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Fundamentos da

Teoria Literária

Talita Jordina Rodrigues

Aula 03
Diretor Executivo
DAVID LIRA STEPHEN BARROS
Diretora Editorial
ANDRÉA CÉSAR PEDROSA
Projeto Gráfico
MANUELA CÉSAR ARRUDA
Autor
EDUARDO NASCIMENTO DE ARRUDA
Desenvolvedor
CAIO BENTO GOMES DOS SANTOS
A Autora
TALITA JORDINA RODRIGUES
Olá. Meu nome é TALITA JORDINA RODRIGUES. Sou Mestra em
Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina, e Especialista em
Cinema e Linguagem Audiovisual. Além disso já cursei duas graduações
completas: a primeira foi Comunicação Social com Habilitação em
Jornalismo e a segunda foi Letras e Literaturas de Língua Portuguesa. Sigo
sendo estudante pois estou prestes a concluir mais uma graduação, desta
vez em Filosofia. Atuei como jornalistas em redações de Rádio e Televisão
por 6 anos. Também fui produtora cultural, tendo produzido projetos
nas áreas de Literatura, Cinema e Comunicação. Já ganhei dois prêmios
literários e dirigi um documentário audiovisual chamado “Do tacho à mesa”.
Como pesquisadora, já publiquei dois livros didáticos e diversos artigos
em revistas científicas da área das Letras. Sou apaixonado pelo que faço e
adoro transmitir minha experiência de vida àqueles que estão iniciando em
suas profissões. Por isso fui convidada pela Editora Telesapiens a integrar
seu elenco de autores independentes. Estou muito feliz em poder ajudar
você nesta fase de muito estudo e trabalho. Conte comigo!
Iconográficos
Olá. Meu nome é Manuela César de Arruda. Sou a responsável pelo pro-
jeto gráfico de seu material. Esses ícones irão aparecer em sua trilha de
aprendizagem toda vez que:

INTRODUÇÃO: DEFINIÇÃO:
para o início do houver necessidade
desenvolvimen- de se apresentar
to de uma nova um novo conceito;
competência;
NOTA: IMPORTANTE:
quando forem as observações
necessários obser- escritas tiveram
vações ou comple- que ser prioriza-
mentações para o das para você;
seu conhecimento;
EXPLICANDO VOCÊ SABIA?
MELHOR: curiosidades e inda-
algo precisa ser gações lúdicas sobre
melhor explicado o tema em estudo,
ou detalhado; se forem necessárias;
SAIBA MAIS: REFLITA:
textos, referências se houver a neces-
bibliográficas e sidade de chamar a
links para aprofun- atenção sobre algo
damento do seu a ser refletido ou
conhecimento; discutido sobre;
ACESSE: RESUMINDO:
se for preciso aces- quando for preciso
sar um ou mais sites se fazer um resumo
para fazer download, acumulativo das
assistir vídeos, ler últimas abordagens;
textos, ouvir podcast;
ATIVIDADES: TESTANDO:
quando alguma ativi- quando o desen-
dade de autoapren- volvimento de uma
dizagem for aplicada; competência for
concluído e questões
forem explicadas;
SUMÁRIO
Os elementos da narrativa 10
Leitor, autor, narrador 10
O personagem de ficção 20
A organização espacial e temporal 25
Teorias narrativas: Narratologia e Teoria do romance 30
Narratologia 30
A teoria do romance 34
Psicofarmacologia
Fundamentos Clínica 7
da Teoria Literária

03
UNIDADE
8 Fundamentos da Teoria Literária

INTRODUÇÃO
Contar uma história a alguém parece fácil, mas escrever um
romance nem tanto. Apesar das duas coisas terem basicamente a mesma
intenção, o exercício executado por um autor de romances ou de contos
demanda uma série de habilidades e conhecimentos. Um escritor deve
conhecer os elementos que envolvem uma narrativa e saber como
trabalhar com esses elementos. É justamente esse conjunto tão complexo
de tudo aquilo que vai formar um romance ou um conto o que vamos
tratar nesta Unidade. Essas informações te ajudarão a ser um melhor leitor
e, por que não, um melhor escritor também. Vamos conferir?
Fundamentos da Teoria Literária 9

OBJETIVOS
Olá. Seja muito bem-vindo à Unidade 3. Nosso objetivo é auxiliar você
no desenvolvimento das seguintes competências profissionais até o término
desta etapa de estudos:
1. Compreender o papel do leitor, autor e narrador;
2. Refletir sobre as características do personagem da narrativa;
3. Discutir questões ligadas à temporalidade e à espacialidade
da narrativa;
4. Apreender algumas questões de teorias narrativas.
Estas prestes a mergulhar fundo no universo da narrativa, essa forma
de escrita que encanta a tanta gente pelo mundo. Depois desse mergulho,
você nunca mais será o mesmo, pelo menos não será o mesmo leitor. E aí,
está preparado para essa aventura cheia de conhecimento?
10 Fundamentos da Teoria Literária

Os elementos da narrativa
INTRODUÇÃO:
Ao final desta Unidade, você terá uma visão pormenorizada
a respeito da narrativa, tendo conhecido e refletido sobre
os principais elementos que a compõem. Tais aprendizados
e reflexões ajudarão você a tornar-se um leitor muito mais
crítico e atento, capaz de desvendar camadas mais profundas
de textos em prosa. Com isso você também melhorará suas
habilidades de escrita, aprimorando as técnicas de construção
de um texto de qualquer natureza. E, é claro, você vai se
encantar ainda mais pelo universo da literatura. Vamos lá?

Leitor, autor, narrador


As discussões acerca dessas figuras presentes em textos
literários vai muito além do que se pode pensar superficialmente. Para
começarmos, vamos deixar um pouco de lado a figura do leitor e vamos
pensar primeiramente sobre as figuras do autor e do narrador. Não é
raro que leitores de diversos níveis de proficiência da língua confundam
essas duas noções. É bastante frequente também que o próprio escritor,
ao começar a escrever um romance por exemplo, tente provocar ainda
mais essa confusão. Sendo assim, é bom que tentemos já desfazendo um
pouco desses erros frequentes. Vamos partir, primeiramente, com uma
definição simples, uma definição que pode ser encontrada nos dicionários.

DEFINIÇÃO:
Autor: aquele que produz um texto, escrito ou oral, ou a
quem se deve uma obra científica ou artística.
Narrador: aquele que narra, conta ou relata.

Ora, à primeira vista, as definições parecem ser muito próximas.


Tomemos, então, um texto clássico da nossa literatura brasileira como
exemplo. O livro Memórias Póstumas de Brás Cubas é a obra-prima do
nosso grande autor brasileiro Machado de Assis. No caso desse livro, a
indicação do autor e do narrador aparecem logo na capa.
Fundamentos da Teoria Literária 11

Figura 1 - Capa do clássico da literatura brasileira indica o autor e o narrador da história.

