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TEORIA E PRÁTICA NO ÂMBITO DA GEOGRAFIA COLONIAL:

ANÁLISE CRÍTICA DA HERANÇA DE UMA TRADIÇÃO DE


PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO E CRISE DE
REPRESENTAÇÕES CENTRO-PERIFERIA

DE AZEVEDO, ANA FRANCISCA


Departamento Geografia, Universidade Minho
Centro de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa
afaas@netc.pt
RODRIGUES, MARTA
Centro Estudos Africanos Universidade Porto

Resumo
A presente comunicação dá conta dos resultados de um projeto de
investigação implicado com a revisão dos textos e discursos da geografia colonial
portuguesa. A revisão de textos e discursos geográficos fundadores da moderna imagem
do mundo surge como dispositivo central de análise permitindo identificar os traços de
uma herança cultural que, atuando ao nível da colonização das representações,
‘naturaliza’ modelos hegemónicos de conhecimento que legitimam práticas do espaço
assentes em axiomas hierarquicamente organizados por forma a perpetuar quadros
subalternos de sujeitos e lugares que, por sua vez, inviabilizam a emergência de novos
diálogos centro-periferia. Dentro deste projeto selecionou-se um estudo de caso; o
trabalho produzido pela primeira geógrafa portuguesa no âmbito da geografia colonial –
Raquel Soeiro de Brito. O estudo efetuado centra-se na tentativa de compreensão da
construção do discurso científico produzido pela autora sobre a ‘India Portuguesa’,
tendo como fonte primária a sua obra canónica Goa e as Praças do Norte (1966). No
âmbito desta análise, apresentamos um conjunto de reflexões sobre a dimensão
simbólica das paisagens culturais retratadas e a génese da formação social do espaço
que alicerçou a representação cultural de lugares e da natureza.

Palavras-chave: geografia colonial, centro-periferia, património cultural, Raquel Soeiro


de Brito, paisagens culturais

Abstract
THEORY AND PRACTICE IN COLONIAL GEOGRAPHY: CRITICAL ANALYSIS
OF THE LEGACY OF TRADITIONAL KNOWLEDGE PRODUCTION AND THE
CENTER- PERIPHERY REPRESENTATIONAL CRISIS
The revision of geographical discourses and texts emerges as a central
device allowing to identify traces of a cultural heritage which, acting at the level of
colonial representations, ‘naturalizes’ hegemonic models of knowledge and legitimates
practices of space based on hierarchically organized axioms in order to perpetuate
subordinated subjects and places that, in turn, precludes the emergence of new center-
periphery dialogues. The present paper reports the results of a research project involved
in the revision of texts and discourses of Portuguese colonial geography. Within this
project a study case was selected, the work produced by the first Portuguese geographer
woman occupied with the study of colonial geography, Raquel Soeiro de Brito. The
study focuses on the attempt to understand the construction of scientific discourse

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produced by the author on the 'Portuguese India', having as primary source her
canonical work Goa e as Praças do Norte (1966). We present a set of reflections on the
symbolic dimension of portrayed cultural landscapes and the genesis of the social
formation of space which form the basis of the cultural representation of place and
nature.

Keywords: colonial geography, center- periphery, cultural heritage, Raquel Soeiro de


