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Pesquisas sobre

família e infância
no mundo contemporâneo

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Conselho editorial
Alex Primo – UFRGS
Álvaro Nunes Larangeira – UTP
André Parente – UFRJ
Carla Rodrigues – PUC-Rio
Ciro Marcondes Filho – USP
Cristiane Freitas Gutfreind – PUCRS
Edgard de Assis Carvalho – PUC-SP
Erick Felinto – UERJ
Francisco Rüdiger – PUCRS
Giovana Scareli – UFSJ
J. Roberto Whitaker Penteado – ESPM
João Freire Filho – UFRJ
Juremir Machado da Silva – PUCRS
Marcelo Rubin de Lima – UFRGS
Maria Immacolata Vassallo de Lopes – USP
Michel Maffesoli – Paris V
Muniz Sodré – UFRJ
Philippe Joron – Montpellier III
Pierre le Quéau – Grenoble
Renato Janine Ribeiro – USP
Rose de Melo Rocha – ESPM
Sandra Mara Corazza – UFRGS
Sara Viola Rodrigues – UFRGS
Tania Mara Galli Fonseca – UFRGS
Vicente Molina Neto – UFRGS

Apoio:

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Pesquisas sobre
família e infância
no mundo contemporâneo

Organizadoras
Claudia Fonseca
Chantal Medaets
Fernanda Bittencourt Ribeiro

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Copyright © Autores, 2018

Capa: Cléo Magueta, sobre arte de Lucas Richter; desenhos de Vinícius Fragoso
Projeto gráfico e editoração: Vânia Möller
Revisão: Vânia Möller
Revisão gráfica: Rafael Heidt Martins Trombetta

Editor: Luis Antônio Paim Gomes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP


Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza – CRB 10/960

P474
Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo /
organizado por Claudia Fonseca, Chantal Medaets e
Fernanda Bittencourt Ribeiro. -- Porto Alegre: Sulina, 2018.
246 p.; 23 cm.

ISBN: 978-85-205-0827-5

1. Antropologia Social. 2. Antropologia da Família. 3. Infância.


4. Ciências Sociais. 3. Família. 4. Parentesco. I. Fonseca, Claudia. II. Medaets,
Chantal. III. Ribeiro, Fernanda Bittencourt.

CDU: 316
572.3
CDD: 306.85
570

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Meridional Ltda.
Rua Leopoldo Bier, 644, 4° andar – Santana
CEP: 90620-100 Porto Alegre-RS

Tel: (0xx51) 3311-4082


www.editorasulina.com.br
e-mail: sulina@editorasulina.com.br
{Setembro/2018}
IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL

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Sumário
7 Prefácio
Claudia Fonseca, Chantal Medaets e Fernanda Bittencourt Ribeiro
Parte I: Imagens de crianças, infâncias e famílias
23 Os limites do conceito de família na Itália: processos de kinning e de-kinning
em configurações familiares homoparentais
Alice Sophie Sarcinelli
41 O nome da lei: violências, proteções e diferenciação social de crianças
Fernanda Bittencourt Ribeiro
66 Concepções de infância, vulnerabilidade e ética na pesquisa com crianças
Renata Lopes Costa Prado e Marcos Cezar de Freitas
85 A fabricação estatal da indiferença parental: agruras da reintegração familiar
Claudia Fonseca
Parte II: Participação política de crianças e jovens
109 Entre la tutela y la represión: nociones sobre la infancia y la identidad
mapuche ante la participación política infantil en Neuquén, Argentina
Andrea Szulc
130 “De cabeça e com o coração”: o fazer política de jovens ocupantes das escolas
estaduais de Porto Alegre (maio e junho 2016)
Chantal Medaets, Nadège Mézié e Isabel Carvalho
153 Infancias en debate: las experiencias infantiles durante la última dictadura
argentina
Valeria Llobet
Parte III: Modos de cuidado: estado, comunidade, família
173 A negação e a invenção da infância: mudanças geracionais a partir do
Programa Bolsa Família
Flávia Pires e Patrícia Oliveira Santana dos Santos
197 Sentidos y prácticas sobre el cuidado infantil en ámbitos estatales de
atención de la salud en el partido de La Plata, Argentina
María Adelaida Colangelo
215 “Mães nervosas”: um ensaio sobre a raiva entre mulheres populares
Camila Fernandes
232 Trabajo infantil en clave de cuidado: explorando un modo de análisis
Laura Frasco Zuker

241 Sobre os autores

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“Mães nervosas”: um ensaio sobre a raiva
entre mulheres populares
_________________________________________________________
Camila Fernandes

