You are on page 1of 15
Estado e sociedade civil no pensamento de Marx State and civil society in Mamy’s thinking Jamerson Murillo Anunciagao de Souza” Resumo: Este ensai objetiva realizar um resgateentco acerca da construgio das categorias Estado etoriedade civil no pensamento de ‘Karl Marx Para tanto, debruga-se sobre as linhas mestras das elabo rages dos contstualistas, asim como sobre o significado eo alcance do envo hegeliano na remodelagio teérica destas mediacdes funds rentais da vida social. Esta operacdo€ requisite para expliitar aes pecilicidade revolucionétia do pensamento marxiano lavras-chave: Bilao, Soviedade civil. Contratualismo, Bmancipagio politics, Emancipagio humana Abstract: ‘This aise presents a critical rescue of the construction of the categories State and Civil Society in Kal Marts thinking, To do so, it focuses on the guidelines of the elaboration of contrac ‘uals, as Wells onthe meaning and scope of Hepe’s thinking tothe theertial remodeling ofthis essential mediation ofthe social life. Tis i required to express clearly the revolutionary specificity fof Marx's thoughts Keywords: tate. Civil society. Cotractalsm, Political emancipation. Human emancipation, * Asitente social gradu pea Universidade Feral de Pemaruco (URPE) —Recie(PE — Basil reste em Servigo Social pelo Programa de Pé.Graduacso em Servgo Socal da URPE, membo do GET = Grupo de Estudos e Pesuitas sobre Trabalho, coordenado pla Profa Dra Ana Elisabet Mota. Email |jamersonsouza gmail com. Ser Sac. Soe, Sie ate, 101, p.2688,jn/ma, 2010 25 Introdugao nveredar na discussio acerca da relagdo entre as categorias Estado e sociedade civil no pensamento de Marx significa aprender a pro- funda inflexao que o filésofo alemao imprimiu na concepgao teérico- -politica desses que so, utilizando uma expresso lukacsiana, dois complexos sociais fundamentais. Esta inflexao € 0 resultado da ampla revisio teérico-critica operada por Marx ante as principais elaboragdes do pensamento social produzido na mo- demidade. Sendo assim, a di Estado © sociedade civil esté intimamente vinculada a critica da filosofia do io levantada por Marx sobre a relagdo entre direito de Hegel, obra que consubstanciava o ponto alto da produgao filoséfica alema. Hegel, por sua vez, € o representante da ruptura decisiva para com a cor- rente contratualista, No pensamento hegeliano nao ha espago para a concep¢: de um eventual contrato, estabelecido de forma voluntéria ou compulséria, entre individuos que viveriam, hipoteticamente, um estado de natureza, que fosse constantemente ameagado — como pata Hobbes —, ou pacifico — como para Locke ¢ Rousseau. essa altura, convém estabelecer a importancia das produgées contratua- listas, uma vez que expressavam © confronto, no plano teérico, das relagdes entre as classes sociais no interior do regime feudal. O perfodo histérico que abarca o fundamento social da filosofia contratualista, nos séculos XVI e XVM, coincide com a época do que Marx, em O capital, denominou de acumulagao primitiva de capital (1985, p. 261), ‘Segundo Marx, essa é a quadra histérica na qual a burguesia, como classe social, comeca a adquirir um enorme potencial econdmico e politico. Para que a bburguesia pudesse gozar livremente desse potencial seriam necessétias profundas alteragdes nas relagdes sociais do periodo feudal. Hssas alteragdes teriam como objetivo livrar as relagGes mercantis das amarras da politica do antigo regime. Os contratualistas estavam comprometidos com 0 estabelecimento de um ordenamento social que garantisse direitos A burguesia, direitos esses cerceados pelo absolutismo feudal: de vida em Hobbes, de propriedade pri- 26 Sor Soe See, Sie Paulo.n 101,» 253, jn /mat. 2010 vada em Locke, ede liberdade em Rousseau. Assim sendo, é legitimo afirmar que os contratualistas reclamavam o que posteriormente fora denominado de Estado de Direito, isto 6, uma forma determinada de relagao entre Estado e sociedade civil que garantisse a todos os homens direitos naturais fundamen- tais inaliendveis, Posteriormente, em um texto de 1843 intitulado A questdo judaica, Marx