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Copyright © 2023 Lovely Loser

ATÉ QUE A SORTE NOS SEPARE


1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios
eletrônicos ou mecânicos sem consentimento e autorização por escrito do autor/editor.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob
quaisquer meios existentes – tangíveis ou intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na Lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do Código Penal.
TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA.
prólogo
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Este livro pode conter alguns gatilhos, contendo violência física, psicológica, menção
de abuso sexual, abandono parental e cenas sexuais.

Caso resolva seguir em frente, desejo uma ótima leitura.


essa não é uma história sobre perdão e reconciliação
é a história de duas pessoas que foram feridas por quem deveria protegê-las
e se tornaram fortes sozinhas.

— perdoar não significa manter por perto.


PARTE I
“Eu vou mandar nesta cidade de nada
Veja eu fazer com que eles se curvem
Um por um.”

— You Should See Me In a Crown, Billie Eillish.


prólogo

Não consigo disfarçar meu mau humor essa noite, e isso fica claro pelos olhares de
súplica que meu pai me lança. Tenho vontade de tirar cada grampo do cabelo, arrancar o
quimono do corpo e sair desse lugar. No entanto, isso provavelmente decepcionaria papai, então
minha melhor opção é ficar e fingir as aparências, por mais que pareça uma missão impossível.

A inauguração da sua nova parceria com uma empresa americana está acontecendo neste
momento no arranha-céu mais luxuoso de Tóquio. Odeio esse tipo de evento, já que sempre saio
na capa de alguma revista adolescente por uma ou duas semanas.

Evito esse tipo de atenção, porque as pessoas sempre me resumem a isso. A filha
prodígio do grande Jim Ogawa, o empresário revolucionário do Japão. Crescer à sombra de um
sobrenome importante tem certo peso que odeio carregar.

— Phoenix — meu pai me chama, fazendo-me parar de ajeitar os guardanapos na mesa


obsessivamente.

Ergo o olhar. Jim Ogawa está em pé ao lado de um homem que nunca vi em toda minha
vida. Ele usa um smoking preto de corte elegante com gravata borboleta. Além das roupas
impecáveis, o cabelo loiro parece uma fusão de ouro, prata e palha, que combina com os olhos
azuis gelo e pele pálida. Acho que nunca vi alguém tão bonito antes, nem um olhar tão opaco.
Sua frieza me dá calafrios.

— Este é Liam Diamond, o novo sucessor das indústrias Diamond.

A informação me pega de surpresa. Imaginei que o novo sócio seria um homem maduro e
experiente como meu pai, não alguém tão jovem quanto Liam. Alterno o olhar entre eles.
Quando percebo que estou sendo mal-educada, me levanto da cadeira e cumprimento o loiro
com um menear de cabeça.

— É um prazer conhecê-lo, sr. Diamond — digo mecanicamente, porque sei que é o que
meu pai gostaria que eu dissesse, mas, na verdade, só quero bocejar e ir embora para casa.
— O prazer é todo meu, senhorita Phoenix. O sr. Ogawa me disse que toca piano. Se
importa? — ele fala tão expressivo quanto uma estátua. Consigo reconhecer o brilho de tédio que
banha suas íris.

Parece que não sou a única que está se esforçando para ser amigável e causar uma boa
impressão.

Eu sorrio polidamente, mas no fundo gostaria mesmo de jogar uma taça de vinho no seu
terno caro. Mal o conheço e já detesto ele. Odeio ser o centro das atenções, e tocar em público
vai me tornar o evento principal desse salão.

Vejo a expectativa no rosto de meu pai e contenho o suspiro.

— É claro que não. — Mascaro toda a irritação que sinto.

O piano está ocupado por um pianista talentoso que não se opõe quando me aproximo e
informo que irei usá-lo. Começo a sentir os olhares grudarem em mim. Respiro fundo,
amaldiçoando Liam Diamond. Resolvo tocar Nocturne in C Sharp Minor, de Frédéric Chopin,
porque é um clássico que meu pai aprecia.

Quando termino, sou ovacionada. Meu pai aproveita o momento para começar uma mini
palestra no palco montado para ele, anunciando oficialmente a nova parceria com as indústrias
Diamond.

Observo o rosto impassível de Liam enquanto está ao lado do meu pai e faço uma careta.
Parece que ele só tem um tipo de expressão.

Depois de alguns momentos, a palestra acaba e meu pai é cercado por várias pessoas. Me
levanto, indo até o banheiro. Enquanto lavo as mãos após sair de uma das cabines, observo meu
reflexo no espelho. O quimono vermelho tem um padrão de flores douradas tecidas à mão e a
faixa de obi envolve minha cintura.

Estou tão parecida com minha mãe que fico longos segundos encarando minha própria
imagem refletida.

Quando saio do transe, seco as mãos no papel toalha e saio. Me deparo com Liam, que
acaba de deixar o banheiro masculino. Nossos olhares se travam e eu não consigo me conter,
dizendo:

— Obrigada por me fazer tocar em público.

Há uma pausa enquanto ele olha para mim em silêncio. Sua sobrancelha esquerda se
arqueia de maneira quase imperceptível, e é a primeira vez que vejo alguma outra expressão no
seu rosto, mesmo que quase não possa ser considerada uma.

— Ironia não combina com você, senhorita Phoenix — é tudo o que fala. — Agora, se
me der licença…

Faz menção de se afastar, mas eu o impeço e me coloco em seu caminho.


— Não interfira na minha vida e não vou interferir na sua parceria com o meu pai. Não
repita o mesmo erro novamente.

Não sei por que estou dizendo isso. Talvez eu só esteja com raiva do meu pai por ter me
proibido de ir para o evento de artes no centro de Tóquio para estar aqui. Eu iria exibir um dos
meus quadros lá, mas ele estragou tudo.

Liam não se abala comigo ou minhas palavras, apenas me dá as costas e volta para a
festa.

Além de frustrada, me sinto uma idiota. Espero alguns momentos antes de entrar no
salão. Me sento na minha mesa habitual e para não morrer de tédio, volto a organizar os talheres.

Um instante depois, ouço uma cadeira sendo puxada à minha esquerda.

O cheiro de hortelã e charuto me envolve antes que eu erga o olhar e encontre Liam. Não
consigo esconder a surpresa no meu rosto. Fico ainda mais sem reação quando ele se curva até
mim, ficando mais próximo que o adequado.

Meu coração dispara.

— Phoenix, para ser sincero, não poderia me importar menos com você e sua vida de
adolescente patética, ou seus dons no piano. O que me interessa são meus negócios, e não
gostaria de ter minha aliança com seu pai destruída. Todas as ameaças não permanecem em meu
caminho por muito tempo, se é que me entende. — Liam se afasta, encosta o corpo contra a
cadeira e ajeita as abotoaduras nas mangas da camiseta social que despontam por baixo do
smoking, como se não tivesse acabado de me intimidar.

Pisco, em choque. Meu corpo continua estático.

Não digo nada, então ele se levanta e se vai, sem sequer me lançar um olhar sobre o
ombro.

Um momento depois, os seguranças do salão começam a me cercar e franzo o cenho. Não


entendo o que está acontecendo até que comecem a revirar minha bolsa, que estava sob a cadeira
que Liam tinha acabado de desocupar.

— Ei, tirem as mãos das minhas coisas! — ralho, o tom de voz alto, atraindo mais
atenção para nós.

Meu pai surge entre a multidão que começa a se aglomerar ao meu redor, confuso.

— Desculpe, sr. Ogawa, mas recebemos uma denúncia anônima e precisamos averiguar
— o segurança fala, constrangido. — Disseram que viram a senhorita Phoenix pegando o relógio
de um dos convidados. Tenho certeza que tudo não passa de um mal-entendido.

Solto uma risada, descrente.

— Me confundiram, não peguei relógio algum.


O salão todo fica em silêncio, a tensão é palpável. Engulo em seco e lanço um olhar de
desespero para meu pai. Ele parece tão incrédulo quanto eu. O segurança que revira minha bolsa
tira um Rolex dourado de um dos compartimentos. A angústia me abate porque o olhar de Jim
Ogawa se transforma em decepção.

— Não fui eu quem colocou isso aí dentro, pai — digo num muxoxo, sabendo que nada
do que eu falar neste momento o convencerá do contrário.

— De quem é esse relógio? — ele questiona aos seguranças, e me ignora completamente.

— Nos informaram que o proprietário é o sr. Diamond.

Como em uma cena digna de um drama cinematográfico, todos soltam um arquejar em


uníssono e olham para Liam Diamond, destacado entre o pequeno aglomerado pelos cabelos
loiros. Sua expressão de surpresa e choque é convincente, mas a compreensão me atinge.

Não.

Ele não pode ter feito isso comigo. No entanto, recordo o que ele me disse. Ameaças não
permanecem no meu caminho por muito tempo, e tudo se encaixa. Tenho vontade de gritar e
chacoalhá-lo pelos ombros, mas não vou fazer uma cena extra aqui. A situação toda já passou
dos limites.

Fico em silêncio enquanto o encaro. Liam se aproxima e olha para o Rolex nas mãos do
segurança, depois me fita com frieza.

— É meu relógio — anuncia em voz alta, e as pessoas voltam a murmurar.

— Não achei que você faria algo do tipo só porque te proibi de ir naquele evento estúpido
— meu pai fala baixo, só para que eu consiga ouvir. — Levem Phoenix daqui.

Fazendo um sinal para os seguranças, sinto o constrangimento e a raiva tomarem conta


do meu corpo enquanto sou escoltada para fora do salão. Alguns flashes dos fotógrafos presentes
no evento me atingem e travo a mandíbula.

Lanço um olhar sobre o ombro. Minhas íris encontram as de Liam. Ele parece alheio,
como quem não tem consciência do que acabou de fazer.

Liam Diamond começou uma guerra.

Essa foi apenas a primeira batalha.

E eu não deixaria que ganhasse mais nenhuma dali em diante.


01

Quando o policial vem abrir a cela, estou com frio, fome e, sobretudo, muita raiva. Nunca
achei que seria presa algum dia, muito menos que o poderoso Jim Ogawa permitiria algo assim.
Geralmente, ele evita qualquer tipo de escândalo que possa colocá-lo sob os holofotes da
imprensa com fome de destruição.

Assim que chego à recepção, paro de andar, porque ao lado do meu pai está ninguém
menos que o desgraçado responsável por me colocar aqui dentro. Meu primeiro instinto é querer
pular sobre o balcão e estrangulá-lo na frente de todos. Contudo, isso provavelmente só faria
com que eu voltasse para aquela cela imunda. Então, com muito esforço, me contenho.

Foco os olhos em papai, que não está nada contente. Por instinto, começo a mexer na
manga do quimono. Não gosto que fique bravo comigo, até porque ele é tudo que tenho. Sempre
estou em busca de aprovação, mas parece que nunca é o suficiente, e sinto que agora nunca vai
ser. Se não conseguir provar que sou inocente, é capaz que perca todas as esperanças em mim.

— O senhor Diamond não vai prestar queixa e você vai ter uma oportunidade de se
redimir em breve — é tudo que meu pai diz, deixando claro em sua expressão que, qualquer que
seja o castigo que ele tenha para mim, não vou poder escapar.

Sinto vontade de chorar, mas isso só me faria parecer mais patética ainda. Engulo o nó
que se forma na garganta e ergo o queixo trêmulo, passando por Liam e meu pai. Saio da
delegacia assim que me liberam oficialmente. Não sei que horas são, mas o céu está negro feito
um bréu e as ruas desertas. A Limousine habitual nos espera no meio-fio.
Nem consigo cumprimentar o senhor Hayashi quando entro no automóvel. Meu pai entra
depois e Liam permanece lá fora, com as mãos enfiadas no bolso, me lançando um olhar
insignificante. Me pergunto como ele consegue agir de forma tão fria após ter me colocado atrás
das grades e ter quebrado uma parte da confiança do papai em relação a mim.

— Não fale nada. — Jim Ogawa me corta assim que faço menção de abrir a boca e o
carro começa a se mover.

— Isso não é justo!

Ele me ignora.

— Você vai se redimir com o sr. Diamond. É uma surpresa que ele não tenha levado isso
adiante e nem desfeito nossa parceria. Você vai estagiar duzentas horas para ele em sua nova
sede aqui em Tóquio, em gratidão à sua generosidade.

Meu queixo cai.

— Não vou estagiar porcaria nenhuma. Esse cara é um babaca sem sentimentos. Ele
armou tudo isso. Você tem que acreditar em mim. Por favor.

— Chega, Phoenix! — Meu pai estoura, fazendo-me encolher contra o estofado da


Limousine. — Essa conversa acabou. Você vai honrar nossa família e se redimir com o sr.
Diamond. Não há negociação quanto a isso.

Pelo resto do trajeto, fico em silêncio, com um nó na garganta.

Antes de alcançar Emi, vejo o topo dos seus cabelos castanhos claros a alguns metros de
distância. Ela está sentada na mesa habitual, perto da janela de nossa cafeteria preferida no centro
de Tóquio. Emi é muito bonita, seu cabelo está cortado acima do ombro e seus olhos são mais
proeminentes que os meus. Assim que desabo na cadeira em sua frente, ela me lança um olhar
penetrante, como se visse dentro da minha alma.

Talvez ela realmente tenha esse tipo de poder, porque sempre sabe quando estou lidando
com dias ruins.

— O que aconteceu? — indaga, usando seu radar de melhor amiga.

— Fui presa — falo, o que a faz soltar uma risada.

A gargalhada morre conforme ela nota na minha expressão que não é uma piada. Que
falo sério.

— Meu Deus, como isso aconteceu?

— Você não vai acreditar… — começo a falar, mas me calo assim que fito a revista
sobre a mesa, ao lado do copo de café de Emi. A primeira página anuncia a chegada do grande
empreendedor milionário Liam Diamond no Japão. Mas que droga? Quem é esse cara? O Justin
Bieber?
Emi nota meu olhar, porque fala:

— Ele é lindo, não é? E tá bem popular entre as garotas daqui.

— Ele é uma pessoa horrível! — Arranco a revista da mesa e a amasso entre os dedos. Só
de olhar para a fotografia do babaca descendo de um jatinho, me dá vontade de gritar.

Emi e algumas pessoas ao nosso redor me fitam chocadas. Talvez eu pareça uma lunática
agora, mas me sinto melhor quando termino de descontar minha ira na revista.

Respiro fundo e jogo o papel amassado em uma lata de lixo próxima da mesa. A
garçonete se aproxima cautelosa, com um sorriso sem graça. Provavelmente ela testemunhou
minha cena, mas não tenho tempo para sentir constrangimento.

Peço um expresso com chantilly.

— O que foi isso? — Emi questiona, assustada.

— Eu fui presa por causa desse idiota.

Minha amiga pisca, tentando assimilar a informação.

— Você o conhece?

— Ele é o novo sócio do papai. Estava no último evento, semana passada. Ele me acusou
de roubar o relógio dele.

— Ele te acusou de furto? — indaga, assustada.

— Não diretamente. Ele armou para mim. Mas não quero falar sobre ele. — Solto um
suspiro, indo direto ao ponto que tem me incomodado nos últimos tempos. — Acho que não vou
ingressar na faculdade de Direito.

Admitir isso em voz alta é assustador e libertador ao mesmo tempo. Eu e Emi nos
formamos no colégio há alguns meses e, até o baile de formatura, minha vida era perfeita.
Depois, é como se tudo desmoronasse. A relação com meu pai esfriou ainda mais, e eu me vi
perdida, sem saber qual rumo seguir. A Phoenix do colegial ficou para trás e tudo o que eu
acreditava também. Não sei mais quem eu sou e talvez esse seja o problema.

— Acho que você devia dizer ao sr. Ogawa de uma vez — Emi fala, com cautela.

Aproveito o momento que meu expresso chega e lambo a camada do chantilly, enquanto
evito respondê-la. Sei que esse é o caminho certo, mas me sinto uma covarde, já que no instante
em que disser isso para meu pai, será irreversível. Vou perder completamente o respeito dele.

A faculdade de Direito sempre foi uma espécie de acordo entre nós dois. Nunca houve
interesse no que eu gostaria de fazer, mas sim no que traria sentido para nossa família. Não há
espaço para perdedores, como ele denomina qualquer um que trabalhe com arte, na nossa
linhagem.

— Não sei se consigo. — Meus ombros despencam. — Não posso decepcioná-lo.

— Mas alguém vai sair decepcionado. Só vai ter que decidir se vai ser você ou ele.

As palavras de Emi ficam em minha mente conforme dirijo para casa no meu
conversível.

Na maioria das vezes, saio com motoristas. Quando quero pensar, opto por eu mesma
dirigir, porque posso ir para onde eu quiser. Ouço meu celular bipar e, antes de fitar o visor, já
sei que é meu pai. No farol vermelho, dou uma espiada nas notificações para confirmar minha
suspeita.

Ele quer saber se já fui na sede do Liam deixar as papeladas para o estágio.

Isso foi algo que recusei a pensar até agora. Estou protelando ao máximo levar os papéis
na empresa, porque sei que o pesadelo vai ser real quando finalmente o fizer. Sempre invento
uma desculpa para meu pai, mas percebo que a paciência dele está se esgotando.

Ignoro o telefone e a pasta de couro no banco do passageiro. Na verdade, jogo-a no banco


de trás para que fique fora de vista.

Vou evitar Diamond até o limite. Estagiar em sua empresa não estava nos meus planos de
férias antes da faculdade. Seguro o volante com força, sentindo outra vez a onda de raiva me
invadir. Nada nessa situação é justa. O que Liam fez, para me acusar de ter pego o relógio, nem
meu pai ao me forçar a cumprir trabalho para me redimir.

O babaca é quem precisa se redimir comigo. Mas eu não perdoaria Liam nem em um
milhão de anos.

Começo a dirigir para o único lugar em que me sinto bem, onde posso ser eu mesma.
Assim que chego em frente ao prédio discreto numa rua comercial, estaciono do outro lado da
rua e pego a mala que sempre trago comigo quando venho para cá.

Essa noite, tenho uma missão.


02

O Hide & Art está cheio esta noite, porque é sábado. Durante a semana, o fluxo é bom,
mas nos sábados e domingos é quando realmente lota.

Sempre fico um pouco nervosa antes de me apresentar, não importa quantas vezes eu faça
isso.

Meu cabelo está preso em um coque e a máscara que uso é vermelha, que combina com o
tom do vestido que bate na metade das minhas coxas. Geralmente, não mostro muita pele em
jantares de família, mas aqui, posso ousar mais. Posso ser eu mesma. Até porque minha
identidade sempre vai ser um segredo. O conceito é que os artistas sejam anônimos.

Dylan se aproxima pela esquerda, com sua própria máscara que imita penas de um pavão.
Ele acabou de se apresentar, fez uma escultura de barro ao vivo, e agora é minha vez.

— Parece que hoje tem alguém querendo comprar as artes. — Não consigo ver seu rosto,
mas parece curioso. — O Kai disse que não estamos vendendo nada, mas o rapaz insistiu tanto,
que o fez ceder.

Meu queixo quase despenca.

— Sério?

Para que Kai, o organizador e fundador do Hide & Art, tenha aceitado uma oferta — algo
bastante comum —, deve ter sido por conta de muito dinheiro.
Ele sempre deixou claro que nossos trabalhos não estavam à venda, que seria apenas uma
exposição. Mas, pelo visto, alguém o fez mudar de ideia. Não sei como me sentiria com alguém
levando um dos meus quadros.

— Ele só vai vender se concordarmos, é claro — Dylan acrescenta, provavelmente


notando a incerteza nos meus olhos. — Agora, é sua vez, Flora.

Flora é o pseudônimo que escolhi para assinar meus quadros. Eu me sinto mais à vontade
sendo Flora do que Phoenix para pintar as telas. Além disso, é mais seguro. É algo que eu nunca
arriscaria perder e, se meu pai descobrisse, com certeza me proibiria de frequentar o ambiente.

Sinto a habitual ansiedade começar a varrer meu corpo.

Subo no pequeno palco. Minha tela já está posicionada. A conversa baixa no ambiente
some conforme me sento na cadeira. Nunca olho para as pessoas lá embaixo. Sempre que estou
pintando, tudo ao meu redor desaparece. Somos apenas eu e meus quadros.

Com as primeiras pinceladas de tinta, começo a dar vida à tela. O tempo passa rápido
aqui em cima. Cada artista tem cinquenta minutos para criar algo, e eu finalizo meu quadro da
melhor forma que consigo. A fênix de asas abertas foi pintada de um jeito brusco. Para finalizar,
com um isqueiro, queimo as bordas da tela, dando a impressão de que o pássaro ganhou vida e
incendiou tudo.

Uma salva de palmas explode ao meu redor, e desperto do torpor em que me envolvi nos
últimos momentos.

Algo me incomoda, no entanto.

Sinto um olhar perfurar minha nuca, uma sensação incômoda de que alguém tem um alvo
em mim.

Olho para as pessoas aglomeradas no estúdio e tento sorrir em agradecimento, mas meus
lábios murcham assim que fito o azul ártico que congela meu corpo inteiro.

É como se a pequena multidão tivesse desaparecido. Somos apenas eu e Liam aqui. Seu
corpo está encostado contra uma pilastra, e o terno azul marinho parece impecável. A cor esvai
do meu rosto.

O olhar presunçoso no rosto dele diz: eu sei todos os seus segredos.

Mas talvez isso seja impressão minha. Não tem como ele saber quem eu sou. Me viro e
deixo o palco com pressa, me escondendo no corredor de acesso. Dylan ainda está aqui atrás
desde que comecei a pintar.

— Parece que viu um fantasma — ele diz, em meio a uma risadinha.

Tenho vontade de respondê-lo que estou sendo assombrada, mas não por um fantasma. E
sim por um milionário que parece não ter alma nem coração.

— Ainda não me acostumei em ser o centro das atenções — falo qualquer coisa, dando
um riso mecânico para acompanhá-lo.

— Seu quadro ficou incrível. A ideia do isqueiro… — Dylan balança a cabeça, como se
não soubesse encontrar as palavras certas para descrever a técnica que utilizei.

— Obrigada. Preciso ir embora agora. Com licença — falo, gentilmente, pronta para dar
o fora.

Antes que ele possa estender a conversa, eu me esquivo em direção aos armários, onde
deixei minha mala com as roupas que estava usando mais cedo.

Não tenho tempo para me trocar, apenas visto um sobretudo que esconde o vestido
vermelho. Não sei se devo tirar a máscara. Talvez seja arriscado enquanto Diamond permanece
por perto.

— Flora! Finalmente te encontrei. — A voz de Kai soa atrás de mim e faz com que eu
feche os olhos com força. — Tem alguém que quer te conhecer. — Ouço mais passos e percebo
uma terceira presença no cômodo.

Meu corpo inteiro congela e prendo a respiração.

Esse momento não pode ser real. Torço para que quem deseja me conhecer seja qualquer
um dos espectadores comuns que vêm até aqui. Isso já aconteceu antes. Já fui apresentada a
dezenas de pessoas que gostaram do meu trabalho.

Agora, meu único instinto é sair correndo.

Alguns segundos se passam, e me viro lentamente. Como eu temia, Liam está em pé na


minha frente, ao lado de Kai. Evito olhá-lo nos olhos e torço para que a máscara seja suficiente
para que ele não me reconheça. Ela cobre metade do meu rosto; apenas um pouco dos meus
lábios e queixo ficam à vista.

— Esse é o sr. Diamond. Ele tem interesse no seu quadro, fez uma oferta excepcional.

Tenho certeza de que sim. Alguém com tanto dinheiro… Me surpreende que Liam
aprecie a arte. Ou, pelos, finja. Ainda não entendi qual é a dele. Se está aqui apenas para ter outro
motivo para me chantagear, ou se foi uma infeliz coincidência do destino.

— Fico feliz que se interesse pelo meu quadro, mas ele não está à venda — falo, baixo,
agradecendo a máscara que faz com que minha voz soe abafada.

Fito Kai enquanto digo isso, que parece ultrajado. Ele me inspeciona como se eu fosse
uma completa imbecil, mas não quero o dinheiro e, muito menos, que Liam possua uma das
minhas criações.

— Ele ofertou vinte mil dólares — Kai reforça.

Além de tudo, ele paga em dólar. Mas é claro. Tenho vontade de rolar os olhos. É a
primeira vez que tenho coragem de encarar Liam desde que ele entrou aqui. Sustento seu olhar
inexpressivo enquanto digo:
— Sinto decepcioná-lo, sr. Diamond, mas minha arte não pode ser comprada nem com
todo dinheiro do mundo.

Isso faz com que sua sobrancelha esquerda se arqueie de forma sutil. É quase como se
achasse a resposta interessante. Ou um desafio. O silêncio preenche o ambiente. Uma tensão
palpável toma o rosto de Kai.

— Tudo bem — Liam diz, enfim. — Se um dia mudar de ideia, me procure.

Ele me entrega um cartão com seu número pessoal e eu aceno com a cabeça antes de
pegar minha mala e me despedir. Sob o braço livre, carrego o quadro, agora envolvido por um
pano, para que não sofra danos ou suje. Caminho até a porta dos fundos, puxando a maçaneta.

A rajada do ar frio se choca contra meu corpo e rosto. Aperto o sobretudo ao redor do
tronco e começo a caminhar pela rua estreita em direção onde meu carro está estacionado.

Um calafrio toma meu corpo. Tenho a estranha sensação de estar sendo vigiada.
Observada.

Não olho sobre o ombro nenhuma vez enquanto entro no automóvel.

— Onde você estava? — É a primeira coisa que ouço assim que atravesso a porta. Quase
deixo o quadro cair no chão com o susto.

Meu pai está sentado na poltrona, próximo à lareira. Não sei o que me surpreende mais: o
fato de ele estar em casa ou sentado aqui. Jim Ogawa sempre dedica seu tempo aos negócios. E
quando deveria estar livre, se enfia no escritório e dá um jeito de trabalhar até mesmo em suas
folgas. Vê-lo sem roupas sociais, apenas sentado na sala, é uma cena um tanto chocante.

Minhas observações se dissipam assim que reparo na expressão no seu rosto. Uma onda
de raiva transparece nas feições dele, e eu me encolho, como se pudesse desaparecer dentro do
sobretudo. Seu olhar se fixa no objeto que seguro embaixo do braço e, em seguida, na mala em
minha mão.

— O que estava fazendo, Phoenix? — Engulo em seco.

— Fui numa exposição de arte. — Resolvo ser um pouco honesta, porque se ele quiser
descobrir o que faço, vai mandar alguém para me espionar. Desenrolo o pano ao redor da tela
com cuidado. — Já que o senhor acha que não devo pintar, resolvi pelo menos comprar um
quadro. — Mostro a ele a pintura. Meu pai continua inexpressivo. — É de uma artista chamada
Flora.

Ele solta um suspiro longo, mas minha explicação parece ser o suficiente.

— Desde que siga com a ideia da faculdade de Direito, pode ir até as exposições.

— Claro, pai — digo, num muxoxo. — Mas… você não acha interessante? — Ergo a tela
outra vez, me sentindo nervosa, como se meu coração fosse explodir dentro do peito. — Não
gostou do quadro?
Seus olhos voltam a analisar minha arte.

— É bonito — fala, me surpreendendo. Uma parte minha se enche de esperança.


Esperança tola que morre no próximo segundo. — Mas não é seu destino. Seja uma espectadora
da arte, se quiser. Não uma artista.

Tenho que engolir o nó que se forma em minha garganta, tentando não demonstrar a
decepção.

— Liguei para Diamond — continua, me surpreendendo. Fico em silêncio. — Liam


dispensou a entrega das papeladas, e me disse que você não compareceu até lá para levar. Vai
começar o estágio segunda-feira. Ele irá te treinar.

Abro a boca para contestar, mas logo a fecho. Discutir com meu pai é uma batalha em
vão. Nunca irei convencê-lo de que essa é uma ideia ridícula, que não tenho que trabalhar para
Liam. Mas ele nunca vai entender. Para ele, sou a filha patética que quis chamar atenção ao
roubar o relógio de um de seus sócios.

— Tudo bem — falo, derrotada. — Posso ir para o meu quarto?

Meu pai assente, permitindo.

E, como um bom cão treinado, abaixo a cabeça e subo as escadas, matando meus sonhos
dentro de mim.
03

Preciso de todo autocontrole do mundo para não derrubar o copo de café que seguro no
meu novo chefe. A palavra me dá calafrios. Ele está à minha frente com uma expressão de
babaca presunçoso, ostentando o cabelo loiro estúpido que está perfeitamente penteado para trás.

— Está atrasada, senhorita Phoenix — é a primeira coisa que diz desde que cheguei para
meu primeiro dia no estágio. Ele não demonstra nenhum indício de que me reconheceu na
exposição, o que é um alívio.

O prédio é moderno, padronizado como os outros na área industrial. Me surpreende que


ele tenha mesmo fincado suas garras aqui, no meu lar. No fundo, estou fervendo de raiva. É
necessário muito autocontrole para não rolar os olhos, mas lembro que para vencer essa guerra,
não posso usar os métodos agressivos que gostaria.

— Trânsito — digo, de maneira seca e fatídica.

Liam é um oponente em potencial. Ele possui poder e influência que, neste momento, não
tenho, além da credibilidade do papai. Tudo o que mais desejo é reconquistar meu pódio como a
filha exemplar, não aquela que vai parar atrás de grades imundas da delegacia local.

Seus olhos azuis frios estão fixos no meu rosto de um jeito desconcertante. Não consigo
ter a mínima ideia do que ele está pensando, pois leva a sério a arte de manter o rosto
completamente inexpressivo.

Depois de longos segundos que parecem décadas, ele levanta de trás da mesa, expondo
toda sua altura. Só agora percebo que ele é bem maior que eu.
Liam veste uma camiseta de botões branca e calça social preta, o maldito Rolex que ele
me acusou de ter furtado cintila em seu pulso. Ele senta bem na minha frente, sobre o tampo de
madeira, e então começa a ajeitar as malditas abotoaduras de prata.

Sua expressão é entediada quando diz:

— Bom, uma pirralha como você não me é útil no escritório. Só permiti sua presença
aqui porque seu pai insistiu muito na ideia de se redimir comigo. Então, estou tão ansioso para
me livrar de você quanto você deve estar para que tudo isso acabe. — Há uma pausa. Ele ergue o
olhar de forma lenta até meu rosto. — Você pode ficar com os cafés.

Pisco, absorvendo suas palavras. Minha mão treme ao redor do copo de Starbucks que
seguro. Pirralha e não ser útil na mesma frase me dá tanta raiva que preciso respirar fundo
várias vezes para não explodir.

— Claro — é tudo que digo. — O senhor está a fim de tomar algo neste momento? —
Tento mascarar o cinismo, mas falho miseravelmente.

Liam percebe, porque sua sobrancelha se mexe.

— Café desnatado, sem açúcar.

Café desnatado sem açúcar. Sério? Tem como esse cara ficar mais sem graça? Me
levanto, seguro a bolsa contra o corpo e ajeito minha saia que subiu um pouco quando me sentei.
Entro no elevador, apertando um dos botões no painel. Quando olho para frente, reparo que Liam
ainda me observa. Assim que as portas se fecham, rolo os olhos.

Quando volto com o café, Diamond não está no seu escritório. Vou até a mesa e vejo o
post-it grudado em cima de uma pasta preta. Reunião de emergência. Busque meu almoço.
Semicerro os olhos para o pedaço de papel neon, observando com desgosto a caligrafia perfeita.

Largo a bebida em cima da mesa e aproveito o momento para procurar qualquer


evidência de falhas. Mexo em suas gavetas, abrindo-as.

Nas primeiras, há clipes organizados em cores e tamanhos, enfileirados com precisão. Na


segunda, apenas pastas com processos em ordem alfabética. A última está trancada e eu solto
uma bufada audível, frustrada.

Me irrita a forma como ele parece perfeito. Me irrita mais ainda como ele faz parecer
fácil.

Fico olhando para o post-it até que meu celular comece a tocar. Não preciso conferir o
visor para saber que é Ren. Atendo no terceiro toque. Sua voz soa abafada do outro lado da linha:

— Já começou o estágio?
— É, já. — Faço uma pausa, olhando pelas janelas. O escritório de Liam fica no último
andar, a arquitetura de vidro permite que eu tenha uma vista panorâmica da cidade estendida
abaixo de mim. Com cuidado, ando até estar próxima dos janelões que se se erguem do chão até
o teto, como paredes transparentes. — Como está aí? — questiono, referindo-me à viagem. Ren
está visitando a casa de campo de sua família.
— Meu avô perguntou de você. Ele fez Miso. Seu preferido. — Há um momento
constrangedor de tensão, mesmo que seja apenas uma chamada telefônica. Consigo quase
imaginá-lo fazendo aquela coisa com a boca toda vez que está ansioso.

Ren e eu nos conhecemos desde que tínhamos dez anos de idade. Ele foi meu primeiro
amor e agora que estamos prestes a nos formar, nosso relacionamento ficou esquisito. Ele quer
fazer faculdade em Harvard, nos Estados Unidos, e sempre idealizamos o futuro perfeito. Ele
seria um neurocirurgião renomado, eu me formaria com honras em Direito, e teríamos tardes
românticas em Boston.

Acontece que isso sempre foi o que meu pai planejou para mim. Talvez por isso ele goste
tanto de Ren. Eles tem ideias parecidas. Acho que não existe nada que eu tenha realmente
escolhido até agora. Fui criada para ser um exemplo e obedecer.

Começo a tirar as lascas do esmalte vermelho das minhas unhas distraidamente,


concentrada no fluxo de carros do trânsito de Tóquio.

— Phoe? Está escutando? — Ren soa distante na minha mente e desperto, lembrando-me
que estamos em ligação.

— Desculpa. Dá pra repetir?

— Você anda muito aérea ultimamente. Tem certeza de que está tudo bem?

Não contei para Ren sobre o episódio com Liam. Só falei que meu pai queria que eu
fizesse estágio com seu novo parceiro de negócios, ocultando as motivações por trás disso.
Nunca guardei nenhum segredo dele, mas agora é tão natural mentir que me deixa perplexa.

— Só estou meio cansada. Queria ter conseguido ir para a casa de campo com você.

— Eu também queria que você estivesse aqui. A gente iria ficar o tempo todo no gazebo.
Lembra? Você amava aquele lugar.

O gazebo que fica no jardim, como poderia me esquecer? Foi lá que nos beijamos pela
primeira vez, aos catorze anos. Sinto falta dessa época. Um barulho atrás de mim me faz olhar
sobre o ombro e eu congelo assim que vejo Liam parado a alguns metros de distância. A
expressão de tédio e a postura prepotente. Limpo a garganta.

— Desculpa, Ren. Preciso desligar agora. — Encerro a chamada. Me viro completamente


para Diamond, que ainda me encara como se esperasse alguma reação.

— Sente-se, senhorita Phoenix. — A voz autoritária faz com que eu franza o cenho em
uma careta.

— Pra quê?
— Sente-se, não vou repetir.

Fico parada e ele diz pausadamente:

— Senta. Agora.

Fervendo de raiva, me jogo na poltrona em frente à sua mesa. Liam se senta em seu posto
de forma lenta, o que me dá nos nervos. Parece que cada movimento dele exala uma dose de
prepotência, o que é extremamente irritante. Fico tentada a me levantar, só para contradizê-lo,
mas permaneço quieta, esperando.

Seus olhos azuis frios estão fixos nos meus quando fala:

— Você está demitida.

Meu queixo cai.

— O quê? — Me levanto em um solavanco. — E o acordo com o papai?

— Não fiz acordo nenhum com seu pai referente ao seu estágio. Ele me pediu para
contratá-la, mas você não cumpriu as expectativas.

— Isso é ridículo. Foi só uma pausa para atender o celular e você nem estava aqui. —
Bato minha bolsa sobre o tampo da mesa com força, reproduzindo um estalo alto do couro ao se
chocar contra a madeira. — Você não pode me demitir!

— Acabei de fazer isso, senhorita Phoenix. Não há nada que homens como eu não
possam fazer.

Sinto tanta raiva que nem hesito antes de jogar o copo de café em sua camiseta social. O
líquido marrom mancha todo o tecido branco. Liam trava a mandíbula por um segundo antes de
voltar para sua habitual expressão de estátua. Posso jurar que vejo uma sombra de sorriso em
seus lábios, mas talvez eu esteja ficando louca, ou ele é algum tipo de sociopata.

— Acho que homens como você também podem trocar de roupas.

— Tem razão. Mas o que seu pai vai achar disso?

Enrijeço. Não pensei em nada antes de decidir encharcá-lo com a porcaria do café. Agora
provavelmente estou encrencada. Tenho que me lembrar de quem ele é. Liam Diamond.
Influente. Novo sócio do meu pai. Não posso deixar com que acessos de raiva me façam estragar
tudo.

— Não conta pra ele — disparo, na defensiva.

— Por que eu faria isso?

— Tem que ter algo que você queira. Até homens como você almejam algo.

— Engraçado. Não há nada que eu queira neste momento.


— Todo mundo quer algo — digo, entre dentes, tentando me recompor. Sopro uma
mecha de cabelo para longe dos meus olhos e seguro minha bolsa firmemente. — Quando
pensar, me procure. Sei que não vai desperdiçar a chance de ter uma carta na manga.

Liam brinca com uma caneta, passando-a entre os dedos quando me lança um olhar que
me dá arrepios e responde:

— Tem razão, senhorita Phoenix. — Há uma pausa. — Vamos desconsiderar seu deslize
com o celular. Que não se repita.

A primeira regra para deter o inimigo é conhecer suas fraquezas e pontos fortes. Por isso,
estou fazendo meu dever de casa ao pesquisar tudo sobre Liam Diamond no Google. A
quantidade de resultados na busca é tão grande que me dá nos nervos. Ele está em páginas da
Forbes, em jornais americanos e fóruns alemães. Inclusive, descobri que ele descende de uma
monarquia antiga da Alemanha, além de que seu nome inteiro é Liam Lawrence Diamond.

Sua vida toda aparenta ser perfeita, aulas de polo aquático, campeonatos de golfe e
esgrima, faixa preta em diversas artes marciais e irmão de um bilionário filantropo chamado
Bastian que tem tanta relevância na mídia que me assusta.

Inspeciono uma fotografia de sua família. Todos eles possuem a cabeleira loira e foram
esculpidos com tamanha perfeição. A única rachadura na fachada aparentemente impenetrável é
o divórcio dos pais, mas não há nada sobre o motivo pelo qual o casamento acabou.

Travo a mandíbula com tanta força que ouço meus dentes rangerem. Como posso
vencer um oponente que não demonstra ter defeitos? Diferente de mim, Liam não está envolvido
em nenhum escândalo. Eu fui para a cadeia, mesmo que por algumas horas. Foi o suficiente para
que meu rosto estampasse os jornais locais.

Giro na cadeira assim que a porta abre e fecho o notebook antes que Emi veja o que
estou fazendo. Depois de tanto tempo frequentando minha casa, ela parou de bater antes de
entrar no quarto, o que me irrita. Contudo, nunca tenho coragem de dizer nada, pois ela é uma
boa amiga e sempre está por perto quando preciso.

Emi segura o copo de isopor com o melhor chá de hibisco da cidade. Ela o deixa na mesa
em minha frente e senta na borda da cama, com o seu próprio chá entre os dedos.

— Como foi o primeiro dia no estágio?

— Foi horrível. Ele me demitiu e recontratou em questão de minutos.

Emi quase engasga com a bebida. Ela tosse algumas vezes e, quando recupera o ar,
questiona:

— O que você fez para ser demitida e recontratada no primeiro dia de estágio?
— Eu te disse que ele é uma pessoa horrível. Só atendi o telefone por uns minutos
enquanto ele nem estava no escritório.

— Que amargurado. Bom, acho que eu e você precisamos de um dia de SPA e compras.

Solto uma risadinha. O bom de tê-la ao meu lado, é que me conhece como ninguém. Faz
um tempo desde que não passamos um dia fazendo coisas que gostamos, como ir até o SPA e ao
shopping. Acho que talvez ela esteja certa. Estive tão pilhada ultimamente que esqueci de todas
coisas que eu gosto.

— Como nos velhos tempos? — questiono, empolgada com a ideia.

— Como nos velhos tempos — Emi concorda, sorrindo em minha direção.


04

Quando sinto o cheiro salgado da maresia, respiro fundo, inalando-o. Paro para
contemplar a casa de praia que se ergue à beira do oceano. Por anos, esse lugar foi o meu porto-
seguro e agora não é diferente.

Sempre que quero relaxar, venho até aqui. É preciso de uma balsa para chegar até Sodoko
Beach, que fica isolada em uma ilha. Avanço até a porta de madeira com a chave que meu pai
confidenciou a mim, contudo, não é necessário usá-la já que a fechadura está destrancada. Com o
cenho franzido, avanço pelo hall.

A luz do sol dança livremente através das janelas e enche a sala com um brilho dourado e
caloroso. Todas as almofadas claras, em paletas de tons naturais do sofá, estão organizadas. A
mobília de madeira permanece no lugar, inclusive os troféus de ouro que colecionei ao longo dos
anos em campeonatos de vôlei, o que indica que ninguém entrou aqui. Talvez o caseiro tenha
esquecido de trancar a porta.

Jogo a bolsa no sofá, enquanto me aproximo das paredes de vidro.

A vista panorâmica do oceano se estende até onde os olhos podem ver, o azul infinito e
horizonte interminável. As ondas do mar se quebram suavemente na praia, enquanto um grupo
de amigos joga bola na areia. De repente, ouço um estalo atrás de mim que me desperta.

Pisco algumas vezes enquanto encaro ninguém menos que Liam Diamond na minha
frente, usando bermudas e camiseta de linho. Seus pés estão descalços e ele parece surpreso em
me ver parada diante das paredes de vidro. Já eu, estou quase chocada. Não impeço que a
pergunta saia da minha boca:

— O que você está fazendo aqui?

— Não que seja da sua conta, mas seu pai me deu as chaves e me deixou passar alguns
dias aqui. — Quando recebi uma ligação esta manhã dizendo que eu teria uma semana de
recesso, estranhei, até porque tinha acabado de começar no estágio. Imaginei que Liam tinha
assuntos urgentes a resolver e por isso me dispensou. Mas, para a minha surpresa, me deparo
com… isso.

Há uma pausa enquanto ele me lança um de seus olhares tediosos. Sua sobrancelha
esquerda se arqueia de maneira quase imperceptível.

— Você tem que ir embora. — Cruzo os braços em frente ao peito. — Vou ficar um
tempo aqui e não quero ter que lidar com você.

— Receio que esteja ficando surda, senhorita Phoenix. — A expressão dele é de tanto
desdém que começa a realmente me irritar. Tenho vontade de dar um soco em sua cara de babaca
mimado presunçoso. — Disse que seu pai me deu as chaves. Ele quer que eu relaxe antes de
começarmos oficialmente nossos negócios. E, se pudesse apostar, juraria que o sr. Ogawa não
sabe que veio até aqui.

Meu rosto começa a esquentar. Droga, ele tem um ponto. Meu pai vai ficar furioso se
souber que vim para a casa de praia sem consultá-lo. Ele ligaria imediatamente para nossa
governanta, o que também seria um problema, já que ela acha que estou com Ren. Isso me daria
um castigo triplo. Primeiro, por vir para cá sem permissão. Segundo, mentir para a governanta. E
terceiro, o que o incomodaria mais, por ter interferido nas miniférias de um de seus aliados mais
importantes no momento.

A ideia de que Jim Ogawa possa começar a me detestar ainda mais me faz mentir:

— Acho que meu pai se enganou, então. Ele disse que eu podia vir. Deve ter confundido
as datas.

— Você mente mal, senhorita Phoenix.

Solto um suspiro alto e irritado. Não entendo por que Diamond parece ter sido enviado
em uma missão para atormentar minha vida. Desde que ele chegou, as coisas ficaram mais
difíceis. Quero me livrar dele o mais rápido possível, o que me lembra que tenho que começar a
bolar um plano para dispensá-lo de volta para os Estados Unidos, Alemanha, ou qualquer que
seja o buraco de onde tenha saído.

Pego minha bolsa do sofá, pisando duro até a porta. Talvez eu consiga alcançar a última
balsa, que deve sair daqui quinze minutos. No entanto, um raio parte o céu de Sodoko Beach,
enviando clarões de luz através das paredes de vidro.

Um momento depois, a chuva torrencial começa a bater contra o telhado, feito um


tambor.
Ótimo.

Eu havia visto a previsão do tempo esta manhã, e por mais que tenha sido anunciado a
possível chegada de uma tempestade, não levei em consideração. Afinal, quantas vezes as
previsões foram equivocadas? E não seria um problema ficar aqui, desde que estivesse sozinha.

Olho sobre o ombro, Liam continua parado, com os braços cruzados em frente ao peitoral
largo. Ele me fita como se não desse a mínima para a chuva, muito menos para mim. Fecho a
porta com força e o ouço questionar:

— Não vai embora?

Lanço a ele um olhar que diz qual a porra do seu problema? Mas não acho que ele se
importe com isso. Na verdade, não consigo pensar em nada que Liam Diamond possa se
importar a não ser com seu próprio nariz. Me pergunto se ele é sempre assim, até com sua
família.

— Não dá para ir embora! Se não percebeu, tá caindo o mundo lá fora. Preciso de uma
balsa.

O loiro apenas ajusta as mangas. Essa coisa me irrita. Ele sempre checa suas abotoaduras.
Sempre confere se está impecável o suficiente, mesmo que sejamos só nós dois aqui.

Quando ergue o olhar, seus olhos azuis estão sérios.

— Não me importo. — O silêncio preenche o espaço enquanto o encaro, chocada com


sua frieza. — Apenas não me incomode.

Então, se vira e vai embora. Ouço a porta da suíte principal se fechar; ela é a mais pesada
e sempre faz um rangido ao bater. Fico parada onde estou, ouvindo o som da chuva e sentindo
uma onda de raiva que faz até meus lábios formigarem. Respiro fundo e tento me recompor,
antes de ir até a cozinha.

Agora que sei que o babaca está com a suíte que costumo ficar, vou ter que dormir em
um dos quartos comuns. O único problema é que minhas coisas estão lá. Abro a geladeira e
espio o interior que tem resquícios da minha última visita, cerca de duas semanas atrás.

Coloco pedaços de salmão, cream cheese e shimeji numa tigela. O barulho da chuva
ainda ressoa quando volto para a sala. Ligo a tevê e começo a assistir a um programa de culinária
japonês. Quando coloco o último cubo de salmão na boca, o som estarrecedor de um trovão corta
o ar, e a casa mergulha num breu.

Merda. A energia acabou.

Meu coração está batendo forte enquanto olho para as paredes de vidro. Os raios que
partem do céu iluminam momentaneamente a escuridão presente na casa.

Levanto, deixando a tigela de lado. Ligo o flash do celular e caminho pelo corredor até a
porta da suíte. Com o punho cerrado, dou duas batidas contra ela. Demora até que Liam abra a
porta e, como o habitual, não parece nem um pouco contente.
— O que foi? Tem medo do escuro? — pergunta, com o tom de voz monótono.

O ignoro.

— Preciso pegar algumas coisas que estão aqui.

Ele me dá espaço de passagem após dizer:

— Seja breve.

Rolo os olhos quando passo pelo seu corpo esguio e pego a bolsa de autocuidados e a
mala que deixo aqui. Liam não espera um segundo antes de fechar a porta assim que saio da
suíte. Me pergunto o que é que ele vai fazer lá dentro, sem luz. Talvez seja o tipo de pessoa que
naturalmente gosta do escuro, o que só confirmaria minha teoria de que ele é uma espécie loira
do Darth Vader.

Começo a organizar meu material de pintura no novo quarto. Embora não seja tão
espaçoso quanto a suíte, isso não me incomoda. O que realmente me perturba é perceber que
Liam está cada vez mais conquistando o favoritismo de meu pai. Jim Ogawa nunca permitiu que
um parceiro de negócios viesse para a casa de praia, e isso me preocupa.

Limpando a mente, começo a traçar uma forma abstrata com pincel e tinta. Às vezes não
sei o que quero pintar, apenas deixo com que minha mão flua e, de repente, a imagem no quadro
começa a tomar forma.

Nem percebo em que momento a eletricidade volta, mas, quando me dou conta, a
lâmpada do quarto está acesa. Paro um momento, contemplando a pintura. Para minha surpresa,
é a casa do avô do Ren. Isso me faz resmungar e pegar o celular dentro da bolsa.

Há, ao menos, sete ligações perdidas.

Aperto o botão para retorná-lo.

— Oi, desculpa. Estava pintando e acabei perdendo a noção do tempo — falo, o que é
uma verdade quase inteira.

— Achei que estivesse me ignorando. — Ele ri, constrangido. — Quer pedir comida
tailandesa? Vou pegar o carro e posso passar aí…

— Não! — falo, rápido demais. O silêncio reina entre nós através da chamada e mordo o
lábio inferior com força. Meu Deus, isso deve ter sido tão esqusito. Limpo a garganta. — É que
estou concentrada em um novo estudo de formas. Que tal jantarmos fora qualquer dia desses?

Percebo que Ren acha uma boa ideia pelo seu tom de voz menos tenso quando diz:

— Claro. Seria ótimo.

Quando desligamos, penso em voltar para meu quadro, mas não estou tão inspirada para
continuar. Espiando pela janela, noto que parou de chover e já é noite. Saio do quarto para
alongar as pernas, já que fiquei sentada por bastante tempo.

Assim que entro na sala, vejo Liam. Ele está de pé próximo à coleção de bebidas
importadas do meu pai, meio virado de costas para mim, falando ao telefone. Parece irritado,
cuspindo palavras num idioma que acho que é alemão.

Assim que a chamada encerra, seu olhar encontra o meu, como um ímã. Sua mandíbula
está travada e ele parece se recompor. Agora, apenas sua frieza permanece.

— Espiar é feio, senhorita Phoenix.

— Como se eu pudesse entender uma palavra do que você estava falando! — Me irrito
também, porque ele não consegue ser cordial por um segundo sequer. Parece que sempre está
com raiva do mundo.

— Achei que fosse mais inteligente.

