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Marçal Justen Filho - DIREITO ADMINISTRATIVO DA EMERGÊNCIA
Marçal Justen Filho - DIREITO ADMINISTRATIVO DA EMERGÊNCIA
UM MODELO JURÍDICO
1) A colocação do problema
O cenário jurídico resultante é muito problemático. Não se trata apenas de
redução da segurança jurídica, mas também do afastamento da legitimidade
democrática. O Poder Judiciário assumiu o protagonismo decisório,
intensificando um fenômeno que já era notável no cenário anterior. As várias
autoridades do Poder Executivo e as diversas órbitas federativas têm inovado
na disciplina das atividades administrativas e privadas. Inovação e fragmentação
caracterizam essa produção normativa.
Tem-se aludido a um “Direito Administrativo da Emergência”, para indicar
essas medidas que afastam, suspendem ou extinguem o direito administrativo
até então vigente.
A terminologia não é nova. Mais grave é a ausência de referencial normativo
e a desvinculação do sistema jurídico vigente. O ponto central consiste na
premissa de que a emergência exige providências práticas e concretas
imediatas, cujo fundamento de validade reside na inviabilidade da manutenção
da aplicação do direito anterior. O problema é que daí se extrai a consequência
da validade intrínseca e necessária de qualquer decisão adotada pela autoridade
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instituída. Essa orientação não pode prevalecer, especialmente porque a ordem
jurídica continua a vigorar.
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do regime jurídico de uma pluralidade de relações jurídicas entre o Estado e os
particulares e entre esses entre si.
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A situação presente comporta enquadramento em qualquer uma dessas
categorias, a depender do critério escolhido. A alusão a reserva do possível
permite superar essas concepções tradicionais para afirmar, de modo puro e
simples, que se tornou impossível dar aplicação às regras legais e infralegais
concebidas para uma situação fática de normalidade.
A invocação à reserva do possível apresenta uma vantagem adicional,
consistente em afastar também as soluções e as interpretações adotadas no
passado quanto a situações problemáticas.
Assim, por exemplo, há orientação no sentido de que a crise cambial não
se enquadra na teoria da imprevisão, nem configura caso fortuito ou de força
maior. Esse entendimento foi consagrado a propósito de fatos muito diversos
daqueles ora experimentados. Aplicar essa concepção a casos concretos pode
produzir resultados despropositados e efeitos desastrosos.
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Essa proposta é ainda mais consistente em vista inclusive da ausência de
adoção das medidas contempladas na própria Constituição para situações de
crise e emergência (Estado de Defesa e Estado de Sítio, art. 136 e seguintes).
Sem nem sequer avaliar a presença dos requisitos para a decretação dessas
providências, é inquestionável que a crise provocada pela pandemia não
autoriza a suspensão do Estado de Direito.
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na dimensão mais direta da atividade de execução. Mesmo nos extratos mais
elevados da hierarquia decisória, é muito comum a decisão que considera o
princípio como uma previsão constitucional inútil.
Em outros casos, o princípio é invocado somente para legitimar a decisão
voluntarista adotada. A autoridade opta por certa solução e alude ao princípio
para atribuir uma aparência de juridicidade ao seu ato. Trata-se de um recurso
retórico ao princípio, sem qualquer relevância efetiva.
Em qualquer dos casos, aplica-se a lição de Carlos Ari Sundfeld, quando
adverte contra a aplicação do princípio como expediente de preguiça da
autoridade investida da competência decisória.2
2Consulte-se a obra Direito Administrativo para Céticos, 2. ed. São Paulo: Malheiros,
2014.
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A realidade produzida pela pandemia colocou em risco a realização de uma
pluralidade de princípios – consagrados como direitos fundamentais na
Constituição Federal e que são orientados a preservar a dignidade de todas as
pessoas.
Encontram-se em risco tanto os direitos fundamentais de natureza
defensiva, quanto àqueles de cunho promocional. Isso envolve a potencial lesão
aos princípios da liberdade e da propriedade, mas também uma insuportável
ameaça aos princípios da realização da saúde e da educação. As finalidades
essenciais da República, consagradas no art. 3º da Constituição Federal, podem
ser comprometidas, inclusive mediante a exigência de direitos e obrigações
pertinentes a relações jurídicas em curso.