Este capítulo parte de uma discussão elaborada na minha tese de


doutorado, na qual realizei uma etnografia junto a mulheres moradoras
de um complexo de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro (Morros
da Mineira e São Carlos).1 Durante o trabalho de campo, em meus
primeiros deslocamentos pelas creches, casas de mulheres que “tomam
conta”, grupos de amigos e gestores de programas sociais havia falas
constantemente reiteradas, não apenas nas instituições, mas também
pelos moradores, de que os serviços públicos, os programas sociais
e as políticas de estado “não funcionam bem”, porque afinal, “essas
mulheres transam muito e não param de fazer filhos”. Segundo
muitos dos discursos que ouvi, as mulheres “dão pra qualquer um”,
“têm filhos de forma inconsequente”, “não planejam a gravidez” e
colaboram dessa maneira para gerar uma demanda excedente e de
atendimento impossível: “é por isso que tem muita criança, muita
gente pra atender e o estado não tem como dar conta”, como algumas
falas enfatizavam.
Outra variação dessas afirmações aponta que “as mulheres da fa-
vela transam muito” e “têm muitos filhos sem prevenção”, uma vez que
no morro, “tem muita gente pra cuidar”. Ouve-se ainda que “quan-
to mais ajuda, programa social, mais incentivo a fazer filhos”, e nesse

1
A tese realizada no PPGAS/MN/UFRJ foi intitulada: “Figuras da causação: sexualidade
feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas politicas de estado” e orientada pela
professora Adriana de Resende Barreto Vianna.

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sentido, maiores seriam os estímulos a uma sexualidade intensiva das
mulheres. O condensador exemplar desse pensamento é o programa
Bolsa Família, apontado como o maior responsável pela sexualidade
livre e como um incentivo a “fazer filhos”.
Sobre esse fundo discursivo, foram-me apresentadas a exempli-
ficação dessas “verdades”. O que eu deveria enxergar é que essas afir-
mações perambulavam incorporadas em algumas mulheres apontadas
como exemplares de um comportamento desviante, que eu comecei
a chamar de "figuras da causação" (Fernandes, 2017). Esta categoria
surgiu a partir da compreensão de que determinadas mulheres são en-
quadradas (Goffman, 2012) como figuras paradoxais do cuidado, per-
sonagens de escrutínio e perturbadoras do cotidiano. De maneira geral,
essas falas e afirmações reúnem acusações sobre mulheres representan-
tes de uma sexualidade considerada errada e lasciva.
Neste artigo, proponho pensar sobre uma destas figuras, a saber,
as mulheres apontadas como “nervosas” e “agressivas” no trato com
seus filhos.2 Nas narrativas populares e das “administrações de estado”
(Lima; Teixeira, 2010), a sexualidade errada seria a gênese do proble-
ma das mães más, uma vez que tais mulheres engravidaram “sem que-
rer”, tiveram filhos “sem planejar” e, logo, “não desejaram” seus filhos.
A fabricação de “filhos demais” seria uma das explicações para o “ner-
voso” e a “falta de paciência” de determinadas mulheres. Em muitos
casos, segundo tais narrativas, haveria também uma rejeição latente
das crianças. O caráter da reprodução biológica, junto à marcação
simbólica de elementos como sexo, desejo, ventre, útero, procriação,
cuidado, afeto, vida e morte virtualizam a “reprodução social” de um
mundo feminino que gera e que deveria cuidar dos seus, tanto de seu
corpo físico, como de suas relações.

2
Na tese discuto as representações sobre outras “figuras da causação”, as “novinhas” e as “mães
abandonantes” (2017).

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A percepção dos profissionais sobre a chamada
“violência” feminina
O termo “mãe violenta” ou “agressiva” é usado em diversos mo-
mentos para se referir a determinadas mulheres: “sabe o que me chama
atenção? É que elas não se percebem como violentas, elas humilham
o filho na nossa frente, gritam, batem, é assim!”, comenta estupefata
uma psicóloga da Clínica da Família. Na creche que acompanhei, os
“problemas” apresentados por algumas crianças são enunciados como
resultado da ação ou da inação de suas mães: “ela é seca, ela não dá
amor”, falam da mãe de um menino considerado “agressivo”. “Ela não
liga pros filhos”, falam da mãe de uma menina considerada “pra frente”
e “sexualizada”. “Ela nem abre a mochila da criança”, falam da mãe de
uma criança que está com alergias. “Isso é falta de mãe. Aquele que
ficou com ela, você percebe o suporte que ele teve; mas o que ficou sem
a mãe, você percebe a desestrutura”, falam sobre uma criança que mora
somente com o pai.
Durante um tempo, ouvi reiteradamente essas e outras frases di-
tas por profissionais de escolas, creches e unidades de saúde. Seja pela
inação, ou pelo excesso de ação, de um jeito ou de outro é esse agir que
será evocado para explicar diversos tipos de desordens ou problemas
relacionais das crianças, da “política” e do território.
Não é de hoje que o “nervoso” é um componente central nas clas-
ses populares. Este fato foi analisado por Luiz Fernando Dias Duarte
(1998), quando mostra a forma como “a linguagem do nervoso” cons-
titui um código moral no qual diferentes “perturbações”, exigências e
dimensões da vida dos trabalhadores estão profundamente intricadas.
Em seu livro Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas, Duarte
mostra como a “mãe” é associada às “perturbações físico-morais” que
as crianças manifestam. Nessa perspectiva, o “nervoso infantil” deriva
de uma série de fatores, tais como a exposição a “pancadas” e “surras”, a
morte de um dos familiares ou o afastamento da criança da mãe, “seja
quando abandona a unidade doméstica, seja quando a criança é confia-
da ou doada a outra família do mesmo espaço social ou entregue como