Fonte: https://bit.ly/34DQ8Tp

Obra: Memórias Póstumas de Brás Cubas


Autor: Machado de Assis
Narrador: Brás Cubas
O autor da obra é, então, Machado de Assis e o narrador se chama
Brás Cubas. A diferença principal e fundamental entre essas duas figuras é
que uma delas existiu de verdade, enquanto que a outra não. Lembremos
que uma das definições possíveis da literatura se relaciona ao fato de ela
ser ficcional, ou seja, ao fato de ela ser inventada, criada pela imaginação
de alguém. Assim, a figura que de fato existiu, Machado de Assis, inventou
um personagem chamado Brás Cubas e o colocou para “escrever” um
livro contando as memórias de sua vida (também inventada, é claro).
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em
1839 e morreu em 1908. Nascido em uma família pobre e sendo mulato
numa época em que ainda havia escravidão, Machado de Assis conseguiu
superar todas as barreiras sociais e logo se tornou um intelectual de
respeito da sociedade carioca. Trabalhou em alguns jornais e escreveu
textos de diversos gêneros, desde contos, até poemas e crônicas. Entre
suas obras mais conhecidas estão Memórias Póstumas de Brás Cubas,
Dom Casmurro e Quincas Borba. Todos esses romances fazem parte da
chamada “fase realista” do autor. Além de ser reconhecido como o maior
escritor brasileiros de todos os tempos, Machado de Assis também foi
fundador e patrono da Academia Brasileira de Letras.
12 Fundamentos da Teoria Literária

Apesar dessa explicação ser relativamente clara, muitos leitores


costumam cair nas “armadilhas” que Machado de Assis criou em seu
texto. Essas armadilhas dizem respeito às estratégias realísticas criadas
por Machado. Uma delas é anexar uma espécie de prólogo, denominado
“Ao Leitor”, em que Brás Cubas se passa pelo autor da obra e assina um
dos elementos pré-textuais que costuma ser assinado por autores e não
por narradores. Vamos ler um trechinho dessa carta ao leitor:
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro
remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que
contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado.
Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei
na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria
curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento
da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da
tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. - Brás Cubas
Fonte: ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril, 2010.

Se o leitor é capaz de cair facilmente nessas armadilhas que


pretendem confundir autor e narrador, no caso dessa obra de Machado de
Assis, ele logo fica intrigado com um detalhe da história: ela seria contada
por uma pessoa que já morreu. O próprio título da obra, “memórias
póstumas”, indica que se trata de algo pós-morte. E a própria dedicatória
do livro remete a isso:
Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico
como saudosa lembrança estas memórias póstumas.
Logo o leitor percebe que Brás Cubas é um personagem que está
morto e que também é o narrador de uma obra sobre sua própria trajetória
de vida enquanto estava vivo. É ele quem conta os fatos, os acontecimentos
que estão no livro. Tudo parece maluquice, não é mesmo? Como pode
alguém contar, depois de morto, as histórias que passaram durante sua
vida? Como seria possível que um cadáver escrevesse suas memórias?
Pois bem, é exatamente a distinção entre narrador e autor que faz com
que tudo isso seja possível. Quando estamos tratando de literatura, nada
disso parece impossível. Para usarmos categorias que já estudamos, nada
da obra de Machado de Assis é verídico, mas podemos dizer que a obra em
geral tem alta dose de verossimilhança, ela segue uma coerência interna.
Fundamentos da Teoria Literária 13

O romance Memórias póstumas de Brás Cubas foi adaptado


para o cinema em 2001. A obra cinematográfica foi dirigida por André
Klotzel e procurou ser o mais fiel possível ao livro de Machado de Assis.
O personagem Brás Cubas é interpretado pelo ator Reginaldo Faria. Se
você ainda não conferiu esse filme, vale a pena buscar por ele.
Figura 2

Fonte: wikipedia

Vejamos a distinção que esse conflito morto-vivo da obra


Memórias Póstumas de Brás Cubas nos revela. O autor, Machado de
Assis, não está morto. Ele é quem faz o trabalho prático de escrever,
inventar a história, imaginar o personagem e suas características etc.
Já o suposto cadáver, chamado de Brás Cubas, não existe nem nunca
existiu, a não ser na incrível imaginação de Machado de Assis e de todos
os leitores dessa obra espetacular.
Portanto, o narrador é, na verdade, uma entidade inventada.
Falamos “entidade” para podermos generalizar um pouquinho essa
definição. Isso porque um narrador não precisa ser, necessariamente,
uma pessoa. Claro! Se o narrador é inventado e se há verossimilhança
dentro da narrativa, ele pode ser um bicho, uma planta, um extraterrestre,
enfim, ele pode ser qualquer coisa que um autor de literatura queira que
ele seja e que a lógica da narrativa permita. No caso de Machado de
Assis, ele quis que o narrador de seu livro fosse um cadáver.
14 Fundamentos da Teoria Literária

Há duas obras muito divertidas da literatura brasileira que são


narradas por papagaios. Isso mesmo! Papagaios! A primeiro se chama
A décima segunda noite e foi escrita por Luís Fernando Veríssimo.
Como não poderia ser diferente em uma obra de Veríssimo, o papagaio
é divertidíssimo e, por ser francês e ter um ar meio aristocrata, faz
observações muito curiosas. O outro livro narrado por esse mesmo
tipo de ave e que vale a pena você conferir é Prosa de papagaio. Este
romance foi escrito pela autora Gabriela Guimarães Gazzinelli e venceu
o Prêmio Sesc de Literatura em 2009. O papagaio dessa história também
é uma figura muito esperta e divertida, que tal conhecê-lo?
O exemplo extraído da obra de Machado de Assis, Memórias
Póstumas de Brás Cubas, é um exemplo que tem um narrador em
primeira pessoa e é exatamente isso o que mais contribui para que alguns
leitores façam uma confusão entre as categorias de autor e narrador. Aqui
entramos num tema que, para a teoria da literatura, está ligado ao que se
convencionou chamar de foco narrativo.

DEFINIÇÃO:
Foco narrativo: o ponto de vista a partir do qual uma história
é narrada.

Pois bem, no caso do romance Memórias póstumas de Brás Cubas,


o ponto de vista da história é do próprio Brás Cubas. Um narrador em
primeira pessoa, como este exemplo, costuma usar o pronome “eu”. Ele
usa, por exemplo, frases como: eu vivi, eu estou contando, eu presenciei
etc. Com isso, não sabemos muito bem qual é a perspectiva de outras
pessoas que aparecem na história, ou seja, de outros personagens.
Um excelente exemplo para isso é outra obra-prima de Machado
de Assis intitulada Dom Casmurro. A história é narrada por Bentinho que
conta suas memórias, narrando principalmente como conheceu, casou,
amou e se afastou de Capitu, a grande paixão de sua vida. Tudo é narrado
pelo próprio Bentinho, também apelidado de Dom Casmurro, e ele fica
frequentemente tentando convencer o leitor de que Capitu o traiu com seu
melhor amigo. O fato é que o próprio Bentinho embora muito tente, não
Fundamentos da Teoria Literária 15

consegue apresentar nenhuma prova concreta de que ela, Capitu, traiu de


verdade ele, Bentinho. Se o foco narrativo estivesse voltado para Capitu, ou
seja, se fosse ela quem narrasse a história, provavelmente saberíamos de
muitas coisas que não sabemos quando “ouvimos” a história pela versão de
Bentinho. Lembrando mais uma vez aqui que tanto Bentinho quanto Capitu
são personagens inventados pelo autor Machado de Assis.

REFLITA:
Você acha que é possível que pessoas diferentes vivam uma
mesma situação e, anos depois, quando forem contá-la para
outra pessoa, elas consigam contar exatamente a mesma
versão do fato? Será que é possível que a narrativa de
pessoas distintas coincidam acerca de um acontecimento
vivenciado ou experienciado junto? Procure fazer essa
experiência! Peça a um amigo ou amiga que conte alguma
história engraçada que vocês viveram junto. Depois reflita se
ele percebeu aspectos que você não tinha percebido, ou se
ele esqueceu de contar algum detalhe, por exemplo.