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12) A colisão entre princípios (e as regras deles derivadas)
Uma decorrência inafastável da normatividade dos princípios reside na
permanente tensão entre eles. A aplicação de um princípio exige a
compatibilização com outros princípios. Como visto, a solução jurídica mais
satisfatória é aquela que promove, na maior intensidade e extensão possível, a
aplicação de todos os princípios pertinentes.
Ocorre que, em certos casos, essa colisão é qualificada pela existência de
regras decorrentes de determinados princípios. Isso produz um aparente conflito
entre princípio e regra. Tal como afirma Virgílio Afonso da Silva, “Esse é talvez
o ponto mais complexo e menos explorado da teoria dos princípios”.4
No mundo real, essa situação pode apresentar-se sob diferentes facetas.
Uma delas se verifica quando “a aplicação da regra por subsunção ... levaria a
situações consideradas incompatíveis com algum princípio constitucional
decisivo para o caso concreto, sem que, no entanto, essa incompatibilidade seja
algo verificável em abstrato e, portanto, sem que haja razões para considerar a
regra inconstitucional”.5
A meu ver, em situações dessa ordem a solução envolve o sopesamento
dos diversos princípios, diretamente considerados, com o afastamento ou a
neutralização da aplicação da regra em vista das circunstâncias existentes
(ainda que de modo transitório).
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envolve o sopesamento das circunstâncias. Pode-se afirmar que a intensidade
dessa exigência dependa da normalidade da situação existente no mundo real.
Mais ainda, a legalidade não se constitui em princípio jurídico único.
Convive com muitos outros. E todos apresentam relevância jurídica equivalente
(ao menos, numa dimensão teórica).
A disciplina a ser adotada para o caso concreto depende da conjugação da
pluralidade dos princípios. A legalidade é um deles. Isso significa que, em
determinadas situações, a legalidade (e outros princípios correlatos) comportam
atenuação para assegurar a sua máxima realização possível.
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Essa questão envolve uma disputa sobre o chamado “conteúdo mínimo”
dos direitos fundamentais (e dos princípios). Há diversas propostas doutrinárias
e jurisprudenciais, que não discordam quanto à proibição de supressão integral
e absoluta de uma eficácia mínima do direito fundamental.
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15.2) Ainda a questão da legalidade
Nessa linha, deve-se admitir que a observância rigorosa das disposições
legais (e dos contratos fundados nas leis vigentes) poderia conduzir ao sacrifício
de direitos fundamentais, protegidos constitucionalmente. Isso acarretaria danos
insuportáveis à economia em geral e à dignidade das pessoas.
Por isso, é indispensável promover uma atividade de sopesamento dos
diversos direitos fundamentais envolvidos, para evitar o sacrifício integral de
qualquer um deles. Uma das implicações daí decorrentes é o afastamento
integral ou parcial de regras legais e contratuais, como decorrência da aplicação
de princípios constitucionais determinados.
Isso não significa negar a validade nem das leis nem das cláusulas
contratuais cuja eficácia seja afastada. Tais normas continuam válidas, mas a
solução para o caso concreto é determinada em vista da conjugação dos
princípios constitucionais pertinentes.
A alteração das circunstâncias da realidade afetou o peso relativo de cada
princípio, em termos distintos daqueles verificados até o desencadeamento da
crise. No contexto presente, o sopesamento dos vários princípios aplicáveis
impõe uma solução diversa daquela até então consagrada.
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incompatibilidade entre a solução contemplada na lei existente e as
circunstâncias supervenientes. A aplicação dos princípios constitucionais impõe
a adoção de solução jurídica distinta daquela contemplada na lei anterior.
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16.2) A impertinência da aplicação dos mecanismos tradicionais
Nem há pertinência em cogitar de recompor a equação econômico-
financeira original, mediante a invocação aos institutos tradicionais.
Na maior parte dos casos, é economicamente inviável manter a
concepção original das contratações. O contrato, tal como originalmente
pactuado, não assegura às partes uma solução compatível com os seus
interesses e necessidades. E as providências cogitadas são insuficientes para
restaurar a situação original.
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17.1) Efeitos presentes e futuros da recessão
A recessão já em curso implicou a escassez dos recursos econômicos
indispensáveis para a execução de muitos contratos administrativos. Mas as
perspectivas para o futuro são sombrias.
A ruptura dos contratos atuais produziria um desastre econômico e social.
