravo submisso que tenta ganhar o amor de seu senhor".68 Desta
maneira, somos realmente levados a achar que o freudismo caiu no
irracionalismo a partir do momento em que nada mais escapa aos
efeitos determinantes das forças inconscientes. Freud dirá. com efeito.
que "não é apenas aquilo que há de mais profundo em nós que pode
ser inconsciente, mas também aquilo que há de mais elevado" .69
Esta orientação se verá confirmada ein 1932 com a publicação
das Novas conferências sobre a psicanálise onde tomamos conheci-
mento de que o "Eu[ ... ] pressionado pelo Isso, oprimido pelo Supereu
e descartado pela realidade, luta para dar conta de sua tarefa econômica.
para restabelecer uma harmonia entre as diferentes forças e influências
°
que atuam nele e sobre ele'' . 7 Freud indica aquilo em que, segundo
sua perspectiva, se tornara a razão quando, no " Esboço de psicanálise",
mostra que "o papel construtivo do Eu consiste em intercalar, entre
a exigência pulsional e o ato próprio para satisfazê-Ia. uma atividade
intelectual que, dado o estado das coisas do presente e as experiências
passadas, esforça-se, por meio de tentativas experimentais, para avaliar
as conseqüências da linha de conduta visada" .71 Esta Dengtiitiguit
não tem por objetivo atingir o verdadeiro, o autenticamente real. pois
ela é determjna.da, no que lhe resta de espontaneidade, pela preocupação
de preservar a segurança do conjunto do aparelho psíquico. O conteúdo
representativo, por conseguinte, deriva mais do estado interno que do
objeto suposto de ser apreendido. São as necessidades e tendências
do momento - avaliadas segundo as que foram aquelas do passado
- que determinam o conhecimento. Isto significa que, a partir desta
· mudança do pensamento freudiano, ·o conhecimento tende a confun-
dir-se, a cada momento, com a condição individual. A representação
consciente é uma espécie de compromisso entre o interior e o .exterior
do indiv(duo, entre sua experiência passada e a experiência do instante
a armadilha do irracwiJQ/ 121

considerado. Estamos, realmente, diante de um relativismo individual


que surge como eco do pensamento de Protágoras e que somente
encontra equivalência na fórmula do filósofo de Abdera: .. O homem
é a medida de todas as coisas." Estamos também diante de um modo
de pensar em que a representação não depende necessariamente da ·
presença do objeto.
Esta maneira de apreender o problema do estatuto da razão é a
mesma que serviu de pano de fundo para a fi losofia. Já lembramos,
aqui, que Heidegger recrimina Kant por ter este formado o conceit()
de Dasein em concordância com aquilo que a filosofia de essência ·
platônico-aristotélica fizera com vistas a considerar o indivíduo sob
o ângulo exclusivo de uma coisa, daquilo que, segundo o autor do
Sein und Zeit leva Kant a confundir o sujeito de conhecimento com
uma coisa. Não podemos, com efeito, pensar a coisa desprovida de
liberdade e o homem suscetível de. quando mais não seja, colocar-se
o problema da liberdade. O homem não poderia ser reduzido àquele
composto resultante de uma união realizada no instante e cuj a essência
pennanece inalterada, pois existe um c:ruvoÀOv (conjunto). É, contudo,
a partir de tal apreensão pelo indivíduo que a filosofia elaborou o
estatuto da razão, e pelo fato de esta fac uldade não poder ter relações
com a questão do indivíduo, conceitualizou-se este último de tal ma-
neira que ele se viu desembaraçado do individual. O antifilosofismo
pôde, aqui, absorver argumentos para nutrir sua Juta na sustentação
de que, ao proceder assim, os sistemas fi losóficos se mostraram in-
capazes de pensar uma realidade humana que também é feita de de-
terminações individuais.
Convencido de poder lançar as bases de uma ciência dos fenô-
menos humanos sem qualqÚer relação com a reflexão filosófica. Freud
deverá resolver as dificuldades inerentes a um procedimento determi-
nado pelo uso transcendente do segundo princípio da razão, o que o
obrigará, principalmente, a seccionar, em partes cada vez mais frag-
mentadas, os objetos de sua reflexão. Tanto os mecanismos quanto
as instâncias passarão primeiro por uma dicotomia, antes de encami-
nharem-se para uma fragmentação na medida em que for progredindo
a elaboração freudiana.
O mesmo sucede com o recalcamento que - identificado nos
textos iniciais com a censura e com o resultado desta operação, ou
seja. o recalcado - veremos cindir-se em dois mecanismos. o recal-
camento originário e o recalcamento propriamente dito. E para chegar
a esta segunda concepção do recalcamento, foi preciso que a reflexão
122 o sono dogmático de Freud

freudiana renunciasse ao esquema segundo o qual o recalcado era um


passado realmente vivido que a consciência afastara de maneir.a majs
ou menos deliberada. Desse modo, podemos demonstrar que, no mo-
mento em que abandona a teoria da sedução, Freud extrai do material,
que é o sentido íntimo, unicamente a atividade fantasística. Depois,
em virtude do próprio movimento de decomposição de seu procedi-
mento, ele irá isolar, no interior desta atividade fantasística, disposições
para o prazer e para a angústia, retendo somente a noção de disposição,
em detrimento dos prazeres e das angústia!.· que derivavam de acon-
tecimentos vividos. Não sobra majs, portanto, na esfera do recalcado,
senão um emaranhado de imagens e palavras que veicula o desejo,
ao mesmo tempo que o mascara. Freud vale-se aqui exatamente do
mesmo procedimento que, ao tempo de sua conceituação do recalca-
mento originário, deixava ver claramente que a atividade racional,
usada desta maneira em sua elaboração, procede por uma análise cada
vez mais orientada para a diversidade.
Quando realmente prestamos atenção aos três pontos de vista -
tópico, dinâmico, econômico - sobre os quais se acha fundamentada
a perspectiva metapsicológica, nós nos encontramos face a um método
que se orienta para a busca da divisão do todo em suas partes. É o
ponto de vista tópico que será usado na primeira concepção do recal-
camento. O dinâmico, em seguida, emprestará toda a sua importância
ao Inconsciente no esquema do recalcamento elaborado por Freud:
não há mais apenas a separação do consciente e Inconsciente, mas
também , por causa da intervenção do ponto de vista dinâmico, o
reconhecimento de um fator determinante devido ao Inconsciente, isto
é, devido às forças que o compõem e exercem uma ação permanen-
te. A propósito das forças que concorrem agora para o recalcamen-
to, Freud explica "que é possível que a tendência para o recalcamento
não alcançasse seu objetivo se estas forças agissem conjuntamente,
se não houvesse qualquer coisa já recalcada que estivesse em condições
de receher aquilo que foi expulso pelo consciente" .n Finalmente, a
introdução do ponto de vista econômico vai acabar por fazer do In-
consciente o determinante deste mecanismo.
Uma vez que este tercei ro ponto de vista intervém na concepção
psicanalítica do recalcamento - vale dizer, a partir do momento em
que Freud passa a considerar os elementos recalcados pelo fato de
serem eles objeto de uma retração de investimento que lhes impede
ter acesso à consciência - a expJicação do recalcado e da censura,
tal como a depreendemos dos primeiros textos, perde todo o valor. O
a armadilha do in·acional 123

conceito de Inconsciente estende-se, por conseguinte, ao conjunto do


aparelho psíquico na medida em que a perspectiva freudiana multiplica
mecanismos, instâncias e outras entidades. E, vemo-nos na impossi-
bilidade de saber qual é o determinante do recalcamento propriamente
dito. Nada nos indica em quais respectivas proporções intervêm tanto
a instância recaldada - cujo papel não é explicitamente negado -
como a instância que impede os elementos de chegar até ao consciente.
Chegaremos às mesmas considerações quando acompanharmos
a maneira pela qual a reflexão psicanalítica considera sucessivamente
as instâncias. Iremos dar-nos conta do perigo que constitui cair na
armadilha do irracionalimo quando Freud, por fim , afinnar que a
substancialidade do Eu procede da de um Isso que é puro caos. Ao
procurar esclarecer aquilo que é o Eu, Freud não tem outro remédio
senão fazê-lo sumir no interior do Isso. Ele afirma que o Eu procede
originariamente do Isso e deixa transparecer que não foi fácil dife-
renciá-lo deste. Assim, no plano tópico, o Eu praticamente não está
separado do Isso, e tanto mais nos afastemos um pouco das camadas
superficiais. Ficamos sabendo, conforme diz ele, que "quase todas as
distinções que acabamos de descrever, segundo as sugestões da pato-
logia, se referem apenas às camadas superficiais, as únicas que co-
nhecemos do aparelho psfquico" .73 Ao longo das páginas, o Eu irá
tornando-se objeto de uma redução contínua, com Freud reduzindo-lhe
a especificidade, a autonomia e a extensão. O Eu, sobre o qual nos
afirmava ser corporal e que era uma superfície própria do indivíduo,
bem depressa não será mais do que uma proteção de superfície. Em
conseqüência, somente restam duas maneiras para apreender esse Eu
onde se aloja a atividade racional: ou o Eu emergirá de um Isso do
qual só a duras penas consegue diferenciar-se, ou este mesmo Eu não
passará de uma "película" , um reflexo, portanto, de um simulacro
brilhando fracamente ao fundo do Isso e, dificilmente, conseguindo
distinguir-se do mundo exterior. Em um segundo movimento, o texto
de Freud irá descobrir que esta tripartição não é suficientemente ope-
rante, que ela não dá conta de explicar todos os fatos que se pensava
poder conectar a ela. Freud irá, agora, deixar-nos descobrir uma nova
trindade do aparelho psíquico onde - imediatamente nos previne -
não é mais verdadeiramente levada em conta uma separação radical
entre o consciente e o Inconsciente, contrariamente ao que aconte-
cia na primeira tópica. Trata-se, de certo modo, da transposição da
idéia daquela "barra" cuja existência ele não tolerava ver contestada.
O Eu está agora dividido em um Eu que não é mais consciente e um
114 o sono dogmáricc de Freud

Eu que ainda o seria, mas no qual não vemos mais onde poderá ser
ele autônomo.
A indeterminação própria às definições do recalcamento, das
instâncias e de suas relações recíprocas, da mesma forma que aquela
que foi levantada na vã tentativa de esclarecer a relação entre o pen-
samento e a defesa, depende do uso transcendente do segundo princípio
da razão pura. Isto significa dizer que, seguindo intencionalmente a
reflexão schopenhaueriana, Freud combate a filosofia sob a bandeira
da pura diversidade. É assim que o veremos atacar continuamente a
Metafísica por esta proceder de um único movimento do espírito e
opor à (fUVO'fllÇ (visão de conjunto) uma teoria psicanalítica que opera,
no que lhe diz respeito, por etapas sucessivas. Já Kant avisava aos
que poderiam ver-se tentados de seguir quase que exclusivamente o
princípio de especificação, que eles acabariam buscando .. incessante-
mente cindir a natureza numa ordem tão grande de variedades que
seria quase preciso abandonar a esperança de poder julgar os fenômenos
de acordo com os princípios gerais" .74
Esta advertência aplica-se perfeitamente a Freud cujo caráter
não-limitado de seus processos de análise e propensão para, aprioris-
ticamente, fracionar a experiência se revelam em suas repetidas divi-
sões dos mecanismos, perspectivas e instâncias. Henry Ey notara, com
muita propriedade, esta tendência inerente ao método freudiano que
consiste em tomar cada vez mais complexa a elucidação dos emba-
samentos da vida psíquica: " ... aquilo que era o próprio fundame nto
da definição do Inconsciente pelo recalcamento e do recalcamento
pela consciência, tudo isto se esfuma e se funde na penumbra" .75
Freud, no entanto, não procurou dissimular o caráter inexorável de
seu procedimento. Assim, quando querendo, uma vez mais, salientar
a diferença entre a filosofia e a psicanálise, irá ele escrever , em "O
Eu e o Isso", que sua disciplina "estava obrigada a progredir gra-
dualmente na compreensão dos fenômenos psíquicos por meio de uma
decomposição analítica dos fenômenos tanto normais como anor-
mais" .76 Será ainda em função desta tendência para a especificação
que, numa carta endereçada a Groddeck,17 ele se põe à parte da filosofia
e recrimina seu correspondente por não confiar nas diferenças da
natureza, pois .u ma visão unificadora - que qualifica como " monista"
- não deixa realmente de constituir uma prova de que Groddeck, no
fundo, não passa de um filósofo. Em'' Uma dificuldade da psicanálise" ,
Freud, ao descrever o psiquismo como fracionado em instâncias de
número indefinido, explicará esta ausência de unidade no conheci-
a armadilha de irracional 125