Brito, cultural landscapes

1. GEOGRAFIA PÓS-COLONIAL

Integrando um movimento de revisão da produção do conhecimento geográfico,


a geografia pós-colonial visa a compreensão do “impacto do colonialismo e a sua
contestação nas culturas dos povos colonizados e colonizadores do passado, e a
reprodução e transformação das relações coloniais, representações e práticas no
presente” (Gregory; 2000:612). Procura-se efectuar a leitura crítica de textos coloniais e
da cultura através da análise do espaço, numa tentativa de compreender como a nossa
percepção é modelada por imagens e discursos. O presente artigo pretende demonstrar
como a paisagem cultural enquanto discurso é também uma representação cultural.
Neste caso falamos da representação ideológica e política do Portugal colonial,
concretamente no que respeita à representação colonial da Índia portuguesa. Para atingir
este objectivo, optou-se pela análise da obra “Goa e as Praças do Norte” (1966) de
Raquel Soeiro de Brito. Na década de 60, a Geografia Cultural orientava-se para novas
pesquisas com pendor humanista, passando a ter em conta o desenvolvimento das
ligações afectivas do ser humano com o ambiente físico, e o modo como estas se
exprimem. Focando o seu interesse na natureza da experiência humana, indagava-se a
compreensão dos significados e processos implícitos à construção de lugar. Deste modo
a natureza interdisciplinar do conceito de lugar permite que este surja como uma
construção sustentada por variadas fontes de experiência, analisando os modos de
perceber o mundo. Neste sentido, a importância de conceitos como lugar e paisagem,
decorrem do modo como são percebidos, quase como uma zona de contacto entre a
realidade material e o significado simbólico que lhe é atribuído por diferentes culturas
(Azevedo; 2007). Com a reformulação da Geografia Cultural efectuada sobretudo a
partir da década de 80, a relação cultura e políticas de lugar e o modo como estas se
manifestam através da paisagem, podendo ser construída ou reconstruída pelos grupos
sociais a partir das suas experiências, é recolocada no centro das problemáticas
geográficas. Efectivamente, o impacto do cultural turn em geografia tem repercussões
ao nível da recolocação das problemáticas coloniais. De acordo com Phil Crang (2000)
o cultural turn associa-se a uma mudança intelectual que trouxe as questões da cultura
para o centro dos debates contemporâneos, este turno ou viragem para as políticas
culturais, sondou-se na geografia num esforço de revisão de uma longa tradição de
pensamento. Ora tal preocupação com a cultura sondou-se também numa focalização
nas culturas do imperialismo e coloniais, movimento que incorporou o processo de
revisão dos textos e discursos geográficos e práticas decorrentes. Conduzindo a uma
preocupação em relação à posicionalidade do autor, o estudo do lugar é agora visto
como “uma das maiores fontes de posicionamento através da qual os indivíduos se
definem, e definem os Outros que não pertencem a esse lugar” (Johnston, 1997:271).
Nigel Thrift, ao reflectir sobre o progresso do cultural turn, distingue duas
competências das abordagens da geografia cultural contemporânea: as competências

