You are on page 1of 16
BRASIL, BRASILEIROS. POR QUE SOMOS ASSIM? Ensaios em identidade social, nacionalidade e cultura Cristovam Buarque Francisco Almeida Zander Navarro (Orgs.) Brasilia-DF, 2017 VERBENA EDITORA VERBENA ae EDITORA. Editores Conselho editorial Benicio Schmidt Geniberto Paiva Campos ‘Amo Vogel Arnaldo Brandao Fabiano Cardoso Lia Zanotta Machado Paulo Baia Editora associada Sonia Ramincheski Bod. SSCs) Bx23b SRTV/Norte - Qd. 701 - Sala 1017 ~ Brasilia-DF ~ CEP 70719.900 ‘www.verbenaeditora.com.br VERBENA EDITORA LTDA. © by Fundagao Astrojildo Pereira, 2017 Autorizada a reproducdo parcial ou total desta obra desde que citada a Fundagao Astrojildo Pereira e que seja sem fins lucrativos. FUNDACAO ASTROJILDO PEREIRA (FAP) SEPN 509 - Bloco D ~ Lojas 27/28 - Ed. Isis 70750-504 — Brasilia-DF Fones: (61) 3224-2269 /3045-6916 Fax: (61) 3226-9756 www.fundacaoastrojildo.org.br fundacac@fundacaoastrojildo.org.br Tiragem: 1.000 exemplares + e-book Distribuicéo FUNDACAO ASTROJILDO PEREIRA VERBENA EDITORA LTDA. Capa: Estudio L&L Ficha Catalografica soe Fic Catalogrifica BOI7b Buarque, C istovam; Almeida, Francisco; Navarro, Zander. rasi, brasileiros. Por que somos assim? Cristovam ‘arque; Francisco Almeida; Zander Navarro - Bra- Ory UMdacdo Astrojildo Pereira / Verbena Editora, 340p. 23cm ISBN: 978-85-89216-67-8 italy, ienetas Sociais. 2. Politica. I. Organizadores. Il DU 320 —___ ann SUMARIO Apresentagdo ......--00eee rece sneer ener? Capitulo I Nas ruas, as diversas faces do Brasil e 0 desafio de construgéo da democracia Alberto Aggio Capitulo II O Brasil e os brasileiros. Porque ndo somos assim, nem assado Augusto de Franco Capitulo III Teodiceias brasileiras: como nos tornamos oque hoje somos ...-.-.0s0e ee sere rer eres eee s Bolivar Lamounier Capitulo IV Como somos Cristovam Buarque Capitulo V Nosso olhar vai além dos nossos olhos ........-+++++ Flavio R. Kothe Capitulo VI O Brasil ¢ os brasileiros - um olhar externo (ctimismo é preciso!) John W. Garrison IT Capitulo VIT O brasileiro da travessia..... 0.00.00 ee seen ener José de Souza Martins Capitulo VIII Os impactos da modernidade fugidia e do déficit civilizatorio na vida das brasileiras. ..... 6.6.0.0 0 005 Loreley Garcia 19 43 S57 87 105 123 147 157 Capitulo I icamos assim? Estamos assim? Somos assim Lourdes Sola Capitulo X ° paraiso dos deserdados Luis Mir captulo XE ; Gidadaos imperfeitos ..---+++0ec er een reser ets 43 Marco Aurélio Nogueira Capitulo XII — Os bruzundangas e as possibilidades da Republica .... 261 Marcus André Melo Capitulo XIII Nossos defeitos, alguns valores e um tanto de nossas expectativas... 2... cece eee eect eee eeeeeeeees Mércio Pereira Gomes Capitulo XIV Identidade nacional e raga no Brasil............, Paulo César Nascimento , Capitulo XV Dificil atalho da cidadania brasileira Socorro Ferraz Capitulo XVI O Brasil contra si mesmo Zander Navarro 273 303 Capitulo XIV IDENTIDADE NACIONAL E RACA NO BRASIL: REAVALIANDO O “MITO DA DEMOCRACIA RACIAL” Paulo César Nascimento’ ode parecer um contrassenso discorrer sobre identidade Macional em uma era marcada pela globalizagéo, onde supostamente as fronteiras dos Estados-nacdo estariam tornando-se porosas frente 4 avassaladora penetracéo das migracdes em massa, das informagées das redes sociais, e da movimentacao do capital financeiro. Mais que isso, alega-se igualmente que as estruturas econémicas e politicas de todos os paises tendem cada vez mais a uniformizar-se em torno dos eixos do mercado e da democracia, ¢ que surgi uma cultura interna- cional comum a todas as classes médias ao redor do mundo. Esta visao do mundo globalizado, no entanto, choca-se com accrescente emergéncia de movimentos étnicos e nacionalistas em todos os continentes, bem como com a luta de muitas comu- nidades para preservar suas raizes autdctones ¢ sua cultura. E certo que varios desses movimentos mostram um viés auto- ritario, fundamentalista e xendfobo, mas hé outros que pautam suas aspiracdes nacionalistas no ambito de procedimentos democraticos, como é 0 caso dos partidos e movimentos inde- pendentistas da Catalunha e da Escécia. Seja como for, 0 fato é que o ressurgimento de movimentos étnicos e nacionais, a esquerda e a direita, parece ser uma resposta a um processo de globalizagéo que é percebido como 1 Doutor em Ciéncia Politica pela Columbia University (Nova York). Atualmente @ Professor Associado do Instituto de Ciéncia Politica da Universidade de Bra- silia, Foi organizador da coletdnea A Identidade Nacional em Questdo (2015). 