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O LUGAR DA VIOLÊNCIA NAS DRAMATURGIAS CONTEMPORÂNEAS DA AMÉRICA

LATINA (MAGNOLIA PERDIDA EM SUEÑOS- ANTIGONA FURIOSA)

Yenny Paola Agudelo1

RESUMO
O presente artigo visa estabelecer algumas relações existentes entre a dramaturgia da América
Latina e a violência como tema constitutivo da história do continente – ditaduras, violação de direitos
humanos, extermínio de povos indígenas e comunidades inteiras, entre outros. A partir de dois
textos específicos, Magnólia Perdida en Sueños (2008) de Ana María Vallejo (1965-) e Antígona
Furiosa (1985-1986) de Griselda Gambaro (1928-). Pretende-se destacar esses aspectos
marcantes na dramaturgia das autoras em relação à história de seus países, Colômbia e Argentina,
respectivamente, levando em consideração os elementos estruturais e temáticos da dramaturgia.
Palavras-Chave: Dramaturgia feita por Mulheres, Dramaturgia Latino-Americana, Violência na
Dramaturgia.

ABSTRACT
This article aims to establish some existing relationships between Latin American dramaturgy and
violence as a constitutive theme of the continent's history – dictatorships, violation of human rights,
extermination of indigenous peoples and entire communities, among others. From two specific texts,
Magnólia Perdida en Sueños (2008) by Ana María Vallejo (1965-) and Antígona Furiosa (1985-1986)
by Griselda Gambaro (1928-), it is intended to highlight these remarkable aspects in the dramaturgy
of the authors in relation to the history of their countries, Colombia and Argentina, respectively, taking
into account the structural and thematic elements of the dramaturgy.
Keywords: Colombian Playwrite, Latin American Playwrite, Playwrite and Violence.

América Latina é um continente construído em meio de múltiplas formas de violência.


Desde o momento da colonização, massacres, extermínios, estupros e múltiplas violações
dos direitos humanos marcaram nossa história. Dessa forma a guerra e o derramamento
de sangue de muitos inocentes tem constituído nosso imaginário coletivo, nossas visões de
mundo e nossa idiossincrasia. Assim essa presença de diferentes formas de violência no
continente definiram modos de pensar as coletividades, e por sua vez criaram as
manifestações artísticas que retratam esses momentos nas sociedades – é o caso de
artistas como, Guayasamín (1919-1999) , Débora Arango (1907-2005), Víctor Jara (1932-
1973), Mercedes Sosa (1935-2009), Fernando Botero (1978-), Susana Baca (1944), Lola
Álvarez Bravo (1903-1993), Piedad Bonnett (1951), Doris Salcedo (1958-) entre outros.
Assim, grande parte dos artistas, não somente cênicos, e suas obras, foram influenciados
e diretamente afetados pela situação política e social de seus contextos, tornando-se
testemunhos fundamentais nos processos de recuperação da memória histórica dos
países. Exemplo do anterior é o trabalho realizado pela Comissão da Verdade na

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Atriz, dramaturga, doutoranda em Artes da Cena- UNICAMP. Bolsista CAPES.

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Colombia2, onde muitos desses artistas locais foram convocados para realizar os processos
de esclarecimento da verdade e busca de justiça no âmbito do conflito armado do país, e o
caso de: Álvaro Restrepo (1957-), Andrea Echeverri (1965-), Cesar Lopez (1930-), Doris
Salcedo (1958-), Alejandro Restrepo (1959-), Liliana Ángulo (1974-), Víctor Gaviria (1959-
), entre outros..
Este panorama violento e a presença da arte e dos artistas, na construção da
memória histórica, não pertence apenas a um país, pertence a todo o continente e sem
dúvida marcou a história da arte e da cultura dos povos. No teatro e na dramaturgia este
tema tem guiado a escrita de muitos autores e autoras. Para o caso particular deste texto,
apresentaremos o caso de duas dessas artistas/dramaturgas, que encarnam nas peças
parte dessa história da América Latina a partir das suas experiências nos seus países de
origem, Ana María Vallejo com Magnolia perdida en Sueños e Griselda Gambaro com
Antígona Furiosa. As peças mencionadas propõem tanto na estrutura dramática quanto na
temática uma exploração do contexto das autoras, no caso de Gambaro o panorama
argentino no meio da mais recente ditadura militar no país (1976-1983) e no caso de Vallejo
o contexto dos anos 80/90 na Colômbia.
Griselda Gambaro, dramaturga argentina nascida em Buenos Aires, autora de mais
de uma dezena de peças teatrais, escritora de obras proibidas durante a ditadura de Jorge
Rafael Videla (1925- 2013). Livre pensadora que, por seus ideais e obras artísticas, foi
forçada ao exílio na Espanha, depois de ser ameaçada pelo conteúdo das suas obras
artísticas. Volta novamente a seu país natal nos momentos finais da ditadura e continua
retratando na escrita o que acontece em seu país (GAMBARO, 2016, p. 320). As obras
de Gambaro,além de obras de ficção, tornaram-se obras de interesse histórico devido aos
temas que desenvolve. Mauricio Kartún (1946-) dramaturgo argentino, referiu-se a ela como
“uma verdadeira iluminadora” que enfoca suas obras em temas vitais como: a opressão, a

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A comissão da verdade foi formada após a assinatura dos acordos de paz entre o governo colombiano e
os guerrilheiros das FARC em 2016. “No âmbito do Acordo Final para o término do conflito e a construção
de uma paz estável e duradoura, assinado entre os Governo da Colômbia e as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia - Exército Popular FARC -EP, por meio da Lei Legislativa 01 de 2017 e do
Decreto 588 de 2017, da Comissão para o Esclarecimento da Verdade, a Coexistência e a Não Repetição,
a título temporário e extrajudicial mecanismo do Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não
Repetição, para conhecer a verdade do ocorrido no âmbito do conflito armado e contribuir para o
esclarecimento das violações e infrações cometidas durante o mesmo e oferecer uma ampla explicação de
sua complexidade para toda a sociedade”. Disponível em: <https://comisiondelaverdad.co/la-comision/que-
es-la-comision-de-la-verdad#:~:text=%E2%80%9CSomos%20una%20Entidad%20de%20Estado,las%20b
ases%20para%20la%20no>. Acessado em: 13 de julho de 2022 às 10:15.

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violência e a impossibilidade de comunicação que se desdobram em sua obra como uma
revelação grotesca sobre a condição humana (KARTUN, 2021).
Antígona Furiosa obra de Gambaro, é uma versão da história de Sófocles, a autora
decide desenvolver a peça depois de que Antígona morre. Assim Antigona revive após o
suicídio, para continuar com o propósito que tinha inclusive já na versão de Sófocles:
enterrar o irmão dela, Polinices, que foi condenado por Creonte a não ter enterro após ter
se revelado contra o Estado. Diferente da história de Sófocles, Antígona Furiosa possui três
personagens: Corifeo, Antinoo e Antígona, alguns personagens serão recriados no palco
por eles para relembrar acontecimentos passados ou situações futuras mas toda a história
é recriada por eles. Na história de Gambaro, a luta e o sofrimento de Antígona para enterrar
dignamente o corpo do irmão e a impotência de não poder evitar o sofrimento das pessoas
que quer, são protagonistas em termos temáticos. A história termina novamente com a
morte da protagonista e de todos os personagens que morreram na história de Sófocles,
mas com uma ideia cíclica de que ela voltará e toda vez que ela voltar o drama acontecerá
do mesmo jeito, mesmo que aconteça em outro contexto, como na peça de Gambaro a
história será sempre a mesma e o final também.
Existem elementos fundamentais na peça de Gambaro que constituem a identidade
da obra ao redor da violência, por exemplo, a localização dos personagens no contexto de
Buenos Aires na época da ditadura; de fato a peça começa com Antinoo e Corifeo bebendo
café em um bar que pelas descrições poderia ser um típico café bonaerense, quando
ressaltam nas falas deles a importância de esquecer o passado para viver – uma referência
de apagar a memória histórica para criar outra totalmente diferente: Corifeo – (…) Recordar
muertes es como batir agua em un mortero (…) (GAMBARO, 2016, p. 317)3.
Elementos como o uso de diálogos cotidianos e próprios da sociedade argentina, a
menção de lugares históricos, as falas coloquiais, a presença constante da morte, os
desaparecidos que são mencionados na obra em repetidas ocasiões, os corpos insepultos
depois de uma guerra, a constante ratificação de manter presente a memória do que a
sociedade viveu e a importância de não esquecer, a insistência em lembrar que existem
lutas entre o Estado e parte da sociedade que geram centenas de mortes de inocentes, a
necessidade de infringir uma lei quando é injusta e atinge inocentes, o imprescindível de
lutar contra as injustiças mantendo a dignidade até o fim para criar uma sociedade mais

