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E necessario ser preciso? E preciso ser exato? “Um estudo sobre argumentacio matemitica” ou “Uma investigacio sobre a possibilidade de investigagiio’ Antonio Vicente Marafioti Garica, UNESP, Bauru e Rio Claro, Brasil Introducio Esta introdugao foi, naturalnente, produzida depois de todo 0 texto ter sido elaborado. E, providencialmente, inicia-se com um alerta: ndo sacralizemos o escrito. Pensemos no livro, no artigo, no manifesto, uo panfleto, como uma forma de circulagao de idéias, um compattilhar de pensamentos. Assim concebendo, estas anotagdes foram geradas mais como uma proposta de pesquisa—futuralda,quejcomojcristalizaeaaideyuma _investigagao jé terminada, Tniciamos este capitulo, porém, com uma retomada do que, até o momento, tem sido nosso principal foco de atengio na pesquisa em Bdieagi) Matematica a> _‘linguagem.- Ao estudo das formas de linguagem — natural e artificial — encontradas nas salas de aula de Matematica temos nos dedicado. No comego, auscultamos as possibilidades de leitura do texto escrito, como o manual didatico. para, depois, percebendo que o estilo da Matemitica poderia ser caracterizado pela prova rigorosa, num ambiente formalizado, partirmos para o estudo das demonstragdes. Sendo a pesquisa atividade de procura ~ nao ponto de chegada -, nos deparamos com a necessidade de estudar outras formas de argumentagio, menos formalizadas do ponto de vista matemyitico, que ocorrem em momentos de ensino ¢ aprendizagem. * Gamica, A. V. M. (2001), E necessirio ser preciso? E preciso ser exacto? “Um estudo sobre a argumentagio matematiea” out “Uma investigagio sobre a possibilidade de investigagio™. In H. N. Cury (Ed), Formagao de professores de matemanca: Uma visa multifacetada (pp. 29-48). Porta Alepre: Artes Médicas, Algumas perplexidades, sempre existentes mas pouco elaboradas sistemitica e conscientemente, tomaram vulto durante os estudos que, no momento, estamos desenvolvendo como professor visitante na Indiana University Purdue University Indianapolis’. E este o motivo pelo qual incluimos, no corpus do texto, um breve esbogo das atuais linhas norteadoras da Educagio nos Estados Unidos da América: uma visio panoramica do contexto educacional que, embora inicial, ja nos permite perceber a proximidade dos norteadores que regem, em Educagio Matematica, tanto a politica educacional americana quanto a brasileira. Uns poucos relatos recolhidos em salas de aula de curso de formagaio de professores para a escola elementar so explicitados para que, a partir deles, possamos estabelecer a proposta de pesquisa, no final desse capitulo, E essa, pois, a sequéncia iniciada com o proximo tépico, em que GALOSAD "questi da lingunaca sob un ola de natneza fiona, pas cout «pate ae a proposta de trabalho acima anunciada Linguagem, Matematica e Educacio Matematica A comunicaglio da experiéncia vivida & surpreendente porque paradoxal, conflituosa. A plenitude do que vivenciamos, 0 nosso olhar sobre o mundo é recouhegamos, una experiéncia intransferivel. Mas, no entanto, podemos nos referir as coisas com as quais convivemos e, na tentativa de romper a solidao propria do humano, langamo-nos no exereicio de comunicar a experiéneia experienciada. E algo de misterioso ocorre pois, a cada instante da vida, rompemos essa incommnicabilidade da experigncia: algo fica no que commnicamos para o ontro. Fica um sentido. Ficam fagulhas de compreensio com as quais reconstrdem-se, cada um ao seu modo, as experienciagoes. Viver como seres da linguagem nao é, pois, uma Iuta va, embora seja necessirio reconhecer os limites de nossas possibilidades. Se somos etemos encarcerados nas malhas da linguagem somos, também, pela linguagem libertados. E nos manifestamos no mundo. Essa nossa manifestagao no mundo ocorre de varias formas. Ha um equivoco, proprio do senso comum, em pensar a linguagem ja como linguagem eserita ou falada, Curiosamente, um dos momentos em que se pode perceber a gestagdo da idéia desenvolvida neste capitulo ocorreu quando discutiamos dificuldades proprias da alfabetizagao em lingua estrangeira e certas particularidades da atividade de waducdo. Tentavamos, entio, explicar a quase impossibilidade de uma tradhugao que, em certos casos, preservasce toda a beleza da criagao poética, para o que demos como exemple a conhecida frase de Feruando Pessoa que inspizou, tambésn, 0 titulo desse estudo. Conquanto a escrita tenha permitido ao humano o sabor de muitas de suas conquistas — a propria nogao de “cultura” pode ser a ela creditada’ — . o registro de caracteres graficos & um elemento recente na historia da humanidade e, portanto, nao pode responder por todo © processo comunicative, Embora nossa intengao, aqui, seja a de una investigago sobre a linguagem matemitica — sendo que, para isso