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DIREITO ADMINISTRATIVO DA EMERGÊNCIA

UM MODELO JURÍDICO

Marçal Justen Filho


Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP
Sócio fundador da Justen, Pereira, Oliveira e Talamini

A pandemia afetou o direito vigente e as relações jurídicas preexistentes.


Medidas legislativas e administrativas e decisões judiciais adotaram soluções
inovadoras para disciplinar não apenas os eventos futuros, como também
aqueles do passado – mais precisamente, os efeitos presentes e futuros de atos
jurídicos perfeitos e acabados ocorridos no passado.

1) A colocação do problema
O cenário jurídico resultante é muito problemático. Não se trata apenas de
redução da segurança jurídica, mas também do afastamento da legitimidade
democrática. O Poder Judiciário assumiu o protagonismo decisório,
intensificando um fenômeno que já era notável no cenário anterior. As várias
autoridades do Poder Executivo e as diversas órbitas federativas têm inovado
na disciplina das atividades administrativas e privadas. Inovação e fragmentação
caracterizam essa produção normativa.
Tem-se aludido a um “Direito Administrativo da Emergência”, para indicar
essas medidas que afastam, suspendem ou extinguem o direito administrativo
até então vigente.
A terminologia não é nova. Mais grave é a ausência de referencial normativo
e a desvinculação do sistema jurídico vigente. O ponto central consiste na
premissa de que a emergência exige providências práticas e concretas
imediatas, cujo fundamento de validade reside na inviabilidade da manutenção
da aplicação do direito anterior. O problema é que daí se extrai a consequência
da validade intrínseca e necessária de qualquer decisão adotada pela autoridade

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instituída. Essa orientação não pode prevalecer, especialmente porque a ordem
jurídica continua a vigorar.

2) A experiência jurídica e o modelo jurídico anterior


Os institutos jurídicos para formalização do relacionamento entre Estado e
particulares foram modelados segundo a experiência desenvolvida ao longo do
décadas. Essa experiência envolveu situações de normalidade, com desvios
eventuais, dentro de parâmetros razoavelmente administráveis. Isso visou
compatibilizar as muitas exigências de diversa natureza, tais como segurança
jurídica, eficiência na exploração de recursos econômicos públicos e privados,
moralidade pública e privada, tratamento isonômico entre os cidadãos e
realização da Justiça.
No âmbito do direito administrativo brasileiro, isso se traduziu em princípios
jurídicos, tais como a legalidade, a exigência de prévia licitação para as
contratações, a vinculação ao edital e a intangibilidade da equação econômico-
financeira do contrato.
As eventuais anormalidades, tal como vivenciadas ao longo do tempo,
conduziram a soluções tais como a rescisão do contrato por conveniência da
Administração, a consagração das teorias do caso fortuito e de força maior, fato
do príncipe e imprevisão e a recomposição da equação econômico-financeira
original.

3) A pandemia e os problemas gerados


A pandemia produziu efeitos diretos e indiretos incomparáveis com a
experiência anterior e insuscetíveis de enfrentamento mediante as soluções
desenvolvidas até então.
Os institutos jurídicos disponíveis foram concebidos em vista de um cenário
radicalmente distinto e incomparável. É inviável resolver os impasses ocorridos
mediante a aplicação dos mecanismos jurídicos já existentes.
Não é casual que houve a proliferação de medidas destinadas a afastar a
aplicação das regras até então vigentes. Isso envolveu, por exemplo, a alteração

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do regime jurídico de uma pluralidade de relações jurídicas entre o Estado e os
particulares e entre esses entre si.

4) A pandemia e uma nova configuração da “reserva do possível”


Os fatos tornaram inviável superar as dificuldades da realidade mediante a
aplicação dos institutos disponíveis.
Não existem recursos econômicos disponíveis, nem no setor público, nem
na iniciativa privada, para compensar os custos e as despesas produzidos pela
pandemia.1
Exigir o adimplemento das obrigações assumidas anteriormente, tal como
se a pandemia não tivesse ocorrido, geraria dificuldades invencíveis. A atividade
econômica sofreu paralisação drástica, o que conduziu à uma crise tanto de
demanda como de oferta. Na generalidade dos casos, os devedores não
dispõem de recursos para liquidar as suas obrigações. E tal se passa não apenas
no setor privado. O próprio Estado necessita endividar-se além dos limites
esperados, de modo a oferecer serviços e bens indispensáveis à mitigação dos
efeitos desastrosos da crise.
Pode-se aludir a uma manifestação até então desconhecida da “reserva do
possível”. Os sujeitos públicos e privados não dispõem de condições materiais
para cumprir os deveres assumidos no passado. Há obstáculos econômicos
insuperáveis, que afastam a aplicabilidade dos institutos jurídicos prevalentes no
passado.