291 uma ameaga a valores e modos de vida das comunidades nacio- nais. A identidade nacional - a percepg4o que uma comuni- dade tem de si - é 0 amalgama que une populagées divididas em classes, géneros, religides, ragas etc., € por isso os elemen- tos que a constituem sao percebidos como fundamentais para a “vida nacional”, ao mesmo tempo em que valores vindos “de fora” sao interpretados como um perigo ao “como nés somos” de uma comunidade. Este texto explora um elemento polémico da identidade nacional brasileira: 0 mito da democracia racial, tradicional- mente colocado em xeque por percepgées a ele opostas, algumas baseadas em experiéncias de outras realidades sociais. O traba- Iho também analisa o paradoxo da existéncia de tal mito em uma sociedade eivada de preconceitos e desigualdades raciais, e esboca uma definigéo do mito da democracia racial nao como ideologia elaborada para camuflar uma realidade de opressao racial, mas como uma aspiracao dos brasileiros a uma harmo- nia entre as ragas que compéem a populagao do Brasil. A construgdo do mito Desde 0 tempo do Império, alguns intelectuais cogitavam eleger os fenémenos da mestigagem e da convivéncia pacifica entre as racas como atributos distintivos da identidade nacio- nal brasileira, em contraposicao a ideia entao dominante de fazer do Brasil uma “Europa nos tropicos”. A primeira tentativa de elaborar um discurso nacional coube ao Instituto Historico € Geografico Brasileiro (IHGB), instituicao académica pioneira do pais, fundada em 1855 por intelectuais pertencentes as oligarquias brasileiras e portuguesas (GUIMARAES, 1988, Pp. 5-27), Embora grande parte dos colaboradores da revista desse Instituto exaltassem a “missdo civilizatéria portuguesa’, foi o ensaio “Como se deve escrever a historia do Brasil’, do natura- lista alemao Karl Friedrich von Martius, vencedor de uma competicao realizada pelo IHGB sobre esse tema, onde encon- tramos pela primeira vez o reconhecimento da presenca das “racas india e etiépica”, como o autor manifestou-se a respeito dos indigenas e negros. Por este motivo, alguns autores até clegeram von Martius como precursor da ideia de democracia racial. Ja 0 romantismo brasileiro, presente na literatura do 29: Paulo César Nascimento pais, eegeu a figura do indio como simbolo da brasiianidade Parneudo, a0 longo do século XIX e no inicio do século XX, ejominava entre os intelectuais brasileiros a ideia de um «prasil europeu” e da miscigenacdo como um instrumento de paulatino “branqueamento” da populacao do pais. Foi na década de 1930 que uma parte influente da intelec- tualidade passou a imaginar o Brasil como uma “democracia racial”, ou seja, uma sociedade na qual o conceito de raca se tornara irrelevante na estruturacdo das hierarquias sociais. Como se sabe, esse retrato do pais difundiu-se na academia apés a publicagao do classico da sociologia brasileira Casa- Grande & Senzala (FREYRE, 1983[1933]), apesar de tal expres- sa0 nao ser mencionada uma so vez nessa obra. No entanto, nela o seu autor, Gilberto Freyre, defendeu ter sido a casa- grande ~ tipo de moradia originaria do sistema patriarcal de colonizacao portuguesa no Brasil - que, juntamente com a senzala dos escravos, constituiu o ambiente propicio a uma aproximacdo inusitada, no contexto dos regimes escravagistas da época, entre senhores brancos ¢ escravos negros ¢ indige- nas. Esse fendmeno, segundo ele, teria impulsionado 0 processo de miscigenacao e integracdo cultural entre europeus, africa- nos