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Erivan Silva

Pedro D’ Andrea
BRASIL, JUNHO DE 2023.
-
Expediente

O Problema Mineral no Ceará – Volume 1: Onde não tem mineração no Ceará?


é uma publicação do Movimento pela Soberania Popular na Minera-
ção (MAM) em articulação com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
no âmbito do Projeto Mineração e Impacto Socioambiental.

ISBN Nº e DOI
-

AUTORES
Erivan Silva
Pedro D’ Andrea

APRESENTAÇÃO
Talita Furtado

REVISÃO
Sandy Carvalho

DIAGRAMAÇÃO E ARTE
Mayra Souza

REDES
MAM – Movimento pela Soberania Popular na Mineração

mamnacional.org.br

@mam.nacional

@mamnacional

@mamnacional
Sobre
os autores

Erivan Silva
Mestre em Geografia Humana pela Universidade Estadual Vale
do Acaraú – Dinâmica territorial: campo e cidade. Graduação em
Licenciatura Plena em Ciências da Religião e Ciências Sociais pela
Universidade Estadual Vale do Acaraú. Especialização em Educa-
ção Ambiental pela Universidade Regional do Cariri. Membro do
Movimento pela Soberania Popular na Mineração.

Pedro D’Andrea
Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Geograf ia da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Faculdade de Forma-
ção de Professores. Membro do Movimento pela Soberania
Popular na Mineração.
Índice de figuras

MAPAS

Mapa 1. Mineração no estado do Ceará - Onde não tem mineração no Ceará?

Mapa 2. O avanço da mineração sobre a Reforma Agrária no Ceará.

Mapa 3. Território camponês em conflito com a mineração de ferro – Quiterianópolis, Ceará.

Mapa 4. Zona de proteção ambiental, hídrica, histórica e cultural de Ipaporanga.

Mapa 5. Área em processo de pesquisa para mineração de ferro. Fonte: MAM, 2022.

Mapa 6. Os impactos diretos e indiretos da mineração de urânio e fosfato no Ceará.

GRÁFICOS

Gráfico 1. Processos Minerários por Substâncias Minerais (10 maiores) – 2000 a 2021, Ceará.

Gráfico 2. Demanda por Área (em hectares) por Substâncias Minerais (10 maiores) – 2000 a
2021, Ceará.

Gráfico 3. Atividade Econômica x Processos Minerários Ativos.

Gráfico 4. Evolução dos Processos Minerários - 1940 a 2021.

Gráfico 5. Evolução da Demanda por Área - 1940 a 2021 (em hectare).

Gráfico 6. Interesse Minerário por Empresas – 50 maiores (número de títulos): 2000 a 2021.

Gráfico 7. Interesse Minerário por Empresas – 50 maiores (área em hectares): 2000 a 2021.

Gráfico 8. Outorgas Concedidas por Setor – Ceará, 2022.

Gráfico 9. Vazão Outorgada por Setor (litros/dia) – Ceará, 2022.

Gráfico 10. Vazão Industrial x Demais Setores (litros/dia) – Ceará, 2022.

Gráfico 11. Vazão Setor Mineral x Setor Industrial (litros/dia) – Ceará, 2022.

TABELAS

Tabela 1. Sistematização dos crimes ambientais da empresa Globest Participações Ltda.

Tabela 2. Resultado da análise de substâncias químicas do ponto 2 localizado a leste da


mina de ferro na APP e a 200m da planta de beneficiamento.
Sumário

Coleção: O Problema Mineral no Ceará


Mineração no estado do Ceará? 6
Mas afinal, existe mineração no estado do Ceará? 8
Apresentação 11
1. O Problema Mineral Brasileiro: Uma breve consideração 19
2. A fome e a sede da mineração no Ceará 27
Gráfico 1 Processos Minerários por Substâncias Minerais (10 maiores)
– 2000 a 2021, Ceará. 31
Gráfico 2. Demanda por Área (em hectares) por Substâncias Minerais (10
maiores) – 2000 a 2021, Ceará. 31
Gráfico 3. Atividade Econômica x Processos Minerários Ativos. 32
Gráfico 4. Evolução dos Processos Minerários - 1940 a 2021. 34
Gráfico 5. Evolução da Demanda por Área - 1940 a 2021 (em hectare). 34
2.1. A demanda por terra do setor mineral 35
Mapa 1. Mineração no estado do Ceará. 38
Mapa 2. O avanço da mineração sobre a Reforma Agrária no Ceará. 39
Gráfico 6. Interesse Minerário por Empresas – 50 maiores (número de títulos):
2000 a 2021. 41
Gráfico 7. Interesse Minerário por Empresas – 50 maiores (área em hectares):
2000 a 2021. 42
2.2. A demanda por água do setor mineral 43
Gráfico 8. Outorgas Concedidas por Setor – Ceará, 2022. 44
Gráfico 9. Vazão Outorgada por Setor (litros/dia) – Ceará, 2022. 44
Gráfico 10. Vazão Industrial x Demais Setores (litros/dia) – Ceará, 2022. 46
Gráfico 11. Vazão Setor Mineral x Setor Industrial (litros/dia) – Ceará, 2022. 46
3. Territórios em conflito com a mineração no Ceará 47
3.1. Mineração de ferro em Quiterianópolis: saque, crimes socioam-
bientais, doenças e mortes 48
Tabela 1. Sistematização dos crimes ambientais da empresa Globest Participa-
ções Ltda. 50
Mapa 3. Território camponês em conflito com a mineração de ferro – Quiteria-
nópolis, Ceará. 52
Tabela 2. Resultado da análise de substâncias químicas do ponto 2 localizado a
leste da mina de ferro na APP e a 200m da planta de beneficiamento. 53
3.2. Mineração de ferro em Ipaporanga: ameaça e medo 55
Mapa 4. Zona de proteção ambiental, hídrica, histórica e cultural de Ipaporanga. 56
Mapa 5. Área em processo de pesquisa para mineração de ferro, 2022. 58
3.3. Mineração de urânio e fosfato em Santa Quitéria 59
Mapa 6. Os impactos diretos e indiretos da mineração de urânio e fosfato no Ceará. 61
3.3.1. A injustiça hídrica do Projeto Santa Quitéria 64
4. A luta por Soberania Popular na Mineração 69
4.1. Territórios Livres de Mineração 70
4.2. Taxas e Ritmos de Extração 71
4.3. Pelo fim da Lei Kandir 72
4.4. A renda mineral 73
5. Referências bibliográficas 77
5.1. Dicas de leitura 79

Acesse os mapas dessa publicação pelo pelo QR code

5
Coleção:
O Problema Mineral
no Ceará
Mineração no estado do Ceará?

O questionamento presente do litoral ao sertão, de leste


a oeste, evidencia o tamanho do desafio posto àqueles que se
propõem a pensar e construir outro modelo de mineração
para o país, sobretudo a partir das lutas travadas nos rincões
da centralidade política e financeira e/ou de onde a mineração
saqueia em larga escala os minerais considerados estratégicos.

A inserção do Brasil desde a divisão internacional e territo-


rial do trabalho no mercado internacional reproduziu na indús-
tria mineral o desenvolvimento de um capitalismo dependente,
subdesenvolvido e reprimarizante. E a dimensão de grandeza
expressada cotidianamente pelo setor, cuja exportação se dá
notadamente por uma elevada dependência de minerais metá-
licos, sobretudo o Ferro, tenta nos fazer crer que só há minera-
ção onde sua escala de produção alcança mais de 1 milhão de
toneladas/ano, ainda que as pequenas e microempresas consti-
tuam 88% de empresas legalizadas do setor.

São mais de três séculos de intensa exploração de grandes


porções do subsolo, da natureza e espoliação da classe traba-
lhadora. O saque de toneladas do Ouro brasileiro nos séculos
VXII e VXIII é parte estruturante da acumulação primitiva de
capital, do mercantilismo e da empresa colonial no Brasil. Ou
mais recentemente quando a partir das crises estruturais do
capitalismo – alimentar, energética e financeira-, a consolida-
ção de um processo que transforma terra, água e subsolo em
ativos financeiros provoca o boom das commodities, tornando
esta fase de acumulação a mais dinâmica e singular pelo seu
caráter incontrolável de trocas sociometabólicas.

Do ponto de vista da mineração de Ferro, nos depa-


ramos com uma escala de produção que converte cadeias
montanhosas às pilhas e barragens de rejeitos, comprimindo

6
milhões de anos de formações geológicas na absurda produção
média de 400 milhões de toneladas/ano, amputando a base de
qualquer possibilidade de projeto de soberania nacional.

Na contramão da narrativa de grandeza, é na mirada


das frestas que se encontram as contradições de um modelo
que insiste em nos prender na colonialidade. Por exemplo,
há uma íntima relação dos recordes de produção atingidos
pelo setor em 2020 e 2021 com o intenso lobby do setor, que
levou o Governo Federal por meio da Portaria nº135/GM do
Ministério de Minas e Energia e do Decreto nº 10.329/2020 a
decretar a atividade mineral como essencial, durante o auge
da pandemia da Covid-19 no país 1. Nos municípios onde a
mineração manteve suas operações foram registradas eleva-
das taxas de contaminação e morte por Covid-19. Cidades
como Juruti (PA), Canaã dos Carajás (PA) e Itaituba (PA),
majoritariamente inf luenciadas pela atividade mineral,
apresentaram taxas de óbitos por 100 mil habitantes, índices
superiores aos da cidade de São Paulo, considerada o epicen-
tro da pandemia no primeiro semestre de 2020. Aliás, qual
foi o comportamento das taxas de contaminação e óbito por
morte de Covid-19 nos municípios minerados – da areia e do
calcário ao ferro e ao cobre – no Ceará?

Soma-se a este fator o aumento do preço dos minérios


a partir do segundo semestre de 2020 e a constante desvalo-
rização do real, permitindo que o valor da produção mineral
tenha saltado de R$ 153,4 bilhões, para R$ 209 bilhões e R$
339 bilhões entre 2019 e 2021, ao passo que a taxa de desem-
prego saltou de 11,1% em dezembro de 2019 para 14,2% em
dezembro de 2020.

Entretanto, a mineração é um setor que muita renda


concentra e pouco emprego gera no Brasil. Segundo dados do
Plano Nacional de Mineração e do Instituto Brasileiro de Mine-
ração, existem um milhão e cem mil pessoas empregadas, dos
quais apenas 200 mil trabalham diretamente na mineração. O
índice de terceirização chega a 80% e os trabalhadores terceiri-
zados recebem até 27% menos que os demais trabalhadores do

1
Disponível em: Disponível em: http://emdefesadosterritorios.org/essencialidade-forjada-e-danos-da-mineracao-na-pan-
demia-da-covid-19-os-efeitos-sobre-trabalhadores-povos-indigenas-e-municipios-minerados-no-brasil/(Acesso em 16 de
setembro/2022).

7
setor. E qual a extensão do índice de terceirização e das violações
de direitos dos trabalhadores mineiros em nosso estado?

O lucro extraordinário gerado pela superexploração e


f inanceirização da natureza implica a sobrevalorização do
trabalho morto (máquina) pelo trabalho vivo (humano) para
produção de matéria prima, relegando ao que sobra da vida
do trabalhador o adoecimento, a mutilação e a morte. Este é
o setor cujo coeficiente de gravidade de acidentes de trabalho
na mineração é três vezes maior do que a média nacional em
todas as áreas². Quais são os coeficientes quantitativos e quali-
tativos de acidentes de trabalho do setor no Ceará?

Segundo dados produzidos pela Comissão Pastoral da


Terra, desde 2014 as mineradoras passaram a liderar os confli-
tos por água em todo o Brasil, principalmente no nordeste
brasileiro. Só em 2019, 79 mil famílias foram envolvidas em
conflitos por água no país. Qual o volume de água destinado
ao setor minero-metal-siderúrgico no estado? Considerando a
maciça presença do setor no sertão cearense, quais são as polí-
ticas de médio e longo prazo de gestão dos recursos hídricos
para quem há séculos convive com o Semiárido? Se o acesso à
água sempre foi uma preocupação, quando ela deixou de ser
para aquilo que é um problema mineral?

Mas afinal, existe mineração no


estado do Ceará?

O setor mineral completa mais de oito décadas de opera-


ção no estado do Ceará, iniciado oficialmente a partir da publi-
cação do Código de Minas em 1934. Desde então, o regime de
exploração mineral centraliza sobre o Estado a propriedade do
subsolo, sendo seu aproveitamento dependente de concessão
federal. A primeira concessão de lavra é datada de 1940 e foi
destinada à Magnesita Mineração S.A., a fim da exploração
do minério que dá nome à empresa.

2
Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2019/04/29/no-brasil-1-milhao-de-trabalhadores-estao-na-minera-
cao-e-80-sao-terceirizados#:~:text=Se%20a%20gente%20pegar%20o,s%C3%A3o%20contratados%20diretos%20da%20mi-
nera%C3%A7%C3%A3o (Acesso em 16 de setembro/2022).

8
Passados quase 100 anos, a dinâmica de acumulação do
setor mineral foi drasticamente alterada e, conforme buscamos
mostrar neste primeiro volume da coleção O Problema
Mineral no Ceará, a fase da maior e mais vertiginosa expansão
da mineração no estado ocorre no atual momento histórico
e apresenta sua face mais financeirizada, moendo mundos e
trabalhadores, agudizando e desterritorializando os territórios
Quilombolas e Indígenas, ocupando os espaços de reprodução
social do campesinato, exportando tecnologia e trabalho.

Enquanto classe trabalhadora cearense, do campo e da


cidade, dos mais diversos segmentos sociais, povos tradicionais
e de etnias indígenas, organizadas no MAM ou não, o que temos
de acúmulo sobre aquilo que não é mais apenas uma questão, e
sim um problema? Concreto e estrutural, o problema mineral
brasileiro demanda a formulação de ações capazes de fazer esse
enfrentamento também estruturalmente e em escala necessá-
ria para que se refunde o modelo de mineração ao qual estamos
subordinados e dependentes por mais de três séculos.

Quis a história que nossa fundação e territorialização no


Ceará se desse em um período agudo da luta de classes e de
maior expansão do setor. São mais de quatro milhões de hecta-
res em disputa neste momento. Um terço de todo o estado
ameaçado sobre a fome e a sede dessa máquina de moer gente.
Ao mesmo tempo, há a possibilidade histórica e ímpar de por
concretamente em práticas políticas e ações que possam indi-
car caminhos relevantes para a construção de um modelo de
mineração verdadeiramente comprometido com a soberania
nacional e um projeto popular. Se a mineração hoje não se esta-
beleceu como quer, significa que há espaço desde as trincheiras
de luta da classe trabalhadora para impor os limites, regula-
mentações e parâmetros necessários para a criação de um outro
modelo mineral, desde o Ceará.

Faz-se, então, por urgência e emergência que esta Coleção


dispare articuladamente esforços para que o debate em torno
do problema mineral cearense alcance os diversos espaços e níveis
de relações políticas, sociais e econômicas, ao qual a mineração
determina mudanças consideráveis e estruturais, já que tem se
apresentado como um dos principais bens naturais apropriados
pelo capital.

9
Trata-se de um chamado do Movimento pela Soberania
Popular na Mineração às organizações, movimentos, sindica-
tos e universidades cearenses a formularem desde suas práxis
políticas o lugar da mineração no estado do Ceará na teoria da
exploração mineral no país. O conjunto de publicações anuais
buscará reunir aqueles e aquelas que se propõem a pensar um
outro modelo de mineração para o país desde o Ceará e o
nordeste brasileiro, para consolidar uma perspectiva crítica de
debates e embates para aquela que tem sido a importação do
e para o estado de um modelo de saque, espoliação, mercanti-
lização da natureza e super-exploração do trabalho.

Portanto, qual mineração a classe trabalhadora quer para o


Ceará?

Por um país soberano e sério,

Contra o saque dos nossos minérios!

Os organizadores

Do Sertão ao Litoral do Ceará

10
Apresentação

Talita de Fátima P. Furtado Montezuma3

A falsa imagem de que o problema da mineração não


assola estados do Nordeste oculta os crescentes conflitos que
atravessam as lutas comunitárias em defesa de suas condições
de vida face à expansão mineral. Servindo ao apagamento dos
povos e de suas trajetórias, tal imagem escamoteia as tragédias
do cotidiano em territórios afligidos pela perversa convivên-
cia com a dinâmica da produção-destruição provocada por
estes empreendimentos.

Esta publicação revela seu ineditismo ao olhar para este


problema de frente. Ainda, revela que já não é possível ignorar
os impactos que as veias abertas do Ceará enfrentam no conflito
com a expansão mineral e dá um diagnóstico: o momento atual
é o de maior incidência do problema no estado. Mostra, por
exemplo, que o interesse do setor se ampliou vinte e quatro
vezes nas últimas duas décadas, período em que a quantidade
de minas cresceu oito vezes no estado, protagonizadas pela
exploração de rochas ornamentais, mas seguidas por iniciativas
de exploração de ferro, urânio e outras substâncias.