Olho para ele incrédula.

— Só porque não entendo dez idiomas?

Liam não responde. Abre uma das garrafas de uísque e se serve com um copo generoso.
Fico parada, observando-o beber, como se minha presença fosse completamente ignorada.

A essa altura, não sei por que suas atitudes ainda me irritam. Solto uma bufada e vou até
a cozinha, onde começo a preparar minha próxima refeição.

— O que quer que esteja fazendo aí, faz para mim também. — A voz de Liam me
alcança. Por um momento, me pergunto se não estou ouvindo coisas.

Mas, quando me viro, ele está parado na entrada da cozinha, os braços cruzados em frente
ao peito e um ar zombeteiro toma conta de seu rosto. Volto minha atenção para a panela, onde
preparo um macarrão.

— Por que eu faria comida pra você? — murmuro.

— Porque no momento, sei de coisas que te encrencariam com o papai. Então seja uma
boa garota. Você não quer novas batalhas, muito menos as que você não tem nenhuma chance de
ganhar.

Meu corpo fica tenso. Odeio estar nessa posição de inferioridade. É como me sinto toda
vez que Diamond joga na minha cara que pode arruinar minha vida. Fico em silêncio, evitando
encará-lo, na esperança de que ele vá embora, mas não acontece.

Seus olhos continuam presos nas minhas costas.

Adiciono uma porção extra de macarrão na água, com os lábios amassados um contra o
outro para evitar dizer tudo o que eu gostaria. Às vezes, o silêncio é a melhor opção para não se
auto sabotar. É algo que estou aprendendo.
No entanto, na tigela de Liam, coloco uma dose exagerada de pimenta, junto com o
macarrão e carne de porco. Ele está sentado à mesa, e pela sua postura, espera que eu o sirva.
Com desgosto, coloco a comida em sua frente.

— Espero que goste — falo, com ironia.

Diamond fica em silêncio e eu tomo um assento bem longe dele. Poderia ir para a sala,
mas não quero perder sua reação. Ele leva a primeira garfada até a boca. Eu espero. Nada
acontece. As íris azuis apenas me olham sem revelar nada antes que ele se volte para a refeição.

— Sou um grande fã de pimenta japonesa — fala, cheio de desdém.

Não digo nada, porque estou fervendo de raiva. Apenas como em silêncio. É claro que
Liam Diamond tem que ser imune a tudo, inclusive a pimentas. Parece que abalá-lo é uma tarefa
quase impossível. Nem mesmo quando joguei café em sua camiseta consegui a reação que
desejava.

Me levanto, ficando subitamente sem apetite, e me retiro para meu quarto.

Fico lá pelo restante da noite.


05

Quando acordo pela manhã, não está mais chovendo. Apesar do dia nublado, decido
aproveitar a oportunidade para passear por Sodoko Beach antes de ser forçada a ir embora por
Liam. Por sorte, não o encontro quando passo pela sala com minha bolsa de praia apoiada em um
dos ombros.

O dia permanece encoberto, mas isso não impede que outras pessoas estejam reunidas na
areia. Estendo um pano próximo do mar e me sento, abrindo um livro. Visto apenas o sutiã do
biquíni e um shorts jeans. Meu cabelo, como o habitual, está preso em um rabo de cavalo que
resvala nas costas desnudas.

A poucos metros de distância, uma partida de vôlei se inicia, atraindo minha atenção. Em
algum momento, levanto e peço para entrar no jogo.

Faço amizade com dois garotos e uma garota, embora não o suficiente para perguntar
seus nomes. Ao encerrarmos a partida, apenas me despeço e volto a recolher meus pertences que
estão na areia.

Daqui, consigo ver a casa de praia do meu pai. Ela foi construída em cima de uma rocha.
Fico por alguns segundos admirando a varanda de vidro até que uma mulher apareça. Preciso
piscar algumas vezes para ter certeza de que não estou imaginando coisas.

Ela se debruça na varanda, enquanto olha para o mar. Só consigo me concentrar no que
ela está vestindo. Parece uma das camisetas sociais de Liam. Pouco depois, ela volta para dentro,
e me questiono se tudo não passou de uma alucinação.

Decido retornar para casa.


Assim que abro a porta da sala, não ouço nada. Nenhum sinal de vida aqui dentro. Deixo
a bolsa no sofá e vou até a cozinha, então congelo. De costas para mim, está a loira estonteante
da varanda, mexendo em um dos armários. Limpo a garganta, e atraio sua atenção.

Seus olhos azuis encontram os meus sobre o ombro. Ela é tão bonita que dói. Tão bonita
que me faz questionar o quão sem graça e comum devo parecer, com a pele pálida, cabelo
castanho e olhos num tom avelã. Ela é alta, bronzeada e se assemelha a uma modelo.

É claro que o tipo de Liam só podia ser alguém que parece sua versão feminina.

— Oi — ela fala, em inglês. — Você sabe onde ficam os copos?

Eu pisco, desnorteada com o rumo da conversa.

— No armário inferior.

Enquanto ela pega um copo, a encaro feito uma idiota. Há algo familiar nela. Talvez seja
porque é o tipo de rosto que estampa revistas e atua em filmes de Hollywood.

— Você é atriz? — não consigo conter a pergunta que escapa por meus lábios.

Ela me olha, confusa, enquanto pega água na geladeira. Então, despeja no copo e começa
a beber como se eu fosse um quebra-cabeça. Liam provavelmente vai ficar com raiva se eu
começar a conversar com sua namorada ou o que quer que ela seja.

— Não. — Há uma pausa. — Você sabe onde tá o Liam? Preciso perguntar cadê a chave
da sauna. Aliás, quem é você?

— Bom, eu…

Por sorte, antes que eu seja obrigada a me apresentar, Diamond adentra a cozinha sem
dizer uma palavra, e passa por mim como se eu fosse invisível. Veste apenas um shorts longo de
treino, expondo o peitoral de pele alva. É a primeira vez que o vejo parecer um jovem comum de
vinte e poucos anos.

Fico surpresa com a quantidade de músculos que se espalham por seu tronco.

Só percebo que fito suas costas definidas descaradamente quando sinto o olhar da loira
sobre mim. Desvio o rosto para outro lugar, e me repreendo mentalmente.

— Você não vai me apresentar a ela? — a modelo fala, confusa.

Tenho vontade de sair correndo. Não quero ser motivo de desavença entre um casal.

— Ninguém importante. Estou de babá.

A resposta dele me ultraja. Meu rosto pega fogo, assim como as orelhas e o pescoço.

— Babá porcaria nenhuma, vou voltar para Tóquio. Espero que você se afogue no mar e
os tubarões eliminem os vestígios do que sobrar.
A mulher loira solta um riso tão alto que me assusta. Liam continua com sua expressão
de tédio.

— Você devia ser menos escandalosa, é deselegante — diz. Me sinto ofendida por sua
namorada. Como ele tem coragem de falar assim com ela? A loira não responde. Apenas rola os
olhos e segura meu braço, me puxando para a suíte.

Confusa, apenas a acompanho. Me pergunto mentalmente se ela vai deixar que ele a
desrespeite assim, mas fico em silêncio.

— Você e meu irmão estão saindo ou algo do tipo? — Se joga na cama de casal.

Pisco algumas vezes, e minha mente estala com a memória das fotos que vi na internet da
família de Liam. Ela era mais jovem nas imagens. Agora, parece uma mulher madura e radiante.
Seu cabelo loiro cai em forma de cascata sobre um dos ombros, combinando com o tom
bronzeado da sua pele.

— Não! Eu pensei que você fosse namorada dele.

— Que nojo. A propósito, me chamo Brianna.

— Phoenix. — Me sinto melhor agora que sei que ela não pensa que sou uma espécie de
amante. — Você chegou aqui pela manhã? Não ouvi barulho nenhum.

— Sim. Vou passar uns dias aqui no Japão. Vim visitar meu irmão. Ele é meio…
incomunicável, sabe? Se não forçá-lo a me ver, acho que esquece que tem família.

— Parece um idiota egoísta — resmungo meu pensamento.

— Você não gosta mesmo dele, não é? — Brianna questiona, com um tom descontraído.
Seus olhos contém um brilho lúdico, como se ela achasse a situação toda divertida e interessante.

— Não. — Dou de ombros. — Sem querer ofender, mas seu irmão não é o tipo de pessoa
que admiro. Ele é alguém cínico que parece só pensar em si mesmo.

Brianna reflete por alguns momentos.

— É verdade — fala, me surpreendendo. — Tenho que admitir que Liam não é uma
pessoa… calorosa. Eu e meu outro irmão nos esforçamos muito para não deixar que ele vá
completamente pro lado sombrio da força — completa, fazendo uma referência clara a Star
Wars.

Eu rio, mas as palavras dela me deixam um tanto pensativa. Isso confirma minhas
suspeitas de que Liam é um lobo solitário. Alguém indiferente. Tenho vontade de perguntá-la
algumas coisas, mas sei que vai parecer esquisito, então apenas digo:

— Preciso voltar para a cidade antes que fique tarde. Foi bom conhecê-la, Brianna.

Ela sorri, os dentes brancos e brilhantes assim como todo o resto.


— Foi bom conhecê-la também. Algo me diz que iremos nos ver mais vezes.

Duvido, penso, mas fico em silêncio. Apenas aceno com a cabeça e me viro, indo arrumar
minhas coisas.

A balsa demora uma hora para chegar. Estou cansada quando, enfim, o motorista me
busca para me levar em casa. Dormi durante todo trajeto, e ao acordar o carro está estacionado
no pátio da propriedade de três andares. Deixo as malas no carro para evitar suspeitas e desço.
Ren está em pé na varanda. Ele parece confuso, mas não diz nada conforme me aproximo.

— Onde você estava? Estou há tempos te esperando.

Solto um suspiro longo, cansada de inventar mentiras para todos ao meu redor. Parece
que, para ser eu mesma e ter minha liberdade, sempre terei que fazer isso por baixo dos panos.
Quando volto à realidade, sou obrigada a fingir ser alguém que não sou.

A filha e a namorada perfeita.

— Em uma exposição — digo a primeira coisa que me vem à cabeça.

Ren parece meio surpreso e apreensivo. Ele sinaliza para dentro, e concordo. Entramos na
casa e nos sentamos no sofá, lado a lado. Meu namorado olha para mim de um jeito cauteloso. É
quase como se estivesse pisando em ovos. É assim que todos agem em torno de mim quando
identificam minha possível fraqueza pela arte.

— Você desistiu da faculdade? — Ele é direto ao ponto, o que me surpreende.

Não sei. Eu desisti? Estou disposta a lidar com a falta de apoio do meu pai? A resposta é
clara.

— Não.

A palavra o deixa tão aliviado que chega a ser patético. Ren coloca uma das mãos em
meu ombro esquerdo, e o afaga de forma que seria confortante se eu não estivesse me sentindo
ofendida por ele pensar igual ao papai. A diferença entre eles é que o garoto não é tão rude.

— Você pode continuar pintando na faculdade de Direito, sabe disso, não sabe?

— Como um hobby? — pergunto, com mais acidez do que eu gostaria.

Ren dá de ombros, visivelmente desconfortável com a conversa que estamos tendo.

— É. Você sabe… Isso não é estável. Nós sonhamos com Harvard e planejamos isso
desde sempre. — Seus olhos encontram os meus, como se esperasse que eu confirmasse. Mas
não posso fazer isso. Há um limite até onde consigo fingir. Ren suspira. — Acho que você está
confusa ultimamente.
— Acho que estou me sentindo pressionada. Talvez essa seja a palavra certa.

Ele esfrega os olhos com força, cansado.

— Não entendo você, Phoe. Você queria ir para a Harvard. O que mudou?

— Não sei — respondo e é a primeira vez que estou sendo honesta.

Antes, eu realmente gostava da ideia de ir para a faculdade junto com Ren. Fiz alguns
planejamentos, pesquisei sobre onde iríamos morar, concordamos que ficaríamos no mesmo
alojamento, até comprei um moletom do campus para presenteá-lo. Nosso futuro parecia certo,
algo que estava destinado a acontecer. No entanto, agora… é diferente.

— Acho que você não tá pensando com clareza, mas tudo bem. Vou ajudar meu pai no
escritório. Se você quiser conversar depois, me liga, ok?

Eu assinto e Ren dá um beijo rápido nos meus lábios antes de se levantar e sair. Olho
para a porta fechada por longos minutos, assimilando o silêncio ao meu redor.

Qual das duas opções será um grande erro no futuro?

Seguir meus sonhos ou faculdade?

É a dúvida que martela na minha cabeça pelo restante do dia.


06

É domingo à noite quando meu pai entra no meu quarto sem explicações e pede para que
eu me vista para um evento. Em nossa posição social, é comum frequentarmos festas de pessoas
importantes, ainda que contra minha vontade. Contudo, devo apenas obedecê-lo sem retrucar.

Checo o celular antes de levantar da cama. Há três ligações perdidas de Ren. Estou o
ignorando desde que disse que eu não deveria insistir na arte.

Coloco um quimono azul escuro e prendo o cabelo. Não passo nenhuma maquiagem,
então desço logo após calçar minhas sandálias. Meu pai já me espera dentro da Limousine e,
como o habitual, está em alguma chamada telefônica sobre negócios. São raros os momentos em
que ele está livre.

Me contento em ver a paisagem passando por nós através da janela, até que avisto um
arranha-céu. Meu pai desce primeiro e o sigo. Chegamos no hall luxuoso, e entramos no
elevador.

As portas se abrem depois de longos momentos, revelando um buffet. Garçons circulam


por cada centímetro do salão e o som de um violino flutua no ar, mesclado ao burburinho de
conversas. Entediada, acompanho meu pai enquanto ele cumprimenta as pessoas que conhece
aqui. Alguns rostos me são familiares também.

De repente, Liam Diamond irrompe na multidão e é ovacionado por uma salva de palmas.

Só quando vejo o logo de um diamante sendo exibido em um cartaz próximo ao palanque


que minha ficha cai. Essa é, provavelmente, a festa oficial de inauguração da sede em Tóquio. O
engraçado é que ele não parece dar a mínima para o que acontece ao seu redor. O som das
palmas, a aprovação de todas as pessoas, as boas-vindas que ele recebe. Nada disso importa. É
como se ele já esperasse isso.

Como se tivesse calculado.

— Pai — falo, fazendo-o me encarar. — Qual a razão deste evento?

— É o novo prédio do sr. Diamond — diz.

— Não foi aqui que vim estagiar semana passada. — Franzo o cenho.

— É novo, querida. Agora são dois.

Solto um suspiro indignado e volto a olhar para Liam. Ele sobe no palanque, e as pessoas
se silenciam quando o loiro se aproxima do microfone. O rosto dele é sério, assim como seu
olhar, que percorre a multidão por alguns momentos antes que ele diga:

— Obrigado por comparecerem. É uma honra fazer parte da comunidade de negócios do


Japão. Espero que os próximos anos sejam prósperos, e que construamos um futuro brilhante em
Tóquio.

As palavras são breves e secas, mas as pessoas as recebem como se fosse o discurso do
ano. Uma nova salva de palmas ecoa enquanto ele desce do palanque.

— Vou ao banheiro — murmuro para meu pai, que mal se importa já que está entretido
em uma conversa com dois homens.

Ao invés de seguir para os sanitários, entro no elevador. Analisando o painel, encontro o


número que sinaliza o escritório e o aperto. Começo a ficar nervosa conforme me aproximo do
andar. Não sei exatamente o que estou fazendo, mas preciso encontrar algo que possa
comprometer Liam no futuro.

As portas de metal se abrem, e paro no meio de um corredor com uma única porta, com
uma placa que diz “acesso restrito”. Torço para que esteja destrancada, mas me frustro quando
tento abri-la e nada acontece. Liam não deixaria falhas em sua segurança.

Ouço o barulho do elevador apitando e, antes que eu possa pensar em me esconder,


Diamond surge na minha frente como uma maldita assombração.

— Senhorita Phoenix, que surpresa — fala. Contudo, não parece nenhum pouco
surpreendido com minha presença.

— Acho que me perdi. — Dou um sorriso forçado.

Liam dá um passo e caminha até mim, o que faz com que eu prenda a respiração. Todo
meu corpo tenciona. Ele ergue uma chave no ar, provavelmente a que abre a fechadura. Fecho os
olhos com força por alguns segundos antes de abri-los e voltar a encarar seu rosto sem emoções.
Estou encrencada.

— Estava procurando por isso?


— Não. Na verdade, eu esperava que a porta já estivesse aberta — falo, sincera.

Minha resposta honesta faz com que ele mova os lábios sutilmente, longe de ser um
sorriso, mas é algo. Agora, posso ver a diversão que cintila em seus orbes. Não é o tipo comum
de divertimento; é algo sombrio. Sádico.

Ele se aproxima, e a cada passo que dá, dou um para trás. Minhas costas batem contra a
porta. Estou encurralada pelo seu corpo grande. Meu coração bate tão depressa que acho que vai
atravessar o peito. Liam chega até mim, a apenas alguns centímetros de distância, e, comigo
contra a porta, sem tirar as íris azuis gelo das minhas, ele enfia a chave na fechadura e destranca
a porta.

Ouço o clique. Em seguida, o rangido quando ele a abre.

Ainda parada feito uma idiota em seu caminho, sem saber como reagir à situação toda,
engulo em seco e saio da frente. A luz é acesa através do sensor de movimento.

Observo os painéis de madeira nas paredes, cuidadosamente polidos. No centro da sala,


há uma mesa de mogno de proporção monumental, repousada sobre um tapete que parece persa.
Sua cadeira de couro exala autoridade.

A iluminação do escritório é uma sinfonia de lustres de cristal. Na parede oposta à nova


mesa de Liam, há uma estante que exibe uma coleção de livros raros, em diversos idiomas,
enfileirados por cores e tamanhos. Entre eles, alguns prêmios de reconhecimento empresarial.

— O que achou, senhorita Phoenix? — Ele se senta em sua cadeira.

Me sinto intimidada, mas não demonstro. Avanço alguns passos e paro próxima da sua
mesa.

— É comum — minto, para não dizer que é o escritório mais bonito que já vi.

Como no anterior, há uma vista panorâmica da cidade.

— Então, quando você voltar a estagiar para mim amanhã, devo deixá-la na sede antiga?

Fico em silêncio, porque não sei o que responder. Não quero lidar com Liam, mas
também não quero ser deixada para trás enquanto ele se muda para cá. Como irei conhecer suas
fraquezas e aprender sobre ele se estiver longe?

— Faça o que quiser. — Finjo indiferença.

— E vou. Vou mantê-la perto de mim, onde posso observá-la.

Ele diz isso enquanto passa uma caneta entre os dedos, num ritmo hipnotizante. É quase
um desafio desviar o olhar dele, mas quebro o contato, porque começo a me sentir esquisita.

— Como conseguiu outro prédio tão rápido? — Caminho até a parede de vidro.

— Dinheiro. É o que move o mundo.


Eu poderia discordar, mas, de certa forma, ele está certo. Dinheiro compra muita coisa.
Conforto e lugares como esse. No entanto, para Liam, parece ser o suficiente. Olho sobre o
ombro, sentindo seus olhos queimarem minhas costas. Ele me observa, como eu suspeitava.

— É tudo o que você procura? — Arqueio as sobrancelhas.

— É o que eu desejo — pontua lentamente. — Na verdade, o dinheiro é uma


consequência do meu conhecimento. Conhecimento é poder. O dinheiro é apenas um efeito
colateral.

— Fala como se tivesse conquistado tudo do zero — murmuro, irônica.

Nas matérias que li sobre ele e sua família, soube que herdou tudo o que um dia
pertenceu aos seus antepassados. Isso não é exatamente meritocracia, como faz parecer ser.

— Tem razão, senhorita Phoenix. Nunca disse que tudo é resultado do meu esforço.
Longe disso. Herdei a empresa, mas ela estava à beira da falência. — A informação me pega de
surpresa, no entanto, não demonstro. — Eu salvei o que estava condenado. Um negócio
milionário vira pó nas mãos erradas.

— Entendo, sr. Diamond. — Me viro em sua direção. — Mas mãos gananciosas e


individualistas também falham.

Seus olhos azuis permanecem frios quando ele diz:

— Você está certa. Sou ganancioso. Individualista. Todos os sinônimos dessas duas
palavras. — Há uma pausa. — Não nego minha natureza, senhorita Phoenix. O que estiver no
meu caminho, será eliminado.

Outra vez, uma ameaça velada.

Nos seus olhos, contém um desafio que diz para que eu tente derrotá-lo.

E nos meus lábios, há um sorriso de quem diz com muito prazer.

— Se me der licença — falo, após longos momentos de silêncio e tensão, caminhando até
a porta.

— Até amanhã, senhorita Phoenix. — Ouço-o dizer atrás de mim enquanto entro no
elevador.

Não olho para trás nenhuma vez.

Depois que volto para a festa, Liam demora no escritório antes de retornar. Penso no que
as pessoas acham de sua ausência no próprio evento, contudo, todos parecem entretidos em
conversas enquanto seguram taças de vinho.
Assim que um garçom passa, pego minha própria bebida. Observo o violinista quando
alguém se aproxima de mim. Capto de soslaio o cabelo loiro longo. Brianna surge em minha
frente, em um vestido preto que a deixa incrível.

— Aí está você — fala, enquanto mastiga um aperitivo. — Ainda não entendo a ligação
entre você e meu irmão.

— Ele é o novo sócio do meu pai — explico. — Nada muito interessante.

— Parecia interessante quando ele foi atrás de você no elevador. — Arqueia as


sobrancelhas.

O comentário dela faz com que minhas bochechas esquentem. Por mais que pareça outra
coisa do seu ponto de vista, nada aconteceu entre nós dois. Tenho até náuseas só de imaginar
algo do gênero.

— Eu estava tentando invadir o escritório dele. — Sou honesta.

Brianna ri.

— Caramba, você realmente detesta o meu irmão. Está planejando boicotá-lo ou algo do
tipo?

— Sim. Aliás, aceito sugestões de como posso fazer isso.

Ela ri mais.

— Gostei de você. Mas não conte comigo para isso. Eu o amo, apesar de tudo. — Faz
uma pausa. — Nosso pai sempre foi duro com todos nós, principalmente com meus dois irmãos
mais velhos. Fico feliz que Liam pareça pelo menos um pouco satisfeito com seu trabalho agora.

Assimilo as palavras de Brianna. Não sei muito bem como interpretá-las. Será que Liam
teve problemas com seu pai durante a infância e adolescência? Fico tentada a perguntar por mais
detalhes, mas não quero ser enxerida, então apenas aceno em concordância.

— Você vai ficar aqui por quanto tempo? — Mudo de assunto.

— Vou embora amanhã, na verdade. Sabe, faculdade e coisa e tal. O dever me chama. —
Brianna tira uma mecha que cai sobre sua visão e me oferece um sorriso amigável. — Preciso ir.
Pega leve com o Liam, ok? Foi legal te conhecer.

Ela se vai antes que eu possa responder e dizer que também gostei de conhecê-la. Só não
posso e nem vou prometer pegar leve com Liam. Ele está bagunçando algumas coisas na minha
vida, e eu não pretendo facilitar nada para Diamond.

Quando meu pai me chama para ir embora, não vejo o loiro no salão. Uma parte minha
se pergunta onde é que ele se enfiou, mas logo disperso o pensamento, que não é da minha conta.

Sei que iremos nos consumir completamente nessa rivalidade.


Mas não tem volta.

Ele não vai oferecer bandeira branca, nem eu.


07

antes
Uma salva de palmas irrompe ao meu redor, mas nenhuma delas é destinada a mim. São
todas para meu irmão mais velho. Ele sorri, de pé no palco do anfiteatro do colégio, enquanto
ostenta a medalha do primeiro lugar da feira de ciências da qual não pude participar, pois só
alunos com mais de dezesseis anos tinham permissão para se inscrever.

Um desconforto cresce dentro de mim. Fui eu quem planejou e executou o trabalho da


feira de ciências para salvar a pele do meu irmão. Não imaginava que Bastian fosse levar o
primeiro lugar. Ele me pediu ajuda, e eu cedi, mas agora sinto ciúmes.

Ele sempre consegue ser a estrela principal. O filho mais velho, o mais querido e amado.
Não importa quantas vezes meus pais tenham que tirá-lo de enrascadas com dinheiro, ele sempre
será o escolhido, o sucessor.

Meu pai está em pé ao meu lado, e o olhar no rosto dele é de orgulho. É como um soco na
boca do estômago. Aqui estão todos os seus parceiros de negócios, que vieram ver seus filhos
exibirem os projetos, no entanto, é Bastian quem se tornou o grande evento.

Meu irmão mais velho caminha até nós como um rei. As pessoas ao seu redor abrem
espaço para que ele passe. Olhares de admiração são dirigidos a ele. Assim que para em nossa
frente, meu pai diz:

— Estou orgulhoso de você, filho. Sabia que não decepcionaria nossa família.

Bastian sorri, e me lança um breve olhar, como se dissesse esse é o nosso segredo.
Mais um de muitos.

Durante o caminho até nossa casa, fico em silêncio na Limousine. Bastian e meu pai
estão numa conversa sobre negócios e consigo ver a expressão de aborrecimento em seu rosto a
cada palavra que sai da boca de Hernan. Me pergunto se ele não percebe que Bastian não está
nem aí para o nosso império. Eu, por outro lado, filtro cada frase que ele diz, absorvo e guardo
em minha mente.

— Você é nosso futuro, Bastian. Hoje você provou que pode começar a trabalhar comigo
na empresa — nosso pai fala.

— Mas ele não está pronto. — As palavras deixam minha boca antes que eu possa contê-
las. Não sei o que dá em mim, mas, de repente, me sinto inquieto, com uma sensação esquisita na
boca do estômago que só se agrava quando Hernan me fita.

É como se ele tivesse se lembrado só agora que tem um segundo filho.

— O que disse, Liam? — indaga, com o cenho franzido. — Por que acha que Bastian não
está pronto? Ele trouxe honra para nossa família conquistando o primeiro lugar na feira de
ciências.

Não foi ele. Fui eu.

Tenho vontade de gritar isso para que todo mundo escute. Meu pai, o motorista, e até as
pessoas que passam por nós na calçada conforme a Limousine avança pelas ruas. No entanto,
feito um covarde, eu levo em consideração o olhar de desespero no rosto do meu irmão e fico em
silêncio.

— Na verdade, você está certo, pai. Desculpe interrompê-lo.

Fico em silêncio pelo restante do trajeto, enquanto observo a paisagem pela janela.
Quando chegamos em casa, desço do carro e vou direto para o quarto. Estou trabalhando em um
projeto há semanas. Planejo mostrá-lo para meu pai quando estiver pronto, pois quero
impressioná-lo.

Quando ele perceber que sou capaz, vai entender que posso liderar a empresa algum dia.

A porta do meu quarto se abre, e Bastian entra no cômodo. Ele segura a medalha que
ganhou na mão esquerda.

Eu fecho o notebook depressa, porque não quero que ele veja o que estou fazendo. Meu
irmão mal repara no meu comportamento suspeito. O olhar no seu rosto é de culpa.

— Desculpe por levar seus méritos. Não achei que fosse ficar em primeiro lugar.

— Nem eu — admito. Meu reator de fusão nuclear de pequena escala foi um sucesso,
considerado revolucionário.

— Isso significa que você é um gênio. Eu só espero que Hernan reconheça isso algum
dia. Sei que é importante pra você.
— Por que não é honesto com ele, então?

A pergunta parece surpreendê-lo. Bastian suspira, e deixa a medalha em cima da mesa de


estudos. Ele olha para as janelas, como se estivesse com vergonha de admitir em voz alta.

— Tanto quanto você, quero que nossos pais sintam orgulho de mim. Eu não posso
quebrar a tradição. Você sabe, é o primogênito que deve se tornar o próximo líder dos negócios
da nossa família. Como acha que ele irá reagir se eu disser que não vou seguir os seus passos?

Fico em silêncio. Por mais que isso me frustre, tento entender o lado de Bastian. Sobre
ele, há um peso de expectativa. Expectativa que nossos pais não esperam de mim, nem da nossa
irmã caçula, Brianna. Na nossa família, é como se só o primeiro filho homem contasse.

— Você acha que isso pode mudar um dia? — pergunto, depois de longos minutos de
silêncio. — Acha que nossos pais vão sentir orgulho de mim também, assim como sentem de
você?

Bastian acena com a cabeça, me dando um sorriso.

— Claro. Um dia, você será um grande homem. Fará grandes coisas e todos nós
sentiremos orgulho de você.

Suas palavras me confortam, mas, no fundo, não sei se são verdade. Pelos olhos de
Bastian, acho que nem ele acredita no que diz. Contudo, o melhor para nós dois é continuarmos
nos enganando. Fingir que ele vai ser livre para fazer as próprias escolhas e que, um dia, poderei
ser reconhecido e assumir o posto principal da família.

Nós dois permanecemos em silêncio pelos próximos momentos, nos agarrando a essa
ideia distante.
08

Na segunda-feira pela manhã, começo a me preparar para o estágio, contra minha


vontade. Acordei de mau-humor. Nem o expresso com dose extra de chantilly que a governanta
me trouxe na cama foi capaz de melhorá-lo.

Visto uma saia lápis e uma blusa de mangas longas. Depois de prender o cabelo, respiro
fundo e desço as escadas, levando minha bolsa junto comigo. A casa está silenciosa, exceto pelo
movimento de algumas empregadas, que limpam os lustres.

Um carro me espera no pátio assim que atravesso a porta.

A Limousine geralmente fica com meu pai, e o motorista principal também. Quando não
dirijo, uma SUV blindada é deixada à minha disposição a qualquer hora do dia. Entro no carro,
desejando bom dia ao homem atrás do volante.

Checo meu celular. Há muitas mensagens de Ren que não respondi, mas não posso
ignorá-lo para sempre, então começo a digitar uma resposta breve.

Phoenix: hoje à noite te ligo.

Ren: ok.

Enfio o telefone dentro da bolsa. Não demora muito para que eu chegue na nova sede de
Liam. Na recepção, liberam meu acesso e me dão um crachá de identificação. Uso a coisa
grudada no peito, porque é obrigatório. Enquanto subo os intermináveis andares no elevador,
uma música genérica, que devia ser supostamente agradável, soa nos meus ouvidos.
As portas se abrem. Um frio toma a boca do meu estômago enquanto olho para a única
porta do corredor.

Sem ter para onde fugir, puxo a maçaneta.

Talvez devesse ter batido antes, levando em consideração que Liam está na sala na
companhia de um homem. Travo na soleira, sem saber se continuo a andar ou volto para trás. A
conversa é interrompida, e Diamond me olha como se eu não passasse de um pequeno
inconveniente.

Limpo a garganta, sem graça.

— Desculpe. Posso voltar outra hora.

— Não é necessário. — A resposta do meu chefe me surpreende.

De forma cautelosa, fecho a porta atrás de mim enquanto a conversa volta a fluir. Não é
nada interessante. Liam está falando sobre um planejamento de estratégias. Se a conversa fosse
importante, ele pediria para que eu me retirasse, sei disso. Tenho vontade de bocejar enquanto
espero sentada em uma cadeira no fundo do escritório.

Daqui, vejo a parte de trás da cabeça do homem que conduz uma pequena reunião e
Liam, que vez ou outra desvia os olhos até mim. Não contenho o bocejo desta vez, o que faz com
que as íris do loiro disparem em minha direção por um tempo maior que o habitual. Será que isso
o irrita? Cruzo as pernas, analisando seus movimentos.

Diamond está sentado com a postura perfeita, o cabelo loiro meio bagunçado e uma das
mãos envolvida ao redor de uma caneta. Não há nada errado nele. Nenhum tique. Nenhuma peça
de roupa amassada, apenas sua fachada impenetrável.

— Essas parcerias podem nos dar acesso a novos mercados — diz o homem quando
começo a prestar atenção no que eles conversam.

— Vou deixar você liderar a equipe de expansão, Alex. Mas não me decepcione. — As
palavras de Liam ficam no meio termo do passivo e agressivo.

É um aviso claro. Cometa um deslize e será demitido.

— Não vou. — O homem garante, mas daqui, posso ver seus ombros tensos. — Obrigado
pela oportunidade, sr. Diamond.

Então, eles apertam as mãos e Alex sai da sala, sem se importar com minha presença.
Assim que a porta bate, a atmosfera muda. Liam fixa os olhos em mim e aponta para a cadeira na
frente dele.

— Sente-se.

Obedecê-lo é quase um sacrifício. Contudo, como não tenho opção, forço meu corpo a se
mover até a cadeira. Puxo a saia para baixo ao me sentar. Seus olhos azuis estão presos nos meus
quando ele despeja:
— Quero que traga meu almoço meio-dia em ponto e organize alguns arquivos em ordem
alfabética. Depois, preciso que leve o Lotus para tomar banho.

— Lotus?

— Meu cachorro — diz de forma fatídica, e eu pisco, tentando assimilar.

— Isso é um estágio ou abuso de autoridade?

— Como te falei, você não me é útil na empresa. Pode fazer outras coisas para
compensar.

— Sendo sua empregada pessoal? — solto, irritada. — O que as pessoas diriam se


soubessem que o grande Liam Diamond é um babaca que subestima mulheres?

— A maior parte dos empregados desse departamento é composto por mulheres. —


Arqueia as sobrancelhas, sem esconder o tédio no olhar. — O que não quero é uma pirralha
dentro do meu sistema. Acha que não sei o que você está tentando fazer, senhorita Phoenix?

Sinto o rosto arder.

— O que estou tentando fazer? Diga-me, senhor Diamond.

— Quer se vingar, o que é em vão. Não pretendo mais perder meu tempo com você.
Quando você foi para a prisão, já te coloquei na posição em que eu queria, como pode ver. —
Ele acena com a mão para mim.

O fato de eu estar sentada na sala dele, onde ele pode manter os olhos em mim. A posição
em que me encontro no momento, tendo que acatar suas ordens. Trazer cafés, almoços… Minha
mandíbula se trava.

Desgraçado.

— Para você, parece um jogo de xadrez — retruco.

— E você está na posição em que eu quero — reafirma.

— Não por muito tempo.

Liam me ignora. Ele começa a ler alguns papéis enquanto fico sentada sem utilidade
nenhuma em sua frente. Espero que ele diga para eu fazer algo, mas tudo o que me resta é o
silêncio ensurdecedor.

Olho para o relógio na parede. Faltam quarenta minutos para meio-dia. A hora em que
Liam solicitou seu almoço.

— Vou sair. — Me levanto e pego minha bolsa.

— Não lembro de tê-la dado permissão.

Seguro a bufada no fundo da garganta.


— Vou pegar seu almoço, sr. Diamond. Achei que não fosse um problema, mas sim uma
ordem.

Liam não diz nada, então aproveito a deixa e sigo em direção à porta. Me sinto melhor
quando estou fora do escritório. É como se o ar fosse mais limpo, sem a contaminação do mau
humor dele. No elevador, mando uma mensagem para Emi.

Phoenix: vou almoçar no Megumi, se quiser me encontrar por lá.

Emi: claro, tô indo.

Quando chego do lado de fora do arranha-céu, peço um táxi. O Megumi é um restaurante


tradicional de comida japonesa. Não fica muito longe de onde estou, então é oportuno. Assim
que adentro no estabelecimento, vejo que Emi já está sentada em uma das mesas. Ela ergue a
mão, acenando-a no ar, como se sua jaqueta cor-de-rosa já não chamasse atenção o suficiente.

— Esse é seu visual de estagiária? — indaga, arqueando as sobrancelhas.

— Sim. — Puxo uma cadeira para me sentar. — Está brega?

— Não, achei que você ficou linda. Não rola nenhum clima entre você e o chefe gato e
insuportável?

Minha amiga tem um péssimo defeito, sonhar demais com coisas impossíveis.

Eu a repreendo com o olhar.

— Claro que não, eu tenho namorado!

— É, mas ultimamente as coisas com o Ren não estão legais. — Dá de ombros. — Acho
que você tá protelando algo inevitável.

Me remexo desconfortável no assento, porque sei que ela tem razão. Ren e eu mal temos
nos visto ultimamente, além de que, após nossa última conversa, nossa relação passou de
estranha para super estranha. Não sei como poderei sustentar nosso namoro depois disso. Acho
que não posso pensar em me casar com alguém que não apoia meus sonhos.

Fico em silêncio e resolvo mudar de assunto:

— Vamos falar sobre você e seus problemas — digo, embora ache improvável.

Nunca vi Emi reclamar de nada. Seus pais são legais, donos de uma rede famosa de SPA
aqui no Japão e apoiaram quando ela se inscreveu na faculdade de artes visuais. Não admito isso,
mas tenho inveja dela. Sua família é estável, com um casamento bom. Além disso, a garota tem
um irmão mais velho que a protege de tudo. Inclusive, na oitava série, ele socou um babaca que
partiu seu coração.

Eu não tenho ninguém que faria isso por mim. Meu pai é ocupado demais, minha mãe
desapareceu e não tenho irmãos.
Minha amiga parece pensar por alguns momentos.

— Meu professor da faculdade não larga do meu pé. Ele sempre pede para que eu leia os
textos da matéria em voz alta. Parece até que estou de volta ao colegial, quando era representante
da turma.

Solto um risinho. Acho divertido que essa seja a única preocupação de Emi.

— Talvez ele sinta uma atração secreta por você, sabe. Como em uma daquelas novelas
populares e clichês.

— Eca. Ele tem, tipo, noventa anos. Toda vez que cochila na cadeira, alguém precisa
cutucá-lo para ter certeza de que não teve uma parada cardíaca durante a aula.

Nós duas rimos e resolvemos, enfim, fazermos nossos pedidos. Fico com um ramen e
Emi pede uma salada de pepino. Não sei quanto tempo passa enquanto conversamos, mas,
quando olho o relógio, percebo que estou atrasada. Com pressa, me despeço, jogo algumas notas
sobre a mesa para cobrir minha parte e pego um yakissoba pronto em um comércio ambulante
enquanto peço o táxi de volta para a empresa.

Não sei se Liam gosta de yakissoba, mas ele não especificou o que queria comer.

Estou atrasada trinta minutos quando abro a porta do escritório.

— Parece que você tem problemas em olhar no relógio.

— São só trinta minutos. — Deixo a sacola em cima da mesa, me sentindo exausta. Corri
pelo hall imenso até o elevador. Sorte que uma funcionária segurou as portas para mim, ou teria
ficado esperando lá embaixo.

Espero que Liam tenha um ataque de estrelismo quando vê a embalagem de isopor, mas
ele apenas abre a tampa e começa a comer com o hashi. O observo feito uma idiota, porque não
sei o que fazer em seguida. Ele nota meu olhar enquanto mastiga e arqueia as sobrancelhas
sutilmente.

Olho para longe.

Ele parece quase… normal. Pelo menos agora, enquanto está comendo, em silêncio.

Uma batida na porta me desperta de meus devaneios. Liam autoriza a entrada e um


homem atravessa a porta. Com ele, está um cachorro Border Collie preso a uma coleira.

— Aqui está o cachorro, senhor — diz, cortando o silêncio.

— Obrigado. Pode entregá-lo à Phoenix — Liam fala, finalizando o yakissoba e deixando


o hashi de lado.

Dou um passo à frente, muito entretida no animalzinho para contestar. Sempre quis um
bicho de estimação, mas meu pai nunca permitiu. Sei que Liam poderia ter pedido a qualquer
pessoa para levar o seu cachorro ao pet shop, mas ele designou isso a mim justamente para que
eu tivesse alguma tarefa, já que diz que aqui, em sua empresa, não tenho utilidades.

Lotus cheira meus calcanhares quando seguro sua guia e depois dá uma lambida em uma
das minhas mãos. Começo a rir, mas logo paro quando percebo o olhar de Diamond grudado em
mim. Limpo a garganta e adoto uma postura séria.

— Estou saindo — aviso, sem encará-lo.

Enquanto espero Lotus do lado de fora da sala de banho, meu celular começa a tocar.
Suspiro ao ver o nome de Ren no visor e atendo um momento depois, porque prometi que ligaria
hoje.

— Onde você está? — pergunta, provavelmente ao ouvir o barulho de secadores do


ambiente.

Me afasto um pouco de onde vem o som e me apoio contra uma prateleira de rações.

— No pet shop.

— Pet shop? — questiona, a confusão se faz presente em seu tom de voz. — Seu pai
deixou você ter um animal de estimação?

— Não. É só que, não sei, me deu vontade de entrar em um. — Me nego a admitir que
isso faz parte do meu estágio. É vergonhoso que Liam me ache tão inútil a ponto de me pedir
coisas do cotidiano. Não posso dizer isso para Ren.

— Pensei que você estava no estágio.

— Fui dispensada mais cedo.

— Ótimo, então podemos nos ver? Posso ir te encontrar.

— Agora não dá — nego rapidamente. — Depois conversamos, ok? Beijo.

Não espero uma resposta sua, apenas encerro a chamada. Volto para perto da vitrine,
onde posso ver Lotus. Ele está sendo ensaboado e tenta engolir as bolhas de sabão que flutuam
no ar, que explodem em seu focinho antes que ele tenha a chance. Como um cachorro tão amável
pode ter um dono como Liam?

De repente, fico com pena dele. Liam não deve ser carinhoso, nem dar a atenção
necessária.

Quando o animalzinho está limpo e seco, o levo até o carro da empresa que meu chefe
colocou à nossa disposição. Me surpreendo ao ver que ele espera em frente ao arranha-céu. Os
braços estão cruzados em frente ao terno sob medida, e ele nem agradece quando eu desço do
carro com seu cachorro, apenas toma a guia da minha mão e dá as costas após dizer:
— Está dispensada por hoje.
09

Estou trinta minutos atrasado, algo que nunca acontece, devido uma falha no motor do
carro. Solicitar um segundo veículo demorou mais que o habitual, o que me deixa impaciente.
Não costumo chegar depois dos meus funcionários na empresa. Assim que eles iniciam o
expediente, já estou lá.

Levo a sério a pontualidade, afinal, o tempo é algo que não se pode comprar ou produzir.
Ao chegar no escritório, avisto Phoenix. Ela toma um susto quando abro a porta, pois está
tentando destrancar uma das minhas gavetas. O rosto dela é tomado por um rubor vermelho
irritante, que demonstra suas emoções de forma tão clara como se ela fosse um livro aberto.

Não sei por qual motivo, mas reparo nela por alguns momentos. Está vestindo uma
camiseta de linho branco e uma saia preta, além de saltos médios. O cabelo amarrado no topo de
sua cabeça é algo usual. Esta manhã, no entanto, suas orelhas exibem brincos de pérolas.

Sou observador. Reparo que sua postura está tensa e ela finge que não estava fazendo
nada demais, como se enfiar o nariz nas coisas de seu próprio chefe não fosse relevante. Maldita
seja essa garota, sempre em busca de provas contra mim. Sinto vontade de mandá-la embora,
mas permaneço em silêncio enquanto caminho até estar parado em sua frente.

— Não te proibi de entrar quando eu não estivesse? Inclusive, como entrou?

— Eu não sabia que você não estava antes de entrar e, em minha defesa, estavam fazendo
manutenção do sistema elétrico. A porta estava aberta.

É claro. A maldita manutenção que solicitei. Mas não gosto que Phoenix tenha
conseguido entrar aqui. Alguém terá que responder por isso.
— Bom, você acaba de demitir alguém — digo, enquanto me sento na minha poltrona.

— Eu? — ela balbucia. — Por quê?

— Porque você entrou aqui. Alguém autorizou sua entrada enquanto eu não estava, e
você permaneceu. Isso é uma falha na segurança. Não posso permitir que algo assim aconteça.

Phoenix comprime os lábios, me olhando com as pálpebras com dobras epicânticas


semicerradas.

— Você não acha que está exagerando? Eu mostrei meu crachá de identificação. — Ela
sinaliza para o peito, onde está grudado. — Não foi falha na segurança. Eles sabiam que eu
trabalho aqui.

— Então está dizendo que não estava tentando bisbilhotar minha gaveta antes de eu
chegar? Que eu não devia punir alguém por isso? — Passo a caneta prateada que fica na minha
mesa entre os dedos.

— Eu não estava…

— Estava — a interrompo. — Então, você vai escolher. Vou demitir alguém, ou você vai
assumir e ser responsável pelos seus próprios erros. E terei uma conversa com o sr. Ogawa.

Quando cito seu pai, que definitivamente é seu calcanhar de aquiles, Phoenix murcha.
Vejo a dúvida nos seus olhos. Ela está em um conflito entre demitir alguém e ser punida pelo o
que fez.

— Tudo bem. Vai em frente, ligue para o meu pai, marque uma reunião, faça o que você
sabe fazer de melhor, que é ser um baita ranzinza!

— Eu não precisaria fazer isso se você parasse de agir feito uma pentelha.

— Eu não precisaria ser uma pentelha se você não tivesse me colocado na prisão.

Sei que Phoenix nunca vai me perdoar por isso, mas não me importo. Ela já tentou me
sabotar várias vezes. Jogou café em mim, colocou pimenta na minha comida e até tentou invadir
meu escritório. Duas vezes.

Geralmente, não sou paciente com esse tipo de coisa.

— Onde está o meu café? — questiono, sem me importar com o olhar odioso que recebo.
Na verdade, ouso dizer que estou habituado com esse tipo de coisa.

— Eu me cansei disso! — Phoenix tira o crachá de identificação do peito e o atira sobre a


mesa, respirando num ritmo tão intenso que posso ver seu peito subindo e descendo. As
bochechas dela estão coradas. — Eu me demito.

Estou surpreso, porque não esperava que ela fosse chegar a este ponto.

Fico em silêncio, observando-a.


— Faça o que quiser, diga ao meu pai, o que quer que seja, não me importo. Tô cansada
de viver nas rédeas. — Há uma pausa, enquanto ela olha para mim como se pudesse perfurar
meu crânio. — E essa gravata é horrível — acrescenta, de repente, antes de me dar as costas e
sair do escritório.

— Senhor, temos um problema — a voz de Kim, minha assistente, ressoa nos meus
ouvidos.

Eu não paro minha série de exercícios. Mandei construir uma academia pessoal no novo
prédio justamente para que tivesse otimização de tempo. Não vai ser uma frase como esta que vai
me fazer parar agora.

Me concentro em erguer os halteres, que surgem no meu campo de visão enquanto os


músculos do meu peito queimam. Não consigo ver Kim daqui, porque estou inclinado no banco
de supino, com os olhos fixos no teto.

Quando acabo as repetições, largo os pesos, me sentando de forma que posso ver a
mulher através dos espelhos.

— Diga.

— Receio que o senhor não possa ganhar o prêmio de melhor CEO do ano aqui no Japão.

Arqueio uma sobrancelha. Não há nada que eu não possa conquistar se eu quiser. Basta
apenas minha determinação. Pedi a Kim para me ajudar a analisar as possibilidades de eu vencer
o prêmio. Meus resultados até agora têm sido revolucionários. Não é à toa que Jim Ogawa, um
dos grandes pioneiros daqui, quis se tornar um aliado, além de outros tantos.

— Por quê? — pergunto, com calma, enquanto abro a garrafa de água e começo a bebê-
la.

— Analisando os últimos vencedores dos prêmios, todos eles estavam em casamentos e


uniões estáveis. É uma formalidade dos organizadores da cerimônia que o prêmio seja entregue
por um cônjuge.

O quê?

Sei que o Japão é um lugar tradicional com princípios inigualáveis, mas nem tanto.

Fico em silêncio, e absorvo as palavras de Kim. Ela sabe que não me relaciono com
ninguém, meus objetivos são bem claros. Minha atenção e foco são destinados a empresa.

— Então está me dizendo que para que eu seja bem visto pelos juízes, tenho que estar em
um relacionamento? — questiono, torcendo para que ela me dê um argumento que refute tudo
isso.
— Sim, senhor. Apenas um homem solteiro foi ganhador do prêmio, há dez anos, uma
exceção por ter sido pai solteiro. O sr. Ogawa.

Interessante.

— Entendo, Kim. Isso não será mais um problema. Obrigado pelas informações.

Ela parece surpresa, mas permanece em silêncio. Dou permissão para que se retire
enquanto penso no que farei para reverter a situação.

Na verdade, tenho um plano.

Estou parado no hall há vinte minutos, esperando. Tenho certeza de que a demora toda é
proposital e já estou cansado de analisar os quadros na parede.

Decorei as três imagens. Na primeira há uma fotografia de um bebê enrolado em um


manto com gravuras japonesas. Na segunda, o bebê já tem uns três ou quatro anos, enquanto
sorri para a câmera e segura um buquê de flores. Na última, os anos voaram. Agora há uma
adolescente contida, vestindo um quimono, abraçada junto de um garoto da mesma faixa etária,
que veste smoking.

Abaixo da foto, há a legenda “Baile de Formatura”.

Agora, a mesma adolescente, um pouco diferente, me encara do topo das escadas.

Phoenix não parece feliz em me ver, mas há curiosidade em seus olhos castanhos. Faz
três dias desde que ela se demitiu e não me opus.

— Sabia que uma hora você voltaria a me infernizar. — Ela encosta-se contra a parede,
mantendo uma distância de vários metros entre nós.

— Não vim inferniza-la.

— Então a que devo sua grande e ilustre presença? — fala, num tom óbvio de sarcasmo.

— Quero uma trégua.

A frase parece impressioná-la. Phoenix me fita como se uma segunda cabeça tivesse
surgido no meu tronco, mas logo passa e só resta a dúvida. Não a culpo. Eu também não
confiaria em mim.

— Como assim? — Cruza os braços em frente ao peito e adota uma postura defensiva. —
Não vai contar ao meu pai que me demiti?

— Não. Quero que possamos chegar a um acordo.

— O que é que você quer? Apenas diga de uma vez por todas.
Mantenho minha expressão séria enquanto começo a falar:

— Preciso que finja ser minha namorada.

Phoenix gargalha. Não é o tipo de riso normal, é um riso histérico, quase como se ela
achasse que eu estou louco. Quando ela para, tem que enxugar as lágrimas nos cantos dos olhos.