e nativos, gerando uma sociedade hibrida, que “de todas da América foi a que se constituiu mais harmoniosamente quanto as relagdes de aca”, (FREYRE, p. 163). A assertiva tese sobre as relacées raciais no Brasil, defen- dida pelo socidlogo pernambucano, ¢ fundamentada em teorias antropoldgicas vistas como revoluciondrias @ época, consagrou- se no meio académico nacional, especialmente apés ter sido endossada por diversos intelectuais norte-americanos ¢ euro- peus.? Nos anos 1930-1940, a ideia foi popularizada e difundida pela midia, sob os auspicios do governo de Gettilio Vargas. Enfa- tizou-se, nesse processo, a imagem do Brasil como uma demo- cracia racial, a sugerir que todos 0s brasileiros, independente- mente de raga ou etnia, beneficiavam-se igualmente de plena cidadania e das oportunidades de ascenséo social geradas pelos esforcos de modernizacdo do pais. A fama do Brasil como um ON SS 2 Como o antropélogo Frank Tannenbaum, em Slave and Citizen (New York: Knopf, 1947) ¢ 0 escritor romancista Stefan Zweig, autor de Brasil, pals do futuro, (Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1960 [1941)). Hentidade nacional e raga no Brasil 298 i -se pelo mundo nos anos 1949 i irracial espalhou-se pel n ; quando a vais acolheu milhares de judeus fugidos da Europa Gurante a Segunda Guerra Mundial A desconstrugao do mito A “democracia racial brasileira” foi levada tao a sério que, finda a Guerra, a Organizacdo das Nacdes Unidas para a Educacao, a Ciéncia ¢ a Cultura (Unesco) enviou cientistas sociais de varias nacionalidades para estudar o “modelo brasi- leiro de relagdes raciais’, visando divulga-lo como exemplo para o resto do mundo. Esses pesquisadores, no entanto, logo perceberam que, apesar da sua admiravel cultura de tolerancia racial, o Brasil nao era totalmente imune ao preconceito e a discriminacao com respeito 4 raga, sendo, ao contrario, marcado por uma profunda desigualdade socioeconémica e politica entre bran- cos e “pessoas de cor”. De fato, esse grupo de pesquisadores delineou um panorama bastante realista das relacdes raciais no Brasil da época, apontando para a complexidade do tema, suas nuances e especificidades, como a interconexao entre o preconceito de raga ¢ o de classe, assim como o papel do mestigo e do “branqueamento” na configuracao racial do pais. Coma publicagao desses trabalhos, em meados da década de 1950, a tese sobre a democracia racial perdeu credibilidade entre os académicos brasileiros e brasilianistas, notadamente os norte -americanos (conforme SKIDMORE, 1976). Assim sendo, a forca dessa imagem, j4 profundamente enraizada no imagina- rio popular, constituiu-se em um intrigante enigma para os especialistas desse campo de estudos. Na década de 1960, 0 socit logo Florestan Fernandes tentou elucidar tal enigma ao rotular a imagem da democracia racial como um “mito”, termo empregado como sinénimo de ideolo- gia, no sentido de falsa consciéncia. tizar a tematica da integracao raci tinha por fun¢ao escamotear o fato estava excluida do processo de mo: Para Fernandes, ao enfa- al no Brasil, essa crenga de que a populacao negra \dernizacao capitalista em curso no pais. Para ele, entretanto, os negros seriam gradual- mente incorporados a sociedade, na medida em que o Brasil “ Paulo César Nascimento se industrializasse € se inserisse na ordem capitali Se adial. (FERNANDES, 1965, p. 460). een Em fins dos anos 1970, porém, uma nova geracao de pesqui- sadores especializados em questdes raciais dedicou-se, a partir fe teorias e métodos desenvolvidos em universidades norte-a- cnericanas, @ desconstruir todas as teses geradas sobre o tema ho Brasil. Nessa perspectiva, 0 mito da democracia racial passa a ser definido como uma ideologia racista, por mascarar o preconceito a discriminagao com que é efetivamente tratada & popula¢ao néo branca, e encobrir a relevancia da raca como fator de desigualdade social no Brasil. Para esses estudiosos, tal ideologia tinha por funcdo legitimar certa “politica racial”, arquitetada