5) A reserva do possível e o afastamento de institutos tradicionais


A referência à reserva do possível decorre do esforço de evitar a disputa
sobre os institutos tradicionais das teorias da imprevisão, do caso fortuito e de
força maior e do fato do príncipe.

1Embora as informações sejam notórias, é relevante quantificar a dimensão da queda


da atividade empresarial privada. Confira-se https://www.cielo.com.br/boletim-cielo-
varejo/, consultado em 14.4.2020.

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A situação presente comporta enquadramento em qualquer uma dessas
categorias, a depender do critério escolhido. A alusão a reserva do possível
permite superar essas concepções tradicionais para afirmar, de modo puro e
simples, que se tornou impossível dar aplicação às regras legais e infralegais
concebidas para uma situação fática de normalidade.
A invocação à reserva do possível apresenta uma vantagem adicional,
consistente em afastar também as soluções e as interpretações adotadas no
passado quanto a situações problemáticas.
Assim, por exemplo, há orientação no sentido de que a crise cambial não
se enquadra na teoria da imprevisão, nem configura caso fortuito ou de força
maior. Esse entendimento foi consagrado a propósito de fatos muito diversos
daqueles ora experimentados. Aplicar essa concepção a casos concretos pode
produzir resultados despropositados e efeitos desastrosos.

6) A preservação do Estado de Direito


A inviabilidade da observância das regras legais e contratuais concebidas e
adotadas no momento anterior à crise não autoriza a instauração de um
decisionismo para o caso concreto. Não é admissível reputar que, em vista da
impossibilidade da observância das regras pretéritas e da preservação dos
efeitos de atos jurídicos perfeitos, não existiria mais uma ordem jurídica vigente
e que caberia a cada autoridade veicular a solução que lhe parecesse adequada
para enfrentar a crise.
Não é cabível ignorar o Estado de Direito e reputar que a crise teria
produzido a suspensão (se não a extinção) da submissão dos atos
administrativos e das decisões judiciais ao ordenamento jurídico vigente.
Ao contrário, permanece aplicável o postulado fundamental de que toda e
qualquer decisão de autoridade estatal, versando sobre (a) providências
destinadas a combater (direta ou indiretamente) a pandemia ou (b) as soluções
relativas aos efeitos de atos jurídicos perfeitos, somente será válida se
compatível com a ordem jurídica vigente.

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Essa proposta é ainda mais consistente em vista inclusive da ausência de
adoção das medidas contempladas na própria Constituição para situações de
crise e emergência (Estado de Defesa e Estado de Sítio, art. 136 e seguintes).
Sem nem sequer avaliar a presença dos requisitos para a decretação dessas
providências, é inquestionável que a crise provocada pela pandemia não
autoriza a suspensão do Estado de Direito.

7) A aplicação da ordem constitucional e dos direitos fundamentais


A ausência de aplicação das regras legais e infralegais, abrangendo
inclusive os efeitos de atos jurídicos perfeitos consolidados sob a sua égide, não
significa a eliminação da validade e da eficácia das normas constitucionais –
especialmente daquelas que reconhecem e protegem os direitos fundamentais.
A restrição à eficácia de direitos subjetivos e deveres jurídicos, constantes
de leis e contratos, não é incompatível com as normas constitucionais. Aliás,
deve-se reputar que a própria Constituição fornece fundamentos para disciplinar
e legitimar essas decisões.

8) Levando os princípios a sério


A questão envolve os direitos fundamentais e o reconhecimento da sua
natureza principiológica. Os direitos fundamentais consagrados na Constituição
apresentam configuração de princípios. Isso envolve características que muitas
vezes não são levadas a sério.
Nos dias de hoje, não tem sentido insistir na distinção entre “princípio” e
“regra”. Mas é relevante afirmar que essa distinção tem sido difundida na teoria
e ignorada na prática.
Na atuação jurídica concreta, o princípio não recebe tratamento adequado
à sua natureza, nem lhe é reconhecida a função fundamental que desempenha
na ordenação jurídica.
Em alguns casos, o princípio é solenemente ignorado. A autoridade emite
decisão tal como se o princípio constitucional não existisse. Satisfaz-se com as
portarias, instruções normativas e ordens de serviço. E isso se passa não apenas