nos deteremos em formas de commnicagao essencialmente vinculadas a escrita — nossa concepgio de linguagem engloba as mais diversas formas de manifestagho, que ja se iniciam com o préprio estar-se jogado no mundo, passando. por exemplo, pelo escrito. pelo oral. pelo gestual e pelo pictdrico. ‘Mais do que investigar a linguagem matemitica — 0 que certamente exige um estudo, mesmo que rapido, de seus estilos e formas discursivas — nossa intengao é investigar a linguagem matematica no contexto da sala de aula. Essa alteragao de foco é extremamente significativa, posto que se mudam, alm das regides de conhecimento, as manifestagdes ¢ concepedes, esbogando-se, obviamente, um novo campo para o debate politico, Por mais que se afirme que o campo cientifico deve caracterizar-se pelo livre & piiblico escrutinio, sabe-se que mnitas das esferas da ciéneia estao, ainda, no dominio do privado. A Matemética, pensada como pritica cientifica, certamente esti dentre as formas de conhecimento que, por intimeras raz6es, encapsulam-se na privacidade, Sua linguagem, sua forma de comunicagio, talvez seja um dos elementos mais possantes a exigir e defender essa privacidade e, na tentativa de desvincular-se do mundano (uma das caracteristicas do pensamento formal), detém-se a grupos restritos, em formas especificas e cifrndas de agao. ‘Acao” € também, um dos termos que nos serio muito caros. Pois a propria Edueagdo, em seus estudos tedricos (dos quais esse artigo nao € excegao), exercita-se paradoxalmente num rompimento com o cotidiano, A linguagem da pesquisa em Edueagao, tanto quanto a linguagem da pesquisa em Matemética, nao é uma forma “simples” de comunicagio: também ela se veste com conceitos préprios € coustréi argumentagdes pautadas nesses conceitos que, mio poucas vezes, sao obscures ao grande grupo externo ao meio em que as teorias sao produzidas. Ocorre que a Educagiio > guns trabalhos de Paul Ricoeur so, sob nosso ponto de vista, essenciais para a compreensto das questdesselativas a0 texto e sua interpretacdo, Dente esses, duas obtas tém especial importancia: 0s dois “Ensaios de Hermenéutica” (O conflito das interpretacées. Lisboa: Edigdes 70, 1986; e Du texte a action. Paris: Denil, 1986) e O discurso da cdo. Lisboa: Edigoes 70, 1988. Na perspectiva historica sobre a eseria so também extremamente significatives os trabalhos publicadas sob a vertente da Historia Nova. Em especial, citamos 0 volume “Memoria e Historia" da Enciclopedia Emaud, em sua versao portuguesa —e falamos especificamente, aqui, de Edueagaio Matematica — realiza-se numa pratica, numa agio de comprometimento e vineulagio com o mundo, 0 que, no senso comum, chamamos de “o mundo real”, sem as divagagdes filoséficas usuais quando 0 termo “realidade” entra em cena. Isso credencia a Educagtio Matematica como wna area de conhecimento tedrico-pritico, que ocome exatamente no campo de intersegao dos avangos tedricos que visam a pratica e sto possiveis a partir dessa mesma pritica, num processo de retro-alimentagto. Por esse motivo SiGe) State iat NESS GHpIIONSGD tomada como artificial na elaboragio de um estudo que se pretende teérico-pratico. territério tedrico-pratico exige reconhecimento. E necessario esbogar certas linhas divisérias, certos modos tipicos de ago. No campo da pratica, buscando investigar a linguagem matemitica em suas potencialidades e seus limitantes, algumas consideragdes sao importantes, embora ébvias em sua maioria, AlSRiniGit/ SCHAAR) (GaGa eas tanides HHfehteee i cientitica™ ell pedagopica F exatamente essa a manifestagdo que nos permite falar em uma pritica (“cientifica”) matemética ¢ uma abordagem teérico-pritica Matematica (a Edueagtio Matematica) como formas distintas ~ mas conectadas ~ de compreensio do mundo. A manifestaglo do discurso “cientifico” da Matematica da-se. "fundamentalmente, ua pesquisa, na construgo do conhecimento matemtico, como feita (GORGE PORSSIONAI) Nisso incorporam-se outras manifestagdes, das quais sto findamentais: a produgao do conhecimento matematico em estado nascente, a discussio sobre o conhecimento produzido — que se dé entre os pares de comunidade cientifica, oral ou textualmente, possibilitando reelaboragio, embora restrita ao grupo, do que fo inicialmente gerado — e, finalmente, sua divulgagao — preponderantemente via venolal especializados, publicados em veiculos especificos e dificilmente abertos a reelaboragdes, mas sugerindo possibilidades de serem complementados. Colocam-se, nessa manifestagio do discurso cientifico, o oral ¢ o escrito. @iGRaGNO] AS SFA SEAS (que sto mo discursivas em sua génese) CEGNaasy eI NEO] GuSe ASCO NALS) Hii que se reiterar a curiosa e contraditéria especificidade de uma linguagem —a matematiea — preponderantemente escrita que, embora se pretendendo formal, dicotomizando radicalmente