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metodológicas que nos permitem compreender melhor os métodos de co-produção do
mundo”(Latour, 1999); e as competências informadas pela ênfase na construção dos
mundos, que questionam a fundação dos mitos na cultura ocidental, através da análise
da constituição de diferentes grupos discursivos e respectivas políticas de resistência.
Como parte de um passado recente, a produção do conhecimento geográfico expõem as
marcas deixadas pelo colonialismo na paisagem e na sociedade, onde as ideias
geográficas sobre espaço, lugar, paisagem e natureza ajudaram a articular as diferentes
experiências de colonialismo. O interesse crítico demonstrado sobre a temática do
imperialismo e colonialismo, conduziu ao interesse sobre o pós-colonialismo. Tendo
conhecimento da existência da diversidade histórica e geográfica do colonialismo,
devemos construir as nossas teorias com a consciência da responsabilidade incumbida
no desenvolvimento de narrativas alternativas que permitam a passagem de uma noção
de diversidade para uma noção de diferença e heterogeneidade cultural. Donde, ser
determinante o papel de geógrafos e geógrafas para a consolidação deste projecto
político-intelectual. Como Jonathan Crush explica, os objectivos de uma geografia pós-
colonial são variados e abrangentes, englobando: “o desenterrar da cumplicidade
geográfica com o espaço na dominação colonial; o carácter da representação geográfica
no discurso colonial; a desunião do sistema geográfico local da teoria metropolitana e a
sua totalização de sistemas de representação; e a recuperação dos espaços ocupados e
investidos com o seu significado próprio, pela baixa classe colonial” (1994; 336-337).
Até ao momento, as investigações em geografia pós-colonial, centram-se numa vasta
intersecção de temas, como a produção imperial do conhecimento geográfico; a
geografia do encontro, conquista e colonização; a geografia da representação colonial,
particularmente em relatos escritos de viagens, fotografias, mapas e exposições; a
produção do espaço em cidades coloniais e pós-coloniais; os generalizados,
sexualizados e racionalizados espaços do colonialismo; o discurso colonial e a pós-
colonialidade; as geografias de diáspora e o pensamento transnacional do movimento de
pessoas, capitais e comodidades (Blunt and McEwan, 2002), delineando a interface
crítica entre o pensamento pós-colonial e geográfico, analisando as geografias do
discurso e poder colonial, interrogando as produções espaciais coloniais, destabilizando
as geografias imaginárias do império e interrompendo toda uma hierarquia de centro
periferia. Deste modo as geografias pós-coloniais põem sob escrutínio textos e discursos
assentes sobre uma ontologia e epistemologia que vieram servir para legitimar a
expansão do colonialismo europeu e a consolidação de uma economia capitalista
mundial. Neste sentido, o próprio acto de investigação integra a formação e luta política
para dar voz aos sujeitos vistos tradicionalmente como subalternos e marginalizados;
“(d)ecorrendo de complexas políticas da diferença que tomam lugar num presente pós-
colonial, o trabalho de recolocação de subjectividades a que também a Geografia deitou
mão, enuncia a urgência de autorização das diferentes vozes no que respeita à
codificação das inúmeras dimensões espaciais e a produção de ’outras’ espacialidades”
(Azevedo, 2007:58). Dar visibilidade a outros lugares e paisagens de forma a desmontar
as políticas hegemónicas do conhecimento e do poder imperial num período pós-
colonial, surge como preocupação central para inúmeros investigadores. Neste sentido,
a análise de texto é estratégia fundamental por se entender que cada texto é um espaço
de inscrição dos sujeitos, uma arena de representação através da qual se esgrimem
diferentes formas de poder e identidade, tendo os trabalhos sobre a produção e
representação do espaço colonial e sobre como estes foram construídos ao redor de
conceitos diferenciais como classe, género e raça demonstrado o seu impacto nos
encontros coloniais. Especificamente na geografia tem existido um interesse crescente
na relação entre a geografia e o império, procurando descodificar como a geografia

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académica trabalhou e tem trabalhado como uma disciplina imperial e como discurso
colonial. A escolha de textos coloniais prende-se com a convicção de que estes
funcionaram e funcionam como verdadeiros instrumentos de colonização cultural e,
mesmo no caso de textos científicos, ou se calhar mais ainda no caso dos textos
científicos, estes funcionam como verdadeiros testemunhos de operação das redes de
poder, verdade e conhecimento postas em jogo para a moderna legitimação da cultura
ocidental. Donde a opção pela análise do discurso colonial em textos geográficos, pelo
modo como através deles se operou à naturalização de uma metanarrativa geográfica
passível de colocar o sujeito do humanismo como entidade dotada para o controlo,
administração e subjugação do Outro. Para entender o modo como a cultura europeia
conseguiu produzir e controlar o Oriente a nível político, militar e científico, é
necessário examinar o Orientalismo como um discurso, onde a cultura e a literatura
ocidentais determinavam a maneira como o Oriente era representado, contribuindo para
o estabelecimento de marcos de referência das formas políticas do colonialismo. Ao
falar de Orientalismo, aludimos a um projecto político-ideológico presente numa
complexa série de ideias, filosofias e sabedorias domesticadas para uso e proveito
eurocêntrico. Importa realçar que o conhecimento ocidental do Outro pode ver-se
construído como uma parte do sistema total do discurso orientalista, onde não só é
possível criar conhecimento mas também a realidade que se descreve. O Orientalismo é
uma parte integrante do discurso colonial, e este determina uma nova maneira de
conceptualizar a interacção do processo cultural, intelectual, económico e político na
formação, perpetuação e construção do colonialismo. Tendo como objectivo ampliar o
alcance do estudo do colonialismo e examinar a interacção de ideias e instituições,
conhecimentos e práticas, procura oferecer o âmago da análise de epistemologias
coloniais e ligá-las à história das instituições coloniais. Assim, é possível traçar
conexões entre o sujeito dominante e o dominado, as ideias e instituições que potenciam
este quadro de relações, permitindo visualizar como o poder é trabalhado e trabalha
através da linguagem, cultura e instituições que regulam o nosso quotidiano. A revisão
do papel das instituições coloniais é fundamental para se poder apreciar a forma de
colonização exercida para com a relação entre poder, verdade e conhecimento. Dentro
destas instituições, os ministérios e as universidades são fundamentais para a
propagação de uma ideologia. A análise de textos e discursos produzidos por estas
instituições permite aceder ao conteúdo dos seus projectos de colonização cultural e
entender o modo como o sujeito colonial era representado ou podia ser representado.
Neste quadro, o discurso surge como “um processo que postula a significação como
uma produção sistémica situada dentro de determinados sistemas e instituições de
representação – ideológicos, históricos, estéticos, políticos” (Bhabha, 1984:98),
assumindo Homi Bhabha que estes são construídos numa relação de diferenças no que
concerne a outros discursos construídos historicamente. Isto resulta na produção de uma
imagem híbrida, contendo traços de vários discursos, fazendo com que a representação
do colonizado seja vista como uma prática discursiva. Deste modo, as narrativas do
poder colonial e das culturas dominantes são revistas, contribuindo o hibridismo para o
aparecimento do discurso pós-colonial e para as críticas ao imperialismo cultural. A
imagem e o conhecimento do Outro e do Oriente que o Ocidente construiu, deixam em
aberto a possibilidade de que todo o conhecimento ocidental moderno seja de uma
maneira directa ou indirecta uma forma de discurso colonial e, muito especificamente
no que respeita à produção das paisagens da modernidade.