mento, esta contínua tendência para" atomizar" o objeto da experiência


numa idéia de um primeiro Ente que é caos: " ... esta alma .nada tem
de simples, ela, antes, constitui uma hierarquia de instâncias superiores
ou inferiores, um emaranhado de pulsões que, independentes umas
das outras, procuram realizar-se e correspondem a um grande número
de instintos e relações com o mundo exterior, sendo muitas dentre
e las contrárias e incompatíveis" .78
· Esta virada do pensamento deveria ser a sentença de morte para
a consciência e para a razão como, aliás, dava a entender o conteúdo
manifesto dos textos desse segundo período. Na realidade, será j us-
tamente a partir desta virada que começaremos a observar uma evo-
lução metodológica que, operando de modo sub-reptício, tomará inúteis
as idéias-forças deste irracionalismo. A parlir desse momento, a posição
de proeminência que Freud concedia ao Inconsciente não passará de
uma aparência. Quando ele afirma, com efeito, que uma representação
se vê afastada do campo da L:Onsciência em razão de seu aparecimento
- ou a manutenção de sua presença - ser intolerável para a indivi-
dualidade, ele formula uma decJaração que implica a existência de
um princípio, o mesmo que presidiria a maneira - consciente ou
inconsciente -do aparecer da representação no interior do aparelho
psíquico. Se este governo do pensamento existe necessariamente, as
explicações que dá Freud a seu respeito mostram que ele lhe considera
a capacidade de legislar como estando, na verdade, a serviço exclusivo
da consciência, pois esta última - e somente ela -'- pode o u não
suportar a presença de determinadas representações. Aquilo que faz
esta representação poder ou não ser tolerada na consciência não pode
provir do Inconsciente, a não ser que imaginássemos, no interior do
Inconsciente, urna outra inteligência que teria poder de decidir, por-
tanto, de usar uma potencial negação, aliás, por sua natureza, declara-
da imprópria a este Ente. Tal princípio de decisão a serviço exclusi-
vo da consciência, por conseguinte, somente pode ser a própria cons-
ciência.
Ao tomar como ponlO de partida as representações conscientes,
isto é, o condicionado, Freud tenta chegar às condições subjetivas e
imanentes da representa'ião. Quando o vemos problematizar o aparecer
destas representações, percebemos que, em seu procedimento, a única
realidade a ser explicada é a representação consciente, que esta é,
portanto, o único determinante da busca. Aquilo que constitui uma
ameaça à individualidade, aquilo que delermina a decisão a ser tomada
no que toca ao destino das representações, todas estas supostas causas
126 o sono dogmático de Freud

somente são o que elas são no que diz respeito apenas às exigências
da consciência. Daí resulta que a conseqüência deste método não
poderia ser outra senão o conhecimento do Inconsciente cujas deter-
minações derivam exclusivamente da consciência. Esta tentativa de
conhecer o Ser absoluto que é o Inconsciente não deixa de lembrar
um certo proceder do pensamento antigo por meio do qual se acreditava
poder passar do conhecimento do homem para o de um Ser absoluto
de outra espécie, vale dizer, Deus. Dessa maneira, como observa J.
Pépin, a propósito da teurgia dos oráculos caldcus, " à imitação do
Deus supremo que cria à sua semelhança os deuses do céu, o homem
fabri ca à semelhança de seu rosto os próprios deuses [... ] ele é o
de o rum ficto r'' .19

O questionamento da natureza humana da mulher

A partir dos primeiros anos do século xx, o freudismo concede um


status biológico à razão. Esta, daqui por diante, não terá mais, em
Freud, a essência de apreender o ser e o verdadeiro, ela somente visa
efetuar uma avaliação das condições de crescimento e conservação
do indivíduo. Tai s são as conclusões a que chegaria Freud ao afirmar
que a razão se acha submetida à ordem de uma defesa que corresponde
àquele individual tão rejeitado pela reflexão filosófica.
E seu discurso sobre a mulher constitui uma demonstração exem-
plar daquilo que viria a ser o suporte de uma concepção biológica da
racionalidade. Da diferença anatômica entre os dois sexos, Freud deduz
a existência na mulher de uma privação na esfera intelectual e moral.
Reconhecemos, claramente neste enunciado conclusivo, a conseqüên-
cia de uma determinação biológic a da razão. Fora desta perspectiva,
com efeito, um caráter corporal não poderia ser considerado como
tendo influência sobre a natureza da faculdade de conhecer. No que
toca a Freud, ele fez do complexo de Édipo o ponto de ancoragem
da maturação do aparelho psíquico. É a maneira pela qual será superado
o complexo que determinará a estrutura definitiva da personalidade,
os ajustamentos defensivos aos quais esta última poderá ter acesso, a
escolha do objeto. Os textos de Freud nos fazem descobrir um autor
que não consegue encontrar um termo suficientemente significativo
para exprimir a eminência do complexo de Édipo, identificando-o
tanto com uma "categoria filosófica" ,80 como com o "ímperativo
categórico" ,8 1 dois conceitos que não poderiam ser confundidos a
a armadilha do irracional 117

menos que se tenha da reflexão filosófica apenas uma apreensão fo-


nética.82 Esta primazia de Édipo terá pesadas conseqüências para o
desenvolvimento e funcionamento do aparelho psíquico. Assim, o ato
racional tendo-se tomado para a psi<.:análise parte integrante da estra-
tégia defensiva, a não-resolução do complexo não deixará de retletir-se
sobre a racionalidade.
Antes de passannos aos julgamentos conclusivos de Freud sobre
a mulher, chegou o momento de lembrarmos que, contrariamente àquilo
que etc teria desejado fazer crer, o complexo de Édipo não corresponde
de forma alguma à mensagem deixada pelo teatro de Sófocles c tam-
pouco ao conteúdo dos mitos e estruturas sócio-culturais da Grécia
do século v antes de nossa era. A respeito desta impropriedade, Jean-
Pierre Vemant escreveu páginas definitivas sobre a natureza do em-
préstimo freudiano tomado ao mito. Estamos lembrados de que J.-P.
Vernant fora levado a escrever estas páginas como réplica ao artigo
em q ue "Didier Anzieu se dispõe a refazer, em cima dos dados de
1966, o trabalho empreendido por Freud no início do século" .83 Tendo
demonstrado que não há razão para vermos uma relaçã_o triangular no
mito de Gaia e Urano, J.-P. Vernant põe à mostra as barbaridades
perpetradas pela interpretação psicanalflica, "depoi s daquela deturpa-
ção inicial do mito das origens" .84 Uma vez provado que a person agem
de He faisto não poderia ser dotada do complexo de Édipo, Vemant
faz um levantamento dos diferentes meios de que se vale o freudismo
para "edipianizar os mais diversos temas legendários" ,85 como seja
o do procedimento que consiste em " batizar como incesto uniões que
os gregos consideravam perfeitamente legítimas c que não tinham,
portanto, qualquer caráter incestuoso" .86 Ou ainda, a propósito de
uma ligação incestuosa entre Creonte e Jocasta que Freud acreditava
ter desvendado, J.-P. Vernant observa " que não existe o menor traço
de uma relação incestuosa entre o irmão e a irmã. Édipo não tem
ciúmes da mútua afeição dos dois; se o tivesse, a intervenção de
Jocasta em favor de Creonte seria ineficaz [ ... ] Édipo está simplesmente
convencido de que Creonte tem ciúmes dele - não no sentido erótico
do termo - , mas no sentido social que designa a palavra grega em-
pregada «1>9ovoç que significa inveja daquele que é mais rico, mais
poderoso, mais judicioso [... ] Convencido de que Creonte procura
derrubá-lo por causa de sua realeza, Édipo também suspeita, desde o
início da peça, em termos mais ou menos velados, de ter sido Creonte
o verdadeiro instigador da morte de Laio. Aqui ainda, uma visão
128 o sorw dogmático de Freud

'edipiana' das personagens e suas relações que não poderia esclarecer


o texto; ela o deturpa." 87
Freud vê-se tão ansioso para provar a universalidade e a neces-
sidade da problemática triangular que, no caso, não hesita em submeter
os sacrossantos dados empíricos a um ultraje realmente pouco elabo-
rado. Com efeito, se os dados, ou seja, os acontecimentos da vida da
criança, forem suficientes para imprimir uma dinâmica edipiana ao
psiquismo dela, o complexo de Édipo nem mesmo terá de intervir
para modificar a maneira por que seriam percebidos estes acontecimen-
tos. Em contrapartida, se os acontecimentos revelarem-se de tal maneira
que a criança não se encontre coJocada em uma relação trianguJar, a
teoria psicanalítica irá interpor o complexo entre a experiência e o
psiquismo de uma forma tal, que a criança se achará, queira ou não,
em uma situação edipiana. E isto o que Freud estabelece no fim de
" O homem dos lobos" , quando afirma que " lá, onde os acontecimentos
não se adaptam ao esquema hereditário, estes passam na imaginação
por um remanejamento [...] Temos tido freqüentemente ocasião de
observar que o esquema triunfa sobre a experiência individual" .88
Diante de tal reorganização da experiência, não comprendemos
muito a razão dos ataques de Freud contra aqueles que lhe parecem
não}imitar-se ao desenrolar exclusivo dos fatos. Intercalar o complexo
de Edipo entre o desenvolvimento da factualidade e a apreensão que
é feita desta pela criança não seria faz.ê-la agir à maneira dos •· vidros
coloridos" que a obrigariam a perceber sua situação afetiva como
derivando da influência do complexo no interior da constelação fa-
milial, e isto com exclusão de qualquer outra possibilidade? Freud
acabou, assim, chegando àquela "filosofia do como se" cujo uso tão
veementemente condenara. Ele descreve o determinante último do ato
de representar como um instrumento ou órgão, o que significa pôr o
conhecimento na dependência do ser. A. Philonenko expôs com muita
clareza a linha do pensamento kantiano antes de 1781. Na Dissertação
de 1770, de fato, Kant faz também dele um ponto de vista psicológico
que só irá apagar-se com a primeira edição da Crítica da razão pura.
E a imagem dos vidros coloridos foi proposta por Fichte em seus
escritos de 1798.89 É importante assinalar que a obra de Freud não
contém qualquer tentativa de esclarecimento da determinação estrutural
desse complexo de Édipo, desse "filtro" que é tido como aceitando
-ou recusando depois de transformá-los- os dados da experiência.
O conceito de Inconsciente- nisso parecido com o da Vontade
em Schopenhauer - está constituído de modo a tornar inevitável a
a armadilha do irracional 129