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na dimensão mais direta da atividade de execução. Mesmo nos extratos mais
elevados da hierarquia decisória, é muito comum a decisão que considera o
princípio como uma previsão constitucional inútil.
Em outros casos, o princípio é invocado somente para legitimar a decisão
voluntarista adotada. A autoridade opta por certa solução e alude ao princípio
para atribuir uma aparência de juridicidade ao seu ato. Trata-se de um recurso
retórico ao princípio, sem qualquer relevância efetiva.
Em qualquer dos casos, aplica-se a lição de Carlos Ari Sundfeld, quando
adverte contra a aplicação do princípio como expediente de preguiça da
autoridade investida da competência decisória.2

9) Ainda o art. 20 da LINDB


Não se contraponha que o art. 20 da LINDB teria proscrito a aplicação de
princípios como fundamento decisório. Essa cogitação é destituída de respaldo
jurídico. O dispositivo vedou a invocação de princípios e postulados abstratos,
de modo desconectado da realidade, porque isso resulta na ausência de sua
aplicação efetiva.
Todos os princípios consagrados na Constituição, especialmente os direitos
fundamentais, são juridicamente vinculantes. Nenhum aplicador do direito está
autorizado a ignorar os princípios – que integram o direito - e a decidir de modo
desvinculado do caso concreto.
A finalidade do art. 20 é constranger a autoridade a promover a aplicação
efetiva, de um modo consistente, dos princípios como critério decisório.

10) A questão da pandemia e o risco a princípios fundamentais


A situação concreta acarretou a impossibilidade de aplicação das regras
(legais e contratuais) às relações jurídicas em curso de execução. Mas não se
trata de uma colisão entre a “realidade” e o “direito”. O confronto entre as “regras
jurídicas” (legais e infralegais) é uma decorrência da colisão entre princípios.

2Consulte-se a obra Direito Administrativo para Céticos, 2. ed. São Paulo: Malheiros,
2014.

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A realidade produzida pela pandemia colocou em risco a realização de uma
pluralidade de princípios – consagrados como direitos fundamentais na
Constituição Federal e que são orientados a preservar a dignidade de todas as
pessoas.
Encontram-se em risco tanto os direitos fundamentais de natureza
defensiva, quanto àqueles de cunho promocional. Isso envolve a potencial lesão
aos princípios da liberdade e da propriedade, mas também uma insuportável
ameaça aos princípios da realização da saúde e da educação. As finalidades
essenciais da República, consagradas no art. 3º da Constituição Federal, podem
ser comprometidas, inclusive mediante a exigência de direitos e obrigações
pertinentes a relações jurídicas em curso.

11) Levando os princípios a sério – continuação


O princípio não comporta aplicação nos mesmos termos de uma regra.
Quanto a essa, promove-se a subsunção dos fatos à hipótese normativa, de
modo a identificar a incidência do mandamento. Por isso, a regra é aplicada
segundo a lógica do “tudo ou nada”.
Já o princípio contempla uma determinação a ser modelada em vista do
caso concreto. Cada princípio assegura direitos (e deveres) “prima facie”, cuja
exata determinação exigirá uma atividade de sopesamento das circunstâncias
da realidade, dos valores envolvidos e das finalidades buscadas.
A autoridade competente para decidir está investida de um poder-dever de
ponderar a amplitude e a extensão da solução a ser formulada, especialmente
tomando em vista a pluralidade de princípios potencialmente colidentes entre si.
Como afirmou Robert Alexy, os princípios impõem a máxima realização possível
de uma certa provisão, a depender das condições fáticas e jurídicas.3

3Teoría de los derechos fundamentales, Traducción de Carlos Bernal Pulido. 2. ed.


Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007.

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12) A colisão entre princípios (e as regras deles derivadas)
Uma decorrência inafastável da normatividade dos princípios reside na
permanente tensão entre eles. A aplicação de um princípio exige a
compatibilização com outros princípios. Como visto, a solução jurídica mais
satisfatória é aquela que promove, na maior intensidade e extensão possível, a
aplicação de todos os princípios pertinentes.
Ocorre que, em certos casos, essa colisão é qualificada pela existência de
regras decorrentes de determinados princípios. Isso produz um aparente conflito
entre princípio e regra. Tal como afirma Virgílio Afonso da Silva, “Esse é talvez
o ponto mais complexo e menos explorado da teoria dos princípios”.4
No mundo real, essa situação pode apresentar-se sob diferentes facetas.
Uma delas se verifica quando “a aplicação da regra por subsunção ... levaria a
situações consideradas incompatíveis com algum princípio constitucional
decisivo para o caso concreto, sem que, no entanto, essa incompatibilidade seja
algo verificável em abstrato e, portanto, sem que haja razões para considerar a
regra inconstitucional”.5
A meu ver, em situações dessa ordem a solução envolve o sopesamento
dos diversos princípios, diretamente considerados, com o afastamento ou a
neutralização da aplicação da regra em vista das circunstâncias existentes
(ainda que de modo transitório).