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1. PAISAGEM E CLIMA: OS SENTIMENTOS DE LUGAR

Para Denis Cosgrove (1989), a paisagem como representação é-nos dada a


conhecer através de palavras escritas e mapas, que são códigos simbólicos e as
principais ferramentas do nosso ofício. As narrativas de viagem, a pintura, a literatura e
os trabalhos de campo, são meios de análise da paisagem em que a linguagem é fulcral
visto que e de acordo com este autor, o texto que reverte numa interpretação geográfica
da paisagem é o meio pelo qual transmitimos o seu significado simbólico, através do
qual representamos esse significado. Cartografia e representações de paisagem são
discursos de poder, onde os processos económicos, sociais, políticos e culturais são
essenciais para a interpretação do espaço. De acordo com Duncan e Ley (1997), a
consciencialização das representações culturais profundamente etnocêntricas, conduziu
a uma reavaliação da especificidade do Outro e ao reconhecimento que a geografia está
centrada e comprometida com a constituição da diferença e da alteridade. Neste sentido,
há a necessidade de examinar as ideologias presentes nestes discursos para
“desconstruir as representações culturais dominantes do Outro, revelando que há menos
regularidades na natureza do que convenções de uma imaginação – geográfica –
situada” (Duncan & Ley, 1997:13). Isto porque a paisagem enquanto formação cultural,
material e simbólica, subentende uma conceptualização própria de espaço ligada a
práticas sociais, ideológicas e políticas que fomentam a consolidação do pensamento
moderno e respectiva representação do mundo.
O que se pretende neste artigo, é rever o tradicional estudo e interpretação da
paisagem, dando especial atenção à paisagem enquanto construção cultural e
enfatizando o discurso de representação associado à época colonial em que a obra foi
escrita. Na obra “Goa e as Praças do Norte” (1966), Raquel Soeiro de Brito inicia o
capítulo “Goa” com a descrição do quadro natural, promovendo a exaltação da natureza
regional e contextualizando a obra na escola vidaliana francesa, grande influência da
escola de geografia portuguesa. A narrativa apresenta a uma clara divisão entre o meio
natural e cultural, dando primazia ao quadro físico da região, como modo de “fixar” o
quadro da paisagem retratada, sobretudo na descrição de Goa ao longo da qual Raquel
Soeiro de Brito vai posteriormente avançando os traços individualizados da paisagem
cultural, dando ênfase à inscrição das culturas locais na paisagem. Parece pois
pretender-se obter uma legitimação do cultural “por natureza”, descrevendo uma
“natureza natural” de modo a legitimar um estado de atraso civilizacional subjacente no
texto escrito e visual. A organização da paisagem e o domínio ideológico que estrutura
o espaço são passíveis de afirmar o carácter civilizador do império português e justificar
a “nossa” capacidade de domesticação mesmo nas mais sofisticadas antigas
civilizações. Este ênfase numa “natureza natural”, através do discurso e da
representação, explorando o contraste entre a natureza e a sociedade encontra-se
associado a processos de diferenciação do Eu e do Outro, promovendo a separação entre
a cultura e o quadro natural.
O estudo das regiões é essencial para a autora, movimentando-se um quadro
epistemológico mais lato dentro do qual a geografia regional permitia consolidar a
moderna imagem do mundo de pendor eurocêntrico. Baseada em generalizações
socialmente construídas, a questão de identidade de lugar na narrativa de viagem é
transmitida pela estetização da paisagem. Assumida por Vidal de la Blache, a
intimidade entre cultura, paisagem e região (Gregory et al, 2009) consolidou um muito
específico conhecimento do mundo, organizado de forma a perceber o sentido de lugar.
Como Luchiari afirma “o que a natureza sugere, o imaginário social traduz e transforma
em artefactos” (Pereira Leite, 1998:56). As representações de mundo são construídas na