3 Corifeo: (…) Lembrar de mortes é como agitar água em um pilão (…) Tradução nossa.

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igualitária e menos violenta, entre outros, permitem que a obra de Gambaro seja lida
através dos olhos da sociedade argentina da época em que se enquadra, mas também
mantém a universalidade na medida em que o conflito da peça concentra-se na defesa dos
direitos humanos e na exigência de justiça, sem importar o que custar.

Antígona - Que las leyes, ¡Qué leyes!, me arrastran a una cueva que será mi tumba.
Nadie escuchará mi llanto, nadie percibirá mi sufrimiento. Vivirán a la luz como si no
pasara nada. ¿Con quién compartiré mi casa? No estaré con los humanos ni con
los que murieron, no se me contará entre los muertos ni entre los vivos.
Desapareceré del mundo, en vida (GAMBARO, 2016, p. 324)4.

O Fragmento anterior apresenta uma constante na peça, a necessidade de exigir


descanso para os mortos, além de Antígona que já voltou em forma de fantasma, as figuras
espectrais de personagens como Hemon, Édipo e Jocasta ratificam o desejo de mostrar
tragédias familiares como parte da vida e uma sociedade em guerra e de mortes que
poderiam ter se evitado. Alusões às centenas de desaparecidos que não têm descanso
porque não há corpo para enterrar, são persistentes no texto, não somente a figura da morte
está presente, mas também a figura das centenas de desaparecidos que, como na ditadura
Argentina, jamais foram encontrados, inclusive até hoje.
Desse modo possivelmente um dos elementos mais importantes da peça é a morte
e o sofrimento cíclico de Antígona, que já estando morta no início da obra, volta sempre
como símbolo e prova do desejo de enterrar o irmão e exigir justiça as vezes que seja
necessário, mesmo que ela morra mil vezes e não consiga enterrá-lo voltará as vezes que
for preciso para tentá-lo de novo. Em Antígona Furiosa o corpo de Polinices é violentado e
despedaçado, mas não consegue ter descanso porque não tem um funeral digno ou um
lugar para seus restos mortais, o corpo continua exposto e sem descanso. Antigona é
convocada por seus impulsos, crenças e afetos a enterrar o corpo do irmão, mesmo que
seja proibido, mas não consegue faze-lo, pelo contrário é punida e novamente obrigada a
se matar, tanto no casso do corpo de Polinices quanto o corpo de Antigona transforma-se
em símbolo de humilhação, dor, vingança e lugar de inúmeras violências ante o
incumprimento das leis terrenais e do Estado.

4
Antígona - Que leis, que leis! me arrastam para uma caverna que será minha tumba. Ninguém vai ouvir
meu choro, ninguém vai perceber meu sofrimento. Eles viverão na luz como se nada tivesse acontecido.
Com quem vou compartilhar minha casa? Não estarei com humanos ou com aqueles que morreram, não
serei contada entre os mortos ou entre os vivos. Vou desaparecer do mundo, ainda viva. (Tradução nossa)

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Antígona -¿No terminará nunca la burla? Hermano, no puedo aguantar estas
paredes que no veo, este aire que oprime como una piedra. La sed. (Palpa el
cuenco, lo levanta y lo lleva a sus labios. Se inmoviliza) Beberé y seguiré
sedienta, se quebrarán mis labios y mi lengua se transformará espesa en un
animal mudo. No. Rechazo este cuenco de la misericordia, que les sirve de
disimulo a la crueldad. (Lentamente, lo vuelca) con la boca húmeda de mi
propia saliva iré a mi muerte. Orgullosamente, Hemón, iré a mi muerte. Y
vendrás corriendo y te clavarás la espada. Yo no lo supe. Nací, para compartir
el amor y no el odio (Pausa larga) Pero el odio manda (Furiosa) ¡El resto es
silencio (Se da muerte. Con furia)5 (GAMBARO, 2016, p. 324).

O fragmento anterior corresponde ao final da obra, Antígona se mata, relembra suas


lutas e relembra seu destino que foi previamente marcado e que se repetirá continuamente.
Como na versão de Sófocles, Antígona é levada ao suicídio após ser condenada à morte,
a diferença na versão de Gambaro é o fato de que Antígona está morta desde o início e
ainda vemos o suicídio no final da peça, mas se percebe que voltará da mesma forma e
viverá as mesmas coisas até que seu irmão Polinices descanse em paz.
Ana María Vallejo nasceu em Medellín- Colômbia é dramaturga, diretora, atriz,
professora e roteirista. Desenvolveu seu trabalho artístico no meio das constantes ondas
de violência que ocorreram na Colômbia, em peças como Pies morenos sobre piedras de
sal (2013), Pies hinchados (2002) ou Pasajeras (2000), é possível observar a sutileza com
que Vallejo retrata o contexto de guerra e hostilidade que afeta os personagens e que por
sua vez os configuram como seres anódinos e sem tranquilidade. A dramaturgia de Vallejo
é diversa formal e tematicamente, tem uma relação próxima com sua trajetória de vida,
seus múltiplos trabalhos e seus estudos fora da Colômbia. É talvez essa mistura de culturas
que faz sua dramaturgia ser tão particular e caracterizada pela descrição dos espaços
(AGUDELO, 2020, p.38), de fato os espaços naturais recriam atmosferas do país, as
temáticas contém esses trânsitos entre um cidade e outra é uma constante na sua
dramaturgia é o vazio dos personagens produto de sua intranquilidade no espaço que
vivem.
Magnólia perdida en sueños é a história de uma mãe em seu leito de morte que
lembra ou sonha acontecimentos do passado que marcaram sua vida. Neste momento final

5
Antígona - A piada nunca vai acabar? Irmão, não suporto essas paredes que não posso ver, esse ar que
oprime como uma pedra. A sede. (Ela apalpa a tigela, levanta e leva aos lábios. Se imobiliza). Beberei e
continuarei com sede, meus lábios se quebrarão e minha língua se tornará um animal mudo. Não. Eu rejeito
esta tigela de misericórdia, que serve como um disfarce para a crueldade. (Ele vira lentamente a tigela) com
a boca molhada de minha própria saliva irei para a morte. Com orgulho, Hemon, irei para a minha morte. E
você virá correndo e enfiará sua espada. Eu não o soube. Nasci para compartilhar amor e não ódio (longa
pausa) Mas o ódio manda (Furiosa) O resto é silêncio (Se mata. Com fúria) (Tradução nossa).