deixaria clara a articulagio do pensamento liberal-contratualista, presente na chamada Declaragio Universal dos Direitos do Homem, com os anseios priva- dos da burguesia como classe social (2009, p. 49). Afirmar a conexio da produc contratualista com 0 ambito mais geral dos anseios da burguesia como classe social nao significa escamotear as con- fluéncias ¢ diferengas especificas entre cada um dos seus representantes. O contetido do pensamento de Hobbes, por exemplo, que defendia o fortalecimen- to maximo do Estado, difere significativamente do que postulava os tragos ni- tidamente democraticos da filosofia de Rousseau, Para clarificar 0 pensamento de Marx acerca das categorias Estado e so- ciedade civil vamos resgatar as linhas mestras da filosofia politica jusnaturalis- ta, Este resgate visa acompanhar a construgao tedrica elaborada por Hobbes, Locke ¢ Rousseau. Do mesmo modo, vamos nos debrugar sobre a guinada operada por Hegel. Em seguida reconstruiremos a andlise critico-revolucionaria, realizada por Marx. legado da filosofia jusnaturalista na elaboracao das categorias Estado e sociedade civil A continuidade de nossa exposigio requer, como referido, a explanagao do miicleo do pensamento dos contratualistas, visando estabelecer a contribuiga que eles forneceram para o debate em tomo da relagao entre Estado e socieda- de civil, Para tanto, seguiremos a consecugdo histérica na qual aparece, em primeiro lugar, a filosofia hobbesiana. Em seguida, o liberalismo politico de John Locke. Por fim, as tendéncias democriticas do francés Rousseau, fechan- do o leque dos principais pensadores jusnaturalistas. Ser Sac. Soe, Sie ate, 101, p.2688,jn/ma, 2010 21 O inglés Thomas Hobbes pensava o estado de natureza, ou seja, a condigao social em que era inexistente um Estado politico instituido, como uma constan- te ameaca A vida dos individuos. Embora no fossem selvagens, os homens no estado de natureza representavam iminentes ameagas uns aos outros. Para Hobbes, os homens seriam “opacos” aos olhos uns dos outros. Esta opacidade tende a gerar suposig&es recfprocas sobre as possiveis ages dos indivéduos, 0 que culminaria, para o autor, em ataques visando a autopre- servacdo, isto é, agressio preventiva, mediante possivel ofensiva externa, Em qualquer das situagées, a condigio bélica esté necessariamente posta, A partir dessas ameacas constantes decorreria a generalizacao incontrolé- vel de um estado de guerra de “todos contra todos”, para utilizar uma expressio hobbesiana. No estado de natureza 0 “homem é lobo do homem”. Isto porque a atitude mais adequada para assegurar a autopreservacao seria a eliminagao suméria da ameaga, a aniquilagio do outro (Hobbes, 2006, p. 56) Hobbes rompe com a visio antropolgica de Aristételes, segundo a qual ‘© homem seria um animal social por natureza, tendo suas potencialidades ma- ximizadas dentro de uma ordem natural imutével, no interior de um Estado. Para Hobbes, que se aproxima da visdo maquiaveliana de natureza humana, esta socialidade natural nao permite visualizar os verdadeiros conflitos decorrentes, da vida em sociedade, seja no estado de natureza, seja no estado fundado a partir do contrato. No estado de natureza nao haveria limites os direitos naturais. Cada in- dividuo seria 0 érbitro absoluto de suas agGes, o que resultaria num caético conflito constante que ameagaria a preservagao da vida humana, A solugao que Hobbes aponta para esta situagdo insustentével de guerra constante € a alienaga por parte dos individuos, aos seus absolutos direitos naturais em fungao do estabelecimento de uma instincia que seria ao mesmo tempo o guardiio da soberania absoluta ¢ o sujeito responsdvel pela preservacao da vida dos indivi- duos, Esta esfera, que surge no momento da alienagao, é o Estado, ‘Somente a partir da instauragdo do Estado é que os homens abandonam 0 estado de natureza ¢ passam a viver em sociedade. Nao hé, na perspectiva hobbesiana, uma antecessio cronolégica do Estado ou da sociedade. Ambas nascem no momento do contrato social, mas a sociedade civil é fundada a par- 28 Sor Soe See, Sie Paulo.n 101,» 