aceitação da idéia "coisificante" de um Ente, visto como urna subs-


tância natural amorfa que corresponderi a àquele fluxo incoordenado
cuja representação sempre ajudou a apreender a vida e o seu desenrolar.
Mas é necessário para a razão uma permanência no seio desta diver-
sidade sem começo nem fim. A razão de Freud não pôde escapar da
preocupação de descobrir uma invariante na sucessão e na diversidade.
Qual é esta função que se distingue, então, da mudança incessante no
meio da qual ela se mantém? Senão uma verdadeira permanência
como a eternidade, pelo menos um ritmo, noção que o pensamento
grego opunha ao fluxo e à idéia de morte, seu correlato. O ritmo,
escreve F. Alquié; "sempre nos acalma e nos consola ao revelar que
o tempo pode ser governado pelo eterno" .90 Com relação a Freud, ele
irá considerar o complexo de Édipo como a única permanência, ao
mesmo tempo que o único determinante, no seio da inconstância in-
dividuaJ que, em todos os sentidos, englobaria, segundo ele, a razão.
Estas poucas reflexões a propósito do complexo de Édipo e de
sua proeminência na perspectiva psicanalítica ajudarão, talvez, a uma
melhor compreensão das conclusões a que chegou Freud no que con.-
cerne à natureza da mulher. Para ele, a ausência de pênis faz com
que a menina não se desligue no período edípiano da mesma maneira
que o menino. A menina terá que atravessar uma fase pré-edipiana
suplementar sob a forma de uma ligação privilegiada com a mãe a
quem, depois, será obrigada a rejeitar para poder increver-se, por fim,
numa dinâmica triangular segundo a qual a criança começa a odiar
os pais de seu próprio sexo. A filha conhecerá, então, uma mudança
do objeto de ~mor, passando da mãe para o pai. Mas nem por isso
deixará de persistir a disposição anatômicà que a caracteriza e a impede
de resolver realmente este complexo.
Em A vida sexual, Freud irá denunciar a igualdade dos sexos,
na sua opinião uma ambição risível que ele reduz a nada mais que
uma fórmula: "Parafraseando o dito de Napoleão, a anatomia é o
destino." 9I Ousamos pensar que, por esta alusão ambígua ao dito, "o
destino é a política" ,92 realmente pronunciado pelo imperador na pre-
sença de Goethe, em Erfurt, Freu.d tenha procurado prevalecer-se de
um argument-o de autoridade.
Em um projeto de conferência intitulado" A feminilidade" , Freud
se interroga, à guisa de introduçlk>. sobre a pertinência de debates
com wna platéia composta por não-analistas. Depois de ter proclamado
a esperança de um futuro onde a razão imperasse absoluta - o que,
em princípio, subentende o desejo de um saber universal em épocas
13G o sono do8mático de Freud

vindouras - ele, de imediato e em contradição com os próprios votos,


adverte que seu discurso não poderia ser entendido por aqueles que
não fossein psicanal istas. E insiste no assunto dizendo: "Eu revelo
muitas coisas, coisas que as pessoas aqui não têm condições de com-
preender e que não são feitas para vocês." 93 Sua reserva deve-se
principalmente ao fato de que, na platéia, poderia haver também mu-
lheres. Logo de saída, ele comunica: "O problema da feminilidade os
preocupa porque os senhores são homens" ,9 4 e referindo-se às mulheres
acreseenta: .. o problema não se coloca para e las, porque elas próprias
são o enigma de que estamos tratando." 95 Freud comporta-se, em
suma, como se a conferência só pudesse ser destinada a representantes
exclusivamente do sexo masculino, advertindo as mulheres, eventual-
mente lá presentes, que a questão da feminilidade não poderia dizer-
lhes respeito pelo fato mesmo de serem mulheres. Se considerarmos
o termo "enigma" como significando " uma coisa a ser desvendada..
podemos já ter uma idéia, nesta advertência feita por Freud, do que
seja sua concepção sobre a mulher.
Freud deixa adivinhar, em seus escritos, o profundo mal-estar,
para não dizer angústia., que nunca deixou de sentir durante os trata-
mentos em que tinha como paciente uma mulher. Ele começa por
lembrar do entusiasmo de que se via tomado todas as vezes em que
o paciente era do sexo masculino, observando que " um homem por
volta dos trinta anos é um ser jovem, inacabado, suscetível de ainda
evoluir" .96 E acrescenta: " Nós podemos esperar que ele saiba perfei-
tamente servir-se das possibilidades de desenvolvimento que a análise
lhe oferecerá:" 97 Depois confia que, em compensação, foi, para ele,
uma decepção ter de ocupar-se de certos pacientes, relatando o quanto
"uma mulher da mesma idade, ao contrário, nos amedronta por tudo
o que encontramos nela de fixo, de imutável; sua libido, tendo adotado
posições definitivas, parece incapaz de mudar. Aqui, nenhuma espe-
rança de ver processar-se qualquer forma de evolução, tudo se passa
como se o processo fosse acabado, protegido contra qualquer influên-
cia, como se a penosa evolução na direção de uma feminilidade fosse
suficiente para esgotar as possibilidades do indivíduo.'' 98 Atribuir à
mulher esta incapacidade de mudar durante o curso do tratamento dá
no mesmo que considerá-la como privada daquela força passiva sobre
a qual afirma Aristóteles não poder conceber-lhe a ausência, e isto
ainda que seja no interior de uma matéria que fosse necessariamente
materia signata. A acreditar-se em Freud, a mulher estaria destituída
até mesmo do mínimo de determinações positivas da força do sofri-
a amuuiílha do irracional 131

mento, não passando, portanto, de pura matéria. Seria considerada,


aqui, como a matéria-prima cuja existência é negada pelo estagirita.99
Freud dá como certo que a feminilidade e suas manifestações
não poderiam ser explic adas através de um estudo psicológico do
comportamento. Não será no âmbito da clássica oposição entre ati vi-
dade e passividade que poderemos discernir a natureza da mulher,
declara ele insistindo sobre este ponto nos seguintes termos: " Os
senhores estão firmemente convencidos do fato de que a passividade
coincide com a feminilidade e a atividade com a virilidade; ora, eu
acho que estão equivocados e que esta concepção é errada e inútil,
pois ela nada irá ensinar-nos." JOO Tal oposição de noções lhe parece
destituída de caráter heurístico em virtude de a passividade da mulher
não ser essencial mas acidental, pois depende de fatores exteriores.
Mas Freud avisa para que não consideremos esta qualidade como se
ela estivesse ligada originariamente à mulher de um modo geral, a
não ser que se "subestime a influência da organização social que, por
sua vez tende também a colocar a mulher em sttuaç . õ es passtvas .101
o "

Ele nos 'previne ainda para não considerarmos o comportamento sexual


como sendo capaz de ensinar-nos alguma coisa sobre esta passividade,
pois, se à primeira vista, o masoquismo é uma manifestação próp~a
da mulher, bastaria o fato de haver homens compo.rtando-se tambem
desta maneira pára derrubar a idéia de que possamos chegar a apreender
a essência da mulher por meio de um comportamento desta ordem.
Mas assim mesmo existe um observável sobre o qual Freud está
certo de poder apoiar-se para demonstrar que a incapacidade inteJectual
e moral da mulher não constituem matéria de ordem contingente. É
a conformação anatômica dos órgãos genitais que, a priori, toma
possível o u não a resolução do Édipo. Será, portanto, a cooformaç.ão
anatômica que fará da mulher não só incapaz de superar o confltto
infantil , mas também não ter condições de ambicionar aquela qualidade
"racional", no sentido em que é o homem entendido, ou seja, como
um •• animal racional". Exemplo mais claro de uma razão sujeita a
determinações biológicas seria impossível. .
Freud insiste no fato de a "menina-moça não poder ser const-
derada do ponto de vista intelectual como retardada", 102 pois ele_q~er
demonstrar que, antes da idade da resolução do complexo de Ed~po
no menino, não existe diferença importante entre os sexos. ~ menma
não sente ainda aquele handicap essencial na passagem do Edipo que
constitui sua ligação pré-edipiana com a mãe. Ela ~nd~ n~o. v.iveu
uma etapa suplementar quando, então, passará da hgaçao mtcJal a
132 o sono dogmatKu ae Freud

uma hostilidade que fará crescer nela o desejo de matar a mãe. É esta
reviravolta afetiva que tomará impossível uma realização harmoniosa
da maturação da menina. E será a partir desta mudança que a maturação
se achará necessária e definitivamente perturbada O fato de a menina
ser vista como obrigada a expulsar o amor de seu Inconsciente para
que o ódio ali se instale só pode fazer que fiquemos muito surpresos
com a passagem desta incapacidade de tolerar, ao mesmo tempo, dois
opostos da parte de uma instância sobre a qual geralmente nos afirmam
que é ela caract.erizada pelo seu poder de fazer coexistir os contradi-
tórios. Diferentemente do que se passa com o menino onde o desa-
parecimento do complexo acarreta normalmente a instauração de um
"Supereu rigoroso" ,103 a menina se achará de tal man~ir.a colocada
diante do complexo de castração que ela verá este último "não des-
truindo o complexo de Édipo, mas favorecendo sua manutenção" . 104
Esta não-resolução do Édipo tem graves conseqüências para ela, cujo
Supereu "não consegue ter nem a força, nem a independência que
lhe são, do ponto de vista cultural, necessárias" . 105 A este propósito
acrescenta Freud: "As feministas não gostam muito de que se ressalte
a importância deste fator no caráter feminino em geral." 106 O desejo
do pênis, " especificamente feminino" ,107 conseqüência daquela ca-
rência que Freud considera essencial, irá acarretar repercussões ex-
tremas. Freud. de fato, nega à mulher qualquer determinação positiva,
fazendo dela um ser sem qualquer consistência. puro determinável,
onde a problemática própria para a apreensão do real não será modi-
ficada, nem mesmo pelo tratamento psicanalítico.
Na hipótese de uma razão que permaneça transcendente à defesa,
que transcenda o individual, quer dizer, no caso de que se mantenha
intacta uma faculdade de apreender o ser e o verdadeiro, poderíamos
presumir que, a despeito de todas as suas vicissitudes, a mulher possa
conservar potencialmente a integridade das disposições que a razão
· confere. De qualquer forma, para explicar a ausência relativa da mulher
no seio da vida intelectual, Freud poderia invocar a influência negativa
de fatores sócio~culturais , como a interdição de determinantes de ordem
política ou religiosa.
De fato, para explicar esta defecção, ele se vale de um tipo de
argumentação do qual inferimos que, na mulher, a razão não oculta
aquela potencialidade que gostaríamos de acreditar estivesse somente
impedida de atualizar-se. Já observamos que Freud negava à mulher
qualquer possibilidade de mudança pelo tratamento e que ele relacio-
nava esta incapacidade com a própria natureza dela; será esta linha
a amuulilha do irracional 133

de pensamento que o levará a estigmatizar a modesta participação da


mulher no desenvolvimento do conhecimento técnico e científico. e
dizer: " Estamos convencidos de que foi bem fraca a contribuição das
mulheres para as descobertas e invenções na história da civilização." 108
Contudo, ele consente que a mulher teria dado de presente à
humanidade uma técnica, no caso, a única invenção feminina em toda
a história humana. Pelo fato mesmo de considerá-la feminina e por
ser ela única, esta descoberta o leva a interrogar-se sobre suas origens.
"Talvez elas tenham descoberto uma técnica, a da tecelagem e do
entrançamento", 109 observa ele. Depois prossegue: " Se realmente foi
assim que aconteceu, gostaríamos de adivinhar o motivo inconsciente
desta invenção.'' 11 0 E nós realmente podemos adivinhá-lo. Não nos
surpreendemos nem um pouco ao ouvi-lo falar de um caráter anatômico
como sendo o único motivo capaz de explicar este isolado sucesso
intelectual da mulher. Lemos sob sua pena que "A própria natureza
teria fornecido o modelo para uma cópia ao fazer crescer sobre os
órgãos genitais os pêlos que os disfarçam." 111 Em suma, já que a
4lum.ç (natureza) fez.emergir um modelo a ser copiado, não era ne-
cessário à mulher dispor de um espírito muito desenvolvido para apri:-
morar a técnica em questão: " O progresso estava apenas em entrelaçar
as fibras plantadas na 'pele, fonnando com elas uma espécie de tran-
çado."tl2 A partir dos pêlos pubianos e de seu trançado chega-se à
tecelagem depois de ter-se percorrido todo um vasto campo concedido
por Freud ao desdobramento das faculdades intelectuais desses seres,
segundo ele, maculados pela feminilidade. Tal constatação não é enun-
ciada sem deixar transparecer certo desgosto que ele, além do mais,
julga ser também sentido por toda uma parcela da humanidade: "A
ausência de phaJlus desvaloriza a mulher tanto aos olhos da menina-
moça como aos olhos do rapaz e, talvez mais tarde, até aos olhos do
homem." 113
Depois de um julgamento deste, sobre a capacidade intelectual
da mulher, Freud começa por interrogar-se a respeito daquilo que é
do domínio da ética. Para realizar sua pesquisa, irá apoiar-se num
exemplo onde se indaga sobre o que fundamenta o sentimento do
pudor na mulher. Ele principia por declarar que estamos errados ao
qualificar como nobre tal sentimento. Uma vez reconhecido o pudor
como uma característica especificamente feminina, Freud irá assegurar
que este sentimento se fundamenta numa motivação de dissimulação,
a mesma que faz qualquer mulher mascarar a ausência, a falta do
órgão masculino. Somos obrigados a achar que é totalmente impossível
134 o sono dogmático de Freud