13) A legalidade e outros princípios jurídicos


Deve-se ter em mente que a legalidade – inclusive aquela referida à
Administração – configura-se como um princípio. Ainda que uma regra legal seja
aplicável como “tudo ou nada”, isso não se passa com a legalidade em si.
A exigência de norma legal como fundamento para a restrição à liberdade
privada ou para a atuação estatal se constitui em um princípio. A sua aplicação

4 Direitos Fundamentais, conteúdo essencial, restrições e eficácia, 2 ed., 2010, p. 51.


5 Virgílio Afonso da Silva, ob. cit., p. 53.

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envolve o sopesamento das circunstâncias. Pode-se afirmar que a intensidade
dessa exigência dependa da normalidade da situação existente no mundo real.
Mais ainda, a legalidade não se constitui em princípio jurídico único.
Convive com muitos outros. E todos apresentam relevância jurídica equivalente
(ao menos, numa dimensão teórica).
A disciplina a ser adotada para o caso concreto depende da conjugação da
pluralidade dos princípios. A legalidade é um deles. Isso significa que, em
determinadas situações, a legalidade (e outros princípios correlatos) comportam
atenuação para assegurar a sua máxima realização possível.

14) A proporcionalidade e a sua inafastável aplicação


A proporcionalidade se constitui em pedra angular da organização jurídica
e do processo de concretização do direito. Nas suas três dimensões, é o instituto
que permite a preservação dos valores fundamentais e a realização conjunta dos
diversos princípios (e regras).
Mesmo em períodos de normalidade, toda e qualquer norma jurídica ou
decisão concreta somente é válida quando satisfizer o teste da adequação, da
necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito.
Nenhuma decisão de autoridade pública se configura como válida se for
racionalmente incompatível com o atingimento das finalidades buscadas
(proporcionalidade-adequação). Mas também será inválida quando ultrapassar
o limite mínimo de sacrifício aos interesses envolvidos naquilo que se fizer
necessário para o atingimento das finalidades pretendidas (proporcionalidade-
necessidade). A decisão, além de conveniente e menos danosa, necessita ser
compatível com a ordem jurídica. Ela não pode excluir a validade de solução que
torne inútil a existência de outras normas jurídicas (proporcionalidade em sentido
restrito). Enfim, a solução adotada será inválida quando implicar o sacrifício
absoluto de princípios e direitos protegidos pela própria ordem jurídica. Isso
significa que a invocação a um determinado princípio não legitima o ato jurídico
praticado quando a solução implicar a destruição integral do conteúdo que dá
identidade a um outro princípio, igualmente tutelado pela ordem jurídica.

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Essa questão envolve uma disputa sobre o chamado “conteúdo mínimo”
dos direitos fundamentais (e dos princípios). Há diversas propostas doutrinárias
e jurisprudenciais, que não discordam quanto à proibição de supressão integral
e absoluta de uma eficácia mínima do direito fundamental.

15) O Direito Administrativo da Emergência e a proporcionalidade


A situação emergencial impõe a submissão das relações jurídicas em curso
a um Direito Administrativo da Emergência, ainda que não configurado por via
legislativa.

15.1) A reserva do possível e o afastamento da concepção formalista


A impossibilidade fática da aplicação do regime jurídico até então vigente
decorre da prevalência dos princípios jurídicos. É necessário preservar os
direitos fundamentais e a proposta de submissão das relações jurídicas em curso
às regras pretéritas produziria o risco de sacrifício insuportável de direitos
fundamentais constitucionalmente protegidos.
Isso impõe o afastamento do argumento formalista, no sentido de que as
relações jurídicas ora existentes foram constituídas sob a égide de certas regras
(legais e contratuais), cujo afastamento seria impossível.
O argumento da impossibilidade de afastamento da aplicação das regras
pretéritas é formalista não apenas por ignorar a realidade dos fatos. Outro defeito
reside em ignorar a lesão a direitos fundamentais, cuja tutela se encontra
consagrada constitucionalmente.
Nem cabe argumentar que, à época dos fatos, aquele era o direito vigente.
Entre a data da constituição das relações jurídicas e o presente verificou-se
ocorrência dramática e monumental: a pandemia. Invocar as regras até então
vigentes e pretender a sua aplicação incondicional equivale a ignorar a
pandemia, tal como se as consequências dela decorrentes não existissem.