pelas elites e implementada oficiosamente pelo Estado, que visava manter a supremacia branca apés a aboli- cdo da escravatura.? © mito da democracia racial, nesse sentido, teria sido de importancia crucial para 0 sucesso dessa estratégia de domi- nacao racial, principalmente por impedir o despertar de uma identidade racial na populacdo afrodescendente brasileira, fenémeno visto como pré-requisito para a formacéo de um movimento negro politicamente forte. Essa reinterpretacao do mito e das relagdes raciais no Brasil, antenada com as teorias sobre o multiculturalismo ¢ a pés- modernidade que entao despontavam nas universidades france- sas ¢ norte-americanas, logo atraiu entusiasmados defensores na intelligentsia brasileira, incluindo a maioria dos ativistas do movimento negro no pais. Por sua vez, essas teses inspiraram a producao de uma série de estudos quantitativos dedicados a cance oe ee 3. Abdias Nascimento, O Genocidio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo ‘Mascarado (Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978); Carlos Hasenbalg, Discrimi- nagio e Desiqualdades Raciais no Brasit (Rio de Janeiro: Graal, 1979); Carlos Hasenbalg & Nelson do Valle ¢ Silva, Estrutura social, mobilidade ¢ raga (Sko Paulo: Vertice Rio de Janeiro: Instituto Universitario de pesquisas do Rio de Janeiro [[UPERJ], 1988); Relagdes raciais no Brasil contempordneo (Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992); Thomas Skidmore, Preto no Branco (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976); Michael G. Hanchard, Orpheus and Power (Princeton: Princeton University Press, 1994); Joazé Bernardino, “Acho Afr- mativa e a Rediscussio do Mito da Democracia Racial, Estudos Afro-Asiaticos 24:2 (Rio de Janeiro: 2002); France Winddance Twine, Racism in a Racial Democracy in Brazil: The Maintenance of White Supremacy in Brazil (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2001). 295 ‘Mentidace nacional e raga no Brasit 10 “racismo & brasileira’, ao medir a desigualdade entre brancos e negros em termos de rencla, emprego, acesso Aedue aoe assaténcia médica, expectativa de vida, mobilidade socia, moradia etc. Desta forma, criou-se um consenso entre acada. micos e ativstas do movimento negro sobre a necessidade de desconstruir o mito da democracia racial e, assim, Temové-lo definitivamente do imaginario popular. Em resumo, como observou o antropélogo Peter Fry ag comentar a mudanca de atitude dos intelectuais a respeito do mito da democracia racial, tornou-se um truismo entre ag elites cultas a nocao de que 0 Brasil nao mais representava um modelo alternativo as sociedades racistas, mas sim um “sistema arcaico ¢ obscurantista que com o tempo deve dar lugar 4 ‘realidade’ de ‘ragas’ claramente definidas”. (FRY, 2002). De fato, a literatura produzida sobre o tema nas ultimas décadas, com raras excegées, insiste em caracterizar a aborda- gem sobre a questao racial no Brasil como “atrasada”, tendo 0 caso norte-americano como parametro, e a buscar explicagdes © sugerir solugdes para esse fenémeno. Por exemplo, pergunta- se por que ainda nao emergiu no Brasil - pais no qual 45 por cento dos habitantes se classificam como negros ou pardos - um movimento social nos moldes e com a extensao do movi- mento pelos direitos civis da minoria negra nos Estados Unidos dos anos 1960. E, invariavelmente, esses estudos apontam o mito da democracia racial como uma das principais causas do atraso em que se encontra a luta contra o racismo no Brasil. Na virada do século XXI, a investida contra o mito da demo- cracia racial foi encampada pelo Estado, até entdo acusada por estudiosos e mili Tesponsavel pela perpetuacao do mito rac , instituicdo que era itantes como a maior sta. Influenciado por Paulo César Nascimento publica de ensino superior, mas seus idealizadores esperam também que o sistema atue como instrumento de conscientiza- gao racial da juventude brasileira, A medida parecia significar o golpe de misericérdia no mito da democracia