— Veio até aqui para me contar uma piada? Tenho que admitir que me diverti, mas já
pode dar o fora, Liam.

Ela começa a subir as escadas mas eu entoo um:

— Espere.

Phoenix para, como se percebesse a seriedade no meu tom de voz. Odeio pedir favores,
então é necessário uma dose de esforço que quase dói fisicamente. Minha mandíbula trava
quando começo a dizer:

— Não é brincadeira. Faça isso e te deverei um favor.

Odeio admitir isso, mas eu realmente preciso dela no momento. Ela e seu pai são
influentes no Japão, além de que Jim já ganhou uma das premiações. O sobrenome Ogawa vai
me abrir portas, mesmo que através de Phoenix.

Ela parece interessada agora. A garota desce os degraus da escada e se aproxima, parando
a um metro de distância.

— Vai fazer qualquer coisa que eu pedir? — Arqueia as sobrancelhas.

— O que estiver ao meu alcance — falo, secamente.

— Você não me disse que não há nada que homens como você não possam fazer?

Espertinha.

Apenas estendo minha mão até ela. Phoenix olha para meus dedos por longos momentos,
como se estivesse receosa. Como se estivesse prestes a fazer um acordo com o diabo.

Enfim, sua mão se fecha sobre a minha. A tensão no ar é maior do que a do corpo de
Phoenix. Ela enrijece ao me tocar e logo se desvencilha, como se meu toque a queimasse.

— Está feito — diz e, pela primeira vez, sinto que fiz um péssimo negócio.
10

Hoje é feriado e faço o melhor que posso para enfeitar meu cabelo em frente ao espelho.
Coloco uma fita azul que combina com o meu vestido, um Valentino, de corte simples. Assim
que termino de calçar os saltos, meu pai bate na porta e digo que ele pode entrar.

— Mandei um carro para buscar a família de Ren. Desça para recebê-los.

Seus orbes castanhos escuros não conseguem se fixar em mim por muito tempo antes de
desviar o olhar e se retirar. Um nó se forma na minha garganta, pois sei que ele faz isso porque
me pareço com minha mãe. Desde que ela nos deixou, evito usar meus cabelos soltos. Parece
idiota, mas sou como uma cópia dela. Olhar para mim deve ser difícil para ele. Ao mesmo tempo
em que tento entendê-lo, sinto raiva.

Sinto raiva dele por associá-la a mim e sinto raiva da minha mãe por ter feito as malas e
se mudado para outro continente em busca de seus sonhos. A princípio, ela disse que levaria
apenas alguns meses. Que voltaria para casa, para meu pai e para mim. Lembro do dia em que
ela me deixou. Me deu um beijo na testa e pediu para que eu fosse uma boa garota enquanto
estivesse fora.

Já fazem dez anos desde então.

Minha mãe nunca voltou para casa e me acostumei a viver sem ela. Papai, por sua vez, se
tornou um fantasma de quem já foi um dia. Um homem sério e focado apenas nos negócios. Tive
que enfrentar a solidão na adolescência, sem ter o ombro do meu pai para chorar por um coração
partido, ou dicas da minha mãe quando menstruei pela primeira vez.
Quando lágrimas de raiva, tristeza e ressentimento começam a embaçar minha visão,
respiro fundo e me concentro na minha aparência. Falta o batom. Escolho o vermelho.

Depois que estou pronta, desço a escadaria para o primeiro andar. Alcanço o hall assim
que ouço o barulho dos portões automáticos abrirem lá fora e aguardo na porta enquanto Ren e
sua família descem do carro.

O senhor e a senhora Nagashi são carismáticos. Eu amo a família de Ren. Eles são fáceis
de gostar. Lin Nagashi me dá um abraço apertado e um beijo no rosto, fazendo um comentário
sobre meu cabelo antes de entrar. O sr. Nagashi apenas me cumprimenta e, apesar de ser mais
contido, é igualmente simpático. Ele segue a esposa para dentro.

Por fim, resta apenas eu e meu ex-namorado na varanda de mármore. O clima fica
esquisito e denso.

Depois que me demiti do estágio de Liam, briguei feio com Ren pelo telefone e resolvi
terminar nosso relacionamento. Ainda não contamos às nossas famílias. Nem sei se tenho
coragem. É algo que nunca fará sentido para eles. Os Nagashi me receberam como sua filha e
meu pai também ficaria descontente.

Mas bem, aqui estou eu, tentando tomar as decisões certas e me sentindo mais perdida do
que nunca.

Ren segura uma caixa retangular envelopada de cetim que conheço bem, de uma marca
que importa chocolates da Suíça. Ele usa um terno caro e, sob a luz do luar, me lembro porque
me apaixonei por ele. Ele é lindo. Seus cabelos são curtos e escuros, e seus traços remetem à
descendência chinesa de sua família materna. Além disso, Ren traz uma sensação confortante.
Acho que ele tem esse efeito de calma nas pessoas.

— Você tá linda nesse vestido — elogia, meio sem graça, ao me entregar os chocolates.
Meu coração bate um pouquinho mais rápido.

— Obrigada. Não precisava.

Ren dá de ombros, meio constrangido e nós entramos. Minha casa está especialmente
brilhante esta noite. Meu pai mandou polir o chão e limpar os lustres. A governanta faz menção
de pegar o casaco de Ren, mas ele apenas a dispensa educadamente e o coloca por conta própria
no mancebo de madeira.

A mesa da sala de jantar está cheia de velas e meu pai e os Nagashi já estão sentados,
juntamente com dois homens que trabalham com eles e que nunca decoro os nomes.

Todos na mesa parecem mais parceiros de negócios, o que de fato são, que família.
Reparar nisso me incomoda um pouco, mas sei que é a atmosfera que meu pai estabeleceu.
Queria que as coisas fossem diferentes, ao menos num feriado como esse.

Ocupo um lugar ao lado de Ren e estranho quando meu pai não manda servir o jantar
imediatamente já que estamos todos aqui. Como se lesse isso nas entrelinhas, o homem limpa a
garganta e diz:
— Estou esperando meu último convidado.

Franzo o cenho e, antes que possa questionar, a porta da frente se abre. Alguns momentos
depois, uma figura imponente de terno entra na sala de jantar.

Liam Diamond está em seu traje habitual, com o cabelo loiro impecavelmente penteado
para trás.

Agora sim seremos uma família feliz.

Meu humor piora no mesmo instante, e quero perguntar a meu pai por que ele convidou
Liam para um jantar em família, mas a resposta é óbvia. Dinheiro sempre foi a razão. Diamond
deve representar um enorme cifrão ambulante para o senhor Ogawa. Ele se levanta para recebê-
lo. Após apresentá-lo a todos, papai pede para que Liam se sente ao seu lado direito, o que me
ofende.

Meu pai nunca deixou eu me sentar nesse lugar.

— Ele é… jovem — a voz de Ren me tira dos pensamentos, fazendo-me encará-lo.

Assim como todos, ele faz sua própria análise. Seus olhos estão presos em Liam. Aposto
que Ren nem sabe que esboça uma careta agora, o que acho engraçado. Ele sempre gosta de todo
mundo.

Os empregados, enfim, começam a nos servir.

Não sei o que Diamond irá dizer, espero que não comente nada sobre nosso
relacionamento. Concordei com isso visando meus próprios interesses, mas se ele abrir o bico
aqui e agora, vou pular sobre a mesa e alcançá-lo do outro lado para enforcá-lo com minhas
próprias mãos.

— Ouvi falar bastante sobre você — o pai de Ren diz a Diamond, o que me surpreende.

Baixo os olhos para meu prato, enquanto mastigo um pedaço de peixe. Finjo desinteresse,
mas presto atenção em cada palavra da conversa que se desenrola. Então quer dizer que meu pai
fala sobre o Liam por aí?

— Jim sempre elogia todas suas estratégias e posicionamentos. Estou ansioso para fechar
contrato com você.

Meu queixo quase cai.

Quer dizer que Liam conseguiu se enfiar até na família de Ren? Sinto uma pontada de
ciúmes, porque essa é minha vida. Minha vida sendo invadida por ele.

— Seremos grandes aliados — é tudo o que o loiro se limita a dizer.

Sempre objetivo, racional e dispensando afeto.

É difícil agir naturalmente; estou com medo do que Liam pode revelar. Lanço a ele um
breve olhar e me surpreendo quando vejo que me encara de volta sob a borda da taça de vinho
que leva aos lábios.

Quebro o contato visual rapidamente, com o coração disparado.

— A gente pode conversar por um momento? — Ren questiona quando nossos pratos
estão vazios.

Olho ao redor. Meu pai e os outros estão em uma conversa animada. Liam permanece em
silêncio, mas parece prestar atenção no que dizem. Concordo, mas aviso que será breve.

Pedimos licença e deixamos a sala de jantar. Nós paramos em um dos corredores de


acesso, onde há silêncio e privacidade. Dá para sentir a tensão entre nós.

É quase palpável.

— Me desculpa — Ren diz, arrependido. Seus olhos estão presos aos meus com tanta
intensidade que tenho que engolir o nó que se forma na garganta.

— Pelo o quê? — questiono num murmúrio, porque não sei exatamente por qual parte ele
está se desculpando.

— Por nossa última discussão. Acho que nenhum de nós estava pensando direito…

Em todos esses anos, Ren e eu nunca rompemos nosso namoro. Sempre resolvemos tudo
com uma conversa simples e clara. Ele sempre foi meu melhor amigo, nunca tivemos desavenças
antes.

— Você não tá pensando direito, Phoe. — Segura minhas mãos entre as suas. — Você
pode continuar pintando em Harvard. Nós fomos feitos um para o outro.

Murcho, porque ele não entende. Achei que Ren pudesse perceber uma hora que não
preciso ser advogada para me tornar uma mulher bem sucedida, muito menos abrir mãos dos
meus sonhos.

Ele se aproxima alguns passos, diminuindo quase toda distância entre nós. Há uma
súplica silenciosa em seus olhos.

— A gente vai superar isso. Eu prometo que…

— Que coisa deplorável. — A voz grave ecoa pelo ar, interrompendo meu ex-namorado.

Fico estática quando olho para o lado e vejo Liam no início do corredor, encostado contra
uma das paredes. Ele acende um charuto enquanto nos observa com tédio como se fôssemos uma
novela de drama.

— Se não percebeu, estamos tendo uma conversa particular — Ren diz, ultrajado.

Ele nunca fica nervoso, mas, agora, está bem próximo disso.
— Não me importa, para ser sincero. — Dá a primeira tragada no charuto.

— Vem, Phoe — Ren fala, esperando que eu o siga, mas meus pés não se movem.
Continuo parada.

Quando não faço nenhuma menção de segui-lo, sua mão se fecha firmemente ao redor do
meu braço e ele tenta me arrastar.

— Tá machucando — resmungo, não entendendo qual a porra do problema dele hoje.

— Cuidado — Liam avisa, de forma ameaçadora e cautelosa. — Solte o braço dela.

O ar muda. É como se tudo não passasse de tensão e desconforto. Ren olha para mim, na
esperança de que eu mude de ideia.

— Eu disse, solte o braço dela — repete, de maneira lenta, aproximando-se até que esteja
perto o suficiente para que eu possa sentir o cheiro de tabaco e perfume caro.

Ren não se move. Não me solta.

Liam apaga o charuto na camiseta social do garoto, deixando uma marca preta e restos de
cinzas. Então, empurra seu peito com o antebraço, fazendo suas costas atingirem a parede atrás
de si.

Os quadros chacoalham e me espanto com a cena, o coração quase saindo pela boca.

— Essa é a distância segura — fala, o tom de voz baixo e sério.

Ren se desvencilha do toque bruscamente e encara Liam como se pudesse dar um soco
em seu rosto. Em seguida, me lança um olhar magoado e sai às pressas, deixando-me a sós com
Diamond.

— Preciso falar com você — diz, enquanto sustenta o charuto na boca e ajeita as mangas
de seu terno, como se não tivesse acabado de prensar Ren contra a parede.

Ainda estou com dificuldade de assimilar os últimos acontecimentos. Ren nunca havia
me tocado antes, muito menos apertado meu braço. Olho para baixo, vendo as marcas dos dedos
gravadas em minha pele.

— O que foi? — digo, quase num sussurro, sentindo-me cansada e vazia.

— Precisamos falar sobre nosso acordo.

Limpo a mente, focando em suas palavras. O encaro sem emoção, no entanto.

— Diga.

— Esteja preparada para nos assumir publicamente. — Há uma pausa enquanto ele traga
e solta a fumaça. — E mantenha-se longe de babacas como esse — acrescenta, referindo-se a
Ren. — Ou vai me mandar para a cadeia.
— Ele é meu ex-namorado — digo, sem emoção.

Liam ignora a informação ou simplesmente não se importa. Acho a última opção mais
coerente.

— Até mais, Phoenix. Vou contatá-la em breve.

Então se vira e some tão inesperadamente quanto apareceu.


11

antes
A casa está cheia de pessoas que não conheço, e a música alta reverbera pelo lugar.
Bastian disse que faria uma pequena reunião enquanto nossos pais estão fora, viajando a
negócios. Mas isso não é nada particular. Parece que o colégio inteiro foi convidado para vir até
aqui. Agora, há alguns carros estacionados no pátio e gente por todo canto.

Brianna está assustada, deitada em minha cama e escondida sob os cobertores. É a


primeira vez que sinto raiva de Bash. Já senti ciúmes, inveja, até mesmo tristeza. Contudo, raiva
é a primeira vez. Uma parte minha entende que ele não quer ser o sucessor, mas é obrigado. Só
não consigo assimilar toda a falta de cuidado e inconsequência.

Ele é um ano e alguns meses mais velho que eu. Tenho quinze anos e ele acabou de
completar dezessete. Meu aniversário é daqui alguns meses, no entanto, me sinto um velho
ranzinza toda vez que ele age como um moleque mimado.

— Bree — murmuro, esperando que ela saia do esconderijo.

Ela mal se move sob as cobertas. Puxo o travesseiro, revelando sua cabeça loira e os
olhos azuis arregalados.

— Por que tem tanto barulho? — choraminga, assustada.


Brianna sempre foi a mais sentimental e perceptiva de nós três. Ela tem onze anos e
nossos pais mal ligam para ela. Se eu sou considerado um reserva por ter nascido depois, minha
irmã está completamente fora do jogo. Ela é a mais nova e mulher. Nunca uma mulher havia
liderado os negócios da nossa família antes, o que sempre achei antiquado.

— É só o Bash e alguns amigos. — Tento tranquilizá-la. — Que tal ouvir música nos
fones enquanto vou lá checar se está tudo bem?

Ela pensa por alguns instantes.

— Tá bom.

Pego meus fones e coloco em sua cabeça, depois procuro uma playlist de música infantil
e a reproduzo. Por precaução, tranco a porta do quarto. Não pretendo ficar muito tempo lá
embaixo, mas não quero que alguém tenha acesso ao lugar em que ela está. Vi um casal se
beijando no banheiro dos meus pais mais cedo. Se Hernan e Donna se deparassem com a cena
ficariam loucos.

Desço a escada, que está cheia de gente subindo e transitando pelos andares. Não demoro
muito para encontrar Bastian no mar de pessoas. Ele bebe na mangueira de um barril de cerveja
enquanto ouço gritos de incentivo. A música é tão alta que meus ouvidos começam a doer.

Vou abrindo caminho até chegar perto o suficiente para que consiga tocar seu ombro.

Ele demora para se virar em minha direção. Seu rosto está corado e o cabelo uma
bagunça. Está longe de estar sóbrio.

— Você tinha que trazer sua festa para cá? — Falho na missão de manter minha voz
calma.

Bastian percebe toda a raiva que sinto, porque franze o cenho. Ele apoia o braço ao redor
dos meus ombros, jogando quase todo seu peso sobre mim.

— Por que não bebe e relaxa um pouco? Você parece irritado — fala. Consigo sentir
zombaria em seu tom de voz.

As pessoas ao nosso redor começam a prestar atenção em nossa interação. Em um


rompante de raiva, tiro bruscamente o braço de Bastian de cima dos meus ombros. A atmosfera
no ambiente muda.

— Acabe com a festa agora ou eu mesmo vou chamar a polícia. A Bree tá morrendo de
medo lá em cima. Você devia ser menos egoísta.

Bastian torce os lábios, não parecendo satisfeito com minha sugestão.

— Eu disse para você relaxar. — Estende uma garrafa de cerveja em minha direção como
se isso fosse resolver as coisas.

— A Bree precisa dormir — volto a insistir, para que ele se sensibilize. — Nossos pais
deixaram você no comando para testá-lo. Não percebe que está estragando tudo?
— Brianna pode dormir. Não tem ninguém impedindo ela. Vocês dois têm que deixar de
ser criancinhas e começarem a…

A raiva que sinto cresce em meu corpo, até que seja difícil compreender as palavras que
deixam a boca de Bastian. Quando percebo, meu punho já se conectou no maxilar dele.

Meu irmão mais velho cambaleia com o impacto inesperado.

Depois, quando se recupera, parte para cima de mim. Nós caímos no chão, fazendo
pessoas gritarem e se afastarem até que tenha um círculo formado ao nosso redor.

A dor explode em minhas costas quando atinjo o chão e perco o fôlego por alguns
segundos. Bastian pode ser lento, mas ainda é mais velho e mais forte. Nós dois temos um longo
histórico com artes marciais. Nosso pai nos matriculou em todas as aulas possíveis com o
argumento de que deveríamos aprender a nos defender, quando, na verdade, seu desejo era nos
ver um contra o outro, competindo. E é o que estamos fazendo.

Só que agora é real.

Tão real que sinto o gosto metálico do sangue invadir minha boca quando meu irmão me
soca na cara.

No entanto, reverto nossas posições no próximo momento e acerto sua têmpora, depois a
maçã de seu rosto. Quando percebo que ele mal consegue se defender, desisto e me levanto, com
a respiração entrecortada.

As pessoas me encaram como se eu fosse um animal de circo.

— Saiam! Saiam já! — começo a gritar, gesticulando com os braços. — O espetáculo


acabou.

Uma a uma, as pessoas começam a se mover em direção à porta. Ando até as caixas de
som e puxo os fios das tomadas.

Bastian está sentado no chão, parecendo recobrar sua consciência enquanto observa os
convidados evacuarem. Depois de longos minutos, somos só eu e ele na sala, com copos
plásticos coloridos espalhados pelo chão e garrafas de cerveja vazias que rolam aos nossos pés.

Olho para ele. Sua camiseta está amassada e há um corte no supercílio, além de
hematomas pelo rosto. Tenho certeza de que se eu passar em frente a um espelho agora, verei
resultados parecidos em mim.

Seus olhos encontram os meus e ele não diz nada.

Nossa troca silenciosa de olhares significa apenas uma coisa: nosso pai nos fará comer o
pão que o diabo amassou.

E nós tememos por esse momento.


12

Olho o vestido vermelho dentro da caixa, sem reação. Quando Liam falou que eu deveria
estar preparada para nos assumirmos publicamente, não imaginava que ele tinha planejado cada
detalhe.

O vestido ficava no meio termo entre o vulgar e o elegante. Não é nada discreto, mas ao
mesmo tempo não chega a ser tão ousado a ponto de me envergonhar. As costas são desnudas, e
há um par de acessórios em ouro: um colar e bracelete. Um bilhete está cuidadosamente
colocado dentro da caixa. Solto um suspiro e começo a lê-lo.

Use com os cabelos soltos.


Te buscarei às oito.

Olho o verso, certificando-me de que não há mais nada.

Sério? Só isso? Que ótimo.

Ignorando todos meus instintos que gritam que entrar nessa é uma péssima ideia, foco no
fato de que é minha chance de seguir com a carreira dos sonhos.

Depois do banho, aplico o batom vermelho e faço um traçado dourado nos olhos
oblíquos, destacando seu formato. Ao me observar no espelho, tenho uma sensação inquietante.
Meu cabelo está tão longo que me assusta. O rabo de cavalo escondia o comprimento, agora,
porém, os fios roçam no fim das minhas costas e me sinto esquisita.

É quase como olhar para um retrato de minha mãe.

Ainda bem que papai saiu, ou pensaria que está sendo assombrado por fantasmas do
passado.

Quando estou quase desistindo da ideia estúpida de fazer um acordo com o diabo, recebo
uma mensagem de um número desconhecido.

Número desconhecido: desça imediatamente.

Número desconhecido: há uma Limousine te esperando.

Ignoro a forma como ele conseguiu meu contato e o nervosismo me toma, porque não
pensei em como sairia. Geralmente, seguranças ficam dispostos em frente aos portões. Receosa,
saio de casa e caminho pelo pátio até que um dos capangas do meu pai me barre.

— O sr. Ogawa não nos deu permissão para que saísse durante a noite, senhorita Phoenix
— um deles diz, rígido.

— Que estranho. — Começo meu teatro. — Ele quem pediu para que eu comparecesse à
festa de um de seus parceiros de negócios.

— Não recebemos nenhuma informação acerca disso, senhorita Phoenix. Pode tentar
conseguir uma confirmação do sr. Ogawa?

Solto um suspiro dramático.

— Sabe, meu pai odeia que eu me atrase para os eventos. Além do mais, ele vai ficar
chateado quando souber que vocês não acreditam no que digo. — Arqueio uma das sobrancelhas.

Eles trocam um olhar cauteloso entre si.

— Tudo bem, senhorita Phoenix. Apenas mantenha a conversa entre nós.

Sorrio, vitoriosa.

— Claro.

Então, eles abrem os portões e deixam com que eu passe. A Limousine está estacionada a
alguns metros de distância e tenho que caminhar para alcançá-la. Assim que abro a porta, caio
para dentro, dando de cara com Liam.

Quase tomo um susto. Ele está sentado bem à minha frente, as mãos ocupadas
embaralhando cartas. O loiro veste um smoking que evidencia seus músculos. Os olhos azuis
dele começam a análise pelo meu rosto, então descem para meu pescoço que exibe o colar de
ouro e as pernas desnudas que parecem mais longas que o habitual.

O olhar dele é do tipo que deixa um rastro em você. Me sinto pelada, marcada e exposta.
Tenho vontade de me cobrir subitamente, no entanto, apenas jogo um pouco de cabelo para trás
dos ombros e cruzo as pernas.

— Vai ficar em silêncio? — murmuro, tentando não demonstrar desconforto, apenas


tédio.

Liam volta a misturar o baralho de cartas, baixando o olhar.


— Não tenho muito a dizer. Apenas quero que você seja o evento da noite.

Franzo o cenho.

— Você nem disse para onde estamos indo — falo, quando percebo que não sei desse
detalhe super importante.

— Vai saber quando estivermos lá.

— Que ótimo — resmungo, de mau humor.

Não sei porque Liam sempre tem que complicar as coisas. Acho que nunca irei confiar
nele, nem mesmo durante nosso acordo. Me remexo incomodada com a possibilidade de ele me
passar a perna e digo:

— Que garantia eu tenho?

— Seja específica — fala, com o tom de voz monótono.

— Como vou saber se vai cumprir sua parte do trato?

Liam deixa as cartas de lado e alcança o minibar da Limousine, enchendo um copo do


que parece conhaque. Depois de um gole, ele me olha brevemente.

— Tem que me dizer o que deseja e será seu. É simples.

— Eu quero que você financie um projeto pessoal — digo, sem dar detalhes.

Não quero que ele saiba que desejo ter minha própria galeria de arte, onde as pessoas
poderão conhecer meu trabalho. Meu pai jamais me daria o dinheiro para isso, e o acordo com o
Liam é a oportunidade perfeita para que eu saia dessa redoma de vidro. Tudo que tenho, é o que
ele me permite ter.

Não quero que ele e nem ninguém tenha esse tipo de poder sobre mim.

— Então, quer dinheiro — Liam conclui, e, se acha estranho, não diz nada.

— É. — Sinto o rosto arder. Dizendo dessa forma, parece até esquisito.

O olhar dele é cheio de julgamento e ironia.

Uma garota rica como você…

Quase posso ler seus pensamentos.

Desvio o olhar para a janela, enquanto evito seu escrutínio de curiosidade. Não demora
muito para que cheguemos ao coração de Tóquio, Shibuya. Clubes noturnos estão lotados,
gerando mais trânsito, e pessoas esperam do lado de fora para entrar. Achei que seguiríamos em
frente, mas a Limousine estacionou no meio da rua.

— Vamos descer — anuncia, sem espaço para contestações.


Desço do automóvel, com vontade de esganar Liam. Ele não me espera. Anda à frente
como se nem me conhecesse e tenho que acelerar o passo para alcançá-lo até a calçada. Quase
tropeço com os saltos, mas consigo chegar perto o suficiente para puxá-lo por uma das mangas
do terno.

Ele olha sobre o ombro como se eu fosse patética.

— Achei que estivesse me acompanhando.

Puxo sua manga com mais força. Não me importo se estou amarrotando o tecido.

— Se continuar agindo feito um babaca, vou embora e deixá-lo aqui. Não me importa o
trato. Pode enfiá-lo no…

— É o suficiente. — Me interrompe antes que eu consiga dizer um palavrão. Uma de


suas mãos deslizam por meu ombro, depois, o dedo indicador e o médio pressionam a linha da
coluna até chegarem perigosamente no limite do vestido na base das costas.

Estremeço. Calafrios se alastram por todo meu corpo.

O que ele está fazendo?

Olho para Liam com os olhos confusos.

— Está bom agora? — Ele se aproxima até que as laterais dos nossos corpos se toquem.
Meu seio direito roça no peitoral dele e meu coração começa a bater tão forte que chega a ser
constrangedor.

Não tenho tempo para responder, porque no próximo momento estamos em frente à uma
porta de metal e um segurança. A fachada do lugar passa despercebida em meio as outras, com
tijolos gastos e o letreiro falhando.

Antes que eu possa fazer perguntas, Liam informa seu nome ao homem e ele nos dá
passagem.

— Onde estamos? — indago, enquanto o loiro ainda me guia por um corredor estreito e
escuro.

— Espere e vai descobrir.

Rolo os olhos. Mais uma de suas respostas enigmáticas.

Atravessamos uma cortina vermelha e fico boquiaberta. O tilintar de fichas de jogos e


conversas baixas paira no ar. À minha esquerda, há mesas de blackjack, enquanto do lado
oposto, roletas giram em um ritmo hipnotizante. Há apenas homens de terno aqui. Homens
poderosos. Liam nos guia até um bar adornado com espelhos, onde pede dois drinks.

— O que estamos fazendo aqui? — questiono, confusa. — Isso não é ilegal?

— De certa forma. — Seus olhos azuis esquadrinham meu rosto sobre a borda do copo.
— Está com medo?

Meu coração bate forte, mas eu nego com a cabeça.

— Mentirosa. Dá para ver que é covarde. — Ele coloca o copo no balcão e se aproxima
até que eu tenha que erguer o rosto para encará-lo por conta da nossa diferença de altura.

Seu cheiro me desconcerta, mas tento me prender em outras sensações.

— O verdadeiro poder não vem de quem você pensa. Elas são só uma parte de tudo. Seu
pai é considerado poderoso.Talvez o mais influente na mídia no Japão. Mas, aqui, há pessoas que
não precisam aparecer para fazer grandes coisas.

Engulo em seco. Aqui está. A parte sombria de Liam que estive procurando para que
pudesse, enfim, puni-lo. Fico tentada a usar todas essas novas informações que tenho contra ele,
mas não sei mais onde estou me metendo.

— Você é podre. — As palavras escapam de minha boca antes que eu possa contê-las.

— Rotule como quiser. — Dá de ombros, os olhos sérios como sempre. — Agora se


comporte e faça o que pedi. — Há uma pausa enquanto Liam analisa o salão. — Está vendo
aquele homem? Ele se chama Ryo.

Sigo sua linha de olhar. Há um homem acendendo um cigarro, afastado dos jogos.

— Sim — murmuro. — O que tem?

— Ele é minha maior ameaça no momento. Está tentando sabotar meus fornecedores.

Arqueio as sobrancelhas. Achei que Liam fosse me apresentar para seus parceiros de
negócios em algum evento requintado, não me trazer a um submundo com seus adversários.

— E em que lugar eu me encaixo nisso tudo?

— Quero que descubra se ele vai trapacear.

Quase engasgo com meu próprio ar. Olho para Diamond para ver se ele fala sério e
começo a hiperventilar quando percebo a expressão determinada em seu rosto. Uma das
sobrancelhas loiras se arqueiam em minha direção.

— Não se desespere. Não terá que interagir diretamente com ele. Quero que fale com o
Sora.

— Quem é Sora?

— É o assistente de Ryo. Mal remunerado. Dois casamentos fracassados e trai a nova


esposa toda sexta-feira. — Fico em silêncio, assimilando as informações mesmo que queira
perguntá-lo como sabe disso tudo. —Tenho certeza de que depois de dois drinks, vai te dizer o
que quero saber.
— Você quer que eu o seduza? — questiono, incrédula.

— Não. Até porque, você é minha agora. Mesmo que seja uma farsa. — Ele me olha tão
intensamente que estremeço. — Apenas deixe ele achar que tem chances. Dentro dos limites, é
claro — acrescenta, com tom de voz baixo.

— O que devo extrair?

— Dê um jeito de descobrir se Ryo vai apostar sujo hoje. Pretendo desafiá-lo.

Não penso muito quando Diamond sinaliza para o homem sentado do outro lado do bar.
Sora usa um chapéu antiquado, que destoa do ambiente. O rapaz parece interessado na garçonete
de pernas longas que serve os drinks.

Me aproximo, perto o suficiente para que ele note minha presença. Seus olhos me
inspecionam quando me debruço no balcão e peço um martini. Jogo o cabelo sobre o ombro e
viro parcialmente em sua direção. Escondo a careta quando ele me analisa de cima a baixo e diz:

— É por minha conta.


13

— Ela não é mais a mesma há um tempo, sabe? Fica reclamando de tudo. Coisas fúteis
como, “Sora, abaixe a tampa da privada depois que usar o banheiro…” — Nessa hora, ele faz
uma voz feminina para se referir à esposa. A imitação se torna mais patética pelo fato de ele estar
bêbado. Estou com pena da mulher que teve a falta de sorte de se casar com esse cara.

Forço um sorriso fraco, mas quero sair correndo daqui. Para bem longe de seus desabafos
idiotas. Ele não percebe que é um marido de merda e por isso está no terceiro casamento, que
provavelmente não vai durar muito tempo.

Meu martini já acabou faz alguns minutos e Sora está na sua quarta cerveja. Espero que
ele termine de entornar o último gole para perguntar:

— E o emprego? Não interfere na relação de vocês? Tipo, o seu chefe não é alguém
exigente?

Ao citá-lo, Sora muda a postura, como se temesse estar sendo observado por Ryo. Com o
tom de voz baixo, ele começa a despejar:

— Para falar a verdade, odeio o meu chefe. Recebo ordens o tempo inteiro para buscar
seu almoço, ou ficar sentado enquanto ele joga blackjack e me certificar de que as cartas certas…
— Sora para de falar e limpa a garganta, olhando para baixo. — Preciso ir ao banheiro.

Droga.

O homem se levanta rápido e some do meu campo de vista.

Olho ao redor em busca de Liam. Ele está sentado em uma cabine privativa. Sofás de
couro adornam o ambiente majestoso e bebidas caras estão espalhadas pelas mesas. O olhar do
loiro se fixa em mim, mas, ao seu lado, há duas garotas de vestido preto.

Ele traga o charuto, depois solta a fumaça, que espirala no ar, criando uma cortina de
fumaça em seu rosto.

Me levanto e começo a andar em sua direção até que esteja parada em frente à mesa.
Olho para as mulheres e para Liam. Ele sinaliza com os dedos e, num passe de mágica, elas
desaparecem. Não sei o motivo, mas estou com raiva.

— Então quer dizer que você se diverte enquanto me manda extrair informações?

— Receio que esteja com ciúmes — fala, um brilho de diversão e sadismo presente em
seu olhar.

Solto um riso sem qualquer traço de humor e me curvo sobre a mesa até que esteja
próxima dele. Seus olhos não deixam os meus nem por nenhum momento, enquanto começo a
dizer:

— Me faça parecer a namorada boba e vou te transformar no empresário mais famoso de


Tóquio por ter chifres.

Algo lampeja em suas íris, mas não sei bem identificar o que é. Espero que ele retruque,
contudo, o silêncio preenche o local. Liam aponta para uma nova mesa sendo organizada no
meio do salão. É maior que as outras e está posicionada estrategicamente sob uma iluminação
precisa.

— O próximo jogo é o que vou entrar. — Desliza algumas notas em minha direção
enquanto sustenta o charuto entre os dentes. — Pode apostar em mim, contra mim, ou tentar a
sorte em uma das máquinas de caça-níquel.

Arqueio as sobrancelhas, desconfiada.

— Vai me dar dinheiro do nada?

Liam me ignora. Já que o dinheiro está parado na mesa, decido pegar as notas e as
colocar dentro da bolsa. Diamond termina o charuto, amassa a ponta no cinzeiro que parece ser
de prata e o apaga.

— O que Sora te disse?

— Nada muito interessante. Ele só desabafou sobre o casamento falido e que Ryo só faz
com que ele se certifique das cartas certas. Depois disso, ele se retraiu e sumiu, como se tivesse
dito demais.

— É o suficiente — Liam diz, em forma de ultimato e uma clara dispensa.

Ele se levanta do sofá e ajeita o terno antes de começar a andar para longe. Sem saber o
que fazer, o sigo. As pessoas já estão aglomeradas em volta da mesa de blackjack. Liam senta em
uma das poltronas. Há quatro no total.
Ryo ocupa uma, uma mulher deslumbrante senta-se em outra e um homem careca e com
ombros largos fica com a que sobra. Não sei o motivo das pessoas quererem tanto assistir ao
jogo.

A mesa está iluminada com luzes suaves que destacam as fichas coloridas empilhadas na
frente de cada jogador.

Nunca joguei blackjack, mas meu pai costumava jogar com alguns de seus sócios
conforme eu crescia. Observei o suficiente para saber que o dealer é o homem careca, que
distribui cartas e o restante das funcionalidades.

Foco meus olhos em Diamond. Ele já recebeu as cartas e mantém o olhar inexpressivo
em sua mão. Se é uma mão boa ou não, as pessoas jamais saberiam. Se tem algo que ele sabe
fazer com maestria, é esconder todas suas emoções e empurrá-las para um poço profundo, onde
ninguém, nem mesmo eu com minhas medidas desesperadas, consegue acessar.

Do ângulo em que estamos assistindo, não conseguimos ver as cartas de nenhum deles.
Olho ao redor, em busca de Sora, mas não o identifico em meio a pequena multidão.

Volto-me para frente e observo quando as apostas começam a se acumular no centro da


mesa. O som metálico das fichas tilintam no tampo de madeira, criando uma tensão no ar.

Lembro do que Liam havia dito no primeiro dia em que nos conhecemos, além do fato de
que Ryo está tentando sabotar seus fornecedores.

As ameaças não permanecem no meu caminho por muito tempo.

O que quer que ele tenha planejando nessa mesa de blackjack não é à toa. Eu deveria
imaginar que ele já tinha um plano antes mesmo de virmos até aqui.

Ryo leva a primeira rodada, exibindo seus pares de cartas.

A nova rodada inicia. O dealer e a mulher revelam suas mãos.

Olho para Liam. Um dos cantos de sua boca se ergue para cima, atraindo a atenção do
restante dos jogadores. Não é bem um sorriso. É sombrio, frio e impessoal.

Não sou a única a perceber, todos começam a observá-lo.

— Que tal tornarmos isso interessante? — Ele quebra o silêncio tenso e se recosta contra
a poltrona. — Aposto minha empresa contra a de Ryo.

Uma explosão de murmúrios corta o ar e ninguém esconde a surpresa. Um músculo tenso


na mandíbula de Ryo se move e ele estuda suas cartas.

— Admiro sua coragem. — Há uma pausa que me deixa sem ar antes que ele tome sua
decisão. — Minha empresa está na aposta.

Começo a ficar nervosa. Quero questionar Liam que droga ele pensa que está fazendo ao
arriscar sua empresa em um cassino, no entanto, opto por permanecer em silêncio.
Ryo vira suas cartas, confiante.

Todos suspiraram ao verem que ele tem um par de setes.

Liam completa com um Ás e um Rei.

Ao longo da rodada, a tensão no ar é palpável, exceto pela calma e indiferença no rosto


de Diamond. Ryo não pede mais cartas e Liam é recompensado com um Valete.

Meu coração começa a bater mais rápido.

O dealer revela suas cartas, que somam quinze pontos. Todos nós assistimos com
expectativa enquanto as cartas finais são reveladas.

Liam soma vinte pontos e Ryo recebeu uma carta indesejada, que finalizou sua soma em
apenas quinze.

O silêncio paira no ar, interrompido apenas pelo rompante de raiva quando ele se levanta
e dá um murro na mesa, fazendo as fichas chacoalharem.

— Você sempre soube que venceria — acusa, com o dedo apontado na direção de Liam,
que mal esboça reação, apenas o ignora como se fosse uma mosca chata zumbindo ao seu redor.

Diamond levanta, fita brevemente Ryo e diz:

— Praemonitus, praemunitus.

Aquele que é prevenido está preparado.

Latim. Lembro-me de ver essa frase em uma eletiva no ano passado. Diamond olha para
mim e sinaliza discretamente até a saída, enquanto deixa o caos e o choque para trás no cassino,
sem sequer lançar um olhar sobre o ombro.

Na Limousine, Liam permanece em silêncio, olhando para a paisagem na janela como se


não tivesse acabado de tomar a empresa de um de seus adversários. Ele solta um suspiro e vira o
rosto em minha direção com a expressão mais entediada do planeta.

— Pergunte.

— O quê? — balbucio, confusa.

— Já faz alguns minutos que você está mexendo na sua pulseira de um jeito inquietante,
e sua perna está balançando num ritmo que me irrita. Se está com dúvidas, fale.

Eu paro de mexer a perna e largo a pulseira.

— O que ele quis dizer quando falou que você sabia que ia vencer?
Isso me deixou inquieta desde que deixamos o cassino. Não consigo ignorar a raiva de
Ryo, nem a calma assustadora de Liam, muito menos sua frase em latim. Sei que algo aconteceu.
Algo que possa ter passado despercebido pelos outros, mas não por mim.

— Perspicaz de sua parte deduzir isso, senhorita Phoenix. — Faz uma pausa longa para
acender seu habitual charuto. Aperto o botão para baixar o vidro da janela quando a fumaça me
atinge. — Mas é simples, eu já sabia que ele trapaceava desde o início.

— Como?

— Há uma ante sala oculta no cassino posicionada bem em cima da mesa onde ele manda
seus capangas como Sora. Toda vez que Ryo sabe que não pode levar a rodada, ele não se
arrisca. Tem gente por todo o lado fazendo sinais para ele. O ajudando.

Fico chocada com a quantidade de informações, mas o que me impressiona é que Liam
tenha descoberto tudo sozinho.

— E você simplesmente presumiu?

Ele traga e solta a fumaça pela boca, os olhos azuis pálidos fixos em mim.

— Não. Eu me preparei. Observo pessoalmente os jogos de Ryo há semanas. Não é


difícil perceber o que acontece ao redor, Phoenix. Basta ter um pouco mais de malícia. Aposto
que você nem notou que a mulher na mesa era parceira de Ryo.

Abro a boca e fecho, sem dizer uma palavra, porque, de fato, não percebi. Meu foco era
Liam.

— E o Sora?

— Eu sempre soube o que ele fazia.

Solto um som com a boca, indignada.

— E por que me mandou para lá? Não disse que queria informações?

Liam semicerra os olhos em minha direção, como se eu não passasse de uma tola
ingênua.

— Queria testar sua capacidade de dedução. E, como previ, você é tão útil quanto uma
porta — diz, com desdém. Meu sangue ferve de raiva.

— Então você estava me testando — concluo, não gostando nenhum pouco disso. Cruzo
os braços sobre o peito.

— Se você vai ser minha namorada, mesmo que de mentira, é de se esperar que
acompanhe algumas coisas. Agora, ouça bem, Phoenix. Essas pessoas são astutas e poderosas.
Uma vez que você for vista ao meu lado publicamente, vai se tornar um alvo.

— O que você quer dizer com alvo?


— Exatamente o que quero dizer, um alvo.

— Do tipo que as pessoas tentam derrubar?

— Sim, e às vezes, mais do que isso. — Dá de ombros, terminando o charuto no


momento em que o carro para bem na frente dos portões de minha casa.

Antes que eu possa fazer mais perguntas, ele abre a porta do automóvel para que eu saia e
se despede:

— Boa noite, Phoenix.


PARTE II
“Brilhe intensamente como um diamante.”

— Diamonds, Rihanna.
14

antes
Meu pai ainda não chegou em casa, mas a tensão no meu corpo é o suficiente para que eu
sinta dor nos ombros devido à rigidez. Bastian e eu fazemos o possível para limpar a bagunça
antes que Hernan apareça. Até mesmo Brianna, que deveria estar dormindo, recolhe alguns
copos do chão.

— Podem subir e ir para a cama. — Bash quebra o silêncio e eu o encaro. Ele está
segurando uma vassoura, os olhos cansados e uma expressão de culpa preenche sua feição. —
Isso não é da conta de vocês. Fui eu quem causei tudo isso. É minha responsabilidade.

— É, mas nossos pais devem chegar amanhã cedo e sozinho você não vai conseguir
terminar de limpar toda essa bagunça — digo, realista.

Por mais que Bastian tenha feito besteira e meu rosto esteja doendo pelo soco que recebi,
ele continua sendo meu irmão. É assim que as coisas funcionam quando se tem irmãos. Uma
hora vocês estão rolando no chão, trocando socos e pontapés, e na outra, é como se nada tivesse
acontecido.

Não quero manter um clima ruim entre a gente. A família já lida com muitos problemas e
nossos pais não agem como tal. Hernan parece nosso chefe. Não nos leva a jogos de beisebol,
mas prefere nos ensinar como administrar negócios; e nossa mãe, Donna, está ocupada demais
retocando seus cabelos e unhas nos salões durante a semana.

Desde que meu pai começou a sair com outras mulheres, ela criou uma obsessão por sua
aparência, o que é triste. Não acho que tenha algo de errado com minha mãe, e sim com o
Hernan. Ele devia ser fiel à sua esposa, mas não é. Isso respinga em todos nós.

Principalmente em Brianna.

Olho para minha irmã mais nova. Ela está quase dormindo em pé. Sirvo de amparo
quando ela cambaleia, e seu corpo bate contra meu peito. Seguro-a nos braços e aviso a Bastian
que irei levá-la para a cama.

Bree não dorme sem abajur e seu ursinho de pelúcia predileto, então me certifico de que
os dois itens estejam por perto. Depois de cobri-la com o cobertor cor-de-rosa, saio sem fazer
muito barulho.

Bash está sentado no sofá, com os cotovelos apoiados nas pernas, enquanto olha para
baixo. A bagunça na sala sumiu, e agora nos resta checar o restante da casa.

— Liam, escuta… — começa a dizer quando me sento ao seu lado. — Eu devia ser o
irmão mais velho. Devia proteger você e a Bree. — Nesta hora, seus olhos se direcionam para
mim. — Me desculpa. Eu mereci o soco, não devia ter retribuído.

— Tudo bem, mas podemos falar sobre isso depois. Temos que terminar logo.

Nós voltamos com a missão de deixar a casa em ordem. Bastian e eu nos revezamos. Ele
fica com os andares de baixo e eu, os de cima. Não sei em que momento adormeço, mas acordo
com uma mão chacoalhando meu ombro.

— Liam, acorda, nossos pais chegaram.

A frase me desperta. Abro os olhos e sou cegado pela claridade que invade as janelas, me
fazendo piscar algumas vezes. Percebo que adormeci em cima da privada da suíte dos meus pais,
provavelmente enquanto esfregava uma mancha esquisita no porcelanato da pia.

Me levanto depressa e finalizo os detalhes. Bastian parece tão desnorteado quanto eu. As
concussões em seu rosto começam a se intensificar, e não preciso olhar no espelho para saber
que estou do mesmo jeito.

Trocamos um olhar silencioso e seguimos para o andar debaixo. Assim que alcançamos o
final da escadaria, é possível ver Hernan parado no meio da sala. Pelo olhar intimidador que
deposita em nós, sei que estamos encrencados. Engulo em seco e espero, assim como Bastian.

— Onde estão os seguranças e o restante dos empregados? — pergunta, pausadamente,


com o olhar sério.

— Eu os dispensei — Bastian diz depois de um longo período de silêncio.

— Você os dispensou.

Não é uma pergunta. Meu pai está digerindo as palavras. Reafirmando.

— Por quê? — Ele se senta na poltrona. Sua calma é assustadora. Olho ao redor em
busca de minha mãe, mas ela não está aqui.

— Eu convidei alguns amigos para cá — Bastian admite. — Queria privacidade.

Hernan semicerra os olhos na direção do meu irmão.

— Convidou seus amigos para minha casa enquanto eu não estava e dispensou os
seguranças e a governanta, expondo não apenas a sua segurança, mas a da nossa propriedade e
seus dois irmãos?

Bastian está tão tenso que posso ver os músculos de suas costas contraídos.

— Sim. Foi um deslize estúpido.

— Não foi apenas um deslize. Foi uma falha, uma anomalia. Você entende que suas
ações têm consequências? — Hernan indaga, furioso.

Bastian mal respira.

— Sim, senhor.

— Entende que as consequências afetarão não somente a você, mas seus irmãos também?

Nessa hora, ele trava. Bastian cerra o punho discretamente atrás das costas, e eu fico
ainda mais tenso, se é que é possível.

— Não, não entendo. Não puna Liam e Brianna. Eu irei assumir as responsabilidades.

— E você vai. Toda vez que errar, você vai estar errando com seus irmãos. Está
estendido? E a próxima vez que se envolverem em uma briga, certifiquem-se de esconder os
hematomas — completa com desgosto.

Bastian não retruca mais, vez que tem ciência que é uma batalha perdida. Nada que ele
faça ou diga fará com que meu pai reconsidere sobre a decisão.

Ele vai nos punir porque sabe que é o único jeito de atingir Bastian.

Porque sabe que ele vai sofrer mais dessa forma.


15

— Você terminou com Ren? — é a primeira coisa que meu pai me pergunta quando me
junto a ele na mesa, para o café da manhã.

Enfio um pedaço de pão na boca, só para ganhar tempo de elaborar uma resposta. Não
adianta muito, porque não consigo pensar em nada. Limpo a garganta, escolhendo as palavras
com cuidado.

— É, nós terminamos, em consenso — minto.

Ren não tomou nenhuma iniciativa para nossa relação chegar ao fim, mas não é como se
tivesse se esforçado para salvá-la. Suas atitudes contribuíram para o desfecho. Talvez se ele fosse
um pouco mais compreensivo…

— E isso não irá influenciar em nada na faculdade, certo?

Sempre desejei ter mais tempo com meu pai, no entanto, isso mudou quando notei que a
presença dele em casa é sinônimo de tortura. Por isso, acabo preferindo que ele saia e se tranque
em sua empresa. Me sinto péssima por pensar nisso, mas não consigo lidar com toda a pressão e
expectativa que ele coloca sobre mim. Estou sufocando há um bom tempo.

— Pai, para falar a verdade, eu não quero ir para Harvard — despejo de uma vez.

— Já conversamos sobre isso, Phoenix. — Ele me ignora e foca no jornal aberto sobre a
mesa.

— Eu não vou para Harvard — repito. Não pretendo voltar atrás da minha decisão, e já
que comecei a trilhar esse caminho perigoso, irei até o fim.

— Você não está pensando com clareza, querida. Conversamos sobre isso durante todos
os últimos três anos do colégio. Já preparei tudo para sua ida no final do ano.

— Pai. — Sinto a frustração dominar cada célula do meu corpo. — Isso era negociável,
mas não é mais. Eu não sou mais uma adolescente. Sou uma mulher agora. Não quero ser
influenciada pelos seus pensamentos, quero escolher meu próprio caminho.

— Por Deus, o que há de errado com você? Se está fazendo isso para se rebelar por falta
de atenção, não vai funcionar. Maldita hora em que sua mãe te deixou. Sempre soube que isso te
afetaria, já que tenho outras ocupações mais importantes que lidar com seu drama.

Fico em completo silêncio e choque, sentindo o peso de suas palavras. Maldita hora em
que sua mãe te deixou. Meu pai nunca cita minha mãe, muito menos conversa sobre para onde
ela foi. Agora ele está aqui, dizendo com todas as letras que ela me deixou.

Dói.

Um nó aperta minha garganta e consigo sair do cômodo antes que ele perceba o quanto
me machucou. As lágrimas começam a descer quando abro a porta do quarto. Me certifico de
trancá-la, por mais que duvide que meu pai venha atrás de mim.

Meu celular bipa em cima da cômoda, atraindo minha atenção. Olho o visor enquanto
leio as mensagens que acabo de receber.

Número desconhecido: almoço hoje.

Número desconhecido: esteja pronta ao meio dia.

Largo o aparelho e solto um suspiro, enxugando as lágrimas. O som do carro de meu pai
ecoa, e olho pela janela, avistando o automóvel deixar a propriedade. Como de costume, ele evita
qualquer situação que envolva sentimentos.

— Não estou de bom humor. É melhor não me provocar — aviso para Liam assim que
desço do automóvel de luxo que ele enviou para me buscar.

Diamond está parado no meio da calçada, em frente a um dos restaurantes mais caros de
Tóquio. Dois seguranças o rodeiam. Ele arqueia a sobrancelha esquerda sutilmente em minha
direção, sem dizer uma única palavra. Como sempre, veste um de seus ternos elegantes e caros.

Em dias normais, eu prestaria atenção no ambiente e na decoração, mas apenas me sento


na cadeira que o loiro puxa para mim, sem interesse nenhum no restaurante. Sei que o fruto de
seu cavalheirismo repentino vem de interesses próprios.

— Não vai me perguntar o que acho do restaurante ou qual minha comida preferida?
O comentário ácido sai antes que eu possa contê-lo. Não sei o que tem de errado comigo
hoje, mas quero colocar toda raiva que sinto para fora. Se pudesse, iria até o Hide & Art neste
momento.

