You are on page 1of 171

Impulso.

book Page 1 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Impulso 5082

IMPULSO • ISSN 0103-7676 • PIRACICABA/SP • VOLUME 10 • NÚMEROS 22 e 23 • P 1-99 • 1998

impulso 1 janeiro 99
Impulso.book Page 2 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Universidade Metodista de Piracicaba


Reitor Impulso is a quarterly journal focused on social sci-
ALMIR DE SOUZA MAIA ences published by the Universidade Metodista de
Piracicaba-UNIMEP (São Paulo – Brazil). It features
Vice-reitor Acadêmico scholarly articles on the humanities, society and cul-
ELY ESER BARRETO CÉSAR ture in general. See editorial norms for submission
of articles in the back of this journal.
Vice-reitor Administrativo
GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM
Impulso é indexada por: /
EDITORA UNIMEP Impulso is indexed by:
Conselho de Política Editorial Base de Dados do IBGE; Bibliografia Bíblica Latino-
ALMIR DE SOUZA MAIA (PRESIDENTE) Americana; Indice Bibliográfico Clase (UNAM);
ANTONIO ROQUE DECHEN Sumários Correntes em Educação.
CASIMIRO CABRERA PERALTA
ELIAS BOAVENTURA
ELY ESER BARRETO CÉSAR (VICE-PRESIDENTE) Equipe Técnica
FRANCISCO COCK FONTANELLA
Edição de texto: Milena de Castro
GISLENE GARCIA FRANCO DO NASCIMENTO
NIVALDO LEMOS COPPINI Secretária: Ivonete Savino
RINALVA CASSIANO SILVA Apoio administrativo: Altair Alves da Silva
Revisão de texto: Alexandre Bragion
Comissão Editorial Capa: Wesley Lopes Honório
ELIAS BOAVENTURA (PRESIDENTE) Impressão: Bandeirantes Ind. Gráfica S.A
EVERALDO TADEU QUILICI GONZALEZ DTP e produção: Gráfica UNIMEP
JOSIANE MARIA DE SOUZA
RINALVA CASSIANO SILVA Impresso em Duplicadora Digital Xerox Docutech 135
TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO Supervisão Gráfica: Carlos Terra

Editor-executivo Produzida em janeiro / 1999


HEITOR AMÍLCAR DA SILVEIRA NETO (MTB 13.787)

A revista IMPULSO é uma publicação quadrimestral


da Universidade Metodista de Piracicaba, produzida
pela Editora UNIMEP. As opiniões expressas nos
artigos, tanto os encomendados como os enviados
espontaneamente, são de responsabilidade dos seus
autores.

Administração, redação e assinaturas:


Editora UNIMEP
www.unimep.br/~editora
Rodovia do Açúcar, km 156 Revista de Ciências Sociais e Humanas
Telefone/fax: (019) 430-1620 da Universidade Metodista de Piracicaba
13.400-911 - Piracicaba, SP
E-mail: editora@unimep.br VOLUME 10 • 1998 • NÚMEROS 22 E 23

impulso 2 janeiro 99
Impulso.book Page 3 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

a
Unidade Temática e
Regularidade
A Editora UNIMEP faz chegar a seus leitores, neste volume 10, os nú-
meros 22 e 23 da REVISTA IMPULSO, trazendo como temática básica o fenô-
meno da comunicação. É o resultado dos esforços do Conselho Editorial,
empenhado em regularizar a periodicidade da Revista, para que ela possa
atender de modo mais eficaz o papel que lhe é reservado, no interior da Uni-
versidade e nos meios externos em que circula.
A IMPULSO tem como objetivo ser espaço de debate da academia e veí-
culo de circulação das idéias que fermentam as atividades de ensino, pesquisa
e extensão universitárias, não só da UNIMEP mas de todas aquelas
instituições compromissadas com a melhoria da qualidade do labor universi-
tário.
Neste sentido, a orientação editorial tem sido de aproximar a IMPULSO
do professorado, abrindo cada vez mais suas páginas, de modo que este veí-
culo possa se tornar a expressão viva do pensamento que preside todas as ati-
vidades legadas às Ciências Sociais.
Para facilitar a realização destes propósitos, com bastante antecedência
foram anunciados os temas preferenciais para os números que seriam produ-
zidos, e a Comissão Editorial se encontra segura que eles possuem condições
de sensibilizar e mobilizar os interessados.
Neste volume 10 priorizou-se, de modo geral, o fenômeno da comuni-
cação. No artigo “Câmera, olho que observa”, Maria Tereza propõe-se a
apontar alguns momentos na história do cinema e do vídeo em que “o modo
de olhar através da máquina modificou o modo de observação da realidade”.
Israel Belo de Azevedo, em “O livro evangélico no Brasil”, revela que
92% das obras produzidas pelas editoras evangélicas contêm material dog-
mático, além de grande espaço reservado à sistematização de doutrina. Infor-
ma ainda o articulista que as casas publicadoras protestantes ainda utilizam
os livros como forma importante de expansão e apoio a seu projeto de fé.
A discussão de estratégias de resistência do humano frente à exacerba-
ção do consumo, em um contexto em que o humano “é cada vez mais vili-
pendiado e vendido como mercadoria”, é a preocupação central de Sílvio
Gallo, externada em seu texto “Consumo e resistência cultural”.
Dois outros artigos dão continuidade à mesma temática com enfoques
bastante diferentes. Em “Jornalismo de serviços: produto descartável”, Den-
nis de Oliveira analisa o faturamento de empresas jornalistas e apresenta a
“prestação de serviços como a saída para o jornalismo na sociedade moder-

impulso 3 janeiro 99
Impulso.book Page 4 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

na”, indicando, entretanto, que para o futuro as perspectivas para esse tipo
de jornalismo são sombrias. Já em “A voz nas locuções publicitárias: caracte-
rísticas e possibilidade de representação”, Regina Zanella comenta que, atra-
vés da locuções, o som da voz humana está presente na maioria das propa-
gandas. Seu artigo contribui para o estudo da voz do locutor e aconselha a
participação efetiva do fonoaudiólogo no preparo deste profissional para o
melhor aproveitamento de todas as suas possibilidades.
Quatro outros artigos, de caráter mais geral, levantam questões como
a discussão do trabalho e o processo produtivo; o problema da doença como
“forma de estar no mundo”; a abordagem da cidadania e conhecimento, tra-
tando o efeito da memória nos conflitos sociais; e ainda o assunto do fetichis-
mo na teoria marxista.
Tal elenco temático expressa a disposição da Comissão Editorial em,
cada vez mais, concentrar de modo claro os números da IMPULSO em torno
de uma temática específica, além de levá-los a público em períodos bem mais
regulares.
O fato é que a IMPULSO vem crescendo de modo vigoroso a cada publi-
cação. Sua penetração tem sido sistematicamente ampliada e hoje ela repre-
senta veículo prestigiado de circulação de idéias, tanto no interior da
UNIMEP quanto fora dela.
ELIAS BOAVENTURA
PRESIDENTE DA COMISSÃO EDITORIAL

impulso 4 janeiro 99
Impulso.book Page 5 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

...............................

Sumário
Artigos
Temáticos 07
Câmera, Olho que Observa
Maria Thereza Azevedo da Fonseca 09
O Livro Evangélico no Brasil
Israel Belo de Azevedo 23
Consumo e Resistência Cultural
Sílvio Gallo 35
Jornalismo de Serviços:
produto descartável 41
Dennis de Oliveira
A Voz nas Locuções Publicitárias:
características e possibilidades de representação 55
Regina Zanella Penteado

...............................
Artigos
Gerais 71
O “Novo” e o “Velho”:
o trabalho e o processo produtivo em discussão 73
Lúcio Alves de Barros
A Doença e o Doente:
uma abordagem através dos mitos 99
Silvana Venâncio & Giovanina Gomes de Freitas Olivier
Cidadania e Conhecimento:
O feito da memória nos conflitos sociais 111
Aloísio Ruscheinsky
Fetichismo na Teoria Marxista:
um comentário 139
Valdemir Pires

...............................
Resumos
de teses 147

impulso 5 janeiro 99
Impulso.book Page 6 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 6 janeiro 99
Impulso.book Page 7 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 7 janeiro 99
Impulso.book Page 8 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 8 janeiro 99
Impulso.book Page 9 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Câmera, Olho
Que Observa
Camera, eye
that observes
RESUMO – Tendo como referência a câmera, que registra imagens em movimento,
o artigo aponta alguns momentos na história do cinema e do vídeo, em que o
modo de olhar através da máquina modificou o modo de observação da realidade.
Palavras-chave: cinema – olhar – vídeo – câmera.
ABSTRACT – From the camera point of view, that register moving images, the ar-
ticle point out some moments in cinema and video histories, where the way of
look through the machine has changed the way of looking the reality.
Keywords: cinema – look (meaning the visual approaching of reality) – video – ca-
mera.
MARIA THEREZA
AZEVEDO DA FONSECA
m.tereza@merconet.com.br
Cineasta, doutoranda em artes
cênicas na ECA/USP e professora na

N
Universidade Metodista de Piracicaba
(UNIMEP), diretora de vídeos para a
o final do século passado, três descobertas contribuíram para educação, entre eles a série Imagens da
modificar a percepção do homem sobre si mesmo e sobre o Cidade, para o Ensino Fundamental

mundo: a invenção do Raio X, as teorias sobre a psique, de


Sigmund Freud, e o nascimento do cinema. As três descobertas refe-
rem-se ao olhar, sendo que o cinema sintetiza as duas primeiras: a má-
quina, câmera que registra a imagem, e a psique, na qual se aloja a ma-
téria-prima para a constituição da obra de arte.
“As folhas se mexem!”, exclamavam maravilhadas as pessoas di-
ante das imagens projetadas numa tela, há mais de cem anos, quando,
pela primeira vez, assistiam numa exibição cinematográfica a folhas se
mexendo e trens chegando fora do tempo e do espaço no qual o even-
to acontecera. “Os ingênuos recuavam vendo avançar sobre eles o
trem de ‘La ciotat’, filmado por Louis Lumière.”1 Realizada no dia 28
de dezembro de 1895, no Grand Café de Paris, por Louis e Auguste

1 AMENGUAL, 1971, p. 5.

impulso 9 janeiro 99
Impulso.book Page 10 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Lumière, a primeira exibição de L’arrivée d’un train en gare de la ciotat


comprovava a existência de uma máquina que imprimia em película
imagens estáticas, pequenos fotogramas que, ao serem projetados em
fluxo contínuo através de uma fita celulóide em uma lente iluminada,
criavam a ilusão de movimento.
Essa “câmera mágica”, que faz com que as imagens se mexam,
foi inventada graças a uma aposta de um milionário americano, cha-
mado Leland Stanford, com um amigo: ele sustentava que um cavalo
numa corrida, ao galopar, ficava por alguns instantes com as quatro
patas no ar. Ao provar isso, através das fotografias realizadas por
Edward J. Muybridge, convidado por Stanford a desenvolver um me-
canismo que disparasse uma série de câmeras fotográficas dispostas ao
longo de uma pista, estavam criadas as condições para a descoberta da
câmera cinematográfica.2
Depois da primeira sessão, a atração cinematográfica espalhou-
se por vários países. Salas especiais, com o conforto e o requinte dos
teatros, foram construídas, para que as pessoas pudessem observar o
mundo por intermédio das imagens que se moviam na tela.
Com o aperfeiçoamento das máquinas de filmar e a inclusão do
cinema no ramo do entretenimento, surgiram outras maneiras de tra-
balhar com a câmera que não apenas como registro do acontecimento
num dado espaço ou num determinado momento, que caracteriza o
gênero documentário.
Georges Méliès foi um dos primeiros a se interessar pelo trata-
mento não-documental do cinema. Começou a filmar logo após des-
cobrir o invento dos irmãos Lumière e, um dia, por acaso, durante
uma filmagem na Praça da Ópera, em Paris, a película emperrou. Sem
mudar a câmera de lugar, ele recolocou a película e, nesse intervalo, os
pedestres, o ônibus e os carros mudaram de posição. Na projeção,
constatou-se que, no local onde havia ocorrido a parada da película,
o ônibus havia se transformado em carro funerário. Desse episódio,
surgiu a trucagem de substituição, denominada truc à arrêt, que foi uti-
lizada no seu primeiro longa-metragem L’Escamotage d’une Dame
chez Robert-Houdin.
Entusiasmado com a ludicidade do instrumento (nessa época o
cinema não era nem arte nem indústria), ele se tornou um bricolleur
experimentando com máscaras e contramáscaras na lente, fusões, câ-
meras lentas e aceleradas.
2 Ibid.

impulso 10 janeiro 99
Impulso.book Page 11 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Mas foi com David Wark Griffith, em Nascimento de uma nação


(1915), e, principalmente, com Intolerância (1916), que o cinema co-
meçou realmente a desenvolver uma narrativa, valendo-se das novas
possibilidades de movimentar a câmera. Em contraponto à tragédia
clássica, Griffith estabelece a regra dos “três multiplicadores” – lugar,
tempo e ação – e cria a ação paralela.
Olhar o mundo através de uma câmera e transformar esse olhar
em filmes ou vídeos rendeu, ao longo desses mais de cem anos de his-
tória, muitos debates e milhares de imagens. “Ver é idealizar, abstrair
e extrair, ler e escolher, é transformar. Na tela, revemos o que a câmera
já viu uma vez: dupla transformação, uma vez que se multiplica, ele-
vada ao quadrado.”3
A pesquisadora Laura Mulvey aponta três diferentes olhares as-
sociados ao cinema: o da câmera, que registra o acontecimento pró-
fílmico, o da platéia, quando assiste ao produto final, e o dos perso-
nagens, dentro da ilusão da tela. Nesse artigo, o enfoque estará no
olhar da câmera, que registra o acontecimento pró-fílmico. Não há in-
tenção de fazer uma análise aprofundada da questão, mas de mapear
alguns momentos de valorização da câmera, que alteraram os modos
de criação e os de realização dos filmes.
Partirei da compreensão de que toda imagem tem por princípio
a observação, entendendo que esta acontece sob determinado ponto
de vista. Estarei privilegiando as câmeras que experimentaram ou sub-
verteram a estética e a ideologia dominantes. As imagens captadas por
essas câmeras rebeldes influenciaram a produção videográfica da atu-
alidade. É a partir dessas mudanças nos modos de olhar, quando a câ-
mera muda de posição, que ocorre uma relação mais estreita entre a
máquina e o olho que observa. O crítico francês Noel Burch estabelece
para a câmera três funções: a de interlocutor, a de espectador passivo
e a de condutor da ação.
Na realização cinematográfica, o material fílmico transforma-se
a cada etapa, desde a preparação até a pós-produção, num processo de
construção/desconstrução constante. Louis Baudry lembra que “a câ-
mera ocupa ao mesmo tempo uma posição extrema, distanciada tanto
da ‘realidade objetiva’ quanto do produto final, e uma posição
intermediária no processo de trabalho que vai do material bruto ao
produto final”.4
3 EPSTEIN in XAVIER, 1991, p. 277.
4 BAUDRY in XAVIER, 1991, p. 385.

impulso 11 janeiro 99
Impulso.book Page 12 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Nos primeiros filmes, a câmera instalava-se de modo fixo no lu-


gar do observador de platéia. Ao descobrirem o travelling (um opera-
dor de Lumière havia colocado espontaneamente a câmera sobre uma
gôndola, em Veneza),5 o inglês James Willianson (Big Swallow) e o
francês Méliès (L’homme à tête de caoutchouc) não imaginavam a po-
tencialidade narrativa desse movimento de câmera.
Quando colocaram a câmera viajando em trens, charretes, gô-
ndolas, etc., perceberam que ela poderia se movimentar assim como
o nosso olhar. A partir desse momento, a movimentação dos atores em
cena, que até então tinha como modelo o teatro, altera-se. Mudam-se
então os modos de narrar e de montar. “Assim, em A última garga-
lhada (Murnau), a câmera, num vertiginoso travelling para frente, ma-
terializa no espaço a trajetória das palavras de uma dona de casa que
grita para uma vizinha os mexericos de um edifício.”6
Quando Sergei Eisenstein, em A linha geral (1929), precipita-se
em travelling com a câmera, avançando para uma vaca, age sob o pon-
to de vista de um touro no cio; e quando Epstein sobe com a câmera
num carrossel em movimento, assume o ponto de vista das pessoas
sendo levadas pelo movimento da roda.
Abel Gance, do impressionismo francês, amarrava a câmera na
garupa de um cavalo a galope, como se fosse Bonaparte fugindo dos
nacionalistas corsos.7 Gilles Deleuze lembra que neste filme, Napoleão
(1929), Abel Gance “se vangloriava de ter liberado a câmera não só de
seus trilhos terrestres, mas até de suas relações com um homem que a
carrega, para colocá-la sobre um cavalo, lançá-la como uma arma,
fazê-la rolar como uma bola, fazê-la precipitar-se em hélice no mar”.8
Com a câmera, os processos de significação podem se desenvol-
ver segundo: 1) a angulação – o ponto de vista, o lugar onde a câmera
é colocada. Pode ser abaixo, acima ou no nível do objeto observado;
2) os movimentos: panorâmica – a câmera se movimenta sobre seu
próprio eixo; travelling – o eixo também se movimenta; trajetória –
combinação de panorâmica com travelling; 3) os enquadramentos –
definem o que aparece dentro do quadro. Pode-se ver toda a paisa-
gem, em plano geral, metade de uma pessoa, em plano médio, o rosto
de alguém, em close.
5 MARTIN, 1990, p. 31.
6 Ibid.
7 Ibid., p. 32.
8 DELEUZE, 1983, p. 63.

impulso 12 janeiro 99
Impulso.book Page 13 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

CÂMERA OLHO
A idéia da câmera como um olho que observa a realidade teve
sua origem no movimento de vanguarda russo, nos anos 20, com o ci-
neasta Dziga Vertov, em O homem da câmera (1929), que preconizava
um cinema revolucionário ancorado no realismo: um cine-olho (kino
glaz), entendido como cinema-verdade (kino pravda), em que a câme-
ra registra os fatos tais como eles ocorrem, sem encenação. Para ele, a
interferência deve ocorrer só na montagem.
Mostrar as pessoas sem máscara, sem maquilagem, ler seus pen-
samentos desnudados pela câmera era o que Vertov buscava, acredi-
tando no cine-olho como “a possibilidade de tornar visível o invisível
(...) desmascarar o que está mascarado”.9
A câmera de Dziga Vertov estava à procura de uma verdade con-
tida no mínimo gesto, em cada expressão: o homem no seu ambiente.
Ele acreditava que, ao desvendar imagens do cotidiano, a câmera ofe-
rece uma possibilidade de compreensão da realidade que o cerca.
Vertov opunha-se ao cinema expressionista alemão, que desfigu-
rava a realidade com enquadramentos oblíquos e luzes projetadas de
baixo para cima, a Sergei Eisenstein, seu compatriota, em Encouraça-
do Potequim (1925), pela interferência na realidade com encenações
teatrais, e aos filmes de aventura americanos, porque eram “cheios de
dinamismo espetacular”.
Através do Grupo Kinoks, criado por Vertov, manifestos defen-
diam todas as instâncias da realização cinematográfica em torno de
uma postura de cine-olho: “para ajudar a máquina-olho, existe o pi-
loto Kinok, que não apenas dirige os movimentos do aparelho como
também se entrega a ele para vivenciar o espaço”,10 “um mergulho
vertiginoso de acontecimentos visuais decifrados pela câmera”, numa
proposta de “libertar a câmera reduzida a uma lamentável escravidão,
submetida que foi à miopia do olho humano”.11
O cine-olho, que revela o homem nas ruas, no trabalho, em ce-
nários reais, foi retomado no pós-guerra com o neo-realismo italiano
(anos 40). Influenciou a nouvelle vague francesa (anos 50/60), o cine-
ma novo brasileiro (anos 60) e contribuiu para o fortalecimento de
uma estética peculiar do cinema latino-americano de resistência. E essa
câmera na mão, que percorre o cotidiano da vida em busca de uma
transparência da realidade, definiu um cinema que mescla documen-
9 VERTOV in XAVIER, 1991, p. 252.
10 Ibid.
11 Ibid., p. 253.

impulso 13 janeiro 99
Impulso.book Page 14 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

tário e ficção, como Ladrões de bicicleta (1945), de Vitorio de Sica e


roteiro de Zavattini: a câmera perambula pela cidade, acompanhando
os personagens em suas andanças, captura acontecimentos ao acaso e
os incorpora à narrativa. Zavattini insistia que era preciso “colocar as
câmeras nas ruas, em uma sala, olhar com insaciável paciência, treinar
na contemplação de nosso semelhante em suas ações elementares”.12
Para Zavattini, importava “captar a duração real da dor do ho-
mem e de sua presença diária, não como homem metafísico, mas
como o homem que encontramos na esquina e para o qual essa du-
ração deve corresponder a um esforço real de nossa solidariedade”.
O crítico e teórico francês André Bazin percebia no comporta-
mento do neo-realismo um respeito pela integridade fenomenológica
dos fatos, “da desordem amorfa da realidade, que ele tira sua origina-
lidade”.13
Já o surrealismo via o mundo de outra forma. Em Un chien An-
dalou (1928), Luiz Buñuel, precursor desse movimento estético, em
parceria com Salvador Dali, tornava a câmera captadora de uma outra
dimensão da realidade, da expressão do mundo onírico.
No texto Cinema, instrumento de poesia,14 Buñuel aponta di-
vergências com o neo-realismo:
Para um neo-realista, um copo é um copo e nada mais; nós
o veremos ser tirado do armário, levado à cozinha onde a
empregada o lave e talvez o quebre, o que pode ou não cus-
tar-lhe o emprego etc. Mas este mesmo copo visto por seres
diferentes pode ser milhares de coisas, pois cada um trans-
mite ao que vê uma carga de afetividade; ninguém o vê tal
como ele é, mas como seus desejos e seu estado de espírito
o determinam.15
O cinema de Buñuel propunha uma ampliação da visão através
da imagem-sonho, que revela o inconsciente. Já a vanguarda america-
na dos anos 50 buscava um olhar sensorial que dá à câmera um outro
sentido, ao navegar por formas e texturas. Stan Brakhage, um dos cri-
adores da Vanguarda americana, imagina um “ver” por meio de um
olho que se desloca do corpo:
Imagine um olho não governado pelas leis fabricadas de
perspectiva, um olho livre de preconceitos, de lógica da com-
posição, um olho que não responde aos nomes que a tudo se
12 ZAVATINI, Cesare. Apud: XAVIER, 1984, p. 58.
13 BAZIN, 1983, p. 258.
14 BUÑUEL, Luiz in XAVIER, 1991, p. 333.
15 Ibid.

impulso 14 janeiro 99
Impulso.book Page 15 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

dá, mas que deve conhecer cada objeto encontrado na vida


através da aventura da percepção.16
Experiências com texturas em interferências no próprio celulói-
de, a câmera decodificando o olhar do artista com desfoques e lente
macro para observar, por exemplo, a textura da pele do corpo em for-
mas e movimentos, como uma pintura abstrata, eram realizadas pelo
cinema underground norte-americano.
Produzindo tais ruídos na comunicação do espectador com
o que a câmera “mostra”, ele convida a platéia a ter uma ex-
periência sensorial, organizada dentro de outros parâmetros
e chama a atenção para a textura da tela, como superfície bi-
dimensional, e não como a janela que se abre para um es-
paço tridimensional.17
Stan Brakhage enfatiza as sensações, em detrimento da narração
ou da montagem; por isso, dá importância à câmera que observa os re-
cônditos lugares que o olho físico não percebe.
Se na vanguarda americana a câmera passeia em primeiríssimos
nebulosos planos, na nouvelle vague francesa ela transpõe os limites
do quadro e mostra o que está fora de campo: a equipe técnica em
ação. Jean Luc Godard, Acossado (1960), um dos principais cineastas
da nouvelle vague, alcança os espaços fora da linha divisória do qua-
dro, como se quisesse revelar, desnudar o processo de construção ci-
nematográfica, fazendo com que o espectador participe da intenção de
quem vê. E os atores, ao falarem diretamente para a câmera, atribuem-
lhe a função de interlocutora.
No filme Moi, un noir, Jean Rouch dá destaque à câmera inter-
locutora quando põe os personagens em diálogo com ela; ao invés de
ignorarem a sua presença, relevam a sua existência, ou seja, a existên-
cia de um espectador. “É em torno das interações constantemente mó-
veis entre os personagens e os instrumentos que os registram que se ar-
ticula o desenvolvimento formal de Moi, un noir.”18
No Brasil, experiências com a câmera na mão foram realizadas
pelo cinema novo, principalmente pelo cineasta Glauber Rocha, que
a deslocava com uma mobilidade estonteante. Em Terra em transe, a
câmera se agita mirabolante em torno dos personagens. No filme cur-
to Câncer, Glauber Rocha pega na câmera e experimenta a resistência
dos atores, utilizando como parâmetro o tempo de duração da corda
da câmera.19 Enquanto havia corda, o ator Antônio Pitanga dialogava
16 BRAKHAGE, in XAVIER, 1991, p. 341.
17 XAVIER, 1984, p. 102.
18 BURCH, 1992, p. 143.

impulso 15 janeiro 99
Impulso.book Page 16 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

com a câmera, de improviso, num crescendo até a saturação. Para José


Carlos Avelar, é através de procedimentos como esse que “nasce um
cinema direto, com todas as suas tendências e com ele um mundo com
formas narrativas inteiramente novas, introduzindo mudanças no pa-
pel da câmera”.20
Essa forma de trabalhar com a câmera apontada para o ator num
tom de provocação está presente nas atuais produções independentes
de vídeo.
Nos anos 60, uma câmera perambulante e observadora ganhou
as ruas periféricas, os vilarejos do interior, o sertão e as ruelas dos mor-
ros, no primeiro movimento cinematográfico do Terceiro Mundo: o
cinema novo brasileiro, que tinha por lema a frase, cunhada por Glau-
ber Rocha, “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”. A proposta
cinemanovista era subverter o modelo hollywoodiano de produções
em série e câmeras bem posicionadas nos estúdios, que registravam só
o que estava maquiado dentro do quadro. Esse modelo de cinema
concretizava-se no Brasil através da Companhia Vera Cruz, em São
Bernardo do Campo. “Como pode um autor olhar o mundo embe-
lezado pela maquiagem, iludido com refletores, falsificado com ceno-
grafia de papel, disciplinado por movimentos automáticos?”21
Com o cinema novo, a câmera na mão ganhou um sentido de
mobilidade do olho que vê em volta, acima e abaixo, e não só o que
está na frente, num cinema ansioso por revelar o país e compreender
o subdesenvolvimento. No processo de revelação, o cinema novo in-
ternalizou a crise brasileira e incorporou o subdesenvolvimento na
própria construção cinematográfica. “O desejo de descobrir, revelar e
discutir o país provocou uma forma cinematográfica, onde a câmera
na mão do realizador via as coisas cara a cara, insegura, interessada,
nervosa, como se estivesse em transe.”22
O chamado cinema de resistência, com cineastas no Brasil como
Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Leon Hirzman, desen-
volvia-se também em outros países da América Latina, como na Ar-
gentina, com os cineastas Fernando Birri – fundador da Escola Docu-
mentarista de Santa Fé e autor do filme Los inundados – e Fernando
Solanas – La hora de los hornos (1966), que encabeçou o movimento
Cine Liberacion –, em Cuba, com Tomas Gutierrez Alea – Memórias
del subdessarrolo (1967) e, mais recentemente, Morango e chocolate
19 Antes da câmera à bateria, usava-se a câmera à corda, que durava sete minutos.
20 AVELAR, 1985, pp. 3-5.
21 Ibid.
22 PEIXOTO, 1993, p. 245.

impulso 16 janeiro 99
Impulso.book Page 17 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

(1994) –, e no Chile, com Miguel Littin – El chacal de Nuelthoro


(1968/69).
Essa câmera curiosa registrou para o filme Iracema, de Jorge Bo-
danski e Orlando Senna, momentos reveladores de acaso, durante
uma viagem pela Amazônia, quando o ator Paulo César Pereio mistu-
ra-se às pessoas do lugar, enquanto personagem caminhoneiro, para
desenrolar os depoimentos. Já em Cabra marcado para morrer, Eduar-
do Coutinho trabalha no tênue limite entre ficção e documentário, ao
emprestar um tratamento diegético aos fatos.
Por outro lado, os filmes norte-americanos, cuja matriz em Ho-
llywood desenvolvera uma fórmula para fazer filmes em série, conti-
nuam praticando mirabolâncias com as câmeras, em movimentos que
se assemelham a um parque de diversões, nos chamados filmes de
ação, e nos filmes-catástrofe, em que a câmera se desloca cada vez mais
do seu eixo para filmar desastres, explosões, acidentes, arrombamen-
tos e perseguições, com novos mecanismos, como requintadas gruas
que transportam a câmera, sem a presença do cameraman, para os lu-
gares perigosos.
Nos anos 80, com a facilidade de acesso às câmeras de vídeo que
gravam imagens em fitas magnéticas sem necessidade de passar por
um processo de revelação, os independentes, os artistas e os movimen-
tos populares apropriam-se da câmera. No movimento popular, os ob-
servados do cinema novo passam então à condição de observadores:
agricultores, sem-terra, mulheres, índios e negros aprendem a olhar
através da câmera, desmistificando o aparato e realizando seus própri-
os vídeos. Várias formas de utilização da câmera são desenvolvidas,
seja através do vídeo-processo, em que a câmera é um recurso peda-
gógico que funciona como memória de um processo, seja pelo vídeo-
produto, utilizado para a formação das comunidades envolvidas nos
projetos.
Nos anos 90, a câmera passa a rever sua trajetória, inspirando-
se nos movimentos ocorridos no século, desde Lumière e Méliès: ex-
pressionismo e vanguarda russa, nouvelle vague e Hollywood, docu-
mentário e melodrama, numa mistura de gêneros e de formas. Giran-
do em torno da multiplicidade, da diversidade do fragmento, hibridis-
mo que mistura gêneros e formas num caldeirão em busca da síntese.
Às vezes, são imagens fragmentadas, picotadas e quebradas que
invadem as telas. Imagens que fogem do quadro, sem deixar rastros,
em corridas aceleradas que proliferam em quantidades tais que dois
olhos são pouco para observá-las. Outras vezes, imagens ralentadas
num tempo de descoberta, a busca da essência, o registro do mínimo

impulso 17 janeiro 99
Impulso.book Page 18 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

gesto, como imaginava Dziga Vertov, do movimento cine-olho. Ima-


gens que se organizam hoje de forma linear ou não-linear, em narra-
tivas ou poéticas, com estruturas abertas, inserindo o espectador na
construção do percurso.
Com o advento do controle remoto e do chamado “efeito zap-
ping” e os múltiplos canais, a câmera passa a buscar outros modos de
olhar, uma certa exploração dos espaços e mentes, tal como propunha
Brakhage.
Imagens desencadeiam emoções e, como numa linguagem mul-
timídia, posso acessar na memória aquelas que me tocaram e construir
um trajeto narrativo. Por exemplo: vejo a imagem de um policial ma-
tando um assaltante num shopping, captada por uma câmera-olho de
prontidão; zapando através do controle remoto, capturo em seguida
outra imagem, a de um lindo carro vermelho num comercial; outro
zapping e aparece um grupo de presos assassinados, mais outro e uma
melodramática cena de novela, aperto novamente o botão e vejo as
crianças chacinadas da Candelária e, mais um, um menino comendo
iogurte com o rosto dentro de uma geladeira cheia. O próprio espec-
tador edita as imagens, ao mudar de canal.
Arlindo Machado distingue, nessa linha, duas tendências opos-
tas, embora semelhantes na aparência: “de um lado, as mensagens es-
tariam se deteriorando na direção da inércia absoluta (...) e, de outro,
uma tendência no sentido de buscar modelos de organização mais
complexos, menos previsíveis, mais abertos ao papel do acaso”.23

CÂMERAS VIGILANTES
Nesse final de século, a câmera ganhou também uma outra fun-
ção: câmeras ligadas em vários pontos do planeta enviam imagens
para outros tantos vários pontos. De observadoras dos fatos, passam
a fazer parte deles, exercendo funções de cumplicidade, testemunha
ou vigilância. As câmeras que vigiam têm espaço garantido nesse ce-
nário “e se distribuem como uma rede sobre a paisagem social”.24
Essas câmeras vigilantes, que Paul Virilio chama “máquinas de vi-
giar”, estão espalhadas pelos supermercados, pelas entradas de prédi-
os, dentro das empresas comerciais, com a função de espionar o mo-
vimento dos empregados e dos compradores. “Os sistemas eletrônicos
de vigilância se multiplicam em progressão geométrica por toda a par-
te.”25
23 MACHADO, 1993, p. 164.
24 Ibid., p. 220.
25 VIRILIO, 1993, p. 26.

impulso 18 janeiro 99
Impulso.book Page 19 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

A própria televisão assume, muitas vezes, o papel da máquina de


vigiar: outro dia, num telejornal, um senhor assustado parecia pedir
socorro à câmera, como se ela pudesse interferir no que lhe estava
acontecendo. Ao fundo, um locutor eloqüente vangloriava-se do fla-
grante: “Acaba de ser preso”, e, logo abaixo, nos caracteres, a identi-
ficação em letras azuis “marginal”. “Não se trata de isolar pelo encar-
ceramento o contagioso ou o suspeito, trata-se sobretudo de intercep-
tá-lo em seu trajeto.”26
Para Arlindo Machado, o chamado jornalismo investigativo con-
funde-se cada vez mais com a investigação policial propriamente dita,
a ponto de realizar muitas vezes o sonho bethamiano de uma socie-
dade auto-vigiada.27
Mas outras câmeras em outros pontos provocam ações de rebel-
dia contra o estabelecido: em 1994, na Inglaterra, um grupo de ma-
nifestantes, entre eles, ecologistas, squaters (que ocupam casas aban-
donadas) e desempregados, subiu no telhado do parlamento inglês
para protestar contra a lei de justiça criminal, que proíbe protestos em
manifestações públicas. A encenação, gravada por uma câmera de ví-
deo do grupo manifestante, foi exibida posteriormente pelos canais de
TV ingleses. A lei que proíbe protestos em manifestações públicas não
proíbe imagens de protestos veiculados pelos canais de TV.
Durante a manifestação da Primavera de Pequim, os estudantes
pediram aos jornalistas e às câmeras na Praça Tienanmen que regis-
trassem os protestos. No Brasil, é comum presos, quando promovem
rebeliões com reféns, exigirem a presença de jornalistas, munidos de
câmeras, como testemunhas da negociação. Isso denuncia que alguns
fatos só acontecem pela presença da câmera. Para Baudrillard, a ima-
gem contemporânea está caracterizada pela imagem-simulacro. Essa
observação indireta dos fatos, sem a participação física, é chamada por
Paul Virilio tele-observação, “imbricação desmesurada de ação e de
teleação de presença e de telepresença à distância”.28
Já Antônio Negri defende esse espaço multimidiático como “es-
paço de luta para a transformação social. (...) É dentro desse novo
campo que se deve travar o debate”.29
O movimento de vídeo popular ou de vídeo para a democrati-
zação da informação, que, nos anos 80, expandiu-se por vários países,
atua na contramão dos meios massivos. O grupo Paper Tiger, nos Es-
26 MACHADO, 1993, p. 232.
27 Ibid.
28 Ibid., p. 174.
29 Ibid.

impulso 19 janeiro 99
Impulso.book Page 20 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

tados Unidos, por exemplo, realiza em vídeos uma leitura crítica dos
programas de TV e os exibe via satélite para vários pontos do país. O
grupo Small Word, na Inglaterra, e o Zebra, na Escandinávia, movi-
mentam-se em busca de um olhar alternativo. No Brasil, as TVs de
rua, como a TV Maxambomba, no Rio de Janeiro, e a TV Viva, em
Recife, utilizam-se do espaço da rua tanto para gravar quanto para exi-
bir o que foi gravado, tornando possível uma interação entre o público
que participa e o grupo que grava, numa proposta de diálogo para a
construção da cidadania.
Esses grupos alternativos estão congregados numa organização
denominada Coalizão Mundial Videazimut, com sede no Canadá, cri-
ada com o propósito de lutar por espaços de informação audiovisual
e aprimorar a produção independente.
Pela acumulação de comunicação, a consciência do ser hu-
mano se transforma e ele se torna capaz de um reconheci-
mento coletivo dessa ampliação das possibilidades de saber,
das capacidades de transformação únicas que podem asse-
gurar mais liberdade.30
Já o movimento de videoarte, utilizando como tema a própria
mídia e suas imagens viciadas, cria um olhar crítico ao incorporar, na
narrativa audiovisual, o fragmento e a dissociação, próprios da lingua-
gem pós-moderna.
Se as imagens incidem sobre nossa forma de conhecer, pensar,
aprender e sentir, e essas formas imagéticas contemporâneas criam no-
vas formas de compreensão do mundo e novos modos de apreender
a realidade, é preciso criar condições para uma leitura da imagem, or-
ganizar o olhar numa espécie de alfabetização audiovisual que propor-
cione o desnudamento dos processos de criação e de realização. Des-
vendando os códigos da imagem, teremos como fazer as conexões
nessa grande multimídia que é a sociedade contemporânea.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMENGUAL, Barthelemy. Chaves do Cinema. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 1971.
AVELAR, Antônio Carlos. Conversa Indisciplinada. In: Documentos
do Cinema Latino-americano. Publicado pelo Comitê dos Cine-
astas Latino-americanos, 1985.
30 NEGRI, Infinitude da Comunicação/Finitude do Desejo. In PARENTE, 1993, p. 174.

impulso 20 janeiro 99
Impulso.book Page 21 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

BAZIN, André. O Cinema. São Paulo: Braziliense, 1983.