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produção desses objectos culturais que, reunidos no tempo e no espaço, transformam a
paisagem em lugar.
Desde a sua posição de cientista europeia debruçada sobre as características de
um território, a autora vai exprimindo ideias e sentimentos como forma de tornar
inteligível a percepção de um espaço para consumo interno. A paisagem apresenta uma
“geografia histórica distintiva” (Soja, 1999) que vai permitir que a autora desenvolva
uma narrativa geográfica descritiva onde exprime, através da fisionomia dos lugares, os
sentimentos que o lugar lhe impõe: as complexas relações entre o ser humano e o
ambiente físico. Observando o espaço goês e evidenciando o simbolismo das
representações, a autora constrói o texto geográfico apoiando-se em metáforas que deste
modo potenciam ao leitor uma imagem de subdesenvolvimento da Índia, criando uma
densa teia de problemas que apenas seriam resolvidos com o acto de domesticação
português, adensando o carácter regenerador da missão portuguesa nas colónias. Esta
ideia de domesticação encontra-se fortemente ligada às ideias ocidentais de civilização e
progresso do ser humano, presente nas práticas políticas coloniais. Aquilo que está em
causa é a produção de paisagens da cultura dominante, criando imagens do mundo
aceites como realidade por todos. Mas as ideias avançadas no texto, tais como a “rigidez
de superfícies”, a “magreza dos arbustos” ou a “esterilidade das zonas”, vão
desenvolvendo o seu trabalho de construção de significados simbólicos sobre os lugares
retratados.
Um traço importante do discurso colonial para a construção ideológica da
alteridade é a sua dependência do conceito de “fixidez”, muito presente nesta obra. A
fixidez, enquanto signo da diferença cultural/histórica/racial no discurso do
colonialismo, constitui um modo paradoxal de representação: conota rigidez e uma
ordem imutável, bem como desordem, degeneração e repetição compulsiva” (Bhabha,
2005:143). Subtilmente elas vão organizando a construção da imagem do lugar sob a
fachada de uma linguagem neutra e científica. Inventariando e sistematizando, a
narrativa progride em julgamentos supostamente legitimados pelo “natural” e à medida
que se vai procedendo à antropomorfização das formas físicas vai-se também tornando
mais complexo o sentimento de lugar. À “senilidade dos relevos” contrapõe-se a
“maturidade dos vales” e ainda a “juventude das formas”, num processo crescente de
historicização das formas físicas que aprisiona o meio numa leitura tão situada quanto
as teorias geológicas o impunham, à época. Do território, a geógrafa passa-nos uma
imagem de pobreza onde os solos pouco ocupados constituem territórios exíguos e
vazios, onde a ideia de uma relação harmoniosa com a natureza, é fulcral na geografia
imaginária ocidental. Esta ideia de vazio e pobreza, perpassada pelas imagens da autora
sobre a superfície, conduz a um sentido de passado, de falta de progresso constituindo
um artifício para a articulação dos modos de representação colonial.
A descrição das formas de paisagem absorvida pelo observador, condicionam a
visão e representação da própria paisagem, dando lugar a uma visão simbólica de um
território em concreto. Um exemplo claro desta situação é o clima como condicionante
da ocupação do solo, cria diferentes formas de sentir descritas de uma forma
maravilhosamente pormenorizada no clima gôes: “De um céu coberto por grossas
nuvens cor de cinza que se desfazem durante horas seguidas em catadupas de água,
passa-se a uma transparência atmosférica quase sem limites, em que os mais pequenos
pormenores são avistados com toda a nitidez a muitos quilómetros de distância, e
durante meses seguidos não cai nem uma gota” (Brito, 1999:18). O que a autora recria é
um espaço de contraste, onde a natureza contrastante e encantadora, provocando um
sentimento ambíguo que surpreende, ameaça e cativa. É o jogo entre a ambivalência e o
estereótipo que se desenvolve através do texto, e a sua repetibilidade efectiva a própria