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15.2) Ainda a questão da legalidade
Nessa linha, deve-se admitir que a observância rigorosa das disposições
legais (e dos contratos fundados nas leis vigentes) poderia conduzir ao sacrifício
de direitos fundamentais, protegidos constitucionalmente. Isso acarretaria danos
insuportáveis à economia em geral e à dignidade das pessoas.
Por isso, é indispensável promover uma atividade de sopesamento dos
diversos direitos fundamentais envolvidos, para evitar o sacrifício integral de
qualquer um deles. Uma das implicações daí decorrentes é o afastamento
integral ou parcial de regras legais e contratuais, como decorrência da aplicação
de princípios constitucionais determinados.
Isso não significa negar a validade nem das leis nem das cláusulas
contratuais cuja eficácia seja afastada. Tais normas continuam válidas, mas a
solução para o caso concreto é determinada em vista da conjugação dos
princípios constitucionais pertinentes.
A alteração das circunstâncias da realidade afetou o peso relativo de cada
princípio, em termos distintos daqueles verificados até o desencadeamento da
crise. No contexto presente, o sopesamento dos vários princípios aplicáveis
impõe uma solução diversa daquela até então consagrada.

15.3) Ainda a questão da submissão ao direito vigente à época


Também não há cabimento em invocar que a Constituição determina que
os efeitos dos atos jurídicos serão disciplinados pela lei vigente à época do seu
aperfeiçoamento.
A Constituição consagra o “princípio” da irretroatividade da lei nova. Logo,
não existe uma vedação absoluta ao afastamento do direito vigente à época dos
fatos, nos casos em que a situação se protrai no tempo e fica albergada por
dispositivo legal da lei anterior.
É indispensável insistir que o afastamento da eficácia das normas legais
vigentes à época dos fatos não decorre de um juízo discricionário do aplicador
do direito. Trata-se de uma imposição produzida pelo sopesamento dos
princípios aplicáveis ao caso, que conduz ao reconhecimento da

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incompatibilidade entre a solução contemplada na lei existente e as
circunstâncias supervenientes. A aplicação dos princípios constitucionais impõe
a adoção de solução jurídica distinta daquela contemplada na lei anterior.

15.4) A proporcionalidade e a aplicação do direito


A autoridade administrativa não está vinculada a aplicar o direito vigente tal
como se a pandemia não tivesse ocorrido. Mas não lhe é facultado produzir
soluções arbitrárias, resultantes de escolhas subjetivas, tal como se não
estivesse vinculada a uma ordem jurídica construída a partir de princípios.
As decisões que afastem ou protraiam a eficácia das normas legais,
infralegais e contratuais vigentes somente serão válidas se compatíveis com o
ordenamento jurídico. A proporcionalidade delimita a autonomia das soluções
adotadas, se e enquanto não houver a produção de um regime legal abrangente.

16) O Direito Emergencial dos Contratos Administrativos


Esse é o arcabouço teórico para propor um direito emergencial dos
contratos administrativos.

16.1) A ruptura irreversível da equação econômico-financeira


Em muitos casos, ocorreu a ruptura irreversível da equação econômico-
financeira dos contratos administrativos. Assim se passou tanto em relação aos
contratos de colaboração (Leis 8.666 e 10.520) como quanto aos de delegação
(concessões e parcerias público-privadas).
A alteração das condições da realidade tornou inviável dar execução a
muitos contratos administrativos. As obrigações previstas tornaram-se inúteis e
extremamente onerosas para alguma das partes. Os direitos estabelecidos não
comportam concretização.
A perspectiva de superação da pandemia não implica maior certeza
quanto ao retorno à situação anterior. De modo geral, pode-se estimar que as
atividades econômicas sofrerão modificações radicais.

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16.2) A impertinência da aplicação dos mecanismos tradicionais
Nem há pertinência em cogitar de recompor a equação econômico-
financeira original, mediante a invocação aos institutos tradicionais.
Na maior parte dos casos, é economicamente inviável manter a
concepção original das contratações. O contrato, tal como originalmente
pactuado, não assegura às partes uma solução compatível com os seus
interesses e necessidades. E as providências cogitadas são insuficientes para
restaurar a situação original.