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da vida dela, seus familiares a acompanham e em meio da agonia de Magnólia os outros
personagens relatam parte de suas vidas vazias e solitárias. De forma que não somente a
história da protagonista é construída, mas o cruzamento dessa história em relação aos
demais personagens.
A peça ocorre em um ambiente em degradação permanente, um bairro periférico de
Medellín, na década de 90, afetado pelo tráfico de drogas e por vinganças constantes entre
alguns moradores da região. Motivo pelo qual as personagens listam diariamente e em
cada cena os novos mortos no bairro, falam das façanhas sangrentas dos pistoleiros que
conhecem, de suas aspirações de conseguir dinheiro facilmente como os famosos
gangsters locais e o sonho de viver posteriormente fora do país. Essas características
anteriores, além de darem identidade a peça, refletem o pensamento coletivo que circulava
na Colômbia naquela época devido ao crescimento do tráfico de drogas e à violência
desencadeada contra a população civil. Imaginários como a ideia de conseguir dinheiro em
excesso e a vontade de viajar para os Estados Unidos com o propósito de realizar "o sonho
americano” permeia os diálogos dos personagens baseados na realidade colombiana,
como é mencionado no trecho a seguir.

Voz de la madre: Entonces es verdad que a mi hermano Antonio le cortaron la


cabeza. ¿Pero cómo puede ser que a mi hermano Antonio le hayan cortado la
cabeza? ¿Quién le mata a uno los hermanos? No le digan a mi madre que a su hijo
alguien le cortó la cabeza, esas cosas no se le dicen a una madre, no. ¡No Berenice!
No le pongan traje oscuro a mi hermano, que en Barrancabermeja el paño no le
gusta ni a los muertos ¿Por qué no puedo ver claro? Si ni siquiera estoy llorando6
(VALLEJO, 2008,P.20).

Na mencionada peça há uma alusão constante à degradação de corpos


atravessados por doenças, loucuras, abandonos, mortes e agonias, o que também reflete
a opressão gerada pelo contexto na vida dos personagens e a desolação em que tentam
sobreviver lembrando sempre essa tensão constante entre a vida e a morte. É necessário
mencionar que durante os anos noventa devido ao narcotráfico, a Colômbia teve uma
exacerbação da pobreza, da violência e da desigualdade social, gangues criminosas
tomaram o país devido aos crescentes cartéis de drogas, como o Cartel de Medellín
liderado por Pablo Escobar, o crescimento dos Cartéis no país teve incluso cumplicidade

6
Voz da mãe: Então é verdade que o meu irmão Antonio cortaram-lê a cabeça. Mas como é possível que
cortaram a cabeça do meu irmão Antonio? Quem nos mata os irmãos? Não falem pra minha mãe que
alguém cortou a cabeça do filho dela, essas coisas não se falam pra mãe, não. Berenice não! Não ponha
terno escuro em meu irmão, porque em Barrancabermeja o pano não gosta nem para os mortos, por que
não consigo ver direito? Se nem estou chorando (Tradução nossa).

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com o governo nacional (CNMH, 2017). Esta situação diretamente afetou a população civil,
deixando como consequência centenas de mortos, deslocados e constantes ataques nas
cidades e no campo, situações que aumentaram o terror na população e que até hoje
permanece como uma ferida social não curada. O ser humano na Colômbia foi
historicamente reduzido a números e estatísticas, e afastado de qualquer vestígio de
humanidade a partir de la violação constante dos direitos humanos 7.

Juan: No es mi guerra, es la de todos, tarde o temprano te llega a la puerta, te hiere


de gravedad, sino mira a los vecinos, viven sumidos en un sopor mentiroso, sus
hijos se matan entre ellos, el barrio se desangra y ellos madrugan a trabajar como
si la cosa fuera con otro.
Mariana: No me pidas que entienda tu vida. Un golpe solo trae otro golpe y tú
das golpes en la oscuridad. Te golpeará un enemigo sin rostro una noche cualquiera
y nada habrá cambiado. Nada. Silencio.8 (VALLEJO, 2008, P.38).

Um elemento adicional da obra são as imagens oníricas que Magnólia possui, que
contêm memórias nostálgicas atravessadas pelo medo e pela constante ameaça do
contexto que põe em risco a vida dos seus seres queridos, as narrações dela contam a
morte de familiares, vizinhos e amigos, apelando para aquela ideia de que a morte violenta
sempre circulou na vida dela.

Juan: Aquí estoy madre, cansado, muy, muy cansado, casi me da envidia su
prolongado sueño, quisiera acostarme a su lado, como cuando estaba chiquito y
dormir profundamente hasta que todo esto haya pasado, despertar en otra vida, eso
quisiera. A los 28 años soy un viejo combatiente, a los 14 fui joven militante, nunca
me dijeron niño en esa época, a los veinte era ya un mutilado de guerra, de todos
modos me hicieron comandante, su hijo es un héroe anónimo en esta eterna guerra.
He ido y he vuelto unas cuantas veces del horror y estoy cansado, ya no peleo por
convicción y mucho menos por pasión madre, salgo al ruedo como un torero
enfermo a intentar despistar al toro. Pero no puedo hacer otra cosa mamá, ya no
puedo pedirle que me piense ni que rece por mí, sólo suéñeme. 9 (VALLEJO,
2008,P.33).

7 Até agora no ano de 2021 o Indepaz registra 91 massacres, uma média de 381 vítimas e o ataque a 66
municípios do país. Disponível em: <http://www.indepaz.org.co/informe-demasacresencolombiadurante- el-
2020-2021/>. Acessado em: 15 de julho de 2022 às 10:20.
Além do anterior, o Centro Nacional de Memória Histórica informa que na Colômbia, entre os anos de 1958
e 2012, o conflito armado causou a morte de 218.094 pessoas, 81% das quais são civis. Disponível em:
https://www.centrodememoriahistorica.gov.co/micrositios/informeGeneral/estadisticas.html Acessado em
15/7/2022 às 9:20.
8 Juan: Não é minha guerra, é de todos, mais cedo ou mais tarde bate à porta, te fere gravemente, olha os
vizinhos, eles vivem num estupor mentiroso, seus filhos se matam entre eles, a vizinhança sangra e eles se
levantam cedo para trabalhar como se a situação fosse com outra pessoa.
Mariana: Não me peça para entender a sua vida. Um acerto só traz outro acerto e você bate na escuridão.
Você será atingido por um inimigo sem rosto em qualquer noite e nada terá mudado. Nada. Silêncio
(Tradução nossa).
9 Juan: Aqui estou mãe, cansado, muito, muito cansado, quase invejo seu longo sono, gostaria de deitar ao
lado de você, como quando era pequeno e dormir profundamente até que tudo isso passasse, acordar em
outra vida, é isso que eu gostaria. Aos 28 eu sou um velho combatente, aos 14 eu era um jovem militante,
eles nunca me chamaram de criança naquela época, aos vinte eu já era um mutilado de guerra, de qualquer