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empregada muito cedo a famílias bem de vida” (1988, p. 185). O autor
mostra que o “afastamento da figura paterna” é assunto menos tema-
tizado como fonte de “perturbação físico moral”, até porque “a mãe é
obrigada a assumir, nolens volens, os encargos da reprodução ampla da
casa” (1988, p. 185). Nesse sentido, veremos de que maneira as indica-
ções preciosas feitas por Duarte persistem no contexto analisado.
Por outro lado, entendo que essa “proliferação de discursos”
(Foucault, 2008) que radicam na maternidade a fonte precípua de
problemas sociais, não é algo novo e constituiu a preocupação de muitos
especialistas desde o século XIX. Elizabeth Badinter (1985) atenta para
a forma como “o discurso psicanalítico contribuiu muito para tornar a
mãe o personagem central da família” (1985, p. 295). Badinter analisa
a divulgação das ideias psicanalíticas que se espalharam no contexto
europeu e chama atenção para o sucesso dos primeiros “vulgarizadores”
da psicanálise e seu impacto no imaginário, na mídia e na política,
sobretudo na prática das famílias com seus filhos.
Alguns conceitos foram muito ricos na propagação de certo tipo
ideal da “mulher normal”. Lembremos apenas das críticas a universa-
lização do complexo de Édipo, a famosa inveja feminina do pênis e
a necessária troca do falo pelo filho como condição de superação do
complexo e estabelecimento de uma mulher sana. Cabe lembrar das
considerações sobre a “histeria” e o “trauma” analisados inicialmente a
partir da escuta de mulheres, que permitiram ao psicanalista Sigmund
Freud estabelecer as bases para uma teoria da sexualidade; a necessi-
dade de uma “mãe suficientemente boa” na produção de sujeitos sau-
dáveis, segundo o pediatra e psicanalista Donald Winnicott; ou ainda
a importância do “Nome do Pai” na comunicação e na linguagem (na
distinção fundamental entre neurose e psicose), segundo as considera-
ções de Jaques Lacan.
Aqui, não se trata de invalidar conceitos forjados em determi-
nados contextos históricos, ou questionar o caráter produtivo de tais
ideias, mas apenas lembrar que, como destacam Badinter (1985), Rubin
(1986) ou Foucault (2008), o discurso científico, em muitos casos, se
fez atrelado a um discurso moral sobre a normalização de um compor-

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tamento feminino.3 As ideias de agressividade, “desapego materno” e
desejo sexual foram tratadas muitas vezes de forma patológica e nor-
mativa, e tais imagens ainda podem ser encontradas tanto no discurso
popular, como nas administrações de estado.

A percepção das mulheres apontadas como “nervosas”

Diante desse campo discursivo profundamente ativo nas relações


cotidianas, resolvi levar a sério tais discursos e fui atrás das chama-
das mulheres más, “ruins” e “agressivas”, buscando ouvi-las sobre esta
chamada “violência”. Aos poucos, entendi que essa percepção é muito
variável, e cada situação oferece uma significação distinta. Inicialmente,
chamou minha atenção o fato de que as mulheres tratavam do tema da
“violência” a partir do riso e da comicidade. Muitas contavam, rindo,
sobre as surras dadas nos filhos, lembrando das cenas nas quais batiam
e narrando os mil e um motivos e porquês. Debochavam de possíveis
recriminações, das injunções a “não bater” nos filhos ou a não aplicar
castigos corporais nas crianças. Viam a existência de uma “lei da pal-
mada” como algo distante da realidade, e que ao mesmo tempo, em
alguns casos, o conselho tutelar poderia ser mencionado. Para algumas,
bater era imprescindível, afirmavam assim o caráter positivo e neces-
sário desses gestos, “se a gente não educar em casa, quem vai educar
amanhã? Vai tá aí apanhando de polícia, apanhando de bandido. Essa
lei é maluca. E vai tá batendo na gente”.
Ao mesmo tempo, isso não significa dizer que entre as mulhe-
res toda e qualquer “violência” seja aceita ou motivo de chacota. Nas
interações entre as mulheres existem muitos debates sobre as formas
corretas, boas e ruins de se tratar as crianças. Dentro desse campo de
formas, existem escalas daquilo que pode ser realizado ou não, daquilo

3
No Brasil, ver também os trabalhos de Marta de Luna Freire (2008) e Dagmar Meyer (2005),
que mostram como a maternidade se constituiu como fonte de preocupação política nas últi-
mas décadas.