Além disso, os pesquisadores coletam números relevan-


tes para a compreensão do tema. Evidenciam que, no perí-
odo de 2000 a 2018, a produção mineral comercializada no
estado saltou de R$ 174 milhões para R$ 685 milhões, um
aumento exponencial que vem acompanhado de passivos
sociais e ambientais. Já a nível nacional, tomando por base o
período entre 2001 e 2011, a produção mineral no Brasil cres-
ceu 550% e a participação da indústria extrativista mineral no
PIB ampliou-se 156%, segundo as informações organizadas
pelos pesquisadores e oferecidas ao leitor deste documento.

3
Professora da Universidade Federal Rural do Semiárido. Doutora em Direito pela Universidade de Brasília. Pesquisadora
do Núcleo Tramas. Membro da Articulação Antinuclear do Ceará e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

11
Por outro ângulo, tal expansão contribui para acirrar
o cenário de conflitividade no país. O mapa produzido pela
Universidade Autônoma de Barcelona identificou que o Brasil
ocupa a posição de terceiro país do mundo com maior número
de conflitos ambientais4, os quais envolvem majoritariamente
a questão agrária, da água e da mineração. Além disso, esti-
ma-se que 40% das terras indígenas do país estão há menos de
10km dos 30.554 empreendimentos extrativistas em funcio-
namento legalizado no Brasil e que 38% dos conflitos socio-
ambientais latentes oriundos desta proximidade estão locali-
zados no Nordeste5. Tais conflitos carregam, ainda, a violência
como traço central. Dados sobre o assassinato de ativistas
ambientais no mundo em 2019 revelam que, dos 212 ativistas
mortos, 50 deles estavam engajados em conflitos envolvendo
mineração, número que se acredita subnotificado6.

Na interface desta conflitividade, o aprofundamento da


reprimarização econômica no país desponta nas páginas deste
texto por meio de uma análise concreta, fincada em dados
bem sistematizados e no compartilhamento das experiências
de comunidades em conflito latente ou atual. Neste contexto,
falar de uma economia reprimarizada signif ica dizer que
estamos subordinados aos índices de exportação de bens com
baixo valor agregado, e que nesta exportação se esvaem nossas
riquezas quando os bens comuns minerais são transformados
em commodities e expropriados por grandes empresas que,
por sua vez, contam com generosas isenções fiscais, suporte
público logístico, baixa remuneração de trabalhadores e baixa
responsabilização pelos impactos socioambientais provocados.

Mostra-se, portanto, que a economia não está desma-


terializada: a escolha deste modelo de desenvolvimento é
percebida na desarticulação da teia interdependente dos ecos-
sistemas, nas contaminações alarmantes de terra e água, nas
alterações de paisagens históricas e culturais, na precarização
dos trabalhadores e, ainda, no adoecimento dos corpos que
lamentam a perda das condições de vida saudável que antes culti-
vavam. Isto configura um processo de despossessão múltipla,

4
EJOLT. Environmental Justice Organizations, Liabilities and Trade. Environmental Justice Atlas, 2016. Disponível em:
http://ejatlas.org/, acesso realizado em 20.10.2022.3

5
Informações disponíveis em <http://livre.jor.br/latentes/>, acesso realizado em 12.10.2022.

6
GLOBAL WITNESS. Defending Tomorrow: The climate crisis and threats against land and environmental defenders.
London: [s.n.]. Disponível em: <globalwitness.org>, acesso realizado em 20.10.2022.

12
a qual consiste na expropriação simultânea do trabalho, dos
bens naturais, dos vínculos coletivos e do conjunto de ativi-
dades locais que sustentam a vida, promovendo uma ofen-
siva racializada contra os sujeitos comunitários na disputa
pelo controle e gestão de seus territórios.

Diante deste quadro, o texto apresenta em linguagem


acessível os resultados de uma investigação de tais dimensões
do problema mineral contemporâneo no Ceará. A partir do
levantamento de dados primários e secundários, somados à
escuta das populações atingidas e ao olhar crítico dos autores,
o material mescla reflexão, sistematização de informações e
relatos de casos. Desta forma, oferece um repertório argu-
mentativo para desconstruir os mitos que fundam o discurso
de que o modelo minerário do país se funda em qualquer
sorte de interesse público.

No eixo geração de emprego e renda, por exemplo, o texto


caracteriza a situação de empregabilidade do setor mineral,
mostrando que o índice de terceirização chega a 80% e que
os trabalhadores recebem até 27% menos da média por suas
ocupações laborais, ao passo em que sofrem com altos indica-
dores de morte e adoecimento, vítimas de um pacote de baixa
remuneração, trabalhos intermitentes, precarizados e com alto
potencial de acidentes.

Em paralelo, pode-se encontrar nestas páginas um rele-


vante mapeamento dos proprietários que concentram títu-
los minerários e, ainda, daqueles que controlam os subsolos
com interesse de exploração. Portanto, o texto cartografa
o papel de grupos empresariais que atuam em um padrão
de concentração de títulos e subsolos onde há interesse do
setor, situação que caracteriza a criação de verdadeiros lati-
fúndios minerários no estado. De forma associada, traz
levantamentos sobre as substâncias e áreas de maior inte-
resse empresarial e a evolução de crescimento do mercado,
oferecendo ao leitor uma compreensão ampliada de quem
são os sujeitos econômicos que costuram a cadeia de explora-
ção da natureza humana e não humana nesta atividade.

A reflexão realizada também revela a disputa por terra


e água que está em curso na dinâmica de expansão mineral
e dos conflitos socioambientais associados. Promovendo uma

13
reforma agrária às avessas, o setor avança sobre territórios
tradicionalmente ocupados no Ceará, disputando mais de
quatro milhões de hectares de terra, o que corresponde a um
terço de todo o estado. Com isto, renovam-se os debates sobre
a questão fundiária e as novas cercas que expulsam povos e
comunidades do campo.

Nesta expulsão, também o uso intensivo, perdulário e


contaminante das águas pelas mineradoras chamou atenção e
foi devidamente registrado. A nível nacional, o mapeamento
dos conflitos do campo realizado pela Comissão Pastoral da
Terra (CPT) mostrou que em 2021, mineradoras internacio-
nais e garimpeiros responderam por 38% dos conflitos hídricos
identificados no país, em sua maioria correspondentes às dispu-
tas por uso e qualidade das águas. No Ceará, os pesquisadores
perceberam que sete dos dez maiores consumidores de água
do estado estão inseridos na cadeia minero-metal-siderúrgica.
Levantaram, ainda, que o setor mineral responde por 36% de
toda vazão outorgada para a Indústria, a despeito das águas
capturadas sem outorgas.

Este foi o caso do conflito em Quiterianópolis/CE, em que


a empresa Globest, ao minerar jazida de ferro, sequer constava
como beneficiária de qualquer tipo de outorga hídrica. Isto não
impediu a utilização intensiva de água de poços comunitários
ou tampouco que os rejeitos da extração de ferro contaminas-
sem o Rio Poty e o Açude Flor do Campo, atingindo a produção
de alimentos pela agricultura familiar e a pesca artesanal tradi-
cionalmente desenvolvida na região, o que provocou um deslo-
camento compulsório de pescadores para outros açudes. Merece
destaque que, apesar de nunca ter reparado os danos causados,
a empresa possui embargos que listam 14 infrações ambientais,
respondendo, ainda, por três ações penais. Entre as infrações
citadas, os pesquisadores listam a extração mineral sem licença
ambiental, lançamento de rejeitos de minério de ferro de forma
inadequada no solo e nas águas e o desmatamento irregular.

Já no caso relatado de Santa Quitéria/CE, assusta o alto


volume previsto para retirada de água bruta no projeto de
mineração de urânio e fosfato. A estimativa de consumo é de
855.000 litros/hora, ameaçando a sobrevivência dos principais
corpos hídricos do sertão central do estado e da população que
dele necessita. Além disso, os riscos de dispersão de rejeitos
radioativos e do gás radônio impactam as tecnologias sociais

14
de captação de água e podem atingir três importantes bacias
hidrográficas (Acaraú, Curu e a Arataiaçu). Neste caso, já há
compromisso do governo estadual com a construção de adutora
de água para o empreendimento, além de outorga concedida
pela Agência Nacional das Águas, a despeito do fato de que a
viabilidade hídrica do projeto ainda esteja sob análise no órgão
ambiental federal.

Tais histórias são narradas com a riqueza da vivência dos


autores na dinâmica dos conflitos estudados e com dados dida-
ticamente organizados. Em ambos os conflitos, a sede das mine-
radoras coloca em risco não apenas o abastecimento hídrico
individualmente considerado, mas também um conjunto de
tecnologias sociais de convivência com o semiárido voltadas
para o cultivo de alimentos e diversificação econômica. Nesse
cenário, cisternas, poços, açudes comunitários, grandes rios e as
águas subterrâneas encontram-se sob ameaça.

Expostas tais dimensões, a estrutura do texto vai além e


permite que o leitor trace um diálogo entre as esferas locais e
nacionais, aliando o conteúdo sobre as dinâmicas territoriais
no Ceará com análises críticas das macroestruturas que susten-
tam o modelo mineral. Neste sentido, revelam-se nestas páginas
a incidência para desonerar tributariamente as mineradoras e
esvaziar a Compensação Financeira pela Exploração dos Recur-
sos Minerais, além das ações do lobby empresarial que assediam
as instâncias estatais para ceder aos seus interesses no campo
legislativo.

Isto se revela no Decreto nº 10.329/2020 que identificou


a atividade como essencial durante a pandemia, momento em
que o faturamento das mineradoras cresceu 37%, ao passo em
que a atividade garimpeira protagonizou a dispersão do vírus
da Covid-19 entre povos indígenas. Não é à toa que, no primeiro
trimestre de 2021, o minério de ferro constava em terceiro lugar
no ranking das exportações do país, responsável por manter a
lucratividade durante a pandemia e projetar um novo período
de boom das commodities, segundo estimou o Instituto Brasileiro
de Mineração. Ferro este que, explorado não apenas em grandes
jazidas, vem também deixando um legado perverso nos inúme-
ros locais de extração de pequeno e médio porte, a exemplo do
que ocorreu em Quiterianópolis/CE.

15
O texto aponta, portanto, uma crítica ao Estado e à sua
incapacidade de deter os efeitos da injusta expansão mine-
ral, sobretudo quando se alia à ela de forma indiscriminada.
Observa-se que há em curso um aceleracionismo antiambien-
tal na esfera normativa impulsionado neoliberalismo em asso-
ciação com o regime extrativista, de forma que as minerado-
ras vêm atuando ativamente contra as normas estabelecidas.
Esta cartilha sistematiza algumas destas incidências, a exemplo
do Projeto de Lei 5822/19, que autoriza a exploração mineral de
pequeno porte em reservas extrativistas; o Decreto Federal nº
10.966/2022, que institui o “Programa de Apoio ao Desenvol-
vimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala”, equi-
parando o garimpo nesta categoria; e o Projeto de Lei 571/22,
que permite que o presidente da República declare a minera-
ção uma questão de interesse nacional, liberando a extração em
qualquer área do País.

Merece destaque, ainda, a atuação do Estado para oferecer


os bens comuns minerais a poucas empresas, o que se visua-
liza nas articulações entre a Agência Nacional de Mineração
e a Confederação Nacional da Indústria para acelerar proces-
sos minerários, argumento que possuem em comum “a pressa”
em minerar7. Ou ainda, quando os agentes públicos propõem
iniciativas como o Projeto de Lei 191/2020, apresentado pelo
Governo Federal, o qual regulamenta a mineração e a atividade
de garimpo em terras indígenas, apoiando-se em um repertório
simbólico-discursivo econômico que adentra na agenda estatal.

Assim que um empresário do setor, em entrevista, defen-


dia a exploração mineral em terras indígenas, argumentando
que “o subsolo não é do índio, é da União, do governo brasi-
leiro. Pronto, acabou, se o governo brasileiro tem interesse no
subsolo, o índio não pode fazer nada. O governo pode fazer
o que bem entender”8. Em sua fala, a identificação plena que
permite uma confusão entre os interesses empresariais e de
governo revela o grau de captura do Estado e daquilo que é classi-
ficado como interesse público. Tais concepções autoritárias violam
frontalmente os direitos originários e de autodeterminação dos
povos, aí incluindo-se o direito à consulta livre, prévia e infor-
mada sobre as intervenções em seus territórios.

7
Informações obtidas em < https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/noticias/anm-e-cni-firmam-acordo-para-acelerar-pro-
cessos-minerarios>, acesso realizado em 20.10.2022.

8
Informações obtidas em <https://observatoriodamineracao.com.br/o-governo-pode-fazer-o-que-bem-entender-sobre-mi-
neracao-em-terra-indigena-diz-lider-de-lobistas-com-influencia-direta-em-brasilia/>, acesso realizado em 20.10.2022.

16
Esse perfil de repertório discursivo pode ser desarticu-
lado a partir das contribuições críticas que este texto organiza,
sobretudo ao transparecer que o crescimento do setor não
vem acompanhado por evidências que mensurem vantagens
relativas quando se consideram os custos econômicos, sociais
e ambientais dos seus impactos destrutivos. O olhar lançado
pela cartilha, desta forma, vai além do estudo de empreendi-
mentos pontuais ou locais e contribui para uma revisão crítica
do modelo institucional e econômico que baliza a mineração
no país.

Mas a publicação também mostra que o povo não assiste


passivamente à imposição da empresa colonial: resiste, organi-
za-se e formula argumentos na crítica ao modelo mineral. Insti-
tuem, portanto, o direito de dizer não aos empreendimentos e
de instituir seus projetos prioritários de futuro, articulando um
conjunto amplo de sujeitos sociais que se reconhecem atingi-
dos, como agricultores, juventude, mulheres, povos e comuni-
dades tradicionais e moradores de cidades afetadas.

Para isto, reinventam identidades coletivas, tantas vezes


descritas pela modernidade como representações do passado,
e movem r-existências que defendem a potencialidade do que
já existe nos territórios invadidos pela mineração. Em 2011,
os cartazes levantados pelas mulheres camponesas de Santa
Quitéria/CE empunhavam um chamado às reflexões sobre as
alternativas de futuro: “urânio e fosfato de Itataia vão servir
para fazer fertilizantes e bomba, o mundo não precisa disso”,
diziam em marcha na luta contra a exploração da maior jazida
de urânio do país. No distrito de Belisário, na Zona da Mata
mineira, os agricultores ameaçados pela extração de bauxita
se mobilizam em atos de rua enunciando que “mineração,
aqui não!” e denunciando que “a mineração é uma safra só”.

Ambos os exemplos mostram que as experiências desta


publicação iluminam caminhos de articulação ampla entre
territórios atingidos pela mineração. Os dizeres de luta convi-
dam todos a defender o tempo futuro contra o imediatismo
da extração máxima da natureza no tempo presente. Articu-
lam, assim, a potência criativa que defende a pluralidade de
formas de vida, a democratização da economia e a amplia-
ção do debate público sobre os efeitos do modelo minerário:
em defesa da sociobiodiversidade, das águas, das economias

17
locais, do patrimônio histórico-cultural, das memórias e dos
afetos coletivos, as lutas comunitárias se opõem às injustiças
que o setor promove e presenteiam o conjunto social com os
benef ícios da biodiversidade que resguardam.

Com os pés fincados nesta economia do cuidado, tais resis-


tências produzem sentidos que embasam processos políticos de
reivindicação de uma liberdade que se funda na possibilidade de
instituir territórios livres de mineração. Suas estratégias procu-
ram colocar em evidência a viabilidade da agricultura familiar,
da agroecologia, dos comércios locais, do turismo ecológico,
da pesca e das práticas de reciprocidade como caminhos de
futuro viáveis e urgentes para a reprodução da vida. Com
isto, convocam o conjunto social, tantas vezes impassível de
solidariedade com suas dores, para reconhecerem-se como
interdependentes das mesmas águas, florestas, biomas, bens
e serviços que as comunidades protegem. Enunciam, ainda,
um desejo: que a soberania popular abrace o debate minerá-
rio e que as medidas de transição do atual modelo de desen-
volvimento possam ser coletivamente cultivadas.

Boa leitura!

18
1. O Problema
Mineral Brasileiro:
Uma breve consideração

Lira itabirana – Carlos Drummond de Andrade

O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.

Quantas toneladas exportamos


De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

19
Parafraseando Raymundo Faoro em sua obra “Os Donos
do Poder” lançada em 1958, “o Estado brasileiro nasceu contra e
sem o povo” e a mineração também. Nessa perspectiva, a explo-
ração mineral brasileira começou há mais de 300 anos com o
seu primeiro momento histórico na chamada corrida pelo ouro
ainda no período colonial, que durante todo o século XVIII
marcou a expropriação da colônia que alimentara a acumulação
primitiva para dar vida ao nascimento do capitalismo na Europa.