— Receio que esteja chateada com assuntos que não me convém e nem são de meu
interesse — rebate.

Franzo o cenho, enquanto analiso sua expressão fria.

— Você é sempre tão empático?

Liam solta um suspiro dramático, recostando-se contra sua cadeira.

— Você não quer ser confortada, Phoenix. Quer apenas um alvo fácil para descontar sua
raiva. E é aí que está. Não sou um alvo. Você não pode me atingir. Isso deve irritá-la ainda mais.

— Está errado — murmuro, mal-humorada, não dando o braço a torcer.

Como ele consegue me ler tão bem quando sequer posso imaginar o que se passa pela sua
cabeça? Meus olhos se fixam em Liam. Observo a forma como ele está sentado, a postura ereta,
com uma de suas mãos pousada sobre a mesa.

A mão dele é bonita. Grande, com unhas quadradas e simétricas. O Rolex brilha no seu
pulso. Volto a encará-lo, sem me importar se estou sendo indiscreta. A presença dele é o tipo que
domina o ambiente todo. Cabelos loiros, os ombros largos, peitoral imponente e olhos azuis
penetrantes.

Não consigo decifrá-lo. Não consigo saber o que está pensando no momento. Ele é como
uma tela em branco.

— Gosta do que observa? — Diamond quebra o silêncio com sarcasmo.

— Não enche.

— Posso liberar o piano para você.

A sugestão inesperada me deixa surpresa. Olho para o canto do restaurante, onde um


pianista talentoso trabalha. Tocar algum instrumento ajuda quando estou com raiva, mas fico
hesitante.

— O que ganho com isso?

— Nada. Só acho que te fará bem. Você é ruim em disfarçar emoções, o que é um
problema para mim. Quando tirarem fotos nossas para a mídia, minha pretensão é que pareça
apaixonada.

— Bem, isso é impossível, já que você me faz infeliz.

Vejo uma sombra de sorriso atravessar seu rosto, mas é tão rápido que acho que estou
alucinando.
— Posso dizer o mesmo. A diferença é que pelo menos sei mascarar bem.

O ignoro.

— Arranje o piano. — É tudo o que digo.

Liam acena para um garçom e sussurra algumas palavras no ouvido do rapaz. Num
instante, o piano está livre. Ajusto a alça do meu vestido preto, levanto-me e caminho até o
instrumento. É um dos pianos de cauda mais bonitos que já vi. Coloco meus dedos sobre as
teclas macias de marfim e começo a tocar.

Diamond tem razão. Toda a tensão que venho carregando desde cedo começa a se
dissipar do meu corpo. Me sinto leve, flutuando nas nuvens, enquanto derramo as emoções no
instrumento.

Quando termino, uma salva de palmas ressoa ao meu redor.

Meu rosto esquenta, pois não notei quando as pessoas pararam de comer para prestar
atenção na minha música. Quando me junto a Liam outra vez, há polvo nos pratos e uma garrafa
sofisticada de vinho tinto sobre a mesa.

— Espero que esteja melhor. — Ele beberica o vinho.

— Não precisa ficar bancando o namorado preocupado.

— Prefere que eu volte a ser indiferente? — questiona, fazendo-me hesitar enquanto


mastigo um pedaço de polvo.

Definitivamente, não sei qual é a de Liam. Ao mesmo tempo em que espero desvendá-lo,
não quero que ele force algo que não existe. Como agora, ele finge se importar. Isso me
incomoda, por algum motivo, por mais que tudo não passe de uma farsa.

Permaneço em silêncio pelos próximos segundos enquanto como, e Diamond também


não diz nada. Quando a conta chega, ele paga e se levanta, oferecendo-me seu braço.

Aceito, a contragosto.

— Melhore a expressão — murmura.

Seu rosto está mais relaxado, mas, ainda assim, completamente sério.

— Melhore você a sua expressão. Se forçar mais, seu rosto irá partir ao meio.

Entramos no elevador e a máscara de Diamond cai. Sua feição enrijece como uma pedra.

— Eu vou te beijar — ele avisa, repentinamente, conforme o elevador desce.

Engasgo com meu próprio ar. Acho que estou ouvindo coisas. Olho para o loiro como se
ele tivesse enlouquecido, mas não. Ele permanece impassível.

— Vou te beijar assim que sairmos na rua, esteja preparada — repete.


— Não! — contesto.

— Sim.

— Não — devolvo outra vez, entredentes, mas Liam apenas me ignora. — Não quero
beijar você.

— E quem disse que eu quero te beijar? — Arqueia as sobrancelhas. — Acredite em


mim, Phoenix, eu preferiria passar os lábios em um cacto. Mas, aqui estamos nós, sendo
namorados de mentirinha.

— E eu preferiria comer um cacto a te beijar, babaca — murmuro de volta, com raiva.

Meu coração dispara assim que as portas do elevador se abrem. Liam e eu atravessamos o
hall e saímos do edifício. Estou praticamente sendo arrastada por ele, que enganchou o braço ao
redor do meu. Ao pisarmos na calçada, avisto um fotógrafo do outro lado da rua e entendo a
razão de Diamond querer me beijar.

Tento relaxar a tensão nos ombros, mas é difícil. Meu corpo inteiro está rígido. Liam
coloca a mão gelada na parte de trás do meu pescoço, fazendo-me estremecer. Então, ele me
beija. Não é exatamente como eu tinha imaginado. É um beijo que dura segundos, sem língua.
Apenas sinto a maciez de sua boca.

Alguns momentos depois ele se afasta, como se tivesse gravado seu toque em mim. Por
alguma razão, minha boca arde e meu coração está quase explodindo no peito.

— Ainda não terminamos — diz, sem dar sinais do que achou do nosso breve beijo. —
Vamos.

Com isso, ele começa a me arrastar pelas ruas. Não sei para onde estamos indo e nem
questiono, já que Liam gosta de manter o mistério.Não demora muito e chegamos até a Torre de
Tóquio, uma atração turística que se ergue imponente no céu urbano. Construída numa altura que
poderia muito bem desafiar a gravidade, a torre se destaca.

O tempo todo, casais vêm até aqui para visitarem a Ponte do Amor, onde cadeados são
pendurados juntos à promessas. Olho confusa para o loiro, questionando-o:

— Por que estamos aqui?

— Você pergunta demais. É óbvio a razão de estarmos aqui. Vamos fazer outra cena.

Ao nos aproximarmos da ponte, Liam tira um cadeado do bolso com as iniciais L e P


gravadas nele. Solto um suspiro conforme ele começa seu teatro de namorado romântico. Com a
mão livre, ele tira um pouco de cabelo do meu rosto, prendendo a mecha atrás da orelha.

— Finja que estou recitando a melhor declaração de amor de todos os tempos — fala, e
posso identificar a ironia no seu tom de voz.

— Não sou atriz.


— Dê um jeito, Phoenix.

Solto um suspiro e me inclino em sua direção, como se estivesse apaixonada. Sei que
provavelmente há alguém registrando esse momento com uma câmera, então seguro a mão de
Liam. Ele parece tão surpreso com o contato quanto eu. Apenas ajo no automático. Juntos, nós
penduramos o cadeado em um espaço livre das grades da ponte.

Quando acaba, os dedos de Diamond continuam roçando os meus e nossos olhares se


encontram.

É exatamente como naquelas cenas clichês. O tempo parece passar devagar, as pessoas
parecem sumir, e tudo o que posso ver é seu rosto enquanto meu corpo recebe uma descarga
elétrica.

O momento passa, no entanto, quando Diamond recua. Sem dizer uma palavra,
começamos a ir embora, para longe da ponte e da nossa promessa falsa de amor, em forma de
cadeado.

Liam abre a porta da Limousine que acabou de estacionar no meio-fio, e eu entro. Sem
dizer uma única palavra ou expressar qualquer tipo de reação, sou levada para casa. Queria saber
o que ele achou de tudo isso. Desde o restaurante até agora, mas, como sempre, ele não me dá
qualquer indício de que sente, ao menos, um arrepio quando estou por perto.

— Até mais, Phoenix — fala, quando estacionamos em frente à propriedade Ogawa.

Em silêncio, desço.

Enquanto observo o automóvel se distanciar, passo os dedos sobre os lábios, intrigada.

Por mais que esse namoro falso seja uma ideia completamente insana, estaria mentindo se
dissesse que o beijo curto de Liam me deixou meio abalada e que seu cheiro não é inebriante.
Ignoro o alerta que dispara no fundo da minha mente e, finalmente, entro.
16

— Foi horrível. Frio, impessoal e… — Não encontro mais palavras e, também, Emi não
presta atenção enquanto analisa a foto em um site de notícias no notebook.
Estamos na nossa cafeteria preferida. Depois do beijo público em Liam, a foto começou a
circular por aí esta manhã. Já recebi três ligações de Ren, que fiz questão de ignorar. Me sinto
meio mal por isso. Porém, não é como se estivéssemos juntos. Não estamos. Não devo nada a
ele, então… por que me sinto como se tivesse o apunhalado?
— Não parece tão ruim na foto — murmura e vira a tela do notebook em minha direção.
Faço uma careta, porque ela está certa. Olhando assim, ninguém acreditaria na mentira
que acabei de contar para minha melhor amiga. Na fotografia, o aperto ao redor da minha cintura
parece firme e romântico, assim como a forma que Liam se inclina sobre mim, os olhos fechados
e nossas bocas seladas. Não quero admitir que foi bom, porque foi só um encostar de lábios
patético.
Começo a ler a matéria.
O grande empresário Liam Diamond teve o coração atingido por uma flecha chamada
Phoenix Ogawa. Tudo o que sabemos até o momento é que eles foram vistos juntos almoçando
no Empório, um dos restaurantes mais caros de Tóquio. As fãs de Liam não parecem contentes.
Após isso, passaram o restante da tarde romântica na Ponte do Amor! Parece que as coisas
estão sérias…
Paro de ler e fecho a tampa do notebook, arrancando um som de protesto da boca de Emi.
— Pra que todo esse mau humor?
— Por causa de uma farsa, provavelmente ganhei um monte de inimigas entre treze e
dezesseis anos. — Rolo os olhos, enquanto seguro o copo de café quente contra a palma da mão.
— Não quero ser alvo de fã-clubes do Liam.
Quando termino de dizer, uma garota passa ao lado da nossa mesa e deixa cair alguns
guardanapos sujos sobre nós. Sob seu braço, consigo identificar a revista dobrada com a matéria
referente a mim e Diamond. Fito Emi, apontando sobre o ombro com o polegar.
— Está vendo? É com esse tipo de coisa que terei que lidar no meu dia-a-dia!
Emi solta uma risada, sem se afetar, e começa a recolher os guardanapos. Faço o mesmo.
Logo a gerente se aproxima pedindo desculpas e nos ajuda com a bagunça. Quando ela se retira,
minha amiga semicerra os olhos em minha direção.
— Não pode ser tão horrível. Você vai ser levada a jantares caros, além do mais, vai
conseguir abrir sua própria galeria. Acho que é um preço pequeno a se pagar — minha amiga
fala.
Mordo o lábio inferior, ficando em silêncio, porque sei que ela tem razão. Muitas pessoas
se matam todos os dias para conseguirem alcançar seus sonhos. Minha galeria vai vir numa
bandeja de prata. Tudo que preciso fazer é fingir ser a namorada de um cara podre de rico. Ok,
Liam e eu não nos damos bem, e eu o empurraria de uma cobertura de vinte andares se pudesse,
mas e daí? É tudo em nome da arte.
Não pode ser tão horrível assim, né?
— Você tem razão. Acho que estou focando apenas no lado ruim da coisa.
De repente, sou interrompida por uma notificação que vibra no visor. O nome do meu pai
estampa a tela do aparelho.
Pai: precisamos conversar.
— Parece que as notícias correm por Tóquio — Emi cantarola. Dou outro gole no café,
começando a sentir um leve arrependimento.
Outra notificação chega.
Pai: venha para casa imediatamente.
Solto uma bufada de ar, afundando no assento. Emi me olha de um jeito que demonstra
solidariedade pela minha situação.
— Depois me liga, tá bom? Acho melhor você ir.
Ela está certa. Me despeço e peço um táxi para casa. Estou levando alguns mochis para
comer mais tarde. Assim que atravesso a porta da frente, meus tênis guincham no carpete, porque
eu estava esperando tudo, menos o que vejo. Meu pai está sentado na poltrona e Ren ocupa um
dos lados do sofá, enquanto Liam senta-se oposto. Meus olhos disparam entre as três figuras,
sem saber qual dos olhares devo sustentar.
O do meu pai diz reprovação, o de Ren mágoa e traição. E, por fim, há Liam sendo
apenas Liam, com o seu habitual ar de tédio e seriedade.
— Phoenix, sente-se. — Meu pai aponta para o sofá.
O único espaço disponível é entre Liam e Ren, e acho que eu preferiria pular de bungee
jump antes de me submeter a uma situação constrangedora dessas.
— O que significa tudo isso? — Cruzo os braços em frente ao peito e permaneço em pé.
— Eu liguei para seu pai — Ren despeja, surpreendendo-me.
O fito descrente. Nossos olhares se travam e vejo um lampejo de raiva brilhar em suas
íris, em meio a todo o mar de tristeza. A tensão na sala é palpável. Meu pai limpa a garganta,
atraindo a atenção para si.
— Ren me ligou e resolvi conversar pessoalmente com você e Liam. Ele achou coerente
participar da reunião.
— Reunião sobre o quê?
— O seu novo relacionamento — esclarece. Engulo o gemido de frustração que quer
escapar da garganta.
— Eu não tenho mais treze anos, pai! E você…. — Lanço um olhar fulminante para Ren.
— Não devia se meter mais na minha vida. Nós não somos um casal.
— Você acabou de conhecer esse cara, Phoe! Como pode namorá-lo tão rápido, logo
depois de terminarmos? Senhor Ogawa, acredito que Phoenix esteja sendo manipulada por
este…
Liam o interrompe com um bocejo alto.
— Que estupidez sem tamanho — fala, com calma. Tudo nele parece ser
meticulosamente calculado, como agora. — Não estou manipulando Phoenix. Tem coisas que
estão destinadas a ser. — Nessa hora, ele olha para mim. Identifico a ironia e a diversão sádica
em seu olhar. — Como lua e sol, yin e yang….
— Que besteira! — Ren explode, caindo na isca de Liam. — Você nem conhece a
Phoenix! Não sabe nada sobre ela, nem do que ela gosta.
— A cor favorita dela é vermelho, ela tem três pintas abaixo da orelha esquerda, uma
marca de nascença em formato de meia-lua no ombro. Quando está com raiva, seu pescoço cora.
Ela não sai sem o colar com pingente de trevo, nem se sente muito confortável perto de gente
babaca como você. Como neste momento.
Ren direciona seus orbes em minha direção. Estou tão tensa que me forço a relaxar os
ombros. Ele solta um suspiro brusco e permanece calado, mas todo seu rosto está vermelho.
— Confesso que fiquei surpreso com a notícia inesperada — meu pai volta a dizer. —
Mas Liam se mostrou alguém responsável com a empresa e nossa parceria. Acredito que a
relação de vocês será próspera.
Não sei por que fico espantada com essas palavras. É claro que meu pai amaria alguém
como Liam inserido em nossa família. E pela expressão presunçosa de Diamond, ele também
sabia que teria a bênção de Jim Ogawa desde o início.
Ren parece à beira de um colapso. Dá para ver o quanto ele se sente traído no momento.
Pedindo licença, ele deixa nossa casa e bate a porta com força, o que faz com que meu pai solte
um suspiro.
— Ele ainda é um garoto. Irá amadurecer. — Há uma pausa. — Aceita uma bebida,
Liam?
— É claro.
Olho para o loiro. Ele está todo relaxado no sofá, como se a casa o pertencesse. É a
postura de alguém que sempre foi atendido a vida toda e que consegue tudo o que quer.
Semicerro os olhos em sua direção e então ruborizo, lembrando-me de todos os detalhes que ele
descreveu para Ren. Coisas que achei que ele não desse a mínima, imperceptíveis até mesmo
para quem me conhece há algum tempo. No entanto, é de se esperar, já que é do tipo observador.
Sinto pena de Ren enquanto vejo Liam e meu pai se moverem para o escritório, onde
ficam os uísques especiais. Ele sempre teve a aprovação de Jim Ogawa. Considerado o
pretendente ideal, de uma família poderosa. Por mais que os pais de Ren tenham certa influência,
estão longe de chegarem aos pés de Diamond. Ele tem um império que se estende além do Japão.
Aqui há apenas uma pequena extensão do que ele possui, construído e ramificado em pouco
tempo.
Penso em ligar para ele, no entanto, paro assim que olho pela janela e o vejo no meio do
pátio, com as mãos na cintura e o olhar baixo.
Saio para a varanda. Ren permanece de costas para mim, mas se vira ao ouvir o clique da
porta se fechando. Ele passa o dorso da mão pelo rosto, e meu coração aperta quando percebo
que ele estava chorando. Finjo não notar e me aproximo até que esteja ao seu lado, ambos
contemplando a fonte no meio do pátio assim como ele.
— Não consigo entender, Phoenix. — Sua voz é baixa e triste.
Me recuso a olhar para ele, porque me sinto envergonhada.
— Ren, eu te amo. Mas não funcionamos há um tempo. Depois que saímos do colégio,
percebi que meus desejos eram reflexos do que você e o papai queriam para mim. Que eu era a
Phoenix que vocês esperavam que eu fosse. — Suspiro. — Eu nunca quis ir para Harvard,
apenas me convenci disso porque não queria decepcionar vocês dois.
Ele permanece em silêncio e eu continuo:
— Sei que, diferente de mim, você realmente sempre sonhou com essa faculdade. Eu não.
Eu sou artista, Ren. Eu quero ser eu mesma. Quero escolher meu próprio caminho.
— Entendo melhor agora — ele diz. Finalmente o encaro. — Você merece estar com
alguém que apoie os seus sonhos. Eu não percebi o quão babaca estava sendo, ou o quanto você
estava sofrendo ao fingir ser alguém que não é.
— Eu desejo boa sorte para você em Harvard. — Um sorriso triste pinta meus lábios, e
um nó sufoca a garganta.
Por muitos anos, Ren foi meu melhor amigo, meu confidente e porto-seguro em dias
ruins. Agora, iremos seguir caminhos diferentes. Só nos resta aceitar.
— E eu desejo boa sorte para você com as pinturas. Você sempre foi incrível, um talento
excepcional. Floresça, Phoenix. Faça com que o mundo todo conheça sua arte.
Eu sorrio de verdade. Vejo, enfim, o Ren por quem estive apaixonada durante anos.
— Você também. Massacre os babacas em Harvard. Não deixe que tirem notas mais altas
que a sua. Se forme com honras.
Ren ri, o rosto iluminando.
— Vou fazer isso. — Há uma pausa. — Me desculpe mesmo, Phoe. Por tudo. Espero que
Liam te faça feliz. Agora, preciso ir.
Ren me dá uma abraço cheio de nostalgia. Sussurro um “tchau” enquanto o observo se
afastar, parada no meio do pátio. Meu passado sai pelo portão, e o que me resta é apenas a
esperança de um futuro. Olho sobre o ombro, surpreendida ao ver Diamond parado na varanda,
segurando um copo de uísque.
O vento bagunça seus cabelos loiros, e os olhos dele brilham em minha direção. Não é o
tipo de brilho radiante, e sim sombrio. A promessa de que irá realizar todos meus desejos, mas
por um preço muito, muito alto.
No entanto, estou disposta a ir até o final para alcançar minha liberdade.
17

antes
A casa está envolta em silêncio enquanto completo a terceira série de cem flexões. Meus
antebraços tremem com todo o esforço que faço para subir. A exaustão se instala, e minha mente
falha primeiro que o corpo. Caio no chão, cerrando os dentes ao ouvir os passos do meu pai ao
meu redor. Ele analisa minha desgraça como se eu fosse um animal de circo. Um tipo de
espetáculo sádico.
Seu suspiro de desaprovação ressoa e encaro seus sapatos diante de mim. É tudo o que
consigo enxergar do meu campo de visão, deitado sobre o carpete gelado.
— Recomece — ordena, o tom de voz frio e indiferente. Se ver que estou no meu limite
não o comove, duvido muito que minhas palavras irão.
— Não consigo — digo, entre dentes, sem fôlego. — Não é o suficiente? Já não está
bom?
Fazer quinhentas flexões seguidas é loucura. Não dá para chegar a esse marco, no
entanto, meu pai não está interessado nos limites do corpo humano, apenas busca uma vingança
pessoal contra seus próprios filhos. Não ouso encarar o rosto dele e mantenho a cabeça baixa.
— Não está bom. Você não fez as quinhentas flexões no tempo sugerido, portanto, é
medíocre.
Travo a mandíbula instantaneamente. Mediocridade é a kriptonita dos Diamond. Não
existe e nunca existiu espaço para ser mediano nesta família. Ou você é acima da média, ou é
forçado a ser.
— Você tem três minutos para se levantar e completar as flexões — avisa, seus sapatos
se distanciando. Observo meu reflexo no espelho à minha frente. Meu cabelo está bagunçado, o
suor cobre a testa e camisa, além do rosto ruborizado. Estou no meu limite, contudo, me forço a
abrir as palmas contra o chão e tentar, em vão, me erguer.
Minha visão fica turva e volto a cair, ofegante. Arrisco olhar para meu pai. Ele sinaliza
para que o siga, abrindo a porta. Me ergo, ainda exausto, e obedeço ao comando. Vamos para
sala, onde Bastian está sentado no sofá, visivelmente tenso. Olho com confusão para ele, pois
pensei que estivesse sendo punido assim como eu. No entanto, ele não está coberto de suor e não
parece estar em nenhum tipo de teste de Hernan.
— Vire a poltrona para a janela e abra as cortinas — meu pai ordena a Bastian, que me
lança um olhar breve e significativo antes de fazer o que ele pede. — Agora sente-se e aprecie o
show.
Uma chuva torrencial despenca lá fora e as temperaturas estão baixas. Não faço ideia do
motivo para que Hernan tenha pedido a Bastian que fique observando a tempestade, no entanto,
quando ele abre a porta e me fita, eu compreendo.
— Cem voltas completas ao redor do pátio, sob a chuva, sem pausa. E você não tem
permissão para voltar para dentro de casa antes de finalizar o que mandei.
— Não — Bash intervém, levantando-se. — O senhor não pode fazer isso. Não é mais
uma lição. É desumano.
— Eu dei permissão para que você falasse? Me interrompa outra vez e Brianna se juntará
a Liam no pátio.
Isso cala Bastian. Ele se torna imponente, seus ombros se curvam de um jeito patético.
Meu corpo inteiro treme. Mas não é cansaço; é raiva. Raiva em sua forma mais pura e
genuína, tanta raiva que eu não sei o que fazer com ela. Então, saio para a varanda e encaro o
temporal. Foda-se. Começo a dar a primeira volta. A chuva me atinge com força conforme eu
corro. O pátio é extenso, não sei o tamanho exato, contudo, é o suficiente para que dê para
estacionar dezenas de carros.
Olho para a janela. Bastian é forçado a assistir enquanto Hernan me pune. Sua expressão
é de pura agonia. Sei que ele trocaria de lugar comigo se pudesse, mas nosso pai jamais
permitiria isso. Ele quer que meu irmão aprenda a lição. E é usando Brianna e a mim que ele vai
conseguir fazer isso.
Quando termino, quase não sinto os meus pés e pernas. Me dirijo para o gazebo, próximo
ao jardim da propriedade, onde o caseiro guarda materiais de limpeza. Assim que saio da chuva,
o choque corre por meu corpo e deslizo contra a parede de madeira até estar sentado no chão,
tremendo de frio. Não sei quanto tempo se passa, porém, me assusto quando a porta é aberta, e
Bastian aparece. Ele usa uma capa de chuva e uma bolsa está transpassada no corpo dele.
— Desculpa por ter demorado, Hernan só dormiu agora. — A expressão do meu irmão
mais velho é sombria, acho que nunca o vi assim. Ele aponta para a bolsa. — Tem roupas limpas
e secas aí. Vista-se e se prepare, porque iremos fugir.
As palavras de Bastian me deixam perplexo.
— Como assim fugir?
— De volta para a Alemanha, com a avó Ana. Eu liguei para ela e avisei que estávamos
indo visitá-la. Vou pegar Brianna. — Há uma pausa, enquanto a chuva preenche o silêncio entre
nós, ressoando como tambor no gazebo. — Escuta, vamos ter que ser rápidos. Vou buscar um
dos carros e quero que você seja ágil. Quando Hernan souber o que fizemos, vai mandar guardas
atrás de nós. Ele não vai facilitar.
Apenas aceno com a cabeça, sentindo meu estômago gelar com a ansiedade. Isso não é
uma ideia boa. É impulsivo e sem planejamento, contudo, não podemos mais ficar sob as garras
de nosso pai. Fico com pena de deixar nossa mãe, mas então lembro que ela preferiu visitar sua
amiga em Hollywood do que ficar com seus filhos.
Ela sempre foge quando a tensão estoura. Acho que só eu percebo isso com clareza.
Bastian diz que ela deve passar muito tempo fora por causa do papai e que não a culpa. Minha
irmã mais nova tem esperança de que um dia será acolhida e que ela vai fazer cachos em seus
cabelos e colocá-la para dormir como qualquer outra mãe normal.
Não sei como dizer a Bree que talvez isso nunca aconteça. Que talvez nenhum de nós
sejamos verdadeiramente amados um dia.
Tiro as roupas molhadas, seguindo a instrução de Bastian, e coloco as roupas que ele
separou para mim. Termino de fechar o zíper do agasalho impermeável e minha temperatura
começa a estabilizar, assim como os lábios rachados param de tremer. Meu coração bate forte
com a tensão toda que sinto. O corpo queima e tenho que sufocar o gemido de dor quando me
levanto.
Espero pelo sinal. Ouço pneus derrapando na pista molhada e inspeciono através da
janela do gazebo no momento em que Bastian arranca um dos carros da garagem. Abro a porta e
corro até alcançar o carro, segurando a bolsa. Sento no banco do passageiro e olho para trás.
Brianna está sentada, com o cinto de segurança afivelado. A garotinha agarra seu ursinho como
se tudo dependesse disso. Ela não entende o que está acontecendo e, no fundo, é melhor assim.
— Para onde a gente tá indo sem o papai e a mamãe? — pergunta, o lábio inferior
tremendo.
— Vamos visitar a vovó Ana. — Tento demonstrar tranquilidade enquanto Bastian dirige
feito louco. Os seguranças acenam para nós, na tentativa de bloquear nosso caminho enquanto se
comunicam através de rádios. Tudo vira uma bagunça, mas conseguimos ultrapassar os portões.
— Ouve música, Bree — Bash diz, tenso. — Liam, pega o iPod na bolsa.
Pego o iPod para Brianna e coloco na playlist que ela mesma fez, conectando os fones em
suas orelhas, o que é difícil porque tenho que me virar e dar um jeito de alcançá-la no banco de
trás. Coloco o cinto e me volto para frente. Paramos em um semáforo.
— Estão nos seguindo? — Olho pelos retrovisores. Não identifico nenhum dos carros de
meu pai.
— Ainda não, mas deve ter um rastreador nesse carro — meu irmão mais velho fala.
— Vamos estacionar e migrar para um táxi — sugiro e Bastian concorda.
Nós estacionamos em uma rua qualquer e descemos, entrando numa cafeteria. Bastian
segura Bree no colo. Não me sinto seguro aqui, mas duvido que irão nos encontrar agora que
abandonamos o carro. Bash compra alguns cookies para nossa irmã e sanduíches para nós. Estou
morrendo de fome e com sede, me dou conta disso apenas neste momento. Entramos no táxi
alguns minutos depois, amontoados no banco de trás. A cabeça de Brianna tomba contra meu
peito e ela começa a adormecer.
Olho para Bastian e ele também observa nossa irmã.
— Isso não é vida — diz, o tom de voz baixo e cansado. — Me desculpa por não ter feito
nada enquanto ele te punia. Eu não podia arriscar e pôr tudo a perder. Já estava planejando levar
vocês dois para longe daqui. A avó Ana mandou o jato particular para nós.
Isso faz com que eu relaxe. Começo a comer um dos sanduíches.
— Você foi um bom irmão hoje — murmuro, a contragosto.
Bastian sorri, no entanto, não é nem de perto um dos seus sorrisos brilhantes que atraem
garotas e caras que querem ser como ele no colégio. É triste.
— Eu tentei — é tudo o que diz e permanecemos em silêncio até o aeroporto.
18

O Hide & Art não abre hoje, mas isso não me impede de fazer uma visita. Kai está
sentado em uma poltrona, bebendo um vinho caro enquanto seus artistas se espalham pelo
estúdio. Não tem muita gente aqui, considerando o horário. É pouco mais de sete horas da
manhã, e Dylan é uma das pessoas presentes.

Não uso máscara quando não quero me apresentar, o que talvez tenha sido um erro.

— Namorando um riquinho, Flora? — A voz ácida vem de Zion, que se aproxima de um


jeito tão silencioso que dou um sobressalto. — Ou devo chamá-la de Phoenix?

Zion é um artista que gosta de alfinetadas. Ele usa um terninho cor-de-rosa e um cachecol
amarelo. Excêntrico é um eufemismo para descrevê-lo. O garoto sempre se mete em confusões
no estúdio, tanto que no último mês recebeu um alerta de Kai para que deixasse a nova artista da
galeria em paz. Se você não souber se defender de suas garras, é fácil se tornar um alvo.

— Não é um mistério. — Dou de ombros, agindo como se não fosse grande coisa.

Mantenho minha verdadeira identidade em segredo, afinal, aqui ninguém revela quem
realmente é. Todos optam por pseudônimos. Não é como se eu fosse a única com segredos. Zion
me olha no fundo dos olhos e eu mantenho o contato visual, interrompendo o processo de
construir o esboço da minha arte.

— Não se preocupe, não pretendo te dedurar. — Me lança um sorriso condescendente.

Não sei se devo confiar nele. Provavelmente não. Kai e diversos outros artistas discutem
sobre desigualdade social e meritocracia. Inclusive expressam isso através de suas artes, com
críticas nem um pouco veladas. Não imagino como eles reagiriam se soubessem que sou filha de
um dos maiores empresários do Japão, vez que nossas realidades são bem diferentes. Todos aqui
tentam sobreviver da arte. A arte não é tudo o que eu tenho, mas é tudo o que pretendo ter um
dia.

— Deixa a menina em paz, Zion — Kai resmunga, ao notar nossa interação.

— Não estou fazendo nada. Estava apenas elogiando o esboço da Flora — mente,
enquanto analisa minha tela. — Apesar de que faltam alguns retoques…

— Se continuar espantando meus artistas com sua intimidação, vou te proibir de vir até
aqui. Já te avisei sobre isso. — Kai parece sem paciência, apesar do tom de voz monótono.

Zion ergue os braços em sinal de rendição e se afasta. Suas obras são agressivas, repleta
de cobras, serpentes e criaturas míticas. Além disso, o garoto se apresenta com uma máscara de
réptil que cobre todo o rosto. Desvio minhas íris para meu esboço, não me afetando com seu
comentário, mas o levando em consideração. Preciso de retoques mesmo, pois essa é a graça de
um sketch.

Ergo o lápis, pronta para traçar novas formas, quando o celular começa a vibrar no bolso
da calça jeans. Solto um gemido ao ler o nome de Liam no visor. Me afasto para um canto,
buscando privacidade para atendê-lo.

— Onde você está? — é a primeira coisa que pergunta assim que aceito a ligação.

Faço uma careta, mesmo que ele não possa me ver.

— Que foi, virou meu pai?

— Não, seu pai jamais te bateria por sua insolência. Eu ficaria contente em te dar
algumas palmadas.

A frase dele me cala, e sinto todo o sangue do meu corpo se direcionar para as bochechas
e pescoço. Que babaca. Inspeciono o ambiente, certificando-me de que ninguém presta atenção
em mim e falo:

— Bom, não é da sua conta. Estou resolvendo algumas coisas pessoais.

— Responda à pergunta.

— Cuida da sua vida — retruco.

— Responda.

— Não.

Ele desliga na minha cara, o que me deixa com mais raiva ainda. Volto para minha tela,
mas não por muito tempo. Cerca de quinze minutos depois, enquanto separo as tintas, uma
mulher vestida com saia lápis e blazer entra no estúdio. Kai se levanta, aborrecido.

— Por Deus, vocês não leem a placa? Estamos fechados. Volte quando abrirmos para a
exposição.

— Desculpe, mas tenho assuntos a tratar com a… Flora. — Ela hesita e lança um breve
olhar em minha direção.

Nunca vi essa mulher antes. Ela empurra a armação dos óculos sobre a ponte do nariz, e
solto um suspiro. Isso já aconteceu uma vez. Pessoas tentarem comprar meus quadros fora do
estúdio, até mesmo me seguirem pela rua para perguntar o valor.

— Meus quadros não estão à venda. — Me aproximo dela. — Ainda. Mas podemos
negociar no futuro.

— Senhorita, Liam solicita sua presença com urgência. Peço para que me acompanhe. —
A mulher esboça um sorriso sem graça. Pisco com força, meu coração retumba na caixa torácica.

Aquele filho da puta…

Sem arriscar nem mais um segundo, pego meu material de arte, despeço-me de Kai e saio
ao encalço da mulher que sequer sei o nome. Com elegância, ela caminha sobre os saltos altos,
guiando-me até a Limousine nada discreta estacionada do outro lado da rua.

— Entre, por favor, senhorita Phoenix. A propósito, me chamo Kim. Sou assistente
pessoal do senhor Diamond.

Entro no carro, a contragosto, pensando nas diversas formas de fazer Liam sofrer.
Quando chegamos em sua sede, solto uma bufada de ar. Não sei por que ele precisa de mim aqui,
mas desço, seguindo Kim. Sinto pena dela por trabalhar para alguém tão… não consigo nem
mesmo encontrar a palavra correta para descrevê-lo.

Na recepção, há uma pequena comoção quando uma mulher tenta subir. Alguns
seguranças a rodeiam, na tentativa de barrar sua entrada. Kim e eu desviamos e entramos no
elevador. Ela aperta o número correspondente ao escritório no painel, e ficamos ali, em uma
clima meio esquisito.

Assim que as portas se abrem, peço para que Kim espere e nos dê privacidade. Ela não se
opõe e diz que vai buscar um café.

Não bato antes de abrir a porta. Liam está sentado em sua cadeira gigante, em toda sua
glória e arrogância. Hoje, usa apenas uma camiseta social branca. Nada de ternos e smoking.
Semicerro os olhos em sua direção.

— Como me achou?

Seus olhos azuis me olham com desdém.


— Rastreei seu telefone.

— Que ótimo! Invasão de privacidade. Talvez eu deva entrar em contato com a polícia.

— E arruinar todo seu sonho de se tornar uma grande artista, viver livre e unicamente em
prol de seus dons de tinta na tela?
O jeito que ele diz, a forma como me olha. Ele sempre soube. Desde o dia em que esteve
lá, querendo comprar um dos meus quadros. Meu corpo estremece com raiva.

— Não me provoque — aviso.

— Ou o quê?

— Talvez eu jogue café em você de novo. Quem sabe?

— Que madura, Phoe — desdenha. — Não me torne seu inimigo outra vez. Te chamei
aqui para tratarmos assuntos importantes. Acredite em mim, você é a última pessoa que eu
gostaria de ver hoje.

— O sentimento é completamente mútuo! — Me sinto na necessidade de dizer, porque


suas palavras atingem mais fundo do que eu gostaria.

Liam apenas me ignora, inatingível como sempre.

— Vamos viajar — anuncia.

— Como assim vamos? — Começo a rir com a ideia, porque isso está completamente
fora de cogitação. Não vou a lugar nenhum com Liam, nenhum que se limite a Tóquio. — Isso é
além do nosso acordo.

— Não é. Vou para Boston a negócios. Vou ter um evento importante lá e quero que me
acompanhe.

Quando Diamond cita Boston, meu corpo inteiro congela. Minha mãe foi para lá e nunca
mais voltou. A ideia de reencontrá-la me dá um frio na barriga, mesmo que eu não saiba onde ela
mora, ou o que aconteceu com ela. Não tenho um número de telefone, sua localização ou
qualquer coisa do tipo. Papai fez questão de apagá-la de nossas vidas em uma tentativa
desesperada de apagar as memórias da mulher que amou e ainda ama. As vezes que tentei
encontrá-la em redes sociais também foram em vão. Naomi havia se tornado um fantasma.

Alguns momentos se passam e Diamond arqueia as sobrancelhas diante da minha falta de


reação. Quando percebo que possivelmente estou fazendo papel de boba, me endireito e dou de
ombros, fingindo não estar muito interessada.

— Desde que não leve muito tempo e você me recompense por isso, acho que posso
cogitar.

— É o que eu disse, Phoenix. Me ajude e tudo o que quiser será seu.

Mordo meu lábio inferior, porque não sei se Liam tem o poder de me dar tudo o que
desejo, e isso inclui descobrir onde minha mãe está. Não acho que devo pedir sua ajuda já que
não quero que ele saiba mais do que estou disposta a revelar. Sei que alguém como Liam, com
influência e contatos poderosos, conseguiria me dar um endereço num piscar de olhos. Quando
me dou conta, estou mexendo no meu colar de trevo obsessivamente. Desvio o olhar para longe,
constrangida.
— É só isso? — Dou uma olhada na vista panorâmica.

— Sim, só isso. Devemos ir na próxima semana. Já conversei com seu pai e ele
concordou.

Isso me deixa surpresa, porque não esperava que papai fosse ceder tão fácil. Só deixa
mais explícito que, para Jim Ogawa, seu império está acima da família. Ele trocaria qualquer
coisa, até mesmo sua única filha, para se dar bem nos negócios.

Me limito a acenar com a cabeça e deixo o escritório sem dizer uma única palavra.

Na recepção, a mesma mulher de mais cedo permanece em uma discussão calorosa com
os seguranças, em uma tentativa desesperada de chegar até o elevador. Paro por um instante,
inspecionando-a. O cabelo loiro em corte chanel, os olhos cintilantes e grandes feito duas safiras
extremamentes familiares. Me sobressalto ao sentir um toque em meu braço. Dedos finos estão
envolta da minha pele.

— Você é a namorada do meu filho! Te vi em uma revista — fala, com o tom de voz
alegre. Eu pisco, a reconhecendo. Ela é a mãe de Liam. Lembro-me de seu rosto quando
pesquisei sobre os Diamond no Google. Ela é linda. Parece uma boneca. — Pode conversar por
um instante?

Sem saber como reagir, concordo. Donna, seu nome, pelo que me lembro, me puxa até
que estejamos em um canto, com mais privacidade.

— Preciso falar com Liam, será que pode me ajudar? — Ela parece envergonhada em
dizer isso, e eu resisto à vontade que tenho de franzir o rosto tamanha confusão. — Ele proibiu
minha entrada. — Me dá um sorriso sem graça.

— Ah. — É tudo o que escapa da minha boca, porque estou surpresa demais para dizer
qualquer outra coisa. — Claro — acrescento.

Estou chocada com a maneira como Liam trata sua família. Minhas suspeitas se
confirmam: ele não tem coração e é incapaz de nutrir sentimentos bons por alguém.
Rapidamente, tiro meu celular do bolso da calça jeans e começo a digitar uma mensagem.

Phoenix: sua mãe está tentando falar com você, espero que não aja feito um babaca e
deixe ela subir.

Liam: acho que você devia cuidar da sua própria vida e não, ela não pode subir.

Phoenix: então desça, seu idiota. Ou vou dar um jeito de fazer ela chegar até aí.

Espero por uma resposta. No entanto, vários segundos se passam e nenhuma notificação
nova chega. Solto um suspiro, olhando para cima. Donna me encara com expectativa, e me sinto
péssima por ser eu a ter que dar a notícia oficial de que seu próprio filho não quer vê-la. Então,
as portas do elevador se abrem e ele começa a andar em nossa direção, com uma expressão tão
dura quanto um recorte de pedra.

— Falei para que não aparecesse aqui, nunca — Liam diz, num tom de voz tão sério até
mesmo para ele.

Estou tão ultrajada quanto Donna. Não sei qual é o problema dele. Eu daria tudo para que
minha mãe parecesse se importar como ela, que fez questão de vir até o Japão para vê-lo. A mãe
de Liam engole em seco, sem reação.

— Podemos conversar em outro lugar? — questiona, o tom de voz baixo, evitando atrair
mais atenção desnecessária. Noto que várias pessoas nos observam.

Diamond encurta a distância entre ele e Donna, então começa a falar em alemão. Suas
palavras são breves, consigo entender apenas algumas, mas é o suficiente para que sua mãe fuja
com os olhos marejados. Ela sai como um furacão pelas portas de vidro que se abrem
automaticamente, e eu apenas o encaro, horrorizada.

Abro a boca para perguntá-lo o que foi que ele disse, mas Liam me interrompe:

— Fique fora dos meus assuntos familiares, Phoenix. Esse é meu limite. — As palavras
são curtas e grossas. Há um aviso silencioso em suas íris. É como se ele dissesse: fique fora do
caminho ou farei da sua vida um inferno outra vez. Não é preciso verbalizar a ameaça para que
eu a entenda. Sustento seu olhar gélido por alguns momentos antes de lhe dar as costas e sair em
direção a rua, ignorando os alertas vermelhos.
19

Não é muito difícil localizar Donna na rua. Me apresso para tentar alcançá-la, mas ela
entra em uma cafeteria e some do meu campo de visão. Ao atravessar a porta, o sino tilinta, e
avisto sua cabeça loira destacada em meio às outras. Retomo o fôlego e inspiro o aroma de café e
frappuccino no ar. O lugar está gelado devido ao ar-condicionado, então subo o zíper do suéter
enquanto caminho em direção à sua mesa, ao fundo do recinto.

Donna mal percebe minha aproximação, parece ocupada demais olhando para uma
mancha de suco no tampo de madeira. É bem triste para falar a verdade.

— Oi. — Me sento no banco acolchoado em sua frente.

Ela desperta do transe, e me fita com surpresa.

— Oi. — Um sorriso contido cobre os lábios dela. Seus olhos esquadrinham meu rosto
com atenção. — Você é tão bonita quanto nas fotos que vi.

Meu rosto esquenta involuntariamente.

— Obrigada. — Há uma pausa, porque não sei o que dizer. Então preencho o silêncio
com qualquer outra coisa. — O seu japonês é ótimo.

— Eu queria ser diplomata antes de me casar — revela, ajeitando uma mecha de cabelo
atrás da orelha. — Durante toda minha infância e adolescência, foquei em aprender o máximo de
outros idiomas que conseguisse. Aí fiquei grávida. — Solta uma risadinha. — Os planos
mudaram.

— Você desistiu, então. — O que era para ser originalmente uma pergunta sai como
afirmação. — Filhos devem dar bastante trabalho.

— Ah… — Donna murcha de repente. É quase como se eu tivesse acabado de tocar em


um tópico muito sensível. — Eu não fui exatamente uma mãe exemplar. Não sei se ele te contou.

— Na verdade, o Liam é meio fechado com assuntos que envolvem o passado — é tudo o
que posso dizer, porque, na verdade, acho que Diamond nunca vai me contar nada, considerando
que nosso relacionamento é apenas uma fachada.

— Entendo. Certas coisas… acho que nunca mudam. Mas eu não o julgo. Eu sei que
mereço toda hostilidade.

Não sei o que Donna fez, então fico em silêncio, apreensiva. Ela veio dos Estados Unidos
para vê-lo, e pelo menos dá para notar que tenta consertar o que quer que seja o estrago na
relação deles dois.

— Você vai ficar por muito tempo? — Mudo de assunto.

— Alguns dias. — Há uma pausa. — Você acha que um dia Liam pode me perdoar?

Pelo pouco que conheço de Diamond, não acho que ele vá perdoá-la. Liam se mostrou
alguém impassível até agora. A única vez que o vi sendo flexível foi com sua irmã mais nova,
Brianna.

— Sim — minto.

A forma como a expressão dela passa de arrasada para esperançosa faz eu me sentir
completamente culpada.

— Liam e eu vamos viajar — atiro a informação, desesperada para pararmos de falar


sobre sua relação com ele. — Para Boston. Semana que vem.

— Sério? Não sabia. Vou remarcar minhas passagens então. Estou morando em Hartford.
Talvez vocês possam me visitar um dia.

— Claro, é uma ótima ideia. — Sorrio, sustentando toda a farsa que criei até o momento,
toda a expectativa que eu plantei em Donna. — Bom, eu preciso ir agora.

Faço menção de me levantar, mas Donna me interrompe e pede meu número de telefone.
Depois de anotá-lo, ela me dá um abraço apertado e nos despedimos. Saio da cafeteria me
sentindo a pior pessoa do mundo. Talvez Liam esteja certo. Talvez eu devesse me manter longe
dos seus assuntos familiares.

— Já fez as malas? — Emi questiona assim que eu atendo o celular, colocando-o no viva-
voz.

Estou observando minha mala aberta na cama ao ouvir sua indagação. Na verdade, não
tenho certeza se tudo o que quero levar vai caber nela. Preciso de bolsas, sapatos e uma
variedade de opções de roupas para usar em Boston. Já que irei aparecer na mídia como
namorada de um bilionário influente, é melhor que esteja pronta para os cliques das câmeras.

— Neste momento. — Apoio o celular contra o ombro e rosto enquanto começo a revirar
meu closet.

— Tá ansiosa?

— Não. Estou apavorada, para falar a verdade.

— Por quê?

Ainda não contei para Emi sobre a ideia de procurar por minha mãe. Nem sei se vou, por
enquanto. Não quero que ela sinta pena de mim. É o que vai acontecer se minha amiga souber
que, mesmo depois de todos esses anos sem qualquer tipo de contato, eu ainda estou desesperada
para saber qualquer coisa sobre Naomi.

— Ser namorada falsa do Liam em outro país parece ainda mais sério. — Pego um blazer
preto de um dos cabides e o enfio na mala.

— É, mas pensa, você está meio que de férias. Vai viajar para Boston e o melhor de tudo
é que o dinheiro gasto não será o seu.

— Só que esse dinheiro gasto não deve fazer nem cócegas quando se é Liam Diamond.
Para ele, isso não vai importar — garanto a ela, porque é a verdade.

— Tem razão, mas não esquece de mandar fotos! Ou me contar se vocês dormirem em
um hotel luxuoso com jacuzzi, luz de velas e…

— Emi! — a interrompo, impedindo que ela complete a frase e vá longe demais com sua
imaginação. — Nada vai acontecer entre a gente, tá legal? Isso eu te garanto. Eu prefiro beber
água sanitária a ter qualquer tipo de contato com Liam.

— Rá, duvido. Mas caso aconteça, eu quero ser a primeira a saber de todos os detalhes.
Quero saber como foi ou se doeu muito. Na minha primeira vez, sangrei bastante e entrei em
pânico…

Interrompo a voz de Emi e o jogo o celular na cama como se fosse uma bomba. Sinto o
constrangimento me abater. Como minha melhor amiga, Emi sabe que sou virgem. Ren e eu já
fizemos outras coisas, mas nunca chegamos nos finalmentes… Nós tínhamos idealizado que
faríamos na faculdade quando nos mudássemos e ele me desse o anel de sua avó, que estava com
sua mãe, para noivado. Só de pensar nisso meus ombros se curvam e uma onda de melancolia me
abate. Fizemos tantos planos juntos que agora não passam de desilusões.

Meu celular vibra sobre a cama, afastando os pensamentos. O seguro e leio as


mensagens.

Emi: VOCÊ NÃO PODE ESCAPAR DESSE ASSUNTO PARA SEMPRE!


Emi: sexo é normal, as pessoas transam o tempo todo.

Emi: você vai perder a virgindade um dia e vou comprar um bolo para comemorarmos.

Contenho o gemido de frustração no fundo da garganta e digito uma resposta.

Phoenix: cala a boca e pare de falar sobre a palavra com S ou irei te bloquear.

Emi: a palavra com S é SEXO!!!!!

Bloqueio o celular e ignoro as mensagens de Emi enquanto termino de arrumar as malas.


Meu pai, como o habitual, não está em casa. Hoje, no entanto, ele me mandou uma mensagem
falando sobre a viagem com Liam. Papai nunca me manda mensagens, a não ser quando precisa
me dar broncas. Agora, ele conversa comigo apenas para falarmos sobre Diamond.

Acho que vou começar a ter pesadelos com diamantes.

Ouço uma batida na porta e murmuro um pode entrar. Espero que a governanta ou uma
das funcionárias apareça no meu campo de visão, mas congelo quando a porta se abre e a figura
imponente de Liam é revelada. O terno de hoje é cinza claro. Ele entra no quarto, sem ao menos
pedir licença antes.

— O que você está fazendo aqui? — Cruzo os braços em frente ao peito, surpresa.

Seus olhos me analisam de cima a baixo, e só então me dou conta de que uso um pijama
ridículo com estampa de ursos cor-de-rosa. Seu cenho franze, e ele volta a atenção para meu
rosto.

— Tive que adiantar a viagem. Vamos sair pela noite. — De repente, sua inspeção passa
para meu quarto. — É como eu esperava.

— O quê? — questiono, confusa.

— Seu quarto. — Dá de ombros. — Esse ar… juvenil.

— O seu, por outro lado, deve ser semelhante a uma caverna.

Diamond senta na minha cama, ignorando a alfinetada. O contraste entre ele e meu quarto
é rídiculo. A parede lilás atrás de si, a colcha florida e meus travesseiros de seda rosa… nada
encaixa nele. É quase como se ele destoasse o ambiente. O loiro segura o meu urso de infância
entre as mãos, arqueando levemente as sobrancelhas.

— Aposto que ele tem nome — fala, cheio de ironia.

— Não tem — minto, na defensiva. — O sr. Polar não gosta que estranhos o segurem.

Fico em silêncio. Percebo que sem querer confirmei a teoria de Liam. Ele começa a
respirar profundamente e um “v” se forma entre as sobrancelhas.

— É tão rídiculo que seu quarto inteiro cheire a flores.