BERNARDES, Antonio Carlos & HUREAU, Nathalie. Cinetruc: les
effets et les trucages au cinema. Tese de “memoire”, INSAS –
Institut National Superieur des Arts du Spetacle et Techniques de
Diffusion, Bruxelles, 1980.
BURCH, Noel. Praxis do Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992.
DELEUZE, Gilles. Imagem Movimento. São Paulo: Braziliense, 1983.
MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário. São Paulo: Edusp,
1993.
__________ Pré-cinemas & Pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.
MARTIM, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brazili-
ense. 1990.
NEGRI, Antônio. Infinitude da Comunicação/Finitude do desejo. In:
Imagem Máquina. André Parente (org.). Rio de Janeiro: Editora
34, 1993.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Passagens da imagem, pintura, fotografia,
cinema, arquitetura. In: Imagem Máquina. André Parente (org.).
Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes,
1990.
VIRILIO, Paul. Inércia Polar. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993.
XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984.
__________ A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1991.

impulso 21 janeiro 99
Impulso.book Page 22 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 22 janeiro 99
Impulso.book Page 23 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

O Livro
Evangélico
no Brasil
The protestant
book in Brazil
RESUMO – Ao lado de outras estratégias de comunicação, a publicação de livros era
parte integrante do projeto fundante implantado no Brasil pelos missionários pro-
testantes pioneiros, depois da segunda metade do século XIX. Ao final do século
XX, as casas publicadoras protestantes ainda utilizam os livros como forma impor-
tante de expansão e apoio a seu projeto de fé. Há dois tipos de casas publicadoras,
segundo a sua forma de controle: as editoras do primeiro tipo são denominacio-
nais, pois são mantidas e controladas por igrejas de âmbito nacional, enquanto as
do segundo tipo são privadas, porque mantidas por famílias ou empresários pro-
testantes. Nos dois casos, elas são projetadas para disseminar suas respectivas cren-
ISRAEL BELO DE AZEVEDO
ças religiosas. Em termos de política editorial, a grande maioria (92%) contém ma- israel@ugf.br
terial dogmático, inclusive a exposição bíblica, e a sistematização doutrinária. A Doutor em Filosofia pela UGF.
maior parte destes livros é traduzida do inglês ou escrita por missionários ameri- Vice-Reitor Acadêmico da UGF-RJ

canos. Em termos de marketing, os protestantes constituem um público importan-


te, pois perfazem 10% a 20% da população brasileira. Apesar do fato de perten-
cerem aos estratos sociais mais baixos, os protestantes brasileiros têm grande inte-
resse no consumo de itens religiosos, e podem ser alcançados de maneiras distintas.

Palavras-chave: editoração – livro, história do – livro evangélico – protestantismo


brasileiro.

ABSTRACT – Alongside other strategies of communications, publishing books was


an integrating part of the founding project brought by pioneer protestant missi-
onary in Brazil after XIX century's second half. By the end of XX century, the
protestant publishing houses still use the books as important ways of spread and
support their faith. There are two kinds of publishing houses as for their control,
being ones denominational, because they are held by established national chur-
ches, and others private, because they are held by protestant enterpreneurs or fa-
milies. All of them are designed to disseminate their religious creeds. In terms of
editorial policy, the great majority (92%) contains dogmatic material, including
bible exposition, and doctrinary sistematization. The most part of these books
were translated from the English or written by American missionaries. In terms
of marketing the protestant people are an important public, since they are 10%
to 20% of Brazilian population. In spite of the fact they belong to low social stra-

impulso 23 janeiro 99
Impulso.book Page 24 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

ta, the Brazilian protestants have a great interest to consume religious itens, and
there are different ways to be reached.
Keywords: brazilian protestantism – book, history of – printing – protestant book.

INTRODUÇÃO

M
uito antes da avalanche de livros religiosos,1 que tem carac-
terizado a última década do milênio, as publicações evangé-
licas vêm se constituindo num indispensável segmento da
indústria das publicações evangélicas. A história desta in-
dústria está por ser feita, como o está também para ser escrita a da in-
dústria do livro em geral, independentemente da segmentação do seu
público preferencial.
É muito difícil precisar-se o número de exemplares, de livros e
revistas, publicados por editoras evangélicas, à disposição dos leitores.
Algumas informações suplementares, no entanto, permitem ver a ex-
tensão das atividades deste ramo.
O autor mais vendido entre os evangélicos é o pastor Caio Fábio
D'Araújo Filho, cujo público compreende leitores em todas as igrejas.
Só ele, em dez anos de atividades, já vendeu mais de um 1,5 milhão
de exemplares, em cerca de 50 títulos diferentes.2 A cada trimestre, os
batistas, que não são o maior grupo, mas estão entre os que mais ên-
fase dão à instrução, vendem 675 mil exemplares de revistas educati-
vas.3 Durante a Bienal Internacional do Livro (São Paulo, 1994), a edi-
tora paulista Mundo Cristão lançou um livro de reportagens sobre um
grupo de jogadores de futebol conhecidos como “atletas de Cristo”.
Em três semanas, o título4 vendeu três edições (cerca de 18 mil exem-
plares), número bastante elevado para os padrões gerais brasileiros.5
Essas breves informações devem ser acrescidas do fato principal
de que a editoração evangélica nasceu com o próprio aparecimento do

1 De 1990 a 1993, esse tipo de publicações saltou, quanto aos exemplares publicados, de 25 milhões para
48 milhões no país, segundo dados da Câmara Brasileira do Livro. Cf. Boletim Bienal 94, n. 5, p. 3.
2 Informação fornecida por Mauricio Lacerda, gerente de marketing da editora Vinde, em Niterói, de pro-
priedade da entidade presidida pelo autor. Os dados incluem títulos de outras editoras.
3 Os dados referem-se aos batistas da Convenção Batista Brasileira, cujos periódicos são publicados por
quatro editoras, mas distribuídos pela Juerp. Há outras editoras ligadas a outros grupos batistas, como os
regulares (Imprensa Batista Regular), os independentes e os bíblicos, entre outros. A informação foi forne-
cida por Carlos Alberto de Oliveira, da gerência de apoio comercial da Juerp, no Rio de Janeiro. Os dados
referem-se aos pedidos efetivos, consignados para envio, em setembro de 1994.
4 RIBEIRO, 1994.
5 Informação fornecida por Marcos Simas, gerente de marketing da Editora Mundo Cristão.

impulso 24 janeiro 99
Impulso.book Page 25 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

movimento evangélico no país. A Juerp, por exemplo, começou suas


atividades em 1901 publicando um jornal, mas, desde 1885, os batis-
tas atuam neste campo. Há outras editoras evangélicas ainda mais an-
tigas.
Nesse pequeno espaço, o que se pretende é indicar algumas
achegas à história da editoração evangélica no Brasil.6 Dado o caráter
marginal do protestantismo na história das idéias sociais no Brasil, co-
meça-se por uma síntese da ação e da reflexão destes grupos no país,
para, então, oferecer-se um rápido painel da editoração evangélica
propriamente dita.7

SÍNTESE HISTÓRICA NECESSÁRIA


O Brasil foi pensado como tendo sido forjado pela ausência criada
pela presença de uma Roma distante. A chegada do protestantismo foi
interpretada como uma ação do espírito de Deus sobre esta cultura, para
redimi-la e impulsioná-la ao progresso.
Para uma tipologia genética
Assim, o nascimento do protestantismo no Brasil faz parte tam-
bém de um bloco histórico, por fatores independentes ligados à des-
coberta do(s) continente(s) latino-americano(s), como natureza a ser
explorada, terra a ser cultivada, economia a ser perifericizada, cultura
a ser dominada e povo a ser convertido.
Assim, pode-se pensar na introdução do protestantismo no Brasil
como fruto de cinco aproximações.8
A primeira entrada, ocorrida nos séculos XVI e XVII, bem po-
deria caracterizar um certo protestantismo de piratas, já que foi
contemporânea dos primeiros esforços colonizatórios, quando cobiça-
ram nossas costas navios inlusos, inclusos neles piratas europeus, mui-
tos deles protestantes;9 viajantes, alguns dos quais protestantes (como
Hans Staden, Alexander von Humboldt, Carlos F. P. von Martius, en-
tre outros), interessados em estudar (cientificamente) a fauna (a huma-
na – indígena – inclusive) e a flora da terra; e membros de empreen-
dimentos colonizadores heterodoxos: os huguenotes da França Antár-
tica (1555) e os calvinistas da Igreja Evangélica Holandesa do Nordes-
te (1630-1645). Esses protestantes, calvinistas (quase) todos, talvez
6 Sobre essa história há uma pesquisa ampla, mas parcial, feita por BEDA, 1993. Não tive acesso ao texto,
mas, segundo o autor, seu escopo limita-se à experiência presbiteriana, congregacional e metodista ao início
do século XX.
7 Aqui, os termos evangélico e protestante são usados como sinônimos.
8 Para uma síntese e tipologia, ver AZEVEDO, 1980. Ver também MENDONÇA, 1990, pp. 16-18.
9 Cf. NANTES, 1979, que relata ser um terço da tripulação do navio em que veio constituído de protes-
tantes.

impulso 25 janeiro 99
Impulso.book Page 26 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

certos da in-predestinação natural dos trópicos, não deixaram qual-


quer vestígio de comunicação de sua fé.
A segunda introdução, já no século XIX, foi um protestantismo
de estrangeiros desenvolvido por técnicos, funcionários de missões di-
plomáticas, marinheiros, colportores, etc., para quem era providenci-
ado serviço religioso em suas línguas.10
A terceira decorreu na imigração para o Brasil a partir do século
XIX. Esse protestantismo de imigração surgiu como uma conseqüên-
cia direta do esforço colonizatório, por meio do incentivo à vinda de
mão-de-obra da Europa para cultivar o solo brasileiro. Esses imigran-
tes (muitos) eram protestantes: ingleses anglicanos (1810), espalhados
pela região costeira,11 suíços luteranos, no Rio de Janeiro (1824), e
alemães luteranos (1863), principalmente no sul, nos primórdios,12
norte-americanos batistas (1870), em São Paulo,13 e letos, em Santa
Catarina (1892).14
Esses protestantes (bem como os estrangeiros), congregados em
colônias (muitas delas ainda existentes) fechadas ou semi-fechadas, ti-
nham na fé um elemento de sua formação, trazendo-a para cá e cul-
tivando-a aqui;15 conquanto isto pudesse acontecer, não a comunica-
ram aos brasileiros, embora tenham contribuído, só por sua presença,
para uma aceitação de outra forma de protestantismo, posteriormente.
Por certo, devido também a alguma influência do movimento
migratório, teve início, a partir da segunda metade do século XIX, um
novo tipo de protestantismo,16 fruto da iniciativa das sociedades mis-
sionárias estabelecidas, que enviam e assalariam missionários.17
A última etapa do estabelecimento protestante no Brasil inicia
ainda na República Velha, com a chegada de missionários estrangeiros
sem um suporte institucional estrangeiro regular e, por isso, dispostos
a viver “pela fé”. Eles acabaram formando igrejas, como as pioneiras
Congregação Cristã no Brasil (fundada por Luigi Francescon, em
1910, no Paraná) e Assembléia de Deus (iniciada por Daniel Berg e
Gunnar Vingren, em 1910, no Pará). O movimento se desenvolveria
10 VIEIRA, 1980.
11 RIBEIRO, 1973.
12 DREHER, apud: PRIEN, 1978.
13 OLIVEIRA, 1985.
14 RONIS, 1974.
15 DREHER, op. cit.
16 Novo não quanto à doutrina, mas quanto ao projeto para o Brasil.
17 Vieram agentes congregacionais (Robert R. Kalley, em 1855, no Rio de Janeiro), presbiterianos (Ashbel
G. Simonton, em 1859, no Rio de Janeiro), metodistas (John J. Ranson, em 1878, no Rio de Janeiro),
batistas (William B. Bagby e Zachary C. Taylor, em 1882, na Bahia) e episcopais (Lucien L. Kinsolving e
Watson Morris, em 1890, no Rio Grande do Sul).

impulso 26 janeiro 99
Impulso.book Page 27 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

consideravelmente a partir dos anos 30, com ramificações e sub-


ramificações.
O estatuto jurídico do protestantismo foi se alterando aos pou-
cos, tendo sido permitido no Reinado, tolerado no Império e livre na
República. No final do período colonial, o artigo XII do Tratado do
Comércio e Navegação, assinado em 1810 por Portugal e Inglaterra,
oferecia a tolerância religiosa.18
A Constituição de 1824, para garantir a religião (católica) do Es-
tado, manteve a tolerância de 1810. O Código Criminal buscava de-
fender até os cultos acatólicos, proibindo que se viesse a “abusar ou
zombar de qualquer culto estabelecido” e a se “propagar (...) doutrinas
que diretamente destruam as verdades fundamentais da existência de
Deus e da imortalidade da alma”,19 pechas que não se lhe podiam im-
putar.
O decreto 119-A do governo provisório estabelecia, em 1890,
que a todas as confissões religiosas pertencia “por igual a faculdade de
exercerem o seu culto, regerem-se segundo sua fé e não serem con-
trariados nos atos particulares ou públicos”, a todos cabendo “o pleno
direito de se constituírem e viverem coletivamente, segundo o seu cre-
do e a sua disciplina, sem intervenção do poder público”.20
O protestantismo de missão estabelecida21 viveu uma crise pere-
ne de identidade em duas direções: numa, o ser cristão; noutra, o ser
brasileiro.
Para simplificar, o Brasil conhece, quanto à matriz motriz, alguns
protestantismos:
• o luteranismo (que são dois: o germano/brasileiro e o germa-
no/norte-americano/brasileiro);
• o anglicanismo (que é a Igreja Episcopal do Brasil);
• o presbiterianismo (que são muitos, entre os quais: Igreja Pres-
biteriana do Brasil, Igreja Presbiteriana Independente, Igreja
Presbiteriana Renovada, Igreja Presbiteriana Unida);
• o congregacionalismo (que é a Igreja Fluminense);
18 O texto garantia aos súditos britânicos e aos outros estrangeiros “uma perfeita liberdade de consciência
e licença para assistirem e celebrarem o serviço divino em honra do Todo-Poderoso Deus, quer seja dentro
de suas casas particulares quer nas suas igrejas e capelas, (...) contanto porém que as sobreditas igrejas e
capelas sejam construídas de tal modo que externamente se assemelhem a casas de habitação; e também
que o uso dos sinos não lhes seja permitido para o fim de anunciarem publicamente as horas do serviço
divino, [comprometendo-se todos a] se conduzirem com ordem, decência e moralidade e de modo ade-
quado aos usos do país e ao estabelecimento religioso e político”. Cf. Apud: REILY, 1984, p. 28.
19 Apud: REILY, op. cit.
20 Apud: REILY, op. cit., p. 226.
21 Descartadas, pois, as outras formas permanecentes: protestantismos de imigração e de missão de fé.

impulso 27 janeiro 99
Impulso.book Page 28 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

• o movimento batista (em várias convenções, entre as quais a


Brasileira e a Nacional);
• o metodismo (na Igreja Metodista do Brasil e em outras).
Nos arcanos do inconsciente
Esses protestantismos não vive(ra)m sem teologia. Há uma teo-
logia orgânica não-sistematizada, mas muito forte. Há poucos livros de
teologia porque não são necessários. A teologia está nos textos devo-
cionais, nos estudos para educação religiosa, nos artigos para os jornais
e sobretudo nos hinos cantados pelas congregações.
Se se quer ler a teologia protestante brasileira, é nessas fontes que
se deve beber.22 Feito esse esforço, o resultado poderá surgir próximo
à síntese abaixo elaborada.

CARACTERÍSTICAS DO OLHAR PROTESTANTE BRASILEIRO


TENDÊNCIA SÍNTESE CARACTERÍSTICAS
• Mentalidade de seita sitiada
• Ênfase na Bíblia, em Jesus e
na justificação
O catolicismo como inimigo • Separação entre Igreja e
ANTICATOLICISMO
do cristianismo verdadeiro Estado
• Ética da diferença
• Denominacionalismo
• Evangelização guerreira
• Dualismo apocalíptico
• Niilismo (não adianta fazer
nada)
• Individualismo
• Voluntarismo
Ser cristão é navegar numa
PEREGRINISMO • Absenteísmo: pretensão
arca, como Noé
de neutralidade política
• Ênfase na dramaticidade
da conversão
• Supremacia da doutrina
sobre a ética
• Afirmação do livre-exame
da Bíblia
• Subordinação da experiência
Como a Palavra de Deus, a espiritual à Bíblia
BIBLICISMO
Bíblia é a autoridade final • Leitura atomizada e seletiva
• Interpretação literal e
devocional
• Eventual uso como amuleto

22 Para uma descrição desta teologia veja-se AZEVEDO, 1998 (trabalho em andamento).

impulso 28 janeiro 99
Impulso.book Page 29 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

O LIVRO EVANGÉLICO
A história da editoração evangélica confunde-se com a história
do próprio protestantismo brasileiro. O início das atividades editoriais
coincide com a chegada dos primeiros missionários. Esses estrangeiros
encontravam em livros, folhetos e jornais o meio pelo qual, além de
evangelizar e doutrinar, podiam se apresentar ao público brasileiro.
O paradigma foi sempre o mesmo.23 A primeira estratégia foi es-
crever para os jornais regulares já existentes. A segunda foi fundar os
seus. A terceira foi publicar folhetos, livros e hinário. As revistas (para
uso interno) vieram depois.24
Neste século e meio de protestantismo brasileiro, o cenário edi-
torial foi pontuado pelo esforço missionário. A produção editorial
continua sendo um campo de missão. Seguindo o desenvolvimento
das denominações, o primeiro momento foi dominado por casas edi-
toriais dirigidas por missionários e a serviço das denominações. A
Juerp (primeiramente Casa Publicadora Batista) é o exemplo típico
disso. Num segundo momento, a partir dos anos 60, surgiram missões
específicas de produção editorial, tais como as editoras Betânia e Vida,
que não estão ligadas a nenhuma denominação. Ao mesmo tempo, co-
meçaram a aparecer editoras de propriedade individual, por exemplo
a Bom Pastor, em São Paulo. Todas, daquelas a estas, afirmam-se existir
com a missão de servir às igrejas.
O crescimento editorial ensejou que, em 1988, essas publicado-
ras se organizassem numa associação para fins cooperativos. A Asso-
ciação Brasileira de Editores Cristãos (Abec), que só aceita editoras
evangelicistas,25 tinha, em 1994, trinta filiados, responsáveis por man-
ter em circulação 2.313 livros, além de revistas, jornais e folhetos.
Essas editoras podem ser assim classificadas:

23 Escrevendo em 1897, um historiador protestante mostrou as prioridades editoriais nos campos missio-
nários ao redor do mundo: publicação de Bíblias, folhetos evangelizadores e livros. BLISS, apud: CARPEN-
TER, 1994 (mss).
24 Para uma história dos primórdios congregacionais e presbiterianos, leia-se RIBEIRO, 1981, pp. 96-108.
Para o caso batista, veja-se PLAMPLIN in MEIN 1982, pp. 177-256. O desenvolvimento do Jornal Batista
está in AZEVEDO, 1983.
25 Um dos artigos da Abec pede aos filiados a assinatura de uma declaração de fé que afirma a inerrância da
Bíblia. Por essa razão, as editoras Imprensa Metodista, Sinodal e Concórdia (as duas últimas luteranas) não
podem se filiar. Segundo o pastor Eudes Martins da Silva (em entrevista ao pesquisador, no dia 19 de julho
de 1994), um dos seus líderes, a iniciativa visa coibir a entrada de grupos como os testemunhas de Jeová e
os adventistas.

impulso 29 janeiro 99
Impulso.book Page 30 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

ORIGEM DAS EDUTORAS EVANGÉLICAS


EDITORAS TIPO QUANTO À PROCEDÊNCIA TÍTULOS %
11 Denominacionais de origem estrangeira 1.171 50,6
01 Denominacionais de origem brasileira .006 00,2
10 Interdenominacionais de origem estrangeira .952
04 Interdenominacionais de origem brasileira .057
05 Interdenominacionais de propriedade individual .127
31 TOTAL 2.313 100
FONTE: CATÁLOGO ABEC 1994

Por essa quantificação, verifica-se que 50,9% da produção edito-


rial brasileira são controlados por editoras a serviço de denominações.
Elas surgiram como fruto da atividade missionária, mas, hoje, são diri-
gidas por suas denominações, tendo alcançado relativa autonomia edi-
torial e plena independência financeira. O segundo grupo é formado
por uma igreja que surgiu no Brasil e depois constituiu uma editora. O
terceiro grupo (41,2%) é constituído por editoras de missão, entendi-
das como filiais de editoras americanas ou como estabelecidas no Brasil
por entidades estrangeiras. Há um certo grau de autonomia nelas tam-
bém, dependendo de cada situação. No quarto grupo, contam-se as
editoras nascidas no Brasil, mantidas por missões de fé. No quinto gru-
po, encontram-se as editoras de propriedade individual de protestantes.
Esse quadro é útil para se entender as ênfases e a procedência dos
títulos. Ao todo, as trinta editoras ligadas à Abec ofereciam, em 1994,
afora publicações periódicas, 2.313 títulos diferentes.26 Uma compa-
ração com a produção disponível em 1979, com dados até 1975,27 re-
vela realidades merecedoras de consideração.
BIBLIOGRAFIA TEOLÓGICA BRASILEIRA
COMPARAÇÃO DA PROCEDÊNCIA DOS AUTORES (1979 X 1994)
1979 1994
PROCEDÊNCIA
TÍTULOS % TÍTULOS %
Estrangeiros traduzidos .917 54,2 1.370 59,2
Estrangeiros radicados .215 12,7 .110 4,8
Brasileiros .561 33,1 .764 33,0
Diversos – – .069 3,0
TOTAL 1.693 100, 2.313 100,
Fontes: BIBLIOGRAFIA TEOLÓGICA 1979 (ASTE) e CATÁLOGO ABEC (1994)

26 Nosso procedimento foi o seguinte: o catálogo (por gentileza da entidade, os dados foram trabalhados
valendo-se do banco de dados, antes de sua publicação) continha 2.750 títulos, entre livros, folhetos, revis-
tas, jornais, coleções e matérias didáticos. Para fins de análise, só mantivemos os livros.
27 MARASCHIN, DUSILEK & AZEVEDO, 1979.

impulso 30 janeiro 99
Impulso.book Page 31 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Nesses vinte anos, a correlação de origens dos títulos manteve-


se inalterada, com ligeiro crescimento para as traduções. A única mu-
dança foi a redução dos autores estrangeiros radicados no Brasil, ex-
plicável pelo processo de autonomização dos campos missionários.28
Em 1975, foi possível notar que os títulos ligados à teologia (doutrinas
e estudos bíblicos) eram, em sua grande maioria (79,5%), traduções.
Nos outros títulos, o predomínio foi menor (63,8%).29 Em geral, por-
tanto, a produção teológica não passa de traduções e/ou adaptações de
manuais norte-americanos, sem qualquer reflexão nacional, pressu-
posta a supranacionalidade do pensamento.30
PROTEÇÃO TEOLÓGICA PROTESTANTE
CLASSIFICAÇÃO POR ÁREA DE CONHECIMENTO
ÁREA TÍTULOS %
Teologia .824 35,6
Devoção .492 21,3
Educação .016 17,0
Entretenimento .330 14,3
História .170 7,3
Psicologia .271 11,7
Práticos .065 2,8
TOTAL 2.313 100,
Fonte: CATÁLOGO DA ABEC 1994

Na categoria “teologia”, os títulos de tratamento bíblico (comen-


tários, introduções, etc.), que respondem por 49% da produção, estão
quantitativamente no mesmo plano dos de sistematização teológica
(doutrinas gerais e específicas), que representam 48%. Os livros vol-
tados para a ética (incluídos os de interpretação da realidade brasileira)
são apenas 2,9% na categoria.
Os livros devocionais são aqueles voltados para instrução da vida
cristã no plano individual. Na categoria “educação” estão os livros de
orientação sobre o ministério docente das igrejas. O total é aparente-
mente pequeno, porque as revistas são o meio por excelência da edu-
cação religiosa no interior das denominações.
Na categoria “entretenimento” (14,2% do total) estão livros de
música, geralmente partituras para uso litúrgico (34% na categoria) e
infantis (42%), bem como livros de poesia (8,5%) e ficção (15,4%).
28 Na categoria “diversos” estão relacionados os títulos que não possíveis de classificação por imprecisão
do repertório empregado. Em 1975, não houve esse problema.
29 Em 1994 não era possível esse tipo de quantificação, também por imprecisão do catálogo.
30 Cf. AZEVEDO in: MATEUS, 1985, pp. 87-93.

impulso 31 janeiro 99
Impulso.book Page 32 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Na categoria “história” estão biografias (64%) e histórias denomina-


cionais.
Os livros de auto-ajuda respondem pela imensa maioria dos li-
vros do item “psicologia”. No levantamento publicado em 1979, todo
o item tinha pouco mais de dez títulos. Em 1994, eram 271.
Como os demais, o livro evangélico enfrenta também o proble-
ma da distribuição. Com relação ao material periódico, as editoras
evangélicas denominacionais encontraram uma solução. O material é
comprado em pacotes pelas igrejas locais, que os redistribuem (geral-
mente gratuitamente) aos participantes da comunidade. Esse consumo
compulsório explica as grandes tiragens dessas revistas educacionais.
Quanto aos livros propriamente ditos, as tiragens são pequenas,
oscilando entre dois e quatro mil exemplares. As igrejas locais têm pe-
quenas bibliotecas, cujas aquisições não são expressivas. Assim, as ven-
das de livros são feitas em livrarias (compras diretas) e pelas editoras
(telecompras). Além disso, ainda funciona o sistema de colportagem,
nascido para levar Bíblias e livros aos lugares mais distantes. De certo
modo, cada igreja local é um ponto de venda. Alguns chegam a ser li-
vrarias, que funcionam nos dias de culto.31 Isso, provavelmente, tem
tido o efeito de liberar seus teólogos para outros vôos.
Todavia, não se pode esquecer que, dadas as condições infra-es-
truturais (especialmente econômicas) da inserção dessas denominações
no Brasil, o fazer teológico não pode ser circunscrito à produção li-
vresca. Destarte, quem quiser ver a teologia protestante no Brasil terá
que assistir às aulas ministradas nos seminários, ouvir os sermões do-
minicais e os estudos de meio-de-semana, ler as revistas de treinamen-
to para grupos etários específicos e os jornais doutrinário-noticiosos e
cantar as canções que aparecem nos hinários.
Na primeira parte dos anos 90, havia nos seminários confessio-
nais evangélicos mais de seis mil alunos sendo treinados, para ativida-
des pastorais que incluem reflexão teológica, por professores forma-
dos no Brasil e no exterior, alguns dos quais exclusivamente dedicados
a este labor.
Nos púlpitos, está aquela teologia informal, nascida das necessi-
dades (pelo menos imaginadas) concretas das congregações e acom-
panhada por hinos (alguns) entoados há mais de um século a partir de
31 Para melhor compreender esses quadros, deve-se ter em consideração que, a partir de 1975, o que se
nota são comportamentos diferentes com base na extração do grupo religioso. Os mais diretamente preo-
cupados com o social, tanto teórica quanto praticamente, são os luteranos da IECLB, os metodistas e os
anglicanos. Essas denominações são exatamente aquelas caracterizadas por um desenvolvimento teológico
mais “escolástico”, em que os catecismos parecem representar selos finais em longas discussões teológicas.

impulso 32 janeiro 99
Impulso.book Page 33 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

hinários, como Salmos e Hinos (congregacional), Hinário Evangélico


(presbiteriano), Cantor Cristão (batista) e Harpa Cristã (pentecostal),
entre outros, sem contar as inúmeras canções anônimas e informais
que circulam de boca em boca.
E na imprensa, seja nas revistas de treinamento, que devem atin-
gir hoje mais de dois milhões de exemplares dirigidos, seja nos jornais,
cuja circulação deve superar os 800 mil, está a grande árvore do pen-
samento teológico, mesmo que, muitas vezes, acidental e geralmente
assistemática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABEC. Catálogo [de publicações] 1994.

ANTUNES DE OLIVEIRA, Betty. Centelha em Restolho Seco. Rio de


Janeiro: edição da autora, 1985.

AZEVEDO, Israel Belo de. A Celebração do Indivíduo: a formação


liberal do protestantismo batista brasileiro. Rio de Janeiro: 1995
(dissertação de Doutoramento – Universidade Gama Filho).

AZEVEDO, Israel Belo de. A Palavra Marcada: um estudo sobre a teo-


logia política dos batistas brasileiros. Rio de Janeiro, 1983.

AZEVEDO, Israel Belo de. As Cruzadas Inacabadas: introdução à his-


tória da Igreja na América Latina. Rio de Janeiro: Gêmeos,
1980.

AZEVEDO, Israel Belo de. A teologia supranacional dos batistas. In:


MATEUS, Odair Pedroso (ed.). Teologia no Brasil: teoria e prá-
tica. São Paulo: Aste, 1985.

AZEVEDO, Israel Belo de. O Outro Liberalismo (trabalho em anda-


mento).

BEDA, Epraim de Figueredo. A editoração evangélica no Brasil. São


Paulo, 1993 [Tese de Doutoramento. ECA/USP].

DREHER, Martin N.K. Kirche und Deustschtum in der Entwicklung


der EKLBB, apud: PRIEN, Hans J. Die Geschiehte des Christen-
tums in Lateinamerika. Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1978.

impulso 33 janeiro 99
Impulso.book Page 34 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

CARPENTER, Mark L. Missões e Editoração: o livro cristão no Brasil.


São Paulo,1994.
MARASCHIN, J., DUSILEK, D. & AZEVEDO, I.B. (org.). Bibliogra-
fia Teológica. São Paulo: Aste, 1979.
MARTINHO DE NANTES. Relação de uma Missão no Rio São Fran-
cisco. São Paulo: Nacional, 1979.
MEIN, David (ed.). O que Deus tem feito. Rio de Janeiro: Juerp, 1982.
MENDONÇA, Antônio Gouvêa. Introdução ao Protestantismo no
Brasil. São Paulo: Loyola, 1990.
PLAMPLIM, C.G. Educação religiosa e publicações. In: MEIN, David
(ed.). O que Deus tem feito. Rio de Janeiro: Juerp, 1982
PRIEN, Hans-J. Die Geschichte des Christentums in Lateinamerika.
Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1978.
REILY, A.D. História Documental do Protestantismo no Brasil. São
Paulo: Aste, 1984.
RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo e Cultura Brasileira: aspectos
culturais da implantação do protestantismo no Brasil. São Paulo:
Casa Editora Presbiteriana, 1981.
RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil Monárquico. São
Paulo: Pioneira, 1973.
RONIS, Osvaldo. Uma Epopéia de Fé. Rio de Janeiro: Juerp, 1974.
VIEIRA, David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão
Religiosa no Brasil. Brasília: UnB, 1980.

impulso 34 janeiro 99
Impulso.book Page 35 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Consumo e
Resistência
Cultural
Consumption and
cultural resistance
RESUMO – Vivemos hoje a sócio-cultura do consumo. Nesse contexto, o humano
é cada vez mais vilipendiado e vendido como mercadoria ou então bombardeado
impiedosamente pela mídia, a quem só interessa vender, seja lá o que for. Assim,
mesmo a arte, expressão máxima do humano, vira reprodução, entra na lógica
monetária do mercado. Este pequeno artigo visa discutir estratégias de resistência
do humano frente à exacerbação do consumo. Toma como “gancho” uma refle-
xão sobre o filme Wild at Heart, de David Lynch, para afirmar o resgate do efê-
mero como ponto de partida desta resistência.
Palavras-chave: consumo – resistência – humanismo – reprodução – efêmero.
SÍLVIO GALLO
ABSTRACT – We lived the culture of the consumption, today. In this culture, the sdogallo@unimep.br
human is more and more depreciated and sold as merchandise, or then bombar- gallo@turing.unicamp.br
Professor no Departamento
ded by media, who only interests to sell, be there what goes. Thus, even the art, de Filosofia da UNIMEP e no
the human's maximum expression becomes reproduction, and enters in the mo- Departamento de Filosofia e
netary logic of the market. This small article seeks to discuss resistance strategies História da Educação da Unicamp
of the human front to the exacerbation of the consumption. It takes as “hook” a
reflection on the David Lynch’s film Wild at Heart, to affirm the ransom of the
ephemeral as starting point of this resistance.
Keywords: consumption – resistance – humanism – reproduction – ephemeral.

I mpera hoje a lógica do consumo. O mundo é um grande mer-


cado, e isso é fato. Em tempos em que caducou a já considerada
“clássica” divisão entre países capitalistas e países socialistas, isso
faz-se sentir com intensidade cada vez maior – reunificação alemã, for-
mação da comunidade européia em 1992, as discussões em torno do
Mercosul, de um mercado comum latino-americano, de um mercado
comum do leste europeu, etc., etc. De resto, mesmo enquanto vicejava
o “socialismo real”, em que pesem as sutis diferenças em relação à pro-

impulso 35 janeiro 99
Impulso.book Page 36 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

dução capitalista – e mesmo com todas as críticas que podem ser le-
vantadas à “economia de Estado”, tanto pela direita quanto pela es-
querda não-ortodoxa –, esses países nunca chegaram a implementar
um sistema alternativo à distribuição de mercadorias do capitalismo.
Há já algum tempo, o recém-falecido Félix Guattari vinha falan-
do de um capitalismo mundial integrado, um sistema de distribuição
de mercadorias baseado na economia capitalista, que englobaria inclu-
sive os países então socialistas.1 No contexto dessa sociedade, em que
se produz o consumo, em que pensamos o consumo, nada mais óbvio
do que constatarmos que vivemos também a cultura do consumo.2
Uma breve consideração histórica: a questão do consumo está
intimamente ligada ao universo da produção. Quanto mais se produz,
mais se pode consumir; quanto mais se produz, mais deve ser consu-
mido, para retroalimentar negativamente o monstro da produção.
Nossa sociedade contemporânea é tributária direta da Revolução
Industrial, que vicejou na Inglaterra do século XVIII, descendente da-
quela “terra em que os carneiros devoravam os homens”, de que nos
fala Thomas Morus, em sua Utopia.3 Com a mecanização da produ-
ção, esta passa a ser re-produção extremamente veloz e o mercado é
inundado por produtos. O homem, de senhor da produção – que, em
princípio, produz porque necessita – passa a ser seu escravo – que, ao
contrário, necessita porque produz. É uma inversão diabólica, que
Karl Marx analisa magistralmente em O Capital, como o fetiche da
mercadoria, mostrando como no capitalismo o dinheiro produz mais
dinheiro, como num passe de mágica.
Em relação à cultura, no contexto da sociedade de consumo, a
arte também entra em sua época de reprodução. Não caberia repro-
duzir aqui as análises já desenvolvidas pelos pensadores da Escola de
Frankfurt;4 basta-nos indicar os aspectos positivos e negativos dessa
transformação: sem dúvida, a reprodução da arte e da cultura “demo-
cratiza” sua função. Por exemplo, se nem todos podem estar presentes
num concerto, muitos podem ouvir sua gravação ou assistir sua trans-
missão pela televisão; a reprodução gráfica de uma pintura pode fazer
com que exposição esteja presente em vários lugares ao mesmo tem-
1 Para entender o conceito de Capitalismo Mundial Integrado, consulte a obra de GUATTARI, 1981.
2 Talvez fosse desejável que os filósofos contemporâneos debruçassem-se sobre a tarefa de construção de
uma “Crítica da Razão Consumista”.
3 Morus critica a situação social da Inglaterra de seu tempo por meio da descrição de uma ilha imaginária
(Utopia), onde viceja uma sociedade perfeita; o episódio citado faz a crítica de uma Inglaterra em que a
ganância dos criadores de ovelhas acaba com os campos cultivados, transformando-os em pastos. A fome
dos homens é a condição da alimentação do gado.
4 Uma das principais é a obra de BENJAMIN, 1936.

impulso 36 janeiro 99
Impulso.book Page 37 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

po, etc. Isso, para nem tocar nas artes que surgem já no contexto da
reprodução: a fotografia, o cinema, o vídeo...
Por outro lado, a reprodução não consegue levar essa democra-
tização ao extremo, abrangendo a todos – o que seria desejável – e traz
alguns aspectos negativos: ouvir um disco, mesmo com a pureza do
sistema digital de som, não é o mesmo que assistir a um concerto ao
vivo em uma sala de espetáculos... Poderíamos entrar no âmbito de
uma discussão em torno da popularização como vulgarização, sobre o
valor da obra de arte enquanto reprodução, mas isso não vem ao caso.
A questão mais fundamental para nós é que a reprodução leva a
arte e a cultura ao consumo acelerado e alienado, e poderíamos ques-
tionar a relação do consumo em massa com a fruição. A necessidade
de produção acelerada para um consumo cada vez mais rápido – lem-
bremo-nos da perversa inversão dos termos na lógica do consumo –
leva a uma diluição da qualidade, e poderíamos discutir a qualidade de
determinados filmes que levam milhões das bilheterias para Ho-
llywood – o dinheiro cria dinheiro, obra máxima da ilusão –, da mú-
sica de consumo que dia-a-dia cria novos ritmos, cada vez mais pas-
teurizados, de certos espetáculos teatrais, de certas obras literárias, etc.,
etc.
Mas, feitas estas considerações – que, de resto, são um tanto ou
quanto óbvias –, chegamos ao cerne de nossa questão: vivemos hoje
a sócio-cultura do consumo; a cultura, como um espelho da produção,
é também reprodução e consumo. Essa situação cultural, ao basear-se
na lógica da mercadoria e do consumo, desloca-se do meio humano
para o âmbito do mercado, faz com que a cultura deixe de ser a ex-
pressão e a conquista da liberdade humana, num processo dialético de
construção do si mesmo, passando a ser condição de sua submissão.
Deixamos de ser sujeitos criadores de cultura e passamos a ser objetos
consumidores de cultura, escravos de uma lógica perversa que, no seio
de uma sociedade informatizada – que poderia ser a condição de nossa
redenção do processo de trabalho repetitivo, permitindo a livre fruição
das artes –, nos leva a um contexto em que a própria arte e a própria
cultura são repetição, submissão e desumanização.
Essa realidade é analisada de forma brilhante por Erich Frömm
quando, duplamente ancorado em Freud e Marx, identifica a dicoto-
mização do homem contemporâneo na oposição entre o ter e o ser,
abordada em várias de suas obras.5 Quanto mais somos levados a nos
5 Pode-se consultar algumas obras de FRÖMM, como Ter e Ser, O Medo à Liberdade, Psicanálise da Socie-
dade Contemporânea, entre outras. No Brasil, elas foram publicadas pela Editora Zahar e, posteriormente,
pela Guanabara.

impulso 37 janeiro 99
Impulso.book Page 38 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

preocuparmos com ter cada vez mais (consumo), menos nos preocu-
pamos em ser mais (auto-construção do humano).
Desvelada essa realidade opressora, cabem-nos dois caminhos de
reflexão: primeiro, devemos discutir se queremos superá-la – pois
pode ser que nos satisfaçamos com uma situação de submissão, que
seja mais agradável e mais cômodo sermos passivos consumidores, en-
grenagens da máquina de produção/reprodução. Se a resposta for afir-
mativa, e participarei aqui do princípio de que ela o é, devemos então
perguntar: é possível essa superação?, como proceder para tanto?
Para responder a essas questões, peço ao leitor que me permita
tomar a liberdade de desenvolver aqui algo mais próximo de uma “crí-
tica de cinema”, no sentido estético-conceitual, e que me acompanhe
nessa “viagem”. Tomarei o filme Wild at Heart (Coração Selvagem foi
o título que recebeu em nossos cinemas), do diretor norte-americano
David Lynch, como metáfora de nossa sociedade e como roteiro de
nossa guerrilha de resistência.
O gênio cinematográfico de Lynch transforma o que facilmente
poderia não passar de um Easy Rider caipira e água-com-açúcar em
um imenso painel das violências e absurdos do nosso cotidiano... A in-
teriorana Big Tuna, no Texas, não é uma típica cidadezinha americana,
mas uma radiografia da miséria universal, quarto mundo da pobreza
espiritual. É um filme que não dissimula a violência, mas que também
não faz dela a personagem principal: é sempre o pano de fundo da ce-
na, crua reprodução do comum day by day. Mas a opressão e a
angústia com que nos defrontarmos com a realidade nua e crua, a per-
plexidade frente a um real que procuramos esconder e que nos é mos-
trado com todas as suas cores levam também à constatação da espe-
rança: apesar de tudo, fica o amor... Não aquele “amor” ideal, pana-
céia para todos os males, como certos “fantasmas” que andaram as-
sombrando as bilheterias dos cinemas,6 mas aquele amor surrado, que
construímos passo-a-passo, como difícil magia que deve ser perma-
nentemente reconstruída, apesar de tudo e a despeito de tudo.
Durante todo o filme, pontilham cenas em que a mão de uma vi-
dente passa sobre a bola de cristal, como que a anunciar um destino
implacável; mas, ao final, vem a redenção: somos sujeitos, apesar de
tudo, e a construção da vida e do cotidiano é nossa miséria e também
nossa grandeza.
6 Refiro-me ao filme Ghost, a que o leitor certamente deve ter assistido, que arrecadou milhões de dólares
com uma visão bastante piegas do amor.

impulso 38 janeiro 99
Impulso.book Page 39 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Passando do roteiro para a linguagem cinematográfica propria-


mente dita, encontramos aí a verdadeira matéria de Lynch: as cores da
fotografia hipersensibilizam o real, assim como as tomadas de câmera
privilegiam o efêmero. É o elogio do insignificante: uma mão que pas-
sa esmalte nas unhas dos pés, um seio, um olho, a mão que risca o
fósforo e acende o cigarro. O fogo que miticamente/psicanaliticamen-
te atravessa a obra, fechando momentos e abrindo outros... Esperança
heraclitiana que consome e nos consome, construindo nossos possí-
veis.
Tal deverá ser a matéria de nossa resistência. Contra o absurdo
deste mundo que é “selvagem no coração”, contra a lógica do consu-
mo que nos faz escravos da re-produção, deveremos recuperar o efê-
mero, perceber as pequenas coisas que fazemos no cotidiano e fazer
delas a matéria de nossa guerrilha. Recuperar a mítica guerra das for-
ças amor/ódio, já trabalhada pelos filósofos pré-socráticos, consolidan-
do a possibilidade de construção do amor como força da reunião e da
solidariedade a cada momento, fazendo-nos sujeitos, produtores de
nós mesmos e de nossa cultura, não sucumbindo à lógica do absurdo,
do consumo escravo e da re-produção automatizada.
Resistindo a vestir a armadura e o duro cérebro eletrônico do ro-
bô, estaremos, a cada momento mínimo, recuperando o sentido do
humano, fugindo do implacável destino tecido pelas moiras e cons-
truindo nossa própria vivência. Por mais doloroso e trágico que isso
possa parecer, nada se compara à beleza e ao prazer dos horizontes
que descobriremos.
Campinas, 1992

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo.
São Paulo: Brasiliense, 1981. 2a ed.
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de
Reprodução, 1936. Col. Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultu-
ral, 1983. 2a ed.

impulso 39 janeiro 99
Impulso.book Page 40 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 40 janeiro 99
Impulso.book Page 41 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Jornalismo de
Serviços: produto
descartável
Commercial journalism:
a disposable product
RESUMO – A prestação de serviços é apresentada como a saída para o jornalismo
na sociedade moderna. Os últimos números referentes ao faturamento das em-
presas jornalísticas reforçaram essa tese. No entanto, ao contrário do que uma aná-
lise imediatista com base nesses dados poderia indicar, as perspectivas para esse
tipo de jornalismo são sombrias. O jornal pode transformar-se apenas em mais
uma mídia, ficando ao sabor das estratégias da publicidade. Para reverter isso, o
jornalismo precisa recuperar o seu papel de agente mediador cultural.
Palavras-chave: jornalismo – jornalismo e prestação de serviços – perspectivas para
o jornalismo. DENNIS DE OLIVEIRA
Doutor em Ciências da Comunicação
ABSTRACT – The service rendering have been presented the solution for journa- pela ECA (USP) e professor do curso
lism at the present. The numbers of newspaper’s companies billing reinforce this de Comunicação Social da UNIMEP

idea. However, the perspectives of this journalism’s type are somber. The news-
paper can to change into just a mídia dependent of the publicity’s strategics. So,
the journalism may act a cultural acting.
Keywords: journalism – journalism and service rendering – journalism: perspec-
tives.