16.3) A exigência de renegociação dos contratos administrativos


Em muitos casos, a única alternativa reside na renegociação dos
contratos. Isso envolve rever as prestações assumidas pelas partes e adequá-
las à nova realidade. É preciso promover modificação de direitos e de
obrigações, compatibilizando a existência do contrato com as condições
econômicas de curto e médio prazo.

16.4) Ainda a proporcionalidade


A renegociação não pode violar a proporcionalidade-adequação. Isso
significa vedar qualquer modificação que não seja apta a promover a viabilidade
da continuidade da execução do contrato.
Deve ser observada a proporcionalidade-necessidade. Logo, não serão
válidas modificações que ultrapassem o mínimo necessário ao atingimento do
referido fim.
Enfim, deverão ser sopesados os diversos princípios envolvidos,
adotando-se a solução apta a promover a máxima realização possível de cada
um deles.

17) A renegociação como solução para evitar danos insuportáveis


A renegociação dos contratos é a solução imposta pela exigência de evitar
danos insuportáveis a qualquer das partes ou, mesmo, a inviabilização da
continuidade da execução contratual.

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17.1) Efeitos presentes e futuros da recessão
A recessão já em curso implicou a escassez dos recursos econômicos
indispensáveis para a execução de muitos contratos administrativos. Mas as
perspectivas para o futuro são sombrias.
A ruptura dos contratos atuais produziria um desastre econômico e social.
De modo geral, existe o risco de inviabilização material da continuidade da
execução dos contratos administrativos. Isso poderia resultar na ausência de
oferecimento das necessidades para satisfação de direitos fundamentais. Os
sofrimentos produzidos pela generalidade das circunstâncias seriam
incrementados pela ruptura de serviços essenciais.
Por outro lado e considerando a superação da pandemia num prazo
relativamente curto, a indispensável retomada do desenvolvimento econômico
demandará a existência de obras estatais e a prestação de serviços públicos.
Encerrar contratos administrativos de modo generalizado e retomar os
processos de licitação e outorga demandará muitos anos e recursos. Isso
potencializará os efeitos econômicos nocivos produzidos pela pandemia.

17.2) A solução consensual


A dimensão dessas modificações ultrapassa a competência da
Administração para imposições unilaterais porque envolve os direitos e
obrigações que, pactuados originalmente entre as partes – eram destinados a
prevalecer durante a integralidade da execução do contrato. Por isso, essa
alteração significativa das condições originais depende da concordância entre
as partes.

17.3) A exigência de concessões recíprocas


Essa renegociação significa, em última análise, a realização de
concessões recíprocas. Não se trata de submissão do particular à generalidade
das exigências e interesses da Administração. Nem vice-versa. O objetivo é
encontrar uma solução que permita o prosseguimento da contratação, mesmo

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que com resultados muito menos frutíferos dos que os originalmente
assegurados a ambas as partes.

17.4) A atenuação de direitos e obrigações


A renegociação deve ser orientada por informações econômicas, na
medida do possível, de modo a atenuar direitos e obrigações de ambas as
partes. Isso significa que o particular renunciará aos resultados econômicos
estimados originalmente, obtendo como contrapartida a redução das obrigações
a que estava sujeito, tal como a Administração deverá auferir resultados menos
significativos do que estimado.

17.5) O tratamento equitativo entre as partes


Deve ser assegurado às partes a obtenção de resultados equitativos, que
sejam razoáveis e compatíveis com as finalidades originalmente buscadas. Não
caberá ao particular auferir os lucros originalmente previstos, tal como a
Administração deverá obter resultados menos significativos do que estimado.
Não se contraponha que a expressão “resultado equitativo” é muito vaga.
Cabe às partes a negociação quanto à dimensão dos benefícios e encargos a
serem preservados, com reconhecimento da inviabilidade da preservação do
modelo contratual original. Isso envolve um diálogo entre elas, norteado pela
boa-fé e pelo respeito aos interesses legítimos da outra parte.
Isso afasta a legitimidade de a Administração pretender manter a
integridade de suas “prerrogativas” e exigir o cumprimento do contrato tal como
inicialmente pactuado, sem reconhecer nem garantir ao particular uma
compensação equivalente àquilo que lhe fora assegurado originalmente.
A finalidade buscada pelas partes é norteada pela equidade na acepção
de soluções adequadas e necessárias à preservação da existência do contrato,
sem imposição de sacrifícios insuportáveis para cada qual.