— Será que dá para parar de criticar tudo?

Noto um leve repuxar de lábios tomar conta da sua boca, como uma espécie de sorriso.

Não sei qual é a de Liam hoje. Parece menos agressivo que o habitual. Seu rosto é sério,
mas não o tipo de seriedade fria que sempre o acompanha. É como se ele estivesse de bom
humor.

— Por que está aqui? — pergunto outra vez, desconfiada.

— Já disse. Vim avisá-la sobre a viagem.

— Então já pode ir embora.

— Não te ensinaram boas maneiras, pelo visto. É falta de educação mandar alguém sair
da sua casa. Ainda mais se esse alguém for seu namorado. — Ele me olha com ironia,
levantando-se. Liam começa a se aproximar e eu me ultrajo, enquanto dou um passo para trás.
Ficamos nessa dinâmica ridícula de você-avança-e-eu-recuo até que minhas costas batam
na superfície da parede. Ergo o rosto para encará-lo de volta. Tudo o que encontro é o gelo
ártico. Sinto o arrepio estremecer minha coluna.
É como se uma chave tivesse virado em sua mente. Como se o Liam descontraído
sumisse e restasse apenas o babaca frio de sempre. Um de seus dedos enrola uma mecha do meu
cabelo. Com a outra mão, ele resvala o polegar em meu queixo. Minha pele parece queimar sob
seu toque. Meu corpo entra em combustão, sentindo o calor de sua proximidade, o gelo dos olhos
azuis que contrastam com o fogo que parece correr em minhas veias. Meu coração bombeia
sangue três vezes mais rápido e, por um segundo, me questiono se ele não é capaz de escutar
todas as batidas descoordenadas.
— Eu disse: fique longe dos meus assuntos de família — murmura contra meus lábios,
seu hálito quente bate em meu rosto. — Algo me diz que iremos nos divertir nessa viagem. — O
brilho de diversão sádica volta a tomar conta de seu olhar.
A promessa silenciosa paira no ar.
Ele vai retaliar.
Outro arrepio me estremece, pois sei que Liam não deixará barato. Ele me deu uma
ordem, eu a desobedeci. Invadi uma parte de sua vida pessoal, enquanto mantenho meus próprios
segredos guardados a sete chaves, afastando-o do meu drama com meus pais. A barreira que
ultrapassei o deixou com raiva. Como ele descobriu? Eu não sei.
— Não pode tratar as pessoas como se fossem uma peça fútil do seu jogo. Sua mãe queria
falar com você.
— Ela teve a vida toda para isso, e se você for inteligente, não se meteria na nossa
relação. É meu último aviso, passarinho.
Franzo o cenho para o apelido, mas permaneço em silêncio. Meu nome significa fênix,
um pássaro mítico que se transforma em cinzas por auto-combustão e renasce. Quantas vezes
Liam irá me incendiar e quantas vezes terei que me refazer?
E se sou o passarinho, estou sob as garras de uma ave de rapina. Sob o domínio dele.
Fico em silêncio, sustentando seu olhar frio. Diamond, enfim, recua. O calor se vai. Ele
me olha uma última vez sem dizer uma única palavra antes de se virar e deixar meu quarto.
20

antes
O aroma da torta de amora flutua no ar enquanto minha avó, Ana, me serve uma xícara
de chá com especiarias. Depois de correr sob a chuva, meu corpo adoeceu. Estou resfriado, cada
parte dos meus músculos doem, especialmente as pernas.
É um enorme esforço me manter sentado na cadeira da cozinha. Bastian está à minha
frente, limpando o balcão que usou para fazer a torta. Meu irmão gosta bastante de cozinhar,
principalmente quando se trata de doces. É um talento, porém ele o esconde. Como poderia um
Diamond se tornar um mero confeiteiro? Hernan jamais admitiria isso.
— Está se sentindo melhor? — nossa avó indaga.
— Sim. — Seguro a caneca com chá fumegante entre as mãos. — Obrigado.
Olho para ela. Minha avó parece apreensiva. Além das rugas em sua expressão por conta
da idade, identifico as novas marcas, as que indicam preocupação. Minha mãe e avó não mantêm
mais contato. Na verdade, é bem difícil que eles nos deixem visitá-la. Sobretudo, nosso pai,
Hernan. Há uma rixa antiga entre os Diamond, lado paterno, e os Lawrence, maternos. O
casamento de nossos pais devia significar uma bandeira branca, só que as coisas pioraram desde
então.
Minha avó sempre diz que Hernan corrompeu minha mãe. Não sei como Donna era antes
dele, porque eu não existia. Mas acredito no que vó Ana diz, porque tudo que está sob o domínio
de Hernan vira pó. Agora que estamos na Alemanha, me sinto seguro. No entanto, sei que é
questão de tempo para que nosso pai venha atrás de nós.
— A gente não pode morar aqui? — A voz infantil de Brianna paira no ar, atraindo
minha atenção para si.
Ela acaba de cruzar o arco da cozinha, calçando pantufas cor-de-rosa e segurando um
prato cheio de cookies feitos por Bastian. Há farelos do biscoito grudados em seus lábios e
bochechas. Ela está uma bagunça, mas parece feliz. Acho que todos nós, se pudéssemos,
mudaríamos para cá.
Nossa avó suspira com pesar, no entanto, mascara a imponência com um sorriso.
— Não é tão simples, querida. — Ana coloca uma das mãos sobre meu ombro.
Sei que ela percebe a mesma dúvida no meu rosto. E se ela tentasse conversar com nosso
pai? Não daria certo? Talvez eu esteja apenas sendo ingênuo, assim como minha irmãzinha.
— Por quê? Aqui é tão legal! E não temos que falar inglês.
Brianna tem mais dificuldade para se adaptar a outros idiomas que Bastian e eu. Ela ainda
erra bastante frases e palavras. Por isso, nossos pais contrataram dois professores particulares
para ensiná-la durante o tempo vago. Bree sempre reclama que está cansada, mas eles nunca a
ouvem e empurram uma série de tarefas para ela.
— Não é fácil, Bree. Hernan e Donna são nossos guardiões legais. Não dá para
simplesmente virmos morar com a avó Ana sem a autorização deles — Bastian diz, mal-
humorado.
O silêncio recai sobre a cozinha e nossa avó chama Bree para enfeitar o cabelo com fitas.
Elas saem do cômodo, deixando eu e meu irmão à sós.
— Não precisava ser duro com ela. — Olho para meu chá. Meu reflexo aparece
distorcido e distante na água.
— Eu não fui duro, fui realista. Estou cansado de vocês dois se machucarem por minha
causa. Não quero alimentar mais desilusões em Brianna. É como dizer a ela que um dia a mamãe
vai levá-la para um parque ou fazer programas de garotas. Talvez isso nunca aconteça. É a
verdade.
Minha mandíbula tensiona com tanta força que chega a doer. Não gosto quando Bastian
tenta bancar o irmão mais velho responsável, porque a culpa de estarmos aqui, indiretamente, é
dele.
As atitudes de nosso pai são injustificáveis, contudo, Bastian deveria perceber que
Hernan é sádico e que castigos convencionais, como duas semanas sem tevê ou sem sair de casa,
não seriam métodos de correção dele.
A verdade é que somos peças de um quebra-cabeça que não se encaixa.
Todos nós queremos o que não podemos ter.
— Você devia pensar mais em nós antes de agir — falo, porque estou cansado de Bastian
pensar apenas em si mesmo e na sua diversão. — Tem que considerar que tudo o que você faz
não afeta somente a você.
Olho sobre o ombro quando ouço um estrondo. Bastian acaba de jogar a forma com a
torta de amora no balcão de mármore. Ela derrapa e quase tomba, mas permanece firme. Ele não
ousa me encarar neste momento. Apenas continua virado de costas, a cabeça pendendo entre os
ombros. É como se ele estivesse derrotado. Sua coluna está curvada feito um arco.
— Eu sei, tá legal? Só que antes nosso pai não pegava tão pesado. Eram só castigos
simples. Agora, é diferente. Ele está testando nossos limites, indo longe. Não sei se é para me
pressionar, para que eu me interesse pelos negócios da família e aceite o destino que ele tem para
mim. Então, não posso mais recuar. Vou fazer o que ele pede e, em troca, vou pedir para que
deixe você e Brianna em paz.
Permaneço em silêncio, porque não posso impedi-lo. Estou fadado a viver às sombras de
Bastian. Nunca serei o líder da nossa família, nem o sucessor. Ele é o primogênito. É dele que
nossos pais esperam um destino brilhante.

— Liam — a avó Ana chama, enquanto observo o céu noturno através da claraboia que
fica no quarto.
Olho para ela, parada no batente da porta. Está segurando algo nas mãos que não consigo
identificar. Ela se aproxima, parando até que esteja próxima da cama, onde estou deitado.
— Trouxe algo para você. — Me sento no colchão, curioso.
Espero que ela desembrulhe o que quer que tenha entre os dedos. Dois pontos de prata
cintilam em meu campo de visão. São abotoaduras. Minha avó as coloca na palma de minha
mão.
— Na nossa tradição, o chefe da família fica com as abotoaduras.
— O chefe da família? — Olho para ela, confuso. — Mas o Bastian…
— Bastian não é um líder nato. Você é. Ele está acorrentado às pressões e expectativas de
Hernan. Você, por outro lado, é o que é naturalmente.
Meu coração dispara por alguma razão.
— Você acredita que um dia eu possa… — Não completo a frase, porque não consigo
dizer em voz alta.
Acha que um dia eu possa ser o sucessor?
— Está destinado. — Há uma longa pausa silenciosa enquanto trocamos olhares. —
Agora, vou deixar você descansar. Amanhã vou entrar em contato com o pai de vocês. Já fazem
três dias que estão aqui e ele sequer enviou um mísero recado.
Engulo em seco, mas não digo nada. O silêncio de Hernan nunca é e nunca foi um bom
sinal. Significa que ele está com raiva. Raiva além do que qualquer um de nós podemos
imaginar, porém, por algum motivo, eu sinto nos ossos um pressentimento ruim. Como o sol
antes da tempestade.
— Não se preocupe. Durma, está bem? Estarei no meu quarto. — A mulher pisca em
minha direção, me dá um beijo na testa como se eu ainda tivesse sete anos de idade e se vai.
Volto a olhar para a claraboia, tentando não me perder nos meus próprios pensamentos.
21

Assim que chegamos no aeroporto de Boston, tenho certeza que meu cabelo se assemelha
a um ninho de pássaros. A mudança de fuso-horário e clima só intensifica minha exaustão. Aqui,
o ar parece mais denso, como se uma manta de umidade envolvesse meu corpo. A diferença
entre Tóquio e Boston é perceptível.

Uma van nos aguarda no desembarque. Desde que entramos no avião, Liam não trocou
uma palavra comigo, como se eu fosse invisível. No entanto, não permito que sua atitude me
abale.

Enquanto o automóvel atravessa as ruas de Boston, observo a arquitetura histórica que se


destaca, um contraste marcante com a modernidade de Tóquio. As folhas do outono começam a
se espalhar pelas calçadas, pintando a cidade com tons de vermelho e dourado.

Desgrudo meus orbes do vidro e fito o loiro, decidida a provocá-lo um pouco.

— Ficou mudo? — questiono, arrancando um suspiro de seus lábios.

— Nosso acordo requer que eu seja seu namorado apenas em público — rebate.

Ou seja, enquanto estivermos longe dos olhares públicos, ele fingirá que não me conhece.
Afundo no assento do carro, optando pelo silêncio. Ao chegarmos em um hotel cinco estrelas,
descemos do veículo após os seguranças se certificarem de pegar nossas malas.

Kim, acompanhada por um segurança, se junta a nós no elevador, enquanto os demais


seguem por outro caminho com as bagagens. Inesperadamente, Liam afasta uma mecha de
cabelo que cobre minha visão, a ponta dos dedos gelados resvalam em minha bochecha. Me
assusto com o contato inesperado e estremeço. A assistente de Liam me lança um olhar confuso,
e sou forçada a me aconchegar contra o peito do Diamond.
Por um momento esqueço que, para todos, somos um casal. Às vezes, é necessário
reforçar essa imagem para evitar qualquer suspeita. A mão de Liam pousa na base de minha
coluna, me deixando desnorteada. Ele me guia para fora quando as portas de metal se abrem,
conduzindo-me por um corredor. Kim se despede, adentrando em uma das portas, enquanto
Diamond e eu seguimos para outra.
— Deixem as malas aqui — diz para seus seguranças, apontando para um local vago
perto da porta.
Eles obedecem e se retiram.
Inspeciono o ambiente ao ouvir o som da porta bater. Estamos na cobertura, com uma
vista incrível da cidade. Caminho até ficar parada diante das amplas janelas, imersa no silêncio
do lugar, onde o único som que ecoa é da minha própria respiração. Ao lançar um olhar sobre o
ombro, noto que Liam está encostado no corredor, me observando. As íris azuis ficam quase
negras na escuridão, e seu rosto é parcialmente iluminado pela lua e as luzes da cidade.
Na sala, há apenas uma poltrona, lareira e um tapete que parece persa. Nas paredes, belos
quadros de paisagem adornam o ambiente. Volto a observar o loiro.
— Vai ficar em pé aí feito uma assombração?
Ele se move até o canto do cômodo, onde agora noto algumas garrafas de uísque.
Enchendo seu habitual copo, ele o entorna antes de responder:
— Só tem uma cama.
Assimilo as palavras, piscando com força. Liam não tira os olhos de mim. Ele estuda
cada uma das minhas reações. Rapidamente me recomponho, tentando não deixar transparecer o
impacto da informação.
— Tanto dinheiro e não conseguiu nos colocar em um lugar com dois quartos? —
questiono secamente, porque esse cenário é pior do que eu poderia imaginar.
Dividir um quarto com Liam parece um pesadelo.
— A questão, passarinho, é que as pessoas perceberiam. Nós somos um casal para meus
seguranças, Kim e todo o resto. Se agirmos como dois estranhos, nossa farsa não se sustentará.
— Por isso me tocou no elevador? — indago, com desdém.
Ele me olha por alguns momentos.
— Não te toquei, não realmente. Aquilo não foi nada, Phoenix. Acredite em mim. O dia
em que eu te tocar, você não vai querer que eu pare.
Meu Deus.
Meu rosto fica ruborizado e uma onda de calor percorre meu corpo. Que merda é essa?
Me sinto patética.
— Vou dar uma volta — anuncio, de repente, o que surpreende Liam e até a mim mesma.
Preciso sair o mais rápido possível deste hotel. Por algum motivo desconhecido, minha
mente não para de imaginar cenários em que Liam me toca. De verdade.
— Já são nove horas, Phoenix — diz, com reprovação. — Vá dormir.
— Não, obrigada. — Abro minha bolsa e pego um tubo de batom vermelho. Seus olhos
me observam enquanto passo uma camada nos lábios, ficando pronta. — Boa noite, Diamond.
— Garota teimosa — murmura, com sua expressão de gelo, me seguindo pela porta.
Aperto o botão do elevador e olho sobre o ombro. Liam permanece atrás de mim feito
uma sombra. Franzo o cenho e contenho minhas palavras enquanto seus seguranças nos
acompanham. Não posso dizer o que quero na frente deles, ou estragaria tudo.
Começo a andar pela rua, com três homens em meu encalço. Dois deles são seguranças, e
o terceiro é o próprio Liam. Ele se aproxima o suficiente para que seu braço roce no meu, e
então, num tom de voz baixo, diz para que só eu possa ouvir:

— Volte para o hotel.

— Não — devolvo.

Ele solta o ar de forma brusca pela boca. Não andamos muito até que avisto uma casa
noturna. Fito a fachada iluminada por letras neons e percebo a expressão no rosto de Diamond
que diz você não ousaria. Sorrio, fazendo com que ele quase solte fumaça pelas orelhas. Sua
raiva é palpável

A fila não é tão grande, então, logo estamos dentro. Liam pede para que os seguranças
circulem e, em seguida, fala enquanto adentramos no lugar:

— Você está encrencada, Phoenix Ogawa.

Ignoro-o e me movo até o bar. A música alta reverbera pelo ambiente, fazendo o local
pulsar. Gosto da sensação de liberdade que me toma. Em Tóquio nunca pude sair muito e me
divertir verdadeiramente, já que sempre há um paparazzi à espreita, aguardando por qualquer
mínimo deslize meu.
Peço um drink com vodca e morango. Diamond permanece em silêncio enquanto me
sento em uma das banquetas, fingindo que não o conheço. Sugo a bebida por um canudinho.
Quando começo a ficar meio alta, decido me juntar às pessoas na pista de dança. Acho
que despistei Liam, pois não o vejo em lugar algum. Então, começo a dançar ao som da música,
sentindo meu corpo leve como uma pluma. Girando o corpo enquanto balanço os quadris, vejo-o
apoiado em uma das paredes, ao lado do bar, os olhos fixos em mim e o rosto inteiro sério.
Um arrepio cobre minha pele.
No próximo momento, alguém se aproxima à minha esquerda. É um homem. Ele começa
a dançar junto comigo, mas não dura muito. O estranho olha acima do topo de minha cabeça e
engole em seco. Franzo o cenho, e minhas costas colidem contra uma muralha no próximo
segundo. Quando sinto a mão em minha cintura, sei que é Liam. Sua presença me consome,
então decido me entregar só por uma noite e desfazer as amarras que me pretendem.
— Atrevida o suficiente para dançar com outro na minha frente? — Os lábios roçam em
meus ouvidos.
O calor se arrasta por meu corpo e suspiro, fechando os olhos.
— Você não é meu namorado. Não de verdade.
— Não quer dizer nada.
— Quer dizer tudo.
Seus dedos se fecham ao redor da minha garganta, com suavidade. Eu estremeço, me
sentindo arder por todo canto.
— Certas coisas eu não estou disposto a compartilhar com ninguém. Você dançando é
uma delas.
O que ele está fazendo?
— Está vendo? — Os dedos se arrastam pela lateral do meu peito. Reprimo o gemido
sôfrego no fundo da garganta. — Tem coisas que somente eu vou fazer você sentir, passarinho.
Quando percebo que ultrapassei uma linha perigosa demais, me afasto, com o corpo em
chamas. De repente, está muito quente aqui dentro. Começo a abrir caminho pelo mar de pessoas
até a saída. Assim que alcanço a calçada e o ar gélido bate contra mim, respiro, aliviada.
Atrás de mim, ouço uma risadinha grave e zombeteira.
— Com calor, amor? — A voz de Liam me alcança.
— Pro inferno — murmuro, irritada, sentindo o álcool evaporar aos poucos do meu
sistema.
Por sorte, seus seguranças nos alcançam depois que digo isso. Então, silenciosamente,
começamos a voltar para o hotel.

— Vou tomar banho — é o que digo assim que chegamos. Pego minha mala e disparo em
direção à única porta que resta no corredor.
Uma suíte, é claro.
Entro no banheiro e me certifico de que fechei a porta antes de começar a me despir.
Opto pela banheira em vez do chuveiro, já que meu corpo está tenso da viagem e pelos
movimentos que fiz na casa noturna, na pista de dança. Não sei quanto tempo passa, mas ouço
batidas na porta.
— O quê? — questiono, de olhos fechados, submersa na água cheia de espuma e sais.
— Só tem um banheiro neste lugar, você poderia não monopolizá-lo para sempre. — A
voz de Liam soa abafada por trás da porta, mas completamente compreensível.
— Já estou saindo.
— É sério, Phoenix. Não demore.
— Faça xixi nas calças — rebato. — Como é que você costuma dizer? Ah! Lembrei. Não
poderia me importar menos.
— Phoenix. — Sua voz contém um aviso claro.
Rolando os olhos, termino meu banho mais cedo que gostaria. Leva algum tempo para
que eu vista um pijama confortável, então abro a porta. Liam está sentado na borda da cama, os
primeiros botões de sua camiseta abertos e uma expressão de infelicidade no rosto. Ele fica de
pé, erguendo-se em seus muitos centímetros de altura a mais que os meus. As íris azuis se fixam
em mim, raiva exala delas.
Não digo nada e me deito na cama, ignorando-o. A porta do banheiro bate. Me cubro até
o queixo com o cobertor. Meu pijama é de seda azul, com mangas longas e um short comprido, e
ainda assim, sinto frio. Ouço o barulho do chuveiro e permaneço inquieta, me reviro de um lado
para o outro enquanto tento pegar no sono.
A questão é que não consigo. Não sabendo que Liam vai se deitar comigo a qualquer
momento.
Quando a porta se abre, estou olhando para ela.
Diamond sai do banheiro, uma cortina de vapor formada atrás de si e gotas de água
escorrem pelo peitoral nu. Há apenas uma toalha enrolada ao redor da cintura. Desvio o olhar
rapidamente, tendo certeza de que meu rosto está vermelho feito um tomate.
— O que foi, passarinho? Pode olhar, se quiser. Eu não me importo.
Afundo o rosto no travesseiro, recusando-me a dar esse gostinho para ele.
— É uma visão infernal você assim. Por favor, vista-se — digo, a voz abafada.
— Péssima mentirosa. — Ouço seus passos se distanciando.
Desenterro meu rosto do travesseiro. Agora estou sozinha no quarto. Liam retorna
vestido, usando uma camiseta branca e calça moletom. É um dos momentos em que reflito sobre
o quão jovem ele é. Sem o terno, abotoaduras e o cabelo perfeitamente penteado… ele parece
normal, exceto pela beleza clássica de Hollywood. O rosto de um anjo, com os olhos azuis,
lábios cheios e cabelos loiros.
— Você deita nos pés — falo, esperando que concorde.
— Não. Vou me deitar em cima. Deite nos pés você.
Eu estava cogitando, mas agora que Liam diz, me recuso a fazer isso. Vou ficar em cima,
só para não dar o braço a torcer. Diamond apaga a luz e mergulhamos no breu. Ainda assim,
consigo distinguir sua figura por conta de uma fresta na cortina que ilumina o quarto.
A cama afunda com o peso dele, e sinto cheiro de sabonete e pasta de dente. Há mais ou
menos um braço de distância entre nós. Me espremo o máximo que posso em uma das pontas da
cama, tomando cuidado para não cair. Estou tão cansada que não demora muito para que eu
pegue no sono. Acontece de forma natural, quando percebo que estou em uma distância segura
de Liam.
Ao acordar, quase me esqueço de onde estou. Pisco para ajustar os olhos à claridade do
quarto vazio e me direciono para o banheiro, ainda meio grogue de sono.

Após escovar os dentes, sigo até a cozinha para fazer o café da manhã, contudo, me
surpreendo quando avisto Liam na poltrona. Ele segura o telefone contra a orelha e, com a mão
livre, um charuto.
Suas palavras ressoam em alemão, e eu não entendo nada do que ele diz. As íris se
direcionam para mim enquanto continua falando no aparelho. Me pergunto como ele acordou e
se vestiu tão silenciosamente. Talvez eu estivesse tão cansada que dormi que nem pedra.
— Vista-se — Diamond murmura, voltando-se para sua ligação.
Arqueio uma sobrancelha com a ordem, mas decido não interrompê-lo enquanto está no
telefone.
Volto para o quarto e pego um dos vestidos que trouxe, já que o dia parece quente. É rosa
claro, com saias bordadas, sem mangas ou decote, no estilo tomara-que-caia.
Quando volto para sala, Liam está de pé. Ele abre a porta, sem dizer nada. No momento
em que saímos, avisto dois seguranças no corredor que nos acompanham até à saída, onde uma
Limousine nos espera. A troca de línguas me deixa confusa. Nas ruas, todos conversam em
inglês, e eu tenho que me adaptar depressa.
— Para onde estamos indo? — Quebro o silêncio.
O loiro mal me olha ao responder:
— Leilão beneficente.
— E o café da manhã?
— Vai haver comida lá, não se preocupe.
O jeito como ele diz tudo é monótono. Inconscientemente uma pontada de decepção me
toma. Gostei de conhecer o outro lado de Diamond noite passada. Lidar com sua frieza me
incomoda.
Meu celular começa a vibrar dentro da bolsa me dispersando de meus devaneios. Checo
as notificações e vejo que há mensagens de meu pai. Jim pergunta se chegamos bem e pede para
que eu não interrompa Liam nas reuniões de negócios. Me limito a responder que o voo foi
tranquilo. Estou prestes a guardar o aparelho quando uma notificação vibra. O nome de Donna
aparece no visor.
Meu corpo fica tenso. Lanço um breve olhar em direção ao loiro, mas ele não presta
atenção em mim.
Donna: oi! vocês já estão em Boston? Estou ansiosa para nos vermos outra vez.
Donna: quando puder, me ligue.
Bloqueio a tela do celular, sem ter ideia do que responder. Se Liam descobrir que sua
mãe tem meu contato, provavelmente surtaria. Não quero me transformar em um alvo ambulante
para ele, já que preciso mantê-lo ao meu lado como aliado.
Estacionamos diante de um prédio cercado por paparazzi’s. Liam me orienta a sorrir e
ficar próxima a ele ao sair do carro. Encaro as câmeras com um sorriso, mantendo a postura ereta
e o braço entrelaçado ao seu. Nós caminhamos para dentro, deixando os flash’s para trás.
O salão oval que nos recebe é deslumbrante, repleto de garçons que servem aperitivos e
taças de champanhe. Pessoas bem vestidas estão espalhadas ao redor do salão, algumas em
conversas animadas, enquanto outras parecem discutir sobre negócios. Liam se dirige em direção
a alguns homens, e eu aproveito a oportunidade para comer. Enfio alguns petiscos na boca,
tentando ser discreta enquanto mastigo. Me sobressalto ao sentir um toque no ombro.
Ao me virar, sou surpreendida por uma ruiva estonteante. Seus olhos verdes me analisam
de cima a baixo.
— Olá. — Ela esboça um sorriso estranho. — Você é a Phoenix…
— Sim — respondo de boca cheia, sem querer.
— Eu estudei com Liam por um tempo. Nossos pais são grandes amigos.
Não sei o que devo fazer com essas informações, então permaneço em silêncio. Talvez
ela e Liam tivessem um caso no passado. Dá para ver que ela se sente desconfortável com a
minha presença.
— Vocês eram… — começo a dizer, e ela arregala os olhos, me interrompendo.
— Não, claro que não. — Seu rosto inteiro fica vermelho. — Nossos pais até cogitavam.
Mas faz muito tempo. Agora Liam é… um homem independente e poderoso.
Ela definitivamente sente algo por ele.
— Entendo. — Busco ao redor meus próximos aperitivos. — Com licença.
Decido deixar a ruiva para trás. Não quero lidar com o drama do passado de Liam. Se ele
teve alguma namorada no colégio, é um problema dele. Sirvo um copo de ponche de frutas e
mordo um canapé. Quando termino, retoco a camada de gloss usando um espelho portátil e
procuro por Diamond no salão.
Não é difícil encontrá-lo, já que a ruiva está no mesmo círculo de pessoas. Estão
próximos o bastante para que os braços rocem. Sem motivo aparente, sinto algo em meu interior.
Uma espécie de incômodo. Como se pudesse sentir meu olhar sobre si, ele vira o rosto, nossos
olhares se travando.
Liam não se afasta, em vez disso, oferece uma taça de vinho para ela.
Semicerro os olhos, experimentando uma sensação de traição, mesmo ciente de que tudo
não passa de uma farsa. Acho que estou submersa demais na minha personagem. Me viro e
esbarro no ombro de alguém. O cara que me ampara é alto, tem olhos bonitos e uma pinta
charmosa no queixo.
— Desculpe — digo, envergonhada.
— Problema nenhum — responde, os olhos grudados em meu rosto.
Suas mãos seguram meus braços de um jeito suave.
— Qual o seu nome? — questiona, quando dou um passo para trás. — Não é todo dia que
garotas bonitas tropeçam em mim.
Eu rio da cantada barata dele. Sinto algo perfurar minhas costas. Sei que Liam deve estar
observando tudo.
— Phoenix.
— Phoenix, me chamo Kyle. É um prazer conhecê-la. Desculpe perguntar, você está
acompanhada?
Antes que eu possa respondê-lo, uma voz grave o faz por mim.
— Sim.
Como ele chegou tão rápido?
Os dedos gelados de Diamond envolvem a parte de trás do meu pescoço e um arrepio
percorre meu corpo. Kyle mal tem tempo de reagir, porque Liam me força a andar colada a ele
até um dos cantos do salão. Nós estamos atrás de uma pilastra agora, onde ninguém pode nos
ver.
— Cuidado. — Me lança seu típico olhar de gelo.
— Cuidado você — retruco, com raiva de sua hipocrisia. — Sirva vinho para mulheres e
beijarei o primeiro que aparecer na minha frente.
— Você não ousaria…
— Me teste — rebato.
Ele sustenta meu olhar por longos momentos, sem dizer uma palavra.
— Sabe que vai estragar tudo, não sabe? — questiona, o semblante sério. — Não pode
flertar com ninguém enquanto estivermos em um acordo.
— Digo o mesmo.
— Eu não estava flertando.
— Você provocou.
— Phoenix, vamos voltar para lá, e por favor, não torne as coisas difíceis.
Eu não digo nada enquanto ele apoia a mão nas minhas costas e me guia de volta para o
evento. Ninguém repara em nós enquanto nos aproximamos dos parceiros de Liam. Ele me
apresenta para cada um deles, e tudo o que faço é sorrir e dizer meu nome.
Como a maldita namorada perfeita.
22

Enquanto Liam leva minutos em uma longa conversa sobre negócios, continuo sentada à
mesa com cara de paisagem e jogando tetris no celular. Não sei quando o leilão vai começar,
então permaneço aqui, ocasionalmente comendo um ou dois canapés. Tudo em prol da
recompensa final.

— Preste atenção — Liam diz, de repente, ao se aproximar. Observo suas íris azuis com
tédio. — Olhe discretamente para onde eu indicar.

Seu perfume caro me inebria, contudo, foco minha atenção no que ele me pediu. Avisto
um homem grisalho que veste um terno branco. Está entretido em uma conversa com três
pessoas.

— Ele se chama Magnus. É um acionista que me passou a perna quando comecei a tentar
recuperar as indústrias Diamond.

Franzo o cenho, não sabendo aonde ele quer chegar. O garoto continua:

— Noite passada, recebi uma mensagem anônima me dando algumas coordenadas sobre
um suposto pendrive escondido no item dez que vai a leilão essa noite. Algo que coloca a cabeça
de Magnus em uma bandeja de prata. Parece que além de estúpido por tentar me enganar e achar
que ficaria impune, ainda deixou um rastro de inimigos para trás sem despistá-los. Imagino que a
informação também tenha chegado, de alguma maneira, em seu ouvido.

— Você quer dar o maior lance — concluo a linha de raciocínio.

— Sim. Mas tenho que fazer outra coisa durante este tempo. Preciso que me faça esse
favor.

— O que você vai fazer?


— Vou para uma reunião emergencial. Aqui… — Liam tira o talão de cheque do bolso
esquerdo do paletó. — Fique com isso. Certifique-se de que o item dez seja meu até o final do
dia.

O encaro em silêncio. Sua expressão é totalmente séria. Não tenho ideia até onde vai a
obsessão de Diamond por retaliar as pessoas, o que me assusta. No entanto, isso não é da minha
conta. Pego o cheque no momento em que a abertura do leilão é anunciada.

Liam se levanta, arrastando o dedo indicador e o anelar sob meu queixo, e ergue meu
rosto para encará-lo. Minha pulsação triplica.

— Não me decepcione, passarinho.

É o que ele diz antes de se virar e ir embora. Após me recompor, ajeito a saia do vestido e
me encaminho para a área do leilão, tomando um lugar discreto em uma das cadeiras das últimas
fileiras.

— É sua primeira vez? — A voz de Vanessa me faz olhar para o lado; ela acaba de tomar
a cadeira à minha esquerda.

— Sim — respondo, na tentativa de descobrir qual é a dela. — Como ofertante, no caso.

— Entendo. — Ela ajeita os cabelos, puxando-os para frente. — Vi que Liam saiu.

— Olha só, eu não sei o que você teve com Liam, ou o que sente por ele, mas eu não vou
fazer parte disso — a corto, antes que possa completar sua frase.

O rosto dela cora.

— Eu só ia sugerir te fazer companhia.

Agora, sou eu quem me sinto constrangida. Limpo a garganta, dizendo:

— Bom, tudo certo. Me desculpe, é que achei que…

— Eu estivesse tentando roubá-lo de você? Para ser honesta, eu sempre o admirei de


longe. Vou ser uma mentirosa se disser que não tenho interesse. Mas ele está com você agora e
respeito isso.

Sua honestidade me deixa perplexa e eu apenas aceno com a cabeça, sem saber ao certo
como agir. Ser a namorada de Liam é um território desconhecido para mim. Eu sabia como ser a
namorada de Ren. Era fácil, sem dramas, e eu não precisava lidar com fantasmas do passado,
pois eu era a única na vida dele.

— Liam nos contou que você é uma artista e que seus quadros são magníficos —
Vanessa diz.

— Ele disse isso? — questiono, surpresa.

— Sim, também falou que você é boa com o piano. — Dá de ombros. — Ele parecia
orgulhoso.

Tenho vontade de rir, porque Vanessa só pode estar imaginando coisas. De qualquer
forma, Liam atua bem. Não tenho motivos para aceitar isso como elogio, por mais que uma parte
idiota de mim queira acreditar que existe sim, ao menos, um pouquinho de verdade por trás de
tudo.

Me volto para frente e me dou conta de que já estamos no item sete.

Peço licença a Vanessa e levanto, posicionando-me algumas fileiras para frente, próxima
do palco. Sento ao lado de um senhor, segurando firme minha placa entre as mãos.

Os próximos itens são vendidos, até chegar o dez.

É nada menos que um quadro. Uma obra de um pintor sueco que admiro. Magnus e
algumas pessoas dão lances iniciais de cinquenta mil dólares.

— Cem mil. — Ergo minha placa.

— Uau! Cem mil dólares. — O homem com o microfone parece extasiado. — Alguém dá
um lance maior?

— Cento e cinquenta mil — Magnus retruca.

— Trezentos — dobro.

Ele me lança um olhar chocado, a apenas algumas cadeiras de distância, e reparo na


forma como sua mão treme ao redor da placa.

— Quatrocentos mil — insiste.

— Quinhentos — sentencio.

Um momento de silêncio preenche o ambiente. Fito de soslaio o homem que começa a


erguer a placa timidamente, para anunciar um novo lance, até que ouço o barulho do martelo
sendo batido.

— Vendido para a bela senhorita que deu o lance de quinhentos mil dólares — o leiloeiro
exclama.

Magnus se cala e os ombros se curvam. Percebo, porém, o momento em que seus orbes
se fixam em mim com uma certa fúria exalando deles. Uma expressão que evidencia que isso
não vai ficar assim.

Uma salva de palmas eclode ao meu redor e eu apenas sorrio polidamente, espantando o
calafrio que me percorre.
Quando volto para o hotel com o quadro de Liam, deixo-o apoiado contra uma das
paredes. Ele ainda não voltou, então aproveito o momento de privacidade para fazer uma ligação
para Emi. Sei que ela deve estar louca por notícias, porque ontem me deixou um monte de
mensagens.

Ela atende no segundo toque.

— Finalmente! Achei que nunca mais fosse lembrar que eu existo. Vocês dois estão em
um hotel?

— Sim, estamos. — Rolo os olhos e oculto a parte em que temos que dividir a mesma
cama. Emi não deixaria essa informação de lado e criaria centenas de fantasias sobre isso.

— E aí, aconteceu algo? — indaga, sonhadora.

— Claro que não. Tá cansada de saber que a gente não se dá bem.

— Não acredito nisso.

— Problema todo seu — cantarolo. Logo em seguida, ouço-a bufar.

O barulho da porta abrindo me faz desligar a chamada sem ao menos dizer “tchau” para
Emi. Giro nos calcanhares, e encaro Liam, que olha para mim de volta. Ele quebra o contato
visual apenas para observar o quadro. Em seguida, inicia o processo de desembalá-lo.

— Está aqui. — Diamond retira um pendrive pequeno de trás do quadro, em um fundo


falso.

— O que vai fazer com isso? — questiono, mas acaba sendo uma pergunta retórica, já
que Liam não responde, apenas vira as costas e se dirige ao quarto.

Que forma incrível de demonstrar gratidão, penso com ironia.

Ligo para o serviço de quarto do hotel e peço algo para comer. Enquanto espero, mando
uma mensagem para Emi e explico que tive que desligar. Ela responde apenas com alguns
emojis. Meu pai não falou mais nada desde que disse que estava tudo bem. Agora, me concentro
nas mensagens não respondidas de Donna.

Me sinto mal por ignorá-la, mas há coisas que estão fora do meu alcance. Não posso me
envolver a fundo em sua relação com Liam. Isso o faria me odiar profundamente.

Sei que não devo torná-lo meu inimigo. É algo que venho aprendendo com o tempo.

Quando um dos funcionários chega carregando meu almoço num carrinho de prata,
agradeço-o e levo a salada caesar e o pedaço de bolo até a poltrona. Liam retorna à sala no exato
momento em que dou a última garfada no bowl com alface.

— Tem um jantar hoje à noite — anuncia, de maneira fatídica. Ele caminha até mim,
pegando o prato apoiado em um dos braços da poltrona que contém a fatia do bolo.
Eu o encaro, arqueando as sobrancelhas.

— Você pode não roubar minha comida?

Liam me ignora, dando uma garfada no bolo.

— O jantar é às seis — continua. — Preciso que você esteja pronta até lá.

Depois da segunda garfada, ele trava. Diamond alterna o olhar entre mim e o bolo. Seu
rosto começa a ficar vermelho e eu franzo o cenho.

— Phoenix. — O loiro começa a tossir. — O que tinha nesse bolo?

— Nozes. — Começo a me assustar com sua reação.

Ele me fita como se eu tivesse acabado de cometer um crime. Como se eu fosse uma
traidora.

— Sou alérgico a nozes.

— Como eu poderia saber? — questiono, levantando-me. Liam não para de tossir. — Foi
você quem roubou o bolo.

— Pegue água — ralha, entre os dentes.

Levanto-me apressada e busco a água, ignorando sua ordem e o tom grosseiro, pois o
desespero começa a se instalar. A ideia de que Liam pode morrer por um simples pedaço de bolo
me atormenta, e mordo nervosamente o lábio inferior. Liam arranca a garrafa das minhas mãos e
começa a bebê-la.

Ele se acomoda na poltrona, iniciando o processo de despir-se. A gravata, o terno e, em


seguida, os botões da camiseta social. Não sei o que devo fazer agora. Pela primeira vez, desejo
que ele me dê ordens. Observo atentamente enquanto ele despe, uma cena meio antiquada, mas,
dadas as circunstâncias, não posso tirar os olhos dele. Se algo acontecer, se Diamond começar a
convulsionar ou algo do tipo, quero estar pronta. Conheço noções básicas de reanimação. Talvez
possa…

— Quer parar de me encarar como se eu fosse morrer? — Quebra o silêncio, o tom de


voz seco.

— E você vai morrer? — pergunto, porque preciso estar pronta. — Talvez devamos ir até
o hospital…

— Estou bem — me corta, abruptamente. Sua pele branca está cheia de manchas
vermelhas. — Não ingeri grande quantidade.

— Tem certeza?

— Tenho. Agora, preciso que você fique em silêncio para que eu possa me recuperar.
— O que tem a ver? — indago, confusa.

— Sua voz… — começa a dizer de forma lenta, me olhando com tédio. — Me irrita —
completa.

Não sei porque, mas me sinto magoada. Liam e eu vivemos em uma guerra de farpas
trocadas. No entanto, nada do que ele já tenha me dito antes me chateou tanto quanto isso.
Cerrando o maxilar, apenas me viro e o deixo para trás, sem me importar se está tendo uma crise
alérgica. Eu só queria ajudá-lo e, como sempre, fui recebida com hostilidade.
Fito o quarto vazio e lembro de um dos meus propósitos aqui: encontrar minha mãe. Não
faço a mínima ideia de por onde começar, então pesquiso sobre detetives particulares em Boston
no Google. Posso usar o dinheiro que Liam me deu no cassino. Não o gastei e trouxe comigo
para emergências. Acho que é mais que o suficiente.

Quando encontro o número de um, entro em contato por mensagem. Não demora muito
até que ele me responda e marque um local para conversarmos. Tendo o endereço da cafeteria
que o homem me passa, guardo o celular na bolsa e me vejo determinada a sair.

No caminho pela casa, encontro Liam e Kim na sala, conversando.

— Os remédios são para controlar as reações — ela diz, entregando-o um saco pardo.

— Obrigado, Kim. — Diamond me lança um olhar de soslaio.

Quando giro a maçaneta, ele questiona:

— Para onde vai?

Não o respondo. Tudo o que faço é fechar a porta atrás de mim e apertar o botão para
chamar o elevador. Aperto os olhos quando ouço a porta se abrir e amaldiçoo a lentidão para a
máquina chegar no andar.

— Phoenix. — A voz dele ecoa atrás de mim.

Não me viro, nem digo nada.

As portas metálicas finalmente se abrem. Entro no elevador e aperto depressa o número


para a recepção. Contudo, Liam entra junto antes que as portas se fechem. Solto uma lufada
brusca de ar, irritada com sua insistência. Não quero conversar com ele agora, nem nunca mais.

Ele veste a camiseta de botões, mas a deixa aberta, como se tivesse vestido às pressas
para me seguir até aqui. O cabelo loiro está bagunçado, e embora a reação alérgica pareça ter
cessado, há manchas avermelhadas espalhadas por alguns lugares de seu corpo.

— Não vai dizer nada?

Ele parece irritado com meu silêncio.

Dou de ombros.
— Isso tudo por que eu disse que sua voz era irritante? — zomba, com o tom cortante.

Cruzo os braços em frente ao peito, olhando para o lado oposto do elevador.

— Diga algo. Qualquer coisa.

O silêncio continua.

Então, de repente, Liam se aproxima tanto que solto uma lufada de ar pela boca,
completamente surpresa. Suas mãos seguram meus ombros, e eu ergo o rosto para encará-lo.
Meu coração começa a bater mais forte conforme seu calor corporal me abraça, e seus dedos se
afundam suavemente na minha pele. Congelo quando ele se inclina e me beija.

É um beijo brusco. Sua boca se choca contra a minha. Seus lábios apertados sobre os
meus. Meu corpo parece derreter em suas mãos, me sinto como um floco de neve se desfazendo
sobre uma superfície lisa.

Coloco as mãos em seu peito para afásta-lo, mas meus dedos se enroscam em sua
camiseta, puxando-o mais para perto. Nossas bocas se tornam urgentes. Uma das mãos de Liam
desliza pelas minhas costas e firma na base da minha coluna, puxando-me ainda mais para perto.

A mão que resta em meu ombro puxa meu rabo de cavalo, elevando minha cabeça, de
forma que o beijo se torna mais profundo. Quando o elevador começa a parar, Liam se afasta. É
a primeira vez que vejo algo diferente do gelo em seus olhos. Estão quase… calorosos.

Engulo em seco, sem palavras.

— O que foi isso? — Resvalo a ponta dos dedos nos lábios.

— Está vendo? Agora você fala. — Termina de abotoar a camiseta como se nada tivesse
acontecido.

Ele me beijou só para que eu falasse?

As portas do elevador se abrem e hesito antes de sair. Lanço um último olhar para Liam.
Ao contrário de mim, não parece ofegante, como se o beijo não tivesse acontecido. Entrando em
seu jogo, apenas o dou as costas e caminho para fora do hotel, sem lançar um único olhar sobre o
ombro ou dizer a ele para onde estou indo.
23

Não acho que Liam esteja me seguindo, então peço o táxi para a cafeteria. Estou nervosa
porque esse é um grande passo. Achar minha mãe vai significar muito para mim. Quero saber o
que aconteceu e o porquê de ela ter ido embora.

A cafeteria é como qualquer outra, semelhante às de Tóquio. Na mensagem, Kevin, o


detetive, disse que estaria usando um chapéu azul. Não é difícil identificá-lo. Ele está em uma
das mesas isoladas do restante da cafeteria. Eu caminho em sua direção, e puxo uma das
cadeiras.

— Phoenix? — questiona, buscando uma confirmação.

— Sim. — O analiso.

Kevin não é tão velho. Parece estar no início dos quarenta anos. Há uma barba rala que
cobre seu queixo e os olhos são escuros. Ele não parece intimidador, como achei que seria.

— Você precisa encontrar alguém — conclui, pela breve mensagem que o mandei.

— Minha mãe — especifico. — Ela foi embora de Tóquio quando eu era criança. Não sei
nada sobre ela, desde então. Só que veio para cá.

— Só preciso do nome — é tudo o que ele diz. — E dinheiro, vivo. Este é o meu valor.
Consigo informações dentro de três dias.

Ele desliza um pedaço de papel em minha direção. Em silêncio, analiso a quantia que ele
quer.

— Temos um acordo. — Sinto um frio na barriga. Kevin estende a mão para mim e a
aperto, selando meu destino.
Está na hora do jantar de Liam, mas, para ser honesta, não estou a fim de encará-lo, muito
menos de fingir ser sua namorada. Meu humor está péssimo. Não sei se consigo sustentar nossa
farsa hoje; só quero limpar minha mente e fingir que não sou a Phoenix Ogawa. Desejo ser
qualquer outra pessoa, alguém que não carregue uma bagagem pesada.

Desde que saí da cafeteria, tenho andado pelas ruas de Boston. Paro em frente a uma
galeria de artes cuja fachada imediatamente me atrai. Feita de vidro, ela permite que eu olhe para
os quadros em exposição. São bonitos, abstratos.

Leio a placa que diz "apresente-se na noite livre, no sábado. Qualquer arte é bem-
vinda". Não resistindo, entro na galeria e pego uma das fichas de inscrição. Após preenchê-la, a
entrego para a mulher que fica na recepção. Ela me dá um sorriso gentil, e eu me despeço.

Ao pisar na calçada, um carro freia bruscamente em minha frente. Reconheço os cabelos


loiros e as íris azuis como gelo inconfundíveis. Liam desce do veículo, arrumando a lapela do
terno. Rolo os olhos, sem tempo para seus jogos.

— Pare de me seguir — murmuro, quando ele começa a andar atrás de mim na calçada.
Sigo para o lado oposto do automóvel.

— Te avisei sobre o jantar.

— Não dou a mínima.

Sua mão se fecha ao redor do meu pulso e ele me puxa para si. Nossos corpos se chocam
um contra o outro. Diamond olha no fundo dos meus olhos e eu prendo a respiração por conta da
proximidade. Algumas pessoas passam por nós, intrigadas.

— Phoenix, por favor, não torne as coisas complicadas — pede, num tom de voz baixo.

— Não tornar complicado?! — Aumento o tom de voz. — A questão aqui, Diamond, é


que você é um babaca em tempo integral. Estou cansada da sua hostilidade e confusão. Não pode
me beijar porque acha que é conveniente. Eu não sou sua marionete.

Ele respira fundo e sua expressão se mantém séria.

— Eu não te beijei porque era conveniente. Te beijei porque você tem a boca mais
magnífica que já vi. Não paro de pensar nisso. Você está me enlouquecendo.

É impossível respirar agora. Apenas o encaro, em silêncio, sem saber o que dizer. Liam
começa a me guiar até o automóvel e desta vez não recuo. Eu o acompanho, até que estejamos
indo juntos para o jantar.
O jantar é na casa do pai da Vanessa, e tenho que conter o suspiro no fundo da garganta
assim que nos sentamos à mesa, pois a conversa sobre negócios começa quase imediatamente.
Além de Diamond e eu, há outro homem e a ruiva presentes no jantar.

Ela me dá um sorriso pequeno e eu retribuo.

Quando terminamos de comer, ela me chama para ir até seu quarto e aceito, após pedir
licença. Nós subimos as escadas intermináveis da mansão. O quarto de Vanessa é contido, não há
muitas cores, e ela parece alguém muito pragmática. Tudo está organizado metodicamente.

Ela senta na cama e eu ocupo a poltrona.

— Agora podemos ter uma conversa de garotas — diz, animada. — Esse prendedor no
seu cabelo é de ouro? — questiona, intrigada.

— Ah, é — respondo, meio sem graça. — Meu pai gosta muito de objetos de ouro.

— Fiquei sabendo que ele é um grande homem.

— Sim, ele é. Às vezes, queria que ele fosse um homem comum para que tivéssemos
mais momentos juntos.

Vanessa assente com a cabeça. Ela não precisa dizer nada para que eu saiba que ela me
compreende.

— Tenho um encontro às escondidas depois do jantar — anuncia, de repente, mudando a


atmosfera tensa. Escondo a surpresa.

— Bom, espero que se divirta.

Antes que eu possa dizer algo mais, uma batida na porta do quarto me interrompe. Uma
das empregadas entra e anuncia que Liam está indo embora e que é para que eu o acompanhe.
Despedindo-me de Vanessa, eu desço a escadaria, onde Diamond me espera ao fim. Ele
engancha o braço no meu, me guiando até o hall.

O pai de Vanessa se despede e, enquanto caminhamos sozinhos até o carro, Liam diz:

— Cuidado.

Olho para ele, confusa.

— Com o quê?

— Vanessa. Ela se aproximou de você por conveniência.

— Por quê?

— Quer saber o motivo de estarmos juntos.

Fico em silêncio. Inspeciono seu rosto iluminado parcialmente pela luz do luar. Sei que
Liam é perspicaz. Observa o que eu não vejo, então apenas acato suas palavras. Quando estamos
dentro da Limousine, ele se serve com um copo de uísque e pousa uma das mãos em meu joelho.

Minhas íris imediatamente são atraídas para seu rosto.

— O que estava fazendo com um detetive? — indaga, ao me fitar com atenção.

Como eu esperava, Liam não deixa passar nada.

— Isso não é da sua conta. Não interfere em nada no nosso acordo.

— Você é da minha conta, Phoenix. Acredite em mim.

Fico em silêncio, porque essa é uma parte da minha vida que não estou disposta a
compartilhar. Pelo menos não por enquanto. É algo íntimo e pessoal, algo que fará com que eu
me sinta exposta e despida para Liam, enquanto ele guarda todos seus segredos para si mesmo.