253, jn /mat. 2010 tir do Estado, 0 que representaria, em linguagem lukacsiana, uma primazia ontoldgica (nao necessariamente cronolégica) do Estado em relagdo a socieda- de civil. O Estado, fundado a partir do contrato precisa, na visio de Hobbes, gozar de absoluta soberania; ser inquestiondvel ¢ ter a liberdade para arbitrar, inclu- sive, sobre a vida ou morte dos cidadios. Nao pode haver espago para o ques- tionamento do Estado por um motivo cristalino: questionar o Estado significa- ria questionar sua soberania, Por conseguinte, esta soberania deixaria de ser absoluta, resultando no retorno do estado de natureza, ou seja, um estado de guerra constante, Nesse estado, os individuos nao mais reconheceriam autori- dade absoluta, salvo a sua propria, A tinica possibilidade efetiva, nao de questionamento do Estado, mas de rebelio individual, ocorre quando o Estado nao cumpre sua fungao primordial, ou seja, quando nao consegue preservar a vida dos cidadaos. Somente nessa ocasido 0 individuo que se sente prejudicado pode reservar-se quanto & obedi- éncia ao soberano. Esta possibilidade € dada apenas ao individuo em sua sin- gularidade, nao sendo tolerada, portanto, a unio de cidaddios em prol de qual- quer reivindicagio. Este individuo lesado recuperatia, entao, sua liberdade natural Na esfera da vida privada sto permitidas relagGes mercantis desde que a soberania do Estado permanega intacta, Isto significava, no tempo de Hobbes, dircito a0 comércio de bens méveis ¢ iméveis, desde que controlado pelo Estado. Neste particular, nota-se a tensio entre a realidade da burguesia da época, évida por obter autonomia nas relagses de mercado, ¢ 0 absolutismo feudal, que limi- tava a propriedade dos bens iméveis em poder dos aristocratas. 0 Estado pensado por Hobbes compromete a propriedade privada dos cidadaos, pois s6 ao Estado cabe a propriedade final sobre todos os bens. Ob- servado em perspectiva histérica, 0 nticleo do pensamento hobbesiano nao conquistou um desdobramento sociopolitico efetivo. Sem embargo, as necessi- dades sociais da burguesia viriam a se identificar de forma explicita com as elaboragées tedricas de um autor que produziu sua obta pouco tempo depois de Hobbes: John Locke. Este tiltimo defenderia o dircito & propriedade privada como anterior ao surgimento do Estado, o que a tornaria, portanto, inviolével Ser Sac. Soe, Sie ate, 101, p.2688,jn/ma, 2010 29 sob quaisquer circunstancias, Para a burguesia da época, Locke representava 0 ponto alto da teoria politica liberal moderna. A obra de Locke intitulada Segundo tratado sobre o governo civil, escrito por volta do final da década de 1670, é considerada como o marco da formula- $0 te6rico-politica liberal. A época, o pensamento de Locke estava sendo in- fluenciado pelas tensdes sociopoliticas que antecederam a chamada Revolugao Gloriosa. O Segundo tratado, publicado décadas depois de sua concepgio — 1690 — viria a se constituir como fundamentagao te6rica da deposigao de Jaime IL A formagao em familia burguesa e crista puritana, aliada a inffuéncia ide- olégica de um politico liberal inglés de destacada atuagio, favoreceram a defe- sa do autor em prol da liberdade individual e da tolerancia religiosa. Em conformidade com os demais contratualistas, Locke concebe a supe- agio do estado de natureca mediante o estabelecimento de um contrato social, que fundaria, entio, a sociedade civil. Entretanto, a0 contrério do constante estado de guerra hobbesiano, Locke afirma a vigéncia da liberdade ¢ igualdade entre os individuos, o que resultaria numa relativa harmonia das relagdes sociais. Essa harmonia seria quebrada apenas por eventuais inconvenientes, como a violagdo da propriedade alheia. Para Locke, essa seria uma etapa concreta da hist6ria dos homens, muito embora vivenciada em momentos distintos. No estado de natureza jé estariam presentes a Razo ¢ a Propriedade Pri- vada como direitos naturais dos individuos. Isto significa que a passagem a0 estado civil conservaria essas faculdades precedentes dos individuos, O Estado seria a instincia privilegiada de defesa desses direitos