Além da primeira pessoa, há a possibilidade de que a narração


em prosa seja feita em terceira pessoa, ou seja, que o narrador seja
onisciente. Você já deve ter ouvido essa palavra, onisciente, em eventos
religiosos que você frequentou ou viu. Ela geralmente é citada com
referência a Deus, tendo o sentido de “alguém que sempre sabe de tudo”.
É exatamente isso o que significa ser um narrador em terceira pessoa:
ele é aquele que sabe tudo, vê de todos os ângulos, sente por todos os
personagens, sabe o que todos falam e fazem. Isso, é claro, relacionado
ao universo interno da narrativa. Pode parecer estranho, a princípio, mas
a verdade é que a maioria das narrativas que você teve contato até hoje
foram escritas dessa forma, por um narrador onisciente.
Durante muito tempo, a terceira pessoa foi o principal foco narrativo
nos romances e nos contos. O uso da primeira pessoa ganhou bastante
espaço somente a partir de um movimento inaugurado por Gustave
Flaubert chamado de Realismo – movimento do qual Machado de Assis
fez parte. Para resumir, o foco narrativo é aparentemente limitado, como
lembra o crítico de literatura James Wood:
16 Fundamentos da Teoria Literária

A casa da ficção tem muitas janelas, mas só duas ou três


portas. Posso contar uma história na primeira ou na terceira
pessoa, e talvez na segunda pessoa do singular e na primeira
do plural, mesmo sendo raríssimos os exemplos de casos
que deram certo. E é só. Qualquer outra coisa não vai parecer
muito uma narração, e pode estar mais perto da poesia ou do
poema em prosa. (2017, p. 19)

Apesar de termos essencialmente dois focos narrativos principais,


as formas de narrar são muitas e muito se discutiu sobre isso ao longo de
toda a tradição da teoria literária. Um dos principais autores a discorrer
sobre esse tema foi Gerárd Genette. Ele classificou alguns tipos de
narrador que podem ser encontrados em romances ou em contos.
Tabela 1 - Classificação elaborada por Gerárd Genette.

Tipos de narrador
Primeira pessoa Autodiegético: aquele que narra as próprias experiências.
Terceira Pessoa Heterodiegético: aquele que não participa da história.
Primeira e/ou Homodiegético: aquele que também é personagem,
Terceira mas não o principal.

Os narradores de Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Dom


Casmurro são, portanto, autodiegéticos, se tomarmos a classificação
estabelecida por Genette. Observe as primeiras linhas das Memórias
póstumas e veja como isso é facilmente identificável:

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou


pelo fim, isto é, poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.

Já na primeira frase do texto, três palavras, acima grifadas, denunciam


a primeira pessoa, ou seja, o “eu”, da narrativa. Mas vejamos também um
exemplo de texto narrado em terceira pessoa:

Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar


o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a
barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória estirou
o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons
Fundamentos da Teoria Literária 17

guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a


no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia,
os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera
desapareceu e Fabiano teve pena.
FONTE: RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2012.

O clássico romance brasileiro Vidas secas é heterodiegético, de


acordo com a classificação de Genette. Nele há um personagem em
terceira pessoa que não participa da história. Além disso, esse personagem
é onisciente, de maneira que sabe tudo o que se passa com cada um
dos personagens, sabendo inclusive seus pensamentos e sentimentos.
No trecho acima, como você notou, há a menção exatamente de alguns
pensamentos e sentimentos do personagem Fabiano. Ao longo da história,
o leitor também pode conferir essa mesma característica em relação a
outros personagens.
Por último, um exemplo que pode ser considerado um narrador
homodiegético, é o do romance russo Os irmãos Karamazov. Quem narra a
história é um habitante da pequena cidade onde vive a família Karamazov.
Ele, porém, não tem um papel central no desenrolar dos acontecimentos
narrados no enredo, tendo sido mais uma das testemunhas que presen-
ciaram a história (do ponto de vista imaginado, é claro). Sendo assim,
a narrativa de Os irmãos Karamazov oscila entre a primeira e a terceira
pessoa. Passam-se trechos longuíssimos, sem que o narrador se coloque
no texto, dizendo algo como “eu” ou “nós, cidadãos da cidade x”.

SAIBA MAIS:
Você deve estar pensando se pode acontecer de um
autor inventar um narrador exatamente igual a ele próprio,
o autor. Se é possível que você inventasse, por exemplo,
um narrador que fosse você mesmo para narrar histórias
iguais as que você mesmo viveu. Mas é claro que pode!
Não há regra nem conceituação nenhuma que seja capaz
de diminuir as possibilidades que uma narrativa pode ter.
Esse tipo de texto em que a biografia do narrador coincide
com a biografia do autor é estudado sob o conceito de
“autoficção”.
18 Fundamentos da Teoria Literária

Além da classificação de Gerárd Genette, há muitas outras classifi-


cações feitas por outros estudiosos da literatura acerca dos narradores
dos textos literários. Algumas dessas classificações esmiúçam ainda mais
os tipos de narrador, podendo diferenciar inclusive um narrador confiável
de um narrador propositadamente não-confiável. Esse último, um narrador
não-confiável, se encaixaria muito bem na proposta do romance Dom
Casmurro, de Machado de Assis, já que o personagem Bentinho quer
convencer o leitor de algo que não parecer ter mesmo acontecido. Esses
seus esforços denunciam, de certa maneira, que ele tem algum interesse
em fazer as pessoas acreditarem em sua versão da história, e não na versão
possível de outros personagens que fizeram parte dela.
Agora que já discutimos bastante a questão do narrador, que
se coloca como um dos principais elementos de uma narrativa, vamos
pensar um pouco na questão do autor e do leitor. Como já dissemos,
temos um autor que é a pessoa que realmente existiu e inventou histórias,
personagens e narradores. Temos também o leitor que, assim como o
autor, existe no mundo real. O leitor sou eu, é você, pode ser todas as
pessoas que consomem livros ou textos em outros instrumentos. A partir
disso, vemos que autor e leitor formam uma espécie de dupla: o autor
escreve para que o leitor consuma o seu trabalho.
Mas há uma terceira categoria que ainda não tratamos aqui, é
o narratário. Primeiro é importante traduzirmos esse termo “narratário”.
Ele deve fazer você se lembrar da palavra “destinatário”. Se você fez
essa relação, acertou em cheio! O narratário é, então, o destinatário da
mensagem que o narrador está passando. Ele seria o par do narrador,
assim como o leitor é o par do autor. Agora que você já sabe claramente
qual a diferença entre um autor e um narrador, você saberia também
dizer qual é a diferença entre um leitor e um narratário? É basicamente
o mesmo traço que distingue autor de narrador: o fato de um existir
empiricamente e o outro não existir. Quer dizer, então, que o narratário é
uma espécie de leitor imaginado. Ele é quase o mesmo que o leitor, só
que cumpre algumas exigências que o narrador faz.
Para que você compreenda melhor essa questão, tomaremos o
pensamento do italiano Umberto Eco. Ele criou duas categorias para tratar
do autor e outras duas categorias para tratar do leitor. Para ele, existem
autor-empírico e autor-modelo, assim como existem também leitor-
Fundamentos da Teoria Literária 19

empírico e leitor-modelo. O autor-empírico seria o autor que realmente


existe, ou seja, um sujeito com um corpo, um endereço, um número de
CPF etc. Já o autor-modelo seria aquilo que se espera do autor-empírico,
especialmente se ele já tem amplo reconhecimento. O autor-modelo seria
uma espécie de “voz” do texto, algo que denominasse o estilo de escrita.
Do outro lado da moeda, encontramos o leitor-modelo de
determinada obra. Esse leitor é nada menos que o narratário, ou seja,
o sujeito ao qual o narrador está direcionando a sua história. No caso
de Memórias póstumas de Brás Cubas, o narrador fala algumas vezes
diretamente para o leitor-modelo, ou o narratário:

Era fixa a minha ideia, fixa como... Não me ocorre nada que
seja assaz fixo nesse mundo: talvez a Lua, talvez as pirâmides
do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a
comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí
a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte
narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a
anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades,
e acho que faz muito bem. (ASSIS, 2010, p. 28-29)

Bom, esse exemplo da obra machadiana é um exemplo de narrador


que conversa explicitamente com o narratário, dirigindo-se a ele. Mas,
como você já percebeu pela sua experiência de leitor, muitas vezes isso
não acontece. O que ocorre é que o narratário é alguém que na maioria
das vezes não aparece explicitamente no texto. Ele seria uma espécie de
entidade projetada para receber da melhor maneira possível a mensagem
que o narrador está tentando passar. Um leitor-modelo de um conto de
fadas, por exemplo, é um leitor que tem a capacidade de acreditar em
coisas mágicas ou em seres que não existem na vida real, nem que seja
só durante o momento da leitura. Para resumir, o leitor-modelo é aquele
que deve aceitar as regras do jogo que estão sendo propostas no texto.
Segundo Umberto Eco, um leitor ideal para um texto de comédia
é alguém que esteja de bom-humor ou pelo menos disposto a se divertir.
Mas, como você deve imaginar, o leitor-modelo nem sempre coincide
com o leitor-empírico que, por uma razão ou por outra, pegou uma obra
de comédia mesmo estando num dia em que não quer rir.
20 Fundamentos da Teoria Literária

Você já pensou no motivo de não gostar de determinado livro, peça


de teatro ou filme? De acordo com a ideia de leitor-modelo, você não
gosta de determinado texto porque você é um leitor-empírico que não
conseguiu se transformar no leitor-modelo que o texto pede. Um conto
de fadas, naturalmente, exige um leitor que aceite a ideia de que existem
bruxas más, de que alguns animais podem falar etc. Se você não fechar
esse “contrato”, você não se transforma no leitor-modelo, o que pode
causar frustação na hora da leitura. O mesmo acontece com determinados
filmes que exigem determinados públicos com determinados gostos, ou
seja, exigem “leitores-modelo”.
Você já deve estar entediado de tanto ouvir falar de autores,
leitores, narradores e narratários. Vamos, então, partir para outro elemento
fundamental da narrativa: o personagem.

O personagem de ficção

DEFINIÇÃO:
Agora que vamos começar a estudar o personagem, você
deve estar pensando: mas eu sei o que é um personagem!
Sim, é bem provável que você e a maioria dos leitores saibam
o que é um personagem. Diferentemente das noções de
autor e narrador, que costuma haver alguma confusão, a
noção de personagem parece bastante evidente. Mas,
como aqui avançaremos para dentro de estudos literários
bem específicos sobre esse tema, é bom que comecemos
do começo e que façamos as devidas considerações
iniciais. Vamos, então, primeiramente buscar uma definição
básica para a palavra “personagem”: Personagem: figura
fictícia de peça teatral, romance, conto, filme, etc.

Uma das primeiras coisas que lembramos sobre o elemento


personagem é seu caráter ficcional. Assim como comentamos sobre o
narrador, o personagem é alguém que não existiu na mundo em que
vivemos, ele foi inventado. Tanto Brás Cubas quanto Bentinho e Capitu,
da obra de Machado de Assis, não existiram efetivamente, eles foram
inventados, criados. É claro que um autor pode se inspirar em pessoas
Fundamentos da Teoria Literária 21

reais para compor seus personagens, mas ao final o personagem de


uma ficção será sempre uma criação. É claro também que há algumas
exceções a respeito dessa ficcionalidade do personagem, como por
exemplo quando escritores decidem colocar em seu romance um
personagem histórico, uma figura que existiu como por exemplo, Martin
Luther King ou o Papa João Paulo II. De qualquer modo, isso ainda seria,
de certa forma, um exercício de criação de um personagem. Isso porque
o autor estaria imaginando como seria se determinada figura da história
fizesse esta ou aquela ação, por exemplo.

SAIBA MAIS:
O filme Meia-noite em Paris faz esse exercício de utilizar
personagens históricos. O longa-metragem dirigido por
Woody Allen, tem um protagonista que, ao passear por
Paris, consegue voltar no tempo e encontrar alguns de seus
escritores e artistas preferidos. Entre essas personalidades
“revividas” no filme estão: Ernest Hemingway, Salvador Dalí
e Pablo Picasso.

Outra questão sobre o personagem que devemos pensar a partir


da definição dada acima, é que esse elemento também é encontrado
em outras artes como o cinema e o teatro. Na verdade, há alguns
outros elementos que são partilhados entre os romances, os contos, os
filmes e as peças, mas este elemento em específico, o personagem,
é certamente o elemento cuja definição e as percepções são mais
homogeneizadoras. Quer dizer, um personagem de um romance tem
mais ou menos os mesmos elementos que deve ter um personagem do
teatro ou do cinema, por exemplo.
Pensemos em Alice, de Alice no País das Maravilhas e Alice
através do Espelho. Essa personagem surgiu na literatura, tendo sido
criada pela mente brilhante do escritor Lewis Carroll. A obra literária foi
publicada pela primeira vez em 1865. Quase um século depois, em 1951,
os estúdios Disney levaram a história para o cinema, o que deixou a
Alice mundialmente famosa. Depois disso, foram registradas inúmeras
adaptações da história de Alice para o cinema, o teatro e até mesmo
para a televisão. Em essência, porém, podemos dizer que a Alice de
22 Fundamentos da Teoria Literária

todas essas obras ainda é a mesma, ainda é aquela inventada por Lewis
Carroll, ainda é aquela garotinha com a imaginação fértil e uma incrível
capacidade de viver aventuras.
De acordo com Proença Filho, podemos pensar o personagem a
partir de três perspectivas principais: por sua natureza, pela variedade e
pela função que desempenham. Vejamos de maneira detalhada o que
está contido em cada um desses três grupos de perspectivas para se
observar um personagem:
Tabela 2 - Proença Filho: categorias para se pensar em um personagem.

Formas de se observa um personagem ficcional


Seres humanos
Por sua natureza Animais
Elementos da natureza
Individuais
Pela variedade Típicos
Caricaturais
Protagonistas
Pela função que desempenham Antagonistas
Narradores

Em resumo, podemos ter, por exemplo, um protagonista que seja


um animal e que tenha uma variedade caricatural. Mas, além disso, é
possível observar o nível de complexidade que o autor deu ao personagem
ao criá-lo e colocá-lo em determinada história. A respeito disso, vamos
tomar os conceitos elaborados pelo escritor E. M. Foster.
Para Foster, existem basicamente dois tipos de personagem: os
planos e os redondos. A distinção é bem simples.