Sobre esse primeiro processo histórico de saqueio, Furtado


(1961) apregoou, “cabe ao ouro do Brasil boa parte da respon-
sabilidade pelo atraso vetando qualquer processo industrial”.
Ainda sobre esse episódio, Furtado (1961) afirma que ocorreu
crescimento demográfico externo e interno, decrescimento na
produção de alimentos e que a fome acompanhava sempre a
riqueza nas regiões do ouro. Prado Jr. (2011) é assertivo quando
diz que apesar da riqueza relativamente avultada que produziu,
drenada aliás toda para fora do país, deixou tão poucos vestí-
gios, a não ser a prodigiosa destruição de recursos naturais que
semeou pelos distritos mineradores, e que ainda hoje fere a
vista do observador. Portanto, desde o princípio, a organização
da indústria de saque mineral se confunde com a formação do
Estado brasileiro, tendo como característica a negação e exclu-
são do seu povo.

O segundo momento histórico se inicia no governo ‘desen-


volvimentista’ de Getúlio Vargas, que cria normas jurídicas,
infraestrutura (escoamento e pesquisas) e estatais importantes,
a exemplo da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), passa pelo
período da ditadura militar, que abre as portas para o capital
internacional investir em megaestruturas, indo até a redemo-
cratização e o período neoliberal.

Durante esse período o mundo esteve dividido entre


países especializados em fornecer matéria-prima e outros que
a utilizavam para fazer produtos industrializados. O que coube
ao Brasil foi fornecer matéria-prima, em especial o minério de
ferro, aos países de economia central. A novidade é que diferente
do período colonial, no qual o ouro foi o principal minério
expropriado, agora é o ferro que ganha espaço na geopolítica
mundial, suprindo a necessidade dos países centrais durante e
depois da Segunda Guerra Mundial.

20
Segundo Coelho (2015), a CVRD nasce com f inancia-
mento dos EUA e da Inglaterra (Acordo de Washington9) que
durante três anos repassou toda a produção mineral para os
países centrais (manutenção da indústria bélica) – continua a
lógica da dependência.

O regime civil-militar afrouxou ainda mais a entrada do


capital estrangeiro através de concessões no setor da minera-
ção, e por outro lado, estabeleceu ainda mais o Brasil como
fornecedor de matérias-primas para o mundo. Coelho (2015)
afirma que “o regime civil-militar, que por muitos é conhecido
como desenvolvimentismo autoritário, ao mesmo tempo em
que apostou no processo de industrialização do país, laçou as
bases para a especialização minério-exportadora” (COELHO,
2015, p. 30). É nessa perspectiva dependente que o Código de
Mineração de 1967, vigente até então, foi criado para atender
os interesses das multinacionais que pautaram para o regime
militar a abertura total do território nacional para o capital
estrangeiro.

Esse mesmo período chega ao final do século XX perpas-


sando o neoliberalismo com pelo menos dois episódios marcan-
tes: a criação da Lei Kandir e a privatização da CVRD durante
o governo de Fernando Henrique Cardoso. A Lei Kandir
aprovada em 1996 isenta os produtos primários – onde se
incluem os minérios - do pagamento do Imposto sobre Circu-
lação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e a entrega da CVRD
ao capital privado em 1997 significou também a entrega dos
nossos bens primários que agonizou ainda mais a desindus-
trialização, bem como, um modelo mineral campeão em
mutilação, adoecimento, mortes, enlouquecimento, terceiri-
zação e quarteirização de seus trabalhadores e um sem-fim de
tragédias socioambientais decorrentes da ideologia do desen-
volvimento e progresso postos ao seu favor. É esse “padrão
Vale” que sucumbe e expolia os territórios, adoece e mata
trabalhadores e que tem lucros bilionários entregando nossos
bens minerais aos países centrais, que precisamos derrotar.

9
Resultado de conversações bem-sucedidas entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos durante os dois primeiros
meses de 1942, os Acordos de Washington diziam respeito basicamente ao fornecimento de certas matérias primas
brasileiras à indústria norte-americana e foram assinados em Washington em 03 de março de 1942. Os acordos incluíam:
a) criação de uma corporação destinada a promover a expansão econômica brasileira, com cooperação técnica e financeira
dos Estados Unidos; b) projeto de modernização da mina de Itabira (minério de ferro) e da ferrovia Vitória-Minas;
c) fundo para o desenvolvimento da produção de borracha”. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/
verbete-tematico/washington-acordos-de. Acesso em: 03 jan. 2020.

21
Cardoso e Vieira (2017) afirmam que a Lei Kandir apresen-
tou-se como mais um mecanismo de entrega dos nossos bens
primários e que seria uma forma de incentivar as exportações.
A nova regra, além de provocar e contribuir com o fenô-
meno da “desindustrialização”, feriu diretamente a fonte de
recursos dos estados que se dedicavam à atividade de expor-
tação de produtos primários, como Minas Gerais e Pará. Em
outras palavras, a Lei Kandir garantiu incentivos e subsídios às
exportações de produtos primários e reforçou a divisão inter-
nacional do trabalho, que atribuiu ao Brasil o papel primário-
-exportador.

E, o terceiro momento histórico tem suas raízes no final


século XX com as políticas neoliberais, mas que se intensifica
concretamente no século XXI, com a política neodesenvolvi-
mentista dos governos petistas, nos quais a mineração teve
um boom de crescimento bastante intensificado.

Foi devido essa intensificação que esse período ficou


conhecido como superciclo ou boom das commodities10. Para
Coelho (2016), no século XXI experimentamos como padrão
de acumulação capitalista a financeirização11 da economia. E,
é nessa fase que Gomide et. al (2018) considera que a mine-
ração se tornou ainda mais destrutiva sobre o trabalho e a

10
“Período no qual os preços das matérias-primas se mantiveram acima da média histórica, em um ciclo de alta dos preços
dos produtos primários (minerais e agrícolas). A partir do início dos anos 2000, a China passa a ser o grande consumidor
mundial de matérias-primas. Com investimentos em sistemas de eletricidade, transportes e habitação, a China seguiu o
caminho da industrialização de média e baixa tecnologia com intenso consumo de recursos naturais. A alta na deman-
da por commodities minerais está diretamente conectada aos investimentos chineses em infraestrutura, que são grandes
demandantes de minerais como o minério de ferro e o cobre, o que elevou vertiginosamente os preços das commodities
em geral. O enriquecimento de partes da população mundial, particularmente na China, pressionou os preços das com-
modities para cima. Ainda, é preciso considerar a influência da especulação em mercados financeiros nos preços das ma-
térias-primas, que servem como objeto de negociação em mercados futuros e derivativos, o que colaborou também para
a elevação dos preços das matérias-primas. Este movimento de transformação tornou, durante o período, superavitária
a balança comercial dos países primário-exportadores. Assim, países especializados na exportação de matérias-primas
obtiveram vantagens comparativas no intercâmbio internacional durante esse período, o que levou, em muitos casos, à
especialização na exportação de matérias-primas, o que causou fenômenos como a [reprimarização das exportações] e a
[desindustrialização]” (GOMIDE et. al., 2018, p. 44-45).

11
A financeirização pode ser definida como o processo no qual o modo de acumulação da riqueza se baseia no poder
excessivo do setor financeiro (grandes bancos privados e suas holdings, organismos financeiros internacionais, agências de
rating, bancos centrais, etc). Analisando a financeirização enquanto processo sociológico, a financeirização representa o
processo no qual são formados estratos de classe ligados aos ganhos deste sistema. Ao processo no qual os bens naturais
são padronizados de acordo com normas dos mercados internacionais, e transformados em mercadorias comercializáveis
nestes mercados, deu-se o nome de comoditização da natureza. O processo no qual os bens naturais comoditizados geram
ativos e transações em mercados financeiros é a financeirização dos bens naturais. Dessa forma, bens naturais retirados
em escala local são transacionados por agentes internacionais em mercados externos gerando não apenas sua comer-
cialização, mas também diversas operações financeiras. Dos bens naturais extraídos em nível local desdobram-se eixos
comerciais globais, que envolvem, além de agentes locais - de empresas extrativas aos entes estatais - também os mercados
financeiros (GOMIDE et. al., 2018, p. 120).

22
natureza impondo um itinerário de conflitos e com eles a
necessidade de um conteúdo combativo sem chance de outra
mediação aos afetados do complexo mineral na produção e no
consumo senão o de reabilitar o conflito ambiental e do traba-
lho com alcance de um conflito de classe.

Assim, o processo de extração e de transformação da natu-


reza em recursos, aqui referindo-se de forma ampla ao caso
latino-americano que se aplica também à nossa realidade, o
extrativismo mineral está voltado quase que exclusivamente
para exportação que se realiza com violações de direitos huma-
nos e, por isso, enquadra-se na concepção de “acumulação por
espoliação”, como denomina o geógrafo David Harvey (2005).
O autor enxerga esse processo como uma renovação da “acumu-
lação primitiva do capital”, um novo fôlego e novas estratégias
contemporâneas para a sua reprodução ampliada.

Na visão de Zonta e Trocate (2015), estamos em um


momento histórico, no qual o capital atual posiciona-se como
uma vertente centrifuga, visando o pleno domínio global das
relações socioeconômicas. Recursos naturais e humanos são
jogados numa mesma lógica ensandecida da expansão capi-
talista sem precedentes. Os autores ressaltam que sua lógica
interna compulsiva alastra-se por todos os lugares do planeta
produzindo, nas palavras de Mészáros (2011), uma forma de
sistema global plenamente integrado.

Dessa forma, a mineração passou a ser articulada dentro da


nova lógica enquanto commodities12. A partir de então, usufruímos
um aprofundamento do saque mineral no ciclo de alta intensi-
dade, que ficou definido como “boom mineral”, correspondendo
ao período entre 2001 e 2011. Ao mesmo tempo que a indústria
mineral cresceu aceleradamente, os conflitos territoriais e impac-
tos socioambientais surgiram com a mesma velocidade. As escalas
de extração, produção, consumos e impactos destes empreendi-
mentos minerários são gigantescas. Afirma Giffoni (2019) que a
narrativa vertiginosa do capital mineral utiliza-se de um mote
multifacetário que esbanja os tais benefícios que a mineração traz
para o país, mas escondem os impactos negativos e crimes de tal

12
A palavra inglesa “commodity” significa simplesmente mercadoria. Mas no mercado o termo refere-se a produto
básico, em estado bruto ou com baixo grau de transformação. São mercadorias com pouco valor agregado e quase sem
diferenciação - que podem, portanto ser negociadas globalmente sob uma mesma categoria. Minério de ferro, madeira,
carne e frango “in natura” e petróleo são algumas das mais comercializadas. Disponível em: https://www.nexojornal.com.
br/explicado/2016/03/31/As-commodities-e-seu-impacto-na-economia-do-Brasil. Acesso em 11 de nov. 2019.

23
atividade sobre o meio ambiente, os territórios urbanos e rurais
e os trabalhadores e trabalhadoras da mineração.

A demanda por mineração global se deu principalmente


porque na virada do século XX para o século XXI, a China
ascende no mercado mundial e torna-se o principal motor
do setor fabril global, encadeando anos seguidos de taxas de
crescimento acima dos dez por cento. Por isso, estabeleceu-se
um período de altíssimos preços das commodities no mercado
internacional, dando as bases do fenômeno que ficou conhe-
cido como boom das commodities. Os preços justificaram uma
nova postura do setor extrativo mineral e a expansão de várias
frentes da extração.

Para Trocate e Coelho (2020), com a demanda crescente e


vertiginosa da máquina do mundo, a China, as empresas passa-
ram a investir na expansão e na criação de infraestrutura de
extração mineral. Entre 2002 e 2013, os gastos em exploração
mineral na América Latina aumentaram 660%.

Essa organização econômica das commodities também


explica o papel que o Estado brasileiro tem cumprido em prol
da mineração e reafirma o caráter primário exportador do
Brasil que, historicamente, avança sobre os recursos naturais de
seu território, mantendo uma economia dependente e vulne-
rável internacionalmente, cujos preços definidos nessa escala
podem alterar rapidamente o encadeamento da dinâmica
socioeconômica nacional, regional e local.

É neste contexto de boom da mineração associado à subida


do valor das commodities que as mineradoras chegaram em
diversos territórios, inclusive em lugares que anteriormente
não tinham nenhuma tendência para a mineração e em outros
que tinham jazidas, mas que parecia inviável minerar, como era
até 2010 o caso da mineração de ferro em Quiterianópolis.

Foi nessa conjuntura que segundo Bittencourt (2013) a


produção mineral no Brasil cresceu 550% entre 2001 e 2011
e a participação da indústria extrativista mineral no PIB
cresceu 156%. Aquilo que no ano 2000 representava apenas
1,6% do PIB, em 2011 foi para 4,1%. Isso mostra que não
apenas a pauta exportadora, mas a própria estrutura produtiva

24
brasileira sofreu uma reversão reprimarizante, qual seja: uma
ampliação da participação percentual dos setores primários
em detrimento das indústrias de transformação. Mais saqueio,
menos investimento na industrialização, aumento de buracos
fulminantes abertos em todo território nacional e elevada
dependência tecnológica e da variação do preço dos minérios
nos mercados financeiros.

As mortes e o rastro de contaminação decorrentes dos


últimos rompimentos criminosos de barragens de rejeitos nas
bacias do Rio Doce (2015) e do Paraopeba (2019) em Minas
Gerais, entre outros crimes pelo Brasil afora, evidenciaram que
o modelo mineral brasileiro naturaliza e impulsiona a super-ex-
ploração dos recursos minerais, beneficiando prioritariamente
a lucratividade das mineradoras. A lama de rejeitos que eclo-
diu sobre os territórios destruiu toda e qualquer forma de vida,
quebrando de vez o elo convencional e o estigma que ainda
perdurava de uma contínua contradição, de não nos perceber-
mos como um país minerador, mas minerado.

Tais crimes destacaram os efeitos da indústria da mine-


ração para além dos lacônicos bordões “superávit primário”
ou “equilíbrio da balança comercial”, mas evidenciaram ainda
o rastro de destruição e mortes apregoado por mineradoras
transnacionais que não tem compromisso com a soberania
nacional e muito menos com os modos de vida da população.

A narrativa vertiginosa do capital mineral utiliza-se de um


mote multifacetário que esbanja os tais benefícios que a minera-
ção traz para o país, mas escondem os impactos negativos e crimes
de tal atividade sobre o meio ambiente, os territórios urbanos e
rurais e os trabalhadores e trabalhadoras da mineração13.

Dessa forma, é central compreendermos qual o tama-


nho do problema mineral brasileiro, como ele tem chegado
até o Ceará e suas implicações. Precisamos compreender os
seus rastros de destruição e crimes socioambientais irrepará-
veis, dado o seu caráter desumano e destrutivo. Muitas vezes
a mineração está em nosso quintal, mas, precisamos tirar a
poeira das nossas lentes e podermos enxergar o tamanho do
buraco que ela causa na nossa vida.

13
A GIFFONI R., COELHO T., e MAIA M. A mineração vem aí... E agora? Rio de Janeiro: FASE/POEMAS, 2019.

25
Cabe a nós, compreendermos seu caráter dependente e
estruturado para garantir as condições e vantagens exigidas
pelos países centrais desde o Brasil colonial até os dias atuais.
As transnacionais chegam no Brasil, saqueiam os territórios
e levam nosso minério deixando apenas as veias e feridas
abertas em forma de sofrimento e pobreza para a população.

Portanto, o modelo mineral brasileiro ao longo do


tempo não modificou sua lógica e, ainda que o controle sobre
uma parte da mais-valia produzida tenha sido destinada
para uma agenda progressista de atendimento a programas
sociais durante os governos populares, a exploração mine-
ral intensificou-se no período em questão, subordinada aos
interesses externos e na ausência de uma política estratégica
aos interesses populares na mineração. Como consequência
muitas paisagens vêm sendo moídas, ocorreram inúmeros
conflitos sociais, violações de direitos humanos e impactos
socioambientais14.

Mas, nada pode se comparar ao desastre que viven-


ciamos com o governo ultraconservador de características
fascistas que tinha o povo como seu principal inimigo. Isso
significa dizer que as taxas de exploração e saque mineral se
elevou em meio ao contexto de crise ambiental, econômica,
social e política que se aqueceram ainda mais com a pande-
mia. O capital mineral nunca esteve tão resguardado com a
flexibilização ambiental e propostas de Emendas Constitu-
cionais (PECs) que ensejam liberar terra indígenas e áreas
de fronteira para o garimpo, a chamada mineração susten-
tável. Os discursos de ódio fulminaram o conflito entre o
povo e as mineradoras e/ou garimpos ilegais que estão ater-
rorizando os territórios a exemplo dos conflitos vividos pelo
povo Yanomami.

Face a essa realidade, nos é colocado o grande desafio


de refletirmos sobre a nossa soberania enquanto povo que
deve se impor ao saque mineral e construir coletivamente
um outro modelo de mineração que ao invés de produzir
pobreza e morte possa produzir soberania popular e vida em
abundância no território cearense.