naturais. Os individuos antecedem o Estado ¢ a sociedade civil (Locke, 2005, p. 69). Locke ficou conhecido como o te6rico do individualismo justamente por atribuir essa primazia sociopolitica aos individuos frente ao Estado ¢ & propria sociedade civil. Nesta medida, nota-se a profunda difetenga tedrica com relagao a Hobbes, que concebia o Estado como soberano absoluto, inclusive arbitrando nas relagdes de propriedade. Estado lockiano tem o dever fundamental de conservar e proteger a propriedade privada, tanto nos casos de violagao interna e singular, quanto com 30 Sor Soe See, Sie Paulo.n 101,» 253, jn /mat. 2010 relagdo a ameagas estrangeiras. Ao contrério da submissio absoluta dos stidi- tos ao Leviata hobbesiano, Locke pensa o contrato social como um consenti- mento coletivo em favor da instauragdo de um corpo politico que pudesse, de ‘maneira mais efetiva, garantr a inviolabilidade dos direitos naturais. A questo da melhor forma de governo, se monarquia, oligarquia ou democracia, € se- cundéria ante o papel fundamental do Estado: proteger a propriedade privada dos individuos. Porém, uma vez firmado 0 contrato, a vigéncia da sociedade civil nao estaria garantida definitivamente. Se o poder dos governantes fosse exercido para além do direito, © governo entraria em degeneragao tirdnica. Isto posto, ans cidadaos estava reservado 0 direito de resisténcia e a contestagao da legiti- midade do governo. Seria o que Locke denominou como direito de resisténcia. Nesse momento haveria o retorno ao estado de natureza, onde a justiga divina seria o érbitto decisive. Novo contrato seria necessétio ao retorno da sociedade civil, Esta acepedo lockiana de um direito de resisténcia seria impensével na filosofia hobbesiana pensamento de Locke, ao contritio do de Hobbes, exerceu profunda influéncia na constituigdo de governos civis europeus. Suas ideias foram resga- tadas pela Revolugo Americana e pela decisiva Revolugao Francesa. Contem- poraneamente, © micleo duro da filosofia liberal lockiana est presente na constituigo politica da maior parte dos Estados liberais E possivel afirmar, a essa altura, que o pensamento de Hobbes ¢ Locke a respeito do contrato tiveram ampla penetracao no seio da filosofia politica c sica, Por considerarem, cada um a seu modo, a positividade do contrato como ‘momento fundador da sociedade civil, confluiram na acepeo do pacto social como ultrapassagem de um estado de natureza para um estado civil-politico, onde a lei € a ordem, garantidos pelo Estado, assegurariam a vida, em Hobbes, © a propriedade privada, em Locke, como direitos naturais. Essa concepedo positiva do contrato social encontraria sua primeira criti- ca nas formulagdes de um francés, filho de um relojociro: Jean-Jacques Rous- seau, Esse pensador, apesar de nao romper fundamentalmente com a ideia de um contrato social, estabelece uma série de problemas nas formulagdes de Hobbes ¢ Locke, o que resulta numa visio negativa do pacto social Ser Sac. Soe, Sie ate, 101, p.2688,jn/ma, 2010 31 Se nos contratualistas anteriores 0 pacto social cumpriria a fungo positi- va da garantia de direitos naturais, em Rousseau esse pacto representa a aliena- Gio desses direitos, ou seja, ocorre em prejuizo dos individuos. ara superar a negatividade do pacto pensado por Hobbes e Locke, Rous- seat empreende algumas reformullagses conceituais com que trabalhavam seus antecessores. A primeira delas diz respeito & legitimidade do corpo politico. Essa legitimidade s6 est assegurada mediante a realizagio efetiva dos interes- ses do soberano, A soberania, para Rousseau, esté localizada no povo. © Esta- do precisa estar a servigo do soberano. Isto significa uma inverso com relagao & soberania absoluta do Leviati hobbesiano, Para o iluminista francés, o Estado deveria ser limitado e agir em funcao do soberano, ou seja, seria uma instancia subordinada ao soberano, Para Rousseau, assim como para Locke, a forma efetiva do governo civil seria uma questo secundiéria, desde que garantida a soberania do povo (no caso de Locke, desde que garantido o direito natural da propriedade