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17.6) A garantia de satisfação dos direitos fundamentais protegidos
É imperioso assegurar que as alterações não gerem o sacrifício
insuportável dos direitos fundamentais dos terceiros. A qualidade dos serviços e
os padrões adotados devem observar os padrões mais elevados possíveis, para
evitar que a sobrevivência do contrato seja produzida às custas da violação à
dignidade dos cidadãos.

18) Os argumentos em contrário


O enfoque ora defendido envolve a superação de argumentos jurídicos
prevalentes entre nós, anteriormente à consumação da crise.

18.1) O enfoque absolutista aos “princípios”


De modo genérico, a doutrina brasileira reconhece a natureza específica
e diferenciada dos princípios, mas promove a sua aplicação no caso concreto
segundo o modelo das regras. A orientação difundida é de o princípio ser uma
regra de importância superior, entendimento que é incompatível com o conceito
de princípio.
Ainda que de modo inconsciente, reputa-se que o princípio comporta uma
solução única, uma interpretação uniforme, uma determinação inquestionável.
Afirma-se a existência de apena uma alternativa em vista do princípio e se
promove a sua aplicação segundo a lógica do “tudo ou nada”.
Esse enfoque absolutista acarreta a desnaturação do princípio, que se
caracteriza pela multiplicidade de implicações. Os princípios asseguram direitos,
mas não de modo definitivo – precisamente porque é inviável aplicar um único
princípio a um caso concreto e se faz necessário sopesar a pluralidade de
princípios e as circunstâncias da realidade. A restrição às pretensões dos
sujeitos não implica a invalidade do princípio, mas decorre dessa complexidade
da sua configuração.

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18.2) Ainda as regras como manifestações de princípios
Ora, as regras legais e contratuais que consagram o regime jurídico da
contratação administrativa refletem princípios constitucionais. A disciplina
contemplada nas regras positivadas refletiu o sopesamento dos diversos
princípios num determinado momento histórico, em vista das circunstâncias
então existentes.
É incorreto reputar que o modelo legislativo adotado concretamente seja
a única solução possível em vista dos princípios constitucionais. A complexidade
e a multiplicidade dos princípios consagrados acarretam uma gama variável de
soluções infraconstitucionais admissíveis.
A edição de regras, por meio de leis, destina-se a reduzir essa
insegurança e a produzir a segurança jurídica. A regra legal consagra solução
mais específica e determinada, dentre as diversas alternativas extraíveis dos
princípios.

18.3) Alteração das circunstâncias e efeitos sobre as regras


A alteração das circunstâncias, quando radical, pode afetar as soluções a
serem extraídas a partir dos princípios. Isso pode significar que a disciplina legal
veiculada num certo momento deixa de ser compatível com as novas
circunstâncias.
Então, configura-se um conflito entre a solução consagrada na regra legal
e os diversos princípios, em vista de variações supervenientes.

18.4) A questão da legalidade administrativa


Reconhece-se que a Administração somente pode praticar aquilo que
tenha sido previsto em lei. Alguns reputam que a legalidade administrativa
exigiria uma provisão legal explícita, precisa e exata sobre a conduta a ser
adotada pela Administração. No entanto, a legalidade administrativa se constitui
num princípio, o que exclui a sua aplicação segundo um modelo de “tudo ou
nada”.

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O princípio da legalidade administrativa não pode conduzir ao sacrifício
do funcionamento dos serviços públicos, nem ao atendimento às necessidades
essenciais da população.
Por isso, não viola a legalidade administrativa a adoção de providências
extraídas do sopesamento conjunto dos diversos princípios que dispõem sobre
a atividade administrativa estatal, tomando em vista a alteração radical das
circunstâncias da realidade e visando combater os efeitos nocivos da pandemia.
Essa solução encontra fundamento constitucional nos diversos princípios e é
compatível com a própria previsão legislativa que atribui à Administração Pública
a competência para prestar os serviços públicos, assegurar a sua continuidade
e regulamentar a sua regularidade.

18.5) Ainda a questão do efeito vinculante da licitação


A argumentação acima também afasta o argumento da eficácia vinculante
da licitação. Ainda admitindo (para argumentar) que exista um “princípio do efeito
vinculante da licitação”, a existência de uma licitação não implica a cristalização
absoluta das condições da contratação. É indispensável assegurar a utilidade da
contratação, especialmente em relação aos contratos com objeto complexo e
(ou) de longa duração,
Ou seja, o princípio da vinculação ao edital não autoriza a eliminação da
utilidade dos serviços objeto da contratação, nem se constitui em impedimento
à modificação das condições contratuais previstas. Nesse sentido, o “princípio
do efeito vinculante da licitação” necessita ser compatibilizado com o “princípio
da mutabilidade dos contratos administrativos”. Ninguém nega a viabilidade da
modificação dos contratos administrativos, mesmo quando resultantes de
procedimentos licitatórios.
Por isso, o respeito à eficácia da licitação não produz vedação a
modificações relevantes nas condições contratuais.