semantica e sintaxe, necessita, ainda, do@poioldap (Giigeagenniattallfparallalcoumunicagaodasideia® A linguagem natural, sendo freqientemente escritura e oralidade, interfere nas pretensdes formais e forga, assim, a natural vinculagao entre forma e conteiido tao arduamente defendida como dominios separados numa linguagem artificial cuja gramatica é definida pela Légica. Por um outro lado, vemos que a manifestagto do discurso pedagdgico da Matematica di-se nas intimeras e divergentes situagdes de ensino e aprendizagem, dentre as quais a pritica educativa da escolaridade formal tem sido hegeménica ~ e talvez, equivocadamente — focada nos trabalhos dos quais temos tido referéncia, Mesmo que aqui estejamos focando a linguagem matematica em cursos universitarios (especificamente, veremos em breve, os cursos de formacao de professores de Matematica nas licenciaturas) deve-se reconhecer a pluralidade das formas de ensino e aprendizagem de Matemética, além das que ocorrem intra-muros na instituigao escolar. Mesmo a pesquisa em Educagio Matematica tem incorrido nesse equivoco de nao considerar, em suas abordagens, formas altermativas de agao, culturalmente legitimas e essenciais para o entendimento dos modos de argumentagdo acerca dos objetos mateméticos. A “Educagio” tem sido, no raras vezes, equivocadamente tomada como “escolaridade formal” e, decorrente disso, a “Educagao Matematica” é concebida como © estudo das formas de apropriagao do contetido matemzitico em salas de aula. Conceber “Educagao” como a Inta pela atribuigho de significados, como nos ensinava Joel Martins, permitindo a ampliagao do atual panorama, parece ser essencial No discurso pedagégico da Matemética — 0 campo de uma Edueagao Matematica — interagem posturas, metodologias, diditicas, textos e oralidade, “esferas™ obviamente nao disjuntas. Tnteressados nas formas de tratamento da linguagem matemitica em cursos foumais de licenciatura, nos restringiremos, aqui, & busca de similaridades divergéncias entre essas duas formas de manifestagao discursivas da Matemitica: a pedagégica e a “cientifica”, seguindo, muito de perto, o trabalho de Seiji Hariki* Como elementos de reconhecimento mituo, temos que ambos os discursos pautam-se na construgtio do conhecimento matematico plasmada na comunicagio, na negociagao oral de significados ¢ na mediagao desempenhada pelo texto escrito. E nesses mesmos elementos encontramos as divergéncias entre os discursos: a comunicagao entre os especialistas, na pritica cientifica, restrita a um grupo fechado, fimda-se na competéucia de contetidos ¢ no dominio absolute da linguagem propria da area. A comunicagio na pritica pedagégica, ao contrario, ¢ rica em pluralidades: contextos educativos distintos so distintos mundos, comportando pessoas distintas quer seja em relacao aos contetidos, quer seja quanto ao dominio lingitistico — natural ou formal — envolvido, havendo diferentes vivéncias contextais em jogo (vivéncias essas que a pertenga a um grupo, na pritica cientifica, trata de abrandar, partindo de uma “homogencidade” entre os filiados), Qa | mensagens enviadas em cada um desses grupos: no discurso cientifico, sto tratadas formas de Matematica em estado uascente; uo pedagégico, tabalha-se com uma (Wisteiniica ja Solidificada) disponivel, intensivamtente reproduzida Tanbém ¢ distinta a mediagao feita pelo texto: sua fungao, na pratica cientifica, é de divulgagao, escoamento de produgao; na pritica pedagégica, a fungao precipua é a da interiorizagao. A natureza dos textos envolvidos difere relativamente. embora caracterizem-se, ambos, pelo modo apresentacional, sendo negligenciadas as formas de apreensio de coneeitos, as trajetirias para obtengao de resultados: o “caminho das pedras”, em suma, Mas os textos diditicos stio quase-formais, enquanto textos cientificos sio radicalmente formalizados. Embora esse estudo introdutério sobre os discursos cientifico e pedagégico estabelega, mesmo que apoucadamente, elementos para anilise mais demorada. o _essencial para nossos propésitos nao foi claramente explicitado: trata-se do trafego de _ coneepedes existente entre os dominios cientifico e pedagdgico. Na sala de aula de Matemitica, posturas e valores, préprios do campo da pesquisa, insinuam-se, sto reproduzidos, fortalecidos e legalizados. Ha um deslizamento da pritica cientifiea para a pritica pedagdgica da Matematica, prevalecendo o discurso cientifico sobre o discurso pedagégico, como pertinentemente apontado no trabalho de Maria Regina Gomes da Silva’ + HARIKI, S., Analisis of Mathematical Discourse: multiple perspectives. Doutorado em Filosofia. University of Southampton, Inglaterra, 1992, S SILVA. M. R. G., Concepedes didanico-pedagégicas do professar-pesquivador em Mateméitica e sou

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