privada). Outra questo latente no pensamento de Rousseau é a da representagdo politica. Segundo 0 autor, a soberania do povo é inaliendvel (Rousseau, 2001, p. 39). No entanto, existe a necessidade concreta de representantes politicos. Estes diltimos tenderiam, em larga medida, a agir em beneticio préprio, usur- pando a soberania da sociedade civil. Rousseau aponta como possivel safda desse impasse a constante rotatividade dos representantes, minimizando os riscos de degeneragdo dos governos. As nogées de soberania da sociedade civil, de um Estado a servigo da comunidade, da rotatividade representativa e da participagao popular na elabo- ragdo da legislac2o colocaram Rousseau na vanguarda do contratualismo, Suas ideias influenciaram a Revolugdo Burguesa de 1789. © contratualisme, originério da Inglaterra do século XVII, vai encontrar ‘uma primeira reformulacao na Franga do século XVII. Nesse momento, as concepgdes de Estado e sociedade civil assumem importante papel na consti- tuigdo concreta do govemno civil e na efervescéncia das lutas de classe entre a burguesia nascente — mas jé poderosa tanto politica quanto economicamente — com a aristocracia feudal em decadéncia, que limitava a plena liberdade mercantil burguesa, 32 Sor Soe See, Sie Paulo.n 101,» 253, jn /mat. 2010 Ap6s a queda da Bastilha e a concretizagao da Revolugao Burguesa, tendo sua continuidade no perfodo napolesnico, os conceitos de Estado e sociedade civil seriam profundamente reformulados, prescindindo, inclusive, da ideia de ‘um contrato social. Essa reformulagdo serd levada a cabo a partir de um pais que nao experimentou um proceso revoluciondrio tipico da Europa do século XVIII, mas que no ambito da filosofia estava conectado com os principais con- tomnos sociais do periodo revolucionério: a Alemanha (ainda nao unificada), ctivo hegeliano Ba filosofia alema que imprimiré uma reviravolta na concepgao da relagao entre Estado e sociedade civil. Em primeiro lugar, na filosofia idealista de Hegel; posteriormente, no pensamento revolucionario de Marx, Hegel rejeita a ideia de um contrato social que viabilizasse a passagem do estado de natureza para a sociedade civil-politica, Para ele, a sociedade pré- politica, sem a existéncia do Estado, é marcada por contradicées e conflitos entre diferentes grupos (neste particular, Hegel se aproxima de Hobbes, muito cembora evite a concepeao estado de natureza). A presenga do Estado na socie- dade civil representa, no entender hegeliano, a entrada para a sociedade poli ca, regida pelos principios fundamentais da racionalidade ¢ da universalidade. Esses principios petmitiriam a superagao dos conflitos de interesse entre grupos particulares, sendo efetivados pelo Estado. Assim, o Estado abriria a passagem do que Hegel chamava de reino da necessidade (busca egoista dos individuos ¢ grupos pela satisfagao de necessi- dades particulares) para o reino da liberdade (sociabilidade regida pela racio- nalidade e universalidade). O reino da liberdade teria na burocracia estatal seu elemento material, ou seja, o corpo coletivo de individuos que ocupasse a esfe- ra estatal seria considerado por Hegel a “classe universal”, capaz de materiali- zar os principios fundamentais do Estado, Justamente por incorporar o prinefpio universalizante do Estado, a burocracia estatal estaria alheia aos conflitos de interesses particulares (conflitos de classe, inclusive) e tepresentaria, dessa forma, os interesses de toda a sociedade Ser Sac. Soe, Sie ate, 101, p.2688,jn/ma, 2010 33 Hegel considera o Estado como instincia responsdvel por evitar a desa- ‘gregacdo social, Sem a presenca do Estado, a sociedade civil ruiria ante 0 efeito devastador das lutas de classes. Tomado nessa acepefo, o Estado teria a fungao de imprimir racionalidade & sociedade civil, fundando a sociedade po- Iitica. & importante salientar que termo sociedade civil, em Hegel, é idéntico 4 sociedade civil-burguesa, ou seja, o reino da necessidade. Isto significa que apenas o Estado pode racionalizar as relagdes da sociedade civil, marcadas por disputas de interesses particulares. Essas