14
ACOSTA, Alberto. Extractivismo y neoextractivismo: Dos Caras de la Misma Maldicion. In: Grupo Permanente de
Trabajo Sobre Alternativas al Desarrollo. Más Allá Del Desarrollo. – 1a ed – Quito: Fundacion Rosa Luxemburgo, 2011
26
2. A fome e a sede da
mineração no Ceará

A montanha foi moída – Charles Trocate

Por mim
Espalharás no papel o jejum das palavras
Este gesto breve até o amor
Dele a luz tempera o indivisível
Como é natural

Vou pela rua e chego assim para o que sou


Se resvalo um anjo de aço sai de mim
Apalpa o solo e revista a vida
E as rugas (única verdade)
Pensam neste gesto

A montanha foi moída


E é serpente morta no calabouço dos navios
Levam-na assim:
Como rouba pergaminhos
A misturar-se já em outro tempo.

Fica-nos a mandíbula
Uma certeza falsificada
E o sol empoeirado sobre as infâncias
É só!

A fibra densa fez o nó


E hoje sou minério
O Chão que piso cansou de ser império!
Mas sigo
A troar passadas
A engasgar goelas!

27
A expressão "terra da luz" que o Ceará ganhou como
apelido não tem relação com sua localização geográfica por
estar próximo da linha do equador, tampouco pelo sol que
abrilhanta nossas terras de serras, sertões e praias o ano inteiro.
O apelido ou codinome faz alusão ao ato revolucionário quando
em 1884 o jangadeiro conhecido por Dragão do Mar se recu-
sou a transportar homens e mulheres escravizados para navios
negreiros ancorados no porto do Mucuripe, em Fortaleza, para
serem vendidos e levados para o sul do País. O ato marcou a
história do Ceará que se tornou a primeira província do Brasil
a abolir o regime escravocrata. Analisando por esse viés, a "terra
da luz" também rima como "terra da liberdade".

Mas, passados cem anos da abolição da escravatura no Ceará,


eis que acontece uma reviravolta de sentidos e a "terra da luz" ou
do sol, propagandeada pelos governos chamados “mudancistas”,
iniciando por Tarso Jereissati em 1987 e posteriormente seguido
por outros, vem sendo narrado como slogan indutor da econo-
mia neoliberal através do turismo, principalmente no litoral
cearense. Nesse sentido, os sertanejos poderiam ficar sem luz e
com fome uma vez que a política neoliberal cearense atrai turis-
tas e investidores do outro lado do Atlântico para invadir a zona
costeira, espoliar e expulsar pescadores e pescadoras, marisquei-
ras, indígenas, quilombolas, camponeses e camponesas para cons-
truir resorts, hotéis, portos, fazendas de camarão, entre outros.

Portanto, a "terra da luz" propagada pelos governos neoli-


berais desde o final do século XX não é a terra do povo cearense,
pois a alma do nosso povo está no pedaço de chão, na água da
bica, no sol que seca o feijão, na colheita de tantos sertanejos e
sertanejas que enchem o “bucho” de comida e a cabeça de alegrias.

Essas linhas iniciais narrando a metáfora do que somos ou


não queremos ser simbolizam que assim como em outros luga-
res, a elite cearense vive em constante metamorfose cumprindo
as regras do jogo impostas pelo capitalismo tardio e dependente,
do qual o chamado desenvolvimento existe para nutrir o subde-
senvolvimento. Afinal, por aqui a oligarquia agrária continua
sorrindo e se nutrindo com o espírito do agronegócio ao mesmo
tempo que é a base para intermediar empreendimentos mine-
rais e industriais contando com infalível apoio estatal.

28
É nesse trocadilho de sentidos e contradições do mundo
revestido de fantasias que a indústria mineral se apresenta no
Ceará, e mesmo que ela não possa iluminar e nem ser ilumi-
nada dado o seu caráter destrutivo, é narrada como a “riqueza”
oculta na geologia cristalina que mora abaixo do chão onde
pisam populações sertanejas, camponesas, pescadoras, indíge-
nas, quilombolas, serranas e os verdadeiros jangadeiros. Por
assim dizer, a "terra da luz" está se tornando também para o
covil oligárquico cearense, a "terra dos cristais", e os sertões
que antes serviam apenas para justificar o tal atraso e atrair
a indústria da seca, agora é narrado como “rico” para atrair as
empresas mineradoras.

Então, se nos séculos anteriores o território cearense era


pouco explorado em comparação a outros estados da federação,
o setor cresceu agudamente neste século XXI. Entre os anos 2000
e 2018 a produção mineral comercializada no estado saltou de
R$ 174 milhões para R$ 685 milhões. Segundo o Instituto de
pesquisas Estratégicas e Econômicas do Ceará (IPECE) a indús-
tria extrativista no Ceará saiu de 143 em 2003, para 434 em 2019.

Dado este crescimento, nos últimos 20 anos a arrecada-


ção da Compensação Financeira por Exploração de Recursos
Minerais (CFEM)15 saiu de R$ 280.578,2816 no ano de 2002 para
R$ 9.990.327,9617 em 2020. Para onde os municípios, estado e
União estão destinando os recursos obtidos pela CFEM? Qual a
política de utilização destes royalties? Qual a participação popu-
lar na destinação destas verbas? A utilização dos recursos da
CFEM deverá ser aplicada em projetos que, direta ou indire-
tamente, revertam em prol da comunidade local, na forma de
melhoria da infraestrutura, da qualidade ambiental, da saúde e
educação, ou seja, aplicados na reparação dos danos socioam-
bientais da mineração.

É necessário e urgente o debate com a sociedade sobre


o tema da renda mineral, principalmente sobre a criação de
instrumentos de controle social e popular da aplicação da
CFEM nos municípios minerados em favor da classe trabalha-
dora e dos territórios em conflito com a mineração.

15
Para sabermos, a CFEM é distribuída aos Estados, Distrito Federal, municípios e órgãos da administração da União.
É creditada automaticamente em contas correntes específicas, no sexto dia útil que sucede ao recolhimento por parte
das empresas de mineração. A divisão fica 65% para os municípios, 23% para os estados e 12% para a União.
16
Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/centrais-de-conteudo/mineracao-em-numeros/copy_of_estatisticas/
arrecadacao-cfem/arrecadacao-da-cfem-por-superintendencias-2002. Acessado em 03 de julho de 2021.
17
Disponível em: https://sistemas.anm.gov.br/arrecadacao/extra/relatorios/arrecadacao_cfem_ano.aspx?ano=2020.
Acessado em 03 de julho de 2021.
29
Segundo a ANM18, haviam 1.997 trabalhadores da minera-
ção no Ceará divididos entre minas e usinas (1.354 e 643, respec-
tivamente), no ano 2000. Segundo a ADECE19, atualmente são 5
mil trabalhadores diretos. A mineração foi percussora do tema da
terceirização de seus trabalhadores no Brasil na década de 1980.
Os trabalhadores da mineração são em sua maioria terceirizados,
recebem injustos salários, adoecem mais e morrem em maior
número em decorrência de tal atividade.

Segundo o coordenador da comissão permanente do setor


mineral da Superintendência Regional do Trabalho e do Emprego
de Minas Gerais20, no ano de 2017 a mineração matou três vezes
mais do que qualquer outra atividade no referido estado. Cabe nos
perguntarmos: quantos adoeceram e/ou morreram em decorrên-
cia da atividade mineral no século XXI aqui no Ceará?

A expressão "terra dos cristais" que trazemos aqui é para tradu-


zir a mineração de rochas ornamentais (quartzo, granito branco,
basalto, quartzitos, pórfiros etc.), conforme gráfico 1, da qual o Ceará
já ocupa o terceiro lugar na federação em exportação e comercializa-
ção para 119 países, ficando atrás apenas dos estados Espírito Santo
e Minas Gerais. Já o gráfico 2 demonstra a demanda da área relativa
a cada uma das dez principais substâncias minerais no estado. Quatro
minerais não-metálicos estão entre os cinco maiores demandantes
de títulos minerários, ao passo que apenas dois se encontram entre
os cinco maiores demandantes por área. Os minérios de ferro,
cobre e manganês assumem os três primeiros lugares nesse quesito.
O gráfico 3 apresenta o perfil econômico do setor no estado.

Segundo o Sindicato da Indústria de Mármores e Grani-


tos (Simagran), os negócios no setor investiram cerca de R$ 650
milhões entre os anos de 2017 e 2019. Os aportes foram para estu-
dos, lavra e industrialização da matéria-prima. Da cifra de U$$ 16
milhões de dólares de exportação em 2014 pulou para mais de U$$
28 milhões em 2018 e se projeta chegar em 2023 exportando em
torno de U$$ 200 milhões de dólares21. Tal crescimento da indús-
tria mineral de pedras preciosas nos últimos anos, já nos aponta
que o Ceará vem sofrendo o boom da mineração e consequente-
mente, o aumento de conflitos territoriais.
18
Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/serie-estatisticas-e-economia-mineral/
anuario-mineral/anuario-mineral-brasileiro/anuario-mineral-brasileiro-2001. Acessado em 03 de julho de 2021.
19
Disponível em: https://www.adece.ce.gov.br/setores-da-economia/mineracao/. Acessado em 03 de julho de 2021.
Disponível em: https://www.otempo.com.br/hotsites/nunca-mais-at%C3%A9-quando/mortalidade-na-
20

minera%C3%A7%C3%A3o. Acessado em 03 de julho de 2021.


21
Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/economia/2019/11/04/cresce-o-numero-de-empresas-de-rochas-
ornamentais-no-ceara.html. Acessado em 30 de julho/2020.
30
Gráfico 1 : Processos Minerários por Substâncias Minerais (10 maiores)
– 2000 a 2021, Ceará

Fonte: ANM, 2022.22

Gráfico 2 : Demanda por Área (em hectares) por Substâncias Minerais


(10 maiores) – 2000 a 2021, Ceará

Fonte: ANM, 2022.

22
Disponível em: http://www.anm.gov.br/assuntos/ao-minerador/sigmine. Acessado em 15 de agosto/2022.

31
Gráfico 3 : Atividade Econômica x Processos Minerários Ativos

Fonte: ANM, 2022.

32
Os dados relativos aos processos minerários ativos retirados
na Agência Nacional de Mineração (ANM) sugerem um reordena-
mento da política mineral em que o Ceará passa a integrar estraté-
gica e especificamente essa nova fase do setor no país. O interesse
sobre o estado cresceu 24 vezes (2000 a 2021), ao mesmo tempo
em que o número de minas em operação cresceu 8,5 vezes (2001 a
2021). O gráfico 4 apresenta visualmente este processo.

O período de maior crescimento ocorre justamente entre


2011 e 2021, no chamado boom e no pós-boom das commodities.
Em 2011 o setor atinge 472 processos minerários, o maior pata-
mar desde 1940, rapidamente superado em 2017 ao alcançar
544, até chegar ao maior índice em toda série histórica, quando
atinge 788 processos em 2021, ainda que tenha ocorrido queda
acentuada dos preços dos minerais metálicos no mercado finan-
ceiro. A fronteira mineral no estado apresenta tendência de
franca expansão desde 2010, cujo pico do crescimento ocorreu
entre 2020 e 2021, com variação de 260%.

Estamos diante de um processo de importação de um


problema mineral para o estado que se territorializa nas frestas,
silenciosamente, sem direito ao debate, cujos arranjos políticos
e econômicos são costurado por e para cima até ser vocalizado
desde uma hierarquizada e já conhecida narrativa: a chanta-
gem em torno do emprego, do boom do PIB local-regional, do
impacto da malha salarial etc.

Trata-se, no entanto, de um setor notadamente marcado pela


necessidade de apropriação de grandes proporções de terra, água,
subsolo e trabalho precarizado. Tal modelo só poderá se consolidar
através da espoliação das terras, águas e territórios de camponeses,
indígenas, quilombolas e Povos e Comunidades Tradicionais, seja
pelo alto consumo e poluição das águas, da monopolização do
subsolo e da superexploração do trabalhador precarizado.

O ritmo acelerado de crescimento do setor mineral também


se expressa verticalmente quando analisados sua área de expan-
são. A partir de uma análise do crescimento dos PMA’s é possível
identificar a expansão territorial da mineração em hectares, ou
seja, a quantidade de terras e subsolo que ela precisa para aten-
der aos seus interesses, conforme detalhado no gráfico 5.

Se no ano 2000, a mineração alcançava uma área de 74 mil


hectares, em 2021 avançaram para 4,1 milhões de hectares em todo
o estado. Significa dizer que a área que o setor mineral tem por
interesse minerar cresceu 55 vezes. Atualmente cerca de 30% do
território cearense interessa ao setor. Ou seja, a atual conjuntura
mineral somada ao que se pretende instalar assume traços signifi-
cativamente diferentes daquela que era exercida até os anos 2000.
23
Disponível em: https://ibram.org.br/publicacoes/. Acessado em 21 de junho de 2021.

33
0
100.000,00
200.000,00
300.000,00
400.000,00
500.000,00
600.000,00
100
200
300
400
500
600
800

0
700
900
1940-1949 2.088

11
1940-1949

1
1950-1959 1.075 1950-1959

7
1960-1969 483 1960-1969
1970-1979 16.849

34
1970-1979
1980-1989 20.730

59
1980-1989

Fonte: ANM, 2022.


Fonte: ANM, 2022.
1990-1999 28.005 1990-1999

110
2000 4.647 2000
2001 7.139 2001
2002 9.744 2002
2003 10.775 2003
2004 15.938

20 28 27 35 35
2004
2005 13.005 2005
2006 22.275
48 55
2006
2007 73.286 2007
121

2008 83.664 2008


2009 96.118 2009
155 161

2010 180.563 2010


268

2011 462.963 2011


2012 405.793 2012
472 469

2013 146.884 2013


317

2014 246.772 2014


372
Gráfico 4 : Evolução dos Processos Minerários - 1940 a 2021

2015 191.437 2015


427

2016 335.889 2016


501

2017 509.385 2017


544

Gráfico 5 : Evolução da Demanda por Área - 1940 a 2021 (em hectare)

2018 421.094 2018


491

2019 173.202 2019


331

2020 145.740 2020


303

2021 540.985 2021


788

34
2.1. A demanda por terra do setor mineral

É comum, ao fazermos o debate sobre o problema mi-


neral no estado do Ceará, escutarmos o seguinte questiona-
mento: “Mas onde está a mineração no Ceará? ”. Em virtu-
de do impulsionamento técnico, econômico e político que
resulta no crescimento do setor no estado, é preciso buscar
uma inflexão no questionamento, para produzir um outro
entendimento sobre a conjuntura mineral: onde a mineração
não está no estado do Ceará? Os mapas 1 e 2 nos apresentam
um território cearense multifacetado por aquilo que é e se
objetiva ser a partir do projeto mineral. As manchas colori-
das apresentadas no mapa trazem os diferentes estágios de
Processos Minerários Ativos24 em todo o estado. Para além
da diversidade de minérios que se encontram no subsolo,
por baixo destas manchas coloridas há uma diversidade de
povos, do litoral ao sertão, alçados a fronteira mineral em
franca expansão sobre territórios de vida.

Existem hoje no estado do Ceará 457 assentamentos


do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), que contemplam 21.587 famílias em uma área de
916.172 hectares25. Dos 87 territórios quilombolas do estado
do Ceará 26, que contemplam 4.017 famílias, apenas 42 pos-
suem certificação pela Fundação Cultural Palmares27. Segun-
do a Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará
(FEPOINCE), atualmente 35 mil indígenas vivem em 25 ter-
ritórios, dos quais apenas um concluiu seu processo demarca-
tório. O que significa que 96% dos territórios estão com seus
processos parados. Toda esta diversidade étnica e cultural é ain-
da mais adensada com a existência de 494 territórios de Povos
e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana em todo o es-
tado do Ceará, que apresentam entre si uma enorme e rica di-
versidade dos segmentos culturais e tradicionais dos terreiros/
casas/tendas, tais como a Umbanda, Candomblé, Linha Cruza-
da, Jurema, Catimbó, Umbandomblé, Quimbanda, Omolokô,
Nagô, Tambor de Mina, Vodum, Ifá e Urubanda28.

24
Requerimento de pesquisa, autorização de pesquisa, direito de requerer a lavra, requerimento de lavra, concessão de
lavra, licenciamento, registro de extração etc.
25
Disponível em: https://50anos.incra.gov.br/caninde-referencia-de-luta-pela-reforma-agraria-no-ceara/. Acessado em 20
de outubro/2021.
26
Mapeamento das Comunidades Quilombolas do Estado do Ceará, 2019.
27
Disponível em: https://www.seduc.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/37/2017/01/dados_quilombola.pdf. Acessado em
20 de outubro/2021.
28
Inventário dos Povos de Terreiro do Estado do Ceará, 2021.

35
Estamos diante, portanto, de uma diversa, profunda e his-
tórica presença de Povos e Comunidades Tradicionais imbuídas
de uma relação dialética com a natureza a partir de uma relação
ser humano-natureza constituídas pela ação de ambos entre si.
Ou seja, o metabolismo compreendido a partir da troca entre
matéria e energia nessa relação mediada pelo trabalho naturaliza
o ser humano ao passo que humaniza a natureza. A expansão da
fronteira mineral transforma natureza produto da acumulação
de capital, fazendo-se enquanto mais um dos contornos da má-
quina de comer o mundo e de moer gente, que a cada mordida
provoca inúmeras, e em distintas escalas, rupturas metabólicas.