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A obra termina com a morte de Magnólia também como encerramento de um
momento histórico, as personagens que a rodeiam ficam em completa desolação e
desespero, mas com a ideia de continuar a vida da forma que a concebem. Com o relato
das memórias de Magnólia e de sua morte, as vivências de uma família se fecham, e morre
parte de sua história que foi contada por quem foi considerada o eixo de todos, a família se
desintegra e cada um segue um caminho diferente sabendo que uma parte sua a vida foi
apagada com a morte de Magnólia o final de Magnólia marca também o fim de uma década
no país que tenta se reconstruir depois das grandes ondas de violência.
Apesar de os sonhos parecerem a fuga de Magnólia da realidade, a protagonista só
consegue ser prisioneira deles e reviver sua vida sem uma pausa da dor que sofreu. Essa
ideia de representar a violência da vida “real” de Magnólia e da família dela a partir dos
sonhos, gera gera uma dupla ficção e uma dupla linha narrativa dentro da história (os
sonhos de Magnólia e sua vida “real”), embora com o desenvolvimento da história
descubramos que sonho e realidade correspondem ao mesmo universo de consciência de
Magnólia, no final das contas tanto a realidade quanto os sonhos, representam as feridas
que a guerra deixou nela.
Assim tanto em Magnólia perdida em sueños quanto em Antígona Furiosa as autoras
enquadram os conflitos no seu próprio contexto, utilizando o conflito histórico como parte
da vida das personagens na ficção, utilizam também a violência exercida pelo Estado para
mobilizar o drama e, ao mesmo tempo, afectar as personagens diretamente.
Da mesma forma o conflito central nas duas peças é o drama vivido pelas mulheres
no meio da violência que atravessa os países das autoras e das personagens, as mulheres
nas peças são também vítimas do abandono e abuso por parte do Estado, tanto Antigona
como Magnólia são mulheres solitárias que viveram fortes embates da guerra que afectou
as suas famílias e sua vida em geral.
Possivelmente uma das formas de expurgar estas situações de desigualdade e
indolência, seja a criação dramatúrgica, a ficcionalização (embora por vezes tão próxima

maneira me fizeram um comandante, seu filho é um herói anônimo neste guerra eterna. Fui e voltei algumas
vezes do horror e estou cansado, não luto mais por convicção e muito menos por paixão mãe, vou para a
arena como um toureiro doente tentando enganar o touro. Mas não posso fazer mais nada, mãe, não posso
pedir que pense em mim ou ore por mim, apenas que sonhe comigo (Tradução nossa).

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da realidade), dois exemplos concretos sendo o caso das obras de Ana María Vallejo e
Griselda Gambaro, que reflectem os próprios contextos em suas criações.
A degradação da sociedade e os conflitos latentes no entorno afetam diretamente as
personagens e as suas relações. A morte está presente como algo inevitável, mas também
como uma possibilidade de se libertar do sofrimento que a vida gera, o infortúnio e a
tragédia sempre estiveram presentes nas vidas das protagonistas, razão pela qual morrer
parece ser a única saída.
As peças apresentadas e seus conflitos contêm os traços históricos dos países das
autoras, a violência na Colômbia nos anos noventa e a mais recente ditadura militar
Argentina, situações que deixaram centenas de mortos e desaparecidos e transformaram
totalmente o curso dos dois países. Através dos diálogos, as falas, rubricas, espaços e
situações, as dramaturgas constroem um retrato "ficcional" que expõe parte da história dos
países latino-americanos e mostra como foram implementados regímenes de terror a e
como a sociedade viveu estes momentos de destruição.
As dramaturgias apresentadas introduzem um referente para a construção de obras
teatrais em relação a acontecimentos históricos particulares que demarcam os conflitos
apresentados em um tempo e lugar específico. Embora tenham sido criadas em dois
momentos distintos, levantam a possibilidade de pensar a dramaturgia a partir de um lugar
social e político utilizando como recurso a ficcionalização de personagens e conflitos que
retratam parte das tragédias ocorridas na América Latina, mas ao mesmo tempo pretendem
dignificar a luta pelos direitos humanos no continente.

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VELASCO, MARIA MERCEDES DE. La mujer en la dramaturgia colombiana, Revista de


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Cênicas - ABRACE. Artes Cênicas na Amazônia: saberes tradicionais, fazeres contemporâneos. 614
O QUE HÁ NESSAS MULHERES PARA O MUNDO QUERER CONTER?

Gisele Soares de Vasconcelos1

RESUMO
Este artigo trata da criação artística como um espaço para tecer reflexões acerca da natureza
criminosa das violências de gênero, partindo da pergunta problematizadora: como a arte reage à
questão de violência contra a mulher? A violência contra a mulher é produto de uma construção
histórica e, nesse sentido, o teatro produz um efeito real em apresentar os contextos, ações e
situações que resultaram e resultam dessa construção. A produção/criação da obra cênica A
Vagabunda – Revista de uma mulher só, como pesquisa empírica, é analisada a partir dos seus
elementos discursivos dentro de uma proposta de rompimentos e de enfrentamentos de práticas de
violência originadas pela dominação masculina. Colocando-se à frente da escrita, as mulheres,
autoras dessa obra teatral, expõem suas perspectivas, experiências e posições políticas na trama
da encenação.
Palavras-Chave: Violência; Mulher; Artista; Artes Cênicas.

ABSTRACT
This article focuses on the artistic creation process and sees it as a place where we can connect
some thoughts about the criminal nature of gender-based violence, starting from a leading question:
How does art react to violence against women? Violence against women is a product historically
constructed, and therefore the performing arts produce an actual effect on presenting the contexts,
actions, and situations that resulted and still result from that construction. The staging-creation of
the play "The Vagabond, a One-Woman Music-Hall Show", being an empirical research, it’s
analyzed from its discursive elements perspective within a proposal that involves rupture and
confrontation of the violent practices originated by the male domination. Putting themselves at the
head of the writing process, the women authors of the play expose their perspectives, experiences,
and political positioning in the plot of the staging.
Keywords: Violence; Women; Artist; Performing Arts.

Ao longo da história do teatro, os homens ocuparam os espaços da direção e da


escrita teatral, moldando realidades a partir do seu lugar, das suas experiências e pontos
de vista, e perpetuando um domínio das narrativas sociais. Nesse sentido, a escrita de
textos teatrais por mulheres é ato político, de desconstrução de nossas prisões e de
ampliação e subversão do imaginário retratado no teatro brasileiro.
Para a escrita da obra A Vagabunda - Revista de uma mulher só (2021), as
dramaturgas Gisele Vasconcelos, Nicolle Machado2 e Nádia Ethel3 tomaram como

1 Pós-doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro /PPGAC/UNIRIO. Participou
da Bolsa FAPEMA, sob supervisão de José da Costa. Em 2016, pela Universidade de São Paulo /ECA,
formou-se doutora em Artes Cênicas. É professora adjunta da Universidade Federal do Maranhão – PPGAC
e artista pesquisadora do Grupo Xama Teatro.
2
Nicolle Machado tem mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Uberlândia / PPGAC/UFU.
É integrante do grupo Poli companhia e do Xama Teatro (MA).
3
Nadia Ethel Basanta Bracco tem mestrado em Artes Cénicas pela Universidade Federal do Maranhão/
PPGAC/UFMA. É Licenciada em Teatro pela Faculdade de Artes e Graduada do Programa de Treinamento

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referência histórica o gênero popular de teatro musicado, reconhecido no Brasil como
Teatro de Revista - um gênero majoritariamente dirigido e escrito por homens, do final do
séc. XIX até a primeira metade do séc. XX. Nas Revistas, eram revisitados - fazendo uso
da sátira, da crítica e da comicidade - os contextos político, artístico e social do período.
Tem-se uma presença artística da mulher na cena revisteira, porém sempre representada
a partir do olhar masculino, disseminando estereótipos.
“A história única cria estereótipos”, assim nos diz Chimamanda Ngozi Adichie
(2019), e insistir neles é negligenciar as muitas outras histórias que nos formam. Ela fala:
“É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, uma coisa só,
sem parar, e é isso que esse povo se torna. É impossível falar sobre a história única sem
falar sobre poder.” (ADICHIE, 2019, p.12).
Para nós, autoras-artistas, era preciso olhar a Revista com "o olho revirado", a partir
de uma perspectiva feminina imbricada de resistência, pois nos importava não somente
como as histórias são contadas, mas “[...] quem as conta, quando são contadas e quantas
são contadas, pois “tudo realmente depende do poder.” (ADICHIE, 2019, p.12).
Reconhecendo a importância das artes para o entendimento dessa “outra história”
da Revista, desenvolvemos junto ao grupo Xama Teatro4, nos anos de 2020 e 2021, o
projeto Até Quando: A vagabunda e os enfrentamentos das mulheres na vida e na arte 5.
Com o objetivo de realizar estudo e prática das artes cênicas de forma a contribuir para o
auxílio na execução de políticas públicas voltadas para mulheres, na área da prevenção e
enfrentamento à violência, construímos um grande processo colaborativo em teatro, que se
propagou em variantes6 das mais diversas linguagens artísticas.
Neste artigo, propomos refletir sobre as ações do projeto no âmbito de uma prática
artística ampla e conectada com a realidade, capaz de gerar visibilidade no combate à
violência contra a mulher. Nossa perspectiva é a de discutir e apontar, por meio do teatro,

em Gestão Cultural da Faculdade de Ciências Econômicas, pela Universidade Nacional de Córdoba-