DEFINIÇÃO:
Personagens planos: aqueles que apresentam caracte-
rísticas superficiais, comuns, sem profundidade;
Personagens redondos: aqueles que têm como caracte-
rísticas principais a complexidade e a multiplicidade.
Fundamentos da Teoria Literária 23

Isso não quer dizer, necessariamente, que os personagens planos


são ruins, chatos e mal elaborados. Também não quer dizer que os
personagens redondos são bons, divertidos e interessantes. Em geral, os
personagens planos exercem funções menores dentro de um romance.
Já os personagens redondos tendem a ser os protagonistas e, por conta
disso, naturalmente se destacam. É claro que nem todo autor consegue
criar grandes personagens, tão complexos e brilhantes como alguns
já criaram, mas em geral a tentativa é a de construir de maneira mais
completa possível um ou vários personagens.

SAIBA MAIS:
Um grande exemplo de personagem redondo foi criado
pelo escritor francês Gustave Flaubert. Ele escreveu um
livro chamado Madame Bovary, que conta a história da
personagem Emma, uma jovem de boa educação que,
como todas as moças da época, precisa se casar, cuidar
da casa, ter filhos etc. Ela se casa com Charles Bovary,
tornando-se assim a Senhora Emma Bovary. Porém, aos
poucos a vida de casada vai se tornando muito entediante
para Emma. Ela procura por aventuras e, então, começa
a trair o marido, mantendo relações com outros homens.
Muitas situações inusitadas acontecem durante no
desenrolar do enredo, mas o fato é que o perfil psicológico
da personagem Emma é tão bem construído que ela de
fato parece que existe. Tanto é que o autor Gustave Flaubert
chegou a ser levado para o tribunal onde foi forçado a dizer
quem era, afinal, a pessoa que teria inspirado a personagem
do livro. O escritor proferiu, então, a famosa frase: Emma
Bovary c’est moi, que significa “Emma Bovary sou eu”, numa
referência à sua capacidade de criar. O romance Madame
Bovary é muito divertido, vale a pena você ler!

A forma como o autor trabalha a complexidade de determinado


personagem pode produzir sentidos impressionantes. Um caso muito
interessante é uma obra que já mencionamos aqui nesta Unidade: o
romance Vidas secas, de Graciliano Ramos. A narrativa trata do percurso
e da vida miserável de uma família de retirantes nordestinos no Sertão
brasileiro. Os personagens são: o pai, a mãe, um filho mais velho, um filho
24 Fundamentos da Teoria Literária

mais novo e uma cachorra. De uma maneira intencional, Graciliano Ramos


trabalhou muito bem a personagem da cachorra, chamada de Baleia, de
modo que ela se tornasse um personagem redondo, bastante complexo.
Isso em contraste com os seres humanos que, de tão miseráveis, quase
nem tinham pensamentos, sentimentos, particularidades tão subjetivas
como só um ser humano é capaz de ter. A partir do momento que o autor
trabalha dessa maneira os personagens, ele produz um sentido avassalador,
um contraste que mostra como algumas pessoas são reduzidas a bichos
irracionais, ou até a seres inferiores aos bichos, quando são submetidas a
situações de extrema miséria.

VOCÊ SABIA?
Há no interior do romance Vidas secas um capítulo que
narra a morte da cachorra Baleia. Essa é uma das cenas
mais clássicas das literatura brasileira, mas o que pouca
gente sabe é que a cena foi escrita bem antes de Graciliano
conceber o romance Vidas secas. A cena da morte da
Baleia era, na verdade, um conto. Esse conto está na lista
dos melhores da histórias da literatura brasileira. E foi o
sucesso dele que fez com que Graciliano pensasse em
escrever toda a história de Vidas secas.

Para construir um personagem, um autor pode utilizar diversos


recursos que, naturalmente, a linguagem é capaz de oferecer. O primeiro
deles é a descrição pura. Isso é constantemente usado para apresentar
determinado personagem, dando ao leitor, características físicas e/
ou psicológicas dele. No entanto, não é somente a descrição que faz
com que o perfil de um personagem seja traçado. No caso do clássico
Madame Bovary, por exemplo, é a narração das ações da personagem
Emma que vão moldando o seu caráter. Assim, esse trabalho é muito
mais complexo e minucioso do que se imagina. Construir um bom
personagem definitivamente não é tarefa fácil.
No jornalismo e em especial num tipo de jornalismo que se
convencionou chamar de “jornalismo literário” há um tipo de texto
chamado de “perfil”. O perfil é um texto que procura traçar de maneira
jornalística, mas com uso da linguagem literária, mais estilística, o perfil
Fundamentos da Teoria Literária 25

de uma figura importante sob certo aspecto. Há dois perfis que ficaram
extremamente famosos: um se chama O duque em seu domínio, foi
escrito por Truman Capote e revelou a todos uma face surpreendente
do então astro hollywoodiano Marlon Brando; o outro se chama Frank
Sinatra está resfriado e foi escrito pelo famoso jornalista Gay Talese.

A organização espacial e temporal


Um romance ou um conto costuma trabalhar com duas das principais
técnicas do texto em prosa: a narração e a descrição. Vamos nos deter um
pouquinho sobre essas duas formas, já que elas refletem um pouco da
maneira como se articulam espaço e tempo no interior de uma narrativa.

DEFINIÇÃO:
Narrar: expor, oralmente ou por escrito, as particularidades
de um fato, um evento ou uma sequência de ações; relatar
algo.
Descrever: fazer a descrição de algo; contar pormeno-
rizadamente; traçar características que fazem parte de
determinado objeto.

Em uma narração, o narrador conta ações que acontecem,


constrói cenas como as de um filme. Já em uma descrição, o autor faz
o leitor imaginar determinada imagem, de uma pessoa, de um objeto
ou de um cenário. Trocando em miúdos, ao descrever um ambiente, o
narrador está “ambientando” o leitor em relação ao espaço, ao lugar onde
se desenrola o enredo. Já quando o narrador começa a narrar ações, o
tempo é articulado, ele começa a passar. Pense na descrição como uma
fotografia dada pelo narrador ao leitor: ela mostra um ambiente imóvel,
estático. Agora imagine a narração como um vídeo dado pelo narrador
ao leitor: nele passam ações, acontecimentos, nele há movimento.

Narração Articula o tempo


Descrição Constrói o espaço
26 Fundamentos da Teoria Literária

Em relação ao espaço não há muito segredo. Ele é o cenário que


você vai construindo na sua cabeça enquanto lê um livro. Quanto mais
informações sobre esse cenário o autor oferecer, menos você terá que
imaginar. Pode acontecer, naturalmente, que o narrador não se preocupe
muito em fazer as descrições dos ambientes, das cores, dos objetos, enfim.
Isso não diminuirá em nada a qualidade do texto. O que vai acontecer é
que boa parte da construção do cenário ficará por conta do próprio leitor,
ou seja, da imaginação de quem está lendo. Frequentemente quando
romances são adaptados para o cinema, ouvimos leitores dizendo que
não gostaram da adaptação. Normalmente isso ocorre quando a narrativa
literária tem pouca descrição, deixando muita coisa para ser inventada
pela imaginação do leitor. Então, quando o leitor vê um filme, descobre
que ele não se parece muito com aquilo que ele mesmo tinha imaginado.
Figura 3 - O cenário de uma narrativa é descrito pelo autor
fazendo com que o leitor visualize melhor o ambiente.