ao psicanalista vienense formar qualquer conceito que expresse alguma


qualidade neste ser. E pelo fato mesmo de a mulher procurar dissimular
aos olhos dos outros esta carência essencial, tal como o faria com
uma doença, Freud vê nisso uma prova, se é que ainda era preciso,
de que a mulher não ignora a natureza de sua condição. Observaremos,
de passagem, que Freud enuncia, uma vez mais, um encadeamento
lógico de julgamentos que escapam à consciência e que, por se des-
dobrarem no Inconsciente, não deveriam curvar-se a uma metodologia
deste tipo.
Os pêlos do púbis feminino mostram-se, assim, determinantes
decisivos no pensamento freudiano. Não somente o fundador da psi-
canálise os considera como causa da única invenção atribuível à mulher,
mas ainda irã reconhecer neles a expressão do sentimento de pudor
cuja única motivação é o desejo de dissimulação. Freud estabelece
uma relação de inerência entre a falta do pênis - que ele apresenta
como uma CJ'tf P1lCJtÇ (privação) - e o sofrimento moral que supõe
proceder desta carência. No que toca à diferença anatômica, ela cor-
responde a um princípio universal; Freud tira da ligação entre a privação
do órgão e o sofrimento decorrente da falta, uma verdade, segundo
ele, universal e necessãria, ou seja. a existência em todas as mulheres
de um distúrbio afetivo fundamental. Esta transferência dedutiva é
um conhecimento que não é conhecimento, pois ele é de facto e não
d~ j ure como suas declarações gostariam de fazer crer.
Freud, ao falar da "posse de um pênis mirrado.. ,114 característico
da mulher, apresenta esta disposição anatômica como sendo conse-
qüência de uma atrofia do órgão masculino. Depois de demonstrar
que a disposição anatômica feminina só faz sentido quando correla-
cionada com o modelo masculino e somente existir através do conceito
de privação, Freud declara que desta característica corporal deriva
uma privação em todos os campos. sobretudo no ético e no intelectual.
Dessa forma, a constatação pela menina de sua má fonnação vai
induzir àquílo que podemos chamar de sentimentos negativos. Deste
estado de inferioridade decorrerão os sentimentos de decepção, auto-
desvalorização e rancor.
Freud não coloca o problema com o qual se vê confrontado no
curso de seu trabalho terapêutico em termos que exprimam uma ten-
tativa de esclarecimento das manifestações psíquicas que acredita des-
vendar em suas pacientes. Muito ao contrário, constatando em um
certo número delas a presença de tal sentimento, de um particular
modo de angústia, ele se contenta em relacioná-lo com a diferença
a armadilha do imlcional 135

anatômica que é, sem dúvida, fato incontestável. Jamais duvida deste


elo necessário que ele introduz entre as disposições afetivas presentes
em determinados indivíduos e uma conformação anatômica universa1,
deixando, desta maneira, ver aquilo que, em sua opinião. é uma relação
ilativa. Depois de afirmar que a observou, quase que exclusivamente,
na mulher, Freud passará a considerar, a partir desta constataçio, que
o pudor não é um fato da mulher, mas um atributo seu. A preocupação
de esconder-se aos olhos dos outros somente pode significar, aqui, o
desejo de dissimular esta " falta", e se a mulher disso tem vergonha
é porque a "falta" é dela. Freud vê o pudor como uma conseqüênc~a
necessária do caráter inacabado da mulher. Trata-se, uma vez ma~s
de sua parte, de uma confusão a respeito da qual já assinaJamos o
papel no interior de seu texto e que deriva daquela apreensão puramente
compreensivista da lógica segundo a qual uma atribuição per accidens
transforma-se em atribuição necessária.
Será interessante seguir o procedimento de um filósofo que cuidou
particularmente da elucidação deste sentimento. Tr~ta-se de Max Sch~­
ler. Nós não nos deteremos muito neste ponto. ahás, como o própno
Scheler o faz no que diz respeito à constatação de saber "se apenas
um dos dois sexos - e qual deles- possui primitivamente o senti -
mento de pudor que o outro somente tena . adqum. 'do ma1s
. tarde , . II ·S
Contudo. não deixaremos de investigar aquilo que separa os dois
modos de pensar nas considerações sobre o mesmo problema. Para
M. Scheler, o sentimento de pudor .. pertence igualmente ao homem
e à mulher" ,116 não sendo a diferença que se observa no nível dos
fatos considerada pelo filó sofo como um atributo da mulher. Porque,
segundo ele, a atividade racional é liberada em princípio das pulsõ:s
e determinações psicofisiológicas, em outras palavras, porque a razao
transcende o individual, as diferenças constatadas não são o simples
prolongamento da natureza da mulher, mas um dos possíveis modos
da expressão de uma essência da realidade humana sobre a qual con-
tinuamos a interrogar-nos. A partir da constatação de um número -
limitado- de dados factuais, Freud procede a uma indução abusiva
que resulta no enunciado de uma lei que considera este sentiment?
como exclusivamente fem inino. Quanto a certos homens que mam-
festam o mesmo sentimento, Freud irá considerâ-los pura e simples-
mente como detentores de uma determinação feminina. Com vistas a
explicar também casos que pareceriam não enquadrar-se no seu .es-
quema de enunciados, a reflexão psicanalítica pennite-se~ ~om efe1to.
estabelecer o conceito de bissexualidade, o que lhe pcrm1tH'á, na pre-
136 o sono dogmálico ~ FrDMI

sença de uma mulber que dá provas de inepvel eficiência inte.ledual,


afinnar que a bissexu.alidade desta mullatt conhece uma exacemação
de sua vertente masculina.
A falta de rigor do procedimento freudiano faz-se sentir. uma
vez mais, quando o promotor da psicanálise traz à tona .. a vaidade
corporal da mulher". 117 Freud n.io tem diftcudades para etpliac esta
nova e paradoxal atribuição, afirmada lambém eta como especifica-
mente feminina. Como o pudor. mas não med.iatamt.o~ também a
vaidade derivaria do sentimento de vergonha e inferioridade sobre o
qual já nos disse Freud ser, na mulher, a conseqüência do .. triste
espetáculo" de seus órgãos genitais. Se o sentimento de pudor - de
certo modo negativo, pois que se manifeta por uma fuga face à orna
relação de alteridade - era descrito como derivando da falta de pênis,
este movimento oposto ao pudor, que constitui a vaidade corporal
seria, por sua vez, também conseqüência da mesma "carência anatô-
mica".
O fato de uma mulher manifestar vaidade de seu corpo não sig-
nifica, para Freud, que ela tenha este sentimento como participando
da idéia de beleza. Esta auto-satisfação ilusória, aqui, derivaria, a
acreditar-se no que diz ele, da busca de uma espécie de danos e
interesses que a mulher se sentiria no direito de exigir corno compen-
sação pela injustiça que a narureza cometeu contra ela ao deixá-la tão
miseravelmente desprovida em .. sua narural inferioridade corporal" . 11 8
Poderíamos, portanto, ver este "defeito de constiruição" - cuja idéia
parece' não sair da cabeça de Freud- traduzir-se por um sentimento
de vergonha do corpo que geraria o pudor; donde uma satisfação
desmedida com este mesmo corpo, conseqüência de uma reivindicação
que perturbaria de tal modo a razão que aquilo que era tido como
feio e tendo de ser disfarçado será, então, apreendido como precisando
ser exibido. E, para explicar os dados da experiência, Freud vale-se,
agora, daquela aptidão do Inconsciente para !XUltar simultaneamente
os opostos. Mas o promotor da psicanálise não se indaga sequer um
instante sobre o que leva a mulher a " escolher" determinada atirude
ao invés de qutra. ·
Uma leirura atenta dos textos de Freud mostrará que e.le elabora
a questão da feminilidade de tal maneira que a mulher se revela um
ser não-centrado em si mesmo, não suficientemente diferenciado dos
outros seres. Quando assinala a falta de independência cultural da
mulher, Freud certamente a vê.como não-diferente das outras. Quando
coloca que ela é, por princípio, desprovida do espírito de invenção e
1J7

aptidão para conquistar o mundo pelo pensamento, ele certamente


exprime que ela é não-idêntica a si mesma. uma vez que a condição
primeira de qualquec domínio face à sua alteridade reside na capacidade
de exercer uma soberania sobre si mesmo. Será ainda este encami-
nhamento que irá resultar na falta de unidade do ser feminino e levará
Freud a achar-se em condições de estabelecer que, igualmente no
plano da moral. a mulher é, por natureza, inferior ao homem. Dessa
forma, quando afirma. como se lamentando, que .. a mulher, somos
obrigados a admiti-lo, não possui um senso em a1to grau de justiça,
o que, sem dúvida, deve provir da predominância da inveja em seu
psiquismo", 119 Freud quer com isto dizer que a inveja - a do pênis,
obviamente - , em virtude mesmo de ser ela, em seu sistema, originária
e fundadora do psiquismo feminino, impede a mulher de ter o domínio
de si que lhe fará falta quando tiver a ousadia de instaurar uma ver-
dadeira relação de alteridade. É esta inveja que leva Freud a achar
que a mulher aspira a ser um outro. Para o psicanalista, a mulher não
existe. Ela sequer tem a existência que Platão concede ao sensível.
Ela é uma cópia presa à nostalgia de ser autenticamente, como o é o
homem, seu modelo.
No momento em que a compara ao homem. Freud não vê mais
nela um ser destiruído de unidade, o que o leva a afirmar que, pelo
menos potencialmente, a mulher é uma prostituta. Se um encontro
acidental produzir-se e revelar-se a verdadeira natureza da mulher,
esta disposição irá atualizar-se. A mulher que a psicanálise descreve,
como tendo uma disposição perversa poJimorfa, pode, sem dúvida,
"em circunstâncias banais da vida, permanecer sexualmente no nnal;
mas debaixo da autoridade de um sedutor experiente, ela tomará gosto
por tudo quanto é forma de perversidadé e a usará em sua atividade
sexual. A prostituta vale-se desta disposição polimorfa - infantil,
portanto - no interesse de sua profissão." 120 Quando uma mulher
escapa da prostiruição, não seria devido senão à ausência do encontro
com um sedutor experiente, quer dizer, à uma determinação dependente
de qualquer fator, à exceção dela própria. Também a prostiruição é
tida como conseqüência da inveja do pênis e nada, em sua natureza,
poderia impedir a mulher de cair nesta prática, .a não ser por algum
dado conjunrural. Quando Freud escreve: "Se considerarmos o imenso
número de prostirutas e de mulheres às quais não poderíamos negar
uma inclinação para a prostituição, mesmo que não exerçam o ofí-
cio", 12 1 não estaria ele com isto querendo significar que todas as
mulheres são, no mínimo, prostitutas que se ignoram como tal?
138 o sono dognuílíco de Freud