Argentina. É dramaturga, produtora e pesquisadora do grupo Xama Teatro.
4 Fundado em 2008, possui sede em São Luís e em São José de Ribamar (MA). É um grupo formado

predominantemente por mulheres e coordenado por mulheres. Contemplado em projetos importantes


como SESC Palco Giratório, SESC Amazônia das Artes, Circulação Petrobrás, Banco da Amazônia e
outros, o Xama Teatro circulou por todos os estados brasileiros.
5 Projeto selecionado no edital Mulheres de Atitude (SEMU - Governo do Maranhão), em 2020, com temática

das Artes Cênicas.


6 São variantes geradas dos meios e da construção dessa pesquisa-montagem: criação de textos, gravação

e exibição de vídeos das práticas em ateliê, improvisação, execução de programas, promoção e registro de
diálogos virtuais, transcrição de reuniões, exercícios de dramaturgias e inventários de experimentos.

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ações de enfrentamentos femininos, na luta contra a discriminação, o preconceito e o
machismo para o exercício da profissão de artista e para a autonomia profissional, em uma
proposta dialética de discussão numa dimensão contextualizada da teoria e prática teatral.
Para isso, seguiremos os tópicos das ações do projeto, apontados abaixo:
a) Composição de equipe técnica, formada majoritariamente por mulheres/artistas
maranhenses, com apontamentos sobre a invisibilidade das mulheres/artistas nas artes;
b) Criação de texto escrito por dramaturgas no Maranhão, com reflexões acerca da
violência de gênero, seguindo a jornada da personagem Gigi.
É sob o prisma, portanto, de quem está inserida na produção artística A Vagabunda
- e em um projeto específico - Até Quando?, voltado para a conscientização da natureza
histórica da desigualdade de gênero a partir do estudo da figura da vedete, atriz, cantora e
dançarina dos gêneros musicados da primeira metade do séc. XX, que este estudo foi
desenvolvido. Nos inserimos, assim, na perspectiva dialética da relação entre teoria e
prática, e das conexões entre texto, contexto e cena teatral.

1. Processos criativos renovados: arte, política e feminismo

A posição periférica da mulher no teatro ainda vigora como uma violência estrutural
e simbólica, o que reflete na importância de se garantir espaço igualitário para todos os
gêneros no âmbito cultural. A ocupação da mulher em várias funções da produção cênica,
de forma a contribuir para a composição de uma ficha técnica formada, majoritariamente,
por mulheres, pode ser considerada como uma estratégia de superação, diante do cenário
que coloca as mulheres em posição de subalternidade no campo das artes.
Em um processo de montagem de uma obra teatral, duas figuras que ocupam
lugares de decisão na produção cênica, a figura da diretora e a figura da dramaturga, nos
orientam para o reconhecimento das realidades no cenário nacional das artes cênicas.
Considerando a identificação do nome artístico descrito na ficha técnica do espetáculo,
apresentaremos os resultados da pesquisa Circulação Teatral: práticas e saberes7.
Colocamos ênfase nessas duas funções do processo de criação da obra cênica,
por reconhecer no papel da diretora/encenadora uma atitude de tomada de decisões em

7 Projeto financiado pela FAPEMA (edital Universal/2017) e desenvolvido pela autora. Analisa a participação
de grupos e companhias através de importantes projetos nacionais de difusão de saberes e práticas, a
exemplo dos Projetos SESC Palco Giratório, SESC Amazônia das Artes.

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relação à definição da proposta estética da peça e à responsabilidade sobre a
comunicação com todos os outros setores da produção artística. A dramaturga, por sua
vez, ocupa a função também de tomada de decisões, por ser a responsável por organizar
as referências, temáticas, situações e conteúdos da peça.
A referida pesquisa nos mostrou, analisando a autoria de textos teatrais dos
espetáculos participantes do projeto Palco Giratório8, durante o período de 2014 a 2017,
que dos oitenta espetáculos selecionados, em média 69,5% dos textos e/ou roteiros
desses espetáculos ou performances se caracterizam como textos autorais, ou seja,
criados especificamente para os referidos trabalhos em circulação. E, desses textos
autorais, 75% são de autoria de homens, diante de apenas 25% escritos por mulheres.
Quando se trata da análise dos dados referente à direção dos espetáculos e
performances, a pesquisa identificou que, das produções que circularam no projeto Palco
Giratório, entre os anos de 2014 e 2017, 57% foram de espetáculos dirigidos por homens,
27% por mulheres e 16% apresentaram direção mista.
Esses números não diferem dos encontrados pela pesquisadora Daniela Beskow
(2017), ao analisar os guias de programação artística e cultural da cidade de São Paulo,
importante centro cultural do país. Foram pesquisados dados de quatro guias culturais
(Guia OFF; Guia.com.br; Em Cartaz e Revista Sesc Em Cartaz), contemplando todos os
meses do ano de 2015, chegando aos seguintes resultados: “Do total de 1375 peças
divulgadas pelos quatro guias, 54% são dirigidas por homens e 19% são dirigidas por
mulheres. As peças com direção conjunta somam 6%.” (BESKOW, 2017, p.71). A autora
destaca ainda que 21 % dessas peças não apresentam informação precisa.
Se o patriarcado configura-se em um tipo hierárquico de relação, que invade todos
os espaços da sociedade, representando uma estrutura de poder baseada tanto na
ideologia quanto na violência (SAFFIOTI, 2004), o fato da ausência, ou da pouca
ocupação das mulheres nos espaços de tomada de decisão no campo cultural, reforça a
necessidade de ações de combate a essa desigualdade de gênero. Pois, se há menos
peças escritas e dirigidas por mulheres contempladas no projeto mais importante de
circulação e difusão da cultura teatral no país, assim como nos meios de divulgação
cultural dos guias distribuídos no maior circuito cênico nacional, pode-se considerar que

8 Projeto de difusão e intercâmbio das Artes Cênicas, desenvolvido pelo SESC Nacional com reconhecida
importância no cenário cultural brasileiro. O grupo Xama Teatro participou da edição de 2016, circulando
com um de seus espetáculos, A carroça é nossa, por 19 estados do Brasil e 34 cidades.