Fonte: freepik

É claro que nem toda descrição é perfeita e que sempre faltará


algum detalhe que o narrador poderia ter descrito melhor. Mas ainda
assim, quanto mais o narrador apresentar determinado cenário, menos
essa construção ficará a cargo do leitor e de sua imaginação. Vejamos
um exemplo extraído de uma obra cujos textos são principalmente
descritivos, o livro As cidades invisíveis. Nessa obra inspirada nos relatos
do viajante Marco Polo, o autor descreve uma série de cidades.
Ao chegar a Fílide, tem-se o prazer de observar quantas pontes
diferentes entre si atravessam os canais: pontes arqueadas, cobertas, sobre
pilares, sobre barcos, suspensas, com os parapeitos perfurados; quantas
Fundamentos da Teoria Literária 27

variedades de janelas apresentam-se diante das ruas: bífores, mouriscas,


lanceoladas, ogivais, com meias-luas e florões sobrepostos; quantas
espécies de pavimento cobrem o chão: de pedregulho, de lajotas, de saibro,
de pastilhas brancas e azuis. Em todos os pontos, a cidade oferece surpresas
para os olhos: um cesto de alcaparras que surge na muralha da fortaleza,
as estátuas de três rainhas numa mísula, uma cúpula em forma de cebola
com três pequenas cebolas introduzidas em sua extremidade.

Fonte: CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

A descrição de cenários, objetos e pessoas serve, portanto, para


que o autor articule seu romance ou conto do ponto de vista espacial.
Mas há ainda a segunda técnica de escrita em prosa que é a narração.
Com a narração, o autor do romance ou do conto articula seu texto do
ponto de vista temporal. Existem mais teorias que tratam desse tema do
tempo do que da temática da espacialidade. Isso porque, para começar,
a própria noção de tempo é uma noção bastante complexa.
Em primeiro lugar é importante distinguirmos o tempo interno do
tempo externo. O tempo externo é aquele que temos conhecimento, com
medidas organizadas e convencionadas em minutos, horas, dias, semanas,
meses etc. Esse é o que podemos chamar de tempo cronológico. Porém,
o tempo interno é um tempo psicológico, um tempo transmitido de
acordo com a necessidade do enredo, que pode ser às vezes acelerado
e às vezes muito lento.
Por exemplo, o clássico romance do colombiano Gabriel García
Márquez, Cem anos de solidão, narra a história de uma família ao longo
de 100 anos. Pois bem, esse tempo é um tempo cronológico, pois aceita
a nossa convenção estabelecida no mundo real. O tempo que levaremos
para ler todas as páginas dessa história também é um tempo cronológico,
ou seja, ele pode ser medido e, é claro, varia de leitor para leitor. Entretanto,
o tempo psicológico da narrativa não atende às mesmas regras, ele é
um pouco mais subjetivo. O leitor pode sentir que a história está sendo
acelerada em alguns momentos, enquanto ele também pode sentir que ela
está sendo esticada. Enfim, o tempo nesse caso é extremamente variável.
Se você se interessou pelo tema e pela forma como se articulam
espaço e tempo dentro de uma narrativa, que tal fazer uma experiência
empírica? Basta você escolher um livro que recebeu uma adaptação
para o cinema. Primeiro leia o livro observando como o autor descreve
28 Fundamentos da Teoria Literária

os espaço, qual o tempo que ele dispensa para cada ação etc. Depois
assista ao filme e faça uma comparação desses quesitos. No cinema,
assim como na literatura, há formas específicas de se articular tempo
e espaço. Se você fizer um exercício como esse, perceberá um pouco
mais da articulação que os escritores e os diretos costumam fazer.
Espero que goste!
O tempo no interior da narrativa é um elemento que pode ser
trabalhado pelo autor de diversas maneiras para que ele alcance o
efeito desejado. O pesquisador Gerárd Genette foi um dos que estudou
e classificou essas possibilidades de maneira bastante detalhada.
Segundo ele, as formas de se trabalhar o tempo na narrativa podem
estar ligadas à ordem ou à duração. Dessas duas categorias é que
surgem as estratégias temporais da narrativa.
Tabela 3 - Classificação feita por Gerárd Genette

Temporalidade da narrativa
Analepses (passado)
Ordem
Prolepses (futuro)
Isocronia (cena)
Duração
Anisocronia (pausa, sumário ou elipse)

Do ponto de vista da ordem da narrativa, é possível encontrar


analepses e prolepses. As analepses são também conhecidas como
flash-back, ou seja, aquele momento em que o narrador lembra e narra
algo do passado, algo que já aconteceu e é anterior do momento de
enunciação da narrativa. Esse recurso é, sem dúvidas, o mais frequente.
Ele é tão comum que já era usado nas primeiras epopeias da história,
aquelas escritas por Homero. Da mesma maneira, ele também costuma
ser muito utilizado em filmes, seriados e até mesmo telenovelas.
Já as prolepses são o contrário disso, ou seja, elas estão
relacionadas ao futuro do momento de enunciação da narrativa. Essas
são muito menos frequentes e costumam ser mais usadas em obras de
ficção científica. O motivo desse recurso ser menos utilizado é bastante
óbvio: na vida real, podemos relembrar o passado, mas não conseguimos
fazer uma projeção do futuro. Na literatura, é claro, tudo é possível, mas
para manter a coerência interna da narrativa o uso desse tipo de recurso
deve estar alinhado com a proposta geral do enredo.
Fundamentos da Teoria Literária 29

VOCÊ SABIA?
Um das obras mais importantes da história da literatura, o
romance Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust,
foi escrita quase inteiramente com o recurso da analepse.
Como se não bastasse isso, o romance é gigante e foi
dividido em sete volumes que são considerado quase um
tratado sobre a memória e sobre a arte de pensar sobre
o passado. De maneira bem resumida, o personagem
principal, em um dia aleatório, come um doce e isso o faz
recordar de sua infância. A partir daí, ele faz uma longa
revisão de suas memórias.

Do ponto de vista da duração temos, segundo Genette, a isocronia


e a anisocronia. A isocronia é um recurso que pretende igualar a
temporalidade interna e externa da narrativa, ou seja, o mesmo tempo
que você leva para ler uma cena seria o tempo real de duração dessa
cena. É justamente por isso que a cena é considerada o principal signo
da isocronia. Já na anisocronia, não existe essa mesma simultaneidade,
ou seja, o tempo interno da narrativa não acompanha o tempo externo
da leitura dela. Fazem parte do universo da anisocronia: a pausa, que
é quando o tempo da história para e continua o tempo do discurso,
ou seja, algum comentário ou reflexão do narrador; o sumário, que é
quando o tempo interno da história é maior do que o tempo externo da
narrativa; a elipse, que ocorre quando são anulados blocos de tempo,
fazendo saltos nos acontecimentos da narrativa.
Figura 4

Fonte: wikipedia
30 Fundamentos da Teoria Literária

Teorias narrativas: Narratologia e Teoria


do romance
INTRODUÇÃO:
A narrativa é uma das formas mais importantes de literatura,
além de ser sem dúvida uma das mais consumidas pelos
leitores modernos. Não é por acaso que o interesse pela
fruição de obras de arte compostas em formato de narrativa
tenha gerado também o interesse teórico sobre elas. Dessa
maneira, foram surgindo algumas teorias que tratavam
especificamente da narrativa ou até mais especificamente
de um modelo de narrativa. Neste capítulo, separamos
duas teorias importantes que foram criadas ao longo do
último século: a narratologia e a teoria do romance.