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estratégia de individuação. Trata-se pois de construir um sujeito colonial através da
descrição da paisagem, onde a articulação das formas da diferença se efectiva pela
expressão do sentimento de lugar. Nesta mistura de ciência descritiva e sentimentos de
lugar, Raquel Soeiro de Brito descreve Goa como deprimente, devido a “uma atmosfera
quente e muito carregada de humidade, profundamente desagradável, e para pessoas
sensíveis, mesmo doentia.” (ibide:21). Os trópicos deixam de ser exóticos e
encantadores, acarretando consigo uma imagem negativa e desagradável atribuindo-se-
lhe a ideia de inferioridade.
O clima tropical, onde a contestação do selvagem, do excessivo e do bruto
contrasta com o clima temperado, modela a produção do conhecimento e marca a
originalidade do clima da região. E neste sentido, a insistência na tentativa de recriar
uma representação de espaço através de relações de oposição permeia este discurso de
reconhecimento. A nossa sugestão é de que se efectua a construção de um espaço
teórico para afirmação de uma identidade originária assente em discriminações e
contradições sobre um sujeito que se pretendia colocar “no seu lugar”. Como se a
duplicidade essencial do asiático, e da Ásia enquanto região cultural, pudessem ser
efectivamente comprovadas pelo discurso científico. As narrativas geográficas são em
grande medida a expressão da resposta da viajante estrangeira ao lugar que lhe é
estranho. E não podemos esquecer de que, de acordo com Edward Said, através da
viagem constrói-se um arquivo que se estrutura internamente com base nos escritos que
resultam destas experiências. Destes textos resultam uma série de reduções “a viagem, a
história, a fábula, o estereótipo, o confronto polémico. Estas são as lentes através das
quais o Oriente é experienciado” (Said, 1978). Neste processo, a cientista reage à
mudança do ambiente físico através do seu próprio corpo. Ainda que tentando subtraí-lo
da narrativa científica o corpo está presente nela, ele fala do sentimento de lugar. Deste
modo, o corpo funciona como meio de comunicação das experiências vivenciadas e
meio de (re) significação do espaço associado à produção do conhecimento geográfico,
sendo a relação com o território primeiramente uma relação com o corpo. O espaço, de
acordo com Merleau-Ponty (1999), é definido pelos sentidos que estruturam a
percepção do mundo e pelo corpo que, habitando o espaço, também o transforma. Deste
modo, a construção da paisagem no imaginário moderno constitui-se através da
sexualização representacional do território, onde as políticas de género definem o
sujeito feminino e uma visão diferente das relações entre corpo e espaço.