Pelo resto do trajeto, nenhum de nós diz mais nada. Na suíte, sou a primeira a ir para o
banheiro. Desta vez, uso o chuveiro, aproveitando o momento que estou sozinha para relaxar.
Meus músculos dos ombros estão tensos, a água quente ajuda a desfazer a rigidez.

Quando saio do banheiro, usando meu pijama para dormir, encontro Liam sentado na
ponta da cama. Está com a camiseta de botões aberta. A visão de seu peitoral definido
completamente nu faz com que meu coração dispare.

— Venha aqui, passarinho. — Sinaliza com a cabeça para o espaço ao seu lado.

Hesitante, ando até ele e me sento na cama ao seu lado. Agora, nossos braços estão se
tocando. Olho para o rosto de Liam. Seus olhos azuis me fitam de um jeito desconcertante. Ele
ergue o braço, a mão encaixando no meu pescoço, os dedos posicionados sobre minha pulsação.

— Seu coração está acelerado.

Fico em silêncio, esperando.

— Se eu beijá-la outra vez, você vai começar a me odiar? — O loiro move seu polegar
para frente e para trás sobre minha pele.

Balanço a cabeça, negando, e é o suficiente. Liam corta a distância entre nós. Sua boca
toca a minha e ele me puxa para si, enlaçando o braço ao redor da minha cintura. Agora, estou
montada em seu colo. Sinto sua rigidez abaixo de mim e meu corpo arde de um jeito que nunca
ardeu antes. Suspiro contra seus lábios, afundando minhas mãos em seus cabelos.

A mão de Liam desliza por uma de minhas pernas expostas no shorts de algodão e ele
morde meu lábio inferior com força.

Abro os olhos, o encarando. Suas íris estão fixas em mim.

— Phoenix, você é a minha ruína. — Diamond roça o nariz contra o meu.


— Então se torne a minha — peço, num sussurro.

— Nem mesmo alguém tão frio como eu seria egoísta a esse ponto — fala, me tirando de
cima de si.

É como se todo o desejo passasse e ele estivesse pensando racionalmente. De repente, sua
máscara de pedra está de volta em seu rosto. Observo quando ele se levanta e me deixa para trás,
indo até o banheiro. Ouço a tranca da porta e continuo parada, os olhos fixos para onde ele foi.

Começo a sentir o constrangimento e a raiva me consumir. Como ele pode ser tão idiota?
Me deito e viro de costas para o seu lado da cama, me cubro com as cobertas como se pudesse
apagar a minha existência e toda a vergonha que me sufoca no momento.

Quando ele volta para dormir, não diz uma palavra.


24

antes
Pela expressão da avó Ana, percebo que a ligação que ela teve com Hernan não foi nada
boa. Ela parece apreensiva, mas tenta esconder isso de nós, em vão. É possível lê-la como se
fosse um livro aberto.

— Vó — chamo, observando-a do batente de sua biblioteca.

Ela me fita, saindo do transe em que estava.

— Já comeu? Pedi para prepararem sopa para você. — Sorri em minha direção de forma
gentil.

— Já, estava ótima, obrigado.

Entro na biblioteca e me sento ao seu lado, em um sofá confortável para leitura. Observo-
a. Desde que acordamos, ela está esquisita, absorta em seus próprios pensamentos. Isso quer
dizer que não teve êxito em fazer com que Hernan abaixasse a guarda.

— Seu pai está vindo buscar vocês. — Solta um longo suspiro.

Me sinto inquieto com a informação, mas não estou surpreso. Sempre soube que, mais
cedo ou mais tarde, ele viria. É apenas uma questão de tempo para que finque as garras em todos
nós novamente.
— Sinto muito, Liam — continua, olhando para as próprias mãos cruzadas sobre o colo.
— Tentei conversar. Dizer que poderia criar todos vocês…mas ele foi irredutível.

— Entendo — digo, porque sei que se ela pudesse, nos aceitaria em sua casa com toda
alegria do mundo.

Minha avó é a melhor pessoa que conheço.

Tento me distrair jogando xadrez com Brianna pelas próximas horas. O tempo passa
devagar, de forma agonizante, porque sei o que está por vir. Vamos voltar para os Estados
Unidos e provavelmente mais punições vão recair sobre nós, e não vai haver ninguém para nos
salvar desta vez, pois Hernan vai se certificar disso.

Estou colocando Bree para dormir quando Bastian aparece no quarto com a expressão
tensa.

Ele não precisa dizer nada, seus olhos anunciam tudo.

Nosso pai está aqui.

Depois de cobrí-la, eu e Bash descemos as escadas. Hernan está na sala, os braços


cruzados em frente ao peito e o rosto completamente inexpressivo, sem revelar nada.

— Vamos embora — Hernan diz, calmamente. — Onde está Brianna?

— Dormindo. — Quebro o silêncio.

— Vá buscá-la — ordena, irredutível.

— Está tarde — minha vó interrompe, adentrando no cômodo. — Durmam aqui esta


noite e saiam pela manhã. Bastian e Liam também estão cansados.

— Ana — meu pai saúda, o desgosto quase palpável no tom de voz. — Eu não preciso
que me diga como criar meus filhos. Isso não te diz respeito. Cuide da porra da sua vida, que
aliás, já está quase no fim.

Enrijeço. Bastian dá um passo à frente, mas minha avó ergue a mão, impedindo-o.

— Você está na minha casa, Hernan. Exijo respeito. Tenho seguranças prontos para
chutá-lo para fora, sob a chuva. — Ela maneia a mão em direção às janelas, sinalizando o
temporal que ricocheteia os vidros. — Acredito que tenha esquecido quem sou, mas permita-me
lembrá-lo. Sou Ana Diane Lawrence, influente o suficiente na Alemanha para que você seja visto
como um zero à esquerda. O sangue que corre na veia dos seus filhos também é meu sangue. A
partir de agora, você vai tratá-los da maneira correta, ou vou expor tudo na mídia.

— Isso arruinaria tanto sua reputação quanto a minha — meu pai retruca, com dúvida
refletida em seus olhos.

— A diferença é que apenas um de nós coloca o dinheiro e influência acima da família.


Meu pai fica em silêncio.

— Tudo bem — recua, a raiva velada em suas íris. — Amanhã nós partiremos e não
haverá mais castigos extremos para vocês.

Como um passe de mágica. Basta ameaçá-lo quanto ao seu dinheiro que ele repensa sobre
tudo.

Patético.

Bastian e eu trocamos um olhar significativo e, em seguida, subimos para nossos próprios


quartos.

Na despedida, Brianna começa a chorar enquanto Bastian e eu abraçamos nossa avó. Ela
nos pede para ligarmos sem hesitar caso qualquer coisa aconteça. Depois, percebo que Ana
conversa em particular com Hernan. Eles usam o tom de voz baixo propositalmente para que não
escutemos.

Ao fim, somos levados para o aeroporto em uma van.

Meu pai pergunta:

— Qual dos dois espertinhos teve a brilhante ideia de fugir para a Alemanha?

— Eu — Bastian assume a culpa, sem rodeios. — Você não vai fazer o que bem entender
com meus irmãos. Não mais.

Bree está dormindo no banco de trás, alheia a conversa. Acordamos muito cedo. Meus
olhos estão pesados, mas me forço a me manter em alerta.

Meu pai se mantém em silêncio e troca olhares com meu irmão mais velho.

Acredito que ele não quer colocar tudo a perder, não por isso. Bastian é sua aposta final, e
Hernan sabe disso. Se meu pai não tiver um sucessor, todo seu esforço vai ter sido em vão. Ele
precisa de Bash e não pode deixá-lo sair dos trilhos, o que inclui não nos tratar mal.

Durante o voo para casa, finalmente entendo.

Algumas pessoas estão fadadas a infernos particulares.

Hernan criou o meu.


25

Fico cinco longos minutos encarando a tela do telefone, onde Kevin me enviou o novo
endereço de minha mãe. Quero perguntar como ele descobriu tão rápido, mas, como detetive, sei
que não revelará suas fontes ou métodos.

Nervosa e com os dedos trêmulos, digito o endereço no Google. Fica a trinta minutos
daqui. Liam saiu há alguns momentos para conversar no telefone. Espio pelo olho mágico antes
de abrir a porta. Desde que dormimos juntos ontem à noite, após o beijo, nenhum de nós
conversou nada sobre isso. A única palavra que trocamos hoje foi “bom dia”.

Entro no elevador, apertando o botão. Quando as portas se abrem no hall, vejo Diamond
de costas para mim, com o telefone apoiado contra a orelha. Dou meia-volta e saio pelos fundos,
onde os funcionários descartam o lixo. Na rua, peço um táxi.

Durante todo o percurso até o endereço, a sensação de que vou vomitar me domina.
Minhas mãos suam e meu coração bate rápido. Preciso reunir todo meu autocontrole para me
acalmar. Não posso ter uma crise e estragar tudo.

Quando finalmente chego ao endereço, desço do táxi.

Encaro a fachada de tijolos da casa. É comum, como em um daqueles seriados


americanos. Não é tão grande, nem tão pequena. Parece o ideal para uma família de tamanho
médio. Pensar nisso faz meu peito doer. Não quero acreditar que Naomi tenha outra família.

Fico parada na frente da propriedade, apenas uma cerca branca me separa de me


reencontrar minha mãe.

A porta se abre e uma mulher sai para a varanda. Seus cabelos escuros estão soltos, e,
exceto pelas novas rugas no rosto, ela parece a mesma. Naomi não me nota, porque olha para a
direção oposta, parecendo contemplar a tarde ensolarada.

— Mãe — sussurro, quase inaudível, sentindo o nó na garganta e meu coração disparar.

Tenho tantas perguntas. Quero saber por que ela não voltou, por que foi embora e o que
fez em todos esses anos.

Estou prestes a tomar coragem e ir em sua direção quando tudo acontece.

A cena se desenrola em câmera lenta. É como se o mundo parasse.

Um garotinho surge por trás da porta. Ele tem cabelo castanho claro e segura um pedaço
de papel. Daqui, posso escutar seu grito empolgado:

— Mamãe, eu desenhei você e o papai!

Covinhas profundas surgem em suas bochechas quando ele sorri, e eu fico estática. Meu
coração murcha e morre dentro do meu peito. Minha mãe foi embora e construiu uma nova
família. Por mais que sempre tenha pensado nessa possibilidade, não queria aceitá-la, porque
significava que eu a tinha perdido para sempre.

Ela nunca voltaria para casa, nunca falaríamos sobre garotos. Nunca receberia conselhos
quando eu precisasse.

Só percebo que estou chorando quando toco minha bochecha e sinto os rastros molhados.

Não é justo.

Ela se ajoelha para ficar na altura do garotinho, meu irmão mais novo que eu nunca
soube que existia. Ela dá um beijo na bochecha dele e observa o desenho que o pequeno segura
entre os dedos. Um homem aparece e se junta à cena de família feliz. Me sinto uma estranha. E o
pior de tudo, é que sou uma. Minha mãe não me conhece, nunca teve interesse em me conhecer.
Sou uma espectadora de uma família perfeita que aparece em comerciais da televisão.

É demais para mim.

Me viro para fugir, indo em direção oposta, sentindo-me patética por ter acreditado que
havia uma razão coerente para ela ter deixado eu e o papai em Tóquio. Ela fez isso porque quis e
nunca se importou em voltar, pois tinha uma nova família.

Andando depressa, absorta em meus próprios pensamentos, não é surpresa quando


esbarro em alguém. Ergo o rosto, pronta para pedir desculpas, mas permaneço em silêncio assim
que Liam me envolve em seus braços.

— Qual o problema, passarinho?

Ignoro que ele me seguiu até aqui e deixo que as lágrimas escorram pelo meu rosto. Ele
fica parado, como se eu fosse um enigma e não soubesse o que fazer. É quase engraçado vê-lo
sem reação. Eu poderia rir se meu coração não tivesse sido partido alguns momentos atrás.

De forma relutante, ele me abraça.

Liam Diamond está me abraçando para me consolar.

Será que estou sonhando? Gostaria de estar, então eu acordaria e jamais teria visto minha
mãe com sua nova família. Mas essa é a realidade. Tão triste que meu único ombro amigo no
momento é a pessoa que mais detesto.

No próximo segundo, Liam começa a me carregar em seus braços como se eu não


passasse de uma pluma. Considerando seus músculos, é visível que ele leva a sério a academia.

Ele me solta apenas quando paramos em frente a um ponto de táxi. Não há seguranças ao
nosso redor, Liam veio sozinho. Quando estamos dentro do automóvel, minhas lágrimas já
pararam de cair. Agora, resta apenas a sensação esquisita no meu peito.

Como uma espécie de vazio.

Liam pede para que o taxista vá para o endereço indicado. Só percebo que não vamos
para o hotel quando paramos o carro em frente a uma lanchonete temática chamada Banana Split.

Olho para Liam, franzindo o cenho, quando saímos do carro.

— Quando Brianna estava triste, fazia eu ou meu irmão mais velho trazer ela aqui.

— Uma lanchonete chamada Banana Split? — Alterno meu olhar entre ele e a fachada
colorida do estabelecimento.

É difícil imaginá-lo dentro de um lugar como esse, mas é exatamente onde nos
encontramos nos próximos momentos.Para minha surpresa, os atendentes estão todos vestidos de
bananas. Escolhemos uma mesa e nos sentamos.

Olho para Liam, aguardando sua próxima ação. Ele pega o menu e começa a ler em voz
alta:
— Milkshake de banana feliz e caramelo, banana split feliz com duas bolas de sorvete de
creme, waffles recheados com banana feliz e chantilly. — Ele faz uma pausa para me encarar
com o semblante sério. — Qual dessas opções te faria se sentir melhor?
Eu rio, fungando.
— Acho que o milkshake de banana feliz e caramelo.
— Ótima escolha. — Ele acena para uma das garçonetes.
Com prontidão, a mulher se aproxima com prontidão usando a fantasia de banana
gigante.
— Um milkshake de banana e uma garrafa de água, por favor — pede e ela anota no
bloco imediatamente.
Quando a atendente se retira, observo Liam com curiosidade. Não compreendo por que
ele está fazendo isso por mim, demonstrando seu lado… humano. Diamond permanece em
silêncio, não faz nenhuma pergunta ou força a barra comigo, o que me leva a decidir ser sincera.
— Eu estava procurando por minha mãe. — Olho para a mesa e começo a mexer em um
guardanapo. — Ela foi embora quando eu era criança.
— Você a encontrou?
— Sim. — Engulo em seco, respirando fundo. — Mas ela tem uma nova família. — Meu
tom de voz sai baixo, quase inaudível. — Pensei que haveria uma explicação coerente para ela
ter me deixado. Para nunca ter enviado nenhum tipo de mensagem. Mas ela estava feliz,
seguindo em frente como se eu nunca tivesse acontecido. Como se ela não tivesse me deixado
esperando por todo esse tempo.
— Como se sente agora? — questiona cautelosamente, fazendo-me voltar a olhar para
seu rosto.
Sua figura está embaçada através dos meus olhos marejados.
— Me sinto traída, triste e com raiva. Muita raiva — admito.
— Já me senti assim em relação aos meus pais. Sei bem como é. Criamos expectativas
sobre essas pessoas que, naturalmente, deveriam nos amar e nos proteger. Depois que entendi
como o mundo funciona, que todos agem por motivos inteiramente egoístas, parei de me
decepcionar com eles. Ou qualquer um. — Dá de ombros, como se a matemática fosse simples.
Refletindo sobre suas palavras, percebo que Liam não espera nada de ninguém. Parece
que ele se blindou, tornando-se independente e protegendo-se das expectativas, da esperança de
que um dia as coisas seriam diferentes.
— E a sua mãe? — pergunto, antes que possa me conter. — Ela disse para mim que se
arrependia, que queria seu perdão.
— Minha mãe agiu de forma egoísta quando eu e meus irmãos mais precisamos dela.
Agora, posso fazer por mim mesmo o que ela não fez. Não preciso mais dela.
Seu tom de voz é calmo, porém irredutível, assim como a expressão no seu rosto.
Ele não pretende perdoá-la. Nunca.
Não sei o que ela fez, mas aposto que foi algo horrível para Liam não se esquecer.
O milkshake de banana chega, acompanhado da água. Mergulho o canudo dentro da taça,
começando a prová-lo. O sabor é uma explosão doce. Agora entendo a razão de colocarem a
palavra feliz em cada item do cardápio. Me sinto um pouco melhor.
Observo ao redor e percebo que a maioria das pessoas presentes são pais acompanhados
de seus filhos. Liam e eu somos os únicos que parecem deslocados no cenário. Até porque ele
usa um terno.
— Obrigada por isso — falo, porque sinto necessidade.
— Tudo bem.
— A sua irmã tem sorte de ter tido você e seu irmão mais velho.
Liam pode não demonstrar muito, mas sei que ele faria qualquer coisa para proteger
Brianna. Não há nada no mundo que o impeça disso.

— Você quer voltar para o hotel? — questiona, fugindo do assunto.

Talvez o passado dele seja mais complicado do que eu imagine. Solto um suspiro.

— É, pode ser. Vou me apresentar em uma exposição de artes amanhã. Preciso pintar um
quadro.

— Tenho uma reunião amanhã, às duas.

— A exposição é às três. — Batuco os dedos sobre o tampo da mesa. Um silêncio


esquisito recai sobre nós. — Quer aparecer por lá?

— Vou tentar — é tudo o que diz.

Liam deixa alguns dólares sobre a mesa, mais que o suficiente para pagar nossa conta.
Nos levantamos e saímos. Desta vez, uma Limousine nos espera. Nem percebi quando ele a
solicitou.

No trajeto de volta para o hotel, penso no quanto o dia hoje foi estranho. Liam e eu
tivemos uma conversa inteira sem farpas. Ele me levou à lanchonete que sua irmã costumava
frequentar, e agora estamos retornando para o hotel com um silêncio reconfortante, sem
ressentimentos.

A vida é mesmo estranha.


26

A exposição de artes está cheia de gente. Seguro contra o peito o quadro que irei exibir.
Passei a noite toda pintando-o. Quando Liam acordou, eu estava indo dormir. Cheguei trinta
minutos atrasada, porque acordei duas horas da tarde e fui às pressas tomar banho. Além disso, o
engarrafamento não ajudou.
Liam deixou apenas um bilhete sobre a cômoda, dizendo que havia ido para a reunião.
Mordo o lábio inferior nervosamente e entrego meu quadro para um dos organizadores.
Acho que é como os pais se sentem ao deixar os filhos no primário pela primeira vez. Um misto
de hesitação e ansiedade.
Observo enquanto meu quadro é pendurado em uma das alas. Particularmente, estou
orgulhosa de minha pintura. Ela foi pessoal, trabalhada o máximo que consegui com o tempo
limitado. Fico parada em frente à tela e logo outras pessoas se juntam ao meu redor para observá-
la.
— Que quadro esquisito — alguém diz.
— Eu adorei! — Outra voz comenta.
— É lindo, mas meio assustador — a terceira pessoa acrescenta.
Paro de prestar atenção na conversa ao meu redor. Como artista, sei que nem todos irão
gostar do meu trabalho, então não dou a mínima. Alguém para ao meu lado, dizendo:
— Que quadro incrível, não acha?
Viro o rosto, pronta para responder, mas me calo ao avistar o rosto do homem que estava
com minha mãe. Este cara é o pai do meu irmão, que nem sabe que existo. Sinto meu corpo
estremecer, minhas mãos começam a suar e minha mente se esquece de como pronunciar as
palavras.
— Está tudo bem? — Franze o cenho. — Você parece pálida.
— Desculpe, é que não comi nada hoje. — Uma meia verdade. — Mas estou bem.
Seus olhos esquadrinham meu rosto, e ele solta uma risadinha.
— Que engraçado. Você parece com minha esposa. Só que mais jovem.
Eu sorrio, sem graça, sentindo náuseas.
— Fico feliz que tenha gostado do quadro — é tudo o que digo.
Ele finalmente percebe o crachá de identificação de artista no meu peito.
— Ah! Foi você quem pintou o quadro. Ele está à venda? Acho que ficaria ótimo na
minha sala de estar. Eu e minha esposa gostamos muito de pinturas.
— Não pensei sobre isso — admito. — Mas podemos negociar. — Penso por alguns
momentos. — Bom, na verdade, pode levá-lo. De graça.
— Sério?
— Sim, só preciso assiná-lo. — Dou de ombros, fingindo que não estou prestes a vomitar
meus órgãos.
Tiro uma caneta da bolsa e assino a tela com o nome Phoenix Ogawa. Eu poderia usar
meu pseudônimo, Flora, mas quero que minha mãe saiba. Quero que ela veja meu nome, que o
assombre tanto quanto a ideia de vê-la outra vez me assombrou todos esses anos.
— Vou avisar aos organizadores que você irá retirá-lo. Seu nome…?
— Garret Jones.
— Ótimo, sr. Jones. Espero que o quadro fique bom em sua sala de estar. — Me distancio
antes que ele possa dizer qualquer outra coisa ou que eu desista.
Deixo o nome dele com o organizador que pendurou meu quadro, depois vou até o
banheiro da galeria, aproveitando que está vazio. Respiro profundamente, me encarando através
do espelho. O que é que estou fazendo?
Depois que saio, me surpreendo ao encontrar Liam. Ele está parado no meio da galeria, as
mãos enfiadas no bolso e olhando para um dos quadros. As pessoas ao redor dele percebem sua
presença, que se destaca em meio às outras, mas ele parece absorto a esse tipo de atenção. Ou
simplesmente se acostumou.
Me aproximo, pensando que ele não nota minha presença, contudo o loiro fala:
— Seu quadro já foi vendido? Perguntei para um dos organizadores se podia levá-lo e
disseram que estava reservado.
Escondo a surpresa no meu rosto. Diamond queria um dos meus quadros?
— Outra pessoa insistiu muito para levá-lo. — Escondo a verdade.
Finalmente, ele volta seu olhar para mim. As íris azuis, quando encontram as minhas,
desencadeia uma descarga elétrica por todo meu corpo. É como se eu tivesse levado um choque.
Não entendo por que isso está acontecendo. Me sinto vulnerável na presença de Liam.
— Por quantos milhares terei que subornar o gerente desse lugar para que deixe eu levar
seu quadro? — Arqueia as sobrancelhas em minha direção.
Uma sombra de sorriso começa a se formar em meus lábios.
— Faço um quadro exclusivamente para você, sr. Diamond.
— E quanto vai me custar?
— Nada. É um presente.
— Eu quero gastar meu dinheiro com você. Por favor, me permita.
Franzo o cenho.
— Quinhentos dólares — ofereço.
— Barato.
— Mil.
— Não faz nem cócegas.
— Dez mil.
— Tudo bem, mas esperava mais de você.
— Quer que eu cobre quanto? Quinhentos mil dólares? — questiono, confusa.
— Se você achar necessário, pagarei. Não coloco preço na arte de ninguém, muito menos
na sua. O que você me pedir, acharei justo.
— Então cem mil, e serão doados para as instituições que eu escolher.
Algo cintila em seus olhos.
— Feito.
Sorrio para ele, mas o sorriso se desfaz assim que vejo Garret se aproximar. E ele não
está sozinho. Ao seu lado, está ninguém menos que minha mãe.
— Aqui está ela, a artista de quem te falei! Reservei o quadro para nós — anuncia,
ansioso.
Então, nossos olhares se encontram, e o mundo todo para de girar. De repente, não me
lembro de como respirar. Naomi Ogawa — agora Jones — me encara como se tivesse visto um
fantasma.
— Nix? — ela sussurra, usando o apelido de infância.
Tenho vontade de vomitar.
De repente, Liam me ampara, passando um dos braços ao redor dos meus ombros e
segurando-me contra si. Abro a boca para falar, contudo, nenhuma palavra sai. Não sei o que
dizer, ou como reagir, apenas a observo. Garret parece perdido.
— Você conhece a artista? — ele indaga, surpreso.
Ela o ignora.
— Meu Deus. Você está uma mulher crescida. — A frase deixa um gosto amargo em
minha boca.
— O que você esperava? — consigo questioná-la. — Que, depois de todo esse tempo, eu
continuasse a mesma garotinha esperando pela mamãe? Você não sabe quantas noites passei
olhando pela janela. — Meus olhos começam a se encher de lágrimas de raiva. — Não sabe
quantas vezes me questionei sobre o que eu fiz de errado para que minha própria mãe tivesse ido
embora.
Desta vez, são os olhos dela que se enchem de lágrimas.
Como ela ousa?
— O quadro que você gostou… — Me volto para Garret. — É a visão que eu tive de
Naomi indo embora.
A compreensão atinge Garret. A minha pintura é da perspectiva da porta. É o cenário de
uma mulher se distanciando, sob a chuva, de costas, com uma mala sob o braço.
— Preciso ir embora. — Busco os olhos de Liam.
Ele assente com a cabeça. Nossa pequena discussão atraiu alguns olhares das pessoas na
galeria.
— Vamos embora — ele concorda. — O motorista está lá fora.
— Phoenix, espere. — Minha mãe tenta segurar meu braço, mas eu me desvencilho antes
mesmo que ela possa me tocar.
— Não. Por favor, continue fazendo o que você faz de melhor, que é ignorar minha
existência — murmuro, antes de Liam e eu sairmos da galeria.
No automóvel, ficamos em silêncio. Quando estamos no nosso quarto do hotel, ele
pergunta se estou com fome e balanço a cabeça em negativa. Estou sentada na poltrona,
pensando em tudo o que aconteceu nas últimas horas. Liam acendeu a lareira, e fico observando
o fogo.
— Quer que eu a deixe sozinha? — Liam questiona, meio relutante.
— Não.
— O que posso fazer por você, passarinho?
Liam Diamond se ajoelha à minha frente, colocando uma das mãos sobre meu joelho. O
toque incendeia minha pele, e me uno a ele no chão. Seus olhos parecem quentes. Devagar,
encaixo minha boca na sua.
O beijo começa e logo se intensifica conforme suas mãos deslizam por meu corpo. Arfo
contra seus lábios assim que seus dedos roçam em meu seio sobre o tecido da blusa.
Meu coração bate forte, ameaçando explodir a qualquer momento. Fogo parece correr em
minhas veias. Liam não para de me beijar enquanto nos deitamos no tapete, seu corpo se
posicionando entre minhas pernas.
Não quero que ele pare.
Nunca.
O puxo mais contra mim, como se fosse possível. Liam quebra o beijo, olhando no fundo
dos meus olhos.
— Tem certeza?
— Tenho.
É o suficiente para que Diamond comece a tirar sua camiseta social. Quando seu peitoral
nu está exposto, admiro todos os músculos que esculpem seu corpo. Então, tiro minha blusa,
depois a calça jeans. Agora, estou apenas de sutiã e calcinha. Me sinto exposta e envergonhada.
Liam roça o polegar em meu lábio inferior.
— Linda, sonnenschein.
Não tenho tempo para perguntá-lo o que significa a palavra em alemão, porque, no
próximo segundo, ele abre o fecho do meu sutiã. Eu o quero tanto que dói. Liam deixa uma trilha
de beijos por meu pescoço até que sua boca esteja ao redor do meu seio. Ele coloca um dos
mamilos na boca e eu gemo, sentindo como se meu corpo estivesse em combustão.
O loiro insere um dedo dentro de mim, após colocar a calcinha para o lado. Me sinto tão
molhada que me dá vergonha, mas ele não parece se importar com isso. Introduzindo o segundo
dedo, eu arqueio as costas, desejando que ele esteja dentro de mim de uma vez por todas.
— Liam, por favor — imploro, contra sua boca.
Minha súplica surte efeito, porque ele se distancia para pegar sua carteira, onde há um
preservativo. Após tirar a calça, ele volta a se posicionar no meio das minhas pernas. O calor da
lareira não permite que eu sinta frio, nem o tapete abaixo de mim.
Quando ele está pronto, me dá um beijo breve nos lábios antes de começar a me penetrar.
A dor que me atravessa é quase alucinante. Sinto meu corpo estremecer e fecho os olhos com
força.
— Phoenix — fala, o tom de voz grave e quase inaudível. — Abra os olhos.
O encaro. Seu rosto está franzido. Liam tira uma mecha de cabelo que cai sobre meus
olhos.
— Você é virgem?
Sinto meu rosto pegar fogo. A dor é substituída por vergonha.
— Sim — admito.
Espero por uma reação, mas seu rosto permanece neutro. Às vezes, eu desejo conhecer
todos os seus pensamentos. Liam é tão hábil em ocultar o que sente que parece injusto.
Ele volta a me beijar devagar e então move os quadris. Me remexo, sentindo desconforto.
Dá para perceber que ele está sendo cuidadoso. É quase como se eu fosse feita de porcelana.
Liam é delicado e gentil. Tão cuidadoso que sinto algo se aflorar em meu peito.
De repente, o incômodo é substituído lentamente pelo prazer. Enlaço minhas pernas ao
redor de sua cintura, e ele vai mais fundo, aumentando a velocidade. Abro os olhos no momento
em que Liam quebra o beijo. É a imagem mais bonita que já vi em toda minha vida. Seu rosto,
parcialmente iluminado pelo fogo, a pele alva corada, os lábios entreabertos, olhos fechados e
cabelo loiro caindo sobre sua testa… Diamond estremece sobre mim.
Seu peito sobe e desce em um ritmo profundo. Ele abre as pálpebras, e o azul pálido me
encontra.
Queria poder pintá-lo neste momento.
Liam me puxa contra seu peito, e permanecemos deitados em frente à lareira, sobre o
tapete. O silêncio que nos envolve é reconfortante. A sonolência toma conta do meu corpo até
que eu adormeça em seus braços.

Quando acordo, não continuo mais no tapete. Estou no quarto, deitada na cama e sozinha.
Me sento e olho ao redor. Já é dia, e as cortinas balançam com o vento que atravessa a janela. Os
raios solares lançam seu brilho dourado ao meu redor, iluminando tudo.

Coro ao me dar conta de que estou sem roupas. Na cômoda ao meu lado, algo chama
atenção. Há um buquê de rosas vermelhas e um pedaço de papel grudado nelas. Sorrio ao segurar
o bilhete. Começo a ler as palavras escritas à mão por Liam.

Phoenix,
Saí porque havia um assunto urgente para resolver, não pense que fugi.
Não encontro nenhum adjetivo que possa descrevê-la, então quero que saiba que me deixou sem
palavras.
Liam

O sorriso em meu rosto aumenta, a ponto de minhas bochechas doerem. Nunca imaginei
que Liam Diamond poderia escrever bilhetes como esse. De bom-humor, me levanto e vou até o
banheiro, tomar banho. Depois que me visto com um vestido vermelho de verão, ligo para Emi.

Ela atende no quarto toque.

— Finalmente! Da última vez que você me ligou, desligou na minha cara.

— Desculpe, Liam tinha chegado na hora.

— Então… quer me dizer algo?

— Nós nos beijamos — compartilho, revelando apenas isso por enquanto. Não quero
admitir que perdi a virgindade.

O grito estridente de Emi faz com que eu afaste o telefone da orelha, fazendo careta.

— Conte tudo! Todos os detalhes!

Relato para ela como ocorreu o primeiro beijo. Emi parece tão alegre e empolgada que
chega a ser hilário. Quando encerramos a ligação, ouço uma batida na porta do quarto. Ajeito os
cabelos, pensando que é Liam, porém, quando giro a maçaneta, encontro um segurança em
minha frente. O corredor está vazio.

— Sr. Diamond solicitou que levasse a senhorita até o local onde ele a espera.

Escondo o sorriso.
— Claro, só vou pegar minha bolsa.

Começo a me virar, então ele me puxa e coloca uma das mãos sobre minha boca. Meu
coração dispara. Sou arrastada para trás. Tento lutar, mas ele é mais forte que eu. Meu grito sai
abafado. Um pano é pressionado contra meu nariz e, então, aos poucos, meus membros
amolecem.

Não, não, não.

Em um segundo, desmaio.
PARTE III
“Há partes de mim que não posso esconder
Eu tentei e tentei um milhão de vezes
Bem vindo ao meu lado sombrio.”

— Darkside, Neoni.
27

aos 16 anos
É véspera de Natal e nossa casa está silenciosa. Se fôssemos uma família normal,
estaríamos reunidos à mesa, celebrando juntos. No entanto, não é isso o que acontece. Observo a
neve cair, sentado na janela do meu quarto.

Daqui de cima, vejo o momento exato em que o carro de meu pai chega em casa. Acho
que todos já estão dormindo. Olho no relógio, os ponteiros indicam que já passa das duas horas
da manhã.

Observo quando ele sai do carro acompanhado por uma mulher que definitivamente não é
minha mãe. Seus cabelos longos e negros contrastam com o vestido inadequado para o clima.
Travo minha mandíbula ao vê-los atravessarem a porta da frente. Mamãe está fora da cidade; ela
nunca passa as datas festivas aqui. No fundo, Donna sabe que Hernan aproveita as festividades
para passar dos limites. Embora ele tenha se mantido na linha ultimamente, graças a ameaça de
nossa avó, ainda fico em alerta. Receoso quando a chave irá mudar em sua cabeça.

Risos e o estouro de uma garrafa de champanhe ressoam no andar de baixo,


acompanhados pelos gemidos que perturbam o ambiente. Após algum tempo, tudo volta ao
silêncio habitual, e a porta se fecha.

A mulher sai sozinha para o pátio e anda até os portões. Meu pai não dá a mínima para
ela. Foi apenas uma das suas diversões noturnas.

Permaneço próximo à janela, até que ouço a porta do quarto de Brianna abrir.

Sei porque seu quarto fica à esquerda, bem ao lado do meu. O de Bastian é ao lado do
corredor, acho que ele é o único que se livra de toda a barulheira, já que dorme distante das
escadas.

Levanto-me, consciente de que Bree às vezes tem pesadelos e me chama. Talvez ela
tenha tido um esta noite. Ao sair para o corredor, encontro sua porta entreaberta. Empurro-a até
que se abra, e então paro.

Hernan está ao lado de sua cama. Daqui, não consigo discernir o que está acontecendo,
pois a luz do corredor ilumina parcialmente seu quarto. Ele se vira, assustado. Meus olhos
captam o movimento rápido que ele faz para subir o zíper da calça jeans.

Caminho até a cama de Bree e puxo o cobertor. Ela está dormindo profundamente,
abraçada ao seu urso de pelúcia. Está vestida. Mas e se eu tivesse chegado alguns momentos
mais tarde?

O pensamento me dá ânsia de vômito.

Fito Hernan. Estamos perto agora. Olho no fundo dos seus olhos, onde uma expressão de
culpa é evidente. Dá para ver que ele está no meio termo entre bêbado e sóbrio, mas mesmo
assim, aparenta mais sóbrio que bêbado.

— Vim checar Brianna. — Coloca uma das mãos sobre meu ombro. — Vamos.

Deixo que ele me conduza para fora do quarto, até seu escritório. Fico parado, inerte,
observando-o encher um copo de uísque. A raiva começa como uma fagulha e, de repente, um
incêndio. Meu corpo treme e, num impulso, avanço sobre Hernan.

Minhas mãos se fecham em sua garganta, tão firmes que mal lhe resta tempo de
raciocinar.

As costas de Hernan batem contra o armário de bebidas, chacoalhando-o. Uma garrafa se


estilhaça no chão, fazendo um estrondo. Quero matá-lo. Minha mente fica em branco. Há apenas
o desejo de vê-lo caído, sem ar e pulsação. Tudo se torna vermelho.

Desde o verão passado, cresci mais que Bastian e ganhei músculos na academia. Se antes
ele tinha poder sobre mim, agora não é nada. Sou mais alto, mais forte. Posso me defender. Não
sou mais o moleque que aceitou dar voltas pelo pátio sob a chuva.

— Liam… — diz, ofegante, de forma entrecortada.

Quero ir até o fim. Aperto mais meus dedos. Seu rosto inteiro está vermelho. Hernan
parece patético agora, incapaz de desfazer o aperto ao redor de seu pescoço. Conheço diversas
formas de encerrar isso, graças ao treinamento que tive com aulas de lutas e autodefesa, mas
escolho esta, para que eu possa olhar em seus olhos enquanto ele dá o último suspiro.

No entanto, ouço o momento em que Bastian chega. Ele abre a porta e imediatamente
corre até mim, me puxando para trás. Mesmo assim, não é o suficiente para fazer com que eu
solte Hernan. Ele precisa me imobilizar, mas não dou o braço a torcer.

Tento me desvencilhar de Bastian, em vão. Desfiro um soco em seu rosto quando tento
avançar outra vez e ele me segura. Meu irmão cambaleia e eu acerto a mandíbula de Hernan. Dá
para ouvir o estalo de seu maxilar se deslocando. Bastian não deixa com que eu continue; ele me
joga no chão e, finalmente, me prende sob si, aplicando técnicas de jiu jitsu.

— Me solta, porra! — ralho, tentando sair.

— Acalme-se, Liam. Qual é o seu problema? — grita de volta.

Fico em silêncio, tentando recuperar o fôlego. A risada histérica de Hernan corta o ar. Ele
olha para mim e Bastian como se fôssemos uma atração de circo. Os dentes estão pintados de
sangue.

— Solte ele, Bastian — fala, escorado contra a parede, sem fôlego.

— Ele vai matá-lo se eu fizer isso.

— Deixe.

As palavras parecem surpreender meu irmão.

— Liam é como eu — Hernan continua. — Ele é um Diamond da cabeça aos pés. É o


que você nunca vai conseguir ser, Bastian. É uma pena que tenha sido o primogênito.

Meu irmão não parece compreender, contudo, eu entendo perfeitamente.

Essa parte sombria dentro de mim, que nutriu o desejo de matar Hernan, é exatamente do
que ele está falando. Uma parte que foi despertada hoje e que não sei como controlar.

Seu monstro reconhece o meu.

Quando Bastian percebe que desisti de fugir, ele me solta. Agora, tenho a liberdade para
avançar contra Hernan, para enforcá-lo outra vez, mas e depois? Nossa família se tornará uma
desgraça. Serei preso, e Brianna provavelmente me odiaria, pensando que arruinei nossa família.
Me transformaria num assassino a sangue frio perante a sociedade e meus irmãos.

Bastian me olha como se não me reconhecesse, como se não soubesse quem sou agora.

Sem dizer uma palavra, eu me levanto. Um dia, serei o sucessor. Vou tomar esse império
para mim. Vou me tornar tão poderoso que homens como Hernan serão diminuídos diante dos
meus pés.

Serei sutil, cuidadoso. Aparentemente inofensivo aos olhos, não representarei nenhuma
ameaça.

Lobo em pele de cordeiro.

Vou reinvindicar o que é meu por direito. E, quando tudo estiver concluído, farei questão
de garantir que Hernan viva seu próprio inferno na Terra.
28

— Desculpe, senhor. Acabei pegando no sono. Não vi a senhorita Ogawa sair — Bradley,
o segurança do turno noturno, murmura.

Mantenho o rosto inexpressivo enquanto caminho até ele. Paro quando há apenas alguns
centímetros de distância entre nós e acerto um soco na boca do seu estômago. Ele cai no chão,
segurando o próprio abdômen. Na minha frente, estão todos os seguranças contratados por mim e
uma Kim apreensiva.

Tive uma reunião emergencial e por isso precisei deixar Phoenix no hotel. No entanto,
quando retornei, ela não estava. Apenas seu celular e bolsa foram deixados para trás. Tenho um
pressentimento ruim. Bradley adormeceu, e Jonathan, o segurança que devia trocar de lugar com
ele, não compareceu e nem atende às minhas chamadas.

Não sei o que houve. Com as câmeras do hotel em manutenção e com nenhum dos
seguranças da área externa sabendo me dizer quando ela saiu, fico sem resposta. Isso não me
deixa nem um pouco contente.

— Vocês compreendem que esta é uma falha séria de segurança? — Mantenho o tom de
voz baixo.

Todos os cinco seguranças reunidos na parte de trás do hotel acenam com a cabeça.

— Estão todos demitidos.

Não fico para ouvir o que nenhum deles tem a dizer. Suas súplicas não me farão voltar
atrás. Espero que Phoenix tenha saído para fazer algo e volte em segurança. Kim tem que
praticamente correr atrás de mim para me alcançar. As portas do elevador quase fecham antes
que ela entre comigo. Talvez eu devesse tê-la deixado com Phoenix esta manhã, teria sido mais
útil que todos esses homens juntos.

Assim que chego no quarto, recebo uma ligação. Peço licença para Kim e me retiro em
direção à suíte.

— Liam Diamond? — a voz do outro lado da linha questiona.

— Sim.

— Estamos com a garota.

A frase é suficiente para que eu entenda o que está acontecendo. Phoenix foi sequestrada.
Me forço a manter meu lado racional no controle. Mantenho o tom de voz calmo quando
questiono:

— Quanto vocês querem?

— Não queremos seu dinheiro. Queremos acesso a todos servidores internos das
indústrias Diamond, do mundo inteiro.

Dá-los acesso significa o fim de tudo o que tenho até agora. Minha mandíbula trava, e
tenho que me conter para não atirar o telefone na parede.

— Quantos dias?

— Três.

A chamada encerra.

PHOENIX
Meu pulso amarrado dói, assim como minha cabeça. Não enxergo nada, pois meus olhos
estão vendados. Não sei há quanto tempo estou presa aqui, mas parece uma eternidade. Meu pai
sempre me alertou de que algo assim poderia acontecer um dia, que homens loucos por dinheiro
poderiam pedir um resgate alto por mim. Nunca imaginei que isso realmente pudesse acontecer,
no entanto, aqui estou eu.

Ouço o barulho de uma porta se abrindo e me encolho na cadeira em que estou sentada.

A venda é arrancada dos meus olhos, revelando dois homens encapuzados à minha frente.
Não consigo ver nada além de seus olhos escuros.

— Água. — Um deles estende a garrafa em minha direção.

Não sei se devo aceitá-la, talvez tenha algo na bebida. Contudo, se quiserem me matar
vão fazer de qualquer forma. É apenas uma questão de tempo. Com a mão que não está presa,
seguro a garrafa.

Começo a bebê-la, até que não sobre uma gota.

— Está com fome? — outro deles pergunta, e apenas assinto em concordância.

Tento não demonstrar todo medo que sinto no momento. Meu coração bate em um ritmo
desordenado. Não sei se eles pretendem fazer algo comigo.

— Vamos mandar comida, mas não é igual à que a princesa deve estar acostumada —
responde, e ambos riem.

Engulo em seco. Definitivamente sabem quem eu sou. Me pergunto por quanto tempo
eles devem ter bolado um plano como esse. Agora, não desejo nada além de voltar para Tóquio e
viver sob as asas do meu pai para sempre. Ao menos lá, me sentia segura.

Não digo nada, porque não pretendo irritá-los. Um deles sai da sala. É um quarto com
uma cadeira, sem janelas e com apenas uma porta que dá para um corredor escuro. Não faço a
mínima ideia de onde estamos.

— Ligamos para seu namoradinho quase agora — o outro homem informa, cruzando os
braços em frente ao peito. — Se tudo der certo, iremos libertá-la em breve.

Então é disso que se trata? De Liam e não de meu pai? É de se esperar que alguém como
Diamond tenha acumulado uma longa lista de inimigos. Quando a comida chega, purê de batatas
com arroz, não reclamo. Apenas mastigo e engulo.

Assim que termino, os dois homens saem da sala e ouço a tranca da porta de metal
fechar. Tenho vontade de chorar, porque estou sozinha, com frio e medo. Engulo o nó na
garganta e penso que Liam virá a qualquer momento.

Pelo menos, é no que quero acreditar.


29

antes
Após ter visto Hernan no quarto de Brianna, todas as noites durmo em um colchão ao
lado de sua cama, com a justificativa de que sou eu quem tenho tido pesadelos. Bree nunca se
opôs, apenas me faz assistir My Little Pony antes de dormir. Bastian acredita que estou apenas
ajudando-a a pegar no sono, enquanto meu pai mal passa as noites em casa após o episódio.

Hernan e eu fingimos que nada aconteceu. Não contei para Bastian, pois ele não sabe
controlar suas emoções. Se eu senti vontade de matar Hernan, meu irmão mais velho, sendo
protetor como é, não sei o que faria. Isso o consumiria de culpa para sempre. É melhor que o
peso do segredo corroa apenas um de nós.

— Bree, posso te perguntar algo? — Pauso o desenho. Estamos prestes a dormir, e ela
veste seu pijama temático de pôneis.

— Sim, mas pergunta logo, preciso descobrir o que a Applejack está prestes a fazer!

— O papai, ele… costuma vir aqui à noite? — Estou tenso, torcendo para que minha irmã
não perceba.

— Não. — Sua resposta me alivia intensamente, como se um peso saísse de minhas


costas.

— Quero que você tranque a porta quando for dormir, tudo bem?

Ela franze o cenho, confusa.

— Por quê?
— Porque é melhor que seja assim. Já ouviu sobre bandidos que assaltam casas?

Me sinto péssimo por plantar essa ideia em Brianna, mas quero que ela se previna a partir
de agora. Quero que ela se prepare para à noite. Que esteja segura.

Ela hesita.

— Você acha que bandidos vão entrar aqui?

— Não sei, Bree. Mas tranque a porta, está bem?

— Então continue dormindo aqui até que eu me sinta segura para trancar a porta e ficar
sozinha.

— Combinado.

Mostro a ela como trancar a porta do jeito correto, explicando a importância de conferir
se realmente está fechada. Ela assente e finalmente despauso o desenho. Me deito no colchão ao
seu lado e, pela primeira vez em dias, consigo ter um sono mais leve, sem pensamentos ruins.

Pela manhã, me arrumo para o colégio, assim como Bree e Bastian. Minha mãe está em
casa hoje, mas permanece na sala, assistindo tevê. Não se junta a nós para o café da manhã. Me
pergunto se ela não imagina o que seu marido faz quando ela não está presente, porém duvido
que se importe. Se ela realmente se importasse, não sairia tanto de casa, nos deixando aqui,
sozinhos com ele ou os empregados.

— Amanhã é aniversário da Bree — Bash diz em um tom de voz baixo, mordendo um


pedaço de donut.

Apoiado contra o balcão com uma tigela de cereal, lanço um olhar para nossa irmã mais
nova, sentada à mesa, comendo panquecas e assistindo desenhos no tablet.

— Estava pensando em fazer um bolo para ela e levá-la até um parque de diversões.
Acho que a mamãe nem sabe que dia é amanhã.

— Vou falar com ela — resmungo de boca cheia, deixando a tigela de lado.

Donna assiste a um reality show enquanto pinta as unhas dos pés. Às vezes, é ela quem
parece a adolescente, não nós.

— Mãe. — Chamo sua atenção quando me aproximo.

— O que foi, querido? — indaga, dispersa, os olhos presos na tevê.

— Você planejou algo para a Bree?

Ela me olha como se eu fosse um idiota, e percebo que ela não faz a mínima ideia do que
estou falando.

— É aniversário dela amanhã — esclareço, com pouca paciência.


— Ah! — Ela parece surpresa. — Achei que fosse domingo.

— É amanhã.

— Amanhã tenho compromisso.

— Deixe-me adivinhar, salão de beleza? — Minha voz sai carregada de amargura e acho
que ela percebe, porque para de pintar as unhas dos pés e me lança um olhar meio culpado.

— Vou dar dinheiro para que vocês a levem ao cinema ou algo do tipo, tudo bem?

— Não, não está tudo bem. O fato de eu e Bastian termos que assumir o papel de pais de
Brianna não é legal, mãe. A Bree precisa de você, mas você nem tenta, não é? Tudo o que te
importa é a aparência do seu cabelo e aplicações de botox.

Sei que minhas palavras a ofendem profundamente, pois seu rosto cora e vejo a raiva
atravessar seu rosto.

— Olhe o jeito que fala comigo, apesar de tudo, continuo sendo sua mãe. A Bree vai
entender que não posso comparecer. Vocês todos deveriam entender. Não falta nada a vocês.
Têm acesso às melhores escolas, roupas, lugares e dinheiro para a faculdade. Não é o suficiente?

— O seu erro, Donna… — Uso seu nome propositalmente, o que parece ultrajá-la. — É
achar que dinheiro compra afeto, lembranças e amor — completo com tom de voz frio. — Mas
não se preocupe, quando você cair em si, vai ser tarde demais.

Não espero por sua resposta, apenas viro as costas e saio da sala, furioso. Não entendo
qual é o problema dela. No fundo, acho que Hernan e Donna não queriam ser pais, e muito
menos estão preparados para isso. Eles apenas aceitaram as consequências de uma noite de sexo
sem proteção e os benefícios que uma linhagem iria lhes proporcionar.

Bastian nem pergunta como foi a conversa com nossa mãe, acho que minha expressão
entrega tudo. Ele dá dois tapinhas em meu ombro e diz que não precisamos dela, mas é mentira.
Nós dois nos convencemos disso durante a infância, enganando a nós mesmos até agora. Ela
nunca esteve nas apresentações do colégio, ou quando trocamos de faixa no karatê. Nunca esteve
nos diversos prêmios de honra que recebi.

Sua negligência vai além, é por isso que Hernan sempre fez tudo o que achou que deveria
fazer.

Agora, não preciso de nenhum deles. Não sou mais uma criança e não busco mais
aprovação.
30

— Parece que ninguém vai vir te salvar, princesa — um dos homens encapuzados
debocha, escorado contra a porta.

Já faz alguns minutos desde a chegada dele e preferia quando estava aqui sozinha. Meu
estômago se retorce de dor outra vez. Não me dou o trabalho de respondê-lo. Em seguida, outro
homem entra no cômodo, com um celular nas mãos.

— Tape a boca dela.

Começo a protestar, mas é inútil. Em questão de segundos, uma fita cobre minha boca.
Eles iniciam uma ligação no viva-voz.

— Seu tempo está se esgotando, Diamond. É nosso último aviso — ralha um dos
homens, irritado.

— Sinto muito, mas o valor é maior do que estou disposto a pagar. — A voz de Liam soa
clara e alta do outro lado da linha.

O valor é maior do que estou disposto a pagar.