Narratologia
A narratologia surgiu mais ou menos entre 1920 e 1930, na chamada
Escola Formalista Russa, com a intenção de estudar as narrativas de ficção
e não-ficção, procurando encontrar elementos e estruturas comuns dentro
delas. Um dos primeiros nomes de destaque da narratologia foi Vladimir
Propp. Ele fez um estudo de narrativas do folclore russo e identificou
situações que estavam presentes em todas as histórias. A chamada
“Morfologia do Conto” apresentava diversas etapas que, com uma variação
ou outra, faziam parte de tudo aquilo o que se contava oralmente.
Classificação elaborada pelo pesquisador russo
Valdimir Propp em “A morfologia do conto maravilhoso”

MORFOLOGIA DO CONTO – VALDIMIR PROPP


I. AFASTAMENTO. Um dos membros da família sai de casa.
II. PROIBIÇÃO. Impõe-se ao herói uma proibição.
III. TRANSGRESSÃO. A proibição é transgredida.
IV. INTERROGATÓRIO. O antagonista procura obter uma informação.
V. INFORMAÇÃO. O antagonista recebe informações sobre a sua vítima.
VI. ARMADILHA. O antagonista tenta ludibriar sua vítima para apoderar-se
dela ou de seus bens.
VII. CUMPLICIDADE. A vítima se deixa enganar, ajudando assim, involun-
tariamente, seu inimigo.
Fundamentos da Teoria Literária 31

VIII. DANO/CARÊNCIA. O antagonista causa dano a um dos membros da


família, ao mesmo tempo, falta alguma coisa a um membro da família, ele
deseja obter algo.
IX. MEDIAÇÃO. É divulgada a notícia do dano ou da carência, faz-se um
pedido ao herói ou lhe é dada uma ordem, mandam-no embora ou
deixam-no ir.
X. INÍCIO DA REAÇÃO. O herói buscador aceita ou decide reagir.
XI. PARTIDA. O herói deixa a casa.
XII. SUBMISSÃO/PROVAÇÃO. O herói é submetido a uma prova; a um
questionário; a um ataque etc, que o preparam para receber um doador
ou um auxiliar mágico.
XIII. REAÇÃO DO HERÓI. O herói reage diante das ações do futuro doador.
XIV. FORNECIMENTO. O meio mágico passa às mãos do herói.
XV. DESLOCAMENTO. O herói é transportado, levado ou conduzido ao
lugar onde se encontra o objeto que procura.
XVI. COMBATE. O herói e seu antagonista se defrontam em combate direto.
XVII. MARCA/ESTIGMA. O herói é marcado.
XVIII. VITÓRIA. O antagonista é vencido.
XIX. REPARAÇÃO DE DANO OU CARÊNCIA. O dano inicial ou a carência
são reparados.
XX. REGRESSO. Regresso do herói.
XXI. PERSEGUIÇÃO. O herói sofre perseguição.
XXII. SALVAMENTO/RESGATE. O herói é salvo da perseguição.
XXIII. CHEGADA. O herói chega incógnito à sua casa ou a outro país.
XXIV. PRETENSÕES INFUNDADAS. Um falso herói apresenta pretensões
infundadas.
XXV. TAREFA DIFÍCIL. É proposta ao herói uma tarefa difícil.
XXVI. REALIZAÇÃO. A tarefa é realizada.
XXVII. RECONHECIMENTO. O herói é reconhecido.
XXVIII. DESMASCARAMENTO. O falso herói ou antagonista ou malfeitor é
desmascarado.
XXIX. TRANSFIGURAÇÃO. O herói recebe nova aparência.
XXX. CASTIGO/PUNIÇÃO. O inimigo é castigado.
XXXI. CASAMENTO. O herói se casa e sobe ao trono.
As 31 etapas catalogadas por Propp estavam presentes nos contos
folclóricos e narrativas populares que ele tomou para analisar. Elas
admitiam uma ou outra variação ou supressão, mas de um modo geral,
a mesma estrutura se repetia. O fato é que o resultado do estudo de
Propp impressionou e impressiona até hoje. Como é possível que textos
diferentes, inventados em momentos e por pessoas diferentes, podem
32 Fundamentos da Teoria Literária

ter tantos elementos em comum? Chegamos a pensar que, tirando um


detalhe ou outro, estamos sempre contando a mesma história.
Essa questão foi profundamente explorada por Joseph Campbell,
outro pesquisador que é relacionado aos estudos da narratologia. Ele
analisou mitos de diversas culturas, de diversos lugares, e conseguiu
encontrar uma estrutura comum, assim como Propp havia feito.
Há um documentário muito interessante que esmiúça toda a
teoria de Joseph Campbell, assim como apresente inúmeros exemplos
encontrados por ele ao longo de suas pesquisas sobre as narrativas
míticas. O documentário se chama O poder do mito. Uma das curiosidades
desse filme diz respeito ao local em que foram gravadas as entrevistas
com Campbell: o rancho Skywalker, propriedade do grande cineasta
George Lucas, autor da série Star Wars que utiliza, inclusive, a narrativa
no formato da jornada do herói postulada por Campbell.
A primeira diferença entre os estudos de Joseph Campbell e os
estudos de Vladimir Propp é que Propp pegou histórias do folclore que
pertenciam a apenas uma região, enquanto Campbell foi mais audacioso
e, como já era um estudioso da mitologia no mundo, conseguiu abranger
a pesquisa para comparar narrativas de inúmeros lugares diferentes. A
segunda diferença é que, em vez de estabelecer 31 etapas, Campbell
estabeleceu apenas 12, que ficaram conhecidas como “A jornada do herói”.
Figura 5 - Os 12 passos do herói, teoria elaborada por Joseph Campbell.

Fonte: https://bit.ly/2yhkqQ1
Fundamentos da Teoria Literária 33

Se você se debruçar por alguns instantes sobre o esquema de


Propp e principalmente sobre o esquema mais resumido de Campbell, é
bem provável que eles remetam a um filme da Disney. Pois não há apenas
coincidências nessa semelhança. O executivo dos estúdios Disney,
Christopher Vogler, inspirou-se nos estudos de Campbell para redigir
um manual que serviria de apoio para roteiristas criarem histórias que
seriam levadas ao cinema em forma de desenho animado. Esse manual
foi chamado, inicialmente, como “memorando Vogler”.

SAIBA MAIS:
Você já deve ter assistido aos clássicos da Disney A pequena
sereia, Mulan, Rei Leão e A Bela e Fera, certo? Pois saiba que
todos esses filmes possuem a mesma estrutura interna,
todos eles foram pensados a partir das ideias contidas no
Memorando Vogler.

O modelo fez tanto sucesso que acabou sendo publicado


posteriormente com o nome A jornada do escritor, numa referência
à Jornada do Herói, de Campbell. Nesse modelo de Vogler, estavam
presentes as mesmas etapas De Campbell só que chamando atenção
para a temporalidade do filme, o momento de crise, o clímax etc.
Figura 6 - A jornada do escritor, elaborada por Christopher Vogler.