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que transita entre o necessário, o justificável e o abuso. “Nós somos
contra a lei, a gente não é a favor de espancar, mas uma palmada edu-
cativa não faz mal, não. Nós crescemos com essas palmadas e isso faz
bem pra nossa formação”.
Outro marcador que ouvi diversas vezes é a sentença: “Bater é
diferente de espancar”. Essa distinção entre “bater e espancar” pode ser
entendida a partir de considerações antropológicas e filosóficas sobre
as diferenças entre a raiva e o ódio que pretendo elaborar mais adiante.
Nas conversas, entendi que a chamada “agressividade”, que pode ser
compreendida como parte do domínio da raiva, pode se expressar de
diversas maneiras, não sendo um bloco monolítico de sentimentos.4 Ao
presenciar diversos tipos de expressão dessa “raiva”, seja na presença
de cenas de batida, ou a partir da escuta das surras narradas, a imagem
que me vinha na cabeça era a de uma paleta de cores. Numa paleta
existem diversas variações e gradações de coloração, de modo que
existem muitas opções para se exprimir a tonalidade da cor desejada.
Foi a partir dessa imagem que eu comecei a entender essa chamada
raiva, a partir das inúmeras manifestações variadas, que cintilavam
cores-emoções diversas.
Pequenos deboches proferidos de maneira comum às crianças,
“olha só a cara dela de Trakinas, olha só esse cocô!5”, batidas vindas
do nada apenas para chamar atenção, gritos de alerta, objetos lançados
durante algum momento de tensão, apertões, chacoalhadas, ameaças
de castigos ou de morte ao atender a chamada de um filho no telefo-
ne, tais como, “deixa eu ver o que essa criança quer, eu vou matar essa
criança”. No diálogo, as frases continuam, “fala logo, é o quê que é? Eu
já falei pra você ficar em casa, se eu te ver na rua eu vou te espancar, vou

4
Duarte também chama a atenção para a variedade dos fenômenos “negativos”, ja Aurel Kolnai
(2013) enfatiza que o amor e sentimentos positivos são descritos na literatura com maiores
nuances do que o ódio. Segundo este autor, existe uma dificuldade de classificação e de oferecer
descrições com gradações para o ódio: "Esta divergência que acabamos de mencionar se faz
mais visível quando vemos a multiplicidade muito mais ampla das formas de amor. Falam de
amor benevolente, amor concupiscentia e, amor intelectual; mais jamais se tem acometido uma
classificação correspondente para o ódio”.
5
Trakinas é o nome de um biscoito recheado.

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te quebrar todinho”. Essas falas e esses gestos, as cores do sentimento,
se distribuem de forma diferente, e de modo algum podem ser vistos
como algo correspondente a níveis graduais. Quero dizer que, da forma
como entendi, tem mãe que “só bate”, tem mãe que “só xinga”, tem mãe
“que espanca”, e, sem correr o risco de ser óbvia, a imensa maioria das
mulheres não “agridem” os seus filhos.6
Junto às mulheres “que batem”, comecei a perguntar sobre os mo-
tivos que levavam a tais situações, o que provocava essas ações, e como
elas se sentiam. Elas diziam que era um sentimento que não sabiam
como explicar: “Camila, eu não sei te explicar, ela só vem”. Falavam
também que muitas vezes elas eram, “sozinha para tudo”, “é tudo em
cima de mim”. Uma pequena minoria dizia sentir-se culpada, enquanto
a maioria das mulheres afirmava não sentir culpa, nem remorso. Uma
das mulheres certo dia disse que, “bater é melhor sem ter culpa. Se for
pra bater com culpa, melhor não bater”.
Em muitos casos, aquele riso ao qual me referi dava lugar à raiva.
Elas falavam de uma raiva que sobe até a cabeça, que faz “ficar cega”.
Contavam de uma raiva que vinha de repente, e que as dominava, fa-
zendo com que elas não aguentassem e explodissem. As batidas irrom-
piam como expressão desse crescente de emoções contidas, silenciosas,
escondidas ou de difícil nomeação.
Ao mesmo tempo, em algumas situações, bater fazia parte de uma
rotina, algo que se faz num gesto ritualizado, tais quais as “cenas” ana-
lisadas por Maria Filomena Gregori (1993). Numa dessas cenas nar-
radas, Mara (35 anos, mãe de Pedro, de 8 anos) descreve como se dão
estes momentos:

[...] Eu estava em casa, pedindo pra ele parar de atazanar. Eu pedi


três vezes, e ele não parava de pular no sofá, já tinha derrubado
o suco. Na quarta vez eu só virei e joguei o que estava na minha

6
Diaz-Benítez (2015) chama atenção também para “a linguagem do excesso, como uma das
principais chaves na produção da humilhação”, a partir dessa chave podemos entender o uso
de diversos xingamentos e ameaças, “vou te quebrar”, “vou colar sua língua na frigideira”, “vou
torcer seu pescoço”.

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frente, joguei aquela caixa de ovo de geladeira e bateu na cabeça
dele. Nossa, ele abriu o berreiro. Mas gente, eu faço o quê? Eu faço
isso mesmo.