racial. A persisténcia do mito e a identidade nacional brasileira Apesar de todos esses esforcos, no entanto, pesquisas de opiniéo vém demonstrando que a maioria dos brasileiros, negros e pardos incluidos, continua validando o discurso sobre a harmonia racial no pais, ainda que, paradoxalmente, admita a ocorréncia de discriminagao e preconceitos de cor (consulte- se SCHWARCZ, 2001, p. 76). Experiéncias realizadas durante acoleta de dados para o Censo 2001 mostraram também que a sociedade brasileira resiste & adocéo de uma classificacao bi-racial, proposta que vem sendo defendida pelo movimento negro como forma de combater 0 mito da democracia racial (DANIEL, 2002). Além disso, apesar do prestigio alcancado junto a politicos governantes, ¢ 0 poder de influenciar politi- cas pblicas, 0 movimento negro nao tem conseguido penetrar nas classes populares, ou ampliar significantemente sua mil tancia, que permanece restrita a individuos de classe média com altos niveis de escolaridade. Uma explicacao plausivel para o pouco apelo a identidades raciais no Brasil, e para a permanéncia do mito da democracia racial, pode ser encontrada nas peculiaridades da formacdo da identidade nacional brasileira, no cerne da qual se encontra a ideia de uma comunidade inter-racial harménica. Nesse sentido, as diferencas com os Estados Unidos sao marcantes. Naquele pais, 0 ethos puritano constituiu-se em grave empecilho para qualquer aproximagao entre as ragas. Mesmo apés a abolicdo da escravatura, permaneceu um apartheid explicito no sul, implicito no norte, € cuja caracteristica prin- cipal estava no cuidado com a preservacdo da pureza racial dos brancos e, portanto, no impedimento da miscigena¢ao. Apés a guerra civil, a necessidade de reintegrar a derrotada elite branca sulista na nagdo norte-americana fez com que 0 governo federal concordasse com a permanéncia da segrega- 297 Hdentidade nacional e raga no Brasil cao racial no sul do pais, situagao que durou até a década de 1960 do século passado.® Além disso, em muitos estados norte-americanos existiram leis expressas impedindo casamentos entre racas diferentes, ¢ classificagao racial do pais, baseado na “gota de sangue” ~ im minimo de sangue negro ja tornava a pessoa da raca negra — confirmava a dicotomia branco/negro, negando status préprig a0 miscigenado. A discriminacao racial e a segregacao, porém, geraram forte aspiracao a uma consciéncia racial prépria entre a comunidade afro-americana, fortalecendo dessa forma o desenvolvimento de uma identidade negra. © poderoso movimento pelos direitos civis, fortemente enraizado nas comunidades negras dos Estados Unidos, também forcou o governo federal a adotar acées afirmativas que permitissem & populacao negra acesso ao ensino superior e aos empregos, como forma de mitigar a desigualdade social que a discriminacao racial alimentava. Se é verdade, porém, que as politicas de agao afirmativa norte-americanas propor. cionaram imensos beneficios para a populacdo negra daquele pais, ao reforgarem a identidade negra, por outro lado, acaba- ram por separar as racas nos Estados Unidos, hoje um pais hifenizado em “afro-americanos’, “italo-americanos”, “hispano -americanos” etc., onde a énfase do hifen desloca-se cada vez mais para a primeira parte. A questo racial no Brasil evoluiu de forma muito diferente, a comecar pelo préprio carater da escravidao brasileira, Como mostrou Gilberto Freyre, a escraviddo introduzida no Brasil pelos portugueses era do tipo maometano, ou familial, resultado da experiéncia anterior adquirida pelos portugueses em contato com os muculmanos. Esse tipo de escravidao se caracterizava por uma relacdo mais préxima entre escravas e seus senhores, resultando em relacdes sexuais e uma proliferagdo de filhos ilegitimos, os quais, devido ao carater familial desse tipo de escraviddo, permaneciam na periferia da familia patriarcal, EE 5 Uma interessante interpretagao da histéria da ‘segregacdo racial nos EUA ode ser encontrada em Anthony Marx. Making Race and Nation: A com- parison of South Africa, the United States and Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, 298 Paulo César Nascimento gdendo obter certas benesses ou até mesmo, no limite, entrar Pi circulo familiar, ainda que em posigao subalterna.