Além dos passos que o personagem tem que dar ao longo da


jornada, há também, nas obras de Campbell e Vogler, a indicação de
personagens tradicionais, chamados de arquétipos. Essa denominação foi
34 Fundamentos da Teoria Literária

extraída do pensamento do psicólogo Carl Jung e está ligada a padrões


de personalidades. Nos contos de fadas, por exemplo, é possível perceber
esses personagens com muita facilidade: há o vilão, o príncipe bondoso,
a bruxa má etc. Mas há também muitos filmes, além dos de animação,
que seguem essas indicações tanto da construção da jornada, quanto
da formação dos arquétipos. Assim, uma teoria que partia inicialmente do
campo literário, atingiu também o cinema.
Para resumir, o que a narratologia fez foi identificar padrões.
Com isso, descobrimos algo surpreendente e até mesmo um pouco
assustador: estamos sempre contando a mesma história, com a mesma
estrutura e com personagens muito parecidos entre si. Em geral, essas
narrativas também produzem sentidos muito parecidos, como se fossem
aquela “moral da história” tão frequente nos contos infantis.

A teoria do romance
Da mesma escola russa em que surgiram os primeiros estudos
de narratologia, com Vladimir Propp, surgiu também um dos principais
teóricos que pensou e escreveu sobre o principal gênero narrativo: o
romance. Esse teórico era Mikhail Bakhtin.
Figura 7 - Mikhail Bakhtin, um dos pensadores russos
que refletiu sobre o gênero narrativo chamado de romance.

Fonte: wikimedia commons


Fundamentos da Teoria Literária 35

Bakhtin refletiu e escreveu sobre diversos aspectos do romance,


traçando como suas principais características: a contínua transformação
de coordenadas temporais, o caráter inacabado de sua trama e o
plurilinguismo. Todas essas características são pensadas a partir daquilo
que o romance teria de diferente da Epopeia. Isso porque, para Bakhtin,
assim como para outros teóricos do romance, esse gênero moderno é
herdeiro direto do gênero épico da Antiguidade Grega. Sendo assim,
cada uma das características que se pode identificar no romance é algo
que nasceu do epopeia mas que se transformou a partir da Modernidade.
Em primeiro lugar, pensemos no que Bakhtin chama de caráter
inacabado. Para ele, o romance é um tipo de texto que ainda está por se
constituir, se formar e se consolidar. A epopeia, ao contrário, nasceu com
uma forma determinada e nunca se transformou, ou seja, sempre teve as
mesmas características. O mesmo não ocorreu com o romance, já que
os primeiros romancistas não puderam, e ainda hoje não se pode, prever
todas as possibilidades plásticas que esse gênero é capaz de adotar.
Além disso, para Bakhtin, o caráter inacabado do romance também está
ligado com o presente que costuma ser retratado por ele. Ao contrário da
epopeia que narrava fatos do passado, o romance costuma ser escrito
com um olhar do presente, ainda que relate acontecimentos históricos.
Em relação ao segundo elemento que destacamos a respeito do
que Bakhtin pensa sobre o romance, a temporalidade, podemos novamente
traçar um comparativo do romance com a epopeia. Na epopeia grega os
personagens viviam um tempo imanente, ou seja, que não se transformava.
Assim, não havia mudança, transformação ou evolução de um personagem.
Se ele começava a história sendo uma pessoa gananciosa, por exemplo, ele
necessariamente seria assim até o final da história, mesmo que se passassem
muitos anos e ele tivesse tido algumas lições. Na contramão dessa ideia,
o romance procura retratar o homem moderno que está em constante
transformação e aperfeiçoamento, ele muda de ideias, muda de atitudes,
mudas de convicções etc. Sendo assim, Bakhtin aponta a continua mudança
de coordenadas temporais como uma das características próprias do romance.
Há um subgênero do romance que serve justamente para
demonstrar as mudanças pelas quais um personagem moderno é
capaz de passar. O chamado Romance de Formação, ou Bildungsroman,
36 Fundamentos da Teoria Literária

tem a pretensão de narrar de maneira pormenorizada a trajetória de


desenvolvimento físico, moral e psicológico de um personagem. O
romance Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, escrito pelo
alemão Goethe, é considerado o marco inicial desse gênero.
Por último, a ideia de plurilinguismo foi a principal ideia de Bakhtin
acerca do romance. Essa concepção diz respeito à multiplicidade de
vozes que um romance é capaz de apresentar. Segundo Bakhtin, o
processo de entrecruzamento de discursos diversos é algo inerente à
sociedade. Quer dizer, para ele, a “voz” de cada indivíduo é permeada de
referências de outras vozes, de outros contextos sociais, ou filosóficos
e assim por diante. Quando damos nossa opinião sobre alguma coisa,
por exemplo, não estamos dizendo algo que necessariamente surgiu
de nossa cabeça de maneira autônoma. Normalmente, estamos
mesclando discursos de determinados ambientes que frequentamos.
Como o romance é um gênero que se afasta da linguagem da poesia e
se aproxima de uma linguagem mais cotidiana, ele apresenta também
essa pluralidade de vozes. Com isso, podemos dizer que Bakhtin admite
que o romance é um gênero não puro, ou seja, um gênero literário que
pode incluir trechos que dizem respeitos a outros gêneros tanto literários
quanto do discurso de uma maneira geral.
Para resumir, um romancista pode incluir um personagem que
tenha ideias e opiniões perpassadas pelo discurso religioso e também
pelo discurso nacionalista. Da mesma maneira, um autor pode incluir
enunciados diversos em seu romance, como uma receita gastronômica, a
descrição de uma bula de remédio ou uma notícia, por exemplo. Tudo isso
formará um discursos único dentro do romance. E, assim, o romance deverá
necessariamente ser analisado a partir dessa multiplicidade de vozes.
Fundamentos da Teoria Literária 37

RESUMINDO:
Vamos resumir um pouco tudo aquilo que tratamos ao longo
desta Unidade. Começamos com a distinção fundamental
entre autor e narrador. Vimos que o autor é aquele que de
fato existe e que o narrador é uma espécie de entidade
ficcional criada para narrar uma história. Vimos também que
assim como autor e leitor formam uma dupla, há também
que se pensar em uma dupla formada entre narrador e
narratário. Depois observamos mais de perto a categoria
do personagem da narrativa que, em geral pode ser de
natureza plana ou redonda. Em seguida observamos como
se dá a organização espacial e a organização temporal de
uma história narrada. Partimos finalmente para a exposição
de algumas teorias que se preocuparam com a narrativa.
Os estudos de narratologia identificaram elementos em
comum em diversas histórias. A teoria do romance, por
outro lado, identificou elementos capazes de singularizar o
gênero romance.
Depois de tanto discutir sobre os elementos da narrativa,
chegamos ao final desta Unidade. A partir de agora você
estará muito melhor preparado para ler e discutir um
romance ou um conto por exemplo. Mas não apenas
isso! Pensar como funciona uma narrativa significa pensar
também como funciona um filme, um peça de teatro e
até mesmo uma memória pessoal contada por sua avó!
Na próxima Unidade, entraremos num campo menos
específico e estudaremos teorias que versam sobre
diversos gêneros e elementos. Prepare-se!
38 Fundamentos da Teoria Literária

BIBLIOGRAFIA
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Abril, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. A teoria do
romance. São Paulo: Editora Hucitec, 2002.
BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis,
Vozes, 2011.
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NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Editora Ática,
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PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. São Paulo, Ática,
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RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2012.
SOARES, Angélica. Gêneros literários. São Paulo: Ática, 2007.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva,
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VOGLER, Christopher. A jornada do escritor. Rio de Janeiro: Nova
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2017.

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