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temos um número inferior de peças que apresentam o ponto de vista das mulheres sobre
a realidade.
Nesse contexto, compreendemos a produção do espetáculo A Vagabunda –
Revista de uma mulher só como um espaço de discussão sobre questões relacionadas a
gênero na dramaturgia brasileira, na medida em que buscamos evidenciar a importância
da produção, da autoria e da direção feminina, como um processo de resistência e de
combate ao machismo vigente, como uma estratégia artística que nos convida para
problematizar formas de convivência por meio de processos criativos renovados.
Analisando os resultados da pesquisa desenvolvida no contexto do Projeto Palco
Giratório, considera-se que o trabalho das mulheres das artes cênicas mantém-se
invisibilizado mesmo depois de séculos de lutas por espaços menos desiguais em
comparação ao trabalho dos homens na área cultural.
Essa realidade se estende para outros setores e funções em uma produção artística
e nos chama para um a(r)tivismo feminista propondo intersecções entre arte, política e
feminismo. Considerando o artivismo como meio de reivindicação (STUBS et al, 2018),
penetramos no terreno da arte e reivindicamos um artivismo a serviço da produção e
criação cultural onde as mulheres possam ocupar espaços de visibilidade, de
deslocamento e de ruptura às normas vigentes.
Através de estratégias de cunho cultural e artístico, buscamos interrogar temas e
situações objetivando uma mudança e uma ruptura às estatísticas apresentadas, por meio
de uma proposição de convocação de um maior número de mulheres artistas para compor
os espaços da direção cênica, dramaturgia e participação na produção musical da peça.
Entre essas proposições, temos a formação de uma banda de mulheres
instrumentistas, para a gravação das músicas9 do espetáculo, compostas originalmente
para a peça pela compositora maranhense Didã. Essa iniciativa gerou alguns desafios,
dos quais destacamos a invisibilidade dessas artistas por parte dos produtores musicais
atuantes no cenário maranhense.
Já havíamos definido junto ao diretor musical da trilha sonora da peça, quais
instrumentos seriam necessários para a gravação das seis canções que compõem a trilha:
violino, percussão, bateria, violão, baixo, trombone, flauta e sax. A primeira dificuldade

9 As músicas do espetáculo estão disponíveis em: <https://open.spotify.com/album/6mq9vl7qo7Y2b8Lmb


PrUJ9>.

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encontrada pela equipe foi lembrar, indicar nomes de mulheres para tocar os
instrumentos. Outro pré-requisito era a leitura de partituras, pois não haveria ensaios e
cada instrumento seria gravado isoladamente, como medida de prevenção contra a
pandemia da Covid 19. Dois nomes vieram facilmente, considerando o trabalho já
consolidado dessas musicistas no mercado local. Alguns outros foram encontrados por
meio de buscas nas redes sociais e por indicações de outras mulheres que atuam no setor
musical ludovicense. A dificuldade para encontrar os nomes para tocar determinados
instrumentos, como os de sopro, por exemplo, e dúvidas em relação à capacidade,
destreza e experiência em gravação, leitura de partitura etc., foram alguns dos discursos
masculinos com os quais nos deparamos frente à iniciativa de gravar a trilha com uma
banda exclusiva de mulheres, em um curto espaço de tempo.
Por elas não estarem à vista de todos, não ocupam o desejo de todos, o que resulta
no problema da invisibilidade feminina como um fator de exclusão no mercado musical,
dominado pelos homens. As mulheres trabalhadoras no campo das artes se deparam com
essas manifestações sutis da dominação masculina, que acarretam processos
excludentes na divisão do trabalho quanto ao gênero. Suas capacidades são
questionadas e sua exclusão é justificada pela falta de tempo para trabalhar com pessoas
novas ou desconhecidas, ou com pessoas com as quais ainda não estão acostumadas, e
assim por diante.
Superando os problemas apontados, gravamos a trilha musical da peça com o
recrutamento de mulheres (Figura 1), resultando na seguinte formação: Músicas Autorais:
Didã; Letra da canção Vedete: Lúcia Santos; Composições de domínio público: Chiquinha
Gonzaga; Produção Musical e arranjos: Rui Mário; Voz: Gisele Vasconcelos; Violão: Aline
Oliveira; Percuteria: Nize Cavalcanti; Trombone: Sofia Cabral e Karolline Figueiredo; Sax
e Flauta: Sarah; Violino: Thaynara Oliveira; Baixo: Mellanie Carolina.

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Figura 1. Aline Oliveira ao violão, durante a gravação da trilha musical do
espetáculo A Vagabunda. Estúdio Base SLZ, Maranhão 2020.
Fonte: Xama Teatro. Foto: Nicolle Machado.

Na proposta política de questionar hierarquias entre mulheres e homens e incentivar


a prática teatral sob o ponto de vista das mulheres, o projeto de montagem de A
Vagabunda – Revista de uma mulher só buscou como ação de empoderamento e de
enfrentamento à violência de gênero a composição de uma ficha técnica formada,
majoritariamente, por mulheres artistas de São Luís (MA), para atuarem nas variadas
etapas de produção, montagem e apresentação da peça.
O espetáculo, erguido durante a pandemia da Covid 19, em São Luís, junto aos
grupos Xama Teatro e Poli.Cia.10, apresentou, por fim, uma ficha técnica11 extensa, sob o

10
Grupo maranhense, com sede em Paço do Lumiar, sob coordenação cênica da diretora e encenadora de
A Vagabunda, Nicolle Machado, desenvolve trabalhos de pesquisa cênica com foco nas dissidências
teatrais envolvendo questões de gênero e questões étnico-raciais.
11
Além da produção musical, mencionada no texto, o espetáculo conta com a seguinte ficha técnica:
Concepção e Atuação: Gisele Vasconcelos; Encenação: Nicolle Machado; Dramaturgia: Nicolle Machado,
Gisele Vasconcelos, Nádia Ethel; Dramaturgista: Igor Nascimento; Produção: Nádia Ethel, Júlia Martins,
Nicolle Machado e Gisele Vasconcelos; Figurino: Cláudio Vasconcelos; Maquiagem: Eudeanny Monte e
Adara Vasconcelos; Figurino Múmia: Zeferina/ Demodê; Figurino Estrela: Rodrigo Raposo; Designer de
Iluminação: Renato Guterres; Videomapping: Nayra Albuquerque ; Cenário: criação coletiva; Assistente de
Cenografia: Adara Vasconcelos; Coreografia Vedete: Hélio Martins; Assistente de Produção e Bruxaria:
Renata Figueiredo; Macumbaria Cênica: Tieta Macau; Apoio espiritual: Mãe Jô (Terreiro de São Jorge
Tumajamace); Foto e Arte Colagem: Silvana Mendes; Filmagem e Registro Fotográfico: Nicolle Machado;
Publicidade e Marketing: Malvina/ Décimo Quarto Andar; Costureira: Shirley Maklainy; Coordenação da
Pesquisa: Gisele Vasconcelos; Pesquisadora de Iniciação Científica: Júlia Martins e Ronald Matheus.

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comando das mulheres artistas: Gisele Vasconcelos - concepção, atuação, texto,
pesquisa cênica e produção; Nicolle Machado, direção/encenação, pesquisa cênica,
produção e texto; Nádia Ethel – texto, pesquisa cênica e produção; Júlia Martins -
pesquisa e produção e Renata Figueiredo - produção junto ao grupo Xama. A composição
da extensa ficha técnica, que conta com mais de trinta artistas, contemplado 75% de
mulheres reunidas para a criação de um espetáculo solo, traz o desejo para a
materialização. Também, revela a quantidade de afetos criados, em um momento de
tantas incertezas e desigualdades que resvalam no campo das artes.

2. Sob a ótica do segundo lugar

A VAGABUNDA. Revista de uma Mulher só” é a revista impossível da Gigi, que volta
100 anos para enfrentar o que vier. Ao sobreviver a um incêndio, ela vai fazer o que
for preciso para se manter de pé. Se antes era outra, era apenas uma mulher, agora
ela desenterra as loucas, as bruxas, deusas, monstras, filhas dos tempos... uma
vedete que luta para permanecer viva. Furando os enquadros, ela se põe em revista
e é (des)vista. Uma mulher como qualquer outra: estrela que não cabe em uma mala
(PROGRAMA DO ESPETÁCULO. Sinopse, 2021, s/p).