Há um front em disputa, e para o setor mineral consolidar


esta sede e vontade de comer que pretende saltar de uma média
que atualmente varia entre 2 e 3% do PIB para 10%, segundo a
proposta do Novo Código de Mineração, há de se expandir em
área e produtividade pelos quatro cantos do país. O Ceará está
em disputa.

Esta conjuntura mineral e agrária associada às amea-


ças e recorrentes f lexibilizações na esfera institucional durante o
governo de Jair Bolsonaro fazem com que esta fronteira se mo-
vimente de forma ainda mais profunda e volátil. O aumento da
violência no campo contra Povos e Comunidades Tradicionais, a
paralisação da demarcação de Territórios Indígenas e Quilombo-
las, a paralisação da Reforma Agrária e a Lei nº 13.465/2017 (nova
Lei de Regularização Fundiária e Urbana) se articulam ao:

a) O Projeto de Lei 5822/19, que autoriza a exploração mi-


neral de pequeno porte em reservas extrativistas;

b) O Projeto de Lei 3729/2004, que promove um desmon-


te do licenciamento ambiental, retirando exigências legais,
criando licenças automáticas por adesão, f lexibilizando as
etapas do procedimento e reduzindo os casos de exigência
de estudos ambientais, dentre outros problemas;

c) A Instrução Normativa nº 112/2021, que regulamenta os


procedimentos para a anuência do uso de áreas em projetos
de assentamentos do Incra por atividade minerária, de ener-
gia e infraestrutura, sem a devida consulta das comunidades
assentadas;

36
d) O Decreto Federal nº 10.966/2022, que institui o que
chamou de “Programa de Apoio ao Desenvolvimento
da Mineração Artesanal e em Pequena Escala” e equi-
para o garimpo nesta categoria;

e) O Projeto de Lei 571/22, que permite que o presidente


da República declare a mineração uma questão de
interesse nacional, liberando a extração em qualquer
área do País.

Esta conjuntura articulada produz uma enorme e perigosa


insegurança jurídica aos povos do litoral ao sertão ao viabilizar
grandes apropriações de terras, do subsolo, da água, da biodi-
versidade pelo capital mineral e pelo agronegócio. Setores no-
tadamente marcadas por um caráter rentista que transforma
natureza e pessoas em mercadoria.

37
Mapa 1 : Mineração no estado do Ceará - Onde não tem mineração no Ceará?

Fonte: MAM, 2022.


38
Mapa 2 : O avanço da mineração sobre a Reforma Agrária no Ceará

Fonte: MAM, 2022.


39
O padrão de concentração fundiária, valor da operação,
montante produzido já é reproduzido no estado quando consi-
deramos a concentração do número de títulos minerários por
empresa, assim como o total de hectares controlados por estas
empresas que mineram e/ou tem interesse em minerar o subso-
lo para exercer o saque das riquezas cearenses.

Os 50 grupos que concentram o maior número de títulos


minerários respondem por 35,9% dos quase seis mil títulos em
todos o estado. Destes, os 10 maiores concentram 18% do total.
As cinco primeiras colocadas são: 1) Codelco do Brasil Mineração
Ltda.; 2) Terrativa Minerais S.A.; 3) Nexa Recursos Minerais S.A.;
4) C. Fernando R. da Paz & Cia Ltda.; e 5) Vulcano Export Mi-
neração Exportação e Importação, conforme mostra o gráfico 6.

Os três primeiros colocados no estado do Ceará estão en-


tre os 10 maiores grupos que concentram todos os títulos mi-
nerários em todo o país: Codelco, Terrativa e Nexa. A Nexa Re-
cursos Minerais é aquela que mais concentra títulos no Brasil,
a Codelco do Brasil Mineração Ltda. em quinto e a Terrativa
Minerais S.A., em oitavo lugar.

O padrão de concentração é ainda maior quando são iden-


tificados quais são os grupos que controlam o subsolo cearen-
se. Os 50 maiores grupos controlam 2,4 milhões de hectares, o
equivalente a 60,2% do total. Destes, os 10 maiores concentram
33,6%, ou seja, 1,3 milhões de hectares. Conforme mostra o grá-
fico 7, as mesmas três empresas se mantém nos três primeiros
lugares, com uma diferença entre as posições: 1) Codelco do
Brasil Mineração Ltda.; 2) Nexa Recursos Minerais S.A.; e 3)
Terrativa Minerais S.A. Juntas, estas três empresas somam 915
mil hectares sobre seu controle. Ou seja, três empresas de mi-
neração, que estão entre as dez maiores do país, concentram o
mesmo que toda a área destinada à Reforma Agrária pelo IN-
CRA no estado do Ceará, responsáveis por assentar mais de 21
mil famílias.

Este é o modelo mineral que queremos importar para o


estado do Ceará?

40
Gráfico 6: Interesse Minerário por Empresas – 50 maiores
(número de títulos): 2000 a 2021
Codelco de Brasil Mineração Ltda 253
Terrativa Minerais S.A. 144
Nexa Recursos Minerais S.A. 138
C. Fernando R. da Paz & Cia Ltda 98
Vulcano Export Mineração Exportação e Importação Ltda 93
Votorantim Cimentos N/NE S.A 88
Vermont Mineração Exportação e Importação Ltda 77
SM Indústria de Minérios do Brasil Ltda 56
Pedra Branca do Brasil Mineração Ltda 53
Lepanto Mineração Ltda 52
Vicenza Mineração e Participações S.A. 51
RP Mineração Ltda 48
Brasil Fortescue Mineração Ltda 42
Quartzblue Mineração Ltda 39
Minérios Nacional S.A. 38
Casa Grande Mineração Eireli 38
Antolini, Exportação, Importação e Mineração Ltda 36
MPP Indústria e Mine ração Eireli 34
CSN Cimentos S.A. 34
Mineração Parnamirim Ltda 32
Divino Lopes dos Santos 31
Carbopar Carbomil Participação e Mineração S.A. 29
South Atlantic Gold Brasil Exploração Mineral Ltda 28
Lara do Brasil Mineração Ltda 28
Ical Indústria de Calcinação Ltda 28
Zeus Mineração Ltda 26
Mont Granitos S.A. 26
COOBAM - Cooperativa de Base Mineral 26
Companhia Industrial de Cimen to Apodi 26
Plenna Materiais de Construção Ltda 25
Luiz Gentil Neto 25
Gramazini Mineração Ltda 25
Cortez Engenharia Ltda 25
Cerâmica Brasileira Cerbras Ltda 25
Milgran Indústria e Comércio de Granitos Ltda 24
Corcovado Granitos Ltda 24
Milka Mineração Exportação e Importação Ltda 23
Sudamérica Ltda 22
Mineração Cardeal do Nordeste Ltda 22
Lomacon Locação e Construção Ltda 22
Calmap Industria de Calcário Ltda 22
Br Stone Mineração, Exportação e Importação Ltda 22
Rhuanny Agropecuária Ltda 20
Mineração Coto Comércio, Importação e Exportação Ltda 20
MDN Mineração do Nordeste Ltda 20
Coréa Calcário Ltda 20
Votorantim Metais S.A. 19
Mineração Agreste Ltda 19
Jeonas Costa Lírio 19
L&M Mineradora e Construções Ltda 18

0 50 100 150 200 250 300


Fonte: ANM, 2022.
41
Gráfico 7: Interesse Minerário por Empresas – 50 maiores
(área em hectares): 2000 a 2021
Codelco de Brasil Mineração Ltda 471.259
Nexa Recursos Minerais S.A. 227.121
Terrativa Minerais S.A. 216.987
Vicenza Mineração e Participações S.A. 77.195
Lepanto Mineração Ltda 76.395
C. Fernando R. da Paz & Cia Ltda 75.668
Votorantim Cimentos N/NE S.A 63.320
Brasil Fortescue Mineração Ltda 58.147
Vulcano Export Mineração Exportação e Importação Ltda 56.142
Pedra Branca do Brasil Mineração Ltda 55.415
Divino Lopes dos Santos 54.571
Vermont Mineração Exportação e Importação Ltda 52.626
South Atlantic Gold Brasil Exploração Mineral Ltda 46.822
Mineração Parnamirim Ltda 43.227
RP Mineração Ltda 42.230
Zeus Mineração Ltda 41.197
Carbopar Carbomil Participação e Mineração S.A. 39.779
Sudamérica Ltda 36.589
Rafael Nunes 35.658
SM Indústria de Minérios do B rasil Ltda 31.998
Votorantim Metais S.A. 31.958
Gramazini Mineração Ltda 29.625
Rio Tinto Desenvolvimentos Minerais Ltda 29.543
Bahmex Bahia Mineral Exploration Ltda 29.309
Lara do Brasil Mineração Ltda 27.733
Plenna Materiais de Construção Ltda 26.217
MDN Mineração do Nordeste Ltda 25.768
Ronaldo Diniz de Almeida 25.681
Carvalho Locação e Serviços Ltda 25.188
Ical Indústrial de Calcinação Ltda 25.183
Ceará Mineração Ltda 24.871
Minérios Nacional S.A 23.870
Antolini, Exportação, Importação e Mineração Ltda 23.363
CCM Mineração Ltda 22.363
Titânio das Américas S.A. 22.281
Corcovado Granitos Ltda 21.215
NMB Comercial Ltda 20.913
Coréa Calcário Ltda 20.622
GR Consultoria em Prospecção Mineral Ltda 20.265
CSN Cimentos S.A 19.987
Casa Grande Mineração Eireli 19.415
Quartzblue Mineração Ltda 18.895
Britez do Brasil Ltda 18.359
Iluka Brasil Mineração Ltda 17.594
Ceará Lítio Mineração Eireli 17.076
Companhia Industrial de Cimen to Apodi 16.218
MPP Indústria e Mine ração Eireli 15.865
Mineração Serra D’água Ltda 15.573
Mineração Dorica Ltda 15.309
Ferroatlantica Brasil Mineração Ltda 15.058

0 100.000 200.000 300.000 400.000 500.000


Fonte: ANM, 2022.
42
2.2. A demanda por água do setor mineral

De acordo com a Comissão Pastoral da Terra29, desde 2014


as empresas mineradoras lideram os casos de conflito por água
em todo o país. Se em 2011 foram registradas 69 ocorrências de
conflitos envolvendo 28.057 famílias, em 2019 foram 502 casos
envolvendo 79.381 famílias. O número de casos de conflito por
água no Brasil cresceu 727%, enquanto o de famílias envolvi-
das praticamente triplicou. Deste total de casos registrados em
2019, 43% foram provocados por empresas mineradoras e 38%
do total estavam concentrados na região nordeste do país. Em
2020, registrou-se o segundo ano com maior número de casos:
350, dos quais 40% foram provocados por mineradoras.

Se torna, portanto, urgente denunciarmos o estado das


artes da estrutural desigualdade do consumo e distribuição da
água a partir do tamanho da sede do setor mineral. Através de
uma análise do Sistema de Balanço Hídrico da Companhia de
Gestão de Recursos Hídricos, obtivemos dados relativos a todas
as outorgas concedidas no estado do Ceará.

Os números levantados apresentam uma profunda desi-


gualdade do acesso à água no Ceará, com importante destaque
para Irrigação, notadamente marcada pela hegemonia do agro-
negócio, que concentra 34,6% do total de outorgas, seguido do
Serviço e Comércio, com 15,9%, Abastecimento Público, com
12,6% e Indústria, com 11,7%, conforme apresenta o gráfico 8.

Quando consideramos a vazão outorgada por dia, ou seja,


o quanto de água é destinado para cada setor, a concentração
do consumo de água pelo agronegócio se torna ainda maior,
39,5%, seguido do Abastecimento Humano, 27,4%, Diluição de
Efluentes, 11,5% e Indústria, 7,5%, conforme mostra o gráfico 9.

Segundo o Sistema Nacional de Informação sobre Sanea-


mento (SNIS) , uma pessoa que vive no Ceará consome em média,
diariamente, 137,35 litros de água. Dessa forma podemos exercer
didaticamente uma forma de comparação que nos mostra quantas
pessoas poderiam beber da água destinada a qualquer um deste
setores privados, por exemplo. Sendo a vazão outorgada do agro-
negócio equivalente a 2,1 milhões litros/dia e o consumo médio

29
Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/downlods/category/3-cadernoconf litos (Acessado em 15 de
setembro/2022)
30
Disponível em: http://www.snis.gov.br/downloads/diagnosticos/ae/2018/Diagnostico_AE2020.pdf (acesso em 15 de
setembro/2022).
43
de uma pessoa residente no estado do Ceará de 137,35 litros/dia, o
Agro é Pop, Agro é Tudo concentra um montante de água capaz
de abastecer 15,3 milhões de cearenses, o mesmo que duas vezes o
estado do Ceará. Considerando apenas esse quadro, parece viável
absorver e importar um modelo mineral com uma fome capaz de
desejar 30% de todo o território cearense? Qual seria o tamanho
dessa sede? Sobraria água para o povo que já convive com a seca?

Gráfico 8: Outorgas Concedidas por Setor – Ceará, 2022

774 697

838 89
673

16
277

1054

172
2291

Irrigação Dessedentação animal Aquicultura


Indústria Abastecimento humano Diluição de afluen tes
Serviço e comércio Demais usos Água mineral e potável de mesa

Fonte: Sistema de Balanço Hídrico da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos.

Gráfico 9: Vazão Outorgada por Setor (litros/dia) – Ceará, 2022


616.406.976
402.625.728

385.305.984
23.965.632
256.064.544
1.463.272.992
105.771.744 1.705.736

80.100.576
2.108.720.045

Irrigação Dessedentação animal Aquicultura


Indústria Abastecimento humano Diluição de afluen tes
Serviço e comércio Demais usos Água mineral e potável de mesa

Fonte: Sistema de Balanço Hídrico da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos.

31
Disponível em: http://outorgasvigentes.cogerh.com.br/paginaSemValidacao/outorgaVigente/outorgas_fh.xhtml (acesso
em 15 de agosto/2022.
44
Nos interessa, ainda, identificar qual o tamanho da sede
deste setor, considerando as atividades já licenciadas. Ou seja, o
tamanho do consumo de um setor que avança saqueando nos-
so subsolo e espoliando nossas águas quase que invisivelmente.
O gráfico 10 nos mostra então, qual a vazão destinada ao setor
industrial em comparação com os demais setores.

Há uma dificuldade importante quando tenta-se identificar


a vazão outorgada do setor minero-metal-siderúrgico no interior
do setor Industrial, uma vez que não há a caracterização e divi-
são das atividades através do Cadastro Nacional por Atividade
Econômica (CNAE). De toda a forma, o gráfico 11 identifica o re-
sultado possível através do levantamento feito por palavras-cha-
ve na coluna relativa aos requerentes. Este setor, responde, então,
por 36% de toda vazão outorgada para a Industria no estado do
Ceará, um dado provavelmente subdimensionado.

O fato é que quando analisado quem são os dez maiores


consumidores de água do estado, sete deles estão ligados à ca-
deia minero-metal-siderúrgica32, localizada nos municípios de
Caucaia e São Gonçalo do Amarante. Este setor, portanto, con-
centra um consumo que poderia abastecer mais de 1 milhão de
pessoas em todo o estado, o equivalente a quatro vezes a cidade
de Juazeiro do Norte.

É certo de que se comparado ao agronegócio a diferença


quantitativa é grande, mas o que colocamos aqui é que há um
processo político e econômico que busca consolidar o setor mi-
neral e fazer do estado o centro de referência da mineração no
Nordeste33 , região que concentra o total de conflitos por água no
país e provocados por mineradoras. Sob esta perspectiva, a vazão
consumida pelo setor cresceria vertiginosamente, assim como
saltou de 75 mil para 4,2 milhões de hectares em 20 anos. Por
que há água para a mineração e não há para o povo cearense?

Serão estas terras, águas e minerais saqueados, este povo


trabalhador roubado e adoecido que queremos para o nosso
Ceará? Certo que há mais por vir no front mineral que se apre-
senta no horizonte. Isto nos coloca, portanto, em um momento
histórico e relevante: há margem para contenda que construa
territórios livres de mineração. É isto ou barbárie!

32
Na ordem: Companhia Siderúrgica do Pecém; Porto do Pecém Geração de Energia; MPX Pecém II Geração de Energia
S.A.; Central Geradora Termelétrica Fortaleza S.A.; Usina Siderúrgica do Ceará; Termoceará.
33
Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/economia/2021/10/06/canadense-jangada-mines-investira-rs-54-
milhoes-na-exploracao-mineral-em-taua-ceara.html. Último acesso em: 20 de outubro/2021.

45
Gráfico 10: Vazão Industrial x Demais Setores (litros/dia) – Ceará, 2022

402.625.728

4.935.542.285

Fonte: Sistema de Balanço Hídrico da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos.

Demais setores Indústria

Gráfico 11: Vazão Setor Mineral x Setor Industrial (litros/dia) – Ceará, 2022

145.071.648

257.554.080

Fonte: Sistema de Balanço Hídrico da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos.