O s dados mais recentes sobre o faturamento dos meios de co-


municação de massa no Brasil em 1994 sugerem grandes
comemorações por parte dos empresários do setor. Depois
de amargar recessões profundas nos anos de 1990 a 1992, por conta
da crise geral da economia nacional, os meios de comunicação de mas-
sas recuperaram o seu faturamento no ano de 1993 e tiveram um cres-
cimento significativo no ano seguinte, principalmente após a introdu-
ção do Plano Real. Segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Eco-

impulso 41 janeiro 99
Impulso.book Page 42 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

nômica Aplicada), referentes ao ano de 1994, a indústria editorial e


gráfica foi a que apresentou melhores índices de crescimento.
A possibilidade de um país com uma economia estabilizada, a
volta do consumo, os investimentos produtivos e a recuperação da
credibilidade dos meios de comunicação com o papel desempenhado
por esta indústria cultural durante o impeachment de Collor foram os
fatores que determinaram a volta dos bons tempos para os meios de
comunicação de massa.
Os meios impressos, particularmente os jornais diários, come-
moram ainda mais. Cresceu o número de diários – em 1993, o Brasil
possuía 595 jornais diários, ocupando a segunda posição no ranking
mundial, perdendo apenas dos Estados Unidos em número de títulos.
Cresceu a participação da mídia jornal na divisão do “bolo” dos in-
vestimentos publicitários, chegando a 28% que, somados aos 57%
abocanhados pela televisão, fazem com que os dois meios – jornal e te-
levisão – sejam as principais formas de o capital levar suas mensagens
à sociedade.
Já não se vive os tempos da ditadura militar. O Estado de Direito
continua em vigor, as instituições funcionam (inclusive durante o pro-
cesso de afastamento do ex-presidente Collor) e a queda da inflação,
alcançada com o plano Real, sinaliza dias melhores para os meios de
comunicação impressos, particularmente os jornais. Os grandes diários
investem em tecnologia, particularmente no que concerne à apresen-
tação gráfica dos jornais e à agilização dos processos de fechamento
das edições.
Apesar do cenário róseo, este artigo pretende mostrar que o jor-
nalismo que se produz hegemonicamente no Brasil corre sérios riscos
de entrar num buraco. Esses riscos não decorrem do avanço das mí-
dias eletrônicas, como comumente se afirma. Os riscos que o jornalis-
mo brasileiro corre são produtos da própria concepção de fazer jor-
nalístico que se vem sinalizando: o chamado jornalismo de prestação
de serviços.
Os resultados a curto e médio prazos parecem indicar que o ca-
minho de o jornalismo ser um instrumento prestador de serviços é a
sua salvação. De fato, numa sociedade que, a despeito dos seus gritan-
tes contrastes sociais, pretende ser de consumo nos moldes do chama-
do Primeiro Mundo, as forças políticas hegemônicas apostam nisso.
Mas, como num castelo de cartas, ao sinal do primeiro vento mais for-
te, tudo isso pode ruir.

impulso 42 janeiro 99
Impulso.book Page 43 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

ATRIBUTOS DO JORNALISMO
Para a definição conceitual do que é jornalismo, utilizar-se-ão
nesse artigo duas contribuições importantes: a de Otto Groth, teórico
alemão, discípulo de Max Weber, que pretendeu criar uma “ciência
periodística” autônoma, e a de Vladimir Hudec, tcheco, marxista. Op-
tou-se por trabalhar com esses dois autores por uma questão singular:
não obstante as matrizes teóricas dos seus pensamentos serem distin-
tas, ambos chegam a alguns pontos em comum a respeito de categorias
próprias do jornalismo.
Otto Groth1 define sua proposta de ciência periodística como
uma “ciência das culturas”. Avança para elencar ramos (ou disciplinas)
dessa ciência, que são: imprensa, rádio, televisão, cinema, publicidade,
técnicas auxiliares, história do jornalismo, legislação jornalística, em-
presas jornalísticas, análise de audiência e análise de conteúdo. Para
Groth, a “totalidade jornalística” divide-se em quatro categorias: atu-
alidade, periodicidade, difusão e universalidade.
Periodicidade, para Groth, é um “ritmo de vida”, uma freqüên-
cia, uma cumplicidade abstrata entre emissor e receptor. Graças a essa
categoria, os jornais e revistas que fazem parte do “jornalismo” distin-
guem-se de outras publicações não-jornalísticas. A interação – neces-
sidade do jornalismo – só é possível com a existência da periodicidade.
Groth vincula a periodicidade às dinâmicas da sociedade humana nos
seus diversos momentos históricos. Toda a organização jornalística faz-
se sob a periodicidade, e esta comanda costumes, demandas e até mes-
mo o ritmo dos acontecimentos. Por exemplo: as assessorias de im-
prensa das instituições políticas costumam levar em consideração o ho-
rário de fechamento dos jornais impressos e dos telejornais para mar-
car horários de entrevistas coletivas.
Outra categoria proposta por Groth é a universalidade, que ele
define como o “mundo presente de cada um dos membros de uma so-
ciedade”. O mundo presente é o cenário real onde as pessoas estão
com todas as suas demandas e expectativas. Para Groth, mundo pre-
sente se explica pela relação do eu com o mundo, eu com tu e eu com
a natureza (sociedade e cultura). A universalidade é a categoria do jor-
nalismo que faz deste um produtor de discurso generalista, objetivo e
subjetivo, mas com sentido para o homem, coletivizador e também in-
dividualizador, por permitir a relação do indivíduo com seu mundo.
1 A respeito das teorias de Otto Groth, ver BELAU, 1966.

impulso 43 janeiro 99
Impulso.book Page 44 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

A terceira categoria proposta por Groth é a atualidade. A atua-


lidade compreende os fatos que acontecem no real e no presente e
que, ao cair no mundo presente de cada um, contribui para sua com-
preensão e até modificação. Por isso, a atualidade compreende não
apenas fatos novos, mas o atendimento à demanda por explicações, de
modo a que cada um tenha condições de compreender o seu mundo
presente.
Finalmente, a quarta categoria proposta por Groth é a difusão,
que está relacionada com a dimensão abstrata do jornalismo. É a es-
tratégia que permite o acesso do leitor e, conseqüentemente, a reali-
zação das outras categorias.
A partir destas quatro categorias elencadas, Groth conclui que a
busca da perfeição no jornalismo é a repetição mais freqüente possível
(periodicidade), o conteúdo mais amplo possível (universalidade), a
publicação mais rápida possível (atualidade) e a difusão mais ampla
possível (difusão).
Diferentemente de Groth, Vladimir Hudec não se esforça para
criar uma ciência autônoma do jornalismo, mas em defini-lo concei-
tualmente. Fiel à matriz marxista, ele afirma que “o jornalismo não
existe como fenômeno abstrato, fora de todo o contexto histórico, que
não pode compreender-se fora de suas relações com uma sociedade
concreta e da sua estrutura de classe num determinado nível de de-
senvolvimento”.2 Na mesma linha, ele critica as pretensas categorias
independência e descomprometimento, próprias da tradição liberal do
fazer jornalístico, chegando a dizer que “se assim fosse, perderia seu
objetivo e deixaria de ser jornalismo”.3
Hudec define jornalismo como “um fenômeno, próprio apenas
da cultura moderna, de tipo expressamente ideológico que está sem-
pre ligado a uma fase histórica do desenvolvimento socioeconômico,
à transformação revolucionária”.4 Hudec afirma ainda que a realidade
social atual é o objeto do jornalismo. Apesar dessas conceituações, o
autor sustenta que mais importante que tentar definir conceitualmente
o jornalismo é distinguir suas leis internas específicas. E, para tal, ele
aponta aspectos característicos próprios do jornalismo: atualidade,
universalidade, fidelidade aos fatos, comprometimento de classe, pu-
blicidade, multiplicidade, periodicidade, rapidez e natureza institucio-
nal.
2 HUDEC, 1980, p. 35.
3 Ibid.
4 Ibid., p. 36.

impulso 44 janeiro 99
Impulso.book Page 45 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Comparativamente a Otto Groth, Hudec acrescenta as catego-


rias comprometimento de classe, fidelidade aos fatos e natureza insti-
tucional, pois multiplicidade, publicidade (no sentido de destinação
das informações ao público) e rapidez poderiam ser encaixadas nas ca-
tegorias de divulgação (multiplicidade e publicidade) e atualidade (ra-
pidez). O interessante é que Hudec propõe duas categorias novas e
aparentemente antagônicas: comprometimento de classe e fidelidade
aos fatos. Veja-se como ele resolve esta aparente contradição quando
define cada uma das categorias:
Comprometimento de classe: de forma a garantir que os
problemas atuais não sejam escolhidos por mera informa-
ção, mas para produzir uma determinada opinião, atitudes
e atos públicos quer progressistas, quer reacionários.
Fidelidade aos fatos: ao qual exige que os problemas atuais
sejam apresentados de um modo preciso e concreto, mas
com a ardente evidência dos próprios fatos, e não com um
despreendimento objetivista.5
Entende-se que, aqui, Hudec sinaliza para uma categoria essen-
cial no fazer jornalístico: a intenção. Em outras palavras, a fidelidade
aos fatos ocorre por uma intenção que, em última instância, é dada
pelo compromisso de classe.
Chaparro6 chama atenção para esse aspecto: no seu entender, o
componente intenção é a essência da produção do jornalismo. Utili-
zando os pressupostos teóricos da pragmática, Chaparro diferencia
“intenção” de “propósito”, reservando à segunda categoria quando
existe o objetivo de levar o receptor a uma imediata [ o quê? ] (como
o discurso publicitário, que tem por objetivo levar ao consumo de de-
terminado produto). A “intenção” para Chaparro é dada pelos valores
éticos consolidados e modificados pela sociedade.
Já Belarmino Cesar Costa,7 com fulcro na Teoria Crítica (Escola
de Frankfurt), aponta para as conseqüências da fragmentação da rea-
lidade que o jornalismo traz, que “a perda da dimensão da totalidade
no jornalismo está intrínseca na própria definição de noticiabilidade,
ou seja, nesta prática cotidiana dos órgãos de imprensa promoverem
a seleção e/ou exclusão de informações diante da multiplicidade inde-
finida de fatos”.8
5 Ibid., p. 39.
6 CHAPARRO, 1993.
7 COSTA, 1994, pp. 133-154.
8 Ibid., p. 148.

impulso 45 janeiro 99
Impulso.book Page 46 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Assim, Costa identifica na própria técnica do fazer jornalístico


um aspecto ideológico da (re)construção da realidade, que é a fra-
gmentação. Portanto, o comprometimento não estaria nas intenções
dos jornalistas, mas no próprio jornalismo em si. O próprio autor afir-
ma que a perda da dimensão da subjetividade causada pelo jornalismo
pode ser recuperada pelo processo educacional.9
Essa posição é contestada pela visão de Adelmo Genro Filho.10
A técnica do fazer jornalístico, para Genro Filho, consubstancia-se
numa nova forma de apropriação do conhecimento, distinta da ciên-
cia e da arte, mas usando elementos de ambas. O autor vai mais além
ao afirmar que o jornalismo – especialmente o considerado “informa-
tivo” – tem sua importância numa sociedade de massas, pelo fato de
ele ser a forma mais “profana” de apropriação do conhecimento. Por
isso, propõe que a linha condutora de uma teoria do jornalismo cen-
tre-se em “nexos filosóficos”, tendo a categoria da ética (universalizada
e não-particularizada) como o ponto central.
Em todo o debate, algumas categorias sobressaem-se, tais como
realidade, intenção, compromisso, atualidade, fragmentação, ética e
universalidade. Não é intenção deste pequeno artigo fazer uma síntese
de todas essas e de outras posições sobre o jornalismo, mesmo porque
elas são extremamente conflitantes e partem de pressupostos
epistemológicos distintos. O objetivo aqui é detectar algumas catego-
rias presentes nessas análises.

JORNALISMO COMO ORGANIZADOR DE VOZES SOCIAIS


Quando se fala em realidade e universalidade, é necessário vol-
tar-se para a base social em que se desenvolve o fazer jornalístico; já
que não se pode imaginá-lo como à parte das relações sociais que o
contextualizam. E aqui se detecta o primeiro problema do fazer jor-
nalístico: ele é uma reconstrução racionalizada de forma funcional de
uma realidade não-funcional. Conforme Dennis de Oliveira, “jorna-
lismo é a racionalização das complexidades sistêmicas”.11
Essa definição é fundamental para que se rompa, mesmo nas te-
orias críticas, com uma postura funcionalista não quanto ao jornalis-
mo, mas quanto ao contexto social. Esse contexto é formado por es-
truturas complexas, sistêmicas, mas não funcionais, que comportam
vetores em várias direções. Engels, em Dialética da Natureza, demons-
tra com muita propriedade como a própria natureza biológica, mate-
9 Ibid., pp. 133-154.
10 GENRO FILHO, 1987.
11 OLIVEIRA, 1992.

impulso 46 janeiro 99
Impulso.book Page 47 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

rial, movimenta-se de forma dialética, cuja compreensão foge aos pa-


drões da lógica formal.
Assim, o grande desafio para o jornalismo é, justamente, como
reconstruir uma realidade não-formal dentro de um código que, na
sua estruturação, é formalizado. Essa é a grande chave, a grande ques-
tão que se deve responder ao tentar entender o fazer jornalístico. Não
é no produto acabado (o jornal depois de impresso) nem tampouco
nas técnicas jornalísticas, embora essas duas questões estejam perme-
adas pelo que acontece neste momento da reconstrução do real.
A chave para o problema encontra-se na formulação de Mikhail
Bakhtin. Esse lingüista russo desvendou uma face da codificação
lingüística, que pode dar grandes contribuições para o entendimento
teórico do processo jornalístico: o fato de todo o discurso social ser
produto do entrecruzamento de outros discursos. Em outras palavras,
de existir um constante diálogo social.12
Quando propõe uma teoria para o romance literário, Bakhtin
afirma que as palavras são valores, pois só existem quando adquirem
sentidos ideológicos para o enunciador e os discursos aos quais este
enunciador se refere ao produzir o seu.13
O discurso do jornal é um discurso social, portanto, ao ser pro-
duzido, referencia-se em outros discursos sociais. Ao atribuir-se ao fa-
zer jornalístico a categoria da universalidade e da realidade, sinaliza-se
automaticamente para que o discurso jornalístico deva referenciar-se
em discursos sociais. Esse “caos discursivo”, que configura a chamada
complexidade sistêmica a ser racionalizada, é o desafio do fazer jor-
nalístico.
É evidente que a racionalização ou a orquestração destas múlti-
plas vozes ou discursos que compõem a universalidade terá uma dire-
ção. É aí que entra a categoria proposta por Eni Orlandi: o discurso-
autoridade.14 Afirmação de Orlandi: “como há vocação totalizante do
sujeito/autor, estabelece-se uma relação de dominância de uma forma-
ção discursiva sobre as outras na constituição do texto”.15
Portanto, os componentes ideológicos, a intenção e o compro-
metimento de classe, categorias elencadas pelos vários teóricos do jor-
nalismo, residem neste discurso-autoridade, no discurso ou formação
discursiva que se sobrepõe às outras que compõem o universo
reconstruído.
12 Ver a este respeito as obras de BAKHTIN, 1986 e 1988.
13 BAKHTIN, 1993.
14 ORLANDI, 1988.
15 Ibid., p. 60.

impulso 47 janeiro 99
Impulso.book Page 48 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Assim, não se contrapõe ideologia ou comprometimento de clas-


se com fidelidade aos fatos: toda e qualquer reconstrução de realidade
terá uma formação discursiva como a autoridade, capaz de transfor-
mar as palavras não em meros índices de objetos, mas, fundamental-
mente, em valores. Todo esse “passeio teórico” serviu para fundamen-
tar uma postura que aqui se quer enfatizar: a única crítica feita ao jor-
nalismo, na maior parte dos trabalhos que tratam o tema, é o fato de
ele ser um instrumental ideológico. Isso está tão arraigado que se parte
já de considerações a priori, como se o jornalismo fosse a única forma
de intervenção ideológica levada a cabo pelas classes dominantes.
Como todas as outras instituições presentes na superestrutura da
sociedade, o jornalismo reflete o contexto material, social e ideológico,
não sendo “mais pernicioso ideologicamente” do que a educação for-
mal, a Igreja, a família. Mesmo o jornalismo praticado dentro dos mol-
des da sociedade capitalista e os projetos de comunicação popular que
pretendem ser de contestação à ordem vigente merecem outras aná-
lises que não apenas as de reprodutores de ideologias. Mesmo porque
a própria crítica ideológica se enriqueceria muito mais caso se debru-
çasse para detectar como a ideologia dominante constrói o discurso
jornalístico.

JORNALISMO DE SERVIÇOS
O chamado jornalismo de prestação de serviços despontou
como a grande saída para a mídia impressa, acossada que estava pela
agilidade e pela rapidez da Televisão. Esse tipo de jornalismo encaixa-
se numa perspectiva teleológica construída pelo neoliberalismo, onde
o consumo é elevado à condição de categoria suprema, da dignidade,
da cidadania. Propõe-se a constituir uma sociedade só de consumido-
res, negando que o consumo tem outra ponta, que é o trabalho. Sem
produção, não há o que consumir.
Assim, o jornalismo de serviços nada mais é do que a
reconstrução da realidade sob a ótica do consumo. A economia é re-
tratada sob a ótica do consumo: os problemas econômicos são anali-
sados levando-se em conta como afetarão o consumo, o jornalismo
cultural restringe-se a apresentar programação de eventos e assim por
diante. O jornalismo de serviços não é apenas a parte reservada expli-
citamente à prestação de serviços ao leitor, mas toda uma concepção
que, em última instância, é sustentada pela sinalização teleológica ne-
oliberal de construção de uma sociedade só de consumidores.
Algumas conseqüências deste tipo de jornalismo são notadas de
pronto. A primeira é a aproximação da linguagem do jornalismo com

impulso 48 janeiro 99
Impulso.book Page 49 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

a da publicidade e propaganda. As estratégias de linguagem publicitá-


ria são utilizadas no jornalismo, desaparecendo ou, no limite, deixan-
do tênue a clássica separação entre jornalismo e publicidade – aliás, um
dos princípios éticos mais arraigados na atividade jornalística.
Outra conseqüência é o caráter descartável do jornalismo de ser-
viços. A sua volatibilidade, efemeridade aproxima-se de folhetos pro-
mocionais distribuídos na rua. Ficando ao sabor de demandas imedi-
atas do público, este tipo de jornalismo fecha-se num cerco, extrema-
mente instável.
A relação entre PIB/capita (que mede a variação da riqueza mé-
dia da população e que, portanto, está ligada diretamente à sua capa-
cidade de consumo) com o investimento em publicidade no jornal e a
tiragem dos 15 maiores diários mostra que, num período no qual o
poder aquisitivo da população ficou praticamente estável (crescimento
de 0,24%), há um crescimento vertiginoso dos investimentos publici-
tários em jornal (52,22%) e um crescimento um pouco menor da ti-
ragem dos quinze maiores diários (40,40%). Isso porque, ao primeiro
sinal de crescimento do PIB, o aquecimento dos investimentos publi-
citários estouram, já prevendo anos melhores. Inversamente, no perí-
odo 91/92, a queda do poder aquisitivo sinalizado pela variação ne-
gativa do PIB/capita de 2,3% foi superdimensionada pela queda dos
investimentos publicitários em jornal (14%). Como se sabe que a prin-
cipal fonte de sustentação do jornal é a publicidade, tais variações le-
vam a uma instabilidade nas empresas jornalísticas.
O problema do jornalismo de serviços é que ele se adequa a essa
realidade. Ao se transformar em mero intermediário entre a ponta da
produção e o sujeito/consumidor, a instabilidade dos investimentos
publicitários tende a transferir-se para a instituição jornalística. Mais:
o jornalismo deste tipo não é só descartável, mas dispensável.
Segundo dados da revista Meio e Mensagem, nos últimos dois
anos houve um crescimento significativo das chamadas mídias exter-
nas (placas, back-lights, etc.). Em 1994, os investimentos nessas mídias
cresceram 117,63% em relação ao ano de 1993. E nos primeiros dois
meses de 1995, o crescimento foi de 134,1%. As empresas, aos pou-
cos, vão encontrando outras formas de atingir os seus clientes, trans-
formando o jornal apenas numa outra mídia, às vezes nem sempre a
mais eficiente.
O leitor do jornalismo de serviços é um leitor efêmero. Ele tem
uma relação instrumental com o jornal. Por isso, este tipo de jornal
apela para apresentar maior eficiência nos serviços prestados, no sen-
tido de conquistá-lo. De olho num número cada vez maior de leitores

impulso 49 janeiro 99
Impulso.book Page 50 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

para servir de argumento aos anunciantes, os jornais que optaram por


esse tipo de jornalismo chegam ao ponto de ter que oferecer brindes
de todo o tipo para conquistar leitores. Os jornais não vendem mais
pelo seu noticiário ou por uma identificação do leitor com o periódico,
mas pelos brindes.
É evidente que tal tipo de jornalismo tem limites, ainda mais
numa sociedade com grandes desigualdades sociais como o Brasil. O
mercado consumidor é restrito e os impulsos consumistas restringem-
se a momentos conjunturais da economia. O jornalismo, ao ficar ao sa-
bor desses ventos, condena-se irremediavelmente. E, ainda que os im-
pulsos consumistas durem mais tempo, outras mídias alternativas vão
surgindo, muitas com mais eficiência, pondo para escanteio o jornal.
Essas são as perspectivas (sombrias) que se apontam para o jornalismo,
caso ele enverede pelo caminho de ser um mero prestador de serviços,
que, na prática, o transforma apenas numa mídia.

O JORNALISMO COMO AGENTE MEDIADOR


Recuperando os pressupostos teóricos de Bakhtin, o jornalismo
deve reconstruir a realidade como uma orquestração dos múltiplos
discursos sociais. E aí é que se faz necessária uma ruptura com o jor-
nalismo de serviços: o leitor não é apenas sujeito/consumidor, mas su-
jeito mediado por diversos processos culturais, institucionais, políticos
e econômicos.
Reitera-se, aqui, que não se defende o mito da neutralidade jor-
nalística, mas que a orquestração discursiva – centrada num discurso-
autoridade que, em última instância, caracterizará os valores ideoló-
gicos das palavras – não implique uma exclusão de discursos. O jor-
nalismo de serviços, ao considerar unicamente a condição de consu-
midor do leitor/interlocutor, exclui outras possibilidades discursivas
desse leitor.
Os atributos do jornalismo universalidade e atualidade, propos-
tos por Groth e reforçados por outros autores, como Hudec, e mes-
mo a posição de Adelmo Genro Filho – do jornalismo como forma
de apropriação do conhecimento – ficam, no limite, diluídos. A prá-
tica do jornalismo de serviços assemelha-se muito mais ao campo da
publicidade do que ao do jornalismo. Se a sociedade de consumo im-
pôs a força da publicidade nos meios de comunicação, inclusive o jor-
nal, como observa Sérgio Buarque Gusmão,16 quando afirma que o
editor tem de aguardar anúncios até a última hora para fechar a edi-
16 GUSMÃO, 1993.

impulso 50 janeiro 99
Impulso.book Page 51 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

ção,17 hoje, essa ideologia do consumismo permeia o próprio discurso


jornalístico, desviando-se para ser mais uma forma de mídia no sen-
tido publicitário.
Recuperando-se a definição de Groth para “atualidade” – fatos
que podem alterar ou ajudar a compreender o mundo presente das
pessoas –, afere-se que o jornalismo de serviços considera que o mun-
do presente das pessoas limita-se apenas ao ato de consumir produtos
e serviços. E retomando o conceito de universalidade – o mundo pre-
sente propriamente dito –, é importante lembrar que a sociedade de
consumo assenta-se sobre uma outra sociedade de não-consumo, pois
a exclusão social é uma conseqüência direta da inclusão, especialmente
nos países de capitalismo periférico, como o Brasil. Ou seja, mesmo
aqueles que estão incluídos na sociedade de consumo são afetados di-
reta ou indiretamente pelos excluídos da sociedade de consumo, pois
as duas dimensões – inclusão e exclusão – são faces de uma mesma
moeda, o todo social, uma sendo alicerce da outra.
Com base nos conceitos de Bakhtin, o jornalismo de serviços é
um discurso monológico,18 pois se referencia num único discurso so-
cial – o discurso do consumo – e considera o sujeito/leitor de forma
monofônica,19 pois apenas uma voz desse sujeito – a voz do consumo
– é levada em consideração. Consumo transforma-se, assim, num íco-
ne que passa a explicar todos os demais signos/valores.20 É o valor uni-
versal que permeia todas as significações. O papel de mediação do jor-
nalismo entra num cerco extremamente limitado.
Coloca-se como desafio para o jornalismo atual recuperar a sua
dimensão de processo mediador, de ser um vaso comunicante entre os
diversos processos de produção social de conhecimento e cultura e a
sociedade, levando-se em conta, na (re)construção discursiva da reali-
dade, todos os discursos sociais. Essa proposta de recuperação da di-
mensão polifônica do jornalismo não é, em absoluto, a defesa
da neutralidade, do “ouvir os dois lados”.21
17 Manual Geral de Redação. Folha de São Paulo. O verbete “espelho” (desenho de cada uma das páginas
de uma edição do jornal) afirma taxativamente que os anúncios têm prioridade em relação às notícias.
18 Conceito derivado do diálogo proposto por BAKTHIN, 1986.
19 Conceito derivado do polifônico proposto por BAKTHIN, 1988.
20 BAKTHIN, 1993, afirma que as palavras contextualizadas na dimensão discursiva são “valores sociais”.
21 Note-se que essas regras clássicas de isenção ou neutralidade jornalística transformaram-se hoje em nor-
mas burocráticas. O jornalismo atual não se preocupa em buscar a verdade ou apurar os fatos, mas apenas
em registrar duas ou mais versões sobre o problema, sem qualquer articulação e, principalmente, sem qual-
quer compromisso com a rigorosa apuração dos fatos, pois o discurso polifônico prevê sempre a existência
de um discurso-autoridade, uma voz orquestradora das demais. O que se defende aqui é que o jornalismo
monológico, o chamado jornalismo de serviços, é um discurso não apenas ideológico, mas sobretudo discri-
minatório.

impulso 51 janeiro 99
Impulso.book Page 52 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Perdendo o seu papel de agente mediador, o jornalismo restringe


sua ação a apenas mais uma mídia, ou seja, um canal entre produtores
e consumidores. Entretanto, novas mídias alternativas vão ganhando
espaço na sociedade contemporânea, conforme já foi demonstrado.
Assim, o tipo de jornalismo que se está praticando corre sérios riscos
de se transformar em algo tão descartável quanto a folha de um jornal
do dia anterior. E a atividade mais importante do fazer jornalismo pas-
sará a ser o marketing das empresas jornalísticas e a programação vi-
sual, enquanto que a atividade de produção de textos será tão buro-
crática quanto carimbar documentos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo:
Hucitec, 1986.

____________ Problemas da Poética em Dostoievsky. São Paulo: Huci-


tec, 1988.

____________ Questões de Literatura e Estética: a teoria do romance.


São Paulo: Hucitec/Unesp, 1993.

BELAU, Angel F. La Ciência Periodistica de Otto Groth. Pamplona:


Instituto de Periodismo de Navarra, 1966.

CHAPARRO, Manuel C. Pragmática do Jornalismo: buscas práticas


para uma teoria da ação jornalística. São Paulo: Summus, 1993.

COSTA, Belarmino G. Jornalismo impresso: conceito de notícia e a


técnica de fetichização dos fatos. In: Transformações do Jorna-
lismo Brasileiro: ética e técnica. MELO, José Marques de (org.).
São Paulo, 1994. (Coleção GT’s Intercom).

Manual Geral da Redação. Folha de S.Paulo. São Paulo, 1992.

GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da Pirâmide. Porto Alegre:


Ortiz, 1987.

GUSMÃO, Sérgio B. Jornalismo de In(ve)stigação: o caso Quércia. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.

HUDEC, Vladimir. O que é Jornalismo. Lisboa: Editorial Caminho,


1980.

impulso 52 janeiro 99
Impulso.book Page 53 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

OLIVEIRA, Dennis. Para uma teoria crítica da comunicação de massa.


Revista Impulso, Piracicaba, n. 11, 1992.
ORLANDI, Eni. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez, 1988.

impulso 53 janeiro 99
Impulso.book Page 54 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 54 janeiro 99
Impulso.book Page 55 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

A Voz nas Locuções


Publicitárias:
possibilidades de
interpretação e
representação
Voice in publicity locutions:
interpretation
and representation
possibilities
REGINA ZANELLA PENTEADO
cesar@linkway.com.br
RESUMO – O som da voz humana, através das locuções, está presente na maioria Fonoaudióloga (PUCCamp); docente
das propagandas, publicidades e comerciais, representando aspectos subjetivos que do SENAC-Piracicaba e Rio Claro,
com especialização em voz (CECEV),
influenciam a composição de imagens mentais, sentimentos e atitudes do público especializanda em linguagem (UNIMEP)
receptor. Este artigo contribui para o estudo da voz do locutor, pois analisa gra- e mestranda na Faculdade de
vações de locuções profissionais (publicitárias e de propagandas comerciais), ca- Saúde Pública (USP)
racteriza os modelos vocais utilizados, aponta as impressões e representações sub-
jetivas dos padrões socioculturais pertinentes, comenta as implicações destas
opções vocais na saúde vocal do locutor e estabelece relações com as necessidades
atuais da interpretação vocal na locução. Aponta a possibilidade de explorar a fle-
xibilidade e a plasticidade vocal que correspondam à liberdade e à criatividade de
representação vocal, requeridas no trabalho de locução publicitária e de propa-
gandas comerciais. Para isso, sugere a participação mais efetiva do fonoaudiólogo
na formação e no preparo do locutor, oferecendo subsídios teóricos e práticos ao
uso profissional da voz.
Palavras-chave: locução – publicidade e propaganda – comunicação – radialismo
– voz profissional – avaliação da voz – locutor.
ABSTRACT – The sound of the human voice, through locutions, is present in most
of the propagandas, publicities, advertisings and commercials, representing subjec-
tive aspects which influence the mental composition of images, feelings and attitu-
des of the receptor public. This article contribute to study the voice of the speaker,
because analyse records of professionals locutions (by commercials, publicities, ad-
vertisements and propagandas), characterize the vocal models used, points out the

impulso 55 janeiro 99
Impulso.book Page 56 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impression and subjective representation of the socio-cultural patterns pertinents,


comments the implications of these vocal options in vocal health of the speaker,
and establish relations with the present necessities of vocal interpretation in locu-
tion. Pointing the possibility on exploring the vocal flexibility and plasticity, that
corresponds to the freedom and creativity of vocal representation, required in pu-
blicity, propaganda and commercial locutions works. For this, a more effective par-
ticipation of the speech-language pathologist in the formation and preparation of
the speaker are suggested, offering theoretical and practical support for the profes-
sional use of the voice.
Keywords: locution – publicity and propaganda – communication – radialism –
professional voice – voice evaluation – speaker.