disputas terminam por prejudicar a ‘moralidade dos individuos, levando-os & prética de métodos de corrupcao que comprometeriam suas relagdes. Desse modo, o Estado teria a atribuigao adicio- nal de moralizar relagGes individuais e reprimir prticas imorais. Em termos hegelianos, é possivel afirmar que o Estado € o sujeito da his- t6ria, cabendo A sociedade civil o papel secundério de predicado. Ora, se 0 sujeito da histéria € o Estado, € Keito afirmar que a histéria s6 tem inicio a partir do surgimento do Estado ¢ no interior dele. Des histéria humana na auséncia do Estado. Se o Estado € 0 momento fundante da historia em Hegel, é também seu limite gltimo. Sem o Estado nao haveria his- maneira, nfo haveria t6ria humana possivel. Mais tarde, Marx inverterd esses termos, demonstrando que a histéria autenticamente humana ocorreré apenas com a supressio do Estado ¢ do modo de produgao capitalista Para Hegel, a ideia de um contrato (onde individuos, voluntariamente ou nfo, livres e com direitos absolutos, pactuam alienar sua soberania em prol da ‘manutengio ¢ defesa da coletividade) seria uma abstracao itreal em seu funda- mento. Apesar da confluéncia hegeliana com os contratualistas acerca da ne- cessidade do Estado, este tiltimo nao seria instituido mediante um pacto, e sim como prine{pio racional ¢ universalizante. Hegel fora adepto dos ideais da Revolugao Burguesa de 1789, Até entio, partilhava das principais ideias democrético-burguesas. A ascensio de Napoledo ‘a0 poder, pouco tempo depois da queda da Bastilha, influenciaria diretamente © pensamento do filésofo. Hegel enxergava a figura de Napoledo como a per- sonificagdo do que ele chamava de espirito do mundo, ou seja, 0 principio que move a hist6ria dos homens, 34 Sor Soe See, Sie Paulo.n 101,» 253, jn /mat. 2010 A filosofia hegeliana sofreria a primeira critica fundamental a partir de 1843-44, momento em que Marx, influenciado pelo pensamento de Feuerbach, pela complicada situagao politica da Renda e pelo inicio da leitura da econo- mia politica classica, tomaria a filosofia do direito de Hegel como objeto de investigagao, Estado e sociedade civil em Marx: as categorias submetidas a historicidade A obra de Marx inaugura um novo referencial te6rico sobre a relagao ene as categorias Estado ¢ sociedade civil. Marx se debruca sobre este tema influenciado pelo materialismo de Feurbach (que se pretendia uma critica a0 idealismo hegeliano), pela filosofia do direito de Hegel, pelas leituras dos eco- nomistas politicos classicos ¢ pela situagio politica conereta dos alemies do século XIX. pensamento de Marx em tomo do Estado ¢ da sociedade civil pode ser encontrado no decorrer de sua vasta producdo, desde 1843-44 até a publicagao de O capital, Entretanto, 0s textos produzidos em Paris, conhecidos como Ma- nusctitos Econdmico-Filoséficos, juntamente com a Critica da filosofia do di- reito de Hegel — Introdugio e A questdo judaica, podem ser considerados os ‘marcos iniciais da critica marxiana & produgdo da filosofia idealista e politica da época Nesses escritos, Marx jé demonstra que as contradigdes ¢ os fetiches da sociedade capitalista impregnam a filosofia idealista e politica, marcadas pela no ultrapassagem do nivel aparente da realidade. Para Marx, era preciso alcan- ar 0 contetido essencial da sociedade burguesa, Sua critica dizia respeito as operacGes da filosofia idealista que insistia em tomar o Estado, a populagao, 0 dinheiro e assim por diante, categorias descoladas da totalidade social, das cate- Marx chamou a atengdo para a necesséria reconstrugao histori gotias. Estado, sociedade civil, mercadoria, capital assim por diante, nao possuem uma esséncia a-histérica, néo imutavel ¢ eterna. Sao construgdes histéricas e precisam ser analisadas nessa yzem parte de uma “natureza humana” perspectiva. Nesse momento, Marx descarta toda a heranga contratualista, que Ser Sac. Soe, Sie ate, 101, p.2688,jn/ma, 2010 35 pressupuna a existéncia abstrata de uma “natureza humana”, Para ele, mesmo a esséncia das relagdes entre os homens é construfda historicamente ¢ precisa ser explicada pela