Minero-metal siderúrgico Indústria

46
3. Territórios em
conflito com a mineração
no Ceará

A montanha pulverizada – Carlos Drummond de Andrade

Chego à sacada e vejo a minha serra,


a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.
Era coisa de índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é a sua vista a contemplá-la.
De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na fluência.
Esta manhã acordo e não a encontro,
britada em bilhões de lascas,
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões,
no trem-monstro de 5 locomotivas
– trem maior do mundo, tomem nota –
foge minha serra vai,
deixando no meu corpo a paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.

47
Dentre o grande número de processos minerais que explo-
diram nos últimos 20 anos, cresceram também o número de
territórios em conflitos com a mineração em todo estado. Os
conflitos iniciam-se antes mesmo que o saque mineral esteja
consumado, pois desde os primeiros processos de intimidação
dos territórios ou narrativas falaciosas feitas pelas mineradoras
propagandeando a atividade mineral como "solução econômi-
ca" que o medo e o terror começam a rondar as comunidades.

O discurso da indústria da mineração tem sido narrado


como “progresso e desenvolvimento” no estado do Ceará, va-
lorizando mais o minério que está sob nossos pés do que os
corpos que habitam os territórios e que têm o direito de di-
zer não à mineração e sim aos seus modos de vida. Com essa
prerrogativa temos afirmado que nem uma atividade mineral
pode ter o direito de sacrificar a cultura, a terra, a água e a eco-
nomia de um território em nome de um projeto que destrói,
adoece e mata.

Para compreendermos melhor a voracidade da minera-


ção, apresentamos a seguir uma síntese de três territórios em
conflito com a mineração. Dois deles estão organizados e em
luta para que as mineradoras não invadam seus territórios e
destruam seus modos de vida e o terceiro que já foi minerado,
luta pelo direito de continuar existindo sem a continuidade
da mineração. A luta do povo é para que seus territórios sejam
livres de mineração.

3.1. Mineração de ferro em Quiterianópolis: saque, crimes


socioambientais, doenças e mortes

A chegada da mineradora Globert (capital chinês) para


explorar o minério de ferro em Quiterianópolis foi propagan-
deada como a salvação econômica para a população que habi-
ta a região do Sertão dos Inhamuns. Formou-se um pacto en-
tre o estado e a indústria mineral que esbanjava a narrativa do
"progresso e desenvolvimento", desconsiderando os modos de
vida e iniciativas econômicas locais. Era como se todos os pro-
blemas relacionados à seca, à pobreza e a qualquer malef ício
fossem ser sanados com a mineração.

48
A mineradora Globest34 obteve licença do órgão ambien-
tal do estado para explorar minério de ferro apenas no mês de
setembro do ano de 2011, mas desde o mês de outubro de 2010
que as atividades de exploração tinham iniciado. A mineração foi
licenciada a 200 metros da margem direita do Rio Poty e ao lado
de três comunidades camponesas, o que significou uma afronta
ao princípio da precaução à vida do Rio Poty que está diretamen-
te relacionado com os modos de vida do território camponês. A
irresponsabilidade da mineradora somada à insensatez do órgão
licenciador estatal resultou em diversos crimes socioambientais
como poderemos analisar na tabela 1.

34
Disponível em: https://mamnacional.org.br/2019/02/27/quiterianopolis-e-o-novo-brumadinho-no-ceara/. Acessado em
30 de julho/2020.

49
Tabela 1: Sistematização dos crimes ambientais da empresa Globest
Participações Ltda.

Fonte: Relatório Técnico da SEMACE nº 4038/2017- DIFIS/GEFIS (organizado por Silva, 2020)

50
Além dos 14 crimes listados, a empresa Globest responde
por três ações penais perante a Vara Única de Quiterianópolis
acusada por práticas de crimes ambientais. O processo de 2012
foi sentenciado em novembro de 201735.

Cerca de 300 famílias que habitam as comunidades campo-


nesas de Besouro, Bandarro e Monteiro que são diretamente
afetadas, vivem próximas às vertentes do Rio Poty e tiveram
seus modos de vida ameaçados e/ou destruídos pela poeira e
lama de rejeitos que contaminaram o ar, a terra e a água com
metais pesados. Os impactos foram e ainda são imensuráveis
em relação à diminuição da produção camponesa, disputa pela
água e o aparecimento de doenças respiratórias e dermatoló-
gicas ao longo dos anos. Vejamos no mapa 3 uma síntese dos
impactos da mineração sobre o território camponês a partir da
cartografia social que foi construída com e pelas comunidades.

35
Condenou a empresa por crime ambiental previsto no art. 38 da Lei nº 9605/98 por danificar vegetação em APP.

51
Mapa 3 : Território camponês em conflito com a mineração de ferro – Quiterianópolis, Ceará
Cartografia Social - Cartografia decolonial

Fonte: Silva 2020.

52
Como podemos visualizar no mapa, existem pilhas de re-
jeitos que estão a cerca de 200 metros do Rio Poty. Ao longo
dos anos as enxurradas vão carregando o rejeito para dentro do
leito do rio e ao mesmo tempo se espalham nas lavouras dos
camponeses. Portanto, o Rio Poty está assoreado e os lugares
produtivos cobertos e contaminados por rejeitos de mineração.
No local do encontro dos rejeitos com as águas do Rio Poty,
antes da mineração era o local de plantar arroz, tomar banho e
pescar, hoje, o que se ver é destruição.

Depois de muita luta e articulação do território com mo-


vimentos sociais, Escritório de Direitos Humanos Frei Tito de
Alencar e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Le-
gislativa do Estado do Ceará, se conseguiu no ano de 2019 uma
análise técnica via a NUTEC36 para verificar a presença de me-
tais pesados no solo, nos sedimentos e na água. A NUTEC apre-
sentou o resultado do estudo que detectou a presença de vários
metais pesados acima do valor permitido, conforme resolução
do CONAMA no 420/2009. A seguir apresentamos na tabela 2
apenas o resultado dos pontos de coleta.

Tabela 2: Resultado da análise de substancias químicas do ponto 2 localizado a leste


da mina de ferro na APP e a 200m da planta de beneficiamento

Fonte: Relatório Técnico da NUTEC no 17850.

36
Núcleo de Tecnologia e Qualidade Industrial do Ceará – NUTEC é vinculada à Secretaria da Ciência, Tecnologia e
Educação Superior do Estado (SECITECE).

53
O destaque entre as substâncias que ficaram acima do va-
lor de prevenção é para o antimônio, que na amostra de sedi-
mento deu resultado de 2.986,57 mg/kg e no solo de 963,14,
quando conforme a resolução do CONAMA 420/2009, o valor
de prevenção deveria ser apenas 02 mg/kg e o valor de investiga-
ção poderia ser até de 25 mg/kg, porém já considerando riscos
à saúde humana de forma generalizada. Conforme o relatório
da NUTEC, a exposição aguda por ingresso oral do antimônio
resulta em irritação da mucosa gástrica, vômito, cólica abdomi-
nal, diarreia e toxidade cardíaca, para além de ser cancerígeno.

Outra descoberta da análise da NUTEC que já era previ-


sível é que os rejeitos de mineração de ferro carregados para
dentro do Rio Poty chegaram no Açude Flor do Campo que
abastece a população da cidade de Novo Oriente. A água do
açude também apresentou altos níveis de metais pesados. A es-
cala dos afetados e em conflitos com a mineração cresceu ainda
mais, prejudicando diretamente a atividade da pesca artesanal
e indiretamente toda população que utiliza água do açude.

Depois de sete anos de saque mineral, a resistência e luta


do território camponês juntamente com movimentos sociais,
igrejas, entidades e instituições jurídicas fizeram com que a
exploração do minério (extração e beneficiamento do ferro)
fosse embargada em dezembro de 2017. Até então, a mina não
voltou a saquear e destruir o território, mesmo que os danos
socioambientais continuem acontecendo porque sequer os
danos individuais ou coletivos foram reparados pela minera-
dora. O território continua vigilante e resistindo às especula-
ções de que as atividades irão recomeçar.

Ao contrário do que a indústria mineral insinuou que a


mineração traria ‘progresso e desenvolvimento’ para o Sertão dos
Inhamuns, na verdade instalou-se o medo e terror na região.
O território camponês viu sua economia definhar, a água e a
terra serem contaminadas e o constante adoecimento das pes-
soas. Partindo desse pressuposto podemos afirmar que, assim
como foi no período colonial até os dias de hoje, de onde mais
se saqueia riquezas, mais se produz pobreza. Em Quiterianó-
polis, o ‘progresso’ escorre até hoje pelo leito Rio Poty, mas em
vez de produzir riquezas continua empobrecendo a terra, ge-
rando miséria e adoecendo o território camponês.

37
Corresponde à lista de valores para solo e sedimentos (Resolução do CONAMA 420/2009).

54
3.2. Mineração de ferro em Ipaporanga: ameaça e medo.

No Município de Ipaporanga situado entre o Sertão de


Crateús e serra da Ibiapaba, na divisa com o estado do Piauí,
as mineradoras Green Hill Minérios Eireli, Coreaú Calcário
Ltda, Cortez Engenharia Ltda, Splendour Mineração e Tra-
porte Ltda, Itinga Mineração Ltda38 projetam há alguns anos
a exploração de minério de ferro, saibro e calcário. Uma área
de 4.326,06 km2 localizada na Serra da Boa Esperança foi
autorizada pela ANM em agosto de 2021 para a minerado-
ra Green Hill Minérios Eireli fazer o processo de pesquisa e
sondagem em uma jazida de ferro.

A área de interesse das mineradoras está situada à oeste


do município de Ipaporanga. Essa região se localiza e se di-
vide geograficamente enquanto relevo em uma área de serra
(Serra da Boa Esperança e Serra dos Remédios) que está in-
terligada ao Glint da Ibiapaba e, em uma área de Pé de Serra
(aplainamento e/ou depressão sertaneja) que é bastante po-
voada. Na área de serra tem-se uma vegetação de Caatinga
misturada com culturas da mata atlântica, com solos mais
profundos que contêm grande diversidade de fauna e flora.
A serra, também é conhecida como um grande vertedouro
de água, dada a sua capacidade de armazenar e possibilitar
que aflore diversas nascentes. A área sertaneja (pé de serra),
que também tem bons solos agricultáveis e se beneficia da
altitude que libera matéria orgânica até os lugares mais bai-
xos e planos, é popularmente conhecida como a região mais
produtiva do município de Ipaporanga.

Assim, em vez de ser uma área de interesse mineral, a


população da serra e pé de serra que formam um grande ter-
ritório camponês decretaram que todo esse território deve
ser livre de mineração, e se transforme em uma Zona Especial
de Patrimônio Hídrico, Ambiental, Histórico e Cultural de
Ipaporanga. Para assegurar tal ensejo como direito do povo
e da natureza, existe um projeto lei tramitando na Câmara
Municipal para a criação da Zona de proteção ambiental,
hídrica, histórica e cultural de Ipaporanga, totalizando uma
área de 421.129 km2 como podemos observar no mapa 4.

38
Disponível em: https://geo.anm.gov.br/portal/apps/webappviewer/index.html?id=6a8f5ccc4b6a4c2bba79759aa952d908.
Acessado em: 30/09/2021.

55
Mapa 4 : Zona de proteção ambiental, hídrica, histórica e cultural de Ipaporanga

Fonte: MAM, 2021.

56
Portanto, como se trata de uma região com interface
que dispõe de área de patrimônio natural e cultural riquís-
simos, dado o seu potencial paisagístico, hídrico e de solos
férteis, as comunidades camponesas defendem que esse
grande território continue sendo o grande potencial eco-
nômico local que lhes proporciona produção agropecuária
e extrativista em abundância. As diversas comunidades que
compõem o grande território de pé de serra se benef iciam
das águas e das terras férteis para produzirem trabalho e
renda ao longo de todo ano para se autossustentarem.

Na região serrana, encontram-se entre ou junto às ja-


zidas pelo menos 52 nascentes de água (olhos d’água), con-
forme georreferenciamento realizado pelo Movimento em
Defesa da Vida (MDV) e pelo Movimento pela Soberania
Popular na Mineração (MAM) em parceria com o Instituto
Bem Viver (IBV) e a Prefeitura de Ipaporanga. As comuni-
dades camponesas do pé de serra utilizam a água dos olhos
d’água por gravidade. Existe inclusive caixas de distribuição
e Chafarizes espalhados na região sertaneja onde as famí-
lias têm acesso água. Vejamos no mapa 5 a localização das
quatro jazidas de ferro na região serrana que somam uma
área de mais de 4 mil hectares, olhos d’água, caixas d’água e
chafarizes que estão intrinsecamente ligados.

57
Mapa 5 : Área em processo de pesquisa para mineração de ferro

Fonte: MAM, 2021.

58
As comunidades camponesas da serra e pé de serra desen-
volvem diversas atividades econômicas, sobretudo pela agricul-
tura familiar camponesa que se utiliza de práticas agroecológi-
cas para produzir frutas (manga, caju, castanha, entre outras e
suas respectivas polpas) e uma diversidade de legumes e verdu-
ras. É muito comum a criação de animais como aves (galinha,
peru, pato, etc.), suínos, caprinos, ovinos e bovinos. Há, ainda,
usos extrativistas de pequeno porte no território que geram
economia e renda, tais como a extração de palha e cera de car-
naúba, extração de oiticicas, buriti e coco babaçu. Também há
potencial na produção de vassouras e derivados de palmeiras.

O temor da população é que toda biodiversidade seja mo-


ída pela indústria da mineração e acabe destruindo os modos
de vida local como aconteceu em Quiterianópolis. Por isso, o
território tem se articulado para dizer não à mineração e sim
à vida39. A organização de comunidades camponesas em Ipapo-
ranga que tem freado as invertidas das mineradoras nos ensina
que poderemos sim dizer não à mineração, declarando-se como
território livre de saque mineral.

3.3. Mineração de urânio e fosfato em Santa Quitéria

O Projeto Santa Quitéria (PSQ )40 é constituído por um


consorcio entre a estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e
a Empresa privada Fosnor – Fosfatados do Norte-Nordeste S. A,
detentora da Marca Galvani Fertilizantes, que juntas, cobiçam
desde 2004 explorar a jazida/mina de Itataia (urânio e fosfato)
em Santa Quitéria (Sertão Central cearense). Esse é um dos
projetos minerais mais emblemáticos que enfrentamos dada a
sua capacidade de destruição em pleno Semiárido cearense.

Ao redor da jazida/mina habitam dezenas de comunida-


des tradicionais camponesas, pescadores, indígenas, quilombo-
las e assentamentos da Reforma Agrária que vivem da lida com
a terra, produzindo alimentos para o sustento de suas famílias.

O território camponês tem vivenciado uma trajetória de


ameaças por parte das mineradoras que não economizam na
narrativa de mentiras menosprezando os impactos da mineração

39
Disponível em: https://mamnacional.org.br/2017/11/15/no-ceara-comunidade-debate-ameacas-de-mineradoras/.
Acessado em 30 de julho/2020.
40
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/10/23/artigoor-a-chantagem-politica-do-uranio-exploracao-da-
mina-de-itataia-no-ceara. Acessado em 30 de julho/2020.

59
de urânio e fosfato poderá trazer para a saúde humana confor-
me apresentou o parecer técnico41 que analisou o Estudo de Im-
pacto Ambiental do Projeto Santa Quitéria (2014) e apontou
falhas em relação à saúde pública, à saúde dos trabalhadores e
à Saúde Ambiental.

Vale lembrar que a organização do povo já derrotou o PSQ


por duas vezes: a primeira em 2008, através de uma ação civil
pública que identificou a falta de competência do órgão am-
biental estadual (SEMACE) no licenciamento da atividade rela-
cionada à exploração e beneficiamento de urânio e, a segunda,
em fevereiro de 2019, quando o próprio IBAMA analisou o pro-
jeto como inviável do ponto de vista socioambiental e hídrico.

Mas, pela terceira vez em 2020, o Projeto Santa Quitéria


entra com um novo pedido de licenciamento no IBAMA e já
repetindo os mesmos erros conforme aponta a Nota Pública42
assinada por mais de 200 organizações, que denuncia as contro-
vérsias das mineradoras e do próprio Estado do Ceará que assi-
nou um termo de memorando em outubro de 2020 se compro-
metendo em custear infraestrutura hídrica, energética, estradas
e incentivos fiscais para tal.

O grande temor da população que vive no entorno da jazi-


da/mina é que suas culturas e modos de vida sejam exterminados
pelo potencial de destruição radioativa que poderá ser exalado
sobre as comunidades, seja pela ação do vento ou mesmo pela
drenagem hídrica. A jazida/mina está situada geograficamente
na serra do Machado, onde nascem afluentes de três importantes
bacias hidrográficas (Acaraú, Curu e a Arataiaçu) que banham
toda região norte do nosso estado. Um deles é o Rio Groaíras,
que é o principal afluente do Rio Acaraú. Dessa forma, qualquer
vazamento, infiltração ou lixiviação de material radioativo pode-
rá impactar indiretamente outras cidades para além das comuni-
dades que habitam o entorno da jazida/mina.