INTRODUÇÃO

A propaganda e a publicidade envolvem um conjunto de ati-


vidades de informação e técnicas de persuasão (utilizando
apelos que exploram o inconsciente, o subjetivismo e a afe-
tividade), destinadas a influenciar as opiniões, os sentimentos e as ati-
tudes do público receptor. Ao transformar bens supérfluos em neces-
sidades a serem satisfeitas pelo consumo, a propaganda pode modifi-
car e determinar hábitos, costumes, valores, relações, influenciando o
comportamento humano.
O trabalho de criação e de produção da propaganda envolve
técnicas publicitárias e a utilização dos recursos pertinentes a cada ve-
ículo de comunicação. Nos casos específicos do rádio e da televisão,
são utilizados recursos comunicativos visuais e sonoros (imagem, mú-
sica, canto, efeitos sonoros, pausas e palavra/texto, mas, principalmen-
te, a voz e a fala).
O som da voz e da fala humana está presente em quase a tota-
lidade das propagandas e comerciais, por meio de mensagens gravadas
e spots. Os avanços tecnológicos, juntamente com a preocupação cres-
cente de empresários e agências publicitárias direcionada à qualidade
e à eficácia da propaganda, estimulam os profissionais a buscarem um
preparo e uma formação específica em locução. Assim surgem, por
exemplo, os cursos de radialismo, setor locução, oferecidos pelo SE-
NAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) em todo o país.
Tais cursos oferecem uma formação que inclui disciplinas como: rela-
ções interpessoais no trabalho, radiodifusão e comunicação social,
noções de legislação trabalhista, prática de locução e fonoplastia. Esta
última, sempre proferida por fonoaudiólogos, volta-se especificamente

impulso 56 janeiro 99
Impulso.book Page 57 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

ao preparo vocal do locutor. A atividade de locução passa, então, a ser


vista com maior importância e profissionalismo.
Os locutores diretamente envolvidos com as propagandas têm
uma denominação ainda difusa, sendo chamados locutores comerci-
ais, locutores de propagandas, locutores publicitários ou, mais recen-
temente, profissionais da voz falada em publicidade.
Diversos autores e pesquisadores interessados no estudo da co-
municação de massa valorizam, cada vez mais, o uso qualificado da
fala e da voz, buscando especificar e caracterizar algumas habilidades
de locução. A voz dos locutores vem sendo observada e comentada
por profissionais da área de comunicação (locutores, jornalistas, radi-
alistas, oradores...) e tem despertado a realização de pesquisas recentes
na área da fonoaudiologia, principalmente voltada ao estudo da voz
falada (uso profissional da voz). Apesar dos diversos trabalhos existen-
tes, observam-se imprecisões conceituais e nas terminologias utilizadas,
o que favorece interpretações errôneas e confusas a respeito do ade-
quado uso da fala e voz, suscitando dúvidas ao comprometimento da
saúde vocal do locutor. Além disso, a literatura nacional é escassa de
estudos que abordem o momento específico da locução.
Diversos autores preocupam-se com a qualidade da voz como
um recurso para ganhar a credibilidade dos ouvintes, aumentando a
capacidade de persuasão. Nesse sentido, apresentam diversas sugestões
e comentários a respeito do uso da voz na locução. Sampaio (1971) re-
conhece a importância da inflexão da voz na capacidade de persuasão,
mas, ao propor que “a voz deve ser de preferência grave, pois sugere
sobriedade”, conduz o leitor ao uso indiscriminado de um padrão vo-
cal. Holsopple (1988) comenta a locução no rádio, valorizando ele-
mentos subjetivos de seu impacto sobre os ouvintes, tendo por obje-
tivo a voz soar como relaxada, confidente, amigável e com credibili-
dade. César (1990) destaca a responsabilidade do trabalho do locutor,
pois dela depende a credibilidade dos ouvintes e o sucesso de trabalho
dos seus companheiros. O autor atribui à voz importância efetiva na
comunicação pelo rádio e reconhece que, quando mal trabalhada ou
impostada, a voz provoca um efeito negativo na execução da comu-
nicação pelo microfone. Os fatores referentes ao locutor que, segundo
o autor, podem favorecer a comunicação pelo rádio são: voz, respira-
ção, dicção, ritmo, pontuação, gramática, vocabulário, entusiasmo,
conteúdo, improvisação e originalidade. César é um dos primeiros a
destacar com maior especificidade a voz e a fala do locutor, abordando
assuntos da área fonoaudiológica.

impulso 57 janeiro 99
Impulso.book Page 58 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Outros autores já apontam outros aspectos de valoração da voz,


como sua possibilidade de representatividade. Polito (1991) considera
a voz veículo de fundamental importância na condução da mensagem
e na representação vocal de aspectos subjetivos na comunicação, aler-
tando para cuidados com a voz, a fim de evitar prejuízos à comunica-
ção. Entre os itens abordados, destacam-se a respiração, a dicção, a ve-
locidade e a intensidade.
Klippert (1977) é outro autor que destaca as múltiplas possibili-
dades de expressões e de combinações da voz, distinguindo-a como
instrumento de produção de palavras (voz mediadora) da voz na peça
radiofônica (a voz que representa). Para ele:
Se se quiser dar o passo que leva da obra que apresenta para
a obra que representa, a voz não pode ser considerada apenas
como um meio para a produção de palavras. Apenas quando
a voz ganha valor próprio, no caso de uma narrativa, se ela
interpreta o seu monólogo, surge a peça radiofônica como
uma obra feita com e para as vozes. A voz entrou no jogo,
assumiu o caráter de um papel, de uma personagem, trans-
formou-se em voz representativa.
A história, a sociabilidade e a cultura também deixam suas mar-
cas de estilos de locução e uso da voz: a padronização da voz e da fala
nos meios de comunicação é tratada por Kropf (1990), ao tomar
como referência a era do rádio, nos anos 40/50, em que “as melodi-
osas vozes de apresentadores de programas e seriados e de atores de
radionovelas evidenciam as características do bem falar em moda
àquela época: a pronúncia do sul com os ‘erres’ vibrantes e a colocação
de voz no peito para se obter maior sonoridade”. Ainda hoje, muitos
radialistas inspiram-se neste modelo de fala.
Segundo Behlau e Ziemer (1988), a voz traz em si uma dimensão
sócio-educacional, em que padrões de identificação com determinado
grupo são incorporados por um processo de mimetismo cultural. Ado-
tam-se padrões de emissão comum a determinados grupos, como a
voz de locutor, de padre, de policial, de professora, etc. A adoção de
padrões culturais de emissão pode levar determinados falantes ao des-
gaste de suas estruturas fonatórias. Behlau e Ziemer (1988) citam o
uso do registro vocal basal como recurso de técnica vocal, comumente
observado na locução em finais de frase, o que deve ser evitado, já que
é prejudicial às pregas vocais. A voz fluida (emissão agradável, solta e
relaxada, com tendência à freqüência fundamental grave) é tida como
uma marca de locução comercial masculina e de apresentadores de te-
lejornal, conforme Behlau e Pontes (1995). Por intermédio de análise

impulso 58 janeiro 99
Impulso.book Page 59 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

perceptiva auditiva de vozes de 12 locutores em protocolo básico de


avaliação vocal, Navarro (1994) constatou que tanto locutores quanto
locutoras usam a voz com forte intensidade, 75% utilizam registro vo-
cal basal e 25% registro modal, sendo os tipos vocais mais comuns:
voz crepitante (50%) e voz fluida (41%). A autora conclui que o pa-
drão típico de locução profissional são a voz fluida e a voz crepitante.
As tendências atuais da locução são comentadas pelo locutor
“Chachá”, em entrevista ao jornal Meio e Mensagem (1993), afirman-
do que “no passado os textos eram de locução clássica, onde o locutor
preocupava-se apenas em falar o texto. Hoje vivemos a tendência da
interpretação, onde o locutor necessita saber o tom exato da voz a ser
utilizado, a respiração, porque ele tem que passar emoção para o co-
mercial”. Valorizando a interpretação, o locutor diferencia o trabalho
tradicional de leitura de textos do trabalho profissional do locutor pu-
blicitário.
Na disputa pela preferência dos ouvintes, são usados todos os re-
cursos vocais para criar condições condizentes com estilos, maneiras
de vida, tentando se identificar com ouvinte. Kyrillos et al. (1995) ob-
servam diferença entre as formas de atuação de locutores de rádios
AM e FM, mas admitem que não existe um padrão vocal específico
para as locuções em AM e FM, e sim uma adaptação do padrão vocal
ao estilo da rádio. Valendo-se das entrevistas realizadas com os locu-
tores, Kyrillos et al constataram que na contratação de locutores há ex-
pectativas quanto a: registro vocal específico, desenvoltura do locutor,
boa dicção e indicação de outros profissionais. Ao fazer análise de 16
radialistas de emissoras paulistanas, Ferreira (1995) concluiu que eles
realizam ajustes motores procurando uma qualidade vocal que carac-
terize o estilo da emissora. Há tendência de manter o pitch agravado,
loudness forte e ressonância laringo-faríngea, além de velocidade e rit-
mo de fala acelerados.
O comunicador que tem na voz e na fala seus instrumentos de
trabalho primordiais necessita de preparo e formação para desenvol-
ver condições de prevenção de problemas que poderiam ocasionar fa-
diga vocal, disfonias e alterações ou patologias vocais, bem como para
a promoção da saúde vocal permanente. A preparação para o uso pro-
fissional da voz sugere análises de como a voz vem sendo utilizada nos
meios de comunicação, ultrapassando sua dimensão de mero canal de
expressão para os fatores de significação e de representação. A men-
sagem vocal poderia ser trabalhada como mais um recurso de lingua-
gem do locutor, em função de seu discurso e de sua intensão comu-
nicativa.

impulso 59 janeiro 99
Impulso.book Page 60 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

A voz precisa ser ainda mais explorada e pesquisada enquanto


recurso expressivo, comunicativo e de representação para as locuções
publicitárias. As tendências de interpretação e de representatividade
apontam a necessidade de maiores estudos voltados ao momento real
de trabalho do locutor publicitário, o uso da voz nas propagandas.
Este artigo apresenta o resultado parcial de uma pesquisa em que fitas
de locuções publicitárias e de propagandas foram utilizadas para inves-
tigação, análise e caracterização das marcas específicas da voz e da fala
na locução publicitária.

MATERIAIS E MÉTODOS
O material de análise constou de 30 trechos de locuções publi-
citárias e comerciais, sendo 20 trechos de gravação de vozes masculi-
nas e 10 trechos de gravações de vozes femininas, escolhidos aleato-
riamente entre vários da fita de demonstração de locuções publicitárias
produzidas pelo Clube da Voz.1 As 20 vozes masculinas e as 10 femi-
ninas foram avaliadas por 12 fonoaudiólogas – 10 alunas e duas pro-
fessoras do Curso de Especialização em Voz, do Centro de Estudos da
Voz (SP), no ano de 1994. Cada fonoaudióloga recebeu um protocolo
de avaliação de múltipla escolha, preparado previamente de forma a
abranger dados relativos às diversas características vocais, em diversas
apresentações possíveis. Dessa maneira, o protocolo apresentava as se-
guintes opções de marcação, que deveriam ser assinaladas segundo a
percepção da avaliadora: qualidade vocal (fluida, bitonal, infantilizada,
rouca, gutural, nasalidade mista, soprosa, branca, áspera, crepitante,
sussurrada, comprimida e outra, a especificar); altura – pitch (grave,
normal ou aguda); intensidade – loudness (aumentada, reduzida ou
normal); modulação (excessiva, variada, repetitiva, restrita ou monó-
tona); ressonância (nasal, laringo-faríngea, equilibrada ou oral); velo-
cidade (aumentada, reduzida ou normal); articulação (sobrearticulada,
imprecisa, normal ou precisa); ao registro (falsete, basal ou modal, sen-
do que este deveria ser caracterizado entre peito, médio ou cabeça); e
ataque vocal (brusco, isocrônico ou aspirado). As profissionais basea-
ram-se nas definições dos tipos de voz e no estudo de textos que, pos-
teriormente, compuseram capítulos do livro de Behlau & Pontes, pu-
blicado em 1995.
1 O Clube da Voz é uma associação que tem a finalidade de assegurar o crescimento profissional de locuto-
res e profissionais da propaganda e publicidade, mediante a divulgação do trabalho dos locutores entre as
agências. A entidade foi criada na cidade de São Paulo por locutores profissionais. O Clube da Voz produz
gravações de trechos de locuções, spots e comerciais de seus associados, identificando as vozes pelo nome
dos locutores, a fim de que esse material seja uma amostra dos serviços profissionais para agências e empre-
sas, facilitando a escolha de vozes adequadas para representar seus produtos.

impulso 60 janeiro 99
Impulso.book Page 61 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Partindo da somatória das marcações em cada característica vo-


cal, foi calculada a porcentagem valendo-se do número total de iden-
tificações (360). Pela possibilidade de análise diferenciada pelo gênero,
locutor/locutora, também foi feito outro cálculo percentual, que diz
respeito ao total de identificações das locuções masculinas (240) e das
locuções femininas (120).

DISCUSSÕES E COMENTÁRIOS
A qualidade vocal predominante no total de locuções publicitá-
rias é a qualidade vocal fluida, identificada em 49,44% das locuções
analisadas. Na voz fluida, segundo Behlau & Pontes (1995), a laringe
está baixa e o movimento de vibração da mucosa é amplo, sendo que
representa um estágio de contração glótica intermediária entre as vo-
zes neutra e soprosa. Tais características fonatórias conduzem a um
maior conforto à fonação, com redução do desgaste e da fadiga vocal,
levando a uma opção natural dos locutores.
A qualidade vocal fluida é percebida auditivamente como uma
emissão agradável, solta e relaxada, com tendência à freqüência fun-
damental grave, segundo Behlau & Pontes (1995). Os efeitos auditivo
(para o ouvinte) e sensitivo (para o falante) produzidos por esta opção
vocal são condizentes com os apontamentos realizados pelos autores
da área de comunicação (Sampaio, 1971, e Holsopple, 1988), que
preconizam uma voz grave, soando como relaxada, confidente. Pode-
se ter uma “imagem auditiva” desta voz ao relembrar o cantor Elvis
Presley cantando a canção Love me tender. A voz fluida em locutores
também foi observada por Behlau & Pontes (1995) e Navarro (1994).
Apesar da fonação fluida ser mais confortável, os locutores não
têm consciência do tipo de voz empregada, por falta de preparo e de
orientações específicas a respeito do uso profissional da voz. Buscando
compreender a predominância da qualidade vocal fluida em locuções
publicitárias, pode-se supor que ela decorre da imitação de modelos
vocais comumente reconhecidos como padrão e aceitos socialmente.
Esta prática comum entre os locutores tolhe a “criação” na represen-
tação vocal, permitindo formas estereotipadas de estilo de locução. O
locutor sem um preparo vocal em sua formação profissional acaba até
naturalmente, ou por imitação, optando por um modelo de emissão
mais agradável, porém, sem que seja uma opção consciente. Dessa ma-
neira, deixa de lado a riqueza de poder explorar mais livremente a di-
versidade de produções e de recursos vocais.
A qualidade vocal soprosa, predominante nas locuções de vozes
femininas, representa a segunda maior característica, ocorrendo em

impulso 61 janeiro 99
Impulso.book Page 62 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

23,33% das locuções publicitárias analisadas. A qualidade vocal sopro-


sa típica, segundo Behlau & Pontes (1995), é de intensidade baixa e al-
tura grave. A voz soprosa transmite a idéia de sensualidade, sedução,
suavidade e intimidade (como se estivesse falando ao ouvido de al-
guém). Holsopple (1988), mesmo que não conceitue tecnicamente,
sugere a locução “suave” soando como “confidente”.
A qualidade vocal soprosa foi identificada em 12,91% das vozes
masculinas contra 44,16% das vozes femininas. A qualidade vocal so-
prosa é marca da locução feminina, podendo ser uma forma de re-
presentação do papel sócio-familiar da mulher, quando identificado
pela sensualidade, sedução, suavidade. Assim, afasta a idéia de agres-
sividade e de força, ao mesmo tempo em que se aproxima da idéia de
uma figura sensual, calma e suave.
A qualidade vocal neutra é a terceira em ocorrência dentre o to-
tal de locuções analisadas, com 13,61%. A qualidade vocal neutra é
aqui entendida como o padrão que mais se aproxima da voz falada ha-
bitual, na ausência de patologias, disfonias ou qualquer indício de dis-
função anátomo-funcional vocal. Trata-se da voz não-trabalhada e
não-explorada. No decorrer da história do teatro, rádio e televisão,
observamos que a fala e a voz vão gradativamente se aproximando do
padrão coloquial “na busca da naturalidade e da aproximação com o
dia-a-dia da audiência” (Kropf, 1990). Aos poucos, o artificialismo e a
falsa impostação de um padrão de fala nacional cede lugar às adapta-
ções das tendências regionais e a locução aproxima-se da fala habitual.
A função de representação vocal, no locutor, requer mais que
uma voz neutra: grande flexibilidade vocal e múltiplas possibilidades
de expressão vocal, necessárias para a representação do produto, da
idéia, do público a que se destina o produto, etc. Tal função compara-
se à idéia de Klippert (1977), quando define a “voz que representa”.
O produto da locução em qualidade vocal neutra torna-se muito
próximo da fala habitual, e empobrecida frente às possibilidades de
uma locução com exploração da função de representação vocal. O
desconhecimento das reais potencialidades vocais e o despreparo do
locutor em relação ao uso da voz são aspectos que podem contribuir
para a limitação da expressividade e do dinamismo.
A qualidade vocal crepitante identifica-se como exclusiva das lo-
cuções masculinas, correspondendo a 37,91% das locuções masculi-
nas analisadas. Segundo Behlau & Pontes (1995), a qualidade vocal
crepitante resulta do uso do registro vocal basal ou pulsátil, que pode
ser utilizado em finais de frases, inflexões de tristeza ou recurso de ora-
tória ou radiodifusão. Tal emissão vocal caracteriza-se por tom grave,

impulso 62 janeiro 99
Impulso.book Page 63 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

pequena intensidade, aperiodicidade, podendo ocorrer vibração de


pregas vestibulares e configurando um abuso vocal. Uma “imagem au-
ditiva” da voz crepitante é possível ao relembrar a fala do apresentador
Gil Gomes, em finais de frases, em que o som é agravado, sonora-
mente desagradável. É interessante notar que não houve nenhuma
indicação de ocorrência de qualidade vocal crepitante dentre as vozes
femininas avaliadas.
A caracterização da voz crepitante como tendo tom grave e uso
de registro vocal basal talvez possa explicar a opção de falantes mas-
culinos por este padrão vocal, já que, segundo Leite e Viola (1995), o
pitch agravado sugere autoridade e masculinidade. Na busca de indi-
cadores de masculinidade e representação social de autoridade, os lo-
cutores do sexo masculino recorrem ao uso da voz crepitante, carac-
terizando, assim, o modelo vocal do papel masculino. Tal modelo tem
sido expresso na curva melódica da locução, comumente em finais de
frases, de acordo com Behlau e Ziemer (1988). Novamente nos de-
paramos com o uso estereotipado de uma determinada qualidade vo-
cal e estilo de locução que pode ser considerado mau uso vocal, pas-
sível de comprometer a saúde vocal do locutor. O uso da voz crepi-
tante, como recurso de locução, pode ser fruto do despreparo do lo-
cutor nos cuidados com sua saúde vocal.
A altura vocal ou freqüência fundamental é um parâmetro dire-
tamente ligado à freqüência da vibração das pregas vocais, e a forma
como julgamos o som, no que diz respeito a sua altura (pitch), consi-
derando-o mais grave ou mais agudo, depende basicamente da fre-
qüência fundamental do som. A altura (pitch) da voz apresenta-se em
62,5% das marcações como altura grave e 30,55% como altura mé-
dia. O padrão de locução feminino caracteriza-se pelo uso das alturas
grave e média, em proporções praticamente equivalentes.
Já a locução masculina apresenta uma prevalência bastante sig-
nificativa da altura grave, demonstrando que a voz, de altura grave, é
utilizada como recurso de afirmação masculina. A preferência pela voz
grave é justificada por Sampaio (1971) pela representação vocal de so-
briedade, conduzindo à credibilidade e à capacidade de persuasão. Da
mesma maneira, Ferreira (1995) observou a tendência geral dos locu-
tores em optar por esta altura de voz. De acordo com as observações
de Behlau e Pontes (1990), vozes mais graves representam indivíduos
autoritários e enérgicos, associadas a personalidades mais maduras.
Nesse caso, podemos inferir que a opção da altura de voz masculina
venha a corresponder a uma representação vocal de um papel social
masculino de autoridade, segurança e força.

impulso 63 janeiro 99
Impulso.book Page 64 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

A intensidade é um parâmetro que pode ser medido objetiva-


mente em decibéis ou por uma avaliação da sensação de intensidade
(loudness), ou seja, como consideramos um som forte, adequado ou
fraco, considerando sua projeção. A intensidade (loudness) apresenta-
se normal em 72,22% dos registros, o que demonstra que ela varia
pouco. A intensidade reduzida equivale a 20,55% das vozes avaliadas,
com maior recorrência nas vozes femininas. A intensidade reduzida
pode ser pouco explorada por distanciar-se da idéia de firmeza, apro-
ximando-se à idéia de insegurança e fragilidade de quem, segundo Pa-
ternostro (1990), “fala para dentro, como se estivesse resmungando”.
A intensidade aumentada é pouco explorada, ocorrendo em so-
mente 6,66%. O uso da intensidade normal na voz falada em publi-
cidade marca a diferenciação entre este e outros tipos de locução. A in-
tensidade normal de voz e de fala em locuções publicitárias e comer-
ciais diferencia-se, por exemplo, da locução esportiva, que tem eleva-
do valor de intensidade habitual (Lourenço et al. 1994). Também se
diferencia: das locuções de apresentadores de AM e FM, que apresen-
tam intensidade forte (Kyrillos et al. 1995); da forte intensidade das
vozes de locutores profissionais (obtida por meio da vogal /a/ susten-
tada, nos sujeitos avaliados por Navarro [1994]); de loudness forte en-
contrada em vozes de radialistas por Ferreira (1995).
A modulação predomina variada, sendo marcada em 71,94%
das locuções. A modulação não foi especificamente abordada na lite-
ratura consultada. Tratando-se de locução, a voz deve ser flexível e va-
riada o suficiente para adaptar-se às representações dos diversos
conteúdos informativos/publicitários, tornando-se interessante, criati-
va e envolvente. A modulação variada é desejável para a locução pu-
blicitária e comercial, pois, por meio da voz, o locutor interpretará o
texto e representará o produto, a emissora e, até mesmo, o próprio
ouvinte/consumidor.
A ressonância é a amplificação da intensidade de sons de deter-
minadas freqüências e o amortecimento de outras. A ressonância pre-
domina equilibrada no total das locuções, com 65,55%. Para Behlau
& Pontes (1995), a ressonância equilibrada associa-se à facilidade de
exteriorizar a emoção, demonstrando equilíbrio psicoemocional. A
ressonância equilibrada traz a idéia de estabilidade sócio-emocional do
falante/locutor, aumentando as chances de credibilidade no conteúdo
de sua mensagem. O produto final da locução aproxima-se, dessa ma-
neira, do padrão coloquial de fala, sem características marcantes ou al-
terações que possam desviar a atenção do ouvinte.

impulso 64 janeiro 99
Impulso.book Page 65 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

A ressonância laringo-faríngea aparece em 2,5% das vozes femi-


ninas e em 17,91% das vozes masculinas. Ferreira (1995) aponta a res-
sonância laringo-faríngea como um dos recursos utilizados pelos radi-
alistas. Como a ressonância laringo-faríngea é indicativa de tensão, po-
demos buscar compreender a maior ocorrência em vozes masculinas
em duas interpretações: a tensão aparece como mais uma tentativa de
representação da “força” masculina ou esta tensão é produto do re-
curso inadequado de locução do uso da voz crepitante, tendo, em am-
bas possibilidades, a maior ocorrência da ressonância laringo-faríngea
em vozes masculinas.
A velocidade de fala predomina como normal, com 84,44% das
locuções. É muito pequena a ocorrência da velocidade aumentada
para as vozes masculinas na locução comercial, o que se observa em
apenas 2,08%. Polito (1991) não refere especificidades quanto à ve-
locidade. Para ele, cada orador e cada assunto terão sua velocidade
própria. Já Oliveira (1993) defende a necessidade de fala acelerada na
narração de partidas de futebol e em determinados comerciais, em
função do pouco tempo de que os locutores dispõem para fazer a nar-
rativa. Os dados sugerem a afirmação de que as locuções publicitárias
e comerciais são realizadas com velocidade normal, tanto em vozes
masculinas quanto femininas, independentemente do timing do co-
mercial.
A articulação da fala predomina como normal no total das lo-
cuções, com 66,11% de marcações, seguida por 21,94% de articula-
ção precisa. A grande ocorrência da articulação normal reflete a apro-
ximação com o padrão da voz falada coloquial, da comunicação in-
terpessoal, direta, face-a-face. A articulação é muito importante para a
inteligibilidade da fala do locutor, porém, não adquire relevância iso-
ladamente, mas sim no conjunto dos aspectos vocais que compõem a
atividade de locução, sendo considerada no momento da contratação
de um locutor (Ferreira et al, 1995). As locuções analisadas, apesar de
se tratarem de vozes de locutores profissionais, ainda trazem impreci-
sões articulatórias. A dicção e a articulação são pontos que devem ser
melhor explorados nos cursos de formação de radialistas/locutores, a
fim de tornarem-se mais precisas no uso profissional da voz.
O registro vocal utilizado na emissão das locuções é o registro
modal, entre as variações modal-misto (39,44%) e modal-peito
(36,66%). Há especificidades e divergências de variação do registro
modal entre os gêneros masculino e feminino. Na locução feminina,
o grande predomínio foi do registro modal-misto, com 70% de
ocorrência, contra apenas 2,5% de registro modal-peito – divergência

impulso 65 janeiro 99
Impulso.book Page 66 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

surpreendente quanto aos valores obtidos na locução masculina:


24,16% para modal-misto e 53,75% para modal-peito. Outra dife-
rença encontrada é a ocorrência de registro modal-cabeça (19,16%)
em locuções femininas, pois tal registro facilita a emissão de tons agu-
dos, predominante em mulheres.
Entre as opções de registro vocal analisadas, podemos concluir
que a locução publicitária é realizada sempre em registro modal, sendo
as categorias mais utilizadas modal-misto e modal-peito. Há especifi-
cidades importantes que distinguem locuções masculinas das femini-
nas: registro modal-cabeça predominante nas locuções femininas; re-
gistro modal-peito, nas masculinas. Tais distinções ocorrem em função
dos ajustes fonatórios e da anátomo-fisiologia natural da fonação, fa-
vorecendo a cada sexo o uso de determinado registro.
O ataque vocal é “a maneira como se inicia o som e está relaci-
onado à configuração glótica no momento da emissão. O ataque vocal
pode ser realizado de três modos: isocrônico, brusco e aspirado”
(Behlau & Pontes, 1995). O ataque vocal utilizado em locuções pu-
blicitárias e comerciais é o isocrônico (também chamado suave ou nor-
mal, ocorre quando a fase expiratória da respiração coincide com o
início da vibração das pregas vocais, sem perda de ar nem excesso de
tensão) em 69,72% das locuções avaliadas.
O ataque vocal brusco ocorre em 18,61% do total das locuções.
Ele é característico de quadros de fonação hipertônica (há uma forte
adução das pregas vocais, aumentando a pressão infraglótica que, ao
afastar as pregas vocais, o faz de maneira brusca, com um “ruído de
soco” que antecede a emissão do som), sendo também encontrado na
fonação normal em situações de agressividade e ansiedade (Behlau &
Pontes, 1995). Contudo, a presença de ataque vocal brusco nas lo-
cuções analisadas pode reforçar a idéia de inadequação do uso da téc-
nica vocal, com tensão e esforço, em momentos em que a agressivi-
dade e a ansiedade não são compatíveis com o conteúdo das mensa-
gens das gravações analisadas.

CONCLUSÕES
Na publicidade, criam-se necessidades a partir dos valores agre-
gados aos produtos. As mercadorias são estetizadas e recebem deter-
minadas valorações que se relacionam com a afetividade humana, a se-
xualidade, a jovialidade, a liberdade. A voz, neste caso, é essencial para
descrever o produto, dimensionar sua existência material com certos
aspectos subjetivos, representando-o e ao público a que se destina.

impulso 66 janeiro 99
Impulso.book Page 67 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

O trabalho de locução publicitária reforça, quase sempre, uma


representação de papéis sócio-culturais, vinculados com produtos, es-
tilos de vida, comportamentos. O que se busca é a aproximação e
identificação com o ouvinte, de maneira a persuadi-lo.
Nesse sentido, são pré-requisitos para os locutores profissionais:
excelentes preparo vocal e saúde vocal, que ofereçam suporte para a
demanda de flexibilidade, expressividade e representatividade vocal
do locutor publicitário.
Apesar das demandas de representatividade e plasticidade vocal,
a locução publicitária e comercial tem apresentado características
estilísticas e vocais estereotipadas, que vêm sendo reproduzidas como
modelos pelos locutores, limitando suas possibilidades expressivas e
interpretativas. Em geral, há uma tendência à neutralização de pa-
drões, com aproximação da fala coloquial. Daí a prevalência das qua-
lidades vocais fluida e neutra, articulação normal, ressonância equili-
brada, intensidade normal e velocidade de fala normal.
Alguns modelos vocais arcaicos continuam sendo reproduzidos,
tomados como modelo e influenciando os locutores atuais em seu es-
tilo e uso profissional da voz, tais como: o uso do pitch grave, a qua-
lidade vocal crepitante e o registro modal-peito entre os locutores mas-
culinos. A opção do profissional da voz pela qualidade vocal fluida é
fisiologicamente mais confortável para a fonação do locutor, mas não
deve ser realizada meramente por reprodução de modelos. O fonoau-
diólogo pode também auxiliar o locutor com técnicas específicas de
variação da intensidade e velocidade de fala e articulação, de acordo
com a intenção discursiva e o conteúdo da mensagem publicitária, de
forma a explorar melhor os atuais modelos.
As locuções publicitárias trazem especificidades interessantes
quanto ao sexismo na voz. Há marcadores e características vocais que
diferem a locução masculina da feminina: na locução masculina são
utilizados, com maior enfoque, altura grave, ressonância laringo-farín-
gea e registro modal-peito. A qualidade vocal crepitante é marcador
exclusivo de locuções masculinas. Os marcadores específicos da locu-
ção masculina são compreendidos como representativos da imagem
masculina de força, autoridade e segurança, socialmente valorizada e
reforçada pela mídia como recurso de credibilidade. Na locução femi-
nina são utilizadas as alturas média e grave em proporções equivalen-
tes, o que demonstra forte tendência feminina em buscar a imitação do
modelo de locução masculina. A qualidades vocais soprosa e sussur-
rada e o ataque vocal aspirado são marcadores de voz feminina nas lo-
cuções publicitárias, suscitando representações de sensualidade, sedu-

impulso 67 janeiro 99
Impulso.book Page 68 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

ção e suavidade da imagem feminina pelos meios de comunicação de


massa.
As características de qualidade vocal acima descritas poderiam
ser utilizadas mais conscientemente pelos locutores publicitários, ob-
jetivando efeitos interpretativos, representativos e persuasivos especí-
ficos, variando em função de cada peça publicitária. Então, a voz pas-
sa, de mero canal expressivo, para um forte recurso representativo.
Apesar do material de análise deste trabalho ser produzido por
locutores profissionais, diversos comportamentos vocais foram identi-
ficados e caracterizados como passíveis de mau uso e de abuso vocal
que, do ponto de vista fonoaudiológico, poderiam trazer prejuízos clí-
nicos e do uso profissional da voz do locutor. Podemos citar exemplos:
ressonância laringo-faríngea, uso abusivo das qualidades vocais crepi-
tante e soprosa, ataque vocal brusco, produção de modelo vocal ina-
dequado com altura grave, entre outros.
Este trabalho pôde desvendar características da locução, da voz
e da fala utilizadas por profissionais da voz em publicidades, levando
à constatação de que os estilos e modelos de locução padronizados nos
meios de comunicação de massa limitam a criatividade e a expressivi-
dade do locutor.
O trabalho com flexibilidade vocal, campo dinâmico da voz e
plasticidade vocal, conjuntamente com informação e educação quanto
aos cuidados de saúde vocal, higiene vocal, mau-uso/abuso vocal, ob-
jetiva oferecer melhores condições aos locutores para que explorem os
recursos vocais disponíveis com responsabilidade e profissionalismo.
Nesse sentido, é importante difundir e estimular a ação fonoaudioló-
gica direcionada à formação de locutores, oferecendo embasamento
teórico/prático. Assim, pode-se imaginar maior liberdade e superação
dos mitos e padrões estereotipados de locução, o que pode facilitar a
representação vocal necessária ao trabalho de locução publicitária, de
propagandas e comerciais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDREWS, M.L. Manual of Voice Treatment Pediatrics Through
Geriatrics. San Diego: Singular, 1995.

BEHLAU, M. & PONTES, P. Princípios de Reabilitação Vocal nas Dis-


fonias. São Paulo: EPPM, 1990.

impulso 68 janeiro 99
Impulso.book Page 69 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

____________. Avaliação e Tratamento das Disfonias. São Paulo:


Lovise, 1995.

BEHLAU, M. & ZIEMER, R. Psicodinâmica vocal. In: FERREIRA,


L.P et al. Trabalhando a Voz. São Paulo: Summus Editorial,
1988.

CESAR, C. Como Falar no Rádio: prática de locução AM e FM. São


Paulo: IBRASA, 1990.

COSTA, B.C.G. O “Estado” da educação na “Folha” de jornal: como


os jornais de grande circulação abordam a questão educacional.
Tese Mestrado. UFSCAR, São Carlos, 1993.

FERREIRA, L.P. Achados fonoaudiológicos em grupo de 16 radialistas


atuantes em emissora de rádio da cidade de São Paulo. Anais,
Fonoaudiologia Hoje - III Congresso Internacional de Fonoaudi-
ologia. São Paulo, 1995.

HOLSOPPLE, C.R. Skills for Radio Broadcasters. Tab Books, Blue


Ridge Smith, P.A. 1988. Jornal Meio e Mensagem, n. 553, 26/04/
1993.

KLIPPERT, W. Elementos da peça radiofônica (1977). In: SPERBER,


G.B. (org.). Introdução à Peça Radiofônica. São Paulo: EPU,
1980.

KROPF, M.H. Contribuições de voz e fala para o ator de telenovela.


Tese Mestrado. ECA/USP, São Paulo, 1990.

KYRILLOS, L.C.R. et al. Posturas comunicativas de radialistas de AM


e FM. Pró-Fono Revista de Atualização Científica, Edição Espe-
cial, Carapicuíba: 7: 28-31, 1995.

LEITE, A.P.R.C. & VIOLA, I.C. A qualidade vocal em locutores de


rádio AM e FM, Pró-Fono Revista de Atualização Científica,
Edição Especial, Carapicuíba: 7: 37-40, 1995.

LOURENÇO, L.; LOPES, C.; MONTEIRO, M.; RODRIGUES, S. &


KALIL, D. O perfil vocal do locutor esportivo. Anais, V Con-
gresso Nacional de Fonoaudiologia. Petrópolis, 29/9 a 2/10 de
1994.

impulso 69 janeiro 99
Impulso.book Page 70 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

NAVARRO, C.A. Perfil dos locutores profissionais. Anais, V Con-


gresso Nacional de Fonoaudiologia. Petrópolis, 29/9 a 2/10 de
1994.
OLIVEIRA, I.B. A educação vocal na radiodifusão. In: FERREIRA,
L.P. et al. Trabalhando a Voz. São Paulo: Summus, 1993.
PATERNOSTRO, V.I. A arte de falar na TV. Revista de Comunicação,
Rio de Janeiro: 6(22): 21, 1990.
POLITO, R. Como falar Corretamente e sem Inibições. São Paulo:
Saraiva, 1991.
SAMPAIO, W. Jornalismo Audiovisual: teoria e prática do jornalismo
no rádio, TV e cinema. Petrópolis: Vozes, 1971.
SPERBER, G.B. et al. Introdução à Peça Radiofônica. São Paulo:
E.P.U., 1980.

impulso 70 janeiro 99
Impulso.book Page 71 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 71 janeiro 99
Impulso.book Page 72 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 72 janeiro 99
Impulso.book Page 73 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

O “Novo” e o
“Velho”: o trabalho
e o processo produtivo
em discussão
The “new” and the
“old”: the labor and
the productive process
in discussion
RESUMO – O artigo diz respeito ao debate sobre os paradigmas da reestruturação
LÚCIO ALVES DE BARROS
produtiva. Para isso, foi codificado o taylorismo, o fordismo e as principais estra- Licenciado e bacharel em
tégias do que se convencionou chamar produção flexível (toyotismo). O texto é Ciências Sociais pela UFJF; mestre
em Sociologia pela UFMG
didático e busca em linhas gerais evidenciar os principais determinantes do pro-
cesso de trabalho e organizacional. Apesar de termos dividido arbitrariamente as
propostas dos autores, acreditamos que estas não devem ser entendidas como eta-
pas sucessivas e determinadas tanto no espaço quanto no tempo. Tratam-se de
processos complexos, que assumiram diferentes perfis conforme o desenvolvimen-
to tecnológico do sistema capitalista.

Palavras-chave: trabalho – reestruturação – processos produtivos – tecnologia.

ABSTRACT – The article has to do with the debate about the paradigms of the pro-
ductive reestructuration for that, it was codified the taylorism, the fordism and the
main strategies of what it is the so called flexible production (toyotism). The text
is didatic and in general terms tries to evidence the determining principles of the
labor process and organizational. In spite of having arbitratly divided the author’
s proposals, we believe that those proposals should not be understood as sucessive
stages, determinated in space and in time as well. Those are complex processes
that have assumed diferent profiles according to the technological development of
the capitalistic system.

Keywords: labor – reestructuration – productive processes – technology.

impulso 73 janeiro 99
Impulso.book Page 74 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

INTRODUÇÃO

A intensa introdução de novas tecnologias no processo produ-


tivo vem suscitando inúmeros debates no campo das Ciên-
cias Sociais. Dentro do processo de adaptação de novas tec-
nologias, a forma de como se organiza o trabalho e a produção tem
assumido grande relevância. A incorporação de novas técnicas e de
meios organizacionais que possam garantir maior produção e, com
ela, a qualidade passou de necessária a obrigatória, tendo em vista a ga-
rantia de competitividade junto ao mercado consumidor.
As novas condições de produção das empresas vêm alarmando
o mundo do trabalho, trazendo em seu encalço mudanças significati-
vas, tanto em sua natureza quanto na percepção de seu papel pelas ge-
rências, sobretudo no que se refere ao trabalho produtivo na indústria.
As implicações dessas mudanças ainda estão em curso e o futuro da
gestão do trabalho aponta para uma radical revisão dessa categoria en-
quanto chave de produção.1
O objetivo deste texto é sistematizar e discutir os principais de-
terminantes dos processos produtivos que, no decorrer da história, ele-
varam o trabalho vivo de “herói” a “vilão” no chão da fábrica. É nosso
interesse delinear as principais características das relações de trabalho,
construídas de diferentes maneiras no chão de fábrica. Além disso,
cabe ressaltar os principais determinantes que, de uma forma ou de
outra, apontam para um novo perfil das organizações.
Para isso, dividimos o texto em três partes: a primeira deixa claro
ao leitor o nascimento da ciência da administração, mostrando o início
da preocupação quanto ao processo produtivo inaugurado por Frede-
rick Taylor. O sistema proposto por esse engenheiro visava aproveitar
ao máximo o tempo do trabalho manual; para tanto, centralizou
esforços para metodizar e, posteriormente, controlar o trabalho. Na
segunda parte, apresentamos o sistema de produção de Henry Ford.
Preocupado com o ritmo, esse industrial incorporou ao sistema pro-
dutivo a linha de montagem, aumentando enormemente a produção.
Na terceira e última parte, descrevemos as recentíssimas modificações
produtivas, inauguradas pelo sistema de produção flexível Toyota,
que, por meio de novas técnicas de gestão do trabalho e de organiza-
ção administrativa, vem trazendo uma nova roupagem ao processo de

1 Para uma análise dessa temática no caso brasileiro, ver a cuidadosa análise de CARVALHO, 1993. No
texto, o autor argumenta que a crise é mais aguda no caso brasileiro, uma vez que, apesar das intensas e
complexas inovações tecnológicas no país, ainda persistem relações de trabalho de cunho taylorista, basea-
das principalmente na utilização de força de trabalho mal qualificada e mal remunerada.

impulso 74 janeiro 99
Impulso.book Page 75 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

trabalho, modificando de maneira extraordinária os lugares, os papéis


e as características dos atores presentes na produção.