Na pesquisa, nos deparamos com a predominância de papéis masculinos, com


pouco ou nenhum espaço para as mulheres no gênero revista, na tentativa de trabalhar
com alguns quadros e números de referência que nos serviam de inspiração, deveríamos,
então como primeira tarefa, “feminilizar” os personagens-tipo da revista. Dessa forma,
chegamos na personagem Gigi, multifacetada, se dividindo entre diversas figuras: santa;
artista/vedete; estrangeira/cigana; commère/mestre de cerimônias; múmia/ mulher
queimada/ rainha do carnaval; louca/histérica; mulher-gorila/monga; mulher robô;
malandra.
Na cena revisteira, por exemplo, existe a figura do Malandro - o trapaceiro, vadio,
clandestino, marginal e mulherengo. Na Revista de uma mulher só, o malandro cede lugar
para a malandra, e traz uma outra história: a história de uma mulher transgressora, a
entidade de umbanda Maria Navalha, assassinada pelas costas em um beco escuro.
Tratada como vadia e vagabunda, depois de morta, ela se encanta:

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A revista de prestígio
reza bem toda a cartilha,
chama sempre o bom malandro
pra bater o seu sambinha.
Só que hoje é pro embaraço,
e só mulher sai da coxia.
Mas não venha com os ovários
exigindo a sua fatia,
não é peito nem vagina que arma
a nossa infantaria.
Nasça o corpo que tiver,
sai da alma a valentia.
Quando uma perde a força
e diz já não valer a lida,
cabe a todas reunir
pra fazer a encantaria.
Desenterre a quase atriz,
astronauta, pianista.
No perigo: vista a louca!
Siga a lei da gritaria.
Querem matar Maria Mulher?
pois dê a eles pomba gira!
(A VAGABUNDA, 2021, s/p)

A Malandra é trazida nas cenas finais da obra teatral A Vagabunda, para prestar
socorro à personagem Gigi, que “perde as forças e diz já não valer a lida” (Figura 2). A
articulação entre a feminilidade e o sofrimento é recorrente no desenvolvimento de toda a
trama que envolve a luta da personagem Gigi pelo seu direito de ser mulher, artista,
“vagabunda e livre”. A cena que explora o tema do suicídio, apresenta Gigi se lançando no
vazio para escapar do sofrimento, como última saída possível.
Abordar o tema da tentativa de suicídio na peça é também uma forma de provocar
reflexões no âmbito das violências contra a mulher, reconhecendo falas-sintomas,
discursos do corpo, gritos da última agonia. Para a composição da cena da tentativa do
suicídio, as autoras da peça trazem referências da história de vida de algumas vedetes do
teatro de Revista, entre elas, Carmem Miranda, artista que iniciou sua carreira na cena
revisteira e ficou conhecida internacionalmente pelos seus trabalhos em shows e no cinema
na Broadway. Na sua vida profissional e pessoal, Carmem Miranda sofreu todo tipo de
pressão da indústria cultural, com exaustivas jornadas de trabalho, e também foi vítima de
violência psicológica e econômica por parte do marido. A mistura de álcool, barbitúricos e
cigarros levou a artista a óbito, aos quarenta e seis anos.

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Figura 2. Gigi canta Ô Abre Alas. Gisele Vasconcelos em A Vagabunda. Teatro
Xama, MA, 2021.
Fonte: Xama Teatro. Foto: Nicolle Machado.

Na peça A Vagabunda - Revista de uma mulher só, podemos identificar diversas


referências de violências contra a mulher associadas aos comportamentos de uma
sociedade patriarcal. Importa-nos aqui analisar essa presença a partir de fragmentos da
peça por meio de disparadores temáticos que nos conduzem aos diversos tipos de
violências cometidas contra as mulheres: a violência física; a violência psicológica; a
violência sexual; a violência patrimonial e a violência moral (BRASIL, 2006).
No prólogo da peça, a violência física é anunciada por meio da figura metafórica de
uma santa, estática no altar, que narra, com resmungos e irritação, as pistas de sua própria
história (Figura 3).

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Figura 3. Santa Estática. Gisele Vasconcelos em A Vagabunda. Teatro Xama (MA),
set 2021.
Fonte: Xama Teatro. Foto: Nicolle Machado.

Para a criação do texto, as autoras tomaram como referência a figura mitológica e


religiosa da mártir Santa Bárbara, degolada pelo próprio pai por suas escolhas, que
transgrediram os costumes e crenças de seu tempo:

Santa: (...) Me perguntaram se eu queria? Seios cortados, cabeça decapitada pelo


próprio pai em praça pública, pra acabar aqui sem me mexer depois de tudo que eu
passei... me irrita... calma, te controla, tá ficando doida, pede desculpa, desculpa,
eu vou tentar ser delicada, vou tentar... mas a culpa é minha! Eu podia ter ficado
calada, ter me controlado (A VAGABUNDA, 2021, s/p).

A vítima culpa a si mesma pela violência sofrida e esse sentimento de culpabilidade


e arrebatamento da desculpa em relação às suas próprias ações pelos riscos que assume,
é manifestada na personagem Gigi de forma recorrente durante toda a sua jornada que
envolve derrotas e superações, fazendo ecoar um: “A culpa é minha!”, assumindo a forma
da expressão corporal da vergonha, da humilhação, ansiedade e culpa. Para Bourdieu
(2010, p.51), essas expressões são contribuições dos dominados para a sua própria
dominação, “[...] muitas vezes à sua revelia, ou até contra sua vontade”, os limites impostos
vão sendo aceitos como:

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[...] maneiras de se submeter, mesmo de má vontade ou até contra a vontade, ao
juízo dominante, ou outras tantas maneiras de vivenciar, não raro com conflito
interno e clivagem do ego, a cumplicidade subterrânea que um corpo que se subtrai
às diretivas da consciência e da vontade estabelece com as censuras inerentes às
estruturas sociais (BOURDIEU, 2010, p. 51).

É como artista que a personagem Gigi enfrenta e segue escapando do jugo do


Carrasco Disfarçado de Amor (Figura 4) - figura antagonista da Vagabunda, cujos
interesses de dominação se declaram hostis ou naturalizados (VASCONCELOS;
MACHADO, 2022). Gigi seria, então, como aquelas mulheres que, ganhando a vida por seu
próprio esforço, encontram no trabalho um sentido para sua existência, tal como descreve
Beauvoir (1967), ao identificar essa categoria de mulheres do início do séc. XX.

Figura 4. Carrasco disfarçado de amor. Gisele Vasconcelos em A Vagabunda.


Teatro Xama, 2021.
Fonte: Xama Teatro. Foto: Nicolle Machado.

Ele, que bate, amarra e prende a protagonista, pode ser sua família, seu marido ou
a própria sociedade, que a julga e que mobiliza ações para que ela desista de seu sonho
de libertação e de independência. É o Carrasco disfarçado de amor quem ordena:

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Cênicas - ABRACE. Artes Cênicas na Amazônia: saberes tradicionais, fazeres contemporâneos. 981
Anda na linha! Volta pra casa! Eu sei como te pegar”; que humilha: “Artista? Agora
tu é “artista”, é? (…) Tua vida não vale nem uma estrofe, quem dirá uma peça! Então
pega uma vassoura e um pano de chão e vai fazer a tua revista de uma mulher só,
em casa! Já passou da hora de desistir! Desiste! (A VAGABUNDA, 2021, s/p).