Vejamos no mapa 6 alguns elementos que consideramos


extremamente importantes de serem refletidos, dada a sensibi-
lidade que lhes é cabida frente à tamanha ameaça para a vida
de toda população da região norte no estado.

41
Disponível em: https://geo.anm.gov.br/portal/apps/webappviewer/index.html?id=6a8f5ccc4b6a4c2bba79759aa952d908.
Acessado em: 30/09/2021.
42
Disponível: https://territorioslivres.org/resistencias/nota-santa-quiteria-territorio-livre-de-mineracao-de-uranio-e-
fosfato-manifesto-politico/. Acesso em: 03/12/2022

60
Mapa 6 : Os impactos diretos e indiretos da mineração de urânio e fosfato no Ceará

Fonte: Articulação Antinuclear do Ceará, 2021.

61
O Mapa foi elaborado por equipe interdisciplinar, com
pesquisadores, ativistas da Articulação Ceará Antinuclear
(AACE), movimentos sociais e representação das comunidades.
Nele é representada a área que poderá ser atingida e fortemen-
te vulnerabilizada pelas fases de mineração e carregamento de
urânio e fosfato da mina de Santa Quitéria-CE, pelas rodovias
estaduais e federais e com destino aos portos do Pecém em São
Gonçalo do Mucuripe em Fortaleza.

As bacias hidrográficas, os ecossistemas, as cidades e os


territórios tradicionais quilombolas, de pescadores, maris-
queiras, camponeses e territórios indígenas foram definidos
levando em conta os riscos de contaminação das águas super-
ficial e subterrânea, da biodiversidade, dos núcleos urbanos,
distritos e assentamentos rurais. O território em risco de de-
sastres graves possui uma população estimada (IBGE, 2020)
de 4.552.340 de pessoas (incluindo a população de Fortaleza,
com 2 milhões e 687 mil de habitantes).

A cartografia coletiva foi elaborada de modo a caracterizar


e qualificar a análise técnica das omissões e insuficiências do
Projeto Santa Quitéria e objetiva demonstrar para a popula-
ção a ser afetada a deficiência dos estudos para o licenciamento
ambiental que não consideraram a abrangência territorial dos
impactos socioambientais. E, para delimitar a abrangência das
possíveis falhas e acidentes envolvendo os minérios radioativos
(urânio e fosfato), as bacias hidrográficas e os territórios com
elevada população foram os parâmetros ambientais e sociais
que estruturaram a espacialidade definitória da zona de disse-
minação dos componentes radioativos no meio ambiente.

A bacia hidrográfica do rio Acaraú será fortemente impac-


tada, tanto nas fases de mineração, por meio do escoamento
superficial e infiltração nos aquíferos desde as pilhas de rejeito
e poeiras produzidas na lavra e industrialização, como no trans-
porte do urânio e fosfato para os municípios de Fortaleza e São
Gonçalo do Amarante.

O Rio Groaíras, maior afluente do Rio Acaraú, tem nas-


cente ao lado da mina e atravessa parte do território semiárido
do sertão cearense, com as vazantes úmidas e aquíferos livres, as
cisternas e cacimbas para o armazenamento e manejo da água
das chuvas para usos múltiplos e demais reservatórios de água,
que serão contaminados. E daí esse fato vai afetar os pequenos e

62
médios açudes, como a barragem Edson Queiroz, que abastece
a cidade de Santa Quitéria (município com população estima-
da de 46.763 habitantes IBGE, 202043), antes de alcançar o rio
Acaraú, e, por esse motivo, também, degradar a saúde comuni-
tária e o modo de vida das populações camponesas, pescadores/
as, étnicas e tradicionais ribeirinhas.

Nesse universo, ainda, vai deteriorar a economia regional


relacionada com a produção e o comércio de alimentos agroeco-
lógicos, o turismo religioso e comunitário, além de promover co-
lapsos nos municípios por toda a extensão da bacia hidrográfica.

As bacias dos rios Arataiaçu, Curu e Ceará, também, serão


afetadas com a contaminação por possíveis acidentes no trans-
porte e, dessa maneira, alcançarão as comunidades litorâneas
e o mar, catástrofe que, possivelmente, envolverá o litoral dos
Estados do Piauí e Maranhão.

Constitui, por conseguinte, um contexto de elevada ame-


aça de propagação de contaminantes em escala regional e im-
pactos irreversíveis aos sistemas ambientais continental, mari-
nho e costeiro. Nesse contexto, acometerá os biomas Caatinga,
Mata Atlântica e Costeiro-Marinho - além de várias Unidades
de Conservação de proteção integral e uso sustentável. O mapa
evidenciou a região de dispersão da pluma de contaminação
do radônio por via aérea (ventos de nordeste, leste e sudeste),
que, certamente, alcançará a região da Ibiapaba e avançará pela
fronteira com o Piauí.

As populações expostas, os territórios étnicos e tradicio-


nais e o modo de vida integrado com a água e os ecossistemas
e as demais relações sociais, culturais e econômicas poderão ser
arrasados pelos contaminantes radioativos. O transporte do
fosfato, decerto, vai alterar a qualidade do solo e, consequente-
mente, impulsionar graves danos à soberania alimentar e cul-
tural. Nesse cenário, foram mapeados 12 povos indígenas dis-
tribuídos em 113 aldeamentos e 16 comunidades quilombolas,
passíveis de ser alcançados pela radiação nuclear.

Por conseguinte, a cartografia social regional (escala 1:


1.200.000) elaborada deverá ser utilizada para suscitar novas
cartografias em escalas de detalhe para evidenciar instrumen-
tos com vistas a conduzir a necessidade da consulta livre, prévia
e informada a povos indígenas, quilombolas e tradicionais.

43
Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/panorama. Consulta realizada em agosto de 2021.

63
Em conjunto com a mineração e o transporte do urânio
e fosfato, os impactos cumulativos deverão ser amplamente
analisados em decorrência da extensiva zona de mineração in-
cluída na poligonal da cartografia com área de 44.630,71km2
(30% do território cearense), com a concessão de lavra emitida
pela CPRM (ferro, cobre, calcário, quartzito, granito, entre ou-
tros)44. Lembra-se, ainda, que os metais pesados, a poeira pro-
vocada pela extração de rochas ornamentais e brita, também
exprimem elevada toxidade para os seres humanos, em razão
dos severos efeitos biológicos que desencadeiam em função
dos seus comportamentos bioquímicos no interior dos orga-
nismos.

Portanto, a cartografia dos impactos diretos e indiretos da


mineração e transporte de urânio e fosfato representa mais um
instrumento de luta e afirmação da qualidade de vida de todas
as espécies, e foi elaborada desde o conhecimento das relações
socioambiental, cultural e econômica das populações no terri-
tório em conjunção com pesquisadores de várias instituições
públicas e representações dos movimentos sociais, comunida-
des tradicionais e povos indígenas. Conforma um poderoso
mecanismo interdisciplinar para a soberania popular na mine-
ração e de combate às injustiças ambientais, hídricas, sociais,
racismo ambiental e extremo climático.

3.3.1. A injustiça hídrica do Projeto Santa Quitéria

Tendo em vista que o Projeto Santa Quitéria é um em-


preendimento com uma alta demanda hídrica, previsto para
se instalar em um território do Semiárido cearense que tem
como característica climática a escassez hídrica, o tema hídrico
se apresenta com centralidade além de nos processos de avalia-
ção de viabilidade ambiental, também como uma preocupação
por parte da sociedade civil do município de Santa Quitéria e
do estado do Ceará. É, portanto, tema recorrente em debates
públicos, pareceres técnicos, fala de moradores da região e pau-
ta da mídia local.

Como frisado anteriormente, a mineração é uma das prin-


cipais atividades que gera conflitos com relação à disputa pela
água, principalmente no Semiárido brasileiro. Na segunda

44
Ver mapa com os requerimentos e autorizações de pesquisa e concessões de lavra disponível em https://geo.anm.gov.
br/portal/apps/webappviewer/index.html?id=6a8f5ccc4b6a4c2bba79759aa952d908. Consulta realizada em agosto de 2021.
64
tentativa de licenciamento entre 2010 e 2019 o licenciamento
ambiental já estava sendo conduzido pelo IBAMA, e o tema
hídrico era um ponto importante na análise de viabilidade
ambiental do empreendimento, sobretudo pelo momento de
escassez hídrica acentuada pela qual passou o estado entre os
anos de 2012 e 2018.

Em 2014 o Laudo Técnico no 030/2014-4aCCR, do Minis-


tério Público Federal, 4ª Câmara de Coordenação e Revisão
– Meio Ambiente e Patrimônio Cultural, ao analisar o EIA/
RIMA do empreendimento, concluiu que:

O cenário atual de oferta de água coloca em dúvida o entendi-


mento de que há disponibilidade hídrica para atender a operação do
empreendimento. De maneira que se sugere a reavaliação da questão
pelos órgãos responsáveis do setor. (...) O Projeto Santa Quitéria en-
traria no sistema com autorização para captar 8.030.000 m3/ano. Isto
é, o reservatório, atualmente fragilizado, seria submetido a um acrés-
cimo de demanda da ordem de 427%. (MPF, 2014, p. 17-19).

Em 2016, o Parecer Técnico no 02001.003419/2016-12 CO-


MOC/IBAMA, que analisa a viabilidade do empreendimento, em
referência a um documento emitido pela SRH que tratava do es-
tudo de atendimento à demanda hídrica do PSQ, apresenta que:

No contexto de fé pública desses estudos e, ainda, das respon-


sabilidades legais dos órgãos que os produziram, a saber Secretaria
Estadual de Recursos Hídricos e Companhia de Gestão de Recursos
Hídricos – COGER, houve resposta à dúvida outrora levantada pelo
Ibama quanto à viabilidade hídrica para o projeto. No entanto, não
se pode deixar de registrar junto aos tomadores de decisão deste Ins-
tituto o entendimento de que as ações indicadas no próprio estudo
como necessárias para a viabilidade hídrica do projeto e da região
são, ao mesmo tempo, onerosas, sob o ponto de vista de custos de
implantação, e complexas, no que se refere aos mecanismos de gestão
de recursos hídricos. Desse modo, entende-se que a disponibilização
de água para o projeto requererá um esforço diferenciado do respon-
sável pelas obras de infraestrutura, isto é, do Governo Estadual do
Ceará. Ademais, não se pode desprezar que a condição de escassez
hídrica é uma realidade em parte do Estado do Ceará. Recente ato ad-
ministrativo da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil exem-
plifica essa realidade, quando reconheceu a situação de emergência,
em decorrência da seca, em 9 (nove) municípios desse Estado (OU de
22 de agosto de 2016).” (IBAMA, 2016, p. 86)

65
O parecer, por fim, conclui que “a concepção atual do pro-
jeto, principalmente no que se refere ao tratamento das ques-
tões hídricas e energéticas, não se insere no necessário contexto
de sustentabilidade ambiental” (IBAMA, 2016, p. 89). Tal con-
clusão foi reafirmada no Despacho no 4299534/2019-DILIC,
que decide pela negativa da licença e arquivamento do processo
em fevereiro de 2019.

No terceiro processo de licenciamento ambiental, o abas-


tecimento hídrico está sendo tratado de forma dissociada do
projeto principal. Dessa forma, além de uma fragmentação de
dados relacionados à não integração entre os licenciamentos
ambiental (conduzido pelo IBAMA) e nuclear (conduzido pela
CNEN e previsto em lei), há outra instância de fragmentação
que está relacionada às análises acerca da viabilidade hídrica do
empreendimento e da segurança hídrica da região.

No atual licenciamento, a infraestrutura do sistema adu-


tor para abastecimento do PSQ está sendo licenciada pela Su-
perintendência Estadual do Meio Ambiente (SEMACE), tendo
como interessado a SRH (SPU: 01722042/2022). Ademais, a dis-
ponibilidade hídrica ao projeto de mineração, conforme apre-
sentado, está sendo afirmada ao IBAMA pela SRH, através da
Outorga Preventiva concedida e da Nota Técnica No 001/2021,
emitida pela COGERH/SRH.

O Relatório da Missão Santa45 Quitéria - CE realizada


pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) inti-
tulado “Violações de Direitos Humanos na Mineração de Urâ-
nio” aponta que a fragmentação viola a Lei Complementar No
140/2011, que em seu art. 13 determina a condução de licen-
ciamento ambiental de empreendimentos por um único ente
federativo, cabendo aos demais entes interessados a manifesta-
ção, de maneira não vinculante, ao órgão responsável pela li-
cença (IBAMA, no caso), buscando, dessa forma, que não haja
prejuízos à análise técnica integrada do projeto.

Merece destaque também a forma como está sendo condu-


zido o licenciamento do sistema adutor. O projeto do Sistema
Adutor foi elaborado de forma a atender o Distrito de Riacho

45
Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/relatorio-da-missao-santa-quiteria-ce1. Acesso em: 03/12/2022

66
das Pedras, o Assentamento Queimadas e o Assentamento Mor-
rinhos, além da demanda do empreendimento de mineração. Da
vazão prevista da adutora (281 L/s), apenas 1,96% estão destina-
dos ao abastecimento das comunidades rurais, enquanto 98,04%
seriam para abastecimento do empreendimento. O licenciamen-
to ambiental junto à SEMACE, no entanto, vem sendo condu-
zido considerando a adutora como uma obra de infraestrutura
hídrica de atendimento não à demanda industrial, mas à deman-
da de abastecimento humano, ainda que um volume relativo tão
pequeno esteja sendo previsto para este fim.

A operação do Projeto Santa Quitéria - PSQ prevê um


consumo médio de água de 855,2 m3/h, o que corresponde a
7.491.552,00 m3/ano (aproximadamente 7,5 milhões de m3/
ano) (TETRA MAIS, EIA, Vol. I, p. 147). Dito de outra forma,
são mais de 855 mil L/h que somam cerca de 95 carros-pipa.
Diariamente seria mais 20 milhões de litros de água por dia
para lavrar minério enquanto a população da região não tem
o suficiente para os laboros diários e muito menos para a pro-
dução de alimentos.

Vale dizer que de acordo com o projeto do Sistema Adu-


tor, através de um investimento de R$ 105,6 milhões do Go-
verno do Ceará, será construída uma adutora com extensão de
62,92 km (do açude Edson Queiros a jazida de Itataia) e vazão
de 281,00 L/s para abastecer basicamente o referido projeto de
mineração, e liberar umas gotinhas apenas para três comunida-
des rurais (Riacho das Pedras, Assentamento Morrinhos e As-
sentamento Queimadas). Assim, cabe perguntarmos ao Estado:
água é para quem pode comprar ou é um direito de todos? Por
que tanta água para lavrar minério colocando em risco toda a
população que necessita da água do açude Edson Queiros?

Entre tantas omissões e contradições encontradas no EIA-


-Rima o relatório da missão do CNDH (2022) constatou tam-
bém o risco de comprometimento do fornecimento de água
para consumo humano e de criações de animais em anos de seca
para o município de Santa Quitéria, bem como para a Bacia do
Acaraú e da sub-bacia do Groaíras. No Parecer Técnico No148/
Comip/CGTef/Dilic (SEI No14359621) do IBAMA (dez/2022)
está mais uma vez apregoado que a viabilidade hídrica do PSQ
não está comprovada. Diz o IBAMA,

67
Sobre esse sistema, manifesta-se particular preocupação, tan-
to pelo fato de a água ser caracterizada como insumo essencial ao
processo produtivo do PSQ quanto pela localização desse projeto
no semiárido, notadamente definido pelo regime de déficit hídrico.
Seria razoável admitir que a existência de LP (aprovando o projeto
conceitual) ou LI (recepcionando o projeto executivo e os programas
ambientais dele decorrentes) para o sistema seria suficiente para sub-
sidiar a avaliação de viabilidade ambiental do PSQ. No entanto, mes-
mo com a existência de LI (LI no 112/20022-DICOP, conforme con-
sulta ao sítio da SEMACE), não são eliminadas as incertezas quanto
a execução do projeto de abastecimento hídrico de forma compatível
com o cronograma do PSQ. Mesmo se considerando os termos do
Memorando de Entendimento entre o Governo do Ceará e a INB,
não fica evidente a plena garantia de execução compatível do projeto.
Assim, a separação de projetos (empreendimento principal e abaste-
cimento hídrico), onde se destaca, inclusive a existência de empreen-
dedores distintos, é entendida como um limitador para as avaliações
que cabem ao Ibama no contexto do que orienta a teoria de AIA.
Essa situação seria totalmente diferenciada se a adutora já estivesse
implantada e com LO vigente, circunstância que direcionaria o ques-
tionamento no âmbito da AIA apenas à condição de efetiva dispo-
nibilidade de recursos hídricos ao projeto, o que seria prontamente
sanável por meio do instrumento da outorga (responsabilidade da
SRH). (IBAMA, 2022, p.15)

O posicionamento do IBAMA mais uma vez apregoa que


há incertezas com relação à viabilidade hídrica do PSQ e que
dessa forma não será possível o empreendimento receber Licen-
ça Prévia. Para além disso, o desmembramento do licenciamen-
to tanto da adutora quanto do nuclear separado do EIA, tem
demostrado que foi uma estratégia de manobra do PSQ para
avançar no licenciamento tentando esconder os temas (água e
saúde) mais complexos para a população, mas tem acontecido
ao contrário, o IBAMA tem afirmado que tem de ser um único
licenciamento. A luta continua na defesa dos modos de vidas
que tem a água como aspecto pujante na reprodução da vida
no Semiárido. Águas para a vida e não para a mineração!

