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A Organizacao de Arquivos e a Constru¢gao da Memoria Lacia de Fatima Guerra Ferreira’ O resgate da meméria encontra-se estreitamente vinculado tanto a organizagao dos seus suportes materiais como ao acesso a informagao neles contida. Partindo desse pressuposto, a organizagao de arquivos se constitui em tarefa primordial, antecedendo o desenvolvimento da investigacao cientifica. No Brasil, ¢ especificamente na Paraiba, é lastimavel © estado dos arquivos permanentes de instituigées ptblicas ¢ privadas, gerando uma demanda, cm potencial, para as atividades arquivisticas. A construgao da mem6ria passa pela agao das forgas sociais em constante luta pelo controle ¢ exercicio do poder, ¢ pela determinagao do que se quer passar 4 postcridade como verdade. Tanto a memoria individual como a coletiva tém como referencial as lembrangas marcadas pela oralidade, mas convencionou-se usar 0 termo meméria histérica para nominar as lembrangas individuais ¢/ou coletivas registradas quer em documentos, quer em monumentos. Inicialmente, vale lembrar algumas dimensées da memoria. Jacques Le Goff comenta 0 processo de construcao da memGria destacando, por um lado, que, a meméria como propriedade de conservar certas informagées, reenvianos em primeiro lugar para um conjunto de funcées psiquicas, gracas as quais 0 homem pode atualizar impressoes ou informagées passadas, que ele representa como passadas e, por outro lado, a memoria coletiva é fator importante na luta pelo poder, tendo em vista que, tornar-se senhores da memoria e do esquecimento é uma das * Professora do Departamento de Hist6ria / Pesquisadora do NDIHR-UFPB/ Doutora em Historia (USP) 50 Saeculum. \(1):50 -58, Jul/Dez/1995 grandes preocupagées das dasses, dos grupos, dos individuos que dominaram e dominam as sociedades histéricas (1984:11,13). Os tempos modernos trouxeram a ampliagao do volume de informagées e dados de que a memoria individual foi se tornando, cada vez mais, incapacitada de dar conta, levando a um processo de organizagio norteador da acumulacao da meméria coletiva. A preocupacao com arquivos € relacionada, muitas vezes, a uma visao positivista de hist6ria, desviando a discussao da questao central, que é a necessidade premente da conservacao € preservacdo da documentacao existente. O cuidado com a documentacgéo € imprescindivel a ciéncia hist6rica, € como afirma Rosa Maria Godoy Silveira, a documentacao se redimensiona como instrumental de base para muitos outros campos do conhecimento, estreitando uma relagao de que ainda pouco se conscientizaram os estudiosos. Essa mesma relagdo se reveste de uma amplitude maior se a Documentacéo for concebida sob novas formas, da tradicionalmente forma escrita @ oral e visual, cada uma delas desdobrével em tipos especificos. E em decorréncia disso que se pode explicar a variedade de arquivos hoje existentes e posstveis (1978: 45) Quanto a teoria que dard suporte a pesquisa ¢ producgao do conhecimento histérico, ela se constitui em opcao do historiador ¢ nao do arquivista. Nao queremos, com isso, isentar ¢ alardear a neutralidade do arquivista. A arquivistica visa, entre outros _ objetivos, proporcionar a organizagio e 0 acondicionamento dos documentos, quer textuais, audiovisuais ou de outra natureza, bem como as vias de acesso 4 informagao de forma rapida e eficaz. Todavia, por mais objetivas e precisas que sejam as regras e técnicas, nio se pode afirmar a equivaléncia entre objetividade e neutralidade na arquivistica. De forma consciente ou inconsciente, o arquivista, no desempenho do seu trabalho, deixa as marcas da subjetividade ou da teoria que fundamenta a sua visio de mundo. Essa subjetividade vem a luz, especialmente, nos momentos cruciais de op¢ao pelos Saeculum. 1(1):Jul/Dez/1995 51 grupos documentais ou temas a serem objetos de catalogos, exposig6es, publicagées, etc. Além disso, a critica dos documentos de arquivo constituise em clemento fundamental no trabalho do historiador ou cientista social. Retomando a questao da organizagao de arquivos da comunidade e preservagao da meméria, fazemos nossas as palavras de Heloisa Liberalli Bellotto quando afirma que, para a montagem da meméria das institui¢des, a espinha dorsal é o arquivo que precisa estar organizado (cf. 1991: 188). Na Paraiba, sao raros os acervos que se encontram ordenados, mas 0 NDIHR tem testemunhado a existéncia de uma vontade politica em diversas instituigdes e entidades, que a ele recorrem, com esse objetivo - organizar os seus arquivos. Contudo, muitos esperam que a UFPB assuma todos os encargos cientificos e financeiros. Até o momento, os casos satisfat6rios foram os resultantes da coordenagao de esforgos pelas instituigdes envolvidas: a Universidade participando através de seus