Se procurannos os pressupostos filosóficos que uma concepção


como esta implica, percebemos a mulher como um ser que ·não passa
de uma sucessão de seres que se diferenciam uns dos outros no tempo.
A cada instante comprometida com um comércio que é simulacro de
alteridade, a mulher é um ser uno somente na aparência, um simulacro
de unidade que toma impossíveis as inumeráveis e fugazes relações
com outros seres que o não-ser de seu ser não lhe teria permitido. A
mulher só é um ser diante de outras mulheres ou então quando a
olhamos do exterior. Quanto mais nos esforçarmos para apreender
este simulacro de unidade que é uma mulher na concepção psicanalítica,
mais ele se deslocará numa pluralidade indefi nida.
Tais enunciados não poderiam deixar de trazer-nos à lembrança
a oitava h ipótese do Parmênides: "Se o uno não exist.e, então o que
seriam os outros?, Nesta hipótese, onde o Uno não participa do ser,
é examinado aquilo que dele resulta para os oulros. Este ser, do qual
a unidade não participa, nos parece semelhante ao Inconsciente de
Freud. No Parmênides, ele parece corresponder àquele" abismo vazio"
de que falarão os ncoplatõnicos. Que serão os outros ao lado de tal
Ser? Que serão os indivíduos que procederão de tal Ser? Que serão
os seres individuais que, tais como as mulheres concebidas por Freud,
não poderão receber a unidade necessária a qualquer ser verdadeira-
mente individualizado?
Não será da razão que poderá provir a unidade, sobretudo no
caso da mulher. Mas sabemos ser bem isto o que sucede com Freud
que não indica para ela qualquer possibilidade de acesso à permanência,
de acesso à faculdade de centrar-se sobre si mesma. De maneira geral,
Freud nega à razão a possibi1idade de transcender a mobilidade de-
fensiva. Este partido tomado pela psicanálise, nós o observamos ainda
mais claramente com relação à mulher cuja dimensão ética e intelectual
jamais será suficiente para deixá-la alcançar a objetividade que lhe
falta.
A oitava hipótese do Pannênides é um exame daquele caso de
figura em que cada um dos seres somente é uno em aparência. E a
concepção freudiana da mulher revela-se bem um ex.emplo daquela
corrente de pensamento onde a razão fi losofante já esclareceu sob a
forma de uma possível hipótese de especulação. O enunciado da hi -
pótese do Parmênides encontra-se, até certo ponto, ilustrado, aqui,
pela análise da natureza da mulher que nos dá Freud para quem esta
é o que dizia Platão daquele "ser que parecia uno quando visto in-
distintamente e à distância, mas que olhado de perto e com finura de
a armadilha do irracionaf 139

pensamento, cada unidade parece constituída por uma pluralidade in-


finita, pois ela é destituída do Uno que não existe" .122
Freud jamais designa a inveja do pênis como um acidente, como
se falaria, por exemplo, da brancura no homem ou· da pureza na
atmosfera. Ele considera a inveja como própria da mulher no sentido
em que ela deriva, tal como o riso no homem, necessariamente de
sua essência. Nenhum representante da espécie a que pertence a mulher
poderia ser dotado de tal propriedade que, por sua vez, não poderia
pertencer a um domínio que não fosse o desta espécie.
Freud conclui este projeto de conferência intitulado " A femini-
lidade" reconhecendo ser sua exposição, " por vezes, pouco agradá-
vel" . 123 E usando do tom afetado de alguém que está sentindo-se
reconfortado, deixa claro que sua análise sobre a mulher não é exaus-
tiva, o que, entretanto, não o impede de apresentar um trabalho su-
postamente incompleto como um enunciado de verdades definitivas.
Como se fizesse dele uma dúvida referente aos enunciados con-
clusivos sobre a mulher, Freud alega que não "estudou a mulher corno
ser determinado por sua função sexual" .124 Mas, djzer, em seguida,
que "o papel desta função é verdadeiramente considerável'' . 125 isso
nada mais é do que lançar mão de um eufemismo. Talvez tenha ele
visto nesta figura de retórica o meio de salvaguardar as aparências,
imaginando dar a entender que, a.o;sim mesmo, deveria existir um
domínio puramente individual que escaparia à problemática sexual e
em função do qual não teríamos mais o direito de afirmar que a mulher
é aquele ser desprovido de form a e resultante da não-resolução do
complexo de Édipo. Sabemos, com efeito, que Freud não se cansou
de repetir que o psiquismo é inteiramente determinado pela m aneira
como é superada a crise edipiana. 126 No entanto, ele afirma que, " in-
dividualmente, a mulher pode ser considerada como uma criatura hu-
mana" , 127 persistindo, desta maneira, em deixar supor que haveria no
determinante do psiquismo dela uma outra parte além do Édipo, em
contradição com todo o seu ensinamento. Este tipo de asserções apa-
ziguadoras usadas por Freud indica um encadeamento argumentativo,
o mesmo que a retórica designa peJo nome de argumento qua~e lógico,
argumento de divisão fundamentado na idéia de que o todo é a soma
das partes, sendo o todo da determinação do psiquismo feminino cons-
tituído, segundo Freud, por uma parte, pelo Édipo e, por outra parte,
pelas vari ações individuais a respeito das quais ele, no entanto, ex-
plicará que elas for am como se fragmentadas pelo Édipo. 128 O que
equivale a dizer que Freud considera ineficiente, por princípio, no
140 o sOIW tklgmálico fk Frewl

momento mesmo em que o enuncia, o único motivo que consegue


sugerir, num último esforço, para reconhecer, na mulher, uma criatura
humana. Não se poderia mais clara mente negar à mulher o direito ao
stalus de pessoa humana.

Um breve retorno do racionalismo

A psicanálise eclodiu numa época marcada, entre outras elaborações,


pelas de Riemann e de Lobatchevski, pelo teorema de Gõdel e pelas
. idéias de Poincaré. ou seja, numa fase da história do pensamento
quando surgiram movimentos que vinham enfileirar-se todos sob a
bandeira - então nova - da pluralidade dos axiomas. Este tipo de
revolução, comparável por sua importância ao que foram em seu tempo
a elaboração do cálculo infinitesimal e a revolução copemicana de
Kant, possuía laços com aquela contestação radical da psicologia à
qual Freud tentava dar corpo. Parece que isto teria acontecido pelo
fato de a ontologia regional, que era a psicanálise, ter-se dado como
tarefa elucidar sua <relação com antologias vizinhas, na medida em
que era de seu interesse investigar o que poderia obter de um comér-
cio com atitudes racionais que não deixavam de ter algum parentesco
com ela.
Somos forçados a admitir que Freud não seguiu :este caminho,
até muito pelo contrário. Ele preferiu investir a " herança" schope-
nbaueriana no trabalho que empreendia de conseqüências já conhecidas
por nós. Não somente deixou de pactuar com atitudes racionais sobre
as quais deveria ter observado que elas participavam de uma idéia
fundamental próxima daquela que estivera na origem de seus trabalhos.
mas também polemizou com uma das mais importantes delas. Além
. desta nova luta travada por Freud ilustrar perfeitamente seu deliberado
isolamento, ela irá permitir explicar o motivo por que Freud começou
a veicular o irracionalismo schopenhaueriano a partir do momento em
que o conheceu, e isto sem jamais ter compreendido o verdadeiro
sentido daquilo que difundia.. Este enfrentamento a que aludimos nada
mais é do que a condenação que ele acabara de pronunciar contra a
teoria da relatividade de Einstein.
Se formos julgar pelos argumentos usados por ele, tudo que sabe
Freud desta teoria física foi aprendido de ouvir falar. Isso não o impede
de lançar contra os enunciados conclusivos da teoria da relatividade
uma condenação inapelável. Procedendo, Jogo de saída, de maneira
a armadilha do irracional 141

surpreendente ao identificar esta nova conceituação com o anarquismo


político, ele se declara certo de poder considerá-la como uma mons-
truosidade lógica. Freud, com efeito, vê, aqui, a abdicação de uma
razão resultante da negação da noção de verdade naquilo que é, e s-
sencialmente, uma crítica à mecânica newtoniana, crítica que afirma
que o tempo não passa de maneira uniforme para dois observadores
movidos cada um por velocidades diferentes.
A teoria da relatividade não passa para Freud de uma Weltann-
schaung. .Sabemos já que o promotor da psicanálise considera este
conceito com<> produto de uma imaginação patológica que floresce
numa atmosfera de obscurantismo. À maneira daquelas concepções
do mundo formuladas pela religião e pela fiJosofia, a teoria da rela-
tividade seria a acreditar-se em Freud, a fantasia de um espírito cujas
especulações 'nada teriam para dizer-nos sobre a realidade a não ser
instruir-nos sobre a teoria do psiquismo que e laborou. E Freud lança
o seguinte anátema: ''É uma daquelas concepções do mundo que faz,
por assim dizer, pendant com a anarquia política da qual só é, talvez,
uma emanação. Já existiam, antes, niilistas intelectuais, mas, agora,
a teoria da relatividade parece ter-lhes subido à cabeça." 129 E prossegue
ele: "Segundo a doutrina anarquista, nenhuma verdade existe, nem
qualquer conhecimento cert9 do mundo exterior. O que tomamos por
verdade científica é apenas produto de nossas necessidades tais como
elas se manifestam em meio às cambiantes condições exteriores, por
conseguinte, uma ilusão... 130 Isto no nosso entender significa que,
para ·ele, a teoria relativistâ toma inútil qualquer esforço que vise o
conhecimento do mundo físico e que Freud somente vê, na noção
einsteiniana de verdade, a resultante das necessidades fisiológicas do
indivíduo, sendo, então, o conhecimento, obviamente, desprovido de
permanência.. E como se~ subitamente, houvesse reassumido a condição
de partidário da concepção tradicional, Freud mostra-se particular-
mente revoltado contra a idéia de que a teoria da relatividade, na
leitura que lhe faz, possa identificar a verdade com ... uma ilusão...
Fazer da teoria da relatividade um .. anarquismo", vale dizer, um
relativismo individual, é particularmente um exemplo bem-sucedido
de amálgama conceitual. Freud pretende com isso denunciar a espe-
culação que continua, a seus olhos, sendo a pior das ameaças à ciência,
servindo-lhe este ataque contra a teoria relativista de pretexto para
óeJa.... ·:·iar, uma vez mais, a ilegitimidade de qualquer tentativa cujo
procedirr,, ··r~ se identificaria com o da filost>fia. E Freud, com efeito,
142 o sono dogmático de Freud

continua sua crítica com a evocação do" sofisma" desses " anarqui stas"
que, g raças a suas teo rias fantasísti cas, conseguem enunciar uma con-
tra verdade, não importa qual seja. E por achar que os sofi stas poderiam
ter a audácia de discorrer sobre o mundo das coisas, ele considera
intoleráveis aquelas elaborações que, inicialmente, apresentou como
sedutoras nos limites de seu caráter especulativo. É o que diz da
segu inte maneira: "Sem dúvida, seria interessante para qualquer es-
pírito curioso de investigações teóricas saber por que vias e por meio
de quais sofismas os anarquistas conseguem arrancar da ciência tão
extraordinárias conclusões[ ... ]. Nós nos contentamos de dizer que a
doutrina anarquista parece sublime e preeminente enquanto aplicada
a especulações abstratas, mas fracassa quando se trata da vida práti-
ca."131
O leitor de Freud, que descobre a existência desta condenação
tão mal fundamentada quanto violenta e segura de suas proezas, vê-se
constrangido a deduzir que, nestas páginas, a psicanálise se revela
incapaz de avaliar o alcance de suas afi rmações no que conceme à
questão do conhecimento, o que não a impede, contudo, de achar-se
apta a legislar sobre as orientações fundamentais da física teórica.
Uma tal constatação poderia, com justa razão, levar o mesmo leitor
a reconhecer neste Freud, vituperando contra a teoria da relatividade,
traços próprios de Bouvard e Pécuchet ao denunciarem em alto e bom
som " a burrice daqueles que os cercam e [que eles] já não conseguem
mais [ ...) suportar" . Tal leitor se sentiria certamente inclinado a não
fazer caso do conteúdo desta disputa, destas invectivas que realmente
não merecem muito que se lhes preste atenção, sobretudo, porque a
desmedida da imprecação se baseia na radical incompreensão da teoria
relativista. Freud revela total ignorância do pensamento einsteinianol32
quando o coloca na categoria das produções delirantes, por conseguinte,
perigosas para a ciência. Sua rejeição provém, na verdade, do fato de
ter entendido o termo "observador" dos enunciados relativistas como
equivalente ao termo " indivíduo". A partir desta confusão da quaJ é
responsável, acreditou compreender que o espaço-tempo era, pela re-
latividade, o que fora o homem para Protágoras, ou seja, " a medida
de todas as coisas". Tal hipótese teria efetivamente conduzido esta
teoria física a um relativismo cético ou individual no qual podemos
reconhecer-lhe a origem no sofista de Abdera. Freud ignorou que os
físicos relativistas somente usavam o termo "observador" em seus
trabalhos de vulgarização e que, por outro lado, não faziam alusão a
a armadilha do irracional 143