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18.6) Ainda a questão da isonomia entre os licitantes
Nem é distinta a solução quanto à questão da isonomia entre os licitantes.
O direito a tratamento equivalente entre todos os potenciais interessados não
autoriza o sacrifício do atendimento às necessidades da Administração e da
coletividade, em virtude de eventos supervenientes radicais.
Como é pacífico, a igualdade envolve o tratamento equivalente entre
sujeitos que se encontram em situação equivalente. A existência de um contrato
em curso de execução, afetado por circunstâncias relevantes, exige a adoção
de providências compatíveis com esse cenário. Em tais casos, a própria
isonomia autoriza o tratamento diferenciado.

18.7) A preservação da equação original: a matriz de riscos


Outro argumento se relaciona com a preservação da equação original,
incluída a observância da matriz de riscos. Essas são exigências fundadas em
diversos princípios constitucionais, tais como igualdade, eficiência, moralidade –
conduzindo inclusive à vedação ao enriquecimento sem causa.
Todos esses princípios devem ser compatibilizados com a preservação
dos interesses econômicos da Nação e a realização dos direitos fundamentais
dos usuários de serviços públicos e de atividades administrativas.
No contexto da realidade ora existente, a ausência de modificação das
condições originais dos contratos administrativos em curso produziria o sacrifício
absoluto de muitos direitos fundamentais. A realização absoluta de alguns dos
princípios norteadores da contratação administrativa não é admitida quando
produzir o sacrifício integral de outros princípios fundamentais.
Reitere-se que não se cogita de modificação para satisfazer
exclusivamente os interesses do particular contratado, nem para promover o
atendimento a interesses secundários da Administração. A finalidade buscada é
reduzir alguns dos efeitos negativos da pandemia, de modo a permitir a
continuidade da execução de contratos para produzir resultados satisfatórios
para todas as partes (inclusive os cidadãos) envolvidas.

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19) O controle das modificações
A redução da eficácia vinculante de regras legais e contratuais deve ser
acompanhada de mecanismos de controle adequados e necessários. Esses
mecanismos destinam-se inclusive a reduzir o risco de soluções reprováveis e
eliminar dúvidas sobre a correção da conduta dos agentes envolvidos.

19.1) A procedimentalização da renegociação


Em primeiro lugar, a renegociação deverá ser procedimentalizada, com a
adoção de etapas sucessivas, destinadas à avaliação de todas as dificuldades,
a identificação das possíveis alternativas e a escolha das medidas mais
adequadas, necessárias e proporcionais.

19.2) A transparência dos procedimentos


Por outro lado, a renegociação deverá ser conduzida com absoluta
transparência. Todas as negociações devem ser processadas com a
possibilidade de participação dos diversos atores envolvidos e da sociedade.

19.3) A participação dos órgãos de controle


Uma cautela relevante consiste no acompanhamento das negociações
por parte dos órgãos de controle. A consumação da renegociação deve ser
avaliada pelo Poder Legislativo, pelo Tribunal de Contas e pelo Ministério
Público.
Isso não significa a supressão da competência da Administração Pública
para implementar as medidas, mas a permitir a identificação de desvios e a
afastar a imputação de condutas reprováveis relativamente às autoridades e
particulares.

20) Conclusão
A pandemia produz dificuldades para os diversos segmentos da
sociedade. A superação dessas dificuldades depende não apenas do esforço
material de autoridades e sociedade civil. Também depende da capacidade de

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desenvolvimento de soluções jurídicas aptas a produzir resultados adequados,
inclusive quanto às relações jurídicas em curso de execução.
Alguns dizem que, depois da pandemia, nada será igual ao que era antes.
Essa é uma questão incerta. Mas é inquestionável a inviabilidade de manter as
condições previstas nos contratos administrativos tal como pactuados
anteriormente à crise. Por isso é necessário iniciar, de modo imediato, a
discussão sobre a revisão das contratações em curso para assegurar o
atingimento de suas finalidades e reduzir os efeitos nocivos de uma crise sem
precedentes.

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