histéria Para demonstrar que o Estado nao é um “principio de universalidade ¢ racionalidade”, nem uma instancia para além dos “interesses particulares”, como queria Hegel, nem uma esfera institufda a partir da elaboragao de um suposto abstrato pacto (que munca fora comprovado), como queriam os contratualistas, Marx recorre ao estudo do Estado burgués conereto e dos prinefpios ideolégicos que 0 orientam — a Declaracao dos Direitos do Homem. construfdo no sentido de critica aos ‘Todo 0 texto de A questdo judaica est valores burgueses edificados na Revolugao de 1789. Ali, pode-se observar que 0 homem abstrato coincide com a figura do burgués capitalista — € um individuo proprietério privado, preocupado com seus interesses particulares com a am- pliagao de seus negécios. Na Declaragao esto ausentes consideragGes que pu- dessem ser 0 suporte & emancipagao de todas as classes sociais. A Declaragao como marco ideal ¢ a Revolugdo Burguesa como marco hist6rico-conereto asse- guram o infcio do que Marx chama de emaneipagao politica, ou seja, a garantia de direitos invioléveis para a burguesia ¢ a instauragao de um Estado liberal Amos os marcos favoreceram largamente a burguesia enquanto classe social, pois ela incorporava o imenso actimulo de riquezas econémicas e poder politico, reunidos durante o periodo que Marx chamaria, em O capital, de acumulagao primitiva de capital. Esse perfodo decorre entre os séculos XV ¢ XVIII, quando a burguesia adquire um papel fundamental nas relagdes mer- cantis internacionais. Ora, 0 Estado politico e a sociedade civil-burguesa, diré Marx, nao encer- ram 0 “teino da necessidade” hegeliano. Ao contrétio, intensifica-o. Marx de- monstra que as disputas entre os interesses particulares se materializam na anarquia dos mercados, onde a mercadoria seré a mediagao universal das rela- Ges sociais. Longe de ser 0 “reino da liberdade”, a sociedade civil-politica burguesa, regida pela I6gica da acumulagao de capital, langa milhares de seres humanos em uma situagao de pobreza extremada — seré criada uma superpo- pulagdo relativa que seré sistematicamente expulsa do mercado de trabalho, tinica via de manutengao de sua sobrevivéncia. 36 Sor Soe See, Sie Paulo.n 101,» 253, jn /mat. 2010 Dito de outra maneira, a sociedade civil-politica inaugurada a partir da revolugdo de 1789 liberta a burguesia das amarras da aristocracia feudal. A burguesia, de posse da propriedade privada dos meios de produc: requerer, ou descartar, a forga de trabalho necesséria as suas atividades de acumulagao de capital, Isto implica a incorporagao e a expulsio sistemética de trabalhadores do mercado de trabalho. passa a 05 trabalhadores, por sua vez, foram expropriados de suas terras, destitu- {dos dos meios de produgao, no perfodo de acumulagdo primitiva, restando apenas a venda da capacidade de trabalho, em um mercado dominado por bur- ‘gueses enriquecidos, como forma de reprodugao de sua vida. (0 Estado burgués, observa Marx, vai ter seu principal papel na regulagio dessas que so as relagdes fundamentais da sociedade civil-politica burguesa —as relagdes de produgao, Sendo assim, o Estado é sempre uma instancia em. desfavor dos trabalhadores, j4 que pode regular, mas nunca extinguir, essa me- diagdo fundamental: a exploragao do trabalho pelo capital. (O Estado é uma esfera a favor das classes dominantes desde seus primérdios, nas sociedades escravistas da Antiguidade. Surgiu para proteger os interesses da classe dominante e controlar as revoltas dos escravos. Inicialmente, havia apenas alguns tragos essenciais do Estado moderno, como a presenga de um corpo po- licial-militar, de uma burocracia hierérquica, cobradores de impostos, escribas € mensageiros, em suma, um corpo de funcionsrios publicos. Posteriormente, novas configuragées vao se aglutinando a esses tragos essenciais, Esses contornos do Estado pré-burgués desautorizam as idealizagdes dos contratualistas, que viam o Estado como esfera positiva da sociabilidade, © Estado burgués incorpora essas caracterfsticas. Do mesmo modo, caracterfsticas inéditas ganham espago — a incorporagao de