* Essa aproximacao entre escravocratas e escravos, que resultou em uma numerosa populacdo miscigenada, era ainda facilitada pelo carater plastico do portugués, ou seja, por sua capacidade de adaptar-se ao novo contexto tropical e suas Condigdes.” Embora em situacéo dominante, 0 colonizador portugues nao possuia o sentimento de pureza racial que, no caso norte-americano, originou-se no ethos puritano, dai sua facilidade em interagir e ter filhos com pessoas de outras racas. A miscigenacdo e a gradual modernizacao do pais, a partir da segunda metade do século XIX, possibilitaram a paulatina ascenséo do mulato na sociedade brasileira, quando este passou a ocupar oficios ¢ profissdes técnicas muitas vezes desprezadas pelos brancos. E a auséncia de segregacdo oficial ¢ leis raciais acabou por configurar uma situacdo bastante diferente da norte-americana (Freyre, 2002, Capitulo X). Raca, no Brasil, adquiriu um carater funcional, no sentido de que 0 contexto e os cédigos sociais alteram sua percep¢ao, tornando a definicao racial ambigua e sujeita a multiplas gradagées. (DA MATTA, 1997, p. 69-74). Nao ha necessidade, porém, de romantizar a questdo racial no Brasil. Nao se pode fugir do fato de que, como toda escravi- dao, a brasileira se caracterizou pela opressdo ¢ exploracao raciais. Apesar da ascensao social de parte da populacdo mestica, a grande maioria dos negros tem sofrido intmeras barreiras para se integrarem como plenos cidaddos na socie- dade brasileira. (FERNANDES, 1965). Permanece 0 fato, contudo, de que a aproximacao das racas no Brasil, ainda que em contexto de desigualdade e preconcei- tos, néo incentivou o desenvolvimento de uma consciéncia negra como nos Estados Unidos. Ao contrario, reforcou um sentimento de rejeicdo a ideia de “racializacao” da sociedade. ee 6 FREYRE, Gilberto, Casa Grande e Senzala. Sio Paulo: Global, cap. 1V, 2005. Ver também Veja, 15/9/1999, p. 71 © carater plastico do portugués é ressalt Freyre, mas também por Sérgio Buarque de Holanda. Ve Buarque de Holanda, Sérgio. Raizes do Brasil. Sao Paulo: 2002, cap. 2 7 ‘ado nao somente por Gilberto ra este respeito Schwarcz Ltda., 299 Mentidade nacional e raga no Brasil Nesse sentido, 0 intuito de mudar a auto percepcdo do povo brasileiro, a ponto de que este se veja classificado pelo conceitg de raca, choca-se dessa forma com os fundamentos que cons. truiram a comunidade imaginada chamada Brasil. Parece ser este 0 motivo para que boa parte da sociedade brasileira perceba toda e qualquer politica que promova identidades raciais especificas como uma ameaca a identidade nacional, A respeito do mito da democracia racial, é preciso entender sua natureza. Como colocou muito bem 0 socidlogo Jessé Souza, (...) Assim como o mito fundador americano consubstancia- se na reedigao do mito biblico do povo escolhido, nosso mito fundador, cremos, assenta-se na democracia racial. Com isso, queremos chamar a atengdo para o fato de que muito da nossa autoestima deve-se a esse fato. Mitos nao sio falsos ou verdadeiros, do mesmo modo que teorias cientifi- cas. Mitos nao pretendem descrever realidades. Na medida em que 0 mito serve, primariamente, para conferir um sentido a essa realidade, ele visa, antes de mais nada, a producao de solidariedade social ¢ a viabilizagao de projetos coletivo. (SOUZA, 1997, p. 30-31). E preciso, entao, compreender a realidade da formacao da identidade nacional brasileira para formular politicas publicas adequadas ao pais que nao sejam meras cépias de outras reali- dades como a norte-americana. A propria miscigenacao impede uma identificacdo clara das racas no Brasil, pais com uma longa historia de sincretismo racial, cultural e religioso. Politi- cas publicas voltadas para a populagao de baixa