Essas cenas falam de momentos nos quais são evocadas “imagens


que desempenham papéis” (Gregori, 1993, p. 164), seja de feminilida-
de, maternidade, infância, criança, autoridade, obediência, transgres-
são, abuso e desigualdade, que são explicitamente colocadas em ação.
Gregori descreve como as “cenas de briga” vão além do “motivo da bri-
ga” em si, e trabalha a ideia de “atos de linguagem”, num universo feito
de réplicas que somam-se umas às outras, expõem conteúdos enuncia-
tivos, emitem sentidos e significados particulares sobre tais relações.
O uso de violências ou de qualificativos depreciativos funcio-
nariam, então, como uma linguagem, rica para comunicar sobre algo
mais profundo correspondente a outra série de questões. Nesse sentido,
como Gregori define, “a agressão funciona como uma espécie de ato de
comunicação, no qual diferentes matizes podem estar atuando” (1993,
p. 166). É sobre essas diferentes matizes que podemos relacionar a série
de questões que as violências encobrem e que são de difíceis nomeação.
A paleta de cores e seu degradê ganham densidade.
Em um sentido próximo, nos sets de “pornô de humilhação” ana-
lisados por Maria Elvira Díaz-Benítez (2015), a autora afirma que a
diferença de tamanho entre as pessoas, dominador e dominada, visa
evidenciar um claro desequilíbrio das forças. Chama atenção que uma
das cenas mais celebradas no pornô de humilhação sejam as de mãe e
filha, em que o par dominador/escravo é encenado por mulheres nessa
disposição, “o mais importante neste tipo de cena é que as pessoas se-
jam verdadeiramente família, e que o sexo seja agressivo para passar a
ideia de que o nojo e a humilhação da escrava são reais”(2015, p. 69).
Como analisa Díaz-Benítez, a produção da humilhação e da violência
é um tensor libidinal fundamental para o sucesso da cena e seu efeito
de realidade. A autora abre espaço para pensar que a “fissura”, conceito
forjado em sua análise:

222

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[...] não é exclusiva nem do repertório sexual, nem do universo
comercial da sexualidade. É possível pensá-la em função de outras
relações sociais (pais e filhos, por exemplo); e quanto aos afetos,
crenças e atos sobre infringir dor e sofrimento entre os pares de um
casal pelo fato de serem observadas como características inerentes
ao amor (2015, p. 79).

É evidente que no contexto que analiso, esse desequilíbrio está


exposto frontalmente nas cenas cotidianas, na vida real. O desequilíbrio
inerente dessas forças é um dos fatores de flagrante desigualdade, e seu
maior ponto de injustificável e intolerável se encontra justamente nessa
condição assimétrica e radical.
Creio que tal como as atrizes do pornô de humilhação, as mu-
lheres mães “sabem que certos atos causarão dor” (2015, p. 71). Dessa
forma, “saber bater” é condição fundamental para não produzir a cha-
mada fissura, “aquele instante e espaço que nas práticas de humilhação
se transpassa do consentimento ao abuso” (2015, p. 78). No entanto,
assim como nos sets, embora as mulheres não intentem causar danos
maiores às crianças como sequelas, cortes, perfurações ou coisas do tipo,
as agressões podem produzir situações abusivas ou violentas.
Lembro que um dos primeiros lugares que frequentei na pesqui-
sa foi uma extinta biblioteca que ficava no alto do São Carlos, que
havia sido implementada por uma empresa e era um lugar de encon-
tros de adolescentes e crianças.7 Lá, conheci Luan, um adolescente de
13 anos, muito articulado e falante. Uma das primeiras falas sobre a
intensidade das surras e palmadas veio dele, numa conversa ocasio-
nal. Eu estava conversando sobre “batidas” com outras duas mulheres
adultas quando ele interrompe a conversa e fala: “A minha mãe me

7
A biblioteca foi extinta devido aos confrontos policiais no território. O espaço se situava numa
das ruas principais da comunidade. A empresa avaliou que a “situação de risco” era motivo para
suspender as ações do projeto. Isso mostra como a violência institucional de estado influencia
na mobilidade vivenciada no território. Um lugar fundamental de encontros, empregabilidade,
lazer, estudo e formação foi interditado a partir de uma operação especial do BOPE (Batalhão
de Operações Policiais Especiais).

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bate bem”, eu viro para ele e pergunto, “como assim?”. Nesse momento,
Luan pega a minha mão e alisa uma parte da sua perna. No lugar em
que toco sua pele, sinto uma camada mais fina, e ele continua, “isso
aqui ó, ela deu com um pedaço de madeira”. Impressionada, pergunto o
que havia acontecido para sua mãe lhe bater desta forma, e ele explica:

Eu fui falar com uma garota que achava que eu tinha falado mal
dela, fui lá na casa dela, bati no portão, “oh coisinha, você está
achando que eu falei mal de você? Eu não falei não”. Daí essa me-
nina agarrou no meu pescoço e apertou. E ela é adulta tia, quando
eu contei pra minha mãe o que ela tinha feito, minha mãe fez isto.

Ao contar determinada cena, Luan desencadeia uma espécie de


gatilho para falar de outras situações e conta de outra vez que apanhou
da mãe com um cinto:

Eu estava em casa e só tinha um biscoito e minha irmã pegou, eu


fui pegar dela e a gente começou a brigar, sendo que minha mãe
já tinha falado que não queria que a gente brigasse mais. Ela nem
esperou, e vapo (barulho do cinto), aqui ó tia, mostra uma cicatriz
entre o olho esquerdo e a sobrancelha.