2. ESPAÇO E HISTÓRIA: AFIRMAÇÃO DA CULTURA

A acção humana como modificadora da paisagem é retratada pela autora quando


pretende dar a conhecer a organização dos diferentes espaços existentes na Índia
Portuguesa, prática relacionada com o facto de cada sociedade produzir diferentes
espaços, existindo por isso a necessidade de estudar cada um desses espaços peculiares,
tendo em conta especificidades históricas e geográficas, a paisagem como representação
de identidades é também anúncio de um meio histórico e cultural distinto.Nas
descrições que Raquel Soeiro de Brito faz, as intersecções ser humano e ambiente físico
são inúmeras: “As três faixas em que se divide geograficamente o território (…) foram
afeiçoadas pelos homens e, a pouco e pouco, acabaram por formar três áreas de
ocupação bem distintas” (Brito, 1966:55), continuando sempre dentro desta linha de
pensamento, onde as regiões naturais têm como objectivo servir uma sociedade e não
ser factor determinante dessa sociedade, mas paralelamente se enfatiza o carácter
determinante do meio. Esta é mais uma das tensões que percorre toda a obra da autora, a

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tentativa de fugir a uma força determinante do ambiente físico, afirmando-se igualmente
a sua manifesta supremacia. Deste modo o estudo geográfico passa pelo exame
combinado de factos humanos e físicos visando a produção de uma especificidade local.
As representações de espaço descritas pela autora “onde a presença do homem adquire
maior continuidade e a sua marca na transformação da paisagem é mais profunda”
(ibide:56) demonstram como o meio em grande medida se define em função da obra
humana que o transforma, enfatizando o papel modelador da sociedade na natureza
através dos “modos de vida padronizados funcionalmente” (Livingstone, 1992), e
criando através do espaço relacional, um discurso geográfico. A estratégia textual
organiza-se de forma a que a paisagem natural se transforme em paisagem cultural.
Assim a paisagem natural é vista apenas “como um material bruto a partir do qual as
forças produtivas de uma variedade de sistemas sociais engendraram os seus espaços
particulares” (Lefebvre, 2000:138). Havendo a necessidade de descodificar os diferentes
processos que criam a multiplicidade de espaços, a autora observa: “se a topografia é
obra da natureza, ao homem cabe a responsabilidade (…) da esterilização dos planaltos”
(Brito, 1966:56).A representação do território em Raquel Soeiro de Brito, foca-se muito
no uso de termos contrastantes onde a beleza, o exotismo, o medo e o estranho são
presença assídua, sentimentos directamente relacionados com a experiência no espaço.
Considerando que com a chegada dos portugueses, o impulso ocidental e racional
concedeu a Goa “uma carta de privilégios quase igual à de Lisboa” (ibide:96), tornando
a cidade apetecível de viver, e valorizando “o seu traçado … lembrava, à primeira vista,
o das mais opulentas cidades ibéricas e italianas de então; igrejas monumentais,
palácios, casas de acentuado ar aristocrático testemunhavam as riquezas acumuladas”
(ibide:97), a geógrafa demonstra a clara inscrição portuguesa e ocidental na paisagem.
Está claramente implícito no discurso colonial português, a tentativa de demonstração
de harmonia entre o “Eu ocidental” e o “Outro selvagem”, onde os sentimentos de
repulsa ao descrever Goa dão lugar a uma visão de conforto e civilização. A distância e
proximidade cultural enformam uma vez mais o discurso da autora, colocando os
sujeitos numa relação de poder e reconhecimento, a qual não sendo simétrica funciona
por oposição. Neste jogo de descentramento simbólico, o contraste e a oposição
funcionam como vectores de reconhecimento. A autora encontra a junção de povos que
sendo “cristãos; hindus e muçulmanos andam de mistura com aqueles pela estrada a
caminho da Sé” (ibidem:116) onde Portugal é encontrado nas “barraquitas de artigos
religiosos, de «comes e bebes»; de brinquedos, de bugigangas, de panelas de cobre”
concluindo que “ «no ambiente geral da Romaria surpreendem-se aspectos que não se
afiguram estranhos a quem conheça a vida tradicional» (61,180) das províncias do
continente português” (ibidem:116). Neste contexto, existe uma tentativa de afirmar a
identidade e a cultura portuguesa como um factor constante em todas as províncias
portuguesas. Consolida-se assim uma geografia do império português, num discurso
colonial e nacionalista que promove a portugalidade, o sentido de união e uma
cooperação íntima entre todos os territórios portugueses.A descrição da paisagem como
afirmação da cultura opera-se por forma a que o sujeito dominante esteja
estrategicamente situado dentro da narrativa, de tal modo que o processo de
subjectivação é elaborado tendo por base o cenário inconsciente do orientalismo. Como
Cosgrove (1998) afirma, a paisagem inclui uma formação social específica, associada
ao controle dos grupos dominantes, onde a relação entre paisagem e ideologias têm que
ser levadas em conta. Assim, a autora socorre-se de outras fontes para afirmar o destino
frágil do território como é o caso do documento escrito pelo Governador D. Frederico
Guilherme de Sousa (1780): “Encontrei a cidade de Goa em deplorável estado de
conservação, com ruas inteiras sem casas, alguns quarteirões transformados em