um suje ito e tampouco a um indivíduo. " Observador" significa so-


mente que é análogo ao sistema observado, àquilo que corresponde
aos eixos de referência.
Na realidade, é no que revela a maneira como Freud se situava
face à questão do estatuto da razão, neste período tardio de sua obra,
q ue temos de procurar a verdadeira causa desta polêmica. Ela, com
efeito, permite-nos compreender o estranho trajeto que foi o seu: de
um racionalismo baseado num realismo ingênuo no início de suas
investigações, Freud chegou, do mesmo modo como o fez a presente
pesquisa, a um relativismo individual do qual se faz crítko tão logo
acredita reconhecer neste uma elaboração que não é sua.
Quando tentamos esclarecer a natureza desta adversidade, des-
cobrimos que a perspectiva redutora, que consiste em levar a teoria
da relatividade a um niilismo intelectual, é uma transferência dedutiva
c ujas determinações nada devem ao acaso. O conceito de simultanei-
dade universal e , conseqüentemente, o do tempo absoluto que, então,
imperavam como senhores incontestáveis no panorama da teoria new-
toniana, apresentavam a característica de serem facilmente absorvidos
pelo senso comum . Por isso, o próprio Freud, certamente, deveria
considerá-los não-contestáveis pela razão, a m enos que esta não fosse
mais do que uma des-raz.ão, como a dos niilistas visados por ele.
Através do questionamento do conceito de um tempo absoluto, es-
coando igualmente para todos, Freud descobre outra questão, a da
noção de verdade, que sempre fora posta pela filosofia como inde-
pendente do individual. E ele estabelece que tal contestação tomari a
qualquer conhecimento impossível, buscando, assim, paradoxalmente,
apoiar-se no aporte de uma tradição filosófica segundo a qual o co-
nhecimento deve escapar à dispersão temporal, salvo se deixar de ser
conhecimento para constituir-se opinião. Para alarmar-se de tal maneira
e ver o ato de conhecer alterando-se apenas por ter-se produzido a
relatividade do passar do tempo, era preciso que Freud já tivesse
colocado como ligados desde o princípio, o conhecimento e o tempo. .
Do contrário, a perda de um tempo absoluto não lhe teria parecido
dever repercutir sobre conhecimento. Seria, portanto, somente sob
esta condição que ele poderia considerar como um pseudoconheci-
mento aquele saber submetido às detenninações sempre instáveis do
individual que, em sua opinião, constituía o fato de dois indivíduos
poderem ser tidos como suscetíveis de não sofrer os efeitos do tempo
de maneira idêntica.
144 o sono dogmático d~ Freud

É paradoxal ver Freud, que explicitamente acusou Kant de ter


submetido o ato de conhecer ao tempo, atribuir, aqui, um papel ao
tempo de acordo com as condições do conhecimento, tomando, de
repente, sua crítica ao filósofo de Kõnigsberg inteiramente injustifi-
cada. quando Freud pensa poder estigmatizar uma teoria científica.,
denunciando-a como relativismo subjetivo, não somente está ele er-
rado, como também se mostra estupefato e escandalizado com a pos-
sibilidade de tal apreensão do problema do conhecimento. Ora, o leitor
desta última diatribe psicanalítica poderá ver-se confrontado com este
mesmo relativismo em muitos textos de Freud de épocas anteriores.
A polêmica anti-relativista de 1932 revela-se, em suma, a refutação
feita pelo próprio Freud daquilo que fora o eixo de sua elaboração
desde os primeiros anos do século xx. A partir deste momento, com
efeito, os textos psicanalíticos passaram a ensinar que a representação
era determinada pela estratégia defensiva do aparelho psíquico, o que
resultat:ia na manutenção, durante um quarto de século, de urna situação
análoga àquela contida no paradoxo de Epimênides, o cretense: a
primeira defesa que o pensamento irá estabelecer será afirmar que ele
não é defensivo, portanto, ele diz a verdade. Mas se considerarmos a
veracidade do que diz quando enuncia que todo pensamento é defen-
sivo, ele é, portanto, defensivo e se mostra um outro que não é na
realidade. Logo, ele não é de'fensivo. Mas se ele não é defensivo,
temos de acreditar nele quando enuncia que todo pensamento o é etc.
Mais surpresos não poderíamos ficar ao ver este famoso paradoxo da
antigüidade exposto por Freud133 em meio a uma argJ,lmentação anti-
relativista que pretendia fazer de Einstein um novo Epimênides.
Em suma, depois de chegarmos ao fim do percurso da reflexão
de Freud, encontramo-nos, umá vez mais, diante da falta de coerência
que é visível em muitos de seus textos mais antigos. E por mais
desconcertante que possa parecer sua crítica ao relativismo, chegou a
hora de lembrarmos que Freud deu provas, através de sua obra, de
um irracionalismo cético, aquele mesmo que, em Einstein, será por
ele achincalhado, acreditando estar denunciado-o. É preciso ver, aqui,
uma prova de que jamais o promotor da psicanálise tomou consciência
do que implicava sua escolha da primazia do Inconsciente, já presente
em Schopenhauer, com quem a representação era tida hierarquicamente
inferior à Vontade. Esta orientação aparece como fruto de uma ger-
minação surgida depois que Freud imaginou ter achado uma confir-
mação para sua reflexão naquilo que entrevia no pensamento scbope-
nbaueriano.
NOTAS

1: Deseants; .R:, Discows di /Q mithtHli) ilt (JM,re:s ·pltilbsoplri"l[lltfS. ad.:, F:


Alqv~i op-.cil:, t.l, p.568; A:T:, .VI, 2:
2.' Aristótetés: Métap}rysi~, op.cir.:; o:.30,-.J025 a 26->30. ·
3; Mcrteau-.~. M.-. Pfthwmcrlnolilgu· cM< Ifl ·~~; Páris,· <JaUimard; 194~~·.
p.iil62.:
4:· SpiMt.a, L' étlri~, op.cit., livro; m,' Proposição xlft.
s: 11eibniz; G.W:, "l .:enn- à~.MI~i~:Aina.uld'~ . ii\MM"dé O()V~ ·de ..!97)j j~:
CEllvres, Ed.- L. Pftnanti .op,d t., .u ...p. lOS:.' ·
6: Hn~J. E.; wgilfw jbmwlk el /(ltÍf/W trmu~lok; ttad,t S: .n àcbélàrd.;
P'àris, -001·. ." Epiméthéé" , PUF, 1984: .p:21 l ,
1·: No ~efl(idc) ~:que:LeSblúz:critica· fr~é· oo 'fa6i()cíniO>S ··de'. Oes~êS..
<Je..:sctêm·."·apres~ados e; I'J(M prlY'Ioca,: víólinida, sem escl~Cét-n~·:·· c~ ·à.•
ÉhsàbetJ.-, fítn ~ . 1678, in <Jiw,re$, ·Ol):cir-:. T:l,: p;.li9:) ·.
8:·.Fféud,< S:·, e :areur.J., Étútks.,sw ·l'Jrystirle, op.dt, p-4:
1/: JfMciém•,: p.38~· .
IO.:."·sua,;--trases ·são pí.'rletlâlnel'lte··coeR!ttes e ~. sem: soil\brá.•defdll~dQ;l
uma. i~ia 'e uma dlhHr.· pooco "dWimJW'·! • .(fbtdénW pi.3&.~ ~
I I ! Ibtciê'M-.- .p;36; n.3:·
I z:·Ibidem, p.38·; n::1:
13; "Tr.áta•ll--sede u'A\· d&tfíri~hl'sl~cY~too\'(i·estádó-hO'i'nWc~ftnf!t;:
tal· ~bfni). um'~· qtre·-se·.in!J.ia~ nu;n: tl~ib~Vh'lt\W'ô vbhMtúi() se!W~Wi.iló.e<-sell\i:
ll\l's..r.lr..ise.~ este-'!·. (IlltdéJJf; ~36\· n.3;) :
14.! COmo' -tia ~ç; {aatarse) ~gà-~ tm\dia-"<l.ttstail"par :um»·:.OUtllt~•·
este-:e5tãdoo 'ditb .•• serW ·mi"!ltàl'.t~f ·01\dt~ .scgüRI» ~ ·prõV&biO,• "'càdé<qu~l iv& icomr•
seuui~ar.·.
IS) .~Lp;44;'
1~.I,hfttnL.
1~7 ·~~:.~4?~
18~ -IMdiimr
ISl'J R'tll\l.tS;i, e<~tf J.i, ~t.lsjlfl1~.rth'it;'cpilrl\!.•,. p;2~·
~) .JM\tt\mr; .
U ! ~ltt'tf,,. J.lJ.\ . " Jje; lt:.connaiita~M»· dt-· ~ll : ert~': sôi;.'~MI)" ; iJ\l! {likivrtss
c~us;; & ' .awtfau:war pijri$~ .18t'17 ...~
W .~! S',e,SMuer;·Jj, &IJJt:·sllt'· l !fWillf'l~i · op~tif.; .p~l$9;) .nr·l l
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23).(~JlW.pi2.1 l i
2li•.&Mdihml.~u;
tn .I~m\' .p~.J'2lS ~ (j~~t~) ..
146 o sono dcgmático de Freud

28. Ibidem, p. l3 1·2.


29. Para não falar desses inumeráveis pós-freudianos que, diante de tal .. desco-
berta" . fazem pensar naqueles erísticos que Platão ridiculariza em O sofista e a
propósito dos quais dizia o Estrangeiro de Eléia a Teeteto: ''Imagino, Teeteto,
que você freqüentemente encontra pessoas que se interessem por tais assuntos.
Em geral, são pessoas de idade mais madura cuja pobreza intelectual faz com que
fiquem extasiadas diante das descobertas que acreditam ser de alta sabedoria".
(Platão, ú sophiste, trad. A. Díes, Paris, Les Belles Lettres, 1969, 251 bc.)
30. Scudory, Mlle de, " le Grand Cyrus", citado in Lewis, G .• ú probleme de
l'inconscient et le Cartésianisme, op.cit., p.7, n.l .
31. Freud, S., e Breuer, J., Étw:ies sur l'hystérie, op.cit., p.l32.
32. Ibidem.
33. Ibidem, p.l32-3.
34. Ibidem, p.l33.
35. Ibidem, p.l32.
36. Ibidem, p.219.
37. Ibidem, p.222.
38. Ibidem, p.232.
39. Ibidem.
40. Ibidem, p.233.
41. Platão, Politique, trad. A. Dies, Paris, Les Belles Lettres, 1935, 285 a l.
42. Plotino, Ennéades, op.cit., rr, 9, 35-9 e 54-7.
43. Freud, S., e Breuer, J., Études sur l'hystérie, op.cit., p.235.
44. Ibidem, p.235-6.
45.·Ibidem, p.236.
46. Ibidem, p.243.
47. Ibidem, p.236.
48. Ibidem. O grifo é de Freud.
49. Ibidem.
50. Ibidem, p.237.
51. Ibidem.
52. Hegel, G.W.F., La phJnominologie tk J'esprit, op.cit., 1.1, p.l40-l: '' Certamente
atris da cortina, como se diz, que deve esconder o (nterior, nada há para ver, a
menos que penetrássemos nós mesmos lá atrás, tanto para que haja alguém para
ver, como para que haja alguma coisa para ver."
53. Pascal, Pen.sies, ed. J. ChevaJier, Paris, Gallimard, p.lll I.
54. Ibidem
55. Freud, S., "Les psychon~vroses de d~fense", trad. J. La.planche, in Névrose,
Psyclwse et Perversion, Paris, PUF, 1978, p.3.
56. Ibidem.
57. Ibidem, p.4.
58. Freud, S., " De la psychothérapie", in La teclutiq~ psyclwnolytüj~. trad. A.
Berman, Paris, PUF, 31. ed. 1981, p.20-l. O grifo~ de Freud.
a armadilha do irracional 147