Mantendo o desejo de insistir, Gigi vai se livrando como pode das prisões que lhe
são impostas. Ao sobreviver a um incêndio, ela é transportada para o passado e
experimenta na pele as maiores torturas, em um painel cruel de nossa história que ressoa
nos tempos recentes. Voltando cem anos para enfrentar o que vier, no tempo em que
restavam às mulheres “[...] as tarefas estratégicas de reprodução e da conservação da
família e do lar, de ser-para-os-outros” (CUNHA, 1989, p. 126), Gigi abdica, assim como
fez a escultora Camille Claudel - uma de nossas referências para a escrita da peça -, “[...]
do casamento, da maternidade, do conforto burguês e do recato feminino para viver
intensamente um papel diferente do que estava destinado” (CUNHA, 1989, p. 123). Esse
comportamento, sabemos, levou a artista Claudel ao hospício, fugas, isolamento crescente
e autodestruição de suas obras.
A historiadora Maria Clementina Cunha (1989) analisa o que há em comum entre a
brilhante artista de Paris, Camille Claudel e uma professora primária paulistana, Eunice.
Além da dor, da loucura e da proximidade das datas de internamento - entre 1910 e 1913 -
identifica qualidades que as levaram à internação, qualidades estas que nos homens são
tomadas como positivas, à exceção do celibato, diz a historiadora, e que nas mulheres eram
sintomas da loucura. Ela resume: “[...] independência em suas escolhas pessoais, excesso
de trabalho ou dedicação imoderada às suas carreiras profissionais, postas à frente das
‘inclinações naturais’ das mulheres, a ‘hiperexcitação intelectual’, ‘o orgulho’, o celibato.”
(CUNHA, 1989, p.125)

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Figura 5. Gigi presa para tratamentos de histeria. Gisele Vasconcelos em A
Vagabunda. Teatro Xama, 2021.
Fonte: Xama Teatro. Foto: Nicolle Machado.

Nossa personagem é reconhecida - assim como uma das vedetes de referência, a


capixaba Luz del Fuego - como “louca, imoral e exibicionista”, o que a leva facilmente às
constantes internações, considerando todos os sintomas listados acima. Com diagnóstico
de histeria (Figura 5), Gigi é internada para tratamento extremamente violento; é obrigada
a se casar; é presa pelo marido dentro de um armário; tem suas obras roubadas, ou
assinadas pelo marido e por outras pessoas:

(Amarrada. Torturada. Recebe tratamentos contra a histeria)


Gigi: Vagabunda? A família toda está se afastando de mim, por esse meu “capricho”
de ser artista? Eu não vou mudar o nome do meu show coisa nenhuma! Quem é
você? Pra falar do meu corpo, pra maldizer meus desejos? Pra dizer que a minha
sexualidade é desviante? Médico? Vocês querem me tratar porque eu sou
independente, por que eu vivo só e falo alto, falo de sexo, de perseguição e de
feitiço? O cacuriá não é uma dança de família? Hiperexcitação intelectual? É esse
meu diagnóstico?
(Eletrochoque)
Gigi: -É histeria? Vão tirar os meus ovários... para extirpar os instintos pervertidos?
Gelo na vagina... água gelada no ânus… Não, não, eu não quis decepcionar vocês,
não meu irmão, por favor, não fiquem sem falar comigo, não... eu não quero
machucar ninguém.. um marido, um lar?
(Torturada. Coagida. Rendição) (A VAGABUNDA, 2021, s/p).

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Após acompanhar a morte do marido e sobreviver a mais um incêndio, Gigi tem uma
segunda chance. Ela anuncia: “Primeiro dia do resto da minha vida. Eu sou uma artista.” E
nesse eterno desmoronar e levantar-se, A Vagabunda, como nos escreveu Renata
Figueiredo (apud BASANTA, 2021, s/p), “[...] desde o título, vem afirmar que os sonhos não
vividos e expressados fazem falta para a sociedade, um livro não escrito, um quadro não
assinado são vozes que fazem falta ao mundo, e sim, existem joias entre os escombros
que nós, mulheres artistas temos coragem de garimpar".

3. Como a obra A Vagabunda afeta seu público: recortes de afetos

Gigi: Essa aqui você não leva e quem impede são elas!
(A VAGABUNDA, 2021).

Produzida, escrita e encenada em São Luís sob o ponto de vista das mulheres, A
Vagabunda - Revista de uma mulher só traz, por meio da expressão artística e pelo
pensamento sensível, a capacidade das autoras, atrizes, compositoras de perceber e tornar
consciente certos aspectos da realidade em que vivem e devolvê-los para possíveis
modificações. “O Pensamento Sensível é necessário e insubstituível tanto para
entendermos as guerras mundiais como o sorriso de uma criança.” (Boal, 2009, p. 19), nos
diz Augusto Boal (2009). A forma estética de conhecer escolhida por nós, para a produção
desse Pensamento Sensível, foi o Teatro. Foi pela experiência do pensar-fazer-teatro que
reconhecemos práticas de violência contra a mulher sob a ótica da vida e arte de mulheres
artistas do início do séc. XX, juntamente com as percepções de nossas possibilidades
criativas e afetivas.
Porém, o teatro como acontecimento necessita de plateia. Assim, a experiência do
público no convívio com uma obra é também um processo criativo, como afirma Rancière
acerca do espectador(a) emancipado (a):

Ele [ela] observa, seleciona, compara, interpreta. Relaciona o que vê com muitas
outras coisas que viu em outras cenas, em outros tipos de lugares. Compõe seu
próprio poema com os elementos do poema que tem dentro de si. Participa da
performance refazendo-a à sua maneira, furtando-se, por exemplo, à energia vital que
supostamente deve transmitir para transformá-la em pura imagem e associar essa
pura imagem a uma história que leu ou sonhou, viveu ou inventou. Assim, são ao
mesmo tempo espectadores distantes e intérpretes ativos do espetáculo que lhes é
proposto (RANCIÈRE, 2012, p. 17).

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Durante as apresentações de A Vagabunda, na temporada de setembro no Teatro
Xama e na apresentação única no Teatro Arthur Azevedo, na Semana do Teatro, diferentes
mulheres e homens foram afetados de formas variadas no ato de recepção dessa mesma
peça. Também ocorreu de uma mesma pessoa ter sido afetada pela peça de diversas
formas em momentos distintos, o que dá a ver outros impactos, conforme o tempo e espaço
em que uma peça é apresentada. A todo instante, estamos produzindo sentidos,
pensamentos e conhecimentos por meio de nossas experiências.
Nessa relação entre obra e público, encontramos, em comentários publicados em
redes sociais, subsídios para discorrer sobre a experiência de apreciação sob o ponto de
vista de pessoas que assistiram a obra, em uma ou outra ocasião citada acima. Resultante
da experiência teatral, esse retorno de nosso público nos faz refletir acerca de uma segunda
problemática: “Como a obra A Vagabunda afeta seu público?”
Trago aqui recortes dos afetos de pessoas da plateia, que compartilharam diferentes
sentimentos. Nesses compartilhamentos, saltam palavras e frases que refletem questões
como a obra “mexe com o ser feminino” ao trazer “fragmentos da história de mulheres que
não se calaram” que se faz refletir em cada uma de nós, “em tantas mulheres”, “mulheres
que persistem”: “Eu me vi, vi minha mãe, minha tia, minha vó, vi tantas mulheres”; “...
amigas, atrizes, donas de casa, presidentes, vi vc”;"Vedete, atriz, dançarina, mãe, dona de
casa, motorista”; “Quando você menos espera, várias mulheres te atravessam a cada
instante”, pois o que “uma mulher vive, todas vivem” (BASANTA, 2021, s/p).
Nessa colagem de falas que ressoam da obra, encontra-se um grito encorajador:
nós não estamos sozinhas. Mesmo em um espetáculo solo, uma grande equipe é
necessária. Mesmo em se tratando de uma personagem, muitas outras deram sustentação
e inspiração para a diretora, para as dramaturgas e para a atriz em cena. Foi preciso
desnudar-se de si para encontrar-se com as outras, com as narrativas que se cruzam, para
trazer todas em uma só: a Vagabunda. Ela, uma mulher que sempre vai recomeçar, de
braços levantados para receber a glória, para ser ovacionada, mesmo que isso nunca
aconteça, pois diante das piores quedas, ela ainda insiste e, enquanto houver uma
resistindo, ela não vai ser derrotada nunca!

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Referências

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Companhia das Letras: São Paulo, 2019.
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