O TAYLORISMO
Em 1878, então com 22 anos, o insistente jovem Frederick
Winslow Taylor (1856-1915) empregava-se na oficina de construção
de máquinas Midvale Steel Company, na Filadélfia. Nessa fábrica, ocu-
pou diversos cargos, chegando a engenheiro chefe, em 1889. Consi-
derado o fundador da Escola de Administração Científica, contribuiu
para a consolidação da Administração como ciência. Oriunda das ci-
ências sociais, a Administração tem por finalidade a tentativa de apli-
cação dos métodos da ciência empírica aos problemas gerenciais, com
o objetivo de alcançar uma elevada eficiência industrial. Taylor teve
inúmeros seguidores e provocou uma verdadeira revolução no pensa-
mento administrativo e no mundo industrial de sua época.
No entanto, esse autor é de grande importância para os estudos
que se direcionam para a categoria trabalho. Ao contrário de outras
abordagens,2 esse engenheiro, além de dar ênfase às praticas adminis-
trativas, chamou atenção para a “problemática” do movimento huma-
no enquanto trabalho. Dessa forma, buscou racionalizar e metodizar
os movimentos do operário, visando a melhoria das condições de ren-
dimento e o aumento da produtividade.
O taylorismo – nomenclatura utilizada pelos estudiosos – tinha
por objetivo prático solucionar os problemas americanos no início do
século XX. Os problemas econômicos por que passavam o país eram
delegados por Taylor aos grandes desperdícios e à pequena produtivi-
dade norte-americana, que, devido à disparidade de métodos admi-
nistrativos, não conseguia levar em conta os reais problemas que en-
volviam o ato produtivo. Na busca da solução, Taylor observou que o
trabalho era a chave para solucionar os problemas. Sem reservas, cul-
pou a “vadiagem no trabalho” como causa primeira dos desperdícios
e dos altos custos das indústrias americanas. Para Taylor,
O trabalhador vem ao serviço, no dia seguinte, e em vez de
empregar todo o seu esforço para produzir a maior soma
possível de trabalho, quase sempre procura fazer menos do
que pode realmente e produz muito menos do que é capaz.
2 O paradigma disponível neste contexto é a obra de FAYOL (1958). Nela, Fayol chama a atenção para a
Administração como fator preponderante. A importância não é dada às questões que envolvem a organiza-
ção do trabalho no chão da fábrica, mas sim aos aspectos administrativos e de negociação. Esta obra, já con-
siderada clássica nos círculos da administração, divide-se em duas partes. A primeira destaca a necessidade e
a possibilidade de um ensino administrativo e a segunda refere-se aos princípios e elementos de Administra-
ção, ambos tendo por finalidade a busca de maiores rendimentos e produtividade.

impulso 75 janeiro 99
Impulso.book Page 76 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

(...) Trabalhar menos, e isto é, trabalhar deliberadamente de-


vagar, de modo a evitar a realização de toda a tarefa diária,
fazer cera (...) é o que está generalizado nas indústrias.3
Segundo Taylor, esse era o maior problema para a economia
americana, bem como para os próprios trabalhadores. Acreditava que
a “perda do tempo mínimo” no trabalho diário acarretava problemas
para ambas as partes, tanto para os empregadores quanto para os em-
pregados. Afirmava que: “a administração científica tem, por seus fun-
damentos, a certeza de que os verdadeiros interesses de ambos são um,
único e mesmo” e que a maior prosperidade dependeria do maior es-
forço e cooperação de ambos. E achava que: “a maior prosperidade
decorre da maior produção possível dos homens e máquinas do esta-
belecimento, isto é, quando cada homem e cada máquina oferecem o
melhor rendimento possível”.4
Para evitar a “cera” no trabalho e garantir melhores resultados de
produção, construiu sua ciência da Administração. Atento às adminis-
trações anteriores às suas, observou que essas tinham por fundamento
básico apenas os métodos empíricos provenientes da pura experiência,
e não de métodos estritamente racionais e passíveis de cientificidade.
Percebeu que, anteriormente, a prática do trabalho manual repousava
na tradição pessoal de cada trabalhador e que esse o executava con-
forme seus desígnios e vontades. Com base em suas experiências pes-
soais, afirmava que a própria ação do trabalhador estava direcionada
a ações coercitivas e contrárias à gerência, numa tentativa explícita de
controle da produção, e de variáveis que envolviam o mercado de tra-
balho.
A saída apontada por Taylor será a substituição dos métodos em-
píricos por métodos mais eficientes, que chamou “científicos”. Em
busca de seu objetivo, procurou extrair do trabalhador a sua força cri-
adora, que para ele, além de “coercitiva”, em nada contribuía para o
trabalhador; assim afastou o trabalho intelectual do operário frente à
natureza de seu trabalho. Desse modo, elaborou o seu principal prin-
cípio: a divisão de tarefas entre a gerência e os trabalhadores: “a fim
de que o trabalho possa ser feito de acordo com leis científicas, é ne-
cessário melhor divisão de responsabilidades entre a direção e o tra-
balhador”.5
Taylor tinha por finalidade a retirada da iniciativa do operário.
Nutria preconceitos quanto a essa iniciativa. Acreditava que o interesse
3 TAYLOR, 1970, p. 32.
4 Ibid., p. 31.
5 Ibid., p. 41.

impulso 76 janeiro 99
Impulso.book Page 77 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

do trabalhador ia de encontro ao das indústrias. Para isso, criou a fi-


gura do gerente, indispensável na garantia de maior produtividade:
A administração deve planejar e executar muitos dos traba-
lhos de que até agora têm sido encarregados os operários,
quase todos os atos dos trabalhadores devem ser precedidos
de atividades preparatórias da direção, que habilitam os ope-
rários a fazerem seu trabalho mais rápido e melhor do que
em qualquer outro caso.6.
Observa-se, então, nos trabalhos de Taylor, uma preocupação
quanto ao aumento da produtividade, e um dos pontos principais de
sua técnica é a separação entre as funções de preparação e de exe-
cução, visando enfrentar todas as variáveis que possam interferir no
bom andamento do trabalho manual.
Identificada a origem dos problemas, Taylor passará a investigar
os movimentos do trabalhador em seu próprio ambiente de trabalho,
instituindo o uso da medida e o estudo científico do tempo.
A notável economia de tempo e o conseqüente acréscimo de
rendimento, possíveis de obter pela eliminação de movimen-
tos desnecessários e substituição de movimentos lentos e ine-
ficientes por movimentos rápidos em todos os ofícios, só po-
derão ser apreciados de modo completo depois que forem
completamente observadas as vantagens que decorrem de
um perfeito estudo do tempo e movimento feito por pessoa
competente.7
Estabeleceu dessa maneira a utilização da cronometragem, asso-
ciando-a ao estudo dos movimentos, para verificar quais aqueles que
eram executados pelo trabalhador que poderiam ser eliminados por
serem prejudiciais, antagônicos ou inúteis no conjunto das atividades
que ele é obrigado a fazer no trabalho. Como objeto, observou o car-
regamento de barras de ferro na Bethlehem Steel Company, onde in-
troduziu a figura do gerente, o cronômetro e o trabalhador passivo e
manso, contendo o seguinte estereótipo:
Um dos primeiros requisitos para um indivíduo que queria
carregar lingotes como ocupação regular é ser tão estúpido e
fleumático que mais se assemelhe em sua constituição men-
tal a um boi. Um homem de reações vivas e inteligentes é,
por isso mesmo, inteiramente impróprio para tarefa tão mo-
nótona.8
6 Ibid., p. 41.
7 Ibid., p. 40.
8 Ibid, p. 66.

impulso 77 janeiro 99
Impulso.book Page 78 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Taylor não se preocupou em evidenciar os aspectos humanos e


subjetivos do trabalhador. No que diz respeito às regras técnicas, bus-
cou e admitiu apenas os operários considerados “mansos” e “fortes”,
predominando sempre a preocupação em adaptar o homem ao ma-
quinário. Ainda referindo-se a Schmidt, trabalhador holandês, objeto
de suas experiências, assevera que:
O único homem entre oito, capaz de fazer o trabalho, não
tinha em nenhum sentido características de superioridade so-
bre os outros, apenas era um homem tipo bovino, espécime
difícil de encontrar, e, assim, muito valorizado. Era tão es-
túpido quanto incapaz de realizar a maior parte dos traba-
lhos pesados. A seleção, então, não consistiu em achar ho-
mens extraordinários, mas simplesmente em escolher entre
homens comuns os poucos especialmente apropriados para o
tipo de trabalho em vista.9
Taylor procurou delinear seus estudos, apresentando-os com
uma estrutura simples e definida, indicando até mesmo os princípios
aos quais a organização científica deveria obedecer. Didático, ensinava
ao futuro administrador a maneira eficaz de convencer o trabalhador.
A cooperação íntima e pessoal entre a direção e os trabalhadores era
o ponto central de sua proposta. Para isso, não negou esforços para de-
monstrar a eficácia do aumento salarial decorrente da intensificação
do trabalho.
Preocupado com as imensas perdas que a nação sofria, buscava
convencer o leitor mostrando que a melhor solução dos problemas
que envolviam o trabalho estava na organização científica, baseada em
regras, fatos e princípios definidos, e não na procura de homens ex-
cepcionais.
Autor insistente, defendia que seu método era o caminho para
qualquer área que quisesse garantir a produtividade e que todas deve-
riam se subordinar aos critérios da ciência da organização. Para exercer
a ciência e alcançar esses objetivos, Taylor elaborou diversos princípios
sintetizados em:
• princípio de planejamento: substituir no trabalho o critério in-
dividual do operário, a improvisação e a atuação empírico-prá-
tica, pelos métodos baseados em procedimentos científicos.
Substituir a improvisação pela ciência, por meio do planeja-
mento do método;
9 Ibid, p. 68.

impulso 78 janeiro 99
Impulso.book Page 79 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

• princípio de preparo: selecionar cientificamente os trabalhado-


res de acordo com suas aptidões e prepará-los e treiná-los para
produzir mais e melhor, e de acordo com o método planejado.
Além do preparo da mão-de-obra, preparar também as
máquinas e os equipamentos de produção, bem como o ar-
ranjo físico e a disposição racional das ferramentas e materiais;
• princípio de controle: controlar o trabalho para certificar de
que ele está sendo executado de acordo com as normas esta-
belecidas e segundo o plano previsto. A gerência deve coope-
rar com os trabalhadores para que a evolução do trabalho seja
a melhor possível;
• princípio de execução: distribuir distintamente as atribuições e
as tarefas, para que a execução do trabalho seja bem mais dis-
ciplinada.
O taylorismo encontrou terreno fértil nos Estados Unidos. Os
administradores o tinham como uma solução, que permitia diminuir
a organização e o poder dos trabalhadores sobre o processo de traba-
lho. O sistema de Taylor favoreceu a entrada de operários não-quali-
ficados nas fábricas, além dos trabalhos feminino e do menor. O taylo-
rismo, ao supor a “cooperação”, conseguiu abarcar grandes contin-
gentes de trabalhadores, que se submetiam à baixa remuneração; dessa
forma, impôs-se como norma “eficaz” de organização do trabalho e da
produção.
Para finalizar esta parte, é interessante lembrar que o taylorismo
não se desenvolveu apenas nos EUA – típico país capitalista. O sistema
também foi introduzido na antiga URSS, por Lênin. Sua justificativa
era que esse sistema não era utilizado para a exploração do trabalha-
dor, pelo contrário, era direcionado a sua libertação. Afinal, tratava-se
de acelerar, o máximo possível, a industrialização, para que fosse pos-
sível uma futura sociedade igualitária. Outro aspecto é que o produto
do trabalho não seria apropriado por um único capitalista; toda rique-
za seria destinada ao Estado, uma vez que a propriedade privada dos
meios de produção fora eliminada com a revolução de 1917.
O sistema encontrou inspiração em Alexey Stackanov. Apelidado
de “Taylor soviético”, surgiu quando a economia russa encontrava-se
em plena depressão, por volta de 1920. Tratava-se de um operário mi-
neiro com grande vigor físico, senso de observação e força de vontade.
Ele verificou que os operários executavam tarefas com ferramentas de-
sapropriadas e com grande dispêndio de atenção e movimentos. Para
solucionar o problema, decidiu aplicar a si mesmo a diminuição dos

impulso 79 janeiro 99
Impulso.book Page 80 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

movimentos corporais que se mostravam desnecessários. Além disso,


introduziu o uso de ferramentas mais leves para a retirada de carvão
das minas. Esse fato aumentou sua produção de 15 para 102 toneladas
por dia. Com o aumento da produção, desencadeou-se no país um
movimento denominado “stackanovista”, que permitiu a recuperação
econômica da URSS por volta de 1929.

O FORDISMO
Henry Ford (1863-1947), industrial americano, iniciou sua vida
como mecânico de automóveis, vindo depois a ser um dos maiores fa-
bricantes de automóveis do mundo. No final do século XIX, a indús-
tria estava atingindo um novo nível tecnológico e econômico, quando
Ford introduziu, em abril de 1913, em sua fábrica Highland Park, em
Detroit, seus conceitos de produção, conseguindo reduzir, de maneira
relevante, os custos na produtividade.
Ford elaborou um novo perfil de produção. Os trabalhadores já
não eram mais os únicos atores “privilegiados” da produção. Ford in-
corporou o consumidor, entendendo ser este todo aquele ator produ-
tivo que, de uma forma ou de outra, compartilha a produção. Dessa
forma, o cerne do fordismo seriam as relações entre o operário, o em-
pregador e o consumidor. Para ele, o trabalho industrial tinha como
chave a produção – representada pelo empregador e pelo operário –
e o consumo – representado pelo público consumidor.
O valor dado a essas relações tinha por pressuposto básico o
“trabalho para a coletividade”. Essa concepção levou Ford a buscar
uma maior produtividade, no intuito de atender o mercado consumi-
dor. A inovação-chave proposta por ele foi o trabalho repetido e em sé-
rie. Sua idéia original se converterá em um eficaz sistema de produção:
“creio que esta estrada móvel foi a primeira que já se construiu com
este fim. Veio-me a idéia vendo o sistema de carretilhas aéreas que
usam os matadouros de Chicago”.10
Ford introduziu a produção que se movimentava. A finalidade
era levar o objeto de trabalho até o operário, não precisando que esse
se deslocasse em direção ao objeto produzido. Essa mudança permitiu
reduzir o esforço humano na montagem e aumentar a produtividade,
diminuindo os custos proporcionalmente à elevação do volume pro-
duzido. Além disso, os seus carros eram projetados visando uma maior
facilidade em sua construção e manutenção, sem precedentes na his-
tória das indústrias.
10 FORD, 1926, p. 85.

impulso 80 janeiro 99
Impulso.book Page 81 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Chamou a atenção, também, para o processo de trabalho dentro


da fábrica, introduzindo outro fator importante de produção: o ritmo.
Caberia ao trabalhador apenas o ato, o mais simples possível, para a
montagem do produto final. O operário era o apêndice da máquina
e seu trabalho era necessário apenas naquele momento, determinado
pelo ritmo da esteira rolante.
Autores críticos a esse sistema, Gramsci (1976), Linhart (1986),
Beynon (1995), Silva (1995), Carvalho e Schimitz (1991) chamaram
atenção para a grande exploração e a monotonia que decorrem do
“trabalho domesticado” baseado na rotinização, na “mecanização” e
no controle de tarefas. Além de o operário ser obrigado a executar
apenas uma tarefa no tempo mínimo necessário e a estar preso a de-
terminada posição, ele é obrigado a manter um determinado nível de
produtividade. Afinal, o nível salarial estava condicionado aos deter-
minantes da produtividade. O fordismo foi capaz de desenvolver ain-
da mais a mecanização no processo produtivo, vindo mesmo a au-
mentar sua intensidade. Também radicalizou a separação entre o tra-
balho manual e o intelectual, submetendo o trabalhador a um duplo
controle: o da supervisão e o da produção.
Antônio Gramsci é considerado o autor clássico das teorias que
se dedicaram a evidenciar as conseqüências oriundas do impacto do
sistema fordista. Segundo ele, este sistema adequou-se perfeitamente
ao momento histórico em que passava a economia de mercado norte-
americana. Um grande público consumidor ansiava por novas merca-
dorias de fácil acesso e a preços baixos. Autor astuto, Ford delegava
grande relevância ao público consumidor. Além do mais, entendia que
cada empregado era um consumidor em potencial. Dessa forma, toda
a sua produtividade tinha por finalidade oferecer alguma coisa aos
consumidores, e estes eram todos os que possuíam, de uma forma ou
de outra, o dinheiro para comprá-las.
Gramsci percebeu que o controle fabril se estendia por toda a so-
ciedade. A disciplina disseminada nas fábricas de Ford impôs-se como
disciplina domiciliar. Para Gramsci, Ford entendeu a “sensibilidade”
humana; o homem por si só não poderia submeter-se à coerção, à mo-
notonia e ao stress da linha de montagem. Dessa maneira, seria inevi-
tável o conflito. Gramsci lembra que Ford concluiu que o pagamento
de salários elevados garantiria um equilíbrio e um “consenso” entre os
operários, no que diz respeito ao aumento da produtividade.
Para isso, o fordismo desenvolveu como princípio o critério da
racionalidade para o ganho. Para a obtenção de um alto rendimento,
intensificou a produtividade. Uma maior produção, direcionada a um

impulso 81 janeiro 99
Impulso.book Page 82 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

grande mercado consumidor, suscitou altos índices de vendas, o que


permitiu posteriormente o aumento de salários na fábrica. Sobre esses
aspectos, Gramsci expressa-se da seguinte forma:
Recordar as experiências de Ford e as poupanças feitas pela
sua empresa com a gestão direta do transporte e do comércio
das mercadorias produzidas, poupanças que influíram sobre
os custos de produção, permitiram melhores salários, e me-
nores preços de vendas. Uma vez que existiam estas condi-
ções preliminares, já racionalizadas pelo desenvolvimento
histórico, foi relativamente fácil racionalizar a produção e o
trabalho, combinando habilmente a força (destruição do sin-
dicalismo operário com base territorial) com a persuasão (al-
tos salários, benefícios sociais diversos, propaganda ideológi-
ca e política habilidosíssima), e conseguindo deslocar sobre o
eixo da produção toda a vida do país.11
Para visualizarmos algumas concepções de Ford, vejamos os seus
princípios de montagem:
1º) Trabalhadores e ferramentas devem ser dispostos na or-
dem natural da operação, de modo que cada componente te-
nha a menor distância possível a percorrer da primeira à úl-
tima fase.
2º) Empregar planos inclinados ou aparelhos concebidos de
modo que o operário sempre ponha no mesmo lugar a peça
que terminou de trabalhar, indo ela à mão do operário ime-
diato, por força do seu próprio peso, sempre que isto for pos-
sível.
3º) Usar uma rede de deslizadeiras, por meio das quais as pe-
ças a montar se distribuam em distâncias convenientes.
O resultado dessas normas é a economia de pensamento e a
redução ao mínimo dos movimentos do operário que, sendo
possível, deve fazer sempre uma só coisa com um só movi-
mento.12
A combinação desses fatores conseguiu reduzir ao mínimo os
movimentos dos operários, bem como o tempo de preparo das
máquinas, fazendo com que executassem uma tarefa por vez. Esse fato
levou a Ford à condição de maior indústria automobilística do mundo,
tornando-a grande exportadora de automóveis para a Europa e para
a Ásia.
11 GRAMSCI, 1974, p. 144.
12 FORD, 1926, p. 78.

impulso 82 janeiro 99
Impulso.book Page 83 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

O princípio que a levou a esse patamar era o da verticalização


(integração vertical), quer dizer, o controle direto de cada parte da ca-
deia de produção do automóvel. A Ford produzia todos os compo-
nentes dentro da própria empresa. Assim, atendia com maior rapidez
e qualidade o público consumidor. Depois de algum tempo, tornou-
se apta a produzir em massa todas as peças de que necessitava um au-
tomóvel.
No entanto, para controlar o aumento de sua planta industrial,
Ford introduziu um sistema de controle administrativo, que posteri-
ormente mostrou-se insuficiente e burocrático. As decisões centraliza-
doras não surtiram efeito no seu modelo gerencial, levando as empre-
sas ao declínio, no início dos anos 30.
Quem resolverá os problemas gerenciais da Ford e garantirá as
vantagens do sistema de produção em massa é Alfred Sloan, da GM
(General Motors), que introduziu três modificações no sistema fordis-
ta:
• introduziu a idéia das “divisões descentralizadas”. Enquanto
que a Ford só produzia o modelo T., a G.M. criou uma linha
de cinco divisões de modelos básicos de veículos (cada uma
responsável por uma marca), acabando com a produção de
um carro único;
• descentralizou uma parte da produção de peças para fora da
fábrica de montagem, visando dinamizar a organização e a co-
mercialização;
• criou funções na área de finanças e marketing. A primeira, vi-
sando menores custos; a segunda, o público consumidor.
O sistema criado por Ford e aperfeiçoado por Sloan universali-
zou-se rapidamente, relacionando perfeitamente o modelo gerencial
com a produção em massa e levando as empresas americanas a domi-
narem o mercado até os anos 50.

TOYOTISMO
Após falarmos do sistema taylorista e do fordismo, passamos a
delinear os aspectos mais importantes da terceira fase do modelo de
organização do trabalho.
Os novos instrumentos inseridos no campo da produção e da or-
ganização dizem respeito às recentíssimas mudanças tecnológicas, ba-
seadas num sofisticado “complexo microeletrônico” e na informática
e inseridas no processo produtivo com significativas inovações geren-
ciais.

impulso 83 janeiro 99
Impulso.book Page 84 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Os autores têm usado as expressões sistema Toyota, modelo ja-


ponês ou produção flexível para caracterizar esse sistema de produção,
oriundo da empresa Toyota, localizada no Japão.13 No início dos anos
50, o engenheiro Eiji Toyoda viajou para os EUA e, durante três meses,
ficou em contato com a Ford, em Detroit. Ao retornar, implementou
em conjunto com o engenheiro de produção Taiichi Ohno inúmeras
mudanças no sistema, aprendidas na Ford, concluindo que a produção
em massa não poderia funcionar da mesma forma no Japão.
Após a Segunda Guerra Mundial, a Toyota estaria determinada
a partir para uma produção em larga escala, com a finalidade de in-
serir-se no mercado internacional. O governo japonês apoiou a inici-
ativa e decretou medidas protecionistas: fechou o mercado para as im-
portações e proibiu investimentos diretos de capital estrangeiro. A
proteção do governo foi decisiva para o empresariado japonês, pois
permitiu que este investisse grandes somas de capital em tecnologia e
garantiu maior proteção em relação à concorrência do mercado inter-
nacional. Coriat (1994) identifica quatro fases que marcaram o adven-
to do toyotismo:
• primeira – o período entre 1947 e 1950 caracteriza-se pela
substituição, no setor automobilístico, das inovações técnicas e
organizacionais herdadas da experiência têxtil, cujo ponto cen-
tral consiste em confiar ao mesmo operário a condução e a
gestão simultânea de várias máquinas;
• segunda – reflete o choque dos anos 1949 e 1950, bem como
a sua significação. Houve o aumento da produção sem o au-
mento do efetivo dos trabalhadores. Coriat afirma ser este um
período de grande crise financeira, que levou a Toyota a buscar
o apoio de planos bancários. Período também de greves e de
resistência operária, que resultou em inúmeras demissões im-
possibilitadas de revisão, mesmo com o aumento sensível da
produção no final do período;
• terceira – os anos 50 dizem respeito às importações na fábrica
automobilística das técnicas de gestão dos estoques de super-
mercados norte-americanos; é o nascimento do kanban. Se-
gundo a lenda, Toyoda teria calculado os seguintes termos: “o
ideal seria produzir exatamente aquilo que é necessário, e fazê-
lo no tempo exatamente necessário”;
13 Os primeiros que chamaram a atenção para o “novo” paradigma baseado na especialização flexível,
tendo o Japão como referência, foram os sociólogos PIORE & SABEL, 1984.

impulso 84 janeiro 99
Impulso.book Page 85 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

• quarta – extensão do método kanban para as empresas sub-


contratadas.
O kanban era o indicador visual em forma de placas que são uti-
lizadas para transmitir a informação sobre a necessidade de reposição
de uma etapa a outra. O objetivo era a produção de pequenos lotes,
propiciando a identificação de problemas, que antes eram observados
nos estoques. Segundo Ohno, citado por Coriat:
O sistema Toyota teve sua origem na necessidade particular
em que se encontrava o Japão de produzir pequenas quanti-
dades de numerosos modelos de produtos; em seguida evo-
luiu para tornar-se um verdadeiro sistema de produção.
Dada sua origem, este sistema é particularmente bom na di-
versificação. Enquanto o sistema clássico de produção de
massa planificado é relativamente refratário a mudança, o
sistema Toyota, ao contrário, revela-se muito plástico; ele
adapta-se bem às condições de diversificação mais difíceis. É
porque ele foi concebido para isso.14
Coriat observa que duas especificidades são essenciais para ca-
racterizar o kanban: o defeito zero e o pane zero. O primeiro refere-
se aos produtos; o segundo, ao maquinário. O objetivo no primeiro
caso é a manutenção de um pequeno estoque, o que facilita a fabri-
cação de produtos com poucos ou nenhum defeito; caso a peça apre-
sente algum, ele é imediatamente eliminado. No que diz respeito ao
segundo caso, não é admissível nenhum problema ou defeito nas
máquinas. Para evitar esse problema, Coriat salienta que “isso é asse-
gurado por uma disposição técnica particular dos controles de quali-
dade. Eles são realizados nos locais de trabalho, posto a posto, e ne-
nhuma peça é liberada sem a qualidade requerida (...). O mesmo apli-
ca-se ao diagnóstico e à reparação de máquinas: nenhum posto de tra-
balho pode ser deixado sem funcionamento”.15 Cabe destacar que o
kanban é um sistema de informações que permite o controle total do
just-in-time.
Além disso, a essência do sistema apresentado por Ohono con-
siste na adaptação da produção em séries e restrita a produtos dife-
renciados e variados. Um dos pontos importantes desse sistema é o
just-in-time, que consiste em um instrumento de controle da produção
como um todo; o seu objetivo é atender a demanda de produtos com
a maior rapidez e flexibilidade possível. Além disso, busca diminuir o
14 CORIAT, 1994, p. 30.
15 CORIAT in SCHMITZ & CARVALHO, 1988, p. 52.

impulso 85 janeiro 99
Impulso.book Page 86 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

máximo possível aqueles estoques que antes eram intermediários ou fi-


nais. Para isso, o sistema é baseado num mecanismo de informações
preciso, com o intuito de estabelecer o momento exato, o material
exato e a quantidade exata de produção.
A produção nesse contexto é sempre mais variada e diversifica-
da, e a empresa está sempre em condições de atender o mercado. Com
essas técnicas, a produção aumentou sensivelmente na Toyota, tornan-
do possível a redução dos custos e a observação dos problemas de qua-
lidade, que, antes de sua chegada no mercado, poderiam ser elimina-
dos. Sobre esses dois mecanismos, Salerno salienta que:
O controle autônomo dos defeitos e o just-in-time materia-
lizado pelo sistema kanban são praticamente inseparáveis.
Ao reduzir os lotes em processo, a qualidade de conformação
da fábrica fica mais exposta, torna-se mais difícil esconder
peças inadequadas e chega-se mais facilmente à origem dos
problemas. Quem produz é responsável por aquilo que faz,
sendo que quanto menos pessoal não ligado diretamente à
produção, à atividade de transformação, melhor. Assim,
agregam-se às tarefas dos operários certos tipos de inspe-
ção.16
No entanto, o sistema necessitava de trabalhadores qualificados
e motivados. Coriat (1994) argumenta a constituição do “trabalhador
multifuncional”, detectando um “movimento de desespecialização”
dos operários profissionais e qualificados, que com o passar do tempo
tornavam-se, obrigatória ou necessariamente, trabalhadores multifun-
cionais. A relação homem-máquina também se modificou; se no for-
dismo, a relação era entre um homem e uma máquina, no toyotismo,
dependendo do setor de produção, a relação é de um operário para
cada cinco máquinas.
Trabalhando com essa mão-de-obra, o toyotismo inovou tam-
bém quanto ao trabalho grupal. A introdução dos CCQ (Círculos de
Controle de Qualidade) trouxe muitas vantagens e tinha por finalida-
de envolver e utilizar a energia e a criatividade dos trabalhadores situ-
ados em níveis hierárquicos mais baixos e que ajudavam na identifi-
cação e na solução dos problemas de qualidade.
Faria (1984) considera que os CCQ são grupos constituídos por
pessoas que “controlam” as atividades do próprio trabalho. Sua dinâ-
mica requer de seus membros a incorporação de valores imaginários
oriundos de complexas relações sociais surgidas no chão de fábrica,
16 SALERNO in FLEURY & FISCHER, 1992, p. 195.

impulso 86 janeiro 99
Impulso.book Page 87 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

tais como: melhoria do desenvolvimento do pessoal, participação dos


funcionários na solução dos problemas relativos a seu trabalho, libe-
ração do potencial humano, aumento das habilidades do pessoal, es-
pírito de íntima cooperação com a gerência, reconhecimento e auto-
realização dos participantes e melhoria dos produtos para a exporta-
ção, dando reputação e prestígio à empresa, aos seus empregados e ao
país. Afirma que os empregados “são estimulados” a participar, pois
formam um grupo natural de trabalho, inclusive reunindo-se fora do
horário normal e sem nenhuma garantia de remuneração adicional.17
Ao contrário do que se pensa, a idéia de qualidade não surgiu no
Japão. Os maiores expoentes do que se convencionou chamar quali-
dade total (TQC – total quality control) são Armand V. Feigenbaum,
Joseph Juran, Edwards W. Deming e Philip B. Crosby, todos engenhei-
ros de produção nos EUA.18 Para se ter uma idéia, Valle e Peixoto des-
tacaram os princípios mais relevantes de Feigenbaum.
Feigenbaum estabeleceu que o objetivo de uma empresa
competitiva deve ser o de prover produtos e serviços nos
quais esteja claramente definida a qualidade dos vários as-
pectos relacionados ao projeto, à produção, ao marketing e
à manutenção, de modo a produzir a satisfação plena do cli-
ente, dentro do melhor custo possível. Com isto, ele provo-
cou um duplo redirecionamento dos conceitos até então
adotados: (i) o controle de qualidade passa a ser visto como
um dos aspectos determinantes da estratégia da empresa; (ii)
surge o reconhecimento do papel central do cliente na for-
mulação das questões envolvendo a qualidade.19
Controle da qualidade e reconhecimento do cliente como por-
tador de um juízo valorativo importante para a empresa: estes são os
baluartes que intensificarão a concorrência junto ao mercado consu-
midor. Durante as décadas de 40 e 50, as idéias dos engenheiros ame-
ricanos foram veiculadas no mercado empresarial japonês. A JUSE
(União Japonesa de Cientistas e Engenheiros) incorporou as conce-
pções norte-americanas, rejeitando as que não se adequavam ao país.
Para os americanos, o ponto de partida para a aplicação da qua-
lidade era a administração. Preocupados com os possíveis conflitos do
“combativo” sindicato norte-americano, defendiam que a responsabi-
lidade da manutenção da qualidade era dos dirigentes empresariais, e
17 O autor faz uma aguda análise da história e da constituição dos CCQs. Para uma abordagem mais con-
sistente, verificar FARIA, 1984.
18 Uma visão crítica a esta estratégia gerencial pode ser encontrada no interessante artigo de ASSMANN,
1994.
19 VALLE & PEIXOTO, 1994, p. 11.

impulso 87 janeiro 99
Impulso.book Page 88 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

não de todos os funcionários. Com base em Feigenbaum, Valle e Pei-


xoto destacaram os seguintes princípios:
Primeiro princípio: em um negócio, a qualidade é trabalho
de todos. (...) Segundo princípio (corolário do primeiro): por-
que em um negócio a qualidade é trabalho de todos, ela pode
se tornar trabalho de ninguém.20
Os princípios são paradoxais, mas subentende-se o poderio dos
administradores no que se refere à qualidade. Valle e Peixoto afirmam
que Feigenbaum não teve tempo suficiente para aperfeiçoar o seu mé-
todo. A função ficaria a cargo dos japoneses.
A incorporação de conceitos da teoria comportamental pelo
TQC japonês, o surgimento de técnicas para realizar o des-
dobramento da função qualidade (QFD, quality function
deployment) e a ênfase no trabalho em equipe como forma
ideal de realizar projetos relacionados à qualidade vieram a
suprir parcialmente as lacunas deixadas na proposta de Fei-
genbaum.21
O modelo organizacional japonês reagiu aos desígnios da cultura
técnica norte-americana. O impacto das novas técnicas deu-se tanto
sobre os operários individualizados quanto naqueles inseridos em sin-
dicatos. Foi criado o “emprego vitalício”, o ganho de produtividade
(incentivos e promoções), o operário padrão, a participação da em-
presa na vida pessoal do trabalhador e a disseminação da cultura do
trabalho dentro das empresas.
No que se refere ao movimento sindical, o Japão incorporou dos
EUA a liberdade e a autonomia sindical. Entretanto, grande é a repres-
são sobre as lideranças sindicais. Muitos deles são cooptados e rece-
bem a promessa de um emprego vitalício. Outros não são liberados,
ou, quando demitidos, praticamente não conseguem retornar ao mer-
cado de trabalho. A cultura sindical japonesa foi marcada pela forte re-
pressão. Durante a década de 40 e 50, foi alvo de constantes ataques.
Ataques justificados pelo poderio capitalista contra uma possível onda
de comunismo que assolava o país.
Com o abate do sindicalismo combativo, a reestruturação pro-
dutiva encontrou terreno fértil no país. Muitos trabalhadores foram
demitidos e a incorporação de novas tecnologias colaborou para a des-
qualificação de boa parte dos operários.22
20 Ibid., p. 12.
21 Ibid., p. 13.
22 Para uma abordagem mais atenta sobre o impacto no movimento sindical, consultar o interessante
artigo do líder sindical japonês Ben Watanabe. Dossiê Toyotismo, Revista dos Metalúrgicos, 1993.

impulso 88 janeiro 99
Impulso.book Page 89 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Mas, retornando aos aspectos concernentes às questões de qua-


lidade, Valle e Peixoto salientaram com pertinência a originalidade do
modelo japonês.
É justamente no plano organizacional que podemos perce-
ber diferenças significativas entre o enfoque japonês de con-
trole da qualidade total (TQC) e o enfoque de Feigenbaum;
a principal delas é o fato de que o TQC envolve todas as áre-
as da empresa e todos os empregados, nos estudos e pro-
moção do controle da qualidade. Assim, o movimento não
fica sob o domínio exclusivo de especialistas.23
Nesse contexto, cabe destacar que, apesar do trabalhador ser co-
participante no controle da qualidade maior, apresenta-se o controle
da direção sobre o processo de trabalho. Cada operário é um mestre
ou um contramestre em potencial. A autodisciplina vai muitas vezes de
encontro à autonomia operária e a coerção se desenvolve entre os pró-
prios trabalhadores, que são condicionados a colaborar em prol de
uma maior produtividade. Afinal, em muitas dessas empresas, aconte-
ce a participação nos lucros.
Em relação aos aspectos organizacionais, ao contrário da vertica-
lização da Ford e da General Motors, que tentaram integrar todas as
etapas de organização e de produção num único sistema de comando
burocrático, mantendo uma política de vários fornecedores por peça, a
Toyota organizou o setor de autopeças distinguindo os fornecedores
em vários níveis: o primeiro nível são aqueles que fornecem as peças
complexas, o segundo são aqueles que montam as peças menos com-
plexas e vão abastecer partes das peças do primeiro nível, e assim su-
cessivamente, compondo uma estrutura piramidal. As relações com os
fornecedores é de parceria, visando a convivência a longo prazo. Tam-
bém chamadas “terceiras”, as fornecedoras formam companhias inde-
pendentes e, muitas vezes, produzem o seu próprio lucro. No entanto,
estão intimamente envolvidas com o desenvolvimento da empresa.
Examinando esse modelo, Ricardo Antunes diz que: “ao contrá-
rio da verticalização fordista, de que são exemplo as fábricas dos EUA,
onde ocorreu uma integração vertical à medida que as montadoras
ampliaram as áreas de atuação produtiva, no toyotismo tem-se uma
horizontalização, reduzindo-se o âmbito de produção da montadora e
estendendo-se às subcontratadas, as terceiras, a produção de elementos
básicos, que no fordismo são atributo das montadoras”.24
23 VALLE & PEIXOTO, 1994, p. 14.
24 ANTUNES, 1995, p. 27.

impulso 89 janeiro 99
Impulso.book Page 90 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

A horizontalização das empresas no caso japonês não requer a


utilização de contratos que garantem a sociedade empresarial. Valle e
Peixoto afirmam que os tratados dão-se num ambiente de livre nego-
ciação e de “confiança”, pois
se assenta sobre uma tradição cultural onde trabalhadores e
terceiros estão subordinados às grandes empresas: a Toyota
depende de seus trabalhadores e fornecedores, mas estes dela
dependem ainda mais, pois não podem mudar de patrão ou
de cliente. Num país ocidental (e com mais forte razão, num
país ocidental onde as relações não são suficientemente ins-
titucionalizadas, como no Brasil), esta relação de mútua de-
pendência precisa passar por um contrato entre as partes.25
O sistema flexível da Toyota levou mais de 20 anos para se co-
locar como método eficaz de produção. Porém, o impacto de sua in-
trodução vem suscitando inúmeras transformações. Se, por um lado,
há o aumento da produtividade, da qualidade e da rapidez quanto ao
produto final, por outro, essas modificações atingem intensamente o
universo do trabalhador: sua consciência, sua subjetividade, as formas
de representação, de identidade e de organização, que são obrigadas a
se adaptar a esse novo modelo.
O sistema Toyota também tem conseguido êxito em capitalizar
as necessidades do mercado consumidor, bem como na adaptação das
mudanças tecnológicas. No final dos anos 60, a Toyota já trabalhava
totalmente dentro do modelo de produção flexível, disseminando suas
práticas para todo o mundo. Nos anos 80, essa difusão vem assumin-
do uma nova roupagem nos países em que estão sendo implementa-
das.