Ao presenciar meu estado de perplexidade, Luan finaliza, “É tia,


minha mãe é ruim...”. Após recuperar o raciocínio, pergunto a Luan
como ele se sentia diante das surras e o menino responde:

O que eu sinto? Eu sinto dor, e uma coisa aqui dentro (bota a


mão no coração com as mãos fechadas), uma angústia, uma revolta,
de porque eu ainda tenho que passar por isso, tia? Ainda mais na
frente dos outros, essa humilhação que ela me faz passar! Quando
ela faz isso eu tenho vontade de sair de casa, ir pra casa do meu
padrinho, eu só não vou por causa da minha vó, minha vó é doente,
ela tem ácido púrico, sabe? Têm dias que as pernas dela ficam in-
chadas e ela não pode fazer nada. E eu ajudo ela. Só por causa dela,
que eu tenho que ajudar minha avó, eu não vou.

224

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Assim, é certo afirmar que cenas vividas no interior de famílias
feitas de xingamentos e surras, em algumas situações, se forjam como
espaços de produção da humilhação e violência. Essa produção da hu-
milhação é feita em gestos, ora episódicos ora ritualizados, e podem
invariavelmente se constituir em momentos de fruição da raiva e agres-
sividade. A situação vivida por Luan é uma das situações que falam
do abuso e da fissura, podemos dizer que aqui há uma nítida ultrapas-
sagem da palmadinha para a surra, do controle para o descontrole, da
“raiva” para a “agressão”.
Diante desse campo múltiplo de sentimentos e suas expressões,
é certo afirmar que tais agressões podem marcar, e se fazem antes de
qualquer coisa na pele dos sujeitos que apanham. Podemos dizer que
esses gestos fazem parte de uma superfície, de algo que não apenas é
sentido na pele, na forma do nervoso das mães, mas se faz também
na pele das crianças, a partir das batidas que recebem. Sendo a pele
uma das camadas mais superficiais e expostas à agressão, caberia pensar
mais adentro, embaixo da derme, sobre os motivos que levam às cha-
madas explosões e aos ataques de raiva.
Dessa maneira, pele, superfície, interior, profundidade, cabeça, ex-
plosão, raiva e um mundo de coisas que estão “tudo em cima”, estão
em jogo numa fenomenologia dos corpos e relações.8 Examinar a pro-
fundidade desses sentimentos, além da sua superfície, além da sua pele
e cobertura, demanda um mergulho nesse caos maternal, naquilo que
Nise da Silveira, inspirada nos arquétipos de Jung, chamou de “reino
das mães”. 9

8
Retomo aqui, novamente os achados de Duarte sobre o “afloramento ao nível da pele” (1988,
p. 30), não apenas como algo que aparece nessa superfície, mas como força que tem como alvo
a própria superfície dos outros.
9
O “Reino das Mães” é uma metáfora cunhada por Nise da Silveira a partir das pinturas de
Adelina Gomes, uma das pacientes do Centro Psiquiátrico Nacional do Engenho de Dentro,
no Rio de Janeiro. Segundo as análises da psiquiatra, Adelina, uma moça pobre, viveu uma
relação de intenso apego e repressão com sua mãe, com quem morava no interior do estado e
que censurou a paixão e o envolvimento da filha com um rapaz. Após este episódio, Adelina
se apresentava cada vez mais nervosa, até chegar ao ponto de estrangular sua gata. Este evento
desencadeou sua internação no Centro, onde recebeu o diagnóstico de esquizofrenia e perma-
neceu internada até o fim da sua vida. As pinturas de Adelina são famosas por retratar imagens

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Um mergulho no “Reino das Mães”
É comum que se entenda esses sentimentos na grade da irracio-
nalidade. Mães nervosas seriam, nesse sentido, algo da ordem do inin-
teligível e do intolerável. Em seu “Ensaio sobre o ódio”, Aurel Kolnai
(2013) explica que há no ódio uma função histórica: “o ódio não se
dirige nem a uma essência nem a um enlace causal, mas antes a uma
função histórica”. Maria Claudia Coelho e Claudia Rezende (2010),
chamam atenção para fortes componentes morais da raiva, na qual o
que está em jogo não é somente a “pessoa que sente a raiva mas tam-
bém o conjunto de relações sociais ao seu redor” (2010, p. 39).
Durante o trabalho de campo, acompanhei inúmeras dificuldades
com as quais as mulheres devem lidar. Elas são as principais realiza-
doras do cuidado dos filhos, devem levá-los para a escola, cuidar da
alimentação, e a atenção a questões relacionais e psicológicas são con-
tínuos de tarefas realizadas por elas.
Érika, por exemplo, é uma mãe considerada “violenta” por suas
amigas. Durante a pesquisa, o casarão onde ela morava, uma ocupa-
ção em que muitas mulheres residiam, foi incendiado por um homem
que, ao visitar a sua ex-companheira, raptou a filha e ateou fogo no lo-
cal. Nayara, considerada “violenta” por bater muito nos filhos, trabalha
como faxineira em uma creche, seu primeiro emprego de carteira assi-
nada. Ela luta pela inclusão do nome do pai de uma de suas filhas no
registro de nascimento, posto que esse homem, apesar de acreditar que
a filha é sua, “só quer tirar a dúvida”. Seu outro ex-marido, pai de duas
filhas suas, batia muito nela, motivo que levou à separação. Este mes-
mo homem casou de novo e foi preso por ter esfaqueado e matado a