59. Kant. E., Critique de la raison pure. op.cil. p.455-6: " ... numa determiiUlda
pessoa, é o inleresse pela diversidade que conta (segundo o princípio da especi-
ficação) e, numa outra, é o interesse pela unidade (segundo o princfpio da agre-
gação). Cada uma delas acredita formar seu julgamento a partir da visão do objeto
(aus der Einsicht des Objects) e ela o fundamenta unicamente conforme ten ha
uma ligação maior ou menor com um dos dois princfpios que não se baseiam em
fundamentos objetivos, mas somente no interesse da razão, e, por isso, melhor
seria que fossem chamados máximas do que princípios." O grifo é de Kant.
60. Ibidem, p.253-4.
61. Ibidem, p.254.
62. Imagem- de origem aristotélica- que Descartes rejeita, em O discurso do
método, pois ela implica uma tal separação entre alma e o corpo que lhes toma
impossível a unidade: " ... não basta que ela [a alma] esteja alojada no corpo
humano, tal como um piloto em seu navio, [... ] mas é preciso que ela esteja junta
e unida estreitamente com ele para ter (...]sentimentos e apetites semelhantes aos
nossos e, desta maneira. compor um verdadeiro homem". (Descartes, R. Discours
de la méthode: Cínquíeme partie, in (Euvres philosophiques, Ed. F. Alquié, o p.cit,
U, p.631 ~2; A.T. VI 59.)
63. Freud, S., "Les psychonévroses de défense", in Névrose, Psychose et Perver·
sion, op.cít., p.7.
64. Freud, S., "Lettre à W. Aiess", de 22 de dezembro de 1897, in La naissance
de la psychanalyse, op.cit, p.213.
65. Freud, S .• " Le refoulement". in Métapsychologie, op.cit, p.48.
66. Ibidem. p.49.
67. Freud, S., "Le moi et le ça", in Essais de psychaiUllyse, op.cit., p.l92.
68. Ibidem, p.230. O grifo é nosso.
69. Ibidem, p.l95.
70. Freud, S., "La personnalíté psychique", in Nouvelles conférences sur la psy-
. chanalyse, op.cil., p. l 05.
71. Freud, S., Abrégé de psychanalyse, op.cit., p.74.
72. Freud, S., ''Le refoulement'', in Métapsyclwlogie, op.cit., p.49.
73. Freud, S., " Le moi et !e ça". in Essais de psychanalyse, op.cit., p.l92-3.
74. Kant, E., Critiq~ tk la raison pure, op.cit., p.459.
75. Ey, H., " La oonscí.e nce". op.cit., p.397 . .
76. Freud, S., " Le moi et le ça", in Essais de psychanalyse, op.cit., p.205. O grifo
é nosso.
77. "Tema que você não passe de um filósofo e q ue tenha uma tendência monista
quando desdenha as belas diferenças ofertadas pela natureza em prol das seduções
da unidade" (citado in Assoun, P.-L., Freud, la phiú:Jsophie et les phiú>sop~s,
op.cit., p.55, n.l ).
78. Freud, S., "Une difficulté de la psychanalyse''. in &sais de psychano.lyse
applUjuie, op.cit., p.l 43. O griro é nosso.
79. P~pin, J., ldées grecques sur l'h.omme et sur Dieu, op.cít.. p.14.
80. Lembrando os esquemas filogenéticos que a criança traria consigo ao nascer,
Freud afirma sobre estes que eles são " semelhantes às 'categorias' filosóficas
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~:um milae.· :Giudes -dease$ ~ .del11m :nocGdi\hb: ~é'.•unm-.espéére.·
ciiLaàliW1ã:.'-''" (Vilií!IY, P.,:. Variiti.'i, 1\ms;..Gàlüiward, 19'MJ U:tr,; ·P: 1~ ·.
&3..- .V~J..;.:p_~ :·~.sas~'; i~.Vemant, 1:-P. e ·ViciaJil~~ "A.',
lrftrlit..-e~ :t~ <en ~ a!KUIIIV,' ~ •• Mãspéro Edt., .19Si ; .P>B.3:·
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8.1. Hiililém,· ;r.flil:·
81: !ftal.!.&. .''l.l'~:·au~: loopsl!; in.Büarnwychfattalys«s~ ~cin., ~"4t_ 8:.
st.·A·p~:pàiQ,;A:~·~e.t:ata::t•·éOOI'pal'açãó,·associandó:offló5~.~
tuw~nmàclwftl,;cam· ~ .fi~ será•uma ,conslanté cnr SX!h~haaer • e"{J ..} IJ!L'
[a} :;t:~~•u • • ..,. ·..-~ftdlle. na: Wi'.iu118eltó.fPIIWe' NJVO.iiMtliltld«' 1~- .oudlt'· o ·,
tempu~·~sã~ com;:vida'm cololid0t9/'' (Ffiblenkb:,~ A\ li..<nMre''
dr,~~it.Jt,:p.''il4.· n~i J) ··.. · .
9D.•~F.:. ü·~.-d~nfi!Ji; Psis,.w; .reedJ. l ~~ fifbJ.
99 ; ftad:,;$, ÜnW·'·~· op;c:ii:.,. ~ll21'; . .
92: Cõ1i1D •md •• ' & . c, N:~ .Sdwlfiiar: ~· tToili:·&t·:· 18/J9-·s•· l'túet6Hedj··ldl·
Jatr.~~a · • · , Dd.J.:..P. ~ Alris; oan· ró,l. l91'77. ~=lfí!'
93.;~"'Sl. "ll.iaf~ . m:~'COfJj!ient:es.·s•üPifycll~JtaDijs4çO{)Çdt~ .
fl'-I.U::·o ·. ...,.éaiJIIL . ·· ··
91~ .Bi*ila;• ~iH•.. o-~:6JIOIIS&.·.
9S.. .tlliilláai.·.
9i. .Di*!ia.·
91: llli*ílaL.
9&:.·Bílllllal.;.p::ll17i o fjllifD 'é....... .
~.'.Mif.,.jlt!g ', ff' 1 Sj ·ai . ; tOfUii,:..l.l,l.A:) ,100~:l2l l
tOl: fiial,! .Sj, ·" ü,·C . . o/.~ .ia::M i llit.tCI«</fieMel.;s•rl.IJJfiY~,_t.
.,m:,.pjl~!j
UXJ.:IIIi? . ·~·
tm:mu · of'Plu,;.
lfll:'!"s ' ~~~-·
l.IJI.:'Billillll:l.
}.IJJ5lRMiat·.
1'1*· ~ .
1•01.}.......:~ .
ta· ...-;. ~K;J .
t09.. lbklem.
· 110. Ibidem.
~ uulbidan.

.1·t2.' Ibidem.
·113.' Jbiôml•. p.l-6.6.
:ll4.fffQid,.S., Abrigé.tk· psydtaltaty1e, op.àt, p.&l.
·r t5. :Stbder, 'M., La ·,wdear, .trai:!. 'M . fllaptty, •Paris, . ~: IH6Z.
, p. f39.:O ,pjfo..é:.de ·Scbeler. ·
t 16.; Lbillan,!.p; 1-40.: O grifo é de:Scheler.
tt7. !Frald, 'S., '!La .fémimt€' ,.in 'N~ Ollltfilt1iU3 .-.r. ' /iJ:;p~.
<?P-cil, p.l74.
: l18.' Ibidem.
! lJ9.:lbidem,.pX7b.
·UO"Freud:S. ~Trois esmú-swlla tlriorie ile'la wJM'IW; !Rif.iB.':JlotiuAilowUlilrc,
iP.aris,< GaiJimard, . rol : ·~hfées·', 19.62,;p:~7. ·
i t2l.llbidem,. p:87.
.1.22.1 PWão,1Pam.iillide,: lllltl.:A. ! Ims,l-Paris,' IAs·lkl!Bsi ~•.I Ji91n·,.; IM,~ IM.
;123. !Fcam, . S., ·!La ~ féminité'~, ,in W~ ..a.firau.>· ~»~~ , IB-IfP!i"'•~·
qp.tit,;.p l ~17.
124.ilbidml.
I25.:Ibidem.
·t26.:J. Laplmtbe.e ·J.•B.;PootaJ.is. obsenam·aaae ~~ ·~~ f.. ;}:~
.fn:udi.aoa. Cl!H'resta,SQI.ÇOÍO ·a- uma eapresação qge ..,er.Wl" oHiiJiflm_. . ,..,....
darltJ. o miilo!illtlil'itlual.em que-& -teffipla: a das•IM' ds•ii1Piii'*'-' ~·
~~mmsmilidaS~ ,,vale.diz:u,. efiP'cma• .-e,.,..._81-_.i 411iÜÍ!li
~do~sujc:ico~(~: s.iol WJabán-..~cda,sicpÇío ti C•k'' ,, (ll"j lee4W 1.1,~-c:
i Ppmalis, JJJ B., '·Vocébulaire.:de:la, ps-ya..alyse,' l'aô$..l'till.',..2':-cül JWl&,;tdJ.i O
gi'ifOté!.IIOSSO.-)
.l27. l'Ftatd, ::S., '!Ui ,fémiaité"~, .in 'NtwW/ks ,tOif/iHftas. i$111'! ! la ;.ptJJIÍ"••rí!iP'·
qp.dt.Jpit'i7!:8.
• I2S . ! La; -páübleévólutioo · vus' laf ~-:aWit ·,Siiffi àipllillctl lils:~*
tl1itifi'ridO.' . (ibidem).
· l~.!Frcutly's.,· ':Dru.ue ~tion.de:J1 ai~ ,.a .,._46:sl:•iHI.Ií"**"~•
; psyt/mlrály$e,•op.éit,;p.2J2.
liGO. rIbidem.
Jf3) .ilõidan,o.p.23:2-\3.
: t·lZ.:ltnyer,iR,i&qfii.ueá.U•«·~·Io·.Jtrat-t,JIIm!is,! IF·.. 'Aimlr..' BJ0~
rp.zlll>86.
: 1\lJ. i Fmro,.~s.• 'tD'uae.~on. df:;E.LIIliwn"' .. -. ~~SMfllla
i pzydtaluilyse,.qp..cit, ;p.'23(3.
Conclusão

Uma vez que nos recusamos a considerar como evidente a autonomia


que ·reivindica Freud para sua reflexão, toma-se necessário procurar
as condições em que se dá o aparecimento desta. Como seria possível
admitir, sem submetê-las a exame, as conclusões de um texto que
afirma, contra toda a evidência, não ter qualquer outra fonte que não
seja ele mesmo e que, para justificar a ambição de só existir por si,
acaba desvalorizando inteiramente qualquer outra atividade do espírito
e, mais particularmente, o modo filosófico de pensar por meio de uma
argumentação que jamais procura explicar a razão dos anátemas que
pronuncia?
O mesmo sucede com o movimento de pensamento suscitado
por Freud. Se não podemos realmente falar de um pós-freudismo no
sentido em que se fala de um cartesianismo e um pós-kantismo, isso
não quer dizer que não existam pós-freudianos. Estes, no entanto, não
chegaram a desenvolver muitos esforços para fazer de sua palavra
algo que não fosse um eco da palavra do mestre. Como não pôr em
dúvida a validade de seus comentários que consideram os textos básicos
da psicanálise como a expressão da Verdade? Nunca considerando a
possibilidade de submeter, primeiro, a palavra à crítica, estes epígonos
adotam uma atitude de total passividade e submissão diante dos enun-
ciados que parecem considerar como os de uma psicologia revelada.
Em sua tentativa para esclarecer filosoficamente o conceito de
Inconsciente, a presente pesquisa, vendo na psicanálise uma ciência
exata, inscreveu-se inicialmente numa linha de pensamento ligada à
filo sofia das ciências. Tal elaboração, como lembra G.-G. Granger,
impunha que se tivesse como " referência algum marco no passado
filo sófico, alguma espécie de difusão epistemológica, como o Criti-
císmo kantiano" . 1 E a filosofia transcendental revelou-se bem mais