CONCLUSÃO
Desde a introdução da máquina a vapor na atividade manufatu-
reira, durante a Revolução Industrial, na Inglaterra, nos séculos XVIII
e XIX, o trabalho humano tem sido alvo de constantes adaptações e
experimentos. Ao operário coube a resistência para o trabalho diário
e a subserviência ao maquinário.
O sistema fabril inaugurado com a presença da máquina definiu
a fábrica como o espaço privilegiado e único da dimensão humana. O
trabalho ascendeu ao nível mais elevado e à mais valorizada das ativi-
dades. O princípio de que a fábrica foi feita pelo homem e para o ho-
mem é invertido. Procuram-se homens para as fábricas. Estes são logo
25 VALLE & PEIXOTO, 1994, p. 6.

impulso 90 janeiro 99
Impulso.book Page 91 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

subordinados às condições de trabalho fabril: adaptados à máquina e


aos processos de organização baseados no controle, na rotina e na bus-
ca de produtividade. Sobre esta questão, Decca afirma que: “a dimen-
são crucial dessa glorificação do trabalho encontrou suporte definitivo
no surgimento da fábrica mecanizada, que se tornou a expressão su-
prema dessa utopia realizada, alimentando, inclusive, as novas ilusões
de que a partir dela não há limites para a produtividade humana”.26
O trabalho como fato social mais importante da modernidade
será tomado como objeto passível de mudança e experimentos cientí-
ficos. As ciências empíricas da humanidade, libertadas do sono dog-
mático da Idade Média, desde o século XVII, não vão se furtar desse
privilégio. Ávidas do dado empírico, incorporam os métodos das ci-
ências naturais. A busca da verdade a partir de fontes como a intuição,
a experiência e a observação propiciaria as condições para a constru-
ção de métodos científicos que garantissem a “objetividade” tão ne-
cessária aos “tempos modernos”.
No entanto, será no século XVIII que Taylor construirá os pri-
meiros passos da Administração enquanto ciência. Apesar de termos
codificado os três paradigmas (anexo 1) que têm servido aos estudio-
sos como instrumental analítico, cabe ressaltar que, antes de Taylor, a
preocupação quanto à organização do trabalho e ao aumento da pro-
dutividade já se fazia presente. Taylor tratou apenas de colocar no pa-
pel suas experiências pessoais.
A construção do sistema fabril legitimou o despotismo da fábri-
ca. O trabalhador tornou-se o “vilão” da produtividade; por isso, a ne-
cessidade de supervisão e intensificação do trabalho. Sobre esta ques-
tão, André Gorz assevera que:
O despotismo da fábrica é tão velho quanto o próprio capi-
talismo industrial. As técnicas de produção e a organização
do trabalho que elas impõem sempre tiveram um duplo ob-
jetivo: tornar o trabalho o mais produtivo possível para o ca-
pitalista e, com essa finalidade, impor ao operário o rendi-
mento máximo através da combinação dos meios de produ-
ção e das exigências objetivas de sua execução. O processo de
Produção deve ser organizado de tal maneira que a injunção
de rendimento máximo seja percebida pelo operário como
exigência inerte da própria máquina, como um imperativo
intrínseco à matéria, tanto mais inexorável e incontestável
quanto parece confundir-se com as leis de funcionamento de
26 DECCA, 1982, p. 18.

impulso 91 janeiro 99
Impulso.book Page 92 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

uma complexa maquinaria: leis aparentemente neutras, que


escapam a toda vontade e a toda contestação humana.27
Apesar da proposta enunciada, acreditamos que essas divisões
não devem ser entendidas como etapas sucessivas e determinadas tan-
to no espaço quanto no tempo. Acreditamos que se trata de processos
complexos e de longa extensão, que refletiram de maneiras diferenci-
adas os impactos da modernização e da organização do trabalho no
sistema capitalista.28
Cabe ressaltar que estamos cientes quanto aos debates que de-
correm da inserção dos “novos” modelos de produção. Stephen Wood
(1991), por exemplo, tem identificado aspectos fordistas ou neofor-
distas presentes no modelo japonês. Dessa forma haveria uma conti-
nuidade, não uma novidade no processo produtivo.
O debate deste tema tem suscitado inúmeras controvérsias, mas
o nosso objetivo foi delinear e identificar no plano teórico as possíveis
diferenças e similitudes que vêm sendo contempladas pelos autores
que se dedicam ao tema.
No Brasil, no que tange ao dado empírico, os autores têm de-
monstrado que a incorporação de novas técnicas de organização do
trabalho tem modificado rapidamente o perfil das relações de traba-
lho.
O novo sistema de gerenciamento – o modelo japonês –, de um
modo ou de outro descaracterizado, tem demonstrado enorme capa-
cidade de universalização, com conseqüências imprevisíveis para o
mundo do trabalho. Este modelo utilizado no Brasil, nos mais variados
estilos (Castro, 1993; Humphrey, 1994) vem trazendo em seu encalço
um quadro de incertezas. O perfil do mercado, sofisticado pelo fenô-
meno econômico da globalização, tem obrigado as indústrias brasilei-
ras a concorrerem em nível internacional, onde vêm se deparando
com a importância da qualidade e de sua incapacidade de concorrên-
cia nesse mercado.
Para isso, o patronato brasileiro vem introduzindo de maneira
desordenada as técnicas e métodos japoneses em suas organizações de
produção, como o just-in-time, o kanban, o CCQ, os sistemas parti-
cipativos, etc. O atraso tecnológico de alguns setores, ou mesmo a ca-
rência de capital para renovar o maquinário, tem impregnado um
novo perfil a este modelo. A solução tem sido a diminuição das bases
27 GORZ. O despotismo de fábrica e suas conseqüências, in GORZ, 1989, p. 81.
28 Para uma análise apurada da Revolução Industrial inglesa – desde a criação ao desenvolvimento das
novas tecnologias, dos processos produtivos e de seus efeitos sociais na Europa até os nossos dias –, ver a
obra clássica de LANDES, 1994.

impulso 92 janeiro 99
Impulso.book Page 93 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

industriais, a diminuição dos salários ou a demissão de parte significa-


tiva da categoria, mostrando uma clara diminuição dos investimentos.
Para os trabalhadores, a realidade tem sido perversa. Na ânsia da
qualidade, a diminuição da planta industrial vem acarretando inúme-
ras conseqüências: o fim de postos de trabalho e, com ele, o desem-
prego em massa vem reduzindo drasticamente a base operária das in-
dústrias. Nestas, permanecem apenas os mais preparados, que aten-
dem ao novo perfil exigido pelo mercado. Por outro lado, com menos
trabalhadores e melhor “selecionados”, o capital tem conseguido au-
mentar seu poder frente às demandas do movimento sindical, pintan-
do um quadro de incertezas, expectativas ou resignação para a classe
operária.
Este quadro de alterações decorrentes do impacto das várias for-
mas de gestão tem nos levado a pensar na formação de novos valores
e comportamentos, novas identidades, representações e aspirações cul-
turais, levando-nos a notar o aumento da importância de polemizar o
assunto.
Dentro de todo este processo, aumenta a importância dos estu-
dos concernentes ao trabalho enquanto dimensão exclusivamente hu-
mana. Esta preocupação reside no fato da evidente crise que vive o tra-
balho como consciência, subjetividade, formas de representação e or-
ganização.

ANEXO 1
TAYLORISMO FORDISMO TOYOTISMO
Parcelarização de
Parcelarização de Multifuncional
TRABALHO tarefas (única e
tarefas (muitas tarefas)
específica)
Concepção e Concepção e
DIVISÃO Polifuncionalidade
execução execução
Média (treinamen- Longo período de
QUALIFICAÇÃO Pouca ou nenhuma
tos iniciais) treinamento
TIPO DE Manual/informati-
Manual Informatizado
TRABALHO zado
Administradores e
Mestres Oriundo dos
CONTROLE esteira rolante (linha
(administradores) próprios operários
de montagem)
Escritório + Feita pelos patrões e
GESTÃO Escritório + mes-
mestres + gestão operários com assis-
ADMINISTRATIVA tres na produção
informatizada tência de escritório
Produção em massa
PROCESSO DE Produção em
Produção em série e em série de bens
PRODUÇÃO pequenos lotes
homogêneos

impulso 93 janeiro 99
Impulso.book Page 94 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Grande preocupa-
Há preocupação,
Não há preocupa- ção (rejeição
QUALIDADE porém, os defeitos
ção direta imediata das
ficam ocultados
peças defeituosas)
ORGANIZAÇÃO Integração vertical e Integração vertical
Não há
PRODUTIVA horizontal com subcontratação
Maior consumo de
Maior produção Consumo individua-
bens; não há porosi-
IDEOLOGIA ( 1 ) em detrimento da lizado; “sociedade
dade; “sociedade do
porosidade do espetáculo”
consumo”
IDEOLOGIA ( 2 ) Modernismo Modernismo “Pós-modernidade”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfo-
ses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo/Campinas:
Cortês/Editora da Unicamp, 1995.

ASSMANN, Hugo. Pedagogia da qualidade em debate. Revista


Impulso, Piracicaba, 7 (16):8-42, 1994.

BEYNON, Huw. Trabalhando para Ford. São Paulo: Paz e Terra, 1995.

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital Monopolista. Rio de Janeiro:


Guanabara, 1987.

CARVALHO, R.Q. Projeto de Primeiro Mundo com conhecimento e


trabalho de 3º. Revista Estudos Avançados, USP, 7 (17):35-79,
1993.

CARVALHO, R.Q. & SCHMITZ, H. O fordismo está vivo no Brasil.


Revista Novos Estudos, CEBRAP, São Paulo, no 27, 1990, pp.
148-162.

CASTRO, Nadya A. Modernização e trabalho no complexo automo-


tivo brasileiro: reestruturação industrial ou japonização de oca-
sião? Revista Novos Estudos, CEBRAP, São Paulo, no 37, pp.
155-173, 1993.

__________. Impactos sociais das mudanças tecnológicas: organização


industrial e mercado de trabalho. In: SCHWARTZMAN,
Simon (org.). Ciência e Tecnologia no Brasil: política industrial,

impulso 94 janeiro 99
Impulso.book Page 95 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

mercado de trabalho e instituições de apoio. Rio de Janeiro: Ed.


Fundação Getúlio Vargas, 1995.

CORIAT, Benjamin. Pensar pelo Avesso: o modelo japonês de trabalho


e organização. Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994.

_________. Benjamin. Automação programável: novas formas e con-


ceitos de organização da produção. In: CARVALHO, R. Q. &
SCHIMITZ, H. (org.). Automação, Competitividade e Trabalho:
a experiência internacional. São Paulo: Hucitec, 1988.

DECCA, Edgar De. O Nascimento das Fábricas. São Paulo: Brasili-


ense, 1982.

Dossiê Toyotismo. Revista dos Metalúrgicos, São Paulo: Ed.


Confederação Nacional dos Metalúrgicos, 1 (1):4-13, dez./
1993.

FARIA, José Henrique de. Círculo de controle de qualidade: a estraté-


gia recente da gestão capitalista de controle e modificação do
processo técnico do trabalho. Revista Brasileira de Administra-
ção, São Paulo, 19 (3):9-16, 1984.

FAYOL, Henri. Administração Industrial e Geral, 1908. São Paulo:


Atlas, 1958.

FLEURY, Maria T.L. & FISCHER, Rosa M. (org.). Processo e Relações


do Trabalho no Brasil. São Paulo: Atlas, 1992.

FORD, Henry. Minha Vida e Minha Obra. Rio de Janeiro/São Paulo:


Companhia Editora Nacional, 1926.

GORZ, André (org.). Crítica da Divisão do Trabalho. São Paulo: Mar-


tins Fontes, 1989.

GRAMSCI, Antonio. Americanismo e fordismo. In: Obras Escolhidas.


Lisboa: Estampa; Santos: Martins Fontes. Vol. II, 1974.

HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

HIRATA, H. Receitas japonesas realidade brasileira. Revista Novos


Estudos, CEBRAP, São Paulo, 2 (2):61-65, 1983.

__________. Trabalho, família e relações homem-mulher na sociedade


japonesa. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 1
(2):5-12, 1986.

impulso 95 janeiro 99
Impulso.book Page 96 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

__________ (org.). Sobre o Modelo Japonês. São Paulo: Edusp, 1993.

HUMPHREY, John. O impacto das técnicas “japonesas” de adminis-


tração na indústria brasileira. Revista Novos Estudos, CEBRAP,
São Paulo, (38):148-167, 1994.

LANDES, David S. Prometeu Desacorrentado: transformação tecnoló-


gica e desenvolvimento industrial na Europa ocidental, desde
1750 até a nossa época. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1994.

LINHART, Robert. Greve na Fábrica L’Etabli. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1986.

LINHART, Robert. Lênin, os Camponeses, Taylor. Rio de Janeiro:


Marco Zero, 1983.

LOJKINE, Jean. A Revolução Informacional. São Paulo: Cortez, 1995.

MATTOSO, Jorge. A Desordem do Trabalho. São Paulo: Scritta, 1995.

OFFE, Claus. Capitalismo Desorganizado. São Paulo: Brasiliense,


1989.

OLIVEIRA, Carlos Afonso de (org.). O Mundo do Trabalho: crise e


mudança no final do século. São Paulo: Scritta, 1995.

OUCHI, William. Teoria Z: como as empresas podem enfrentar o desa-


fio japonês. São Paulo: Fundo Educativo Brasileiro, 1985.

PALLOIX, Christian. O processo de trabalho: do fordismo ao neofor-


dismo. In: Conferências de Economistas Socialistas: processo de
trabalho e estratégias de classe. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

PIORE, Michael & SABEL, Charles. The Second Industrial Divide.


New York: Basic Books, 1984.

SILVA, E.B. Refazendo a Fábrica Fordista. São Paulo: Hucitec, 1991.

SCHONBERGER, R.J. Tecnologias Industriais Japonesas. São Paulo:


Pioneira, 1984.

TAYLOR, Frederick. Princípios de Administração Científica. São


Paulo: Atlas, 1970.

impulso 96 janeiro 99
Impulso.book Page 97 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

VALLE, Rogério. Automação e racionalidade técnica. Revista Brasi-


leira de Ciências Sociais, São Paulo, (17):53-67, 1991.
VALLE, Rogério & PEIXOTO, J.A. Certificação da qualidade e
opções organizacionais: histórico e estudo de caso no Brasil.
Texto publicado no XVIII Encontro Anual da ANPOCS, nov.
1994. (mimeo)
WOMACK, James; JONES, Daniel & ROOS, Daniel. A Máquina que
Mudou o Mundo. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
WOOD, Stephen. O modelo japonês em debate: pós-fordismo ou
japonização do fordismo. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
São Paulo, (17) 1991.
WOOD JR., Thomas. Fordismo, toyotismo e volvismo: os caminhos
da indústria em busca do tempo perdido. Revista de Administra-
ção de Empresas, São Paulo, 32 (4):6-18, 1992.

impulso 97 janeiro 99
Impulso.book Page 98 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 98 janeiro 99
Impulso.book Page 99 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

A Doença e o
Doente: uma
abordagem
através dos mitos
The illness and the
patient: an approach
through myths
RESUMO – A dimensão da doença, ao contrário da dor, é uma forma de se estar
no mundo, estabelecendo com ele relações específicas: o indivíduo escolhe a do-
ença como forma de expressão pessoal, ainda que em um nível não-consciente. Se-
duzido pela própria imagem de ser doente, e seduzindo as pessoas pela doença de
que padece, este indivíduo, doente, ganha uma imagem que – tal como Narciso SILVANA VENÂNCIO
silvana@fef.unicamp.br
– apaixona-se por ela, tornando-se incapaz de desviar os olhos de seu reflexo para Doutora em Psicologia Educacional
contemplar o mundo a sua volta. Uma outra perspectiva sobre dor, doença e do- e professora da FEF (UNICAMP)
ente é quando a morte – e não mais a vida – torna-se sedutora enquanto promessa
de ausência de sofrimento: é o mito de Drácula, com promessa de uma vida eterna GIOVANINA GOMES
DE FREITAS OLIVIER
em uma morte que nunca se consuma, que se concretiza com o desejo humano nina@fef.unicamp.br
de imortalidade; se não há vida, não há morte! Tanto Drácula quanto Narciso Mestre em Educação Física
unem-se no mesmo pathos: a incapacidade para reconhecer a alteridade. A doença e doutoranda em Educação
Física pela FEF (UNICAMP)
não é um evento focal na vida do indivíduo, mas pertence ao seu próprio projeto
existencial.
Palavras-chave: doença – dor – paciente – mito.
ABSTRACT – The illness, contrary to pain, is a way of being in the world, esta-
blishing with it specific relations: the individual chooses, even if not in a conscious
manner, the illness as way of expressing him or herself. Seduced by the image of
his/her own illness and, at the same time, inebriated by the attention of concerned
people, this individual, ill, gains an image that – such as Narcisus – falls in love
with itself becoming so absorbed with its own reflection that he/she is no longer
able to contemplate the outside world. Another perspective about illness, the pa-
tient, and pain is when death – and no longer life – becomes attractive as a promise
of absence of suffering: It is the myth of Dracula, with the promise that and eternal
life in a death that is never completed, which becomes concrete with the human
desire for immortality; if there is now life, there is no death! Both Narcisus and
Dracula commune in the same pathos: The incapacity to recognize the complexity

impulso 99 janeiro 99
Impulso.book Page 100 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

of human existence. The illness is not an isolated event in the patient’s life, but is
at the center to his/her own existential project.
Keywords: illness – pain – patient – mith.

No princípio…
Tinha chegado o tempo de ser, morrer,
nascer, e de matar e comer outros
seres vivos, para a preservação da vida.
O tempo sem tempo, do início, tinha
terminado…1

N No paraíso, não havia dor. Não havia sofrimento – nem doen-


ça, nem morte. Resta saber se havia também alegria, ou se o
tempo escoava monótono. Bem..., monótono não, porque já
pressupõe um certo “sofrimento”, um certo negativismo. Tampouco
escoava o tempo, porque estávamos ali nos domínios da eternidade,
por definição imóvel. E, no entanto, chamamos a esse paraíso perdido
o jardim das delícias, pois, em nossa linguagem humana, só podemos
conceber coisas que nos dão prazer e coisas que nos dão desprazer,
nem sempre atentando para a íntima relação existente entre eles.
Mas no paraíso, havia uma árvore proibida, a árvore do conhe-
cimento. Foi graças à desobediência de Eva que a humanidade nasceu.
Nasceu e se maravilhou com os sentidos, com a possibilidade de po-
der, ela também, criar, embora a criação do homem presumisse o so-
frimento, já que seus frutos viriam com o suor de seu rosto.2 Pouco de-
pois de nascer, a humanidade já aprendia também que deveria morrer.
Não estávamos mais nos domínios da eternidade; agora o tempo im-
perava e, com ele, as transformações, que o nosso corpo sentia com
prazer ou desprazer e o nosso conhecimento classificava como boas ou
más.
Criaturas terrenas, continuávamos sonhando com o divino. O
fruto proibido nos trouxera o conhecimento; e só é possível conhecer
quando há a diferença, quando há um outro a ser conhecido; quando

1 CAMPBELL, 1995.
2 Bíblia Sagrada, 1978.

impulso 100 janeiro 99


Impulso.book Page 101 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

se estabelece, portanto, uma relação. Antes da expulsão, Adão e Eva


não se conheciam enquanto dois seres dotados de individualidade pró-
pria; é só com a possibilidade do conhecimento que eles descobrem a
sexualidade. Aqui o mito fala em linguagem poética o que a teoria da
evolução nos ensina: nossos ancestrais eram imortais, células que se re-
produziam por mitoses, perpetuando-se em células-filhas, criadas à
imagem e à semelhança da célula-mãe. A “invenção” da sexualidade
serviu à imortalidade da espécie, mas implicou a mortalidade do
indivíduo – Somos os filhos do sexo e da morte, dirá Ruffié.3
A nossa humanidade dava-nos, por um lado, a certeza de nossa
mortalidade, e, por outro, o desejo de imortalidade. Acalentávamos a
esperança de um dia retornar àquele jardim das delícias e não perce-
bíamos que as delícias com as quais sonhávamos eram terrenas, e não
divinas. Algumas vezes, olhávamos nossa imagem refletida no espelho
e nos apaixonávamos pela nossa forma humana; éramos então felizes
pela beleza do nosso corpo, pelos prazeres que ele nos proporcionava.
Dizíamos: Este sou eu! e identificávamos nosso ser àquele corpo. Ou-
tras vezes, porém, o mesmo espelho já nos aparecia sem reflexo algum,
a forma se dissipava, o corpo era um estranho, um outro, que nos cau-
sava dor e sofrimento. Então afirmávamos que aquele corpo, decaído,
doente, não éramos “nós”; nós éramos uma alma invisível e imortal
que ansiava por abandonar o corpo e retornar às delícias (corporais!)
da eternidade. Aos nossos ouvidos, soavam as palavras do deus puni-
tivo: És pó e ao pó voltarás!, com a crença inabalável de que elas se re-
feriam apenas à nossa existência física, e não à nossa existência espi-
ritual.
Humanos, somos seres encarnados em um corpo (matéria cor-
ruptível e mortal), que se nos faz mais ou menos presente. Sua pre-
sença se impõe, à nossa revelia, nos momentos extremos de dor ou de
prazer, mas, enquanto que, no prazer, a atenção sobre o corpo nos faz
avançar em direção ao mundo, na dor, esta atenção é ansiosa e inquieta
e, ao contrário, faz com que nos retiremos do mundo e nos concen-
tremos em nós mesmos.4 No prazer, nós nos identificamos com nosso
corpo e com ele nos dirigimos para o mundo; o mundo é o outro com
o qual eu compartilho. Na dor, não há mundo com o qual estabelecer
relações; o corpo tomou o lugar do outro, o corpo é o outro, esse es-
tranho com o qual eu nada compartilho, a não ser, talvez, o sofrimen-
3 RUFFIÉ, 1988, p. 15.
4 CHIRPAZ, 1969, p. 22.

impulso 101 janeiro 99


Impulso.book Page 102 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

to. A dor não é uma maneira de estarmos no mundo, mas, ao contrá-


rio, uma maneira de não estarmos nele, de dele nos retirarmos.
Tanto o prazer quanto a dor têm origem no corpo. É verdade
que imaginamos as almas dos bem-aventurados desfrutando as delícias
da eternidade e as almas dos pecadores queimando eternamente nas
labaredas do inferno; mas também imaginamos a alma como um cor-
po imaterial, fluido, gasoso, etéreo – não importa a substância, a forma
é sempre corporal. A dor pode ser deterioração física ou vivência afe-
tiva; podemos ter dor de garganta ou “dor-de-cotovelo”, ou ainda
“dor de consciência”, por algum ato que cometemos ou omitimos. E
Chico Buarque de Hollanda nos conta que “a saudade dói lateja-
da…”.5
Uma das formas de dor e, talvez, a que evoquemos com maior
freqüência, quando o assunto é sofrimento, é a doença. A dor é mo-
nossêmica, porque são as relações do homem com o mundo que con-
ferem significados, e, na dor, como vimos, o homem retrai-se do mun-
do para reconstituí-lo no próprio corpo; logo, poderíamos dizer que
o corpo, e só ele, é o significante da dor. Porém, a doença é polissêmica
porque, ao contrário da dor, é uma forma de se estar no mundo, é
uma dimensão da vida.6 O indivíduo identifica-se com o doente – ele
não só está doente (como ele está com dor), mas ele é doente. Estar
com implica necessariamente alteridade, enquanto ser remete à iden-
tidade.
Ser doente é, pois, uma maneira de expressar-se no mundo, es-
tabelecendo com ele relações específicas; neste sentido, dizemos que
ela é polissêmica, pois as relações que um indivíduo estabelece têm sig-
nificados múltiplos. E aqui podemos dizer ainda que o indivíduo “es-
colhe” a doença como forma de expressão pessoal – ainda que, na
maioria das vezes, a “escolha” ocorra em um nível em que ele não tem
consciência dela. A dor que a doença propicia pode ser preferível a ou-
tras dores, que seriam vivenciadas se a doença não surgisse. A dor da
úlcera no estômago pode ser preferível à dor de despejar sua raiva so-
bre alguém; a dor de uma artrose, preferível à dor de se saber não mais
amado. Além disso, a doença propicia um retorno das atenções do
mundo sobre o doente; Freud chamou tal fato de benefício (ou ganho)
da doença.7
O doente é cercado de cuidados, os familiares se preocupam, os
amigos vão visitá-lo, há um interesse genuíno pelo doente, todos que-
5 Na canção Pedaço de mim.
6 VENÂNCIO, 1994, p. 116.
7 FREUD, 1976.

impulso 102 janeiro 99


Impulso.book Page 103 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

rem saber “como ele está” e fazem votos para o seu “pronto restabe-
lecimento”. É fácil verificar o quanto a escolha pela doença pode ser
sedutora. Ela redefine os contornos do reflexo no espelho, o doente
ganha uma imagem e, às vezes, tal como Narciso à beira da fonte, apai-
xona-se por ela. Seduzido pela própria imagem de ser doente, sedu-
zindo os outros pela doença de que padece, a dor se torna suportável,
porque não mais implica a retirada do ser do mundo, mas justamente
a alocação no mundo, em um ponto conhecido e controlado.
Porém, seria um erro supor que o doente não sofre. Ao contrá-
rio, sofre e, muitas vezes, profundamente. Em primeiro lugar, porque
ele não se tornou doente por vontade própria, nem está consciente dos
benefícios que a doença lhe traz. Em segundo lugar, porque a doença
é uma “opção” (ainda que inconsciente) desesperada de alguém que
não encontrou outra possibilidade de se expressar e de se relacionar
senão enquanto doente. E, finalmente, uma consciência da doença8
está sempre presente, indicando ao doente, em maior ou menor grau,
a existência de uma distância que o separa do mundo dos não-doentes,
dos sãos, dos normais.
Esta distância que se estabelece entre o normal e o patológico,
tornando o doente diferente do outro, é marca da experiência da do-
ença – experiência ambígua que, por um lado, destaca o doente da
massa dos normais, conferindo-lhe uma identidade específica (a qual,
por sua vez, responde pelos benefícios da doença), e, por outro lado,
isola-o do universo dos normais e retira-lhe as possíveis formas de
manifestação que esse universo comporta. Imerso no próprio reflexo,
Narciso não pode mais ouvir os chamados do mundo exterior; a al-
teridade que ele havia julgado encontrar (o outro na fonte) revela-se
apenas ilusão (o outro desejado não é senão sua própria imagem). Po-
rém, apaixonado por esse outro, que é ele mesmo, incapaz de desviar
os olhos de seu reflexo para contemplar o mundo a sua volta, Narciso
sofre, definha e, afinal, morre. A morte de Narciso, consumido em si
próprio, leva-nos a uma outra perspectiva sobre a dor, a doença e o
doente.

A FACE DO VAMPIRO
Quando verifiquei que estava prisioneiro, uma irritação pro-
funda me dominou. Corri pela escadas, acima e abaixo, ten-
8 FOUCAULT, 1984.

impulso 103 janeiro 99


Impulso.book Page 104 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

tando abrir as portas, mas em vão. Quando voltei, depois de


algumas horas, tive a impressão de haver enlouquecido, pois
minha conduta parecia a de um rato apanhado numa rato-
eira. Contudo, quando me veio a convicção de que estava in-
defeso, sentei-me calmamente e comecei a refletir sobre o
melhor que havia a fazer. Ainda estou refletindo e não che-
guei a uma conclusão definitiva.9
Se a doença implica ganhos, nem sempre reconhecidos, quase sem-
pre ocultos, ela é também perda – perda das possibilidades do mundo e
perda, especialmente, da liberdade de escolha. O doente está preso nos li-
mites que a doença lhe impõe: a imagem sedutora do espelho mostra pou-
co a pouco sua rigidez, sua estreiteza de ação – para apresentar, enfim, o
vazio do reflexo e a impossibilidade mesma do reflexo. É quando a morte
– e não mais a vida – torna-se sedutora enquanto promessa de ausência de
sofrimento.
Chirpaz10 dirá que a dor, cujo fim eu posso antever, retira-me do
mundo comum, porém com a possibilidade de reintegrá-lo em um “após
a dor”. Mas dirá, também, que a dor que persiste, cujo fim eu não posso
prever, que não me dá nenhuma esperança de um “após”, a dor dramá-
tica, destrói lentamente a intencionalidade (a protensão em direção ao fu-
turo…) e opera um deslocamento da existência. Esse deslocamento é a
transformação da imagem nítida no espelho em ausência de reflexo; o
deslocamento do pólo intencional da vida para a morte. A doença torna-
se, então, não mais a experiência ambígua entre os benefícios de uma
identidade nítida e os impossíveis existenciais que se fecham sobre o do-
ente, mas a comedora de vida.11
A sedução de Drácula é a promessa de uma vida eterna em uma
morte que nunca se consuma; é a sedução perversa que nega a afirmação
divina de que o homem é pó e a ele retornará, enquanto concretiza o de-
sejo humano de imortalidade. Ao preço, porém, de negar a própria hu-
manidade, não mais um ser-no-mundo (inserido, portanto, em uma exis-
tência temporalmente vivida), mas um não-morto, que tampouco tem
acesso à eternidade atemporal, posto que seu alimento é o mundo dos vi-
vos. O mito de Drácula é um mito das perversões: os mortos não morrem
e os vivos não vivem; noite e dia são invertidos em suas funções; o velho
se alimenta do novo e o novo não chega a ser. Se com Narciso a experi-
ência vivida era a da ambigüidade (a ilusão do reflexo), com Drácula che-
gamos ao limite mesmo da experiência: não havendo vida nem morte,
tampouco há ambigüidade; o vampiro não produz sombra, nem se reflete
no espelho.12

9 STOKER, s/d, p. 20.


10 CHIRPAZ, op. cit., p. 23.
11 STOKER, op. cit., p. 35.
12 Ibid., p. 80.

impulso 104 janeiro 99


Impulso.book Page 105 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Drácula, porém, não é humano. Inflige sofrimento, mas é ele pró-


prio incapaz de sofrer – ou, talvez, sua dor eterna, sua dor dramática13 seja
justamente a de espalhar dor entre os homens. Drácula e Narciso unem-
se no mesmo pathos: a incapacidade para reconhecer a alteridade. No
jogo de espelhos, Narciso acredita estar vendo o outro quando vê a si mes-
mo, e se apropria de sua própria imagem por ser incapaz de se relacionar
humanamente com o outro. Drácula, por sua vez, não apenas não se vê
no espelho, como não suporta a visão do outro: diante do outro, desse es-
tranho, desse que é diferente, tenta torná-lo um igual, um seguidor, um
não-morto. Não tendo existência própria, apropria-se da existência do
outro.
Esses dois mitos são aspectos da doença ou, poderíamos dizer, a pa-
tologia da doença. O doente identifica-se com o rosto de Narciso; é se-
duzido, em certa medida, pela sua própria doença e pelo status especial
que ela lhe confere. Identifica-se, também, com Drácula, quando o inte-
resse espontâneo já não basta e o doente, de seduzido por si mesmo, passa
a tentar seduzir o outro, não mais provocando a atenção do mundo, mas
exigindo essa atenção, declarando sua miséria, sugando a piedade alheia.
E quando a doença, não mais um dos modos de expressão no mun-
do (o que implica ainda um certo livre-arbítrio), revela-se o único modo
de expressão no mundo (portanto, estrutura da qual o sujeito é prisionei-
ro) – quando a doença se interpõe entre o sujeito e seu projeto existencial,
quando se torna, nas palavras de Chirpaz, dramática – então a “escolha”
pode recair não mais entre os aspectos sedutores da doença (narcísicos ou
sombrios), mas sobre o limite último de toda escolha, de toda sedução, de
toda ambivalência que caracteriza a existência. Na morte, tudo se desfaz;
a morte é, ela mesma, a ausência de significado, a impossibilidade de sim-
bolização. Diante da morte, etapa final e incomunicável da existência, só
há silêncio e imobilidade.

A PATOLOGIA DA DOENÇA
(...) levantar-se, levantar-se sozinho, caminhar e caminhar
para longe – para longe dos médicos e dos pais, caminhar
para longe daqueles de quem se dependia, caminhar livre-
mente, ousadamente, aventureiramente, para onde se qui-
ser.14
Somos humanos enquanto estamos vivos. Nossa humanidade
depende de um espaço e de um tempo definidos, a partir do nosso
nascimento até a nossa morte, em um mundo histórico e cultural, em
uma existência que é, por ser existência, conflito e ambivalência. A
13 CHIRPAZ, op. cit., p. 23.
14 SACKS, 1988.

impulso 105 janeiro 99


Impulso.book Page 106 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

dor, o sofrimento e a doença são aspectos da existência humana, como


o são o amor, a alegria, a compaixão. No palco existencial desenrola-
se o drama pessoal da doença e as várias perspectivas que se possa ter
sobre ela. O profissional que lida com a doença nunca lida com uma
doença, mas com um doente específico, que estabelece relações espe-
cíficas com o mundo e cujos sintomas, apesar de partilhados por ou-
tros doentes, trazem a marca de um sentido pessoal, único. Tratar os
sintomas tal como eles aparecem no quadro clínico da doença, relaci-
onando cada sintoma a uma causa e daí a um tratamento, implica não
reconhecer o drama pessoal do doente, ver o doente como paciente,
ou seja, transformá-lo em um pigmeu, um prisioneiro, um interno.15
É preciso considerar a expressividade daquele corpo doente e
atentar para os significados que o sintoma possa ter. Classificar o sin-
toma dentro de um quadro clínico específico, dar um nome à doença
do doente, sem considerar o contexto amplo no qual o doente se in-
sere, torna-se uma espécie de conjuração que seria capaz de, por si só,
afastar o mal – ou, no caso, indicar o tratamento e as probabilidades
de cura. Mas isto só faz com que se estabeleça um pacto entre o pro-
fissional e a patologia da doença, que são, justamente, os significados
narcísicos e sombrios dos sintomas. E este pacto se estabelece porque,
tanto na patologia da doença quanto na atitude onipotente do profis-
sional – que exalta o conhecimento técnico sobre a doença a ponto de
se tornar incapaz de enxergar o doente –, em ambos, nega-se a alte-
ridade, nega-se a diferença. O doente é despojado de sua originalidade
e torna-se o paciente que tem a doença X, ganha o rótulo que permite
igualá-lo a todo outro paciente com a mesma doença X e, mais do que
isso, o rosto do sofrimento pessoal perde a definição de seus contornos
e se torna o rosto genérico do paciente.
No entanto, vimos que a doença cria alteridade não apenas entre
o eu-doente e o outro-são, impondo limites aos possíveis que a exis-
tência oferece, mas, ainda, uma alteridade no próprio sujeito, já que o
corpo que sofre não é mais dócil à vontade pessoal, manifesta carac-
terísticas próprias, torna-se um estranho e revela uma consciência de
alteridade.16
Neste ponto, é possível desvelar uma nova visão da doença. A vi-
são negativa nos mostra a doença como uma falha, um defeito, e o sin-
toma como indicativo de que algo deve ser corrigido, reparado. Temos
aqui a visão mecanicista do corpo humano, herdeira do cartesianismo,
15 SACKS, op. cit., p. 143.
16 CHIRPAZ, op. cit., p. 19.

impulso 106 janeiro 99


Impulso.book Page 107 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

e segundo a qual o corpo assemelha-se a um mecanismo, cujo funci-


onamento submete-se a certas leis naturais. Temos também, como
pano de fundo, a visão judaico-cristã do homem, na qual a doença, a
dor e o sofrimento resultam do pecado original e são formas de repa-
ração desse pecado, de expurgação do mal e da culpa. A visão nega-
tiva, que vê o paciente-corpo, e não o indivíduo-corporeidade,17 nega
as diferenças (sociais, econômicas, psicológicas, religiosas) e se dá por
satisfeita em nomear os sintomas, enquadrando o sujeito no leito de
Procusto do diagnóstico clínico.
Ao encararmos a doença sob uma outra perspectiva – como ex-
pressão de uma individualidade (sempre complexa!) no mundo, e não
uma soma de sintomas cujo surgimento é antes uma eventualidade
(quando não uma fatalidade) na vida do sujeito –, outros aspectos sur-
gem. A doença não é uma simples coleção de negações (déficits, limi-
tes): ela supõe aquisições fundamentais. A alteridade que se instala no
cerne da corporeidade, e pela qual o meu corpo doente me aparece
como um outro, implica o retorno da atenção para o meu corpo e, a
partir dele (não prevalecendo os aspectos narcísicos nem os sombrios),
para toda a minha existência. Porque a doença não é apenas um local
do meu corpo: ela concerne toda a minha existência, é um aspecto da
corporeidade. Para esquecer-me da doença, seria necessário que eu me
esquecesse do meu próprio corpo, logo, da minha condição mesma de
vivente.18 A doença não é um evento focal na vida do indivíduo, mas
concerne ao seu próprio projeto existencial. Por isso a doença possui
significados irredutíveis a meras categorias de sintomas.