femininas, tais quais flores, plantas e mulheres. Ao analisar estas pinturas, Nise afirmou que
estas seriam manifestações do inconsciente coletivo a partir de arquétipos. A comunicaçãopor
meio das pinturas e esculturas feitas por Adelina expressa o que é indizível na linguagem fala-
da, remetendo, por sua vez, às informações arquetípicas, relacionadas muitas vezes a situações
de trauma e transformação da subjetividade. Sobre este e outros aspectos da vida de Adelina
Gomes e da trajetória de Nise da Silveira, ver trabalho de Felipe Magaldi (2015). Sobre suas
pinturas, ver o documentário “No reino das mães”, de Leon Hirszman, disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=4ChaFsprUsI>.

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sua outra mulher. Francine, considerada violenta com seus filhos, igual-
mente apanha muito do marido. Esse mesmo rapaz é conhecido por ter
espancado tanto a sua ex-mulher que “deixou ela maluca, hoje ela vive
no pinéu”. A casa de Francine não tem água, e essa falta de água, bem
como de outras mercadorias fundamentais para a produção da vida, faz
parte de uma gestão feminina das responsabilidades e vulnerabilidades.
Portanto, o nervoso e a violência feminina devem ser conside-
rados à luz de condições concretas de vida e de algumas dinâmicas
relacionais que levam mulheres à exaustão. O léxico utilizado no trato
com as crianças, “vou te matar”, “vou te quebrar inteiro”, “infeliz”, entre
outros nominativos destacados, não é muito distinto das formas pelas
quais essas mulheres são tratadas, seja na relação com agentes de estado,
que as ameaçam constantemente, seja com a polícia local.
Essa realidade é aquilo que Nancy Scheper-Hughes (1997) cha-
mou de “pensamento maternal”, uma expressão de Sara Ruddick, para
nomear ações pragmáticas éticas e morais que orientam as práticas.
Aqui, creio que esse “pensamento maternal” opera em duas dimensões.
Na primeira dimensão existe uma lógica segundo a qual é necessá-
rio “bater para evitar o pior”. Apesar das inúmeras fissuras provocadas,
mulheres dizem que sabem o que fazem e afirmam o caráter necessário
e produtivo dessa forma de lidar. Asseveram a necessidade das agres-
sões na chave do controle, da educação e, especialmente, como forma
de evitar o pior. Aqui, há algo do fantasma de uma ameaça contido no
devir da criança, daquilo que pode se tornar caso não seja controlada. O
assombro do “mal que se adivinha”, descortinado por Adriana Vianna
(1999), está presente entre as mulheres.
As mensagens sobre evitar que o pior aconteça são reconhecíveis
em outros vasos comunicadores, os “vulgarizadores”, nos termos
de Badinter (1985). Um muro situado logo na entrada do Morro da
Mineira contém um grafite com a seguinte mensagem: “eduquem as
crianças de hoje, para que amanhã não tenhamos que puni-las”. Ao
lado da frase, vemos o desenho de dois homens. Após um tempo, soube
que se tratava de uma representação dos antigos “donos do morro”,
traficantes que se encontram presos. Em outra conversa com uma

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moradora sobre outro assunto, entendi como esse horizonte do “dar
errado” é algo sedimentado no imaginário da favela. Mães contam com
orgulho dos filhos que viraram “trabalhadores”, que “não são bandidos”.
Contam da criação que elas deram e que no final “deu certo”, já que os
filhos “não deram pra bandido, nem pra traficante, nem pra prostituta”.
Essa dimensão se relaciona diretamente com os discursos que ouvi na
escola que frequentei na pesquisa, que diziam que as novinhas são: “tudo
aprendiz de prostituta”. Desta forma, é certo dizer que parte das brigas
envolvendo mães e filhos está relacionada a evitar que a violência de fora
chegue em casa, e evitar que o filho, em última instância, “dê errado”.
Na segunda dimensão, a criança figura como um canal para des-
contar. Esta dimensão envolve uma dinâmica na qual as crianças são
vistas como responsáveis por uma série de danos, prejuízos e conse-
quências ruins que as mães têm de lidar. Esse pensamento, me pare-
ce, opera na tensão entre consciente e inconsciente, em que o afeto, a
pressão, a raiva e a obrigação de atender ao outro se encontram forte-
mente misturados. Como demonstra Kolnai, “o ódio somente é possí-
vel quando se pode atribuir responsabilidade e consciência ética àquele
que é alvo do ódio” (2013, p. 148). Há, assim, uma inversão estrutural
do paradigma de adultos como responsáveis. É possível afirmar que as
crianças são vistas, ao mesmo tempo, como dotadas de consciência do
que fazem, e consideradas inocentes, sem culpa e sem responsabilidade
pelo que as mães passam.
Lembramos que nas retóricas de estado, crianças podem aparecer
como responsáveis por “coisas ruins”, seja na figura do “menor”, seja nos
impedimentos dos rolezinhos nas praias da Zona Sul, seja quando lidas
como nascidas “fora de hora” e consideradas obstáculo para o bom fun-
cionamento da “política pública”, a partir da falta de vagas na creche,
em hospitais, entre outros serviços. Crianças e adolescentes populares
são vistos como “sementinhas do mal”, o que justifica a presença poli-
cial nas escolas e creches, a fim de conter os “alunos rebeldes”.
Nessa dinâmica do bater e o do apanhar, há algo sobre quem bate
e quem apanha. Para além das agressões nos corpos, quem apanha está
recebendo algo, apanhar é, portanto, reter um conteúdo de alguém. A