A frase ecoa na minha mente diversas vezes. Quero acreditar que tudo não passa de um
pesadelo, uma mentira, porém é real. Estou presa aqui e a única pessoa que poderia me salvar
acabou de me jogar na cova de leões.

Ele não espera por uma resposta, simplesmente desliga na cara dos meus sequestradores.
Me sinto tão exausta que não há lágrimas para derramar. Os encapuzados começam a despejar
murmúrios e xingamentos. Não presto atenção no que eles estão dizendo, apenas sucumbo ao
cansaço, fechando os olhos.
Acordo com uma comoção do outro lado da porta antes que ela se abra de maneira
brusca. Policiais adentram à sala, todos armados, e me libertam. Embora sinta alívio, as lágrimas
não vêm.

Ao ser conduzida para fora, olho para trás, percebendo que estava em uma casa
abandonada. Embora espaçosa, a fachada está praticamente caindo aos pedaços. Os dois
criminosos, agora desmascarados e algemados, são conduzidos para dentro de uma viatura.

Uma policial me faz perguntas durante todo o trajeto até a delegacia e informa que meu
pai está à minha espera.

Adormeço durante o percurso. Ao acordar, encontro meu pai na porta do departamento


policial. Seu abraço me transmite a promessa de que esse pesadelo logo chegará ao fim e é tudo
o que desejo. Olho ao redor, mas não avisto Liam, o que me deixa com raiva.

Eu devia esperar. Afinal, ele sempre deixou claro que a ambição e poder são seus
principais focos. Fui ingênua ao pensar que, por trás de sua máscara fria, poderia haver um
coração.

Liam Diamond não possui coração. Ele é apenas um homem frio usando pessoas para
suas necessidades pessoais.

É a primeira vez que começo a chorar.

— Está tudo bem agora, querida — meu pai diz, apertando-me em seus braços. — Vamos
voltar para casa.

No primeiro dia de volta para casa, permaneci trancada em meu quarto o dia todo. Recebi
algumas mensagens de Ren e uma cesta de sua família, porém o ignorei. Meu pai redobrou a
quantidade de seguranças, por prevenção, e me sinto melhor desta forma. Sei que os homens que
me sequestraram são apenas subordinados, o que significa que a pessoa por trás disso ainda está
livre. Por ora.

Ouço batidas na porta, o que me faz estremecer. Agora, qualquer mínimo barulho está me
assustando. Só relaxo quando ouço a voz de Emi abafada atrás da madeira e a abro.

Ela salta sobre mim assim que me vê e caímos para trás na cama.

Minha amiga me abraça tão forte que começo a sufocar.

— Emi, você está me esmagando — murmuro, rindo de seu exagero.

— E daí? Quando seu pai disse que te sequestraram, quase fui para os Estados Unidos
atrás de você. — Ela se distancia e vejo seus olhos marejados. — Sério, nunca mais me assuste
dessa forma. — Há uma pausa. — Eles não…

— Não — a interrompo. — Ninguém me tocou, ou machucou.

Ela suspira, visivelmente aliviada.

— E o Liam, onde ele está?

— Não quero falar sobre ele. Nunca mais.

Minha amiga franze o cenho, mas não retruca. Desde que cheguei a Tóquio, Diamond
não me enviou uma mensagem sequer. Sei que ele também está de volta. Ouvi meu pai
conversando com ele no telefone mais cedo, marcando uma reunião. Não quero vê-lo nem em
um milhão de anos. Quero contar tudo o que aconteceu para meu pai, mas sinto vergonha.

Vergonha por ter me entregado a alguém que me descartou como se eu não valesse nada.

Ele é um canalha.

Só de lembrar sinto um ódio profundo, então me esforço para mantê-lo longe dos meus
pensamentos.

Para ocupar a mente, e pela milésima vez, Emi e eu estamos assistindo um filme
inspirado em um dos romances do Nicholas Sparks. Mas somos interrompidas quando a
governanta me informa que tenho visita.

Meu coração começa a bater mais forte. Deixo Emi no quarto e desço as escadas. É
quando percebo que está chovendo. O barulho dos trovões retumba pela casa inteira.

Eu o observo pela janela.

Liam está parado no meio do pátio, sendo atingido pela chuva torrencial que cai lá fora.
Acho que é a primeira vez que ele se assemelha a um humano. Que vejo as emoções em seu
rosto.

Pela primeira vez, ele parece um homem derrotado. Um anjo caído, com o cabelo loiro
molhado grudado na testa e as roupas encharcadas. Sua mandíbula se tenciona quando seus olhos
travam nos meus. Leio a súplica silenciosa presente neles.

Por favor, me deixe entrar.

E eu quase cedo, quase. Contudo, apenas me afasto da janela e fecho as cortinas, sentindo
meu coração afundar e congelar dentro do peito.

Não posso deixar que ele e nem ninguém me machuque outra vez.

Nunca mais.
Faz três semanas desde que minha vida, aparentemente, voltou ao normal. Estou fazendo
aromaterapia e tendo o acompanhamento de uma psicoterapeuta toda segunda, para que eu possa
controlar minhas reações pós-sequestro. Fiquei dez dias sem sair de casa e sofrendo com
pesadelos, até que decidi que não poderia viver assim para sempre e busquei ajuda. Voltei a
dormir bem e a me sentir segura, inclusive, neste momento, sou acompanhada pelo meu
segurança. Ele fica comigo em qualquer ambiente em que eu esteja, e isso não me incomoda. Ele
se mantém distante, para que eu possa ter privacidade, como agora.
Esta manhã vim até o Hide & Art pintar, sem me importar com o quão estranho pareça ter
um guarda-costas aqui. Mas agora todos sabem que sou Phoenix Ogawa, não Flora. Não escondo
mais minha identidade, até porque seria impossível. Apesar dos esforços de Jim Ogawa para
manter o sequestro fora da mídia, Liam e eu ainda somos considerados o casal do momento, o
que é uma grande ironia, visto que não nos vemos desde que ele apareceu na porta da minha casa
durante o temporal.
Meu pai está mais flexível desde que fui sequestrada e não tem dito nada sobre eu estar
me inserindo profundamente no mundo da arte. Acho que, por ora, ele quer que eu fique aqui em
Tóquio, onde pode colocar os olhos em mim. Ir para Harvard é estar em outro continente, onde
ele se torna imponente. Acho que isso o amoleceu.
Solto um suspiro audível quando percebo que estou pintando os olhos dele. É uma droga
como minha mente sempre dá um jeito de se associar a Liam Diamond.
Queria que tudo voltasse a ser como era antes de conhecê-lo.
Abaixo a mão com o pincel, desistindo do quadro.
Pego minha bolsa e resolvo sair do ateliê. Tenho andado muito estressada ultimamente,
nem mesmo a pintura pode aliviar isso. Acho que preciso começar aulas de ioga ou algo do tipo.
— Senhorita Phoenix — o segurança chama, fazendo-me olhar sobre o ombro enquanto
caminho. — Há ordens do seu pai para que a leve para almoçar com ele.
— Tudo bem.
Nós entramos no carro e logo chegamos ao restaurante. Avisto papai sentado sozinho
próximo às janelas. Me sento à sua frente.
— Phoenix — ele me cumprimenta, tenso. — Temos que conversar sobre um assunto
sério.
Franzo o cenho, estranhando a apreensão em seus olhos.
— Diga.
— Sua mãe me ligou. Ela me disse que você foi atrás dela.
Faço uma pausa antes de responder:
— E daí?
— Ela queria saber sobre a possibilidade de… passar alguns dias em Tóquio, com você.
Se quiser, é claro.
Fico em silêncio, sentindo meu coração bater tão forte que parece que vai sair do meu
peito. Não sei o que responder. Isso é algo que sempre quis. Sonhei com o dia em que minha mãe
voltaria para Tóquio e nós teríamos uma tarde de garotas. Porém, esse era um sonho da Phoenix
ingênua e, no momento, ela está morta.
— Diga a ela que não precisa vir.
A resposta parece surpreender meu pai.
— Tem certeza? Sei que isso deve ser importante para você.
— Tenho. Eu não quero vê-la. Ela fez a escolha dela, pai. Ela escolheu nos deixar e ter
uma nova família. Se eu não tivesse ido atrás dela, ela jamais me procuraria.
Meu pai não diz nada. Não faço a mínima ideia do que ele pensa no momento.
— Me desculpe, Phoenix. Por ter sido ausente e por não escutá-la. Quero que você siga o
caminho que escolher e que seja feliz.
Suas palavras me surpreendem na mesma medida que me deixam feliz. Nossos pratos
chegam e continuamos em uma conversa. É algo que nunca fizemos antes, mas eu gosto. Apesar
de tudo, foi ele quem permaneceu, de seu jeito, mesmo que distante. Ele quem manteve comida
na mesa enquanto minha mãe explorava o mundo, formando uma nova família.
Pode ter passado longe de ser o pai perfeito, no entanto, ele ficou comigo. Nós dois
experimentamos a dor do abandono.

— Então, já sabe o que vai vestir? — Emi questiona.


Estamos no meu quarto, revirando o closet em busca de algo legal para vestir. Vamos até
Shibuya esta noite, em uma balada. É a primeira vez que vou sair depois de todo esse tempo.
Ainda me sinto meio insegura, mas, tenho os seguranças e Emi, que prometeu que não vai deixar
com que nada aconteça comigo. É um passo importante para mim, porque não quero deixar com
que o trauma me reprima de viver minha própria vida. Preciso começar a seguir em frente.
Escolho um vestido que nunca usei. É preto, se molda perfeitamente ao meu corpo e é
bem ousado. Emi aprova minha escolha, então começamos os penteados e maquiagem, já que ela
veio vestida.
Deixo os cabelos soltos, o que é quase raro, e passo uma camada de batom vermelho nos
lábios. Quando terminamos, os seguranças do meu pai nos guiam até o carro. Ele só concordou
que eu saísse com a condição de que iria acompanhada com seus homens de confiança, apenas os
melhores.
Assim que chegamos no endereço, somos recebidas por uma fachada moderna e futurista.
Luzes neons dançam pelo interior do lugar, junto com a batida da música. A pista de dança,
situada no coração do ambiente, é constituída por palcos individuais e coletivos. Há uma garota
dançando em um pole dance, atraindo muitos olhares para si.
— Tá a fim de um drink? — Emi grita, sobre toda a barulheira.
— Por que não?
Então, começamos a ir em direção aos bares. Os balcões estão cheios. Bartenders
habilidosos misturam coquetéis exóticos e coloridos, servidos em copos de cristal. Garrafas de
bebidas importadas estão exibidas nas prateleiras, transformando o cenário em algo sofisticado.
Emi e eu decidimos pedir três shots de vodka cada. Não queremos ir com calma.

Depois de tomar cada um deles, enfileirados, estamos prontas para ir até a pista de dança.

A música reverbera no ambiente enquanto nós dançamos juntas. Em algum momento,


homens se aproximam de nós, e pelo canto do olho, vejo os seguranças se agitarem. Antes que
eles possam agir, eu mesma os dispenso. Não estou aqui para causar confusões.

Quando meus pés começam a doer, decido me sentar em um lounge da balada, em um


canto reservado. Minha amiga vem até mim com duas garrafas de cerveja, dançando mesmo que
a música chegue abafada e distante no lugar que estamos.

— Toma. — Ela estende a garrafa em minha direção e a aceito. — Viu alguém


bonitinho?

— Não estou interessada nisso. — Me forço a piscar para manter a visão focada.

Começo a entornar a garrafa. Quando acaba, me levanto, e Emi me segue de volta para a
pista. Não sei quanto tempo ficamos lá, dançando e bebendo drinks, mas nos divertimos muito.
Me sinto livre aqui e esqueço de todos os problemas. Em algum momento, Emi começa a se
sentir enjoada e então decidimos ir embora.

Me despeço dela assim que o motorista para o carro em frente à sua casa. Esperamos que
ela entre em segurança e, então, ao invés de ir embora, peço ao motorista:

— Me leve até a propriedade de Liam Diamond.


31

O som insistente que ressoa na madeira me desperta do sono. Olho para o relógio sobre a
cômoda, que marca meia-noite. Com uma expressão irritada, me levanto e giro a maçaneta,
revelando um dos seguranças, que parece um tanto apreensivo.

— Desculpe interromper seu sono, senhor. Temos um problema.

— Diga.

— Há uma mulher no portão que se recusa a sair sem vê-lo. Ela diz ser Phoenix Ogawa e
exige que o senhor a receba.

Exige?

— Abra — é tudo o que digo, voltando para meu quarto.

Não posso evitar que a dúvida tome conta de mim. Visto uma camiseta branca e desço as
escadas para o primeiro andar. Puxando a cortina da sala, observo o exato momento em que
Phoenix entra na minha propriedade. Ela usa um vestido curto que molda seu corpo
perfeitamente. Os pés nos saltos vacilam, e ela parece se esforçar para se manter firme.

Ela para e olha para a estátua no meio do jardim, a mesma que mandei trazer de um
artista de Roma.

A escultura parece fascinar Phoenix. Mas, então, ela começa a empurrá-la.

— Senhor, ela está quebrando sua escultura — o segurança diz atrás de mim, como se eu
fosse cego.
— Deixe.

— Senhor, mas… é avaliada em cem mil dólares.

— Eu disse para que deixe. E se algum segurança tocar nela, acordará no inferno no
mesmo segundo. Avise todos.

Sem dizer uma única palavra, ele acata a ordem e envia a informação através dos rádios
comunicadores. Observo da janela enquanto Phoenix destrói a escultura, chutando o resto dos
estilhaços com os saltos. Ela para quando bate o dedo do pé, e posso ouvir o xingamento que
escapa de seus lábios daqui.

Solto um suspiro.

Autodestrutiva.

Abro a porta, mas ela nem percebe quando saio. Está frio aqui. O vento gélido bate contra
mim, e me pergunto como ela não está congelando usando apenas um vestido curto.

— Passarinho.

Minha voz sai num sussurro, baixa o suficiente para que ela não escute, mas, de alguma
forma, seu rosto se vira em minha direção como se um ímã a atraísse para mim.

— Você é um traidor! — grita. Sua voz ecoa pelo espaço todo.

Definitivamente, está bêbada.

Phoenix começa a andar em minha direção, e eu espero, apoiado contra o batente da


porta. Ela tropeça e cai bem nos meus braços. A seguro, inalando o cheiro de frutas vermelhas
que exala de seu cabelo. A garota está uma bagunça, porém continua linda. Os olhos dela me
lembraram a curva de uma lágrima, com a dobra epicântica. Ela os pisca para mim e cora em
seguida. Estamos perigosamente perto.

— Posso soltá-la ou você vai voltar a cair? — pergunto, com a voz suave, ainda
mantendo-a por perto.

Phoenix se desvencilha do meu toque de forma brusca e se afasta quase como se eu


estivesse em chamas.

Ela passa por mim, entrando na minha casa e esbarrando propositalmente no meu ombro.

— Você não vai dizer nada? Não vai nem se desculpar? — questiona, indignada.

Então se trata disso, um pedido de desculpas. Só consigo reparar no quão bonita ela é.
Ainda mais com raiva. Phoenix se senta no sofá, derrotada, quando percebe que não direi o que
ela quer ouvir. No entanto, estou disposto a escutar tudo o que ela tem a me falar, mesmo que
seja ruim.

— Eu odeio você — sussurra, olhando para as próprias mãos.


Escondo minhas emoções. Visto minha máscara fria. Não deixo que ela saiba que eu me
importo, nem que suas palavras rompem todas as barreiras que construí. Me certifiquei de que
fossem indestrutíveis o suficiente para que nada e nem ninguém alcançasse meu coração. Mas
aqui está ela. Pouco mais de um metro e sessenta, vestido preto e a aparência de um anjo. Um
passarinho que fez seu ninho no meu peito.

Ela pode me fazer sangrar. A única.

Me sinto vulnerável, exposto, porém não demonstro. Fico ali, ouvindo Phoenix desabafar
por trinta minutos, acusando-me de tê-la usado e utilizando todos os xingamentos possíveis para
me definir. Monstro, babaca, idiota sem coração… e outros de sua lista que parece ser infinita.

— Como consegue? Você disse que não estava disposto a pagar o valor que eles queriam.
Você, Liam Diamond, bilionário…

— O que você não entende, Phoenix, é que eles não queriam dinheiro, mas, sim, todas as
minhas indústrias. Não sabe o que sacrifiquei por elas. É tudo o que tenho. Tudo o que me
resta.

Ao dizer isso, observo sua reação. Seus olhos ficam magoados, e ela evita me encarar.

— Isso não é verdade. É uma pena que pense dessa forma. As indústrias não eram tudo o
que tinha. Mas, você está certo, é tudo o que te resta agora.

Eu a perdi.

— Entendo.

Há tantas coisas que quero dizer, mas não sei por onde começar, ou se devo começar.
Acho que Phoenix ficará melhor sem mim. Ela é como uma flor delicada que ao menor dos
descuidos, terá suas pétalas secas. Sem a germinação certa, ela não florescerá. E com suas raízes
teimosas, que frequentemente crescem em direções erradas…

Não sei se posso cultivá-la.

Phoenix solta um suspiro brusco quando olha para o próprio pé. Seu dedão está
sangrando, consequência da vandalização que ela fez no meu jardim. Vou buscar o kit de
primeiros socorros que há na minha cozinha. Quando volto, me ajoelho à sua frente.

— Vamos cuidar do seu machucado. — Começo a limpar o sangue seco de sua pele.

O corte não é profundo, porém extenso. Com um pouco de álcool num pedaço de
algodão, seguro seu tornozelo com firmeza.

— Vai arder — aviso, pressionando-o contra o machucado antes mesmo que possa reagir.

Phoenix estremece e solta um palavrão. Termino de colocar o band-aid, ignorando todos


seus murmúrios.

— Por que você tem que fingir que se importa? — resmunga, parecendo arrasada.
Porque me importo, mas não digo isso em voz alta.

Phoenix arranca um fiapo vermelho da bolsa que está usando. O fio da costura desprende
e ela o quebra com os dedos, segurando-o. Agora, com os cabelos soltos ao redor de seu ombro,
sinto vontade de beijá-la até que se esqueça do meu próprio nome. Assim, me tornaria um
simples rapaz apaixonado por uma bela moça. Não haveria perigo, nem nada que envolvesse o
sobrenome Diamond. Eu seria dela, e ela seria minha. Simples assim.

— Akai ito — murmura, olhando no fundo dos meus olhos.

— Fio vermelho? — questiono, ainda ajoelhado em sua frente.

Estamos tão perto que posso sentir o seu cheiro inebriante. Quero trazê-la para meus
braços, mas sei que não é apropriado no momento. Não posso ser tão egoísta a este ponto.

— Sabe o que significa a expressão, sem tradução literal?

— Não.

— Essa frase é usada para descrever uma crença relacionada ao destino ou ao amor. Ela
sugere que mesmo que duas pessoas não possam estar juntas e estejam separadas pelas
circunstâncias atuais, elas sempre acharão o caminho de volta uma até a outra.

Phoenix segura minha mão, enrolando o fio em um dos meus dedos e, depois, no próprio
mindinho. Seus olhos cor de avelã encontram os meus. Não resisto ao impulso de colocar a
mecha que cai sobre sua visão atrás da orelha. A cabeça dela se inclina quando meus dedos
resvalam em sua bochecha.

— Durma aqui essa noite — peço, não querendo que ela vá embora.

— E acordar sozinha pela manhã? — questiona, desfazendo o fio ao redor de seu dedo e
se levantando. — Adeus, Liam.

Eu não a impeço de ir. Só me certifico de que ela está segura, de longe, entrando no
automóvel que sei que é designado por seu pai, com seus novos seguranças. Então, quando ela
parte, me sinto mais vazio que o habitual.

— Espera, deixa eu ajeitar a câmera — murmura Bastian, enquanto aguardo impaciente,


sentado na cadeira do escritório.

Normalmente, faço videochamadas com parceiros de negócios, mas Bastian está longe
disso. Ele é meu irmão mais velho. Já faz um tempo desde a última vez que conversamos. Como
ele mora na França, é difícil nos encontrarmos pessoalmente ou até mesmo online com
frequência, considerando minha agenda agitada na indústria. Além disso, ele é proprietário de
uma confeitaria de sucesso, então acho que entende.

A câmera para de tremer e finalmente o rosto dele aparece na tela.


Ele parece exausto, com a barba por fazer cobrindo seu maxilar, contudo, mesmo assim,
sorri para mim da mesma maneira de quando éramos apenas pirralhos. Bastian é assim, sempre
cheio de calor e sentimentos, o oposto de mim.

— Então, como estão as coisas aí em Tóquio? — questiona. — A Bree disse que te


visitou.

— Agitadas. Sim, ela ficou uns dias por aqui. E a Georgina, está bem? — refiro-me à
esposa dele.

Bastian ri.

— Se ela te ouvisse a chamando assim, atravessaria a tela do computador só para


estrangulá-lo. Mas, sim, tirando os enjoos, Gina está bem. Estamos com o pré-natal em dia.

Bastian e Gina esperam um bebê. Eles descobriram a gravidez há cerca de quatro meses.
Eles merecem ser felizes depois de tudo o que passaram para ficarem juntos. Por mais que eu não
diga ou demonstre, fico satisfeito por Bastian ter encontrado o caminho para a vida que sempre
desejou.

— Por que me ligou? — meu irmão questiona, depois de alguns momentos de silêncio.

— Há uma… — Não consigo completar a frase. É quase como se uma força invisível me
impedisse.

Ele arqueia uma sobrancelha.

— Uma…? — repete e dá para ver que está se divertindo.

— Uma… — Respiro fundo, travando a mandíbula. — Uma pirralha insolente que tentou
me sabotar, invadir meu escritório, jogou café na minha camiseta. — Vomito as palavras e
arranco uma gargalhada do meu irmão mais velho. — Essa garota… que não sai da minha
cabeça. Que está me deixando louco.

— Nunca imaginei que fosse te ouvir dizer essas palavras, irmãozinho. Finalmente!
Grande dia! Gina me deve uma grana.

— Como assim?

— Apostei que você iria se apaixonar até os vinte e quatro. Ela disse que era impossível,
que você não tem coração.

— Engraçadinhos — murmuro, irritado. — Me ajude, não sei o que fazer. Quero me


livrar disso que sinto.

— Por que quer se livrar? Amar é bom, cara. Tenho certeza de que ela deve ser muito boa
para ter despertado tudo isso em você.

— Esse é o problema. Ela é boa demais. Eu não quero corromper a pureza dela. Eu sinto
como se fosse destruí-la.
A expressão de Bastian muda. Agora, ele assume a postura de irmão mais velho
experiente.

— Escuta, Liam, você não é mais aquele garoto que esperava afeto de nossos pais, nem
aquele que achava que não merecia ser amado. Você é um homem agora. Lembra quando você
ficava assustado com as brigas de nossos pais e se escondia no armário? — Um pequeno sorriso
triste delineia seus lábios. O tempo parece parar, ouço apenas o farfalhar do vento e a cortina do
escritório balançando. Uma a uma, as lembranças invadem minha mente.

Me remexo, inquieto, e Bastian completa:

— Está na hora de sair deste lugar. Sozinho.


32

— Está indo para o lado errado — murmuro para o motorista, pois o Hide & Art fica em
outro local.

— Perdoe-me, senhorita Phoenix. Há ordens expressas de seu pai para que a leve no
endereço sugerido.

Afundo no banco, murmurando. Deixei um quadro no ateliê e queria voltar para pegá-lo,
mas, pelo visto, não será possível. Não sei para onde estamos indo, então apenas espero até que
cheguemos no local. Observo atentamente o prédio de dois andares com a fachada coberta. Há
uma pequena fila do lado de fora e franzo o cenho.

— Que lugar é esse?

— É a inauguração de uma nova galeria. Seu pai achou que gostaria.

Intrigada, desço do carro. Acho que é a galeria mais bonita que já vi em toda minha vida.
A fachada é feita de mármore e a vitrine é extensa, mas está vazia. Assim que desço do
automóvel, congelo, porque o avisto. Encostado em um conversível do outro lado da rua, está
ninguém menos que Liam, me olhando com atenção.

Faz umas quatro semanas desde que fui até sua casa e quebrei a escultura. Meu rosto cora
quando me lembro. Não me orgulho disso, até porque sou defensora da arte, porém eu estava
bêbada e com o coração partido.

— Está me perseguindo? — Cruzo os braços sobre o peito.

— Não.
— O que quer, então?

Ele estende a mão.

— Quero que você me acompanhe.

Alterno meu olhar entre a palma estendida e seu rosto, sopesando. Meu coração bate
forte. Por fim, escolho me proteger. Não seguro sua mão, mas o acompanho. Ele ultrapassa a fila
da galeria, o segurança apenas o deixa passar.

Assim que atravessamos o hall de entrada do lugar, congelo.


Cada quadro nas paredes é exposto com uma luz suave que destaca os detalhes dos
traços. São minhas artes. Com certeza, há dedo do meu pai aqui. Guardo todas as minhas obras
no porão de casa. Ele deve ter permitido que Liam as trouxesse para cá.

O piso sob nossos pés é revestido por um tapete macio que absorve sons. A atmosfera
deste lugar está incrível e discreta, além de que tudo é sofisticado. No centro do salão, está a arte
da fênix que usei o isqueiro para dar o toque final. Estou sem palavras.

— O que é isso? — sussurro, deslumbrada.

— Sua galeria.

— Você a construiu?

— Pedi que construíssem. — Dá de ombros, como se não fosse grande coisa. — Há uma
sala de artes no andar de cima.

— Me mostre — exijo.

Liam me guia até uma escadaria luxuosa, com uma elegante balaustrada. Subimos os
degraus e, ao alcançarmos o topo, fico boquiaberta. Há estantes cheias de todo material de
pintura possível. É como uma biblioteca, mas em vez de livros, está repleta de tintas e pincéis.
Ao centro, uma imponente mesa de mogno, cercada por cadeiras confortáveis e suporte para
telas.

Sem conseguir me conter, dou pequenos pulos até alcançar a fênix impressa no centro do
tampo de madeira. Abaixo dela, há os dizeres: Phoenix's Gallery. Este é o nome do lugar.
Começo a dançar, ignorando o olhar de Diamond que parece perfurar minhas costas. Contudo, ao
me virar, paro abruptamente, voltando à minha expressão habitual de raiva.

Limpo a garganta, ignorando a diversão que cintila em seus olhos azuis.

— Não pense que pode me comprar com um lugar desses. — Cruzo os braços e adoto
uma postura defensiva. — Ainda estou magoada.

— Eu sei.

— E ainda te odeio — acrescento. — Isso aqui não muda nada.


— Também sei disso.

— Então, qual sua pretensão? — Olho para ele, desconfiada.

Diamond usa uma camiseta de botões preta que destaca a cor de suas íris. Ele dá um
passo à frente, mantendo toda a sua elegância, com a altura imponente e porte atlético.

— Apenas que você seja feliz e realize todos seus sonhos. E que me escute.

Engulo em seco. As palavras dele são perigosas, assim como o jeito que me olha. Acho
que nunca vi seu rosto tão caloroso antes. É quase como se ele estivesse…

Não.

Isso não é possível.

Homens como Liam não são capazes de sentir amor.

— Diga o que você tem para dizer — falo, esperando.

— Lembra quando te avisei que ser vista comigo poderia te colocar como um alvo? Eu
não estava brincando, Phoenix. John Mellon, o pai de Vanessa, tem ligações com Ryo aqui em
Tóquio. O sr. Ogawa e eu trabalhamos ocultamente durante todo esse tempo para reunir provas
que possam prendê-los. Ao final do dia, estarão atrás das grades. Eles sabiam que estaríamos em
Boston e, através de registros antigos, que estavam no pendrive misterioso, descobri que aquela
propriedade abandonada pertencia a Magnus. Eles três se juntaram em um plano de vingança e
usaram você como isca. Eu deveria ter desconfiado desde o início, quando os sócios de John
solicitaram reuniões acerca de uma proposta…

Fico em silêncio e absorvo as informações. Minha cabeça começa a doer. Estou cansada
desse assunto.

— Você não tinha como saber — é o que falo.

— Eu devia ter esperado.

— Mas o que isso tem a ver com o fato de você ter posto todo seu império acima da
minha vida? — questiono, ficando mais irritada do que eu gostaria.

— Não coloquei. Apenas fiz parecer que sim. Eu sempre estou um passo à frente. Já
havia enviado meus homens para ir atrás de você enquanto negociava com os sequestradores.
Eles eram tão amadores que encontramos sua localização em pouco tempo. Na última ligação, os
policiais já cercavam a propriedade. Sei que fiz você acreditar que não dava a mínima, mas é
mentira. Teria sacrificado tudo por você, entregado tudo em uma bandeja de prata, se fosse
necessário. A questão é que, comigo, você continua sendo um alvo. Não desejo isso. Quero que
esteja segura e bem, e não sei se posso garantir isso.

— Você não pode escolher por mim. — Engulo em seco. — Mesmo que eu me torne um
alvo ao seu lado, não pode tomar decisões como essa. Eu quero ficar com você, Liam. Não me
importa quantos riscos eu tenha que correr.
— Se algo acontecesse com você, eu jamais me perdoaria.

Me aproximo até que apenas alguns centímetros nos separe.

— Não quero mais viver baseada em suposições. Estou tomando mais cuidado a partir de
agora.

— Phoenix. — Diamond parece receoso. O conflito interno é evidente em seus olhos.

— Liam — imploro.

— Você, sonnenschein, vai me fazer perder tudo um dia. — O loiro corta o espaço entre
nós e roça os lábios em minha orelha, enviando uma onda de arrepios por meu tronco. — E
ficarei feliz em ser um homem arruinado, desde que eu tenha você.

Meu coração começa a bater mais forte.

— O que sonnenschein significa?

— Raio de sol.

Me encho de esperança.

— Isso quer dizer que você vai ficar comigo?

Ele olha no fundo dos meus olhos quando responde:

— E onde mais eu poderia ficar? Lembra do que me disse? Que duas pessoas poderiam
estar ligadas pelo destino? Não importa para onde eu queira fugir, meu destino final sempre será
você, passarinho. — Há uma pausa. — Mas antes de tudo, existe algumas coisas que quero que
saiba. Sobre mim. Meu passado. E se quiser ficar comigo mesmo depois de tudo, meu coração
será seu por inteiro.

— Então me conte — sussurro, nossos narizes se roçando.

No próximo segundo, Liam começa a falar.


33

aos 19 anos
O enterro da avó Ana aconteceu há alguns dias, e desde que soube que ela deixou todo
seu testamento para Bastian, tudo o que consigo me recordar é de uma das últimas conversas que
tivemos, ano passado.

Antes de ingressar oficialmente em Stanford, decidi visitá-la durante as férias. Era um


passo e tanto para mim. Iria me mudar para longe de meus irmãos e, por algum motivo, senti a
necessidade de vê-la antes da mudança. Talvez eu pressentisse, lá no fundo, que tínhamos pouco
tempo.

Lembro que estava nevando na Alemanha. Nos sentamos em frente à lareira e ela me
ofereceu uma caneca de chocolate quente, como se eu ainda fosse um pirralho. Minha avó
sempre sabia exatamente o que cada um de nós precisava, mesmo que não disséssemos uma
palavra. Era como se ela pudesse nos ler, de dentro para fora.

Não foi uma surpresa quando ela cortou o silêncio, questionando:

— O que está tirando sua paz, minha criança?

— Vou para longe dos meus irmãos — começo, relutante. — Deixá-los com Hernan e
Donna… parece que estou abandonando-os numa cova de leões.

— E o que mais?

— Eu o odeio — admito, em voz alta. — Eu odeio Hernan, mas tenho que me


transformar nele para que minha família seja livre.

Ela me lança um olhar apreensivo, com o cenho franzido. Parece que a avó Ana também
não entende. Ninguém nunca vai entender. Guardo o segredo mais obscuro de Hernan, e por anos
isso me corrói. Não posso contar para ninguém, nem mesmo para minha vó.

— O que você pretende?

— Vou tirar tudo dele. A faculdade é apenas o primeiro passo. Vou me manter longe e,
discretamente, trabalhar para que ele se torne tão miserável quanto ele já me fez sentir um dia.

— É sobre vingança — conclui. — Você não é como ele, Liam… — Sua mão pousa
sobre a minha, e eu me afasto, me sentindo mais gelado que nunca.

Mesmo com a lareira, tudo que sinto é o frio me abraçando, como um cobertor.

— Você está errada, vó. — Olho para o fogo crepitando em nossa frente. — Eu sou ele.

A memória se dispersa de minha mente.

Entendo porque ela tomou essa decisão. O que ela viu naquele dia… apenas raiva.
Rancor. Ressentimento. Minha avó tinha princípios fortes. Para ela, um coração bom era mais
valioso do que uma mente voraz. Para os Diamond, é ao contrário.

Eu sou um Diamond.

É por isso que retornei para Boston, é por isso que, neste exato momento, estou parado
em frente à propriedade de meus pais. Soube que eles estão se divorciando e que Bastian e
Brianna se mudaram. Estão morando juntos. Aqui, será apenas Hernan e eu.

Bato na porta e espero alguns momentos.

A governanta abre para mim. Sou recepcionado pelo ar frio do interior da casa. Aceno
com a cabeça em um cumprimento e deixo minha mala no hall enquanto caminho até o
escritório, o único lugar onde poderia encontrá-lo.

Assim que abro a porta, o vejo sentado atrás da mesa. Há uma garrafa de uísque vazia
sobre o tampo de madeira, e ele não consegue esconder a surpresa quando me vê. Hernan tenta
ser rápido ao esconder o saco plástico com comprimidos, mas é tarde demais.

— Que lástima. — Ajeito a gravata do meu smoking.

— O que veio fazer aqui? — questiona, miserável, com a camiseta toda abarrotada e a
barba por fazer no rosto.

— Queria vê-lo. Me disseram que você estava no fundo do poço, então tive que conferir
com meus próprios olhos.

Ele enrijece na cadeira.

— O que você quer?

— Vim passar as férias aqui. — Me aproximo de sua mesa. — Como se sente agora que
está sozinho? Que não te restou nada? — A frieza no meu tom de voz é o bastante para que ele
me olhe como se uma segunda cabeça tivesse nascido no meu tronco.

Nunca falei com Hernan assim antes. Me mantive recluso durante esse tempo todo. No
entanto, chegou a hora de retaliá-lo. Esse é o momento em que ele está fraco.

— Está errado. — Oferece um sorriso falso. — Tenho as empresas.

— Que logo irão falir — lembro-o deste detalhe importante. Seu maxilar se trava. —
Acha que não sei que todos seus sócios estão pulando fora do barco? Você destruiu seu
casamento, sua família, sua honra. Ninguém mais quer ter você por perto. Sem alianças, você se
torna inútil, assim como o legado que tentou proteger de um jeito falho.

— E quem irá resgatar o barco, você? — diz, com ironia. — Você não é o Bastian e
nunca será.

— Está certo. — Dou de ombros. — Não sou Bastian e nunca serei, porque ele nunca te
destruiria. Nunca retalharia. Meu irmão é do tipo que apenas se distancia. Eu não. Quero que
você pague por tudo o que fez com todos nós.

— Você é apenas um moleque insolente. Não tenho medo de você.

Pela forma que ele respira, sei que está mentindo. Meu pai era imbatível, mas isso quando
eu tinha quinze anos e era uma criança. Agora, não. Olho para ele e tudo que sinto é pena,
vontade de vê-lo rastejando, comendo poeira.

— Deveria — é tudo o que falo antes de virar as costas e sair de seu escritório.
34

— O que é que aconteceu depois que você o visitou? — questiono, receosa.

Tudo o que Liam compartilhou até agora foi difícil de digerir. As portas da exposição já
abriram, é possível ouvir a movimentação lá embaixo e o burburinho de conversas. Contudo,
aqui em cima é uma ala restrita, garantindo nossa privacidade.

— Eu fui embora, voltei para a Califórnia e a faculdade. Na época, ainda não tinha os
recursos necessários para derrubá-lo.

— E você conseguiu?

— Sim.

— O que você fez? — Começo a mexer nervosamente no meu colar.

Estou sentada no tampo de madeira, enquanto Diamond permanece em minha frente,


encostado contra a parede, mantendo uma distância considerável entre nós. O silêncio que
antecede sua resposta é desconfortável.

— Tirei tudo dele. Me inseri em seu círculo. Usei o resto da minha poupança para
investir junto com seus sócios. Transformei seus inimigos em meus aliados. Observei ele se
enfiar em um buraco profundo, miserável e, quando ele sabia que já não havia nenhum caminho,
transferiu tudo o que havia sobrado para meu nome, me fazendo prometer que o daria uma
porcentagem caso conseguisse me reerguer.
— Você não cumpriu com sua palavra — presumo, o tom de voz baixo.

— Não — concorda, sem qualquer resquício de arrependimento em seu rosto. — Deixei


Hernan para trás. Sem nada. Nunca mais ouvi falar sobre ele, ou soube do seu paradeiro. É
provável até mesmo que esteja morto.

— Você não sente arrependimento?

— Não. Acredito que o que ele colheu é apenas consequência do mal que semeou. O que
ele teria feito com Brianna se eu não tivesse intervido… — Seus olhos se tornam vazios, opacos,
sem qualquer tipo de sentimento.

Compreendo todo o ódio que Hernan incitou em Liam. Só de imaginar a cena que ele
testemunhou naquela noite, me dá calafrios. Ou as vezes em que ele sofreu com as punições. Não
imagino como um pai possa fazer tudo isso com seus próprios filhos.

— Eu não estou aqui para julgá-lo. — Desço da mesa. — Não posso imaginar como
vocês enfrentaram tudo isso sozinhos, nem o segredo que você teve que manter para não arruinar
seus irmãos. Isso é altruísmo. Você fez o que pode para que Bastian e Brianna pudessem ser
quem são hoje em dia. Pessoas boas que merecem seus finais felizes.

— Você entende? — ele pergunta, em um tom de voz baixo. — Entende o que estou
disposto a fazer por quem amo? É por isso que achei que você estaria melhor sem mim. Se
aqueles homens tivessem machucado você…

— Eu estou bem — o interrompo, me aproximando. Não quero permitir que cenários


ruins ocupem sua mente neste momento. Acho que ter que reviver o passado já é o suficiente. —
E eu não me importo com tudo o que você me disse. Só me importa o agora.

Coloco minha mão sobre seu rosto, e Liam se inclina contra minha palma.

— Vamos para casa — diz, e eu concordo.

— Vamos para casa — repito.

Agora que não estou bêbada, posso observar melhor a propriedade em que o loiro reside.
É uma construção de dois andares, pintada de cinza, exalando modernidade. Há um pequeno
jardim à esquerda, uma garagem e o local que era ocupado por sua estátua está vazio, o que faz
com que meu rosto arda de constrangimento.

Dentro da casa, a sala reflete uma atmosfera impessoal que se estende pelo restante do
ambiente. Uma lareira, um mini bar e um sofá de couro preto com três lugares compõem o
cenário. Nada de tevê ou qualquer tipo de eletrodomésticos.

— Dá para perceber que você é um grande fã de cores — digo, com ironia.

Liam tira o terno, ficando apenas com uma camiseta social.


— Não gosto de cores. Me dão dor de cabeça.

— Tá bom, drácula — murmuro, indo até a prateleira posicionada sobre a lareira. Há um


porta-retrato dele com Brianna e Bastian. Todos os três eram crianças, sentados na grama de um
jardim bonito.

Fixo meu olhar em um quadro pendurado na parede. É bem interessante. Uma mulher
caindo de um penhasco, com uma flecha em suas costas. Me surpreendo ao ver a assinatura com
as siglas LD do artista.

— Você quem pintou isso?

— Sim.

Encaro-o, boquiaberta.

— Quando pretendia me contar que é um artista?

— Não sou artista, você é. Isso era apenas um hobbie que minha avó materna
incentivava. Nada demais.

— É uma obra-prima. Modéstia não combina com você.

Ele suspira, sentando-se no sofá.

— Tem razão. Eu só não queria que você ficasse triste achando que poderia ter uma nova
concorrência. E está claro que eu sou melhor que você. — Arqueia uma das sobrancelhas.

— Rá. Nos seus sonhos, Diamond.

Uma sombra de sorriso ocupa seu rosto.

— Já volto — fala, enquanto sobe as escadas.

Fico sozinha no andar debaixo até que Lotus aparece, abanando o rabo. Eu me ajoelho,
fazendo carinho em suas orelhas. O cachorro lambe meus dedos e eu rio. Lotus corre para a
cozinha e o sigo. Ele sai pela tela para cachorros que há embutida na porta e deita no jardim.

Me assusto quando sinto o peitoral de Liam atrás de mim. Mal notei quando ele se
aproximou. Olho para trás. Diamond trocou de roupas, usa uma camiseta simples e calça
moletom. Meu coração começa a bater mais forte no peito.

— O quê? — questiona, as mãos grandes seguram minha cintura.

— Nada, é só que… quando você usa roupas normais, sem ternos e gravatas, parece tão
jovem. Tão lindo.

Diamond sorri. Acho que é a primeira vez que o vejo sorrindo de verdade e, nossa, acho
que nunca vou me acostumar com isso. Ele é tão bonito que me deixa sem fôlego.

— Você está corando, sonnenschein — sussurra em meu ouvido.


Inesperadamente, Liam me pega em seus braços. Solto um suspiro, surpresa, e ele
começa a me carregar pelas escadas. Estou sorrindo feito idiota quando ele me joga em sua
cama, fazendo-me soltar um grito. Meus cabelos voam sobre meu rosto, e eu olho em sua
direção, indignada.

Consigo ajeitar as mechas a tempo de ele me atacar. Ele está sobre mim agora,
posicionado entre minhas pernas e, devagar, sua boca encontra a minha. Derreto assim que
nossas línguas se tocam e moldo minha mão em sua nuca.

Sua ereção pressiona contra mim e eu arfo, aumentando a intensidade com que nos
beijamos.

Liam desce as mãos para debaixo de minha blusa e apalpa meu seio esquerdo. Sua boca
muda de lugar, posicionando-se em meu pescoço. De forma ágil, ele desce as alças da blusa
pelos ombros, deixando-me exposta, já que estou sem sutiã.

Sua boca engole meu mamilo e eu gemo, puxando a barra de sua camiseta com as mãos.

— Tira — peço, prestes a entrar em combustão. Quero vê-lo inteiro desta vez. Sem nada.

Liam se afasta para remover a camiseta, assim como a calça que está vestindo. Termino
de me despir e nós ficamos parados por alguns momentos, olhando um para o outro feito dois
idiotas.

— Você é perfeita — diz, antes de voltar a me beijar com ferocidade.

Agora, suas mãos estão por toda parte, assim como as minhas querem o tocar em todo
lugar. Quero decorar cada parte dele, entender o que ele gosta. Quais sons ele faz. Quero tudo.

— Phoenix — Liam sussurra contra meus lábios, antes de descer, até que esteja no meio
de minhas coxas.

Não entendo o que ele está fazendo com a língua ou com a boca, mas o prazer que me
invade com a novidade é avassalador. Ren e eu nunca fizemos nada do tipo antes. Apenas com as
mãos. Liam continua, até que o prazer se torne insuportável, até que eu quase não consiga
respirar e minhas pernas estejam trêmulas.

Então, uma onda de calor cresce em meu interior. Eu tremo, contendo o gemido no fundo
da garganta e fechando os olhos com força.

Meu peito desce e sobe num ritmo intenso e meu coração bate tão forte que acho que vai
explodir.

Abro as pálpebras, encontrando o azul dos olhos de Liam. Ele está sem cueca agora,
completamente despido, ajoelhado entre minhas pernas.

— Vire de costas — fala e obedeço.

Ainda deitada, sinto o corpo de Liam me envolvendo por completo, seus braços
estendidos em cada lado do meu corpo. Ele começa a me penetrar lentamente. É rápido,
profundo, um misto de dor e prazer que me faz prender a respiração.

Aos poucos, meu corpo se adequa ao dele. Os movimentos dele começam devagar,
ganhando intensidade e ritmo gradualmente. Liam encontra seu próprio compasso, nossos
olhares se encontram. Sua boca se choca contra a minha e ele me devora. O beijo é urgente,
desesperado. A mão dele se fecha sobre a minha e nossos dedos se entrelaçam.

Tudo o que sinto agora é prazer e algo que vai além, algo que ainda não posso
compreender, mas que enche meu peito por completo. Liam solta um gemido rouco enquanto
intensifica a velocidade. Sua mão quase esmaga a minha e olho para ele no exato momento em
que alcança o ápice. Ele trava a mandíbula e mantém os olhos no meu enquanto estremece após
me penetrar pela última vez.

Então, desaba sobre mim.

Seu corpo imenso me esmaga contra o colchão. Não consigo me mover e respiro com
dificuldade. Liam é tão pesado que me esforço para dizer:

— Estou ficando sem ar.

Ele rola para o lado, deitando-se com os braços apoiados atrás de sua cabeça. Pela
primeira vez, Liam parece vulnerável. Seus olhos fechados, respiração pesada, músculos
superiores flexionados. O corpo dele parece ter sido esculpido, como a estátua que quebrei em
seu jardim.

Em silêncio, Liam me puxa contra seu peito.

— Phoenix? — Corta o silêncio confortável.

— Oi — murmuro, de olhos fechados, a cabeça descansando no seu corpo, prestes a cair


no sono.

— Ich lieb dich. — É o que ouço antes de minhas pálpebras cederem e dormir.
35

Hoje é o grande dia, enfim.

Estou usando um smoking azul escuro, quase preto, e confiro minha aparência no espelho
quando Phoenix chega por trás de mim, enrolada apenas em um lençol.

Ainda não me acostumei com o quão linda ela é. Seus braços enlaçam minha cintura e ela
me dá um abraço apertado, ficando na ponta dos pés para tentar alcançar meu ombro. Me viro e
dou um beijo em sua testa.

— Bom dia, passarinho.

Ela sorri e em seguida esboça uma cara engraçada de descontentamento.

— Queria ir com você — murmura, referindo-se à cerimônia de melhor CEO do Japão


que terei que comparecer em breve.

Phoenix e o pai têm outros planos hoje. Eles vão para outro evento. Um que o sr. Ogawa
é obrigado a comparecer. Quando se é importante, é de se esperar que as pessoas requisitem sua
presença nesse tipo de coisa.

— Vamos nos ver em breve. Serão só algumas horas — falo, mas entendo, porque já
estou com saudades.

Phoenix tem passado todos os finais de semana aqui em casa desde que dormimos juntos
pela última vez. Faz duas semanas que acordo com seu cabelo longo e sedoso roçando no meu
rosto. Acho que nunca dormi tão bem antes. Às vezes, tinha pesadelos ou acordava no meio da
noite. Agora, não há nada além da serenidade que sua presença me proporciona.
— Tudo bem, mas não vou esperar que você saia do trabalho. Te encontro lá.

— Como quiser — é tudo o que digo. Outro fato curioso sobre mim é que simplesmente
não sei dizer não a ela.

Semana passada, minha garota me fez assinar um cheque de cem mil dólares para uma
instituição de câncer, depois de assistir um filme em que a personagem morria por conta da
doença e não ficava com seu grande amor. Depois, me fez levá-la até o cinema, o que detesto,
para ver um romance melodramático.

Agora, estou aqui, entregando a chave do meu escritório para que ela me espere lá.

— Não perca — digo e Phoenix assente, começando a se vestir.

Ela trouxe sua roupa para cá e uma necessaire, então não precisa voltar para casa para se
arrumar. Minha garota veste um quimono vermelho com detalhes brancos. Gosto quando ela usa
as roupas tradicionais daqui. Quando termina, amarra os cabelos em um rabo de cavalo, algo
que me deixa louco para beijar seu pescoço exposto.

— Acho que estou pronta — diz, se olhando no espelho do meu quarto.

— Está linda — falo, porque é verdade.

Phoenix sorri.

— O que tem de errado com você? Parece tão apaixonado — zomba, presunçosa.

Essa garota… Meu Deus. Eu faria tudo por ela.

— Vamos? — Estendo a mão em sua direção e ela aceita, entrelaçando os dedos nos
meus.

Após deixar Phoenix no evento em que encontrará seu pai, eu e Kim vamos até a
premiação. Não sei o que esperar do resultado, porém, ao menos, estou entre os finalistas. Não
me contento com o segundo ou terceiro lugar, mas irei me contentar caso aconteça.

Pela primeira vez, sinto que poder não é tudo o que quero.

Depois de Phoenix, tenho visto as coisas com outros olhos. Com um olhar mais simples e
grato. Sou grato por ela ter entrado na minha vida e permanecer. Isso é o suficiente para mim.

— Acho que estamos atrasados. — Kim quebra o silêncio.

Olho para o relógio em meu pulso e confiro. De fato, a premiação começou há quinze
minutos. Peço para que o motorista dê um jeito de achar um atalho e sair do trânsito. Não posso
perder o evento.
Após alguns momentos, finalmente chegamos no arranha-céu, no coração de Shibuya. Ao
atravessar as portas do salão, o homem no microfone faz o anúncio:

— E agora, para o melhor CEO do Japão do ano, resolvemos premiar alguém que se
mostrou ágil nos resultados e causou impactos positivos em nossa sociedade. Este é Liam
Diamond.

A multidão aglomerada no recinto começa a aplaudir. Caminho até o palco, subindo pela
lateral. O homem me entrega o troféu de ouro em formato de globo. Era para Phoenix fazer isso,
conforme a tradição, mas ela não pôde vir. Agradeço e faço um pequeno discurso sobre como
pretendo continuar gerando resultados positivos e, enfim, estou livre. Foi mais rápido e fácil do
que eu esperava. Estou satisfeito.

— Parabéns, senhor. — Kim sorri em minha direção.

— Obrigado. Este prêmio não teria acontecido sem você.

Algumas pessoas vêm até mim em forma de cumprimento. Converso com alguns homens
que tenho interesse em realizar projetos em conjunto. Não sei quanto tempo passa, mas quando
percebo, noto que há diversas mensagens de Phoenix em meu celular. Peço licença e me retiro
para lê-las.