A PATOLOGIA DA SOCIEDADE
Os cidadãos do século XIX lançavam olhares invejosos para o sé-
culo XX. Seria o século do triunfo da humanidade, com promessas,
que as ciências e as tecnologias emergentes acenavam, de um futuro
em que novos inventos propiciariam um conforto jamais imaginado,
a miséria seria erradicada e a cura das doenças seria descoberta. A vi-
rada do século foi festejada com entusiasmo e fé nas ciências positivis-
tas. Mas logo uma guerra mundial veio abalar os alicerces dessas cren-
ças, e, a ela, seguiu-se uma segunda, e, à segunda, uma guerra fria, e
chegamos ao final do milênio com um recrudescimento do terrorismo.
Ao invés da cura das doenças, novas doenças surgiram, surgem e ame-
açam um avanço epidêmico. Neste século, o capitalismo estabeleceu-
17 OLIVIER, 1995.
18 CHIRPAZ, op. cit., p. 20.

impulso 107 janeiro 99


Impulso.book Page 108 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

se em sua forma mais selvagem, a democracia converteu-se em neoli-


beralismo e, longe de erradicarmos a miséria, vemos cada vez mais
alargar-se o fosso entre os que têm e os que não têm acesso à sociedade
de livre consumo. Ao otimismo do século XIX, contrapôs-se o pessi-
mismo do século XX; o futuro, iluminado pelos ideais positivistas da
ordem e do progresso, tornou-se cenário dominado pelos arquétipos
sombrios do presente.
A humanidade sofre. Uma grande parte sofre realmente – pela
fome, pela doença, pela miséria, pela injustiça, pelo estigma, pelo pre-
conceito. Uma pequena parte sofre sem o saber – sofre por seguir in-
genuamente as regras do sistema, que privilegiam o ter e o ter cada vez
mais. Sofremos porque nossos corpos são docilizados,19 disciplinados
desde a escola, controlados por padrões de beleza impostos pelo ex-
terior, angustiados pelo medo da doença, da obesidade, da velhice – de
qualquer alteração que nos impossibilite de poder ter. Nossos corpos
devem produzir e consumir de forma alienada; devemos ingerir anti-
depressivos e sorrir quando estamos tristes, tomar um analgésico para
a dor sumir, um excitante para ficarmos “ligados”, um “calmantezi-
nho” para conciliar o sono. Não estamos longe do admirável mundo
novo, de Aldous Huxley.
Nessa sociedade de regras, disciplinas e controles exercidos tão
sutilmente, sociedade que privilegia a saúde, porque saudáveis produ-
zimos e consumimos mais eficazmente, a doença é subversiva. Como
a maçã do paraíso, ela traz consigo a possibilidade de conhecimento –
conhecimento de si mesmo, dos excessos a que o corpo é constrangi-
do, das faltas vitais que o consumo desenfreado mascara. Obrigado a
ausentar-se de si mesmo em uma atividade que não expropria do tra-
balhador apenas sua força de trabalho, mas rouba-lhe a própria al-
ma,20 a doença obriga o sujeito a dar-se atenção, a desfazer os reflexos
que vê nos múltiplos espelhos que a sociedade lhe apresenta, e a des-
velar, afinal, os contornos do próprio rosto.
Obviamente, se apenas os aspectos patológicos da doença forem
valorizados, a face do espelho será ou aquela que a sociedade espera
que o indivíduo veja (a de Narciso) ou aquela que se espera que ele
não veja (a do Vampiro). A aliança dos “profissionais da saúde” com
a patologia da doença, exclusivamente examinando (cindindo o orga-
nismo e isolando o órgão doente), diagnosticando e receitando, per-
petua o jogo de espelhos. Porém, a doença vista também como alte-
19 FOUCAULT, 1979.
20 Agradecemos esta contribuição ao prof. dr. Nelson Carvalho Marcellino, da Faculdade de Educação
Física (Unicamp).

impulso 108 janeiro 99


Impulso.book Page 109 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

ridade, como possibilidade de conhecimento e de transformação, co-


locando o indivíduo em face dele mesmo (e vendo-se como ser com-
plexo), exige do profissional que lida com o humano, especialmente,
compaixão. Com-paixão, ou seja, a capacidade de sofrer com,21 de es-
tar junto àquele que sofre, reconhecendo no sofrimento do outro a
contingência do próprio sofrimento, reconhecendo no outro a própria
humanidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bíblia Sagrada. São Paulo: Editora Ave Maria, 1978.

CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1995.

CHIRPAZ, F. Le Corps. Paris: Presses Universitaires de France, 1969.

FOUCAULT, M. Os corpos dóceis. In: Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes,


1979.

________. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasi-


leiro, 1984.

FREUD, S. O estado neurótico comum. In: Conferências Introdutórias


sobre Psicanálise. Edição standard brasileira das Obras Psicológi-
cas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
v.16.

HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. São Paulo: Círculo do Livro,


1982.

OLIVIER, G.G.F. Um olhar sobre o esquema corporal, a imagem cor-


poral, e a corporeidade. Dissertação mestrado, Faculdade de
Educação Física (Unicamp), Campinas, 1995.

OVÍDIO. Histoire de la nymphe echo, éprise de Nascisse, et de Nar-


cisse, épris de sa propre image. In: Metamorphoses. Paris: Gar-
nier-Flammarion, 1966.

RUFFIÉ, J. O Sexo e a Morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

SACKS, O. Uma Perna para se Apoiar. Rio de Janeiro: Imago, 1988.


21 CAMPBELL, op. cit., 1995.

impulso 109 janeiro 99


Impulso.book Page 110 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

STOKER, B. Drácula. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.


VENÂNCIO, S. Educação física para portadores do HIV. Tese de dou-
torado, Faculdade de Educação (Unicamp), Campinas, 1994.

impulso 110 janeiro 99


Impulso.book Page 111 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Cidadania e
Conhecimento:
o efeito da memória
nos conflitos sociais
Citizenship and
knowledge: the effect of
memory in the social conflicts
RESUMO – O presente texto descreve o movimento de camponeses sem terra em
um contexto de conflitos de interesses, em que a consciência social pode ser de-
senvolvida como conseqüência dos resultados de conflitos. Durante tais conflitos,
ocorrem muitos eventos violentos enquanto as pessoas envolvidas lutam para as-
ALOÍSIO RUSCHEINSKY
segurar sua sobrevivência. Camponeses sem terra, particularmente, consideram deccar@super.furg.br
Doutor pela USP, sociólogo,
que a principal forma de segurança envolve a propriedade da terra, resultando sua professor do Mestrado em Educação
Ambiental e Especialização em
empreitada, por conseqüência, também em uma prática pedagógica. Educação Brasileira, DECC/FURG

Palavras-chave: memória – movimento social – conhecimento – violência – con-


flito.

ABSTRACT – The present text describes the movement of landless peasants in a


context of conflicts of interests, where social consciousness may be developed as
a consequence of the results of conflicts. During such conflicts many violent events
occur, while the persons involved struggle to assure their survival. Landless pea-
sants, particularly, consider that the main kind of security involves landownership,
resulting their endeavour, consequently, also in a pedagogical practice.

Keywords: memory – social movement – knowledge – violence – conflit.

impulso 111 janeiro 99


Impulso.book Page 112 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

MOVIMENTOS SOCIAIS:
VIOLÊNCIA E CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA

O intuito do presente artigo gira em torno do contexto da ci-


dadania, para a qual se dirigem as lutas sociais, e a respectiva
construção do conhecimento, a propósito da realidade con-
flitiva, por meio da consolidação de uma memória referencial. Trata-
se de tecer reflexões sobre uma temática relevante dentro do contexto
da luta pelo acesso à terra e pelo projeto de reforma agrária. No per-
curso, serão defrontados a construção da memória social e a sua
contribuição como fundamento para as lutas populares recentes, bem
como para a configuração ou a elucidação de um conflito de cunho es-
trutural. Apontaremos como, no bojo do conflito que perpassa o es-
tatuto das relações sociais, constrói-se a solidariedade e a oposição à
demanda manifesta. Como conseqüência da configuração de ambos é
que se definem possibilidades pela soma de entendimentos e esforços,
bem como de limites impostos via condicionamentos sociais. Os dois
pontos completam-se pela análise da representação social que os pró-
prios trabalhadores têm da luta pela terra e da qual os mesmos são fi-
guras centrais. Em outras palavras, como encaram a luta social no con-
texto da memória e do conflito, em vista de ocupações, acampamen-
tos e manifestações públicas.
O fato da volta ao tema do presente texto deve-se à insistência
com que um determinado movimento social constrói a sua permanên-
cia no cenário político, ao longo de mais de quinze anos de história.
Pelas referências, fica quase evidente que estamos falando do MST
(Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra), a partir da prática da qual
destacamos alguns resultados obtidos ao longo de dez anos de pesqui-
sa. Na trajetória realizada pelo movimento social na luta política pela
terra, destaca-se a capacidade de angariar apoio de indivíduos de ou-
tros setores sociais enquanto assessores, a habilidade estratégica de
contornar o fluxo e o refluxo da rígida oposição, da repressão, das res-
trições advindas do poder público, bem como o talento e a idoneidade
de se manter no cenário nacional da expressão de interesses num mo-
mento histórico de refluxo das mobilizações coletivas.
Considerando um empenho expresso pelo reconhecimento dos
direitos de cidadania, cabe interrogar sobre as mobilizações recentes na
configuração do conflito instaurado pelo contexto do empreendimen-
to em prol do projeto de reforma agrária. Sem receio de heresia, pode-
se afirmar que, com frágil memória sócio-histórica, a propensão de
qualquer forma de participação é sucumbir diante das debilidades em

impulso 112 janeiro 99


Impulso.book Page 113 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

vez de manter-se a visibilidade efetiva a médio prazo no cenário dos


conflitos sociais. Numa situação de repressão, revela-se a contingência
em que o Estado fica atento para que não se reproduzam os embriões
da memória. Entre outros fatores constitutivos das lutas sociais, con-
solidar a memória do caminho percorrido como trajetória obtém im-
portância progressiva, na medida em que é fonte de avaliação dos em-
preendimentos e das correspondentes forças atuando sobre a orienta-
ção dos mesmos; superação de entraves e perpetuação de registro e
crítica; triunfo para avaliar o que deu certo ou errado em momento se-
melhante; fonte de aprimoramento para proposições e estratégias para
as lutas sociais; retenção de elementos importantes para os estudiosos;
o seu cultivo pode ainda desenvolver a capacidade de manipular re-
cursos reflexivos, edificando-se no cotidiano como recurso intelectual
para compreender as relações de poder, bem como instrumento auxi-
liar no intuito de subverter a desigualdade social. Não sem considerar
que a pluralidade, a diversidade e a desigualdade podem ser compre-
endidas como relevantes para proporcionar mudanças na sociedade.
Utilizando os instrumentos oferecidos pelas ciências sociais, e sob
a ótica da memória e do conflito, buscaremos responder a algumas
questões referentes às práticas sociais e às possíveis mudanças conexas.
Na estratégia de resistência passiva e de se estabelecer no meio de con-
flitos, cabem ser analisados mais adiante os acampamentos, as ocupa-
ções, as negociações prolongadas. Os acampamentos prolongados, os
quais servem como escola de debate e de mobilização, são também um
tempo de privação, seleção, ordenamento de memória e interpretação
de conflitos. No contexto do conflito, as negociações com o Estado as-
sentam-se como estratégia prioritária de pressão política, todavia com
os respectivos alcances, limites e ambigüidades.
No confronto de interesses provocado pela agenda da luta pela
terra, fica evidente a presença da conflitividade, mas ainda não uma
referência à conexão com a memória social. O relacionamento man-
tido entre movimento e sociedade, no passado e no presente, será de-
lineado pela memória das lutas sociais e da oposição ou da solidarie-
dade efetivada frente aos objetivos do movimento. A reforma agrária,
contemplada pela legislação em vigor, faz parte das reivindicações do
movimento e, ao mesmo tempo, constitui ponto de conflito com o Es-
tado e com outras forças sociais. As instituições e as organizações po-
líticas mais atuantes impulsionam, controlam ou ignoram o movimen-
to. Na tarefa de consolidar propósitos explicitados, a memória e o
conflito exercem papéis preponderantes no empenho pela reforma
agrária.

impulso 113 janeiro 99


Impulso.book Page 114 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Entre as razões da emergência do movimento, como fato central


de mobilização, encontra-se a contenda da resistência à proletarização,
onde se avista pela leitura da realidade a passagem de arrendatário, de
posseiro, para a condição de operário, de assalariado. Nesta interpre-
tação da previsível passagem à outra posição, fica perceptível o efeito da
memória no horizonte por meio da transferência do campo para o se-
tor urbano, pois, em alguns espaços geográficos, a atividade agrícola
ainda possui alto índice populacional em termos comparativos. Existe
a perspectiva apontada pelos dados estatísticos e que permitem enten-
der o decréscimo populacional no campo em termos percentuais. Di-
ante do processo considerado, o movimento em análise destaca-se pelo
perfil de resistência, em cujo teor misturam-se memória e conflito.
Considerando-se a nossa sociedade estruturalmente desigual e
em que a vigência de conflitos sociais integra o cotidiano das relações
sociais, trata-se de destacar a memória sob o ponto de vista social, fun-
dada no seu caráter de relacionamento com a perspectiva individual.
Em que o ponto de vista coletivo não se reduz à soma de fragmentos,
mas requer a consolidação de uma política relativa às prerrogativas da
segurança para expressar interesses, protestar e pressionar sobre a to-
mada de decisões no âmbito da esfera pública. Com tal grau de fun-
damentação, esta ação associa-se às questões da experiências e da his-
tória; portanto, a preparação intelectual consiste na arte de incorporar
leituras de fenômenos atinentes ao seu ponto de vista, ampliando a in-
terpretação do real. Tem servido como fonte de elementos que con-
duzem à análise das estratégias e, como conseqüência, à formulação da
identidade social, bem como romper com outras leituras, como no
caso da ênfase na submissão.
Sob o pondo de vista da memória social, óticas teóricas diferen-
tes possuem um rastro de confluência, de um lado com a denomina-
ção de representação social e, de outro, com a noção de consciência
social ou coletiva. Não se trata aqui de optar pela alternativa eclética
de somar as contribuições parciais, mas de tomar a específica acepção
da categoria consagrada pelo pensamento sociológico. O uso institu-
cionalizou-se em trabalhos que empreenderam a preservação ou a
constituição de horizontes interpretativos junto a grupos sociais espe-
cíficos. A temática desperta interesse peculiar ao tratar setores subal-
ternos da sociedade que, por si mesmos, possuem poucos recursos for-
mais de preservação de dados sobre os fenômenos históricos suscetí-
veis de interpretação e atinentes aos seus interesses.
Na análise sociológica, para ir ao fundamental dos problemas
destacados na pesquisa, a interpretação realizada a propósito da cone-

impulso 114 janeiro 99


Impulso.book Page 115 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

xão entre memória e conflito conduz, de alguma maneira, de imediato


às práticas e às mudanças possíveis, bem como rejeita as velhas tenta-
tivas de pensar a concretização apenas com base no discurso dos ato-
res. Indo por outra via, tenta-se pensar o processo de construção de
uma consciência política valendo-se da própria prática em meio ao
confronto entre atores sociais, cujo teor remete de imediato à política
de segurança frente à violência vigente ou à ameaça que paira no ho-
rizonte. Por mais interessante que possa ser este enfoque para elucidar
uma realidade, ficam evidentes algumas divergências quanto aos pres-
supostos teóricos, bem como colocam-se aspectos de questões que ain-
da não se resolveram de maneira satisfatória, estando no patamar de
serem discutidos para um possível avanço com relação aos mesmos.
Outros autores também estão trabalhando as temáticas aqui abordadas
e em torno das quais também vão encaminhado de forma resoluta
interrogações postas, sendo colocadas para um encontro em momen-
tos de troca de idéias, de reflexões.

A MEMÓRIA DO CONFLITO COMO


DETERMINANTE DA AÇÃO PARA A CIDADANIA
Diferentes correntes teóricas nas ciências sociais deram eco ao
problema da memória social como aspecto relevante nas relações so-
ciais. A temática encaminha-se no sentido de examinar a memória
como recurso das classes subalternas de reter, preservar e projetar para
a análise do presente as experiências adquiridas tanto na perspectiva
de sucesso quanto nas derrotas (Marx, 1982, e Gramsci, 1949). O po-
tencial de energia acumulada para a ação nos embates em torno de
seus interesses pode iluminar as diferentes etapas de luta política. Entre
as grandes preocupações de Gramsci, coloca-se a tentativa de explici-
tar a questão das derrotas da classe subalterna em seus confrontos com
a burguesia, sendo ela numericamente superior. No meio das razões
encontradas para explicar esta submissão, está a ausência da memória
de suas lutas. Pela ótica da exposição, não se trata em nenhum mo-
mento de espaço vazio de memória – tábula rasa –, mas de busca de
organicidade, unidade e acento em dimensões que foram ocultadas.
Neste sentido, a memória social cria possibilidades para a identidade
de grupos e nações pela tradição viva da história, bem como para que
diversos setores interpretem as formas de violência que tendem a de-
sarticular encaminhamentos alternativos.
A fragilidade histórica entende-se na medida em que as classes
subalternas ressentem-se dos meios pertinentes para manter suas con-
quistas, pois, em última análise, não têm o poder político e a posse do

impulso 115 janeiro 99


Impulso.book Page 116 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Estado. Isso impede que detenham os recursos que permitem manter


os elementos principais que constroem a memória intelectual forjada
na tradição seqüencial de suas lutas empreendidas. Todo este processo
influencia a perspectiva de construção consistente de um projeto po-
lítico para a gerência da sociedade. A alternativa para as classes subal-
ternas, segundo Gramsci, consiste na constituição de intelectuais que
elaborem as bases por meio das quais venha a se fixar esta memória e,
especialmente, a configurem na orientação rumo ao projeto político e
a mantenham de maneira dinâmica. A formulação fragmentada de es-
tratégias para implementar os interesses refere-se a uma dificuldade de
obter horizonte abrangente da problemática a partir de experiências
particulares. Isso prejudica a constituição do projeto político, que, por
sua vez, significa uma perspectiva de totalidade que rompe com a for-
mulação fragmentada de estratégias.
A memória coletiva torna possível aos membros do grupo social
apreender criteriosamente a trajetória de sua história, bem como in-
terpretar experiências e compreender o significado dos fatos. Em fun-
ção do “esquecimento”, toda interpretação ressente-se da fragmenta-
riedade e pressupõe-se que o processo exige alavancas no intuito de
ajudar a superá-la, visando assegurar a coerência entre objetivos e
ação. Todavia, este esforço só ganha sentido se relacionado com os in-
teresses coletivos propostos,1 inserindo a temática da memória social
no contexto do conflito a respeito das decisões políticas.
De um modo ou de outro, os movimentos sociais suscitados pelas
classes subalternas constituem e constroem formas concretas de reter o
passado de suas lutas: valores, símbolos, apoios, alianças, oposições,
confrontos. A mesma memória tende a estar na base do consenso e da
coesão interna do grupo para empreendimentos de longo alcance. En-
tretanto, sua construção e manutenção passam por vicissitudes, tais
como as múltiplas maneiras da pregação ideológica dominante, a re-
pressão ante a autonomia de iniciativas e a ausência de formas concre-
tas para retê-la, além das preocupações com problemas do cotidiano e
do imediato. A ideologia de uma história única dos vencedores ou a di-
fusão do depoimento e de uma “história oficial” trabalham constante-
mente no sentido de apagar o significado das experiências de luta.
Com base na pesquisa efetivada sobre a temática destacada, per-
cebe-se que ela tende a manifestar-se no seio do MST em termos de
1 Gramsci (1982, p. 174) faz uma reflex o sobre o direcionamento da forma o da mem ria social. Tradi es cul-
turais, sua apresenta o e reapresenta o em todos os seus aspectos positivos e em suas nega es tradicionais, rela-
cionando sempre cada parcial totalidade. Descobrir a unidade real sob a aparente diferencia o e contradi o, bem
como descobrir a substancial diversidade sob a aparente identidade...

impulso 116 janeiro 99


Impulso.book Page 117 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

educação política, constituindo-se em motivação para sair da imobili-


dade em face dos problemas detectados e das alternativas visualizadas.
No contexto da comunicação, aparece entre as formas principais de
difusão das lutas: a liderança elabora material pedagógico para uso de
grupos em âmbito local e de comissões, no qual outros movimentos
ou fatos do próprio movimento somatório de forças da oposição e
ações de solidariedade são tomados como referencial; participantes de
ações e de enfrentamentos são convidados a testemunhar; visitas são
organizadas para solidariedade e usufruto da experiência in loco.
Nem a repressão nem o silêncio imposto às lutas camponesas
pelo regime militar apagaram totalmente a memória daquelas mo-
bilizações, embora ela permaneça mesmo como um “fragmento”. En-
trevistados fazem alusão à reforma agrária e seu debate nos anos 60,
quando a educação política agia no sentido da dar-lhe unidade: “O
movimento surgiu foi em 64 ainda, avançou muito nas lutas campo-
nesas, que pega lá pelo nordeste, e, com aquele regime militar, ficou
restrito o acesso à terra.”2 Ou ainda essa outra referência ao fato his-
tórico incontestável e certamente uma leitura equivocada da correla-
ção das forças sociais: “Eu ouvia meus pais e tios falar que existia a re-
forma agrária e, na época em que ia começar, fizeram os grupos dos
onze no Rio Grande. O Brizola tinha decretado a reforma agrária e o
plano de cada brasileiro ter o direito a um pedaço de terra. Foi exilado
e não deu certo porque os grandes mandavam na terra” (entrevista
pesquisa de campo).
Nos depoimentos fica claro que, no passado, a perspectiva de vir
a ocorrer a mudança das condições materiais de vida gerou o protesto
social em determinado momento da história dos trabalhadores rurais;
mais recentemente, propiciou o empenho pela reforma agrária. Con-
forme já indicamos acima, os trabalhadores sem-terra encontram-se
fora do centro dinâmico das transformações no setor da produção ge-
rada no campo. Nesse sentido, os movimentos inscrevem-se na histó-
ria pelo transcurso de um processo de dissolução de uma certa ordem
social, permitindo a seus agentes perceberem-se “excluídos”. As rela-
ções sociais existentes configuram o alcance das demandas, estabele-
cendo-se uma interdependência entre relações sociais, formas de ação
e consciência social (Oliveira, 1985). Neste contexto, inserem-se as

2 As entrevistas da pesquisa de campo aqui citadas compreendem parcela da investigação sobre a questão

política da luta pela terra. Foram realizadas na segunda metade da década de 90, compreendendo membros
do Movimento Sem Terra que participaram de intensa atividade coletiva na luta pela terra na região noro-
este do Rio Grande do Sul e oeste de Santa Catarina. Por solicitação de alguns entrevistados, não citaremos
nem nomes, nem a localização exata do endereço.

impulso 117 janeiro 99


Impulso.book Page 118 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

derrotas de algumas ocupações de terra nos anos recentes, com o res-


pectivo peso político das influências sobre o poder de decisão. Os se-
tores mobilizados, como são excluídos na constituição do sistema de
acesso à terra, tentam concretamente ocupá-la. Devido ao contexto e
à frágil organização dos mobilizados, o despejo judicial pode acabar
sendo o desfecho. Em outros termos, tentam conferir um outro limite,
que não o “legal”, ao conflito agrário.
Aqui fizemos três ocupações. Na primeira ocupação, entra-
ram mais de 100 famílias, baixou a polícia e aí nós tivemos
que tirar tudo na marra ou perdemos ferramentas, alimen-
tos, panelas, lonas, camas. Destruíram tudo e levaram para
cadeia os que conseguiram prender. No início, o pessoal não
acreditou na luta e desistiu na hora “h”; na verdade, nem
existia organização. A segunda ocupação pegava de uma
ponta da área à outra, tinha gente de muitos lugares. (En-
trevista pesquisa de campo)
A literatura sociológica tem apontado que a questão dos interes-
ses de classe e da intervenção do Estado está no referencial básico dos
movimentos sociais. Como conseqüência, a eventual ausência da aná-
lise destes elementos tem gerado equívocos de interpretação da luta
pela terra. Esta envolve outros interesses, que não aqueles imediata-
mente expressos. A visualização das forças sociais e sua ação histórica,
assim como a avaliação dos setores sociais presentes, direta ou indire-
tamente envolvidos no jogo dos embates, torna-se um aspecto funda-
mental para o posicionamento e a prática sociopolítica conseqüente
(Caldart, 1987, e Fernandes, 1972). A maioria dos trabalhadores sem-
terra e dos pequenos proprietários tende a interpretar o conflito da ter-
ra no horizonte da disputa imediata, ou seja, dos agentes diretamente
envolvidos. Desta forma, omite-se a intervenção do Estado nas con-
dições de arrendamento e no despejo, bem como a intensidade da
pressão política dos novos empreendimentos empresariais. Ousa ser
freqüente que trabalhadores condenem outros pelo envolvimento em
determinados conflitos, embora ambos façam parte do contingente
marginalizado pelo processo de desenvolvimento.
A formação de acampamentos torna-se um acontecimento his-
tórico ímpar e paradigmático, em que trabalhadores rurais aparecem
como o centro da manifestação pública a propósito de um conflito
agrário. Organizam-se comissões de visita aos acampamentos e múlti-
plas campanhas de solidariedade, vindo a servir de incentivo para a or-
ganização de outros com receio diante do empreendimento. As mo-
bilizações em torno do acesso à terra reforçaram-se significativamente

impulso 118 janeiro 99


Impulso.book Page 119 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

nos anos 80, apontando um período de retorno à democratização e à


árdua conquista da liberdade de expressão. Assentamento com traba-
lho coletivo serve de modelo na luta pelo acesso à terra como forma
de trabalho.
Tinha quem falava que havia uns vadios acampados na beira
da estrada e o governo dando de comer e não querem tra-
balhar. Levaram três anos para conseguir a terra, pois os ho-
mens se organizaram, teimaram, conseguiram e hoje estão
feito gente, bem organizados e produzem. (...) A gente ficou
muito contente com o trabalho coletivo deles. Vai fazer ano
que estivemos lá e outros companheiros nossos foram visi-
tar” (entrevista pesquisa de campo). Trajetória esta confirma-
da, pois “o gesto foi simbólico, mas o fato é verdadeiro. Ha-
via a acusação de que iriam só negociar com a terra, etc. En-
tão quiseram provar que produziam e levaram uma coleta de
alimentos para o acampamento de Ronda Alta. (Entrevista
pesquisa de campo)
Pela luta social, os trabalhadores sem-terra vêm afirmar sua re-
sistência organizada frente à repressão de jagunços e do comando po-
licial, no mais das vezes ordenada por duvidosas decisões judiciais.
Neste percurso, está referenciado um aprendizado sobre os caminhos
de acesso ao aparelho de Estado, estabelecendo canais de negociação
a propósito de medidas em prol da reforma agrária. Nesse sentido,
cria-se um espaço de socialização da política que envolve a questão
agrária e formas coletivas de resistência importantes para futuras mo-
bilizações, representando um aprendizado de como forjar a coesão de
um grupo, organizando-se para a participação e treinando a liderança
para a representação e a negociação. Algumas opiniões emitidas refle-
tem a crítica levada a efeito, no seio do movimento, sobre tais acon-
tecimentos.
A solidariedade aqui aludida, na grande maioria dos casos, reve-
la-se efêmera para significar alterações a propósito do conflito em
questão. É antes de tudo uma perspectiva humanitária, de simpatizan-
tes, uma explosão de sentimentos sociais, uma descoberta da arte de
improvisar a camaradagem e de protestar (Kurz, 1996). Fica aquém da
idéia universal de emancipação social dos excluídos, para a qual ne-
cessitaria do caráter ofensivo e irrestrito.
Visando alimentar a memória coletiva, a direção do movimento,
junto com os assessores, fez um apanhado das lutas e dos movimentos
sociais do campo no Brasil, divulgados em “cadernos de formação”.
Contudo, a memória não age em todos os instantes e somente no sen-

impulso 119 janeiro 99


Impulso.book Page 120 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

tido de unidade, coesão e organicidade, pois o conhecimento permite


continuar a agir de forma contraditória. Frente aos efeitos da repressão
e aos resultados de ocupações e acampamentos, uns sentem-se ame-
drontados diante do que viram – o que limita sua participação – e ou-
tros, ao contrário, percebem o fato sob a ótica das conquistas – o que
age no sentido de animá-los para outras mobilizações.
A difusão de leituras dos conflitos existentes, em que uma delas
sobrepõe-se a outras de forma estratégica, pode ser o fator preponde-
rante pelo qual se tenta neutralizar os efeitos das mobilizações, de tal
modo que se dificulte a formação da memória das lutas dos trabalha-
dores rurais particularmente pela imposição da ótica de que tudo vem
de cima por um processo de transmissão, como conseqüência à adesão
a elementos de fora do seu universo (Rudé, 1982). Mesmo quando o
movimento alcança algumas vitórias, estas aparecem como concessões
e operam no sentido de mascarar a existência de conflitos. A dinâmica
dos movimentos sociais e de sua relação com o poder político pode re-
sultar na incorporação da ótica dos conflitos e mesmo na cooptação
via encaminhamento parcial da demanda. Os setores conservadores
buscam a neutralização tanto das pressões populares quanto dos seto-
res progressistas preocupados com elas (Gramsci, 1982, e Portelli,
1983). Tal realidade constitui parcela do fenômeno do conflito das in-
terpretações.
A perspectiva da memória, conforme aspectos em análise, não se
constitui abstratamente, senão que a educação política possui o signi-
ficado de viabilização para elucidar a conflitividade patente. A leitura
coerente configura-se concretamente no bojo dos confrontos e das
próprias experiências de interpretação dos mesmos. Daí a aparente
ambigüidade do conflito e da memória, da violência e da segurança:
age na direção de alimentar a luta social ou de refreá-la devido a im-
plicações que se considera sobremaneira elevadas. Ocasionalmente,
sobressai no discurso a perspectiva da submissão passiva, que se ma-
nifesta em lugar da pretensão de ver instaurada a cidadania ativa.
“Quando era para invadir a terra, se reuniram numa turma e nós ca-
ímos fora: invadir terra, nem sonhar. Se um dia a gente puder ganhar,
então tudo bem. Queimaram todos os ranchos, deu na tevê, mas já fa-
zia tempo que estavam lá, até tinham feito roças. Um homem contou
na reunião que apanharam três vezes” (entrevista pesquisa de campo).
Na verdade, como ousa ocorrer com certa freqüência, como conse-
qüência de uma memória ainda sofrendo da fragmentariedade, este
depoimento confunde ocupações diferentes quanto ao tempo, espaço
e alcance, bem como revela contradições decorrentes.

impulso 120 janeiro 99


Impulso.book Page 121 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

A pesquisa efetuada aponta para momentos e instâncias em que


os entrevistados manifestam a preocupação de reconstruir a história de
ocupações, manifestos, protestos, derrotas. A tentativa refere-se ao in-
tento de preservar a memória como parte da história das lutas sociais
no campo. Nessa linha, encontramos a percepção de que para tal
evento torna-se preciso constatar a situação dos conflitos sociais em
que o empenho transcorre, a concepção de mundo e a ação dos ele-
mentos envolvidos.
Essa preocupação expressa traduz a necessidade de visualizar o
fato de que cada luta particular faz parte de um conjunto maior, cujo
pano de fundo é o cenário político. Mais ainda: alude ao fenômeno e
ao significado da existência de uma distribuição desigual de poder en-
tre as diferentes forças da sociedade. A troca de experiências em en-
contros ou na luta concreta concorre com sua especificidade para a
formação da memória social e, na hora da tomada de decisões, pode
fazer-se presente, operando positivamente.
(...) enfim, as ocupações foram todas no mesmo dia, através
de uma combinação. A gente até quer ver se é possível for-
mar um livro, um histórico, porque isto para os sem terra é
um dia respeitável em que partimos para uma luta mais pe-
sada. Entramos de noite para não voltar atrás de mão vazia,
através daquele dia que conquistamos. Fizemos uma barraca
grande e inclusive fizemos uma música de como foi a nossa
luta. (Entrevista pesquisa de campo)
De acordo com a orientação teórica, a análise definirá a relevân-
cia atribuída às mudanças e às influências do campo cultural no orde-
namento das lutas sociais. As modificações culturais no modo de pen-
sar procedem como combinações sucessivas, onde o espírito crítico vai
tendo suas possibilidades de ser construído (Gramsci, 1985). A ques-
tão da memória está ligada ao horizonte cultural e, por isso, apresenta-
se como produto de lenta elaboração. Neste sentido, a elaboração len-
ta e gradual permite sucessivos refluxos e, por conseqüência, não se dá
através de “explorações”, mas ligando as experiências particulares à vi-
são geral. Nesse sentido, não se pode identificar a explosão das ocupa-
ções, dos acampamentos com a elaboração imediata da memória so-
cial. “Não é tranqüilo o processo de politização do movimento social
camponês (...), qualquer programa propaganda, campanha linguagem
ou ideologia proveniente de fora (ou derivada) pode esvaziar-se se não
tomar em conta a experiência de vida ou a consciência social que en-
contra no meio rural.” (Ianni in Santos, 1985). A aquisição progressiva
de capacidade intelectual, ao lado de uma prática social coerente, tem

impulso 121 janeiro 99


Impulso.book Page 122 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

importância fundamental para que a memória das lutas seja retida de


maneira adequada e influencie nas tomadas de decisão. Tal fato per-
mite aos trabalhadores sem-terra encaminhar a elaboração de uma vi-
são crítica sobre suas condições de existência social frente à realidade
social, econômica e política vigente.

DIANTE DOS CONFLITOS REDOBRAM-SE OS


CAMINHOS DO CONHECIMENTO E DA SOLIDARIEDADE
A prática da solidariedade tende a ser fomentada entre os mem-
bros agregados, no sentido de consolidar uma vontade política con-
fluente, dando a performance de um corpo ao movimento e, a partir
deste, constrói-se um patamar que permite a relação com outros se-
tores sociais. A oposição constitui-se na medida em que o movimento
apresenta reivindicações, propondo introduzir alterações em algum se-
tor específico ou no conjunto da sociedade. Os indivíduos, setores ou
classes, que se vêem afetados ou mesmo entendem serem prejudicados
em seus interesses ou pelo simples fato de serem contrários a tais al-
terações por posicionamento político, tendem a compor a oposição
aos movimentos sociais.
O percurso da exposição com base na prática política torna per-
ceptível um nível interno de solidariedade e outro externo. Este último
produz, no mais das vezes, um engajamento político favorável à busca
conjunta em pontos semelhantes e determinadas oportunidades em
prol da melhoria das condições de vida. Neste particular, verifica-se
uma dupla configuração. De um lado, a solidariedade externa defici-
ente ou mesmo o relativo isolamento das mobilizações pode inibir a
ação política conjunta, como no caso da desconfiança quanto à leal-
dade da parceria. De outro, quando ela se processa com intensidade,
dentro da situação de precariedade, pode levar ao enfraquecimento da
determinação do enfrentamento, já que exerce o papel de abrandar as
contradições, por exemplo, a coleta de alimentos. Apresentando-se in-
tenso o controle social, muito forte em contexto de opressão, com
privação das necessidades mínimas, inclusive o exercício do livre pen-
sar, ele pode dissolver a força contestadora contida no descontenta-
mento e nas aspirações que motivam e suscitam o empenho para de-
flagrar a mobilização coletiva em meio à adversidade (Polanco, 1976).
Será que a promoção da solidariedade externa sempre ofusca os con-
flitos emergidos pela luta social ou opera a diversificação dos interesses
postos em destaque? Para cada contexto histórico e o referido movi-
mento, convém examinar como ela se sucede concretamente, na me-
dida em que ocorrem situações específicas em que mobilizações po-

impulso 122 janeiro 99


Impulso.book Page 123 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

pulares definham porque denotam a ausência de canais e de espaço


nos quais a demanda se efetivaria.
Diante da oposição, redobra-se o significado da solidariedade
econômica e política, particularmente na medida em que desempenha
um papel importante na tarefa de viabilizar um conjunto de ações co-
letivas para o MST. Serve também como meio de integração, de con-
tatos e de trocas de experiências com outros grupos em fases distintas
no intuito do acesso à terra. Assim, a solidariedade torna-se uma con-
dição de possibilidade para permanecer resistindo na ocupação, no
acampamento, na posição de protesto diante das duras condições de
existência social.
Se nos reportamos à polêmica em torno do suprimento da ração
alimentar, ela passa a ser destaque quando torna-se responsabilidade
governamental. Aqui percebemos que é reivindicação ambígua o for-
necimento da alimentação: como se pode manter oposição ao mesmo
Estado, transformando-o num órgão de assistência social? A dupla fa-
ceta se manifesta na preservação das garantias de vida e na acomoda-
ção dos trabalhadores ao local. A ambigüidade se expressa ainda: de
um lado garante mais tempo às manifestações pelo acampamento e, de
outro, diminui a urgência do atendimento para a reivindicação prin-
cipal.
Se formos pelo raciocínio de que, diariamente, com fome, qual-
quer indivíduo pensa menos ou diminui substantivamente a capacida-
de de reflexão, torna-se imperioso reconhecer os diversos aspectos de
solidariedade para o sustento econômico e político dos acampamentos
prolongados. As formas de solidariedade são diversas, às vezes inau-
ditas: “Estou me mantendo porque tenho apoio do próprio municí-
pio, porque lá sou conhecido como lutador pela justiça. Tenho até
quem vem me sustentando, do que precisar para sobreviver”. A soli-
dariedade como retribuição e o sistema de informação fazem-se pre-
sentes: “Ouvi os cara pedindo coleta porque estão passando fome. A
gente dá o que pode, pois quando a gente estava mal e outros ajuda-
ram ficamos contentes ao deixar de sofrer” (entrevista pesquisa de
campo).
Em diversos instantes de sua trajetória, visando superar proble-
mas emergenciais, o movimento voltou-se à organização de campa-
nhas de solidariedade. De modo particular, efetivou-as por meio de
contatos com organizações populares e de bairro, sindicalismo e Igreja.
A demanda pelo sustento imediato coloca-se, às vezes, como tempo-
rária, outras vezes, no mesmo patamar da desapropriação da terra. O
fornecimento alimentar, embora estenda e multiplique as oportunida-

impulso 123 janeiro 99


Impulso.book Page 124 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

des de negociar o atendimento dos compromissos assumidos, obscu-


rece a imagem da personalidade própria do movimento, como tam-
bém a garantia de manter as lideranças no mesmo entendimento do
que o conjunto dos mobilizados. O conflito explicitado, inclusive com
ameaças à vida e violência por ocasião dos acampamentos, traça con-
seqüências também à configuração da solidariedade. Assim, apresen-
taram-se situações em que se torna restrita a prestação de auxílio aos
acampados, considerando-se possíveis controles externos aos mesmos.
Este debate mostra a presença das contradições, dos conflitos e da vi-
olência a que se encontra submetida a luta política pelo acesso à terra
em diversas dimensões.
No contexto da solidariedade, questiona-se a possibilidade dos
trabalhadores sem-terra colocarem em questão o modelo de desenvol-
vimento, ou, ao contrário, põe-se a interrogação de somente basea-
rem-se na construção da solidariedade como maneira primordial de
resistência a um modelo. Assunto de grande complexidade pelo nú-
mero de trabalhadores mobilizados, pela estrutura formal e legal que
se lhe antepõe, pela sua força política limitada, pelo alcance do que
conseguem no plano da própria sociedade, o quanto a sociedade en-
volvente apóia os empreendimentos ou se opõe com veemência a eles.
Talvez o significado maior coloque-se antes como resistência ao desen-
volvimento excludente, na medida em que fique como incógnita para
o trabalhador radicalmente descapitalizado e cindido dos modernos
instrumentos de produção – embora conquiste a posse da terra através
da sua luta obstinada e renhida – as possibilidades de chegar a um pa-
tamar tecnológico para competir com outros pequenos produtores ru-
rais. Em outros termos, resta a questão de ser possível, pelo uso da
mão-de-obra familiar, com um mínimo de capital para se atualizar in-
corporando os avanços e utilizando as tecnologias disponíveis, conse-
guir enfim produzir no patamar em que a agroindústria adquira o re-
sultado do seu trabalho. No campo da comercialização, em colabora-
ção com elementos fornecidos pela memória social, já emergiram di-
versas experiências de cooperativas, associações de venda direta entre
produtor e consumidor, comercialização de produtos ecologicamente
manipulados.
O grau, bem como a tipologia da solidariedade suscitada diante
da oposição, varia de acordo com a conjuntura e a teia de relaciona-
mentos estabelecidos com o conjunto da sociedade. As duas dimensões
sofreram alterações ao longo da história do movimento em destaque,
pois apresentam-se características diversas e sem esquecer que os mo-
mentos políticos expressam configurações diferentes no que diz res-

impulso 124 janeiro 99


Impulso.book Page 125 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

peito às liberdades democráticas. Assim, a relação estabelecida entre o


movimento social e as esferas estatais possui patamares distintos, bem
como os problemas conjunturais que se colocam ao empenho pelo
acesso à terra. Segundo Gramsci, as classes subalternas caracterizam-se
pelo condicionamento de uma consciência fragmentada e tendem a
apresentar-se sem a unidade política necessária para a prática coerente
com suas aspirações. Nesse sentido, são subalternas exatamente por-
que se ressentem de conseguir construir a unidade de compreensão e
de compactar um bloco em torno dos mesmos interesses. Parece evi-
dente que esta ausência de organicidade ocorra também entre os tra-
balhadores sem-terra e a unicidade apresente-se antes como tarefa a
construir do que como objetivo alcançado.