150
conclusão ISI

do que um marco: nela, encontravam-se tanto a origem - lógica -


como a fonte - histórica - da idéia do Inconsciente, pennitíndo,
além do mais que, através dela, se reconhecesse na psicanáJise uma
Metafísica.
Freud tomou o caminho da violência ao procurar impor seus
pontos de vista de fonna nãoAracional. De fato, visando construir uma
ciência do psiquismo, achou mais cômodo decretar como delirante a
reflexão filosófica. Podemos ver aqui um estratagema para poupar o
esforço de verAse obrigado a dar "a volta mais comprida" de que
falava Platão. Esta pennanência sobre a qual a filosofia jamais deixou
de interrogar-se deveria, no entanto, levar Freud a considerar necessário
proceder ao exame de que era merecedora esta disciplina.
Não ter acedido ao modo do pensar filosófico fez com que Freud
confundisse aquilo que é matéria de uma ciência exata com aquilo
que escapa, por princípio, a esta, pelo fato mesmo de ser ela exata.
Desta maneira, iremos vê-lo, levado pelo uso transcendente do prin-
cípio de especificação, incapaz de distinguir o plano dos fatos daqueles
- pré-reflexivos, segundo ele- que são da ontologia e da gnoseo-
logia. Ora, a psicologia não pode, ao mesmo tempo, tratar de um ente
determinado e determinar o que é a constituição ontológica deste ente.
O psicanalista está tão convencido da validade de sua elaboraçio
que ele não hesita em desacreditar as ciências exatas com as quais se
a
vê confrontado, não ser para tomá-las suas vassalas. Ele se bate
contra tudo e todos, mesmo contra reflexões com as quais se poderia
aliar. Em resumo, na sua relação com outras disciplinas científicas,
Freud procedeu ao oposto daquilo que consideramos universalmente
admitido.
Esta atitude racional fica clara quando tomamos conhedmento
da idéia principal da teoria psicanalítica. Toda a sua obra demonstra
a vontade de explicar as causas e os princípios últimos dos dados da
observação clínica. Freud construiu, sem dúvida, uma Metafísica de
espécie diferente da Metafíska clássica, mas do mesmo gênero. Sus-
tentar, por exemplo, que Dora tem dor de garganta pelo fato único
- ignorado por ela - de que em seu psiquismo guardava uma in-
clinação para culposas brincadeiras com o pai é dar-se o direito de
paJ1ir de um efeito para .. remontar" à causa. E considerar esta causa
como o conseqüente de um antecedente, vale dizer, de um complexo
de Édipo, então descrito como dotado de valor universal e necessário,
é conduzir a causa a um princípio primeiro que é inobservável e
.1!2

ipexpüc.áv~1 . mas cujo · processamento . é -a firmado como , oecessário


para e~plicar os dados observ.ados.2
:Qs, princípios de. f!JncionaméQtol do.~lho psiq~Jico- de •Freu.d,
bem corno o complexo de 'Édipo, que à ·maneira de um .~squema
delermina as. modalidades de su.a·ef4~ção, são objetos Qe. ~ns.amento
:ima.leriais.-e, iuob~rv~~i.s - .. de.-modo-. n.ão~mediato - na-experiênçi.a
semív~l. ;EJes .s.ão as determi~ · últimas ~uele Ente .SUfPremo
.que.é. o;Inconsciente•.QU .seja, daq!lela:instância que,encerra o. priacfpio
ae
de,inteligibilid.illie émpossíveJ, ~. atingido a: partir de detenninado
d®o. ,Esta: pesquisa .se identifica._com .certo -propósito - ~~lógiro
. que . está :centr!idO em tomo .da .de.$coberta dos .princfpiOS -.e .~
últimas do obsen-áveL .Freud ~for:ça« _por . desvendar .aquilo ~qu.e
. torna inteligíveis .o .discurso .e.o .comportamento .enqu.aoto eges #o
devir. Procurando tr~nder o observ.ivel,.eJe.se sil03;~rfeitamente
numa·linha de .pens.arnento _que ~ é ouJra .coisa .senão Mewisica..
Este.declarado adv.ersário da ftlosofta. ·muito depteSsa vi.sou.o
Ente que é . objeto de suas in~gações através de . uma ·totalid:.ide,
dando, -assim, _uma ilusão de estar filosofando. .Já observamos . que
Freud não ,podia contentar-se de -~guir uma _perspectiva de5critiva
sem procurar nela uma inteoçio e~plicati.va. Nisso, não· fazia mais do
que retomar um aotigo proce.dimento, bO(ada.mente o de .l>e$eartes
.que, depois de ter enunciado a lei da réfraçio estabeleceodo - re~
.entre os fenômeDO$, iria afinnar qQe e:scaJéi implicava uma concq)Çio
l1ltima da-matéria de cujo derradeiro _est.igio se . ~ a' luz a :uma
velocidade ;infinita. 'É para um- ~lP . IW"Cido .qu.e ·tende
irresistivelmente Freud quaado, a :panir de suas ~ - élmic:as,
ten~ esta.beleçer & existência de -uma·.. biafra'' ~ -o . ~te
e o .Inconsciente, procurando, dessa ·fonua. .apmmdcf .as ,primeiras
descrições. dos $intomas.~. fazer o esboço. ele uma peapec:liva.-es~n~IUral
da vida psiqui~.
'Esta tentativa ·rre.tiana que ~ica. cmcontrar -S.Ua;féituta -numa
radical separação - ~ o •Coosci.eolle e o '~te - :apóia.._
na existêPcia de uma plunlict.le de sujeitos. !Tomemos ~~lordo
caso ..Dora" . •Doca esú cooveocid.a ..c:Je que,scu ·Eu é aqqeie{que .diz
....__e diz as-i mesmo- que. dejamljs -fui :~'por tteU:PJlÍ .ou
pelo $(. :K. ou pela SOL 'K. lÊ este :au que .futadanata .o .d~
apoflnti.co de 'Dora. ·Mas:Frcud assevcr.a que existe.um ~ l'Eu~que
ele considera conao o ·Eu autêntico 4e Dora. ·Ma cn1io o ·.~ue · tcrie
sucedido com o "como" da ~-~.es-=s doislEu?'Panl.e.q~
a problemática, Frc:;ud xá JeVI!dQ, _. , ~ele seas·tcxtos. aliiOdifi.c<ar'
. ~onstaQtemente o determinante último-do· recalcado, a .passar da:pri·
rneir~ p.ara:a s~gunda t6pica, depois de introduzir ,a hipótese.das polsões
de: morre. :·-Mas jama.i s chegará a.for~r--. uma ·boa; re.wost.a. i\ partir
de •.uma ~tp~Stão .tio _e feito - o ; di~urso . de -suaJ),aciente -!freud
esforçou,.se.por .atingir. o conbecimento r da ,oausa .Jlas · ~resentaÇ'QeS
coos.e~tes , aq_ue~;t causa. q&le , oove, i por:ptinéipio, .:6tc;apar ;à •. orliem
(la conselêocia.: 'Or:a.- La~ pro.cetlimento s·ó pode.coocbnir.a dus!t.soht~(je.s.
·Com. efeito,,ou só. conhecemos-da, causa aquilo que:foi;percebido do
efeito-............wmur.a-que Spinoza={ez.alDe110artes ·.ao. etitioar;a -.su'ficiênei.a
,da1irJéia dara_e.distinra -.3 e o reeonb«imento oo teoria; psicanalíti-ca
de um .tal !método -equivale a .admitir .que o ílnconseiente difere -da
-consciência apenas por sua denomimtÇão. ou cnl>ão,.se quisennos atil)gir
uma ..caus.a-que.-encerre outra cois.a,que . não ·.sçjam . as,à~tennirutções
. do.efeito, vamos:ter. de introdu-z ir elementos.que·não-s:ão-'Wreensíveis
. na .esfera . dos .dados, o -que, ' no caso, -sig11ifiea -Wr , do terreno . da
experiêQcia.
-Apesar de,~w sempre. proclamando,que -seus·procedímentos se
referem.:cxélusiv a mente à·faetualidade, ·Freud.- :pela:maneira:mesmo
-.como ·a tua .- dá prQv.as de ter:pen;ebido -a ·necessidade-.de dispor,de
.uma armadura conceitual ·qu~: sua;fonnação . médica:11ão pQderia ifor-
necer~lbe. ;Ele conwreendeu-que, para-passar da obs~rvação, clíni<:a: -à
elabor.ação , de . uma . ~iência dos ·fenômenos ·humanos, -seria •preci$0
.dispor de um sistemajá constrúído e.$uacetíveldedar. a .$CUS enunciados
o .a}can~ r ~o. -sem . dúvid.a, -. de~e · ter ~tido ,que -.era r ne­
.ceS$átio!para-sua.ciência um ;fundamento:que:lbe;pennitisse. atif!.gi-r:o
.ente .em ~ua · totalidade . e, q~Wti:io -aÇRditQu ; ~úHlo, . in'(~ou :a :au­
. toridade.de. um~ integral.,_Contudo,tele ·não--estava,_em..condições
.de;~preeuder: MlatutelAl-. dcste'fundamcmto,,daqu~lefEntes primeiro,que
. dc.wrobriu :nas ·obras .de , um .·ScbQPCttlwlcr ;nas.quais 1percebera 'uma.
aftnidade.com.:as ,~as •pte~upaçOe.s .
:A ;lôitura ..dos :textos .do ,filósofo .de rFrankfurt - :ainda·que $.e
tratando . d.e -um ·filósofo - :nip ~tinha .PQI' que ,causarflhe .aversão.
Neles, lft'CUd .encontrava termos ;muitas vezes -$Cmelbantes, ·.quando
·não .idênticos, aos de seu .próprio .u-sQ, tais.como .aquélas ·referências
ao ··.coqx>·~ . ao ·~Cére~" ; tão:fteqii.entes em·O,muni/o como vontade
- ~ como:r~pr-euntação. - E sobretudo iria. lá,:descObrir uma conceituação
.que,derivava.da-existência de .uma .substância..~uja: natur.eza. transccn-
·dente,..sem dúvida, :lbe e~va, mas cu~ detertnin.lções,.de algum
.ftlQdo, !lhe ·lembrava aquele álgo-.de ·~amotfó" -que júJgava:adivinhar
~por - trás .da apa!êtlcia.c:ontraditória dos sintomas, :bem como por·trás
154 o sono dogmático de Freuá

do necessário esforço do psicoterapeuta. Este obstáculo pareceu-lhe,


certamente, dissimular e, ao mesmo tempo, tornar finalmente obser-
vável- pelo menos tinha essa ilusão- uma causa última desprovida
de qualquer ordem e capaz de explicar quase mecanicamente o sur-
gimento dos elementos contraditórios e coexistentes que são os pro-
pósitos e comportamentos. Freud acreditou desvendar, na própria es-
trutura daquele Ente, a causa destas descontinuidades nas quais não
cessará de esbarrar em sua prática. Pois, nas premissas de sua elabo-
ração, eram justamente essas rupturas na ordem de um discurso -
aliás, coerente- que lhe haviam atraído a atenção. A aposta de Freud
consistiu, em suma, em privilegiar esta esfera da desordem que até
então fora mantida a distância.
Desta desordem, o psicanalista fez o fundamento de uma repre-
sentação que, mesmo quando é tida como ordenada, não o é senão
na aparência, já que esta ordem é secundária em relação à Desordem
inicial do Inconsciente. E, ao longo de toda sua obra, Freud irá de-
senvolver uma sucessão e uma diversidade que verá como absolutas,
uma vez hipostasiadas na realização da idéia de um Ser supremo que
é, em última análise, puro caos. Mas é justamente por ser Caos que
este Ser supremo lhe parecerá apto a explicar toda a sucessão e toda
a diversidade na esfera fenomenal.
Tal procedimento comprometeu seriamente o trabalho de Freud.
Ele não se deu conta de que esta atitude racional iria conduzi-lo a
um relativismo que era contraditório com seu projeto de estabelecer
uma verdadeira ciência. Sobretudo, a partir da metapsicologia - por-
tanto, da influência crescente de Schopenhauer - ele se vê no papel
de um monarca absoluto que ignorasse estar constantemente referin-
do-se a textos enaltecedores da anarquia. Neste sentido, pode·se falar
de um "sono dogmático" de Freud, parodiando aquela crítica que
Kant dirigiu a si próprio quando percebeu o conteúdo veiculado pelo
Jeibniziano-wolfismo que ele ensinava. Mas Kant sabia que dormia,
ao passo que Freud nunca disso se apercebeu.

NOTAS

l. Oranger, G.-0., Pensie fonnelle el sciences de J'homme, Paris, Aubier, 1967,


p.7.
conclwão 155

2. Freud não percebe que o Édipo somente pode pretender a condição de uma
explicação hipotética. Logo de início, ele o considera real. enquanto esca hipótese
não tem, a priori, qualquer alcance senão, por exemplo, o de explicar - como
antigamente se fazia - os fenômenos da visão, ou seja, o éler. Em sua obra
Teoria física, P. Duhem mostra perfeitamente a possibilidade de uma tal confusão:
"Muitas das audaciosas explorações que enonnemente contribuíram para o pro-
gresso da geografia são devidas a aventureiros que procuravam o país do ouro;
isto não é razão para fazer figurar o Eldorado nos mapa-múndi." (Dubem P.: La
théorie physique, 2.a ed., Paris, Vrin, 1981, p.42.)
3. Spinoza, B. de, Traité de la réjonne de l'entendement, trad. A. Koyré, Paris,
§19 e nota, §21 e nota.

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