professores e pesquisadores (elaborando e coordenando projetos); as entidades diretamente beneficiadas dando a sustentagao financeira para a aquisicao do material ¢ parte da remuneragao de técnicos; e as entidades financiadoras fornecendo recursos, especialmente, no que tange ao pagamento de bolsistas - fundamentais para o andamento de projetos dessa natureza. Existe uma tendéncia para a organizacéo de arquivos ficar a cargo de bibliotecdrios, ou simplesmente de pessoas sem formagao especifica, mas que tém jeito para arquivo, Sabemos que contribui fortemente para esse quadro a escassez de recursos humanos qualificados na area da arquivistica, devido aos raros cursos de graduagao e especializagao em todo o Brasil. Na Paraiba vem se consolidando uma tendéncia de o historiador entrar cada vez mais na seara do arquivista, dada a situacao de precariedade 52 Saeculum. 1(1):Jul/Dez/1995 organizacional dos acervos, que dificulta 0 exercicio do seu trabalho especifico - a pesquisa. O projeto de organizagao de arquivos institucionais deve levar em conta que a documentagao preservada, com raras exceg6es, transmite a imagem que a instituicao pretende guardar para a posteridade. Portanto, as intempéries, as imprevidéncias, o abandono ou descarte criminoso da documentagao destroem os suportes materiais da memGria. Marc Bloch alerta para essa questao: Nao obstante 0 que por vexes parecem pensar os principiantes, os documentos nao aparecem, aqui ou ali, pelo efeito de um qualquer imperscrutdvel designio dos deuses. A sua presenga ou a sua auséncia nos fundos dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas que ndo escapam de forma alguma a andlise, ¢ os problemas postos pela sua transmissao, longe de serem apenas exercicios de técnicas, tocam, eles proprios, no mais intimo da vida do passado, pois 0 que assim se enconira posto em jogo é nada menos do que a passagem da recordagdo através das geragées (apud Le Goff, 1984: 101). Além dessa selegdo ao longo do tempo, sabe-se que uma das regras da arquivistica € néo guardar tudo. Contudo, essa climinagao de documentos segue critérios de avaliagao estabelecidos pela legislagao em vigor, especialmente a documentagao contabil ¢ fiscal, além de outros critérios estabelecidos na chamada tabela de temporalidade ou plano de destinagdo dos documentos (cf. CENADEM, 1990:101). Para a organizacao de um arquivo permanente, os procedimentos basicos sao os seguintes: conhecimento sobre a instituicao (histéria, organizacao e funcionamento); Saeculum. 1(1):5al/Dez/ 1995 53 © avaliagdo preliminar da documentacio para definir destinagao; ¢ higienizacao da documentacao, precedida, quando necessario, da desinfestacgao; definigao do quadro de arranjo; classificagao ¢ ordenagao documental; acondicionamento e notacao; descrigao documental e indexagao; elaboragao de instrumentos de pesquisa. E fundamental o conhecimento da estrutura organizacional ¢ compreensao do seu funcionamento para a claboragao do quadro de arranjo, que segue as linhas gerais do organograma da instituicao. Entendendo quadro de arranjo como 0 plano diretor estabelecido para o arranjo conjunto de documentos conservados num arquivo definindo fundos, grupos, subgrupos, séries e subséries (CENADEM, 1990: 89), € ele que orienta toda a classificagao documental, bem como a nota¢ao, com seus sinais € simbolos indicando a pertinéncia e localizacgao dos documentos no acervo. Paralela a essa atividade de elaboracao intelectual, realiza-se uma tarefa mecanica essencial para a integridade fisica do acervo - a desinfestagio em equipamento apropriado a higienizacdo manual de cada documento. Quanto ao acondicionamento, vale ressaltar a sua importancia para a conservagao fisica da documentagio, procurando-se utilizar papel neutro, ou de baixa acidez, para a confecgao de capilhas, porta-félios, caixas-arquivo ¢ pastas suspensas. Para cada tipo de suporte documental deve-se procurar a forma de acondicionamento mais adcquada, para nao acelerar o processo natural de deterioragao do material. Com o cumprimento dessas ctapas, outra questao se apresenta - a definigao da politica de descrigéo do acervo. Essa politica deve nortear-se pelas prioridades estabelecidas em cada acervo, mas Schellenberg ressalta que deve-se tracar o programa descritivo de forma que se preste informagdo imediata 54 Saeculur. \(1):Jul/Dez/1995 sobre todos os documentos do repositério (1980: 207). Além disso, reafirma: Unge que o arquivista renuncie, definitivamente, a descrigéo pormenorizada dos itens tomados de per si, antes de proporcionar as apresentagoes gerais de todos os grupos € colegées (Idem: 207). Entendemos cssa posigaéo como regra geral ¢ primordial, mas sem invalidar a possibilidade de descrigao por unidade documental para acervos de pequeno volume, apds ou