De modo geral, existe o risco de inviabilização material da continuidade da
execução dos contratos administrativos. Isso poderia resultar na ausência de
oferecimento das necessidades para satisfação de direitos fundamentais. Os
sofrimentos produzidos pela generalidade das circunstâncias seriam
incrementados pela ruptura de serviços essenciais.
Por outro lado e considerando a superação da pandemia num prazo
relativamente curto, a indispensável retomada do desenvolvimento econômico
demandará a existência de obras estatais e a prestação de serviços públicos.
Encerrar contratos administrativos de modo generalizado e retomar os
processos de licitação e outorga demandará muitos anos e recursos. Isso
potencializará os efeitos econômicos nocivos produzidos pela pandemia.
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que com resultados muito menos frutíferos dos que os originalmente
assegurados a ambas as partes.
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17.6) A garantia de satisfação dos direitos fundamentais protegidos
É imperioso assegurar que as alterações não gerem o sacrifício
insuportável dos direitos fundamentais dos terceiros. A qualidade dos serviços e
os padrões adotados devem observar os padrões mais elevados possíveis, para
evitar que a sobrevivência do contrato seja produzida às custas da violação à
dignidade dos cidadãos.
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18.2) Ainda as regras como manifestações de princípios
Ora, as regras legais e contratuais que consagram o regime jurídico da
contratação administrativa refletem princípios constitucionais. A disciplina
contemplada nas regras positivadas refletiu o sopesamento dos diversos
princípios num determinado momento histórico, em vista das circunstâncias
então existentes.
É incorreto reputar que o modelo legislativo adotado concretamente seja
a única solução possível em vista dos princípios constitucionais. A complexidade
e a multiplicidade dos princípios consagrados acarretam uma gama variável de
soluções infraconstitucionais admissíveis.
A edição de regras, por meio de leis, destina-se a reduzir essa
insegurança e a produzir a segurança jurídica. A regra legal consagra solução
mais específica e determinada, dentre as diversas alternativas extraíveis dos
princípios.
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O princípio da legalidade administrativa não pode conduzir ao sacrifício
do funcionamento dos serviços públicos, nem ao atendimento às necessidades
essenciais da população.
Por isso, não viola a legalidade administrativa a adoção de providências
extraídas do sopesamento conjunto dos diversos princípios que dispõem sobre
a atividade administrativa estatal, tomando em vista a alteração radical das
circunstâncias da realidade e visando combater os efeitos nocivos da pandemia.
Essa solução encontra fundamento constitucional nos diversos princípios e é
compatível com a própria previsão legislativa que atribui à Administração Pública
a competência para prestar os serviços públicos, assegurar a sua continuidade
e regulamentar a sua regularidade.
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18.6) Ainda a questão da isonomia entre os licitantes
Nem é distinta a solução quanto à questão da isonomia entre os licitantes.
O direito a tratamento equivalente entre todos os potenciais interessados não
autoriza o sacrifício do atendimento às necessidades da Administração e da
coletividade, em virtude de eventos supervenientes radicais.
Como é pacífico, a igualdade envolve o tratamento equivalente entre
sujeitos que se encontram em situação equivalente. A existência de um contrato
em curso de execução, afetado por circunstâncias relevantes, exige a adoção
de providências compatíveis com esse cenário. Em tais casos, a própria
isonomia autoriza o tratamento diferenciado.
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19) O controle das modificações
A redução da eficácia vinculante de regras legais e contratuais deve ser
acompanhada de mecanismos de controle adequados e necessários. Esses
mecanismos destinam-se inclusive a reduzir o risco de soluções reprováveis e
eliminar dúvidas sobre a correção da conduta dos agentes envolvidos.
20) Conclusão
A pandemia produz dificuldades para os diversos segmentos da
sociedade. A superação dessas dificuldades depende não apenas do esforço
material de autoridades e sociedade civil. Também depende da capacidade de
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desenvolvimento de soluções jurídicas aptas a produzir resultados adequados,
inclusive quanto às relações jurídicas em curso de execução.
Alguns dizem que, depois da pandemia, nada será igual ao que era antes.
Essa é uma questão incerta. Mas é inquestionável a inviabilidade de manter as
condições previstas nos contratos administrativos tal como pactuados
anteriormente à crise. Por isso é necessário iniciar, de modo imediato, a
discussão sobre a revisão das contratações em curso para assegurar o
atingimento de suas finalidades e reduzir os efeitos nocivos de uma crise sem
precedentes.
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