Para além dos três exemplos que estão em curso, existem


centenas de outros processos minerais que continuam se im-
pondo sobre os territórios e causando transtornos para os mo-
dos de vida desde o litoral, serras e sertões cearenses. Será que é
esse modelo de mineração predatório e desumano que quere-
mos para nosso povo? Essa é uma pergunta que deveremos nos
fazer constantemente e, mais do que isso, nos mobilizarmos
coletivamente para enfrentar o capital mineral de forma orga-
nizada, antes mesmo que ele se instale de vez em nosso meio.

68
4. A luta por
Soberania Popular
na Mineração46

Pablo Neruda – a infinita

Vês estas mãos? Mediram


a terra, separaram
os minerais e os cereais,
fizeram a paz e a guerra,
derrubaram as distâncias
de todos os mares e rios
e, no entanto,
quando te percorrem
a ti, pequena,
grão de trigo, calhandra,
não conseguem abarcar-te,
fatigam-se ao agarrar
as pombas gémeas
que repousam ou voam no teu peito,
percorrem as distâncias das tuas pernas,
enrolam-se na luz da tua cintura.

Para mim tu és tesouro mais rico


de imensidade do que o mar e seus cachos
e és branca e azul e extensa como
a terra nas vindimas.

Nesse território,
desde os pés à fronte,
andando, andando, andando,
passarei a vida

46
Esse ponto foi produzido a partir de reflexões sistematizadas em dois documentos do MAM (Elementos Constitutivos
do MAM – 2015 e; A Luta pela Soberania Popular na Mineração – 2018).

69
4.1. Territórios Livres de Mineração

Embora a mineração seja uma atividade necessária à socie-


dade como um todo por fornecer insumos à atividade industrial
e agrícola, há diversas situações e locais nos quais ela age em
sentido contrário, desestruturando modos de vida e cadeias pro-
dutivas locais; subordinando a oferta de bens e serviços às suas
demandas; sobrecarregando as infraestruturas de saúde, logística
e segurança; provocando rupturas metabólicas pela exploração
desenfreada da natureza e da super-exploração do trabalho.

A pseudo-demanda sempre crescente por recursos mine-


rais, estocados estrategicamente por outros países, e o poder
econômico e político em torno da manutenção dos lucros des-
sa atividade criam uma falsa aparência de consenso em torno
da mineração. As vozes dissonantes que imprimem os múltiplos
sentidos dos territórios e dos bens minerais são invisibilizadas. A
perspectiva de quem sofre diretamente com os empreendimen-
tos oferecem insumos para que a sociedade pense e discuta as
razões pelas quais os bens naturais são apropriados e por quem.

A narrativa da “vocação mineral” e da “rigidez locacional”


condenam a todos os lugares onde em seu subsolo existem
minérios, à mineração. Verticalmente e à priori, é instituída a
primazia minerária negligenciando toda e qualquer dinâmica
sociocultural, econômica e ecológica que organizam vivências
históricas e coletivas, tais como a vida na terra de quem nela
trabalha, dos bens materiais e imateriais que constituem as
mais diversas identidades coletivas fundamentais para reprodu-
ção de suas vidas.

As mais diversas lutas em todo o país por Territórios Li-


vres de Mineração têm acumulado e ampliado o campo de
possibilidades de restrição, resistência, proibição e da criação
de instrumentos que garantam a efetiva participação dos pro-
cessos decisórios envolvendo a instalação de projetos minerá-
rios.

Um território livre não se define apenas enquanto um es-


paço f ísico, mas a partir de uma experiência política de resis-
tência e reivindicação para que se proíba ou se crie restrições à
mineração. Ela se baseia na afirmação e proposição de estraté-
gias produtivas e socioculturais que garantem trabalho e ren-
da a um conjunto amplo e diverso da sociedade, assegurando

70
soberania alimentar e nutricional, protegendo e conservando
a sociobiodiversidade, as águas e os bens comuns às futuras ge-
rações, o direito ao trabalho e a saúde, o fortalecimento das
economias locais e o patrimônio sociocultural, material e ima-
terial e paisagístico.

Nesses termos, um processo de decisão democrático sobre


a implantação de um empreendimento minerário deveria ser
premissa para a sua concessão ou licenciamento, dando assim
visibilidade à perspectiva dos grupos que seriam direto ou indi-
retamente afetados pelo empreendimento proposto.

O parágrafo primeiro do artigo 176 da Constituição Fe-


deral afirma que “A pesquisa e a lavra de recursos minerais e
o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste
artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou
concessão da União, no interesse nacional”. A contestação sobre
o entendimento do que é este interesse nacional resulta na ca-
pacidade de organização e insurgência da classe trabalhadora
sobre seu direito à vida digna.

Ao trazer para si a prerrogativa de entendimento da defi-


nição sobre o que deve ou não ser concedido, tem os povos um
instrumento concreto de recuperação do sentido do poder na
correlação de forças historicamente instituída. Se é da União, é
do povo brasileiro, portanto cabe a nós, da classe trabalhadora,
a tarefa histórica de definir, decidir, proibir, taxar e construir
outro modelo de mineração.

4.2. Taxas e Ritmos de Extração

Dentro de um contexto de financeirização da cadeia pro-


dutiva da mineração, as empresas mineradoras têm buscado
gerar maior lucro no menor tempo possível. Desde o boom das
commodities, o caráter especulativo orientou a variação ascen-
dente dos preços que se apresentaram maiores que a demanda,
levando as empresas a aumentar a extração e reduzir os custos.
Mesmo no período posterior, a queda dos preços dos bens mi-
nerais não significou a perda de produtividade, pelo contrário.
As multinacionais do setor retraíram e revisaram investimen-
tos, venderam os ativos poucos estratégicos, reduziram custos e
aumentaram a produtividade concentrando suas operações em
negócios e regiões estratégicas.

71
Esta dinâmica de super-exploração do trabalho e da natu-
reza compromete o desenvolvimento local, regional e nacional
principalmente considerando a extração de bens não renová-
veis. Devido ao aumento das taxas de exploração, os impactos
não são devidamente avaliados e danos irreversíveis são impos-
tos a natureza, territórios e trabalhadores mineiros. Torna-se
inviável a adaptação de estrutura social ao modelo econômico
instalado à força e desde fora. Processos intensivos de extração
minerária atraem migrações, provocam inchaço e desorganiza-
ção das cidades e aumento da taxa de desemprego e violência,
especialmente entre os jovens. Por outro lado, a ritmos tão ele-
vados a perspectiva é que os empreendimentos abandonem os
territórios rapidamente, que ao produzirem uma economia de
enclave e dependente, imputam qualquer possibilidade de di-
versificação econômica.

A adoção dos ritmos e taxas de exploração desde a dinâ-


mica de acumulação do capital amputa a soberania nacional ao
atender ao mercado externo, pois antecipa o esgotamento das
melhores reservas, forçando as gerações futuras a produzir bens
a partir de reservas de pior qualidade e com maior intensidade
de impactos ambientais, sociais e trabalhistas.

Por isso, a taxa de extração das minas, assim como o li-


mite da quantidade de minério a ser explorado por ano em
cada mina deveriam ser definidos. Há de se criar critérios para a
determinação dessa política em casos concretos, cuja definição
deve levar em conta: a velocidade de adaptação das comunida-
des à implantação dos empreendimentos; os diferentes usos do
território; as condições para diversificação da economia local; e
o tamanho das reservas. De tal modo, a atividade mineradora
passa a ser orientada não pelos interesses privados das empre-
sas, ou dos investidores financeiros, mas sim pela necessidade
das populações locais, atuais e futuras.

4.3. Pelo fim da Lei Kandir

Criada no âmbito do Programa Nacional de Desestatiza-


ção, em 1997, a Lei Kandir garante incentivo e subsídios às ex-
portações sobre produtos primários como forma de transferên-
cia de receita para os importadores e consumidores no exterior
e tesouro público dos países estrangeiros. Junto à privatização
da Companhia Vale do Rio Doce, no mesmo ano, consolidam o

72
projeto de privatização da mineração no país, já que reforçam
nossa inserção dependente e subordinada à divisão internacio-
nal e territorial do trabalho nos subjugando à condição econô-
mica primária e exportadora. Além de ser um dos setores que
menos paga impostos no mundo, seja pela sonegação, evasão e
subsídios, conta desde a Lei Kandir com a desoneração de qual-
quer imposto sobre a circulação de mercadoria.

No Pará, a atividade mineradora responde por cerca de


40% da economia paraense, mas a arrecadação de ICMS no es-
tado proveniente dela é um pouco mais de 2,5%. E, em termos
de receita total do Pará, o setor contribui com apenas 5%. Entre
1997 e 2013, o estado poderia ter recebido R$ 11,9 bilhões, mas
foi compensado com apenas R$ 2,5 bilhões.

Já em Minas Gerais, a perda de arrecadação gerou apenas


R$ 4,4 bilhões em compensação. O potencial arrecadado entre
1997 e 2013 poderia ter sido de R$ 16,9 bilhões, o que significa
a perda de R$ 12,5 bilhões para os cofres públicos.

Em síntese, a Lei Kandir é um mecanismo que reforça o


papel reprimarizante da economia brasileira em detrimento da
destruição da indústria nacional. A perda de arrecadação acentua
a grave crise fiscal e reforça a dependência dos estados minerados
sobre o poder político e econômico das multinacionais do setor.

Há uma necessidade histórica de se contestar amplamente,


articulando diversos setores da sociedade brasileira e, o MAM
assume tal tarefa de contribuir para o levantamento da bandei-
ra pelo fim desta da Lei Kandir, enquanto compromisso com a
Soberania Popular na Mineração e contra o saque imperialista
dos nossos minérios.

4.4. A renda mineral

A Compensação Financeira pela Exploração dos Recursos


Minerais (CFEM) é a arrecadação compensatória por explora-
ção dos recursos minerais presentes no solo e subsolo, portanto
pertencentes à União. É uma forma de compensação pela explo-
ração destes recursos e que merece atenção, mesmo com a mu-
dança na base de cálculo da CFEM, que passou a incidir sobre a
receita bruta da venda, deduzidos os tributos incidentes sobre
sua comercialização, após o lançamento da Medida Provisória

73
789, convertida na Lei nº 13.540, de 2017. A porcentagem utilizada
dependerá do mineral explorado, chegando ao máximo de até 4%47.

Em termos comparativos, internacionalmente, a CFEM no Brasil


ainda é demasiadamente reduzida. No Ceará, pelo perfil da mine-
ração, ainda que esteja sobre potencial alteração, a taxação da
aplicação da alíquota é mínima (apenas 1%) em razão do elevado
número de processos minerários destinados a extração de areia,
rochas, cascalhos, saibros, rochas ornamentais e água mineral.

Do total da CFEM, 65% deve ser recolhido pelo municí-


pio produtor. Os municípios impactados pela mineração que
possuem em seu território parte da infraestrutura logística, de
transporte e produtiva, passaram a receber uma pequena par-
cela a partir da Lei nº 13.540, de 2017. Porém, há um elevado
índice de sonegação fiscal relativos à esta arrecadação compensatória.
O Tribunal de Contas da União, por exemplo, mostrou que em
2013 dos 20.690 títulos de mineração que deveriam recolher
CFEM por mês, porém a média mensal de recolhimento foi
apenas de 5.400 títulos. Dos que recolheram o imposto, a soma
foi de R$ 1,8 bilhão/ano, mas cerca de 15 mil títulos poderiam
pagar quase o triplo desse valor.

Há de se criar uma legislação vinculante entre o recolhimento


da CFEM à saúde e a educação. Atualmente, em nível municipal,
não há qualquer tipo de vinculação, podendo ser utilizado para
os mais diversos tipos de despesas, o que faz com que, muitas
vezes, estes recursos não beneficiem a população local dos mu-
nicípios minerados. O Projeto de Lei do Senado 254/2013, do
então ex-senador Inácio Arruda, prevê a destinação de 50% do
total arrecadado com a compensação às áreas de educação e
saúde, sendo 37,5% para a educação pública e 12,5% para a saú-
de pública, a serem acrescidos aos mínimos constitucionais já
determinados para essas áreas.

Nesse sentido, é fundamental a criação de entidades mu-


nicipal e estadual (conselhos) que fiscalizem e monitorem os
gastos dos recursos gerados pela CFEM, além de prever a par-
ticipação especial nas minas com grande lucro se comparadas
com outras de mesma substância mineral.

47
Alíquota de 1%: Rochas, areias, cascalhos, saibros e demais substâncias minerais quanto destinadas ao uso imediato
na construção civil; rochas ornamentais; águas minerais e termais; Alíquota de 1,5%: ouro; Alíquota de 2%: diamante
e demais substâncias minerais; Alíquota de 3%: bauxita, manganês, nióbio e sal-gema; Alíquota de 3,5%: Ferro, com
observações previstas na Lei podendo sofrer variação entre 2% e 3,5%.

74
Para além da captura da renda mineral por parte das mul-
tinacionais via CFEM cuja alíquota é consideravelmente menor
quando comparada a outras taxações no mercado internacio-
nal, é preciso considerar que os lucros exorbitantes obtidos pe-
las corporações façam uso de evasões ficais, desvios e sonegação
de impostos e, principalmente, transferência da renda pública
gerada pela atividade mineradora para os capitais privados de
empresas nacionais e transnacionais do setor.

Em estudo elaborado pela Rede Latino Americana sobre


Dívida, Desenvolvimento e Direitos (Latindadd), computa-se
que o subfaturamento das exportações de minério de Ferro te-
nha produzido a fuga de cerca de US$ 39,1 bilhões entre 2009 e
2015, com média anual de US$ 5,6 bilhões. A esse valor subfatu-
rado é associada a perda de receitas fiscais de US$ 13,3 bilhões
para o mesmo período.

Por exemplo, a Vale S.A. opera através de manobras con-


tábeis conhecidas como preços de transferência para reduzir o
pagamento de impostos, exportando 80% do minério como pri-
meiro destino para a Suíça. Tal operação registra preços muito
mais baixos do que os preços do minério internacional e, de lá,
e sem tributação, o minério é enviado à China para abasteci-
mento de sua indústria siderúrgica.

É urgente impor limites e sanções às empresas que aumen-


tam sua taxa de lucro através da evasão fiscal, desvios e sonegação
de impostos através do fortalecimento dos órgãos de fiscalização
existentes, além da criação de órgãos municipais e estaduais.

A questão do uso da água e especialmente no Semiárido


também é parte da dobradinha entre o estado e setor mineral.
O estado sempre oferece a infraestrutura e segurança jurídica
necessária para as empresas mineradoras se instalarem e, a água
sempre é a primeira da lista. Por exemplo, antes mesmo do Con-
sórcio Santa Quitéria obter licença ambiental para minerar urâ-
nio e fosfato em Santa Quitéria no Ceará, o governo do estado
assinou um memorando e se comprometeu em construir 60 km
de adutora que custará mais de 100 milhões de reais aos cofres
públicos. Quem pagará essa conta? Quem ficará com sede?

O mesmo projeto que enseja minerar uranio e fosfato no


Semiárido cearense necessitará de 855 mil litros de água por
hora que se soma mais de 20 milhões de litros por dia para

75
lavrar minério. Enquanto isso, centenas de comunidades vi-
vem na região próxima à mina de Itataia e têm de andar qui-
lômetros para buscar água. O nome disso é injustiça hídrica
na qual o estado nem opera e nem distribui a água conforme
a necessidade da população, mas escolhe matar a sede da mi-
neração e deixar o povo sem acesso à água.

Exemplos como esse onde o estado privilegia um empreen-


dimento mineral em detrimento dos territórios e seus modos
de vida também podem ser considerados como zona de sacrif í-
cio, ou seja, o estado para além de se impor sobre a vontade po-
pular junto com a empresa mineral, juntos serão responsáveis
pelos crimes socioambientais dentro dos territórios. Portanto,
não será o núcleo duro do poder econômico e do poder públi-
co que irão sofrer a injustiça ambiental, mas, sobretudo estas
comunidades que são transformadas em zonas de sacrifício na
lógica da acumulação econômica.

Dessa forma, deveremos afirmar enquanto povo que no


Semiárido cearense não deve ter água para servir a mineração
e sim para as necessidades básicas da população. A mineração
não pode continuar sendo a encarnação do coronelismo, do la-
tifundiário ou do agronegócio que expropria tudo e deixa os
territórios sem água para consumir e/ou produzir alimentos.
A água é vida para todas e todos que habitam os 93% do terri-
tório cearense em pleno Semiárido. Assim, temos de afastar o
pesadelo da mineração que quer tomar ou poluir nosso bem
maior, a ÁGUA.

76
5. Referências
bibliográficas
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