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criança é aglutinadora dessas relações assimétricas de desigualdade, ela
é o significante que representa tais relações, ela é o objeto mais dis-
ponível para expressão deste apanhar/descontar. É dessa maneira que
ela recebe uma carga externa e se constitui como um dos canais mais
acessíveis para o escoamento da raiva, num universo no qual se diz às
mulheres, constantemente, que não podem ser agressivas. Ainda que
todos os descasos sejam permitidos, mulheres mães em situação de
exasperação e vulnerabilidade não podem agredir seus filhos.
Crianças, portanto, recebem a carga de acusação na qual mulheres
também estão inseridas. A raiva, dessa maneira, compreende diversos
campos de luta: uma luta histórica de mulheres contra homens, pais
ausentes, violentos e que não comparecem, e uma luta histórica de
mulheres contra o estado, representado em todos esses dispositivos que
viram as costas para elas quando estas precisam. Entretanto, essa luta
sempre tem contornos falhos, ela nunca é precisamente delimitada,
estando sempre borrada e nebulosa. As cores do sentimento são turvas,
se mancham, se apagam e se misturam no cotidiano.
Nesse colorido confuso do “Reino das Mães”, é quase irresistível
apontar a violência praticada pelas famílias como produtora da violên-
cia nas escolas e consequentemente produtora da violência na socieda-
de. Contudo, o “pensamento maternal” das minhas interlocuras nos diz
o contrário: mulheres devem impedir que a violência de fora chegue em
suas casas. Finalizo, assim, com algumas considerações de Audre Lord
(2003) sobre a raiva produzida pelo racismo, quando ela diz:

A resposta das mulheres ao racismo passa por fazer explícita sua


ira, a ira provocada pela exclusão, pelos privilégios estabelecidos,
pelas distinções raciais, pelo silêncio, os maus tratos, a estereoti-
pação, as atitudes defensivas, a estigmatização, a traição e as impo-
sições (2003, p. 44).

Lorde fala da importância de sair do registro da culpa, para assu-


mir a ira como uma forma de “corrigir os defeitos”; alerta também para
a necessidade de se prestar atenção aos “contextos vitais” nos quais as

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mulheres vivem. Essas mulheres que seguem “contendo a duras penas a
ira”, mesmo que outros entendam que a expressão dessa ira seja contra-
producente (2003, p. 45). A autora fala da necessidade de chegar à “raiz
da ira”, essas mil raivas espalhadas pelo “sistema”, que se embrenham
aqui e ali e se acumulam, forjando uma espécie de bomba no interior
nos ventres femininos, em seus corpos “histéricos”, prestes a explodir.
Não é por acaso que elas nos dizem, “aí eu não aguentei”, “aí eu
explodi”. Reconhecer essa ira requer um processo doloroso de tradução
para conseguir enxergar os “verdadeiros inimigos”. A raiva, para Audre
Lorde, está “carregada de informação e energia” (2003, p. 46). Esse en-
tendimento permite suspender momentaneamente um paradigma se-
gundo o qual a “violência das mulheres” é vista unicamente como uma
prática injustificável e que deve ser o quanto antes silenciada, quando
não criminalizada.
O meu convite é, portanto, para atentarmos à necessidade de mer-
gulhar no caos maternal, neste reino das mães, num exercício doloroso
de tradução da raiva. Para Lorde (2003), o ódio e a ira são muitos
distintos, uma vez que os dois não têm os mesmos objetivos, e a fina-
lidade do ódio leva a destruição. Kolnai (2013) também faz distinção
entre raiva e ódio, o que nos ajuda a pensar sobre os alertas que as
mulheres nos dão, sobre como bater é diferente de espancar. Com es-
sas considerações, entendemos que, quando a violência é prontamente
criminalizada, ela é encoberta num manto de culpa. A forma como se
lê esta raiva, é, portanto, por meio do desvio e da produção de estereó-
tipos. Ao final, são essas as “mães nervosas”. Em que medida o apelo à
integridade das crianças serve como retórica moderna e de estado para
que se estanque e domestique esta raiva a fim de abafar desigualdades
raciais, de classe e de gênero? É assim que o horror perante a “violência
contra criança” se faz, a partir de um estado ausente, no qual as próprias
instituições que deveriam cuidar se ocupam precariamente dos “filhos
dos outros”.

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Referências
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