Phoenix: pronto, já posso sair.

Phoenix: qual o resultado???

Phoenix: você conseguiu??

Phoenix: estou indo para o escritório.

Me despeço de todos e dispenso Kim pelo restante do dia, indo em direção ao automóvel.
O engarrafamento me atrasa, o que me deixa um pouco impaciente. Assim que chego na
indústria, a porta do meu escritório está entreaberta.

Não vejo Phoenix em lugar nenhum. Coloco meu novo troféu na estante e envio uma
mensagem para ela, enquanto dou a volta em minha mesa para sentar na cadeira. No entanto,
assim que encosto no banco, ele desaba. Enquanto estou no chão, tentando entender que porra
acabou de acontecer, a garota aparece, rindo feito uma hiena.

Me levanto, encarando-a com os olhos sérios.

— O que foi isso?

— Minha vingança por você ter me mandado para a cadeia.

Franzo o cenho.

— Acho que está meio tarde para se vingar.

— Claro que não! Foi hilário.


Chamo alguém da manutenção para arrumar a cadeira. Não sei como Phoenix fez isso;
deve ter desparafusado algo, mas não importa. Ela sorriu, mesmo que às custas de minha queda.
Nesse caso, o fim justifica os meios.

— Não vai ficar bravo? — questiona, enquanto me sento no tampo da mesa.

— Não — respondo. Sou incapaz de sentir raiva dessa garota atrevida que entrou como
um furacão e preencheu todos os espaços da minha vida. Ela é meu calcanhar de aquiles e
reconheço isso.

— A propósito, parabéns pela premiação, sr. Diamond. — Phoenix caminha até mim,
beijando meus lábios.

Estou prestes a falar algo sujo para ela quando o funcionário da manutenção chega. Não
leva muito tempo para consertar. Como imaginei, apenas alguns parafusos foram soltos. Quando
ele se vai, tranco a porta, me voltando para Phoenix.

— Está na hora da sua punição — anuncio.

Vejo seu rosto se encher de expectativa.

— Como pretende fazer isso?

— Tire a faixa do vestido — peço e é o que ela faz. O quimono se abre, revelando a
lingerie que ela veste por baixo.

Imediatamente, sinto excitação ao ver a renda branca exposta. Segurando a faixa, peço
para que ela se vire e a amarro ao redor de seus olhos como uma espécie de venda. Meus dedos
passeiam entre seus seios, descem até o fim de sua barriga e mergulham dentro da calcinha. Ela
está encharcada, o que me surpreende. Mal começamos.

— Pule as preliminares — murmura quando roço meus lábios nos seus.

Começo a beijá-la, então giro seus quadris e a posiciono sobre a mesa. Preciso tanto dela
que meu corpo dói. Tirando o cinto e afastando seus joelhos com os pés, começo a penetrá-la
assim que desço a calça.

Nós dois gememos.

Não duro bastante dessa vez. O ritmo é rápido, forte, desesperado. Tenho que tapar a
boca de Phoenix para que os gemidos dela não ecoem pelo lugar inteiro. Assim que ela goza,
mordendo minha mão que está sobre seus lábios, eu travo a mandíbula, investindo algumas vezes
antes de chegar lá também.

— Não se mexe muito. — Phoenix passa a máscara de argila em meu rosto.

Estou odiando, mas não digo isso a ela, porque sei que a deixaria chateada. Apenas fico
parado enquanto ela se contenta em passar uma massa verde que endurece meu rosto. Acho que
nem consigo mexer a boca para falar direito. Não sei como as mulheres gostam dessas coisas.
Quando termina, ela começa a passar a coisa na própria pele. Há difusores ao nosso
redor. Toda vez que Phoenix vem para cá, me certifico de que ela continue com a aromaterapia.
O cheiro de óleos extraídos de plantas e raízes flutua no ar. Ela dorme bem à noite sempre que
fazemos isso. Me preocupo com seu bem-estar depois do que passou. Em segredo, contratei mais
seguranças para ela. Eles sempre estão cercando a propriedade do sr. Ogawa, que não se opôs
quando sugeri.

— Por que tem que passar isso? Você já é tão linda. — Quebro o silêncio enquanto
observo-a ficar verde.

— É para que a pele fique mais bonita e saudável — diz, como se fosse óbvio.

Solto um suspiro, pois esta é uma discussão em vão. Phoenix não vai concordar comigo,
e não conseguirei fazê-la considerar o meu ponto. Quando seu rosto todo está coberto pela
máscara, ela se aninha ao meu peito. Lotus dorme aos nossos pés, roncando.

Ela dá play no filme que iremos assistir, chamado Querido John. Não sei se gosto disso.

— Liam?

— Sim?

— Um dia irei conhecer sua família? — Olha para mim, cheia de expectativa.

Não sei o que responder. Após tudo o que aconteceu, minha única família se resume a
Bastian e Brianna. Sendo que os dois moram em continentes diferentes.

— Sim, vamos visitar Bastian uma hora — respondo. Quem sabe consiga reunir Brianna
por lá também.

Talvez, finalmente possamos ser uma família de verdade.


36

Natal dos Diamond - Parte I


Definitivamente, o Natal é a época do ano que eu mais gosto. É a primeira vez que passo
fora de Tóquio e estou muito empolgada, diferente de Liam, que parece possuído pelo espírito
do Grinch. Ele odiou o gorro natalino que dei para ele de presente.

Agora, estamos chegando na casa de seu irmão, Bastian. Pousamos há algum tempo na
França, que começa a nevar. Vi neve poucas vezes em minha vida, então praticamente grudo o
rosto no vidro do carro para observar os flocos que caem do céu.

Assim que uma casa de campo aconchegante surge na estrada, eu observo as luzes que
cobrem a fachada e a guirlanda pendurada na porta. Quando o automóvel para de se mover, eu
salto. Minhas Uggs afundam na grama e eu olho para cima, finalmente vendo os chamuscos de
neve de perto. Um floco derrete bem na ponta do meu nariz e eu espero enquanto Liam tira as
malas do carro junto ao motorista.

A porta da frente se abre e um homem loiro surge no meu campo de visão. Sei que ele é
irmão de Liam pela semelhança assustadora. Devolvo o gesto quando ele acena em nossa
direção. Liam está todo sério enquanto caminhamos até a entrada. Bastian me recebe com um
abraço caloroso.

— Estava muito ansioso para conhecê-la, Pho — fala, arrancando uma careta de Liam.

— Pho? — meu namorado rebate.


— É o apelido que arranjei para ela. Deixa de ser ranzinza — Bastian diz e eu rio.

— Liam não tem o espírito natalino. Também estava ansiosa para conhecer você, Bash.

— Ótimo, já são melhores amigos — meu namorado murmura enquanto entra, deixando
nós dois para trás no hall.

— Liam detesta o Natal porque nossos pais nunca… — Bastian para de falar, lançando-
me um olhar significativo. Acho que entendo. Ele só tem memórias ruins. Brigas, gritos,
punições. Tenho tentado ser paciente com ele. — Vamos, vou te apresentar à minha esposa.

Sigo Bastian pela sala, que tem uma enorme Árvore de Natal com presentes em sua base.
A lareira está cheia de meias coloridas. Parece que o irmão de Liam e sua esposa gostam tanto
desse feriado quanto eu. Entramos na cozinha, onde há uma mulher de costas para nós.

— Gina, essa aqui é a Phoenix, a namorada do Liam — Bastian chama sua atenção.

Ela se vira de imediato, revelando a barriga de gravidez. Gina é linda, tem cabelos
cacheados, pele negra e um sorriso gentil. Ela anda até mim e me abraça do jeito que dá por
conta do bebê que está carregando.

— Você é linda! — Fico um pouco envergonhada com o elogio. — Está com fome? Bash
fez alguns biscoitos.

— Com leite, por favor — peço, e ela imediatamente me serve com um copo cheio e um
prato de biscoitos em formato de Árvore de Natal.

Estou sentada na mesa, ouvindo enquanto Gina conta sobre os doces que Bastian faz em
sua confeitaria e os que irá preparar para o Natal, quando Liam entra no cômodo. Ele
cumprimenta Gina, faz algumas perguntas sobre o bebê e volta a se isolar na sala. Não sei o que
deu nele desde que embarcamos para cá.

Quando termino de comer, agradeço Gina e sigo Liam. No entanto, encontro apenas
Bastian, sentado sozinho em uma das poltronas. Parece meio decepcionado.

— Ele subiu para o quarto — fala, derrotado. — Achei que talvez pudesse ficar feliz em
estar aqui.

Mordo o interior da minha bochecha, porque não sei o que dizer.

— Vou conversar com ele — respondo, enfim, depois de alguns momentos.

— É a terceira porta à esquerda.

Subo as escadas, encontrando caminho para o lugar onde Liam se enfiou. A porta está
destrancada, então tudo o que tenho que fazer é girar a maçaneta e empurrar. Ele está em pé em
frente à janela, com as mãos enfiadas nos bolsos de sua calça.

Fecho a porta atrás de mim e me aproximo, tocando suas costas.


— O que há de errado? Por favor, converse comigo.

Liam fica em silêncio. Quando acho que ele não vai dizer nada, se vira para me encarar.

— Não gosto do Natal.

— Por quê?

— Porque isso sempre representou… solidão. Estou acostumado a passar sozinho, desde
que tinha dez anos. Não havia ninguém, apenas eu e o silêncio. Nossos pais não se importavam
em manter as aparências. Cada um deles ia para um lugar, então Bree, Bastian e eu ficávamos
com a babá, que apenas nos colocava para dormir. Ou, quando estavam em casa, tudo que dava
para ouvir eram os gritos das brigas. Estar aqui… não sei como agir. Isso é novo. E, para ser
sincero, só consigo pensar na sensação. Eu me sentia vazio, passarinho.

— Mas não precisa mais ser dessa forma. Vamos ressignificar o Natal, tudo bem? O que
faria você se sentir melhor agora?

— Você — responde, de imediato. — É o suficiente.

— Vamos voltar lá para baixo, então.

Liam não retruca. Ele deixa com que o arraste até o andar debaixo.

— Vou buscar a Bree no aeroporto — Bash anuncia, de repente.

Eu olho para meu namorado.

— Por que não o acompanha enquanto fico aqui, fazendo companhia para Gina?

— Tudo bem — cede, o que parece surpreender a mim e a Bastian.

Eles vestem os casacos e então saem, avisando que há dois seguranças ao redor da
propriedade, caso precisemos deles. Gina e eu observamos pela janela enquanto a SUV se afasta
pelo asfalto. Ela parece nervosa, já que não para de mexer na bainha do suéter.

— Acho que isso vai acabar mal — murmura, fazendo-me franzir o cenho. Quando nota
a confusão no meu resto, esclarece. — Bree me disse que trouxe Donna, agora há pouco, por
mensagem. Bastian não sabe, tampouco Liam.

Agora compreendo seu nervosismo, porque começo a ficar preocupada também. Liam
definitivamente não está pronto para ver Donna, muito menos agora, quando está se sentindo
vulnerável com as memórias do passado.

— O que fazemos? — questiono, tensa.

— Só nos resta esperar e vermos como as coisas vão se desenrolar.

— O Bastian conseguiu perdoá-la?

— Sim, mas isso faz parte de quem ele é. Ele viu que Donna se arrependeu e estava
disposto a dá-la uma segunda chance, mas, por outro lado, entendo Liam. Isso não é uma
obrigação. É algo que acontece de forma natural.

— Tem razão — concordo.

Gina e eu vamos para a cozinha. Começo a ajudá-la com a louça e pergunto:

— Qual o sexo do bebê?

— Menino — responde, sorrindo. — Ainda não decidimos o nome. Bastian está ansioso
para que nasça.

— Ele parece ser muito bom para você.

— Sim, é. — Há uma pausa. A mulher prepara um molho no fogão que cheira


maravilhosamente bem. — Foi difícil convencê-lo a ajudar com os preparativos de hoje. Ele não
daria conta de tudo sozinho. Há duas noites que ele dorme mal, arrumando a casa toda para
receber vocês. — Ri, divertida. — É raro Liam contatá-lo, sei que é muito ocupado com as
empresas, mas Bash sente falta disso.

— Ele nunca visitou vocês antes?

— Não. Liam é muito reservado. Antes, quando o conheci, ele tinha dezenove anos. Era
mais aberto, de certa forma. Não sei o que aconteceu, depois que nos casamos, e ele assumiu a
presidência das indústrias, é quase como se tivesse se tornado um fantasma. Sabe, eu sou muito
grata a você, Phoenix.

— A mim? — questiono, surpresa, terminando de lavar os pratos.

Me viro para encará-la. Gina desliga o fogão e olha em meus olhos.

— Sim. O Liam começou a ligar para Bastian para falar sobre você. Pode parecer
besteira, mas isso deixou meu esposo feliz. Criou uma aproximação entre eles, tanto que vocês
vieram para cá este Natal. — Sorri. — Espero que, no futuro, possamos repetir isso.

Eu sorrio de volta, meu peito se aquece com suas palavras. Pergunto a Gina sobre seu
trabalho, porque sei que ela é uma escritora de sucesso. Ela diz que está fazendo uma pausa por
conta da gravidez e que não sabe quando poderá voltar a se dedicar às suas obras. Depois que ela
me dá uma cópia de seu livro, nós ouvimos o carro se aproximar da propriedade.

A conversa foi tão fluída que até havia me esquecido do cenário catastrófico que poderia
acontecer. Quando Bastian abre a porta, está com uma expressão exausta, segurando duas
bagagens.

— Ele foi embora — diz, fazendo meu coração errar uma batida.

— Para onde?

— Não sei. Liam viu nossa mãe e surtou. Acha que eu fiz de propósito, mas não sabia
que ela viria. Fiquei tão surpreso quanto ele.
— Vou tentar ligar para ele — começo a dizer, mas murcho assim que vejo seu telefone
no braço do sofá.

Brianna e Donna entram na casa, com expressões tristes. Os olhos de Donna estão
marejados, e ela me cumprimenta brevemente antes de ir para a cozinha, como se estivesse
envergonhada. Brianna me abraça, murmurando um pedido de desculpas.

— Está tudo bem. — Tento confortá-la. — Logo ele deve voltar.

Para ser honesta, não sei se acredito nas palavras que deixaram minha própria boca.

Ela me solta e me dá um sorriso triste.

— Queria que as coisas pudessem ser diferentes. Que Liam pudesse perdoar nossa mãe.

Nenhum deles entende, nem mesmo Donna. O que Liam teve que passar foi… pesado.
Todo ressentimento que ele sentiu, por anos, não irá sumir de uma hora para outra. Acho que
apenas o tempo pode acalmar a guerra em seu coração. Nem mesmo eu tenho esse poder.

Uma hora se passa sem qualquer sinal de Liam. Bastian fica na cozinha com sua esposa e
Brianna, enquanto Donna e eu estamos sentadas na sala, em um silêncio tenso. Não sei se ela
tem ressalvas sobre mim, porque nunca fiz nenhum movimento para ajudá-la com Liam. Sempre
ignorei suas mensagens e tentativas de contato, na intenção de protegê-lo. Eu não iria agir contra
o que ele desejava, que era se manter distante.

— Eu não devia ter vindo — começa a falar, cortando o silêncio. — Acho que ele nunca
irá esquecer.

— Liam está muito magoado. Ele pode fingir que não se importa, ou que não tem um
coração, mas é tudo fachada. Sei que, no fundo, ele se importa tanto que não consegue conter
suas emoções, como hoje.

— Não sei mais o que fazer. — Seus olhos começam a encher de lágrimas, o que parte
meu coração. Não gosto de ver nenhum deles sofrendo dessa forma. Nem Liam, tampouco sua
mãe. — Queria poder voltar no tempo e consertar as coisas. Queria não ter sido uma mãe
horrível.

— Deixe Liam processar as coisas no tempo dele. — Observo as janelas. A neve começa
a se tornar mais espessa, e tenho que mascarar toda a preocupação que estou sentindo. — Um
dia, talvez ele olhe para tudo de outra forma.

O silêncio que se segue é ocasionalmente interrompido pelas fungadas de Donna. Ela


chora por alguns minutos, até que Bree entre na sala e tente consolá-la com os biscoitos de
Bastian.

O céu se torna escuro, e ainda não há nenhum sinal de Liam. Estou no nosso quarto
agora, olhando pela janela enquanto roo a unha do polegar. Não costumo fazer isso, mas a
situação toda me tornou uma pilha de nervos e ansiedade. Quero apenas que ele volte para cá em
segurança, para que, assim, eu possa tentar acalmá-lo de alguma forma.
— Por favor, volte para casa — digo para ninguém, enquanto observo a neve cair mais
depressa.
37

Natal dos Diamond - Parte II


Sabia que ter vindo para cá no Natal não seria uma boa ideia. Bastian, com seu coração
molenga e tentando juntar os cacos da minha relação quebrada com Donna, a convidou de
surpresa para cá. Nem esperei nenhum deles dizer nada. Assim que a vi, dei as costas e saí do
aeroporto.

Eu estava com tanta raiva que não me importei em caminhar até a cidade. Já havia vindo
para Paris antes, mas nunca no inverno. É quase como na Alemanha, porém menos agressivo.
Todas as lojas estão decoradas com enfeites natalinos, e me sinto tão ranzinza que me surpreende
ainda não ter vandalizado algo.

Agora, estou dentro de uma taverna, o único lugar que achei sem luzes de fada e
guirlandas.

Peço uma caneca de cerveja com espuma. Geralmente, bebo apenas uísques, porém, no
momento, não me importo com isso. Quero apenas qualquer tipo de bebida alcoólica que me faça
esquecer completamente do péssimo dia que estou tendo até agora.

Uma silhueta se aproxima à minha esquerda. Estou pronto para dispensar quem quer que
seja quando vejo que se trata de um garoto. Deve ter entre dez e treze anos, então não sei o que
ele faz aqui dentro. Suas roupas estão todas surradas, e ele usa um chapéu.

— Senhor, por acaso pode me dar algumas moedas? — pergunta, fazendo-me tatear os
bolsos.

Assim que encontro minha carteira, tiro todas as notas que tenho e entrego a ele. Seus
olhos se arregalam, e ele me agradece antes de sair correndo pela porta. Solto um suspiro e penso
em Phoenix, no que ela deve estar fazendo agora, ou se está decepcionada comigo. Porém, tenho
certeza de que ela compreende.

O rádio antigo sobre o balcão anuncia a chegada de uma nevasca e instrui os moradores
locais a não saírem durante ela. O lugar está praticamente vazio, com exceção de mim, dois
homens que jogam sinuca e o bartender, que é um senhor de idade. Ele olha em minha direção
com seus olhos enrugados e se aproxima da mesa.

— Você não é daqui. — Quebra o silêncio.

— Alemanha.

— Imaginei. — Há uma pausa. — Onde está sua família? Hoje é Natal.

— Minha família não se importa com meus limites. É por isso que estou aqui.

— Mas estão vivos? — questiona, fazendo-me franzir o cenho. — Se estão vivos, é o que
importa.

Ele deve perceber a expressão no meu rosto, porque continua:

— Quando se é jovem, achamos que temos todo o tempo do mundo. Brigamos com quem
amamos, agimos com orgulho… até que o tempo passa, as pessoas se vão para sempre e você
nunca poderá dizê-las o que realmente importa. A vida é simples, jovem rapaz. Somos nós quem
complicamos tudo.

Suas palavras me incomodam.

— Está dizendo que se arrepende por coisas que não fez?

— Todos nós temos arrependimentos na vida — fala e, com isso, me dá as costas para
limpar o outro lado do balcão.

Me levanto, deixando o dinheiro na mesa para cobrir a cerveja. Ao abrir a porta, dou um
passo para trás assim que o vento gélido bate contra meu rosto. A neve está quase cobrindo a rua
inteira e não há mais pessoas circulando nas ruas, assim como os comércios estão fechados.

Parece que terei que esperar um pouco.

Estou sentado aqui há horas, aguardando o momento em que poderei retornar para à casa
de Bastian. O dono da taverna parece não se importar, já que sempre está focado em fazer
alguma coisa, mal notando minha presença. Como estou sem meu celular, não posso mandar
uma mensagem para Phoenix, o que me deixa irritado, porque todos eles devem pensar que algo
ruim aconteceu comigo.

Aguardo mais um pouco até que a neve pare de cair. É noite quando finalmente saio e
peço um táxi. Demora bastante tempo para chegar, levando em consideração que as estradas
estão congestionadas por conta da neve. Assim que o carro estaciona, desço sem ter ideia das
horas, apenas observando a casa.

É Brianna quem abre a porta. Vestida com um moletom enorme, ela se aproxima até ficar
em minha frente e, para minha surpresa, ela desfere um soco em meu braço. Não faz nem
cócegas, mas arqueio as sobrancelhas pela ação inusitada.

— Por que sumiu, babaca?

— Precisava pensar, aí fiquei preso em uma taverna por causa da tempestade.

— A Phoenix ficou te esperando, mas acabou pegando no sono. Ela pediu para que eu a
acordasse caso você aparecesse.

— Vou lá para dentro daqui a pouco. Deixe-a descansar. A viagem foi longa.

Bree fica em silêncio. Sei que há coisas que gostaria de me dizer, no entanto, mas não é o
momento. Ela apenas me faz companhia enquanto não mostro intenção de entrar, até que percebo
que minha irmã está congelando e a arrasto para dentro. O calor da sala nos abraça assim que
atravessamos a soleira e fecho a porta.

Na sala, há apenas um Bastian exausto. Pela sua expressão, sei que irá me dar uma
bronca. Mas o ponto é que não sou mais um moleque. De qualquer forma, fico parado,
esperando.

— Bom, Gina, Phoenix e nossa mãe caíram no sono. Restou apenas nós dois acordados,
te esperando. — Cruza os braços em frente ao peito. — Antes que você venha com sua
amargura, quero te informar que eu não sabia que ela viria. Foi uma surpresa para mim e para
você. A diferença é que prefiro encarar as coisas, não fugir feito criança.

Não digo nada, apenas me sento no sofá. Bree está parada em minha frente, mexendo
nervosamente nas mãos.

— A ideia foi minha — admite, tensa. — A mamãe não queria vir, mas eu a convenci de
que seria bom.

— Para você — completo, a interrompendo. — Seria bom para você e Bastian.

Bree se encolhe diante do meu tom de voz cortante, baixando os olhos para suas botas.

— É, mas achei que você pudesse a desculpar. Caramba, nunca vai ser o suficiente pra
você?

Me torno completamente frio. É tudo o que sou capaz de sentir no momento.

— Não. Eu nunca irei perdoá-la, nem mesmo se ela morresse. — Me levanto.

Meus irmãos permanecem tão rígidos quanto estátuas diante das minhas palavras. Subo
as escadas, me retirando e deixando-os para trás. Abro a porta do quarto com cuidado, evitando
fazer muito barulho. A raiva ainda pulsa em mim, tornando difícil pensar com clareza. Não
suporto que me digam como devo me sentir ou o que devo fazer.

No entanto, todo esse sentimento se dissipa ao ver o rosto sereno de Phoenix enquanto ela
está em um sono profundo. Seu cabelo se espalha pelo travesseiro, e seu peito sobe e desce em
um ritmo tranquilo. Ela parece tão em paz que me acalma.

Me aproximo, tirando os sapatos antes de me deitar ao seu lado. Com ela, tudo é simples.
Enterrando o rosto na curva do seu pescoço, inspiro o cheiro inebriante, uma mistura de baunilha
e o shampoo de frutas que ela usa. Phoenix se remexe, indicando que acordou. Seu corpo gira na
cama, e uma de suas mãos molda o lado do meu rosto. O toque dela é quente e suave.

— Onde estava? — questiona, sonolenta. O quarto está escuro, mas a luz do luar
atravessa as janela, permitindo-me enxergá-la.

— Fiquei preso na cidade por conta da neve. — Fecho os olhos quando seus dedos
acariciam meu rosto.

— Eu te amo — Phoenix diz, inesperadamente, fazendo-me abrir os olhos.

É a primeira vez que ela me fala essas palavras, e embora eu já tenha as expressado em
alemão, duvido que tenha entendido.

— Amo você — devolvo, beijando-a.

Então, adormeço em seus braços.

Ao despertar, percebo que Phoenix não está ao meu lado. Não tenho noção por quanto
tempo dormi, mas a luminosidade lá fora indica que já é dia. Observo a paisagem. Um manto
espesso de neve cobre toda a superfície daqui. Ouço risadas no andar de baixo e enrijeço,
imaginando todos sentados à mesa alegres.

Talvez eu seja o único estraga-prazeres. Após um banho e trocar de roupa, desço as


escadas, absorvendo a cena aqui embaixo. Bastian está na poltrona com Gina em seu colo,
enquanto Phoenix e minha mãe ocupam o sofá. No centro, Bree faz mímica.

Ela faz cara feia e ajeita uma gravata invisível.

Todos riem e eu me encosto na parede, semicerrando os olhos em sua direção. Ninguém


percebe minha presença, estão entretidos demais na palhaçada de Brianna.

— Deixe-me adivinhar, seu nome começa com L — Phoenix fala, sorrindo, enquanto
Bree continua com as caretas e movimentos que sugerem alguém dando ordens.

Minha irmã mais nova assente, sem pausar o teatro.

— Tá legal, você é o Liam, já entendemos — Gina fala, parecendo se divertir. — Agora é


a vez da…

Ela para a frase, os olhos encontrando os meus. De repente, todo mundo percebe minha
presença e a atmosfera muda. É quase como se eu fosse uma pedra em seus sapatos.

— Bom dia — murmuro, saindo da sala e indo para a cozinha.

Começo a cortar um pedaço de bolo que está na mesa, junto com pães doces e outras
dezenas de iguarias que definitivamente foram preparadas pelas mãos de Bastian. Quando dou a
primeira mordida, ouço a voz de Phoenix atrás de mim:

— Dormiu bem?

— Sim — respondo quando termino de mastigar.

— Vamos assistir O Grinch daqui a pouco..

— Não estou a fim — interrompo, antes que ela possa completar a frase.

Phoenix fica em silêncio e, mesmo que não possa vê-la, sei que deve estar chateada. Não
quero fingir que as coisas estão boas com Donna aqui. Eles todos podem continuar fazendo
mímica e rindo, mas não irei participar.

— A gente pode conversar? — questiona.

— Agora não.

Ouço-a suspirar e seus passos se distanciam. Tomo café da manhã sozinho e saio pelos
fundos. O jardim de Bastian está coberto por um telhado. Acho que o mandou construir para o
inverno. Fico alguns momentos sozinho e então volto para dentro.

Donna não está mais na sala, então me sento no sofá. Bastian ocupa a poltrona, me dando
um olhar esquisito.

— Onde está Phoenix? — questiono, não a vendo.

— Foi para a sauna com Donna e a Bree.

Me sinto incomodado com a informação. Sei que estou sendo babaca e egoísta, contudo,
não quero que minha mãe tenha a afeição de Phoenix. Logo, serei o vilão para todos, até mesmo
para ela, que é a única que me entendia, até então.

— Espero que se canse de bancar o idiota — murmura. — Não precisa tratar Bree mal,
nem sua namorada.

— Você não entende — me limito a dizer.

— Entendo que você tá agindo feito um pentelho mimado.

Começo a me irritar.
— Cale a boca.

A resposta faz com que Bastian levante do sofá e aponte um dedo em minha direção,
próximo ao meu rosto.

— Da próxima vez que for um babaca, vou fazer com que se arrependa.

Eu me ergo também, sentindo a raiva correr por todo meu corpo, em quantidades que não
sou capaz de administrar.

— Não aponte o dedo para mim — aviso, o tom de voz baixo e ameaçador.

De repente, Gina entra na sala, com um rolo de cozinha nas mãos. Ela aponta para nós
dois e sinaliza para a porta.

— Saiam da minha casa, os dois! Se vão se comportar como animais, façam isso lá fora.
— Permanecemos em silêncio, e meu irmão parece descrente, mas Gina insiste, os olhos como o
de uma leoa. — Agora! Resolvam suas diferenças lá. Não tragam estresse para mim e meu bebê.

Eu saio primeiro, e Bastian vem em seguida. Agora, estamos os dois em pé do lado de


fora, a neve caindo sobre nossas cabeças.

Inesperadamente, ele me joga no chão. A queda é amortecida pela neve, mesmo assim
sinto uma pontada de dor atravessar minhas costas. Começamos a rolar pelo quintal feito dois
idiotas, um emaranhado de braços e pernas, enquanto ambos tentamos assumir o controle ao
mesmo tempo.

— Seu babaca mesquinho — Bastian resmunga, enquanto tento prendê-lo no chão com as
pernas.

Após um soco nas minhas bolas, a dor se espalha pelo meu corpo. Travo o maxilar,
conseguindo imobilizá-lo com uma chave de braço. Sem fair play, ele atira um punhado de neve
no meu rosto, forçando-me a recuar enquanto meus olhos ardem pelo gelo.

Pisco diversas vezes, tentando me livrar da sensação. Aproveitando o momento de


vulnerabilidade, ele aplica o Kimura, torcendo meu braço para trás e para cima em direção às
minhas costas. A pressão é desconfortável pra caramba, e meu pulso começa a formigar com a
intensidade, irradiando a dor para o cotovelo.

— Você ganhou — falo, sem fôlego, e Bastian me solta.

— Está contente agora que minha esposa nos expulsou de casa? — questiona, quando me
sento na neve.

— Não — digo, porque é verdade. Estou congelando, e minha pretensão não era fazer
mal à Gina, muito menos agora que está grávida. — Será que já podemos voltar para dentro?

— Peça desculpas.

— Você também.
Nós trocamos um olhar e nos levantamos. Bastian e eu batemos na porta e esperamos que
Gina a abra. Ela alterna o olhar entre nós dois, arqueando as sobrancelhas. Nós devemos estar
num estado deplorável por conta de nossa pequena luta. Sinto a neve derreter no meu cabelo.

— Desculpe, Gina — falo, inexpressivo, sem orgulho.

— Desculpe, meine perle. Vamos nos comportar, prometo — Bastian acrescenta.

Seus olhos suavizam e ela finalmente nos dá passagem, deixando com que nós entremos.
38

Natal dos Diamond - Parte III


Phoenix sai da sauna e vem direto para nosso quarto, enrolada em uma toalha. Estou
terminando de secar meu cabelo com um secador e tirar a neve das roupas quando ela passa por
mim, em silêncio, e começa a revirar a mala.

Sei que o jeito como falei com ela mais cedo a chateou, então termino o que estou
fazendo e me sento na cama, dando um tapa no lugar vago ao meu lado.

— Vem aqui — peço, o mais gentil que consigo.

Phoenix veste um dos meus moletons gigantes que para em seus joelhos e se aproxima,
receosa. Ela senta ao meu lado e seguro sua mão, fazendo-a me encarar.

— Me desculpe, sonnenschein. Agi imaturamente e não queria chateá-la.

— Tudo bem — responde, depois de alguns momentos. Phoenix começa a mexer em seu
colar de trevo. — Escuta, será que você pode conversar com sua mãe?

— Não.

— Então deixe que ela fale, por apenas cinco minutos. Por favor. — Os olhos castanhos
no tom de avelã que tanto me fascina permanecem fixos em mim, cheios de esperança.

— Cinco minutos — murmuro, mal-humorado. — E será tudo.

Phoenix agradece, sorrindo em minha direção. Como sempre, ela consegue arrancar
qualquer coisa de mim. Minha garota veste uma calça moletom e pede um segundo, saindo do
quarto. Quando ela volta, Donna está atrás dela, meio hesitante, como se eu fosse mordê-la ou
algo do tipo.

— Estarei na sala. — Phoenix me lança um olhar que significa não seja tão duro.

Donna entra, fechando a porta. Então, somos só nós dois aqui. Ela fica em pé em minha
frente, me olhando com arrependimento. Seus cabelos loiros estão soltos ao redor do ombro, e
reparo que Brianna está cada dia mais parecida com ela, mas guardo o pensamento apenas para
mim.

— Eu sei que não me quer por perto e entendo. Eu causei dor a todos vocês. Sempre
penso sobre isso e no quanto talvez não mereça uma segunda chance. Mesmo com seus irmãos,
neste momento, sinto que não pertenço aqui, que não sou digna do perdão deles… — Há uma
pausa enquanto seus olhos se enchem de lágrimas. — Eu só queria que soubesse que eu me odeio
por ter deixado Hernan fazer o que quisesse, que não há um dia sequer que eu não queira ir atrás
dele, encontrá-lo e fazê-lo pagar por tudo. Se eu pudesse mudar o passado, saiba que eu mudaria,
sem ao menos hesitar.

— Isso é tudo? — questiono, depois de alguns momentos de silêncio.

— Eu só…queria que pudesse me desculpar. Que pudéssemos recomeçar.

— Não consigo. — Sou honesto.

Derrotada, Donna deixa o quarto aos soluços. Fico parado, com os olhos fixos na porta
entreaberta, processando tudo o que ela disse e a dor em seus olhos. Sei que ela está sofrendo, e
há duas partes de mim guerreando no momento. A que é faminta por retaliação e a que a minha
avó tentou preservar.

Você não é como ele, Ana disse, anos atrás.

A parte sombria está vencendo a guerra, no entanto. Não sei como controlá-la. Não sei
como fazê-la parar.

De repente, sou atingido com memórias do passado.

— Você não pode fazer isso — Hernan resmunga, quando mando os empregados tirarem
todos seus pertences do quarto que antigamente o pertencia.

Agora, sou dono de tudo isso. Dono desta mansão. A propriedade Diamond é minha. Ele
assinou os termos, transferiu tudo para meu nome, me fez o sucessor em troca de que eu
resgatasse as indústrias e lhe desse dinheiro para levar uma vida modesta, apenas com o
suficiente, nada de luxo.

Concordei, mas, honestamente, não dou a mínima para Hernan. Finalmente atingi meu
propósito. Agora, só preciso que ele suma da minha frente. Nunca mais quero vê-lo.

— Posso. Eu sou o Diamond sucessor. Você mancha o meu sobrenome.

— É porque eu concordei que fosse! — Hernan se torna histérico enquanto mantenho a


calma.

— Joguem tudo nas ruas — ordeno aos empregados, referindo-me às malas com os seus
pertences. — Longe da minha calçada, claro.

Hernan tenta avançar sobre mim, porém os seguranças o seguram. Agora, ele parece
patético. Tão patético que tudo o que consigo sentir é pena. Não há mais um tostão furado para
ele. Finalmente, está miserável.

— Você não é um homem honrado, Liam. Sua palavra não vale de nada — continua
gritando, enquanto é arrastado para fora.

E quem disse que eu queria ser alguém honrado? Meu propósito era esse. Deixá-lo
miserável. Acabar com seu reinado. Começar o meu.

É a nova era dos Diamond. E será liderada por mim.

Depois desse dia, nunca vi Hernan ou ouvi falar sobre ele. Seus pais na Alemanha nunca
entraram em contato depois que ele levou nossa família à ruína. Nem procuraram a mim ou meus
irmãos para saber se estávamos bem. Agiam apenas para não manchar a própria imagem,
enquanto nós éramos relegados ao fundo do poço.

Agora, as indústrias Diamond são sinônimo de poder como nunca.

Decido ir para o andar debaixo, tentando não pensar no que minha avó acharia disso tudo.
No quanto de desgosto eu a traria se estivesse viva.

Meus irmãos, Gina e Phoenix estão assistindo Grinch, usando um projetor que transmite
a imagem em uma das paredes. Tomo o lugar vago ao lado de Phoenix, e ela me olha, enquanto
estuda minha expressão neutra. Sei que ela está sondando para saber como foi a conversa com
Donna, mas não dou qualquer sinal que a dê uma resposta concreta.

Donna se junta a nós alguns momentos mais tarde, sem evidências de choro em seu rosto.

Surpreendentemente, o clima não se torna tenso.

— Quem quer me ajudar a montar uma torta? — Gina cantarola, depois que o filme
acaba, levantando-se.

— Eu vou. — Bastian se põe de pé, mas ela o empurra de volta para a poltrona.

— Nada disso, você já fez o suficiente. — Os olhos escuros de Gina percorrem a sala até
que param em mim. — Você é o único que ainda não contribuiu em nada.

Com isso, ela se retira e vai para a cozinha. Phoenix me lança um olhar divertido. Solto
um suspiro antes de me levantar e seguir a esposa de Bastian.

— O que quer que eu faça? — Puxo as mangas do meu suéter para cima.

— Preciso organizar a bancada, pré-aquecer o forno e trocar o pano da mesa. Hoje é a


véspera de Natal, precisamos que tudo esteja organizado.

Em silêncio, começo a fazer as coisas que Gina pediu. Limpo a bancada, que está cheia
de farinha e tigelas sujas, depois ligo o forno e troco o pano da mesa. Quando tudo está pronto,
minha cunhada agradece, e eu saio no momento em que Donna entra no ambiente para ajudá-la.

Fico parado no corredor, por algum motivo.

— São nozes? — Donna questiona.

— Sim, vamos colocar um pouco no recheio para dar crocância.

— Liam é alérgico a nozes, acho melhor não.

Intrigado, eu finalmente entro na sala. Não sabia que Donna se lembrava disso.

Bash está com um violão apoiado sobre a perna esquerda, dedilhando-o enquanto Bree e
Phoenix cantam uma versão desafinada de Carol of the Bells. Faço careta e elas riem.

— Parem, por favor — peço, sentando-me no sofá.

— Segura a onda, Grinch — Bree retruca.

Elas continuam a cantar, até que eu esteja quase implorando para que terminem, então,
param. Próximo da meia-noite, iniciamos a arrumação da mesa todos juntos. Bastian coloca os
pratos em exibição. Há tortas doces e salgadas, frango, purê e comida para um batalhão inteiro.

Antes de jantarmos, Gina e Bastian guiam uma oração.

Logo após isso, nós começamos a nos servir.

Em algum momento, estamos bebendo vinho em frente à lareira, prestes a abrirmos os


presentes. Trouxe alguns para meus irmãos e um para Phoenix. Bastian gargalha quando vê que
ganhou um par de meias de Bree. Eu lhe dei uma camiseta social de botões porque não consegui
pensar em nada. Brianna me deu pedaços de carvão embalado, o que arranca risadas de todo
mundo e até mesmo eu não sou capaz de conter o sorriso.

— Pirralha insolente — murmuro, deixando o carvão de lado, e ela apenas pisca os olhos
azuis inocentemente em minha direção.

— Agora, os meus! — Donna anuncia, empolgada. Ela entrega um presente para cada um
dos filhos. Seguro o meu, hesitante. É uma caixa pequena e leve. Não sei o que pode conter aqui
dentro.

Bastian é o primeiro a abrir o dele. Ganhou um manual de como ser um bom pai. Bree
fica com uma pulseira de ouro, e, por fim, olho dentro da caixa e congelo. São as abotoaduras
que a avó Ana me deu há algum tempo. Achei tê-las perdido.

Como não digo nada e nem mostro o presente, Phoenix começa a abrir o dela. Sentindo
algo esquisito no peito, me forço a me concentrar em sua reação. Dei a ela uma pulseira com
pequenos diamantes. Ela arregala os olhos, surpresa.

— Que injusto — Bree murmura.

— Obrigada. Amei! — Phoenix estala um beijo breve na minha boca, e peço licença para
fumar.

Saio para a varanda, observando a noite noturna e o céu estrelado, a caixinha com as
abotoaduras no bolso. Acendo um charuto nos lábios, enquanto contemplo o silêncio da noite. As
risadas soam abafadas e distantes daqui. Depois de alguns momentos, ouço a porta abrir e olho
sobre o ombro.

Me surpreendo assim que vejo Donna, mas me volto para a frente.

— Como conseguiu isso? — Quebro o silêncio.

— Um dia, encontrei essas abotoaduras em uma das gavetas de Hernan — admite. —


Então as guardei, mas acabei me esquecendo.

Provavelmente ele as tinha visto no meu quarto e as pegou para si. Fico em silêncio,
refletindo no quanto essas abotoaduras significam para mim. E no quanto me ressenti quando
percebi que as havia perdido.

— Obrigado — consigo dizer.

— De nada.

Ouço seus passos se distanciando, então acrescento:

— Eu te desculpo.

O silêncio que se segue é ensurdecedor. Minha mãe está em cima da varanda, me olhando
com os olhos marejados. Termino o charuto, o apago e descarto em uma lata de lixo que fica no
quintal.

— Obrigada — fala, finalmente entrando em casa.

Olho para cima. A maior estrela do céu parece cintilar em minha direção, como se
estivesse aprovado.

Volto meu rosto para a janela. Vejo Phoenix sentada no tapete da sala, rindo de algo que
meus irmãos estão dizendo, enquanto Donna se senta ao seu lado. É a primeira vez que sinto meu
peito cheio. Como se o vazio não existisse mais. Como se tudo estivesse como deveria ser para
sempre.

Aqui. Com a minha família.

Essas pessoas que, mesmo sem admitir, eu amo.

Esse é o segredo para que eu me torne alguém melhor.


No meio da madrugada da noite de Natal, levanto para usar o banheiro, tendo o cuidado
de me desvencilhar de Phoenix, que dorme tranquilamente em meus braços. Enquanto lavo as
mãos, contemplando o silêncio, um baque abafado no corredor faz com que eu entre em alerta.

Saio do banheiro do quarto de hóspedes e abro a porta. Gina está apoiada contra a parede,
arfando. Um dos quadros está estilhaçado ao chão. Ao notar a parte inferior de sua camisola
encharcada, compreendo a situação. A bolsa dela estourou, provavelmente desequilibrando-a e
resultando na queda do quadro que causou o barulho.

Ela me fita com os olhos arregalados.

— Minha bolsa estourou — fala, assustada. — Temos que acordar Bastian.

— O que estava fazendo aqui? — Me aproximo dela para evitar que pise na bagunça de
vidros cortados.

— Vim trazer cobertores extras para a Brianna. As temperaturas despencaram mais.

Primeiro, a ajudo, mantendo a calma. Nunca passei por uma situação dessas antes.
Acompanho Gina até o andar de baixo, já que é mais fácil do que subir as escadas até a suíte dela
e de meu irmão. Nós vamos devagar, um degrau de cada vez, cuidadosos para evitar qualquer
acidente até que ela se senta na poltrona, respirando aliviada.

— Vou acordá-lo — aviso. — Não se levante.

Ela assente, tentando se controlar, mas dá para ver em seu rosto que está apavorada. Gina
é apenas um ano mais nova que eu, que tenho vinte e três anos. Ela ainda é uma pirralha,
considerando que está prestes a se tornar oficialmente mãe pelos próximos momentos.

Subo a escadaria depressa e acordo Bastian, que desperta em alerta do sono profundo e
não leva um minuto para estar no andar debaixo. Agora, somos nós três aqui.

— Está nevando muito para irmos para o hospital — meu irmão mais velho diz,
apreensivo. — Vamos ter que chamar o médico para cá, mas são três horas da manhã.

Acho que nunca vi Bastian assim antes, à beira de um colapso. Por mais que tente parecer
calmo para não apavorar Gina, ele está suando de nervoso mesmo com a temperatura negativa lá
fora. Meu irmão apanha o telefone com a mão trêmula, então pego o aparelho dele e tomo a
frente da situação.

Para nossa sorte, o médico diz que chegará em duas horas por conta do clima e do
feriado.

— Ouvi alguns barulhos — Donna murmura ao juntar-se a nós na sala, após descer as
escadas. Envolta em um roupão felpudo, ela examina cada rosto no recinto, captando a tensão no
ar. — O que há de errado? — Franze o cenho.
— Minha bolsa estourou — Gina diz, agora deitada no sofá, cercada por travesseiros e
almofadas. Tentamos deixá-la o mais confortável possível.

— Vou chamar Brianna. Talvez possa ajudar, já que está cursando enfermagem.

Bash xinga, percebendo que esqueceu deste detalhe, e, para ser honesto, eu também. Não
pensei em acordá-la. Acho que estou absorvendo o nervosismo deles dois. Quero ligar para o
médico, ameaçá-lo ou suborná-lo para que chegue o mais rápido possível ou até mesmo mandar
um helicóptero para buscá-lo. De repente, estou preocupado demais com esse bebê que nem
nasceu ainda.

Quando Brianna vem, começa a acompanhar o intervalo de contrações. Cada vez que
Gina geme de dor, Bastian tenta acalmá-la, segurando sua mão.

— Respire fundo, logo o médico irá chegar — minha irmã fala, mas seus olhos revelam
uma certa incerteza.

Às cinco horas, as dores de Gina ficaram mais fortes e as contrações vêm num intervalo
curto de tempo. O médico finalmente chega, para nosso alívio. Com toda a agitação, Phoenix
finalmente desperta do sono e se junta a nós na sala. O doutor trouxe duas parteiras consigo. Eles
nos expulsam para organizar o ambiente. As mulheres encapam o sofá com um forro e
higienizam o local para que Gina deite outra vez, além de colocar ervas para criar um cenário
propício e outros elementos que não entendo.

Agora, estamos todos aqui, esperando, enquanto Bastian fica com sua esposa.

Bree e minha mãe se sentam à mesa, Phoenix come os biscoitos que sobraram da ceia
para mascarar o nervosismo, e eu me apoio contra a bancada da pia.

Nos primeiros resquícios dos raios solares que invadem as janelas, ouvimos o choro
agudo tomar conta do lugar inteiro.

São pulmões fortes. Finalmente, depois de alguns momentos, uma das parteiras diz que
podemos voltar para lá. Nós nos aglomeramos ao redor de Gina, que segura seu filho contra o
peito, com os olhos marejados. Ele é tão pequeno.

— Ele é tão lindo — Phoenix sussurra, encantada.

— Mal posso esperar para poder segurá-lo — Donna acrescenta enquanto Bree parece
fascinada, em silêncio.

— Qual o nome? — Corto o silêncio.

— Grayson. Era nossa opção principal. Acabamos de nos decidir — Bash diz, sorrindo.
Acho que é a primeira vez que o vejo chorar.

Olho ao redor. Grayson tem bastante gente disposta a defendê-lo com unhas e dentes.

Incluindo eu.
Estou à procura de Bash para me despedir quando o encontro no quarto do bebê,
segurando Grayson cuidadosamente nos braços. O ambiente está todo decorado com ursos de
pelúcia e as paredes pintadas em um azul que me lembra o mar. Paro no batente, observando-o
acalmar o pequeno com cuidado. Bastian solta um suspiro. Gina está dormindo um pouco, se
recuperando do parto. Agora, há uma equipe inteira aqui cuidando dela. Bastian preferiu não
levá-los ao hospital, por conta do frio e das pistas estarem congestionadas. Muitos acidentes
acontecem nesta época do ano, então entendo sua preocupação.

— Não chore — fala, o tom de voz baixo e suave. — Estou aqui.

Então, meu irmão começa a cantar Beautiful Boy de John Lennon enquanto o embala nos
braços.

Close your eyes


Feche os olhos

Have no fear
Não tenha medo

The monster’s gone


O monstro foi embora

He’s on the run and your daddy’s here


Ele fugiu e o papai está aqui

Beautiful, beautiful, beautiful


Lindo, lindo, lindo

Beautiful Boy
Lindo garoto

Sinto orgulho dele. Bastian encontrou seu final feliz e construiu uma família, uma em que
seu filho será muito amado. Uma em que não há dor, apenas cuidado. Isso é o certo, não o que
tivemos em nossa infância.

— Você é um ótimo pai — falo, o tom de voz baixo, atraindo sua atenção para mim.

Bastian vira o rosto em minha direção. Parece cansado, mas feliz. Ele sorri.

— Obrigado. Um dia, espero que você experimente isso.

Fico em silêncio, porque não consigo me imaginar sendo pai. Ainda. Tenho muito que
aprender antes disso. Não quero ser alguém indigno quando receber um filho de Phoenix. Quero
ser alguém bom. Quero ser… como Bastian. Agora, percebo que o mais próximo de uma figura
paterna que tive foi meu irmão mais velho. Era ele quem estava lá comigo quando eu temia os
trovões. Quando eu me escondia no armário, por conta das brigas de nossos pais, era ele quem ia
me tirar de lá.

Está tudo bem, Bastian prometia. Você vai ficar bem, ele falava. Tem que sair daí uma
hora. Eu vou ficar com você esta noite.

— Obrigado — falo, quando as memórias dissipam.

Meu irmão franze o cenho, confuso.

— Pelo o quê?

— Estamos indo embora — mudo de assunto, apoiando-me contra o batente da porta. —


Mande notícias. O motorista está à espera de mim e Phoenix lá embaixo.

— Não vou poder acompanhá-lo até a porta porque estou segurando Gray, mas boa
viagem. Foi bom ter você, Bree, a nossa mãe e Phoenix aqui. — Há uma pausa. — Espero que
possamos nos reunir outra vez.

— Seria bom — concordo.

A resposta parece surpreendê-lo. Me despeço de Gray e desço as escadas, encontrando


Phoenix na soleira. Ela usa luvas, touca e um casaco. Donna e Brianna se despediram mais cedo.
Nós iríamos embora amanhã, no dia vinte e seis, mas, com o nascimento de Grayson, queremos
dar privacidade e espaço para Bastian e Gina com o bebê. Todos nós quatro remarcamos as
passagens.

— Vamos para casa? — Phoenix diz, segurando as malas e me olhando com seus olhos
avelãs encantadores.

— Vamos para casa — concordo, abraçando-a antes de entrar no táxi que parte em
direção ao aeroporto.

Casa é qualquer lugar onde ela está e a partir de hoje nunca mais deixarei meu passarinho
ir embora.

FIM
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer a todo mundo que esteve correndo comigo nos bastidores para que esse
livro fosse lançado. Sem vocês, não estaríamos aqui.

Escrever sobre o Liam foi um desafio para mim, então também não posso deixar de ser
grata a todas minhas leitoras que pediram por isso e ficaram tão ansiosas quanto eu quando
decidi transformar a ideia toda em uma série.

Esse foi apenas o volume II.

Nos encontraremos no futuro, para dar vida à história da Bree. E, caso alguém aqui esteja
interessado em acompanhar as notícias, recomendo que me siga no Instagram (@lov3lyloser).

Com amor,
Lovely.

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