ao lado da descrigao colctiva. Deve-se levar em conta que com uma visao globalizante do acervo organizado, ja € possivel abri-lo ao ptiblico ¢ atender aos interesses da prépria entidade. Além disso, o programa descritivo deve ser encarado como algo permanente nas atividades rotinciras de um arquivo. Outro elemento fundamental é a indexagao do acervo documental a partir da definigao criteriosa de descritores ou palavras-chaves capazes de indicar os principais assuntos e contetidos dos documentos. A etapa final na organizagao de um arquivo concretiza-se na elaboragao de instrumentos de pesquisa que possibilitem 0 acesso rapido ¢ preciso as informacées ¢, por extensao, aos documentos do acervo. Os principais sao: ¢ Guia do Arquivo - proporcionando uma visio geral da documentacao existente, bem como as condigées de acesso e consulta definidas pela instituiga4o; e Inventario - contendo a descrigao sumaria das séries documentais, na sua totalidade ou em parte; e Catalogo - apresentando a descrigao analitica de cada unidade documental de um determinado universo (série, assunto, periodo, etc.) Saeculum. 1(1):Jul/Dez/1995 55 Indice - contendo os descritores ou assuntos com a indica¢gaio remissiva aos documentos, podendo integrar um dos instrumentos de pesquisa supracitados ou ter estrutura propria. O planejamento de todas as ctapas ¢ o maior rigor possivel no cumprimento dos cronogramas estabelecidos, com avaliagées freqiientes, sio fatores essenciais na execugado dos projetos de organizagao de arquivos para que nao se tornem trabalhos intermindaveis, sem atingir 0 objetivo primordial, que é proporcionar 0 acesso da comunidade 4 meméria. Cada vez mais, as técnicas arquivisticas primam pela agilidade no acesso a informacao, priorizando a indicacao de dados gerais de identificagao do contetido documental € sua localizacao fisica no acervo, reforcando o principio de que o instrumento de pesquisa elaborado pelo arquivista nao pretende substituir o trabalho da pesquisa documental. O avanco da informatica trouxe mais um elemento que possibilita 0 acesso e manuseio mais livre do documento via scanner. Essa nova forma de cépia representa um ganho significativo para o pesquisador, embora nao se saiba, ao certo, o grau dos possiveis danos 4 integridade fisica dos documentos. Outro aspecto essencial diz respeito ao carater interdisciplinar de um trabalho de organizacao de arquivos, especialmente a contribuicao da administragio, da contabilidade, do direito, da histéria, da biblioteconomia, da informatica, entre outras areas do conhecimento. Toda essa preocupac¢io e investimento intelectual na organizacao de arquivos nao significa ingenuidade. O que sobrevive € passa 4 posteridade é resultante de um processo seletivo, quer da meméria quer da documentagio. Portanto, o que se encontra disponivel para a pesquisa histérica nao é o conjunto do que existiu, mas o que restou do que foi registrado, apés escolhas e selecdes diversas ao longo do tempo pelos que detém o controle e guarda da documentagao. 56 Saeculum. \(1):Jal/Dez/ 1995 Embora nao seja a nica condicao necessaria para a democratizacao da meméria histérica da sociedade, a organizacao e as condicées de acesso as chamadas instituicdes oficiais da memGria (arquivos, bibliotecas, museus € centros de documentagao), como também aos arquivos de outre instituig6es se constituem em elemento fundamental nesse processo. Concluindo, reiteiramos que o compromisso com o resgate da memoria regional, e mais precisamente paraibana, passa pela organizagao ¢ preservagao dos acervos locais das mais diversas instituicgées e entidades. Bibliografia AMORIM, Laura Helena Baracuhy. O Niicleo de Documentagao e Informagao Histérica Regional. IN Boletim do Arquivo Eclesiastico da Paraiba. Jodo Pessoa, Ano I, N®1, jan./jun., 11-13, 1994. BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivos Permanentes: Tratamento documental. Sao Paulo, T. A. Queiroz, 1991. CENADEM. Dicionario Brasileiro de Terminologia Arquivistica. Sao Paulo, CENADEM/AAB, 1990. LE GOFF, Jacques. Meméria. IN ROMANO, Ruggiero (Dir.) Enciclopédia Einaudi. Porto, Imprensa Nacional, v. I, 11-50, 1984. MORAIS, Laudereida E. M. et al. Arquivo Eclesidstico da -Paraiba: memé6ria de sua organizacao. IN Boletim do Arquivo Eclesiastico da Paraiba. Joao Pessoa, Ano I, N® 1, jan./jun., 6-11, 1994. Saeculum. 1(1):Jul/Dez/1995 57 SCHELLENBERG, Theodore R. Documentos publicos e privados: Arranjo ¢ descricio. 2 ed. Rio de Janeiro, FGV, 1980. SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. A participagio do NDIHR da UFPB na problematica Arquivos-Histéria. IN SAO PAULO. Secretaria da Cultura, Ciéncia e Tecnologia. Seminario "Arquivos & Histéria", 1978. 58 Saeculum. I(1):Jul/Dez/1995

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