renda ja abar- cariam a grande maioria da populacdo negra e mestica do pais, sem a necessidade de racializar o tecido social brasileiro. Isso, é claro, sem abrir mao da necessidade de combater os precon- ceitos raciais através de politicas educativas. O antropélogo Roberto da Matta caracterizou a exclusao nos Estados Unidos por meio do principio de “diferentes, mas iguais’, em contraposicao, segundo ele, ao principio brasileiro de “desigual, mas junto”, em que o sistema racial inclui, mas a0 mesmo tempo hierarquiza (DA MATTA, 1997, p. 71). £ Preciso evoluirmos no Brasil para uma cidadania que s¢@ regida pelo principio de “iguais e juntos”. 300 Paulo César Nascimento Referéncias ANDERSON, Benedict. Nagdo e consciéncia nacional. Sao Paulo: Atica, 1989. : BACKES, Carmem. O que é ser brasileiro? Sao Paulo: Escuta, 2000. , BERNARDINO, Joazé. Aco afirmativa e a rediscussao do mito da democracia racial, Estudos Afro-Asidticos. N. 24, p. 2, 2002. DA MATTA, Roberto, Notas sobre o racismo & brasileira, in: SOUZA, Jessé (org,), Multiculturalismoe racismo, uma comparagéo Brasil-Estados Unidos. Brasilia: Paralelo 15, 1997. DANIEL, G. Reginald Daniel, White into Black: Race and National Identity in Contemporary Brazil, paper apresentado na conferéncia THE LEGACY OF SLAVERY: UNEQUAL EXCHANGE, na Universidade de Santa Barbara, maio/2002. FERNANDES, Florestan. A Integraedo do negro na sociedade de classes. S40 Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala, 22. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. . Sobrados e mocambos. Sao Paulo: Record FRY, Peter. Construindo a nacio. Deadalus, Edigao Especial, 2000. _ Politica, Nacionalidade e significado de ‘raca’ no Brasil, in: BETHELL, Leslie. Brasil fardo do passado promessa do futuro. Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 2002. GUIMARAES, Manoel L. Salgado. Nagao e civilizagéo nos trépicos: o IHGB e o projeto de uma histéria nacional”. Estudos Histéricos 1. p. 5-27, 1988. HANCHARD, Michael G. Orpheus and Power. Princeton University Press, 1994. HASENBALG, Carlos. Discriminacdo e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979. HASENBALG, Carlos; VALLE E SILVA, Nelson. Estrutura social mobilidade e raca. Sao Paulo: Vértice € Rio de Janeiro: Instituto Universitario de Pesquisas do Rio de Janeiro (luperj) 1988. Princeton: ‘Hdentidade nacional e raga no Brasit cu 7 tempordneo (Rio de Jane} ; is no Brasil con' neiro: . Relagées raciat Rio Fundo, 1992) oe ergi Raizes do Brasil. S80 Paulo. sérgio Buarque. 0: HOLANDA, Sérgi 9002. Companhia das Letras, sunfodnac i jlio Vargas € 0 triunfo do nacionalism, ASSE, Ludwig. Gettilio Vargas ¢ d ; iter Sao Paulo: Itatiaia / Universidade de Sao Paulo, 1986, LEITE, Dante Moreira. O cardter nacional brasileiro. Sao Paulo: Unesp, 2002. i d nation: a comparison of South MARX, Anthony. Making race and nat npari 0 Africa, the United States and Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. NASCIMENTO, Abdias. O genocidio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978, NASCIMENTO, Paulo César. Dilemas do nacionalismo, Revista Brasileira de Informacdo Bibliografica em Ciéncias Sociais (BIB) 56. Sao Paulo: Anpocs, 203, p. 33-53. REIS, José Carlos. Identidades do Brasil: de Varnhagen a Fernando Henrique Cardoso. Rio de Janeiro: Fundagao Getulio Vargas, 2000. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Racismo no Brasil. Sao Paulo: PubliFolha, 2001 SKIDMORE, Thomas. Preto no branco. Raca e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. SOUZA, Jessé (org.) Multiculturalismo e racismo. Uma comparacéo Brasil-Estados Unidos. Brasilia: Paralelo 15, 1997. TANNENBAUM, Frank. Slave and Citizen. New York: Knopf, 47. TWINE, France W. Racism in a racial democracy in Brazil: the maintenance of white supremacy in Brazil ick, NU: Rutgers University Press, 2001.” New Brunswick ZWEIG, Stefan. Brasil, pai: ‘ . ieacdO Brasileira, 1960 [1 oath do futuro, Rio de Janeiro: Civiliza® 302 jment© Paulo César Naseimen

You might also like