interesses organizados pela forga de trabalho, por exemplo. ‘Assim, em Marx, o Estado nfo inaugura a sociedade civil. Antes, se ergue a partir dela no interesse de determinada classe social. A recuperagao histérica do surgimento do Estado permite que Marx demonstre a vinculacao orgénica entre Estado e capital. A emancipagdo politica garantida pela Revolugao de 1789 nao assegura o préximo passo no avango da emancipacao da humanidade. Para dar esse passo seria necessdrio extinguir o Estado como esfera alienada Ser Sac. Soe, Sie ate, 101, p.2688,jn/ma, 2010 37 das relagdes sociais, extinguir 0 capital como forga centrifuga que domina as relagbes humanas. ‘Temos assim os prinefpios revolucionérios marxianos que deveriam ser Ievados a cabo pelo proletariado, tinica classe social que nada teria a perder com a radical alteragio da sociabilidade burguesa. Consideragdes finais Apesar de Marx nao ter elaborado em todas as consequéncias uma teoria geral do Estado, sua postura critica em relagao ao jogo formal do poder polit co, sob a condugao de classe da burguesia, bem como sua concepgao histérica acerca das categorias sociais, certamente autorizam sustentar que o Estado nio se constitui uma esfera social eterna, nem necesséria, Estas indicagdes segura- mente nao esgotam as determinagGes quanto & questo do Estado e de seu papel na totalidade social. Contudo, ganham especial relevo no debate com as con- cepgdes ingénuas do Estado, que costumam retomar, conscientemente ou nio, ‘08 argumentos liberais, idealistas, ou funcional-positivistas, sobre a universali- dade ¢ imparcialidade do Estado em relacdo aos interesses da sociedade civil burguesa, Pata Marx, tanto quanto as formagdes econdmicas pré-capitalistas, o siste- ‘ma do capital, bem como o poder politico que Ihe corresponde, sao particulari- dades hist6ricas do desenvolvimento do género humano, A contragosto dos idedlogos da burguesia, esta abordagem sustenta que o sistema do capital e Estado nao refletem a “natureza humana”, forma abstrata de concepgao da es- séncia humana hipostasiada pela consciéncia de classe da burguesia; antes, reflete apenas os imperativos irreforméveis de um sistema autoimpulsionado pela acumulagao centralizada de capital. Segundo o pensamento marxiano, a esséncia humana ¢ historicamente determinada pelas relagdes sociais de pro- dugao vigentes, Nas palavras de Lukécs, que sustenta também neste particular argumento marxiano; “o desenvolvimento essencial do homem é determinado pela maneira como ele produz” (Lukes, 1979, p. 73) ‘Ao contrério das criticas fugazes que apontam Marx como um “teérico da economia”, o alemao redigiu textos brilhantes em que analisava minuciosamen- 38 Sor Soe See, Sie Paulo.n 101,» 253, jn /mat. 2010 te as relagdes eminentemente politicas da Europa do século XTX, a exemplo do texto clissico, As lutas de classe na Franca de 1848 a 1850, onde demonstra que o intercimbio entre as personificagdes do capital ¢ o direcionamento polf- tico da gestdo da res publica tem uma longa histéria. Todo 0 esforgo marxiano estd ancorado na irredutivel historicidade de seu método ¢ no horizonte social ¢ politico da emancipagao humana, ancoras que demonstram sua vitalidade e relevancia nesses tempos de crénica contrarrevolugao e anacrénica vigéncia do sistema do capital Artigo recebido em out/2009 m Aprovado em jan./2010 Referéncias bibliograficas HOBBES, Thomas. Leviatd. In: WEFFORT, Francisco. Os cldssicos da politica. Sio Paulo: Atica, 2006. v. I LOCKE, John, Segundo tratado sobre o governo civil, Sio Paulo: Martin Claret, 2005. LUKACS, Georg. Ontologia do ser social: os prineipios ontolégicos fundameatais de Marx. Sio Paulo: Cigneias Humanas, 1979, MARK, Karl, O capital: ertica da economia politica, 2. ed, Séo Paulo: Nova Cultural, 1985. Livro I tomo I As lutas de classe na Franga de 1848 a 1850. Sio Paulo Alfa-Omega, sid. (Obras Escolhidas, v. 1.) A questdo judaica, Sio Paulo: Expressio Popular, 2009 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Sao Paulo: Martin Claret, 2001 Ser Sac. Soe, Sie ate, 101, p.2688,jn/ma, 2010 39

You might also like