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plantações de coqueiros, e os outros, de que a maior parte está arruinada, dificilmente
poderão ser restaurados devido à pobreza dos seus proprietários. À parte algumas
sumptuosas igrejas e conventos, os outros grandes edifícios como palácios e hospitais
estão quase todos mais ou menos em mau estado” (ibidem:105). O discurso do
Governador é essencial na narrativa da autora, tendo em conta que esta ideia de
decadência aquando da não governação portuguesa passa a ideia da fragilidade dos
povos não modernos aos olhos ocidentais e, deste modo, fundamenta a doutrina
portuguesa de civilização, colocando a civilização indiana como dependente da ajuda do
centro metropolitano para evoluir. A constatação de Goa em 1955/56, como uma cidade
onde “a ausência de vida e o silêncio impressionante sucederam-se ao movimento de
outrora.” (ibidem:106), a ideia perpassada pela autora de tristeza e morte de um lugar, é
parte integrante de uma narrativa estratégica, onde os discursos estéticos que inserem as
qualidades relacionais dos lugares, transformam a paisagem num símbolo de declínio
que contagia o leitor e perpetua a noção de decadência que apenas pode ser suplantada
com a influência portuguesa. Esta visão negativista da paisagem colonial é parte de um
vasto conjunto de movimentos políticos e ideológicos que, quando associados aos
projectos imperialistas e nacionalistas criaram a moderna imagem do mundo. Neste
sentido, a influência portuguesa inscrita na modelação da paisagem indiana é um dos
argumentos centrais da obra, e os paralelismos com elementos culturais portugueses
constantemente exaltados, encontrados nas “paredes … profusamente ornamentadas
com grandes espelhos, fotografias, imagens religiosas e papeis de cores garridas com
formas caprichosas, como tantas vezes se vê nas salinhas de entrada do Alentejo e dos
Açores” (ibidem:159) fazem parte de uma ideologia nacionalista, presente na política de
não descolonização portuguesa. E esta é mais uma maneira de dar visibilidade ao sujeito
colonial através de uma forma de substituição e fixação ambígua operada pelo
conhecimento oficial do colonialismo. Uma forma de dar visibilidade a instituições e
dispositivos de poder como espectáculos de pré-eminência cultural. Mas semelhanças
são rapidamente atenuadas por uma geografia de contrastes implícitas na paisagem,
onde o estranho é motivo de atenção ao olho ocidental. Ao usar termos como “gritante”,
“aberração” e “estranhas” para descrever a arquitectura de Deuca, a autora insere as
ideias de exótico e beleza oriental na experiência da visão oriental.Este espaço de
estranhamento estava implícito na ideia de mentalidade aberrante, imprecisão e atraso
que caracterizava o Oriente, como demonstra a autora a aldeia “morria sob o piso do
silêncio; e ao cair da noite, as silhuetas dessas casas estranhas e das palmeiras quietas
em estampas e a própria deambulação do guarda – único ser humano da aldeia – tinham
um ar trágico e irreal” (ibide:127). Ao representar este mundo fantasmagórico, o
discurso da autora encontra-se intimamente ligado à noção de vazio e de paragem,
insinuando a necessidade de penetração ocidental como solução para os problemas
existentes. Com o recurso a estereótipos e à simplificação representa-se uma paisagem
imobilizada, fixa, e este jogo de significação de relações psíquicas e sociais é também
uma relação de poder e hierarquia. Donde a necessidade de representar um sujeito de
origem pura, um sujeito que para ser representado tem que ser construído.

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