O CONHECIMENTO DA OPOSIÇÃO
E O SIGNIFICADO PARA A CIDADANIA
O reconhecimento dos direitos definidos formalmente e a
visualização das forças sociais que se opõem aos seus interesses repre-
sentam dimensões relevantes da cidadania. A definição do adversário
dá-se no próprio espectro do conflito e tende a visualizar-se ao longo
do processo, desenvolve-se como figura legível aos olhos dos membros
ao longo da própria emergência do movimento social (Touraine,
1977). Porém, ao iniciar a atividade, ainda não está suposto que se te-
nha identificado seus opostos, as forças contrárias. O fato da visualiza-
ção dos opositores integra o horizonte em que também se constitui
uma crítica da realidade, bem como a compreensão do aspecto polí-
tico das reivindicações econômicas. Faz-se presente de maneira cres-
cente um desnudamento das relações sociais e que pressupõe alçar um
espectro mais global em que se insere a luta social particular.
De maneira aparente e imediata, o “inimigo” aparece sob a for-
ma do intervencionismo de jagunços, da violência militar e dos polí-
ticos locais. “Tivemos que brigar com os jagunços, pois colocaram
fogo numa ponte. Descemos dos caminhões, enfrentando os caras
para apagar o fogo. No avanço através da fazenda, negociamos com
eles para passar.” (entrevista pesquisa de campo). No decorrer do pro-
cesso, quando a organicidade da análise se faz presente de maneira pe-
culiar, desnuda-se o fato de que os mesmos fundam sua atividade aci-
ma de tudo enquanto mediadores de um processo social mais amplo:
representam, às vezes de modo obscurecido, aos sem-terra, interesses
que estão postos além do imediato percebido. A ação coletiva torna-
se estratégica para permitir tal visualização e, neste ínterim, a questão
agrária passa a ocupar um lugar central no embate.

impulso 125 janeiro 99


Impulso.book Page 126 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

No transcurso dos acontecimentos, existem fatores complicado-


res. No bolo das mobilizações populares, os próprios adversários vi-
sualizados – agropecuaristas e empresários – podem construir um dis-
curso de oposição às políticas sociais definidas pelo Estado. Neste sen-
tido, aproveitam a oportunidade, que surge com força em momentos
de crise, para ampliar o campo de suas próprias reivindicações, apon-
tando que o campo estatal configura-se como arena de disputa. Supe-
rar os níveis de percepção apontados, bem como a disputa entre os
pretendentes ao acesso à terra, apresenta-se como tarefa e desafio para
o campo de educação política do movimento.
Há, entre os opositores, quem afirme que a eficiência da grande
propriedade sustenta a pequena. Freqüentemente, os grandes propri-
etários proclamam-se defensores dos interesses dos pequenos propri-
etários, ou mesmo dos trabalhadores do campo. A partir da segunda
metade da década de 80, a UDR (União Democrática Ruralista) vem
tomando esta posição do cenário nacional, como na voz de um diri-
gente de entidade de classe. “Vamos estudar o que está na terra, que
tem uma estrutura, capacidade. Estou segurando seis vizinhos para
não saírem, toda hora estão lá para eu comprar. Para mantê-los ali te-
nho dado serviço, empreitadas, diaristas na entressafra.” Nesse discur-
so, vale dizer que a grande propriedade passa a ser defensável em qual-
quer hipótese e é considerada necessária para que os pequenos pro-
prietários possam subsistir. Em certos casos, a afirmação inversa está
mais próxima da realidade histórica. Há também quem afirme, por
este argumento, que o problema dos trabalhadores sem-terra não tem
solução pela ausência das condições de possibilidades.
O discurso de reação mais freqüente incide sobre a defesa da im-
possibilidade de subdivisão no quadro fundiário atualmente existente.
Com esta perspectiva, a reforma agrária, antes de propor divisão de
terra para maior número de trabalhadores no campo, se consubstan-
ciaria pela oferta de condições para que os pequenos proprietários pu-
dessem subsistir e progredir enquanto tais. Sob esta ótica, torna-se ex-
tremamente lógico, no discurso dos opositores, que as manifestações
e mobilizações da luta pela terra apareçam como violadoras da paz so-
cial e, de modo peculiar, como tal, implicam em subverter a ordem so-
cial. Rumo no qual se justifica socialmente a violência contra os ma-
nifestos pela reforma agrária. Neste contexto, os pequenos proprietá-
rios, que podem ser tidos na verdade produtores diretos ou, em parte,
submetidos à grande indústria de alimentos, frente a esse discurso am-
bíguo, passam por uma situação tensa de tomar partido. Simultanea-

impulso 126 janeiro 99


Impulso.book Page 127 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

mente, ficam divididos, pendendo ora para um lado ora outro, uns
apoiando o movimento e outros, a repressão.
No embate conforme vem sendo discutido, o “locus antagônico”
sob o ponto de vista geográfico – o campo e as condições de existência
que lhe são peculiares – não passa a ser a arena política das negocia-
ções. De fato, os opositores residem na cidade. Se na cidade residem
os opositores, essa também é o espaço onde os trabalhadores sem-terra
entram em contrato com órgãos públicos. A relação com a cidade con-
figura-se ampla: as manifestações e as reuniões principais aí se efetu-
am, o confronto com o poder de decisão, na repressão e possíveis ali-
ados. Por ocasião das mobilizações na cidade, verificam-se articulações
anteriores via entidades ou secretaria, avaliação conjuntural do jogo
das forças políticas, contatos com órgãos públicos e políticos e divul-
gação junto à opinião pública.
Transportar para a cidade o debate passa a ser estratégia de des-
truição ou de condição de possibilidade do movimento; assim, diver-
sos autores mostraram-se preocupados com a relação campo e cidade
(Gramsci, 1978 e 1979, e Martins, 1980). De outro lado, na solida-
riedade externa via outras mobilizações, encontra-se parcela da supe-
ração dos entraves. Entretanto, os poderes executivo e legislativo lo-
cais possuem influência relativa sobre o conflito, todavia o posiciona-
mento pode ressaltar um dos lados da controvérsia.
A questão política coloca-se em outro lugar, onde se ultrapassa a
ambigüidade da esfera estatal e os respectivos posicionamentos. O Es-
tado passa a ser o centro e age como ator social. Assim, proporciona
posicionamentos conflitantes em relação à reforma agrária, podendo
vir a descaracterizar a mobilização de um setor social em confronto
com as aspirações de outros. Como já afirmamos acima, no recente
manifesto público pela reforma agrária, é o Estado que passa a definir
o campo do conflito, articulando diferentes manifestações. Segundo a
opinião expressa por indivíduos contrários ao movimento da luta pela
terra, a ação governamental pela reforma agrária contém elementos
pelos quais a população obtém justificativas para assumir posiciona-
mento contrário à reforma agrária, especialmente pelos aspectos assis-
tencialistas que o encaminhamento apresentaria.
Este pessoal tem direito porque nunca foi assistido, mas te-
nho a visão de que eles tem uma noção muito paternalista
das coisas, tudo tem que ser dado, assim as exigências vão
aumentando. E o Estado não vai conseguindo atender e, o
que é pior, torna-se um problema de choque entre este pes-
soal que entra na reforma agrária e no movimento e os pe-

impulso 127 janeiro 99


Impulso.book Page 128 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

quenos que passam dificuldades por causa da política eco-


nômica. (Entrevista pesquisa de campo)
Ao distinguir os atores sociais e caracterizar os distintos relacio-
namentos entre solidariedade e oposição, abre-se espaço para a corre-
lação das esferas política e econômica. Por outro lado, inserem-se te-
máticas mais complexas do que os elementos residuais da intenciona-
lidade e da ação do movimento. A luta pela terra configura-se em re-
presentação social dos trabalhadores a propósito da temática e, ao
mesmo tempo, relaciona-se com a sociedade, particularmente com
apoios e opositores.
A reivindicação posta exige a organização detalhada em diversos
passos pelo movimento social e ganha força na medida em que os tra-
balhadores passam a entender como legítima a posse baseada no tra-
balho. Portanto, se o trabalho legitima a posse nestas circunstâncias, ele
também pode fundamentar o direito de propriedade. A busca de tal
direito entra em conflito com os pressupostos da grande propriedade
fundiária, consignada em lei na sociedade vigente. No caso estudado,
os proprietários em posicionamento oposto também justificam que
trabalharam duramente para possuí-la. Verifica-se um choque de di-
reitos e a invocação do mesmo direito por grupos que se opõem, só
que, para uns, é condição de existência, para outros, não. O empenho
coletivo pelo acesso aparece freqüentemente associado à questão po-
lítica do direito à terra. O fato de se introduzir o discurso sobre o di-
reito traz à tona uma referência à questão política. A visualização deste
direito encaminha-se conjuntamente com a organização para obtê-lo.
A luta pela terra, ao se colocar coletivamente, define-se como uma
luta pela extensão de direitos aos trabalhadores, uma vez que se enca-
minha contra o monopólio da propriedade fundiária. Pode ser enten-
dida como a luta em defesa da cidadania e adquire um caráter histórico,
porque se trata da luta direcionada à ampliação do processo de demo-
cratização da sociedade. A questão dos direitos implica a afirmativa de
uma dimensão ética e, na medida em que se encaminham direitos mais
amplos, traz os trabalhadores para dentro das questões políticas afetas
à mobilização empreendida. Esta perspectiva indica que, nesse desen-
rolar dos acontecimentos, constrói-se a resposta no plano da interpre-
tação e da ação frente ao processo de desenvolvimento social. Tal fato,
contudo, não supera a presença do Estado enquanto mediador entre ca-
pital, movimento social e entraves para o acesso à terra, na medida em
que a este se reserva emitir títulos agrários, bem como consolidar-se en-
quanto medidor, porque está no seio da disputa jurídica.

impulso 128 janeiro 99


Impulso.book Page 129 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

A configuração jurídica da propriedade passa pelas mediações no


seio do mesmo Estado e, por isso, a luta pela terra apresenta-se como
uma negociação nos meandros governamentais. Quando parece au-
sente uma política referente ao setor fundiário, isto se deve ao fato de
que aí se localiza o campo do arbítrio. Coincidentemente, no campo
do arbítrio regido pela esfera estatal, também disputam parcela de es-
paços os próprios movimentos sociais. O discurso elaborado, atribu-
indo aos próprios trabalhadores a responsabilidade pela solução dos
seus problemas por meio da organização própria, encontra-se perpas-
sado pelo reconhecimento da mediação dos órgãos estatais para sua
resolução. A ambigüidade do papel estatal parece permanecer em
aberto, pois ele delineia-se como “inimigo” (representa os interesses da
burguesia) e como “benfeitor” (cabe às suas instâncias a decisão última
e sempre política nas desapropriações e nos financiamentos). Esta
ambigüidade permaneceu lado-a-lado com o reconhecimento da pres-
são popular e o exercício do seu papel fundamental de resistência na
conquista da terra.
A amplitude dos debates sobre trabalho, organização, negocia-
ções, apoios e oposições tem por objetivo fundamental exercer de for-
ma estratégica a pressão política qualificada. O empenho pelo acesso
à terra precisa ser examinado com dupla dimensão:
• permite que o trabalhador, ao conquistá-la, produza a subsis-
tência e se reproduza. Neste sentido, lhe é favorável;
• a conquista significa o fim de uma forma particular de explo-
ração, especificamente o arrendamento ou assalariamento. No
entanto, por nobre que seja o empreendimento, ainda não se
garante destruir de imediato a subordinação.
O processo para obter tal evento refere-se a circunstâncias mais
abrangentes na sociedade. O trabalhador se cria e recria, vê-se destru-
ído e reconstruído sob o capitalismo. Portanto, a posse da terra não ex-
pressa o fim da exploração, ou seja, enfim uma luta contra o capita-
lismo. O movimento pretende introduzir o debate sobre as mudanças
que atingiriam o sistema, tendo por base a perspectiva do trabalho co-
letivo. Até porque, sem uma alteração substancial na forma de propri-
edade, no processo de produção e de comercialização segundo pro-
posta de representantes do sindicalismo, de partidos e da Igreja, mo-
difica-se em pouco o quadro da questão agrária, definida pela inclusão
da terra e do trabalho no mercado.
O movimento em destaque consolida-se na maneira peculiar de
explicitar conflitos sociais referentes à crescente escassez de terras dis-

impulso 129 janeiro 99


Impulso.book Page 130 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

poníveis. A luta pela terra como afirmação de luta pacífica constitui


contraditoriamente uma disputa contra outros. O fato de falar em “lu-
ta pela terra” já supõe que alguns fatores lhe são adversos. Esta questão
coloca as mobilizações no seio das contradições sociais. Os antagonis-
mos, as tensões e os conflitos sociais desenvolvem a percepção dos
mesmos, na medida em que os trabalhadores resistem, lutam e, às ve-
zes, conquistam os objetivos propostos.
Convém examinar a forma com que os trabalhadores represen-
tam as estratégias de sua luta no universo de múltiplas alternativas. A
afirmação da observância de patamares pacíficos tem diversas influên-
cias: a origem ideológica, sobretudo o ideário religioso; a percepção da
desigualdade frente ao poderio da repressão, com inexistência de qua-
dros para o enfrentamento; e a permanência no âmbito da legalidade,
evitando perda de parte da legitimidade frente à opinião pública. A
trajetória do movimento passa de um instante de aceitação da desi-
gualdade ao respectivo questionamento e depois para a afirmação do
projeto de igualdade. A postura pacifista pode sofrer alterações ao lon-
go dos embates políticos múltiplos e frente a resistências impostas às
reivindicações consideradas viáveis por parte dos interessados.
A cada momento, o pleito do emprego na rotina ou não da vi-
olência repõe-se em função do conjunto das forças sociais no embate,
bem como a dupla forma de luta resistência à proletarização e con-
quista da terra. A representação política e a mobilização constituem-se
em fatores de importância vital para organizar as citadas dimensões. As
mobilizações em torno dos preços, do crédito à produção, contrastam
com a formação dos acampamentos dos trabalhadores, cada qual pro-
pondo um patamar de envolvimento e diferente visão de mundo. A
memória social dos conflitos, que envolvem os interesses das classes
subalternas num clima de solidariedade e de oposição, dá as coorde-
nadas na luta social. É sob esta ótica, tendo como pano-de-fundo o ca-
minho traçado, que a reforma agrária deve ser pensada como um pro-
jeto político, temática cara na reflexão sociológica.

CONFLITOS E PODER POLÍTICO: ESPAÇO PEDAGÓGICO


A educação política atua num campo cultural em que a disputa
pelo controle social, pela interpretação da sociedade, se faz presente.
Portanto, significa um combate estratégico, tanto com o que se refere
à vigência da leitura em base ao senso comum quanto no relaciona-
mento de enfrentamento da ação suscitada pelos opositores e os po-
sicionamentos enunciados pela sua ideologia. E, nesse sentido, pode
ser entendida como formadora de “opinião pública” entre os traba-

impulso 130 janeiro 99


Impulso.book Page 131 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

lhadores sem-terra. A adesão ao movimento e sua emergência no res-


pectivo contexto histórico podem ser consideradas um empenho pela
cidadania, na medida em que os trabalhadores conquistam, desta for-
ma, um direito à organização política própria.
Por esse motivo, alguns setores da oposição acusam setores pro-
gressistas da Igreja Católica de “inventar” a razão de ser do MST e de
subverter a passividade dos pobres camponeses, comprometendo in-
clusive a paz social pela violência. Tanto o senso comum quanto a ide-
ologia dominante expressam assim um papel reservado a estes traba-
lhadores no atual contexto social, reagindo quando percebem que eles
se aglutinam para fazer valer o direito de organizar-se, mesmo sendo
a organização política um direito formalmente reconhecido pela legis-
lação em vigor. O próprio direito político de associação passa a ser
contestado de uma maneira permanente, mais ainda, persegue-se sem
tréguas qualquer resquício do direito à solução da questão agrária ex-
posta cruamente ao tecido societário.
A denúncia representa um primeiro passo de fundamental im-
portância, conquanto seja seguida por outros encaminhamentos. As
mudanças no horizonte cultural dos trabalhadores sem-terra signifi-
cam um confronto real com os patamares de submissão ante ideolo-
gias alheias. Em outros termos, significa introduzir alterações funda-
mentais na percepção do mundo, com o intuito de vir a conferir ou-
tras informações, implicado uma visão crítica. Temas como legalidade/
ilegalidade, justiça/injustiça, direitos plenos de cidadania questionam o
patamar da ordem vigente firmada na exclusão.
O estudo das leis referentes à questão agrária leva os trabalha-
dores ao conhecimento das possibilidades do movimento dentro da le-
galidade. Ao mesmo tempo, permite visualizar ainda a forma de agir
diante da legislação e na qual se apoiar para o alcance de suas reivin-
dicações. A este conhecimento, insuficiente por si mesmo, vem ajun-
tar-se a indignação ética frente ao que passou a ser considerado injus-
tiça caracterizada. Parece que tal indignação tem um papel importante
nos movimentos ante a possibilidade de conquista dos direitos sociais
visualizados. Demonstra-se fundamental para a emergência do movi-
mento social o questionamento da respectiva legitimidade/legalidade.
Há uma objetividade legal referente ao conjunto das definições por
meio das leis vigentes, e, sobre as quais, baseia-se a questão da propri-
edade da terra. Igualmente, ao longo do tempo, conformou-se uma le-
gitimidade que não está instaurada de fato no horizonte de todos os
cidadãos. Existe o direito legalmente estabelecido: o cartório, a escri-
tura lavrada, a cerca. O perfil da luta pela terra questiona antes as bases

impulso 131 janeiro 99


Impulso.book Page 132 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

tidas como insuficientes da legitimidade, e não propriamente da lega-


lidade. Aqui denota-se um dos aspectos do perfil do movimento, a par-
tir do qual destaca-se um dos limites à potencialidade transformadora
do real.
O questionamento da legitimidade referente à propriedade da
terra dentro da ordem estabelecida possibilita o crescimento da cons-
ciência do direito ao uso da terra para nela trabalhar. Nesse sentido,
opera como elemento da identidade social, da pertença ao coletivo in-
tegrante da classe trabalhadora. Assim, o relacionamento legitimidade/
legalidade tem um duplo papel que define os alcances e os limites do
movimento social. É nesse quadro que se coloca, segundo a compre-
ensão interna ao movimento, a temática da reforma agrária no país
como uma discussão das mais freqüentes. A expectativa de mudanças
culturais relaciona-se com o ponto de vista da vida moral e a visão de
moralidade dos atos legais e ilegais. As ações concernentes ao movi-
mento em apreço remetem a uma nova intuição de vida, um modo de
sentir os interesses e de ver a realidade conflitiva em que se vive. Tor-
nam-se inclusive significativos os termos comparativos com outras for-
mas de organização social, isto é, conhecer outras alternativas à soci-
edade existente para fazer frente à dominação ideológica e como nelas
se situam alguns aspectos: trabalho/trabalhador, terra/riqueza, mulher/
cidadania, participação/democracia distributiva.
A pedagogia do movimento revela um direcionamento da par-
ticipação efetiva para perceber a opressão e possibilitar um posiciona-
mento coerente. Contudo, tal concepção, pela qual a direção do mo-
vimento afirma que os trabalhadores são sujeitos de sua própria his-
tória de formação e a conseqüente ação, contrapõe-se ao reconheci-
mento dos condicionamentos sociais, na medida em que os sujeitos
encontram-se histórica e culturalmente situados. Os condicionamen-
tos afetam o processo levado a efeito pelo movimento em apreço: a
educação política enfrenta contradições e esbarra em efeitos contrários
inesperados. O controle ideológico dá-se, por vezes, pela aparência
ofuscadora e pelo discurso semelhante ao popular. Nesse sentido, a
crítica consiste e abrange a totalidade de existência social, indo além de
se dirigir somente ao processo de desenvolvimento que marginaliza os
trabalhadores, abarcando também os costumes, os sentimentos e as
concepções de vida e de mundo.3 Para encaminhar os questionamen-

3 A propósito, pode-se conferir obras como de GRAMSCI (1978) e RUDÉ (1982), sobre as perspectivas
culturais dos setores populares.

impulso 132 janeiro 99


Impulso.book Page 133 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

tos dessa forma, os dirigentes esbarram em condicionamentos político-


culturais diversos, que embaraçam um avanço político homogêneo.
Várias ambigüidades são enfrentadas pelo confronto educação
política e ideologia dominante. A terminologia e a própria realidade da
conscientização envolvem-se em ambigüidades, pois que as idéias mo-
tivadoras dos protestos políticos provêm de diferentes origens. Além
disso, já existem uma base cultural e as situações diversificadas de exis-
tência social dos trabalhadores sem-terra. No mais das vezes, o con-
ceito conscientização, de uso corrente, vem acompanhado de ordena-
ção normativa e da expectativa de que, pela educação política, é pos-
sível criar consciência num espaço despovoado. Ligado aos aspectos
subjetivos e relegando determinações objetivas em razão da sua ori-
gem, supõe de alguma forma que exista um “espaço vazio”, sobre o
qual é possível atuar e construir. Por isso, tanto o uso deste conceito
apresenta inconvenientes em seu emprego quanto a prática está sujeita
a ambigüidades. Perspectivas sob a ótica dialética colocam delimitações
quanto à prática popular de alterar o universo cultural por iniciativas
que intentam consolidar patamares da cidadania.
A perspectiva de visualizar-se um “inimigo” radical das preferên-
cias vitais dos trabalhadores confere razão de ser. Entretanto, como
justificar que o capital representa o real adversário, e não o latifúndio
e seu proprietário? A rigor, questionar a distribuição da terra afeta, de
modo imediato, ao latifúndio, e não diretamente ao capital. Nisso se
constitui um dos dilemas da politização, pois o movimento significa
um espaço de discussão do conflito social latente ou declarado em tor-
no da questão agrária. O respectivo conflito, todavia, define-se pela
correlação das forças sociais. Mesmo assim, a distância geográfica do
latifúndio improdutivo, do espaço a ser conquistado frente ao “inimi-
go” apresenta certa dificuldade de visualização da luta pela reforma
agrária como uma questão relacionada ao conjunto da sociedade. Em
outros termos, se deixarmos de lado as alianças nas quais está envol-
vida, a reforma agrária poderia, no limite, ser encampada ocasional-
mente como proposta da burguesia.
O capital em tese ainda pode revolucionar a perspectiva das con-
dições de vida e de trabalho dos sem-terra. Pode lançar a maioria no
exército industrial de reserva ou, ainda, os projetos de construção das
hidroelétricas na região sul atentam para um sintoma possível do de-
senvolvimento industrial. Mesmo na consecução dos objetivos propos-
tos, com a conquista da terra, o capital tenderá a submeter o trabalho;
ainda que seja legítima e real a melhoria de vida para os trabalhadores,
constitui mudança efêmera frente às tendências generalizadas de

impulso 133 janeiro 99


Impulso.book Page 134 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

concentração do poder e do capital. Poderá a educação política ques-


tionar as experiências da luta pela terra, embora precise delas para
constituir os seus aspectos fundamentais? A posse da terra, colocada
como objetivo fundamental, talvez possa, no horizonte, tornar a nossa
sociedade economicamente mais igualitária, mais participativa sob o
ponto de vista social e político. Em outros termos, poderia desdobrar-
se numa cultura democrática, o que estaria em contraposição aos ob-
jetivos mais abrangentes da maioria das lideranças; entretanto, para o
conjunto do movimento, se consolidaria em proposta de enormes pas-
sos rumo à cidadania.
A formação política, entendida como processo que se alimenta
nas mobilizações, tem sua fonte principal os confrontos com os posi-
cionamentos das outras forças sociais. A ambigüidade do relaciona-
mento do movimento frente às configurações do Estado não impede
que ele modifique leituras, pretendendo conferir novas atribuições
frente às políticas sociais. Os manifestos públicos devem ser atribuídos
a demandas existentes e, ao mesmo tempo, requerem do Estado o
cumprimento de funções estabelecidas em lei, além de postular novas
tarefas.
As freqüentes negociações, os resultados parciais e diferenciados,
o limitado poder de decisão das diversas instâncias contatadas vão
mostrando as contradições que a atuação do Estado comporta. A re-
pressão ou o descaso constituem, no essencial, apenas formas de con-
tornar a pressão popular. As diferentes instâncias constituem, por ve-
zes, artifício para confundir e desalentar os encaminhamentos realiza-
dos pelos movimentos sociais. Se serve como um desalento, também
pode apresentar-se como a face pela qual os trabalhadores percebem
o mesmo como instrumento e artifício da classe dominante, em que a
organização do Estado apresenta-se como uma instância pública para
contornar os conflitos emanados das demandas populares. Apresenta-
se o instante pelo qual os movimentos contatam o poder de forma
mais efetiva e os dilemas vinculados ao vaivém imposto pelo Estado
significam um momento próprio de formação política. Sobretudo na
medida em que revelam as contradições e as forças sociais declaram in-
teresses em jogo, bem como desmascaram o papel reservado aos tra-
balhadores na organização social.
A relação com os partidos políticos funda pretexto para assinalar
posição frente ao discurso político em contradição com a prática: con-
trapondo o escrito, o dito e o feito dos mesmos. Dá oportunidade de
instante circunstancial para elaborar uma crítica diante do poder po-
lítico organizado na sociedade e, no horizonte, buscar formas de con-

impulso 134 janeiro 99


Impulso.book Page 135 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

trole sobre o exercício deste poder. A oposição efetivada por determi-


nados partidos políticos às pretensões do movimento parece ser por
vezes de fácil percepção. Porquanto, as posições se clarificam melhor
diante das ocupações e dos acampamentos e dos encaminhamentos
que apontam no rumo da organização no sentido do incentivo dado
pelo e ao Partido dos Trabalhadores. Na medida em que o acesso à ter-
ra passa a ser lido como um assunto de decisão política e devido à idéia
de que os interesses dos trabalhadores sem-terra estão ausentes na re-
presentação parlamentar, encaminha-se o empenho na política parti-
dária. Este empreendimento de auxiliar na construção do partido
apresenta-se certamente como um problema controvertido, não tendo
o apoio de toda a categoria, e acentua as posições políticas dos diri-
gentes do movimento em contraposição a outras opções partidárias.
A pesquisa de campo aponta para o agenciamento da aproxima-
ção entre o movimento e um determinado partido político. Ou ainda,
o movimento num determinado instante de sua trajetória tornou-se
um dos canais de ampliação do partido no campo, no sul do país. Isto
traz uma modificação também no discurso das lideranças. Além de
afirmarem que os membros do movimento devem participar da orga-
nização sindical, a partir da metade da década de 80, acrescentam ain-
da a afinidade com um partido político definido: o Partido dos Tra-
balhadores, valendo-se dos critérios selecionados.
Confira-se sobre o tema o Jornal do MST, fazendo-se presente a
temática da representação política e dos critérios de desenvolvimento
por ocasião das sucessivas campanhas eleitorais, desde os anos 80.
Existe um cuidado deliberado na questão partidária, no mais das ve-
zes, para permanecer nas “orientações” e, freqüentemente, não vem
apontado o partido ou um candidato a que é feita referência. Porém,
os critérios para apoiar um candidato são tais que sobra pouca mar-
gem além do PT. Na edição de número 57, de outubro de 1986, já en-
contramos uma reportagem sobre a temática, expondo-se os critérios
para a opção pelos possíveis candidatos apoiados pelo movimento; em
outras ocasiões o assunto é retomado e os critérios, reformulados.
O aperfeiçoamento dos instrumentos de apoio e de representa-
ção – sindicatos, partido, movimentos – representa um passo estraté-
gico de continuidade das ações e das mudanças pretendidas pela or-
ganização do movimento social. Vista sob a ótica da educação política,
a luta pela terra transforma-se numa luta favorável ao direito da exis-
tência social, o que implica basicamente uma maior participação eco-
nômica e política. O movimento constitui-se em elemento propulsor
no encaminhamento da percepção de que as reivindicações no plano

impulso 135 janeiro 99


Impulso.book Page 136 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

econômico e social vão requerendo maior participação no plano po-


lítico, pois, nele, as transformações de maior alcance são decididas; a
reforma agrária tem aí suas possibilidades de efetivação e seu embara-
ço. Essa questão os debates gerais tendem a levantar.
Conforme vimos, várias tensões perpassam o movimento e ex-
pressam de forma mais ou menos acentuada a relação entre os obje-
tivos imediatos e a modificação das contradições sociais que afetam o
conjunto dos trabalhadores a partir de vários problemas: a mudança
cultural, a condução democrática, a relação entre ação e reflexão, as-
sim como entre o imediato e o histórico. Tais questões remetem à dis-
cussão de problemas teóricos de envergadura, que têm preocupado di-
ferentes cientistas sociais ao analisarem os movimentos sociais ou re-
fletirem sobre a revolução social. Pelo visto, estas temáticas também
colocam-se estritamente pelas mobilizações públicas do movimento
destacado. Enfim, cabe salientar que, sem a solidariedade entre movi-
mentos, lutas sociais, intelectuais, entidades, partidários, formando as
respectivas redes de relacionamentos, seria impossível retratar o que
foi visto acima.

Se você treme de indignação


perante uma injustiça no mundo,
então somos companheiros.
Che Guevara

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigma do Capitalismo Agrário em Ques-
tão. São Paulo: Hucitec, 1991.

CALDART, Roseli S. Sem Terra com Poesia. Petrópolis: Vozes, 1987.

DAMASCENO, Maria N. A construção do saber social pelo campo-


nês na sua prática produtiva e política. In: VVAA – Educação e
Escola no Campo. Campinas: Papirus, 1993.

FERNANDES, Florestan. Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento.


Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

impulso 136 janeiro 99


Impulso.book Page 137 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

GAIGER, Luís I.G. A consciência radical: uma interpretação da prá-


tica política dos sem terra a partir do sistema cultural. XX
Encontro da ANPOCS, Caxambu/MG, out/1996. (mimeo)

GORGEN, Sérgio & STËDILE, João P. (org). Assentamentos: a res-


posta econômica da reforma agrária. Petrópolis: Vozes, 1991.

GRAMSCI, A. Alguns temas da questão meridional. In: Temas de


Ciências Humanas. São Paulo: Grijalbo, 1979, v.1.

___________. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civili-


zação Brasileira, 1986.

___________. Il Risorgimento. Torino: Giulio Einaudi, 1949.

___________. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

___________. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

___________. Passado y Presente. Barcelona: Granica, 1977.

HELLMANN, Michaela (org). Movimentos Sociais e Democracia no


Brasil. São Paulo: Marco Zero, 1995.

KURZ, Robert. Os últimos combates. In: Novos Estudos. São Paulo:


CEBRAP, (46) 1996.

MARTINS, José de S. Expropriação e Violência. São Paulo: Hucitec,


1980.

___________. O poder do atraso. In: Ensaios de Sociologia da História


Lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.

MARX, K. As Lutas de Classe na França. Lisboa: Avante, 1982.

POLANCO, Héctor D. Economia y Movimentos Campesinos. Repú-


blica Dominicana: Universidad Autonoma de S. Domingo,
1976.

POLI, Odilon L. Aprendendo a andar com as próprias pernas: o pro-


cesso de mobilização nos movimentos sociais no oeste catari-
nense. Anais do IV Encontro de Cientistas Sociais, Ijuí, 14-17/
maio/1996.

impulso 137 janeiro 99


Impulso.book Page 138 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1983.
RUDÉ, George. Ideologia e Protesto Popular. Rio de Janeiro: Zahar,
1982.
RUSCHEINSKY, Aloísio. A emergência de atores coletivos – o Movi-
mento dos Trabalhadores Sem Terra. Cadernos Cedope, São
Leopoldo: 3 (3) 1990.
_____________. Movimento social contemporâneo e tensões na for-
mação política. Cadernos Cedope, São Leopoldo: 3 (5) 1991.
____________. Identidade e movimento social. Cadernos Cedope, São
Lepoldo: 3 (9) 1992.
____________. História e cidadania, Biblos, FURG, 1995, n. 7.
____________. A questão partidária e movimento social. Momento,
Rio Grande: DECC/FURG, (8) 1995.
____________. Representação política e educação. Revista Educação e
Ambiente, Cidade: DECC/ FURG, (0) 1995.
____________. Educação política e movimento social. Anais do IV
Encontro de Cientistas Sociais, Ijuí (RS), 14-17/maio/1996.
____________. Dois atores, duas óticas. Momento, Rio Grande:
DECC/ FURG, (09) 1996.
____________. Movimentos sociais e participação institucional no
contexto da década de 70. Cadernos do ISP, UFPel, 1996.
SANTOS, José V.T. (org). Revoluções Camponesas na América Latina.
Campinas: Unicamp/Ícone, 1985.
SANTOS, O. J. Pedagogia dos Conflitos Sociais. Campinas: Papirus,
1992.
TOURAINE, Alain. Os movimentos sociais. In: FORACHI, M.M. &
MARTINS. Sociologia e Sociedade: leituras de introdução à socio-
logia, J. S. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977.

impulso 138 janeiro 99


Impulso.book Page 139 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Fetichismo na
Teoria Marxista:
um comentário
Fetishism in the marxist
theory: a comment
RESUMO – Este artigo consiste num comentário didático, com base na visão de Isa-
ak I. Rubin, sobre o papel do fetichismo no pensamento de Karl Marx. O feti-
chismo é identificado como elemento central para a distinção, localizada no cam-
po do método, entre a economia política inglesa e o marxismo.
Palavras-chave: marxismo – teoria do valor – fetichismo.
ABSTRACT – This article consists of a didactic comment, starting from the vision
of Isaak I. Rubin, about the function of the fetishism in Karl Marx´s thought. The
fetishism is identified as central element for the distinction, located in the field of
the method, between the English political economy and the marxism. VALDEMIR PIRES
vapires@unimep.br
Keywords: marxism – theory of the value – fetishism. vapires@merconet.com.br
Mestre em Economia, coordenador
do Curso de Economia (UNIMEP)

INTRODUÇÃO

N a tentativa de explicar a economia mercantil capitalista, Karl


Marx adota abordagem bastante distinta da utilizada pela
Economia liberal clássica. Enquanto a economia política in-
glesa parte da realidade mercantil como um dado, e passa a explicar
seu funcionamento com base na lei da oferta e da procura, Marx se
lança na busca de algo que possa explicar o porquê do surgimento e
da consolidação do mercado como forma predominante de provisão
e distribuição de riquezas. A teoria do fetichismo pode ser tomada
como um elemento central na diferenciação dos enfoques marxista e
liberal clássico, pois sua aceitação ou rejeição é algo definido no âm-
bito do método da ciência econômica. O presente artigo é uma ten-
tativa de mostrar isto, partindo de umas poucas citações de Marx, da
contribuição de Rubin e de ilações em torno de alguns conceitos tra-

impulso 139 janeiro 99


Impulso.book Page 140 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

dicionais do marxismo. A pretensão aqui é meramente didático-peda-


gógica: o objetivo é apenas levantar questões para a reflexão. Daí a
apresentação em tópicos pouco extensos, visando facilitar a demarca-
ção de aspectos relevantes para o objetivo de diferenciação das abor-
dagens.

TEORIA DO FETICHISMO:
MAIS DO QUE UM APÊNDICE À TEORIA DO VALOR

Um fetiche é um ídolo, um amuleto, algo enfeitiçado, que tem


poderes inexplicáveis, de origens misteriosas. A mercadoria assim pa-
rece a Marx, com base
no fato de que ela reflete aos homens as características sociais
do seu próprio trabalho como características objetivas dos
próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais
sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação so-
cial dos produtos com o trabalho total como uma relação
existente fora deles, entre objetos.1
Ele assim explica o processo através do qual o fetiche da merca-
doria se coloca:
Objetos de uso se tornam mercadorias apenas por serem pro-
dutos de trabalhos privados, exercidos independentemente
uns dos outros. O complexo desses trabalhos privados forma
o trabalho social total. Como os produtores somente entram
em contato social mediante a troca de seus produtos de tra-
balho, as características especificamente sociais de seus tra-
balhos privados só aparecem dentro dessa troca. Em outras
palavras, os trabalhos privados só atuam de fato, como
membros do trabalho social total, por meio das relações que
a troca estabeleceu entre os produtos do trabalho e, por meio
dos mesmos, entre produtores.2
Com efeito, o valor das mercadorias parece ser um dado objeti-
vo, quando na verdade, segundo Marx, este valor tem por base o tra-
balho humano nela objetivado. Por isso, Rubin afirma que a teoria do
fetichismo
consiste em Marx ter visto relações humanas por trás das re-
lações entre as coisas, revelando a ilusão da consciência hu-
mana que se origina da economia mercantil e atribui às coi-
1 MARX, 1983, p. 71.
2 Ibid, p. 71.

impulso 140 janeiro 99


Impulso.book Page 141 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

sas características que têm sua origem nas relações sociais en-
tre as pessoas no processo de produção.3
Para esse autor, a teoria do fetichismo é algo que deve ser enten-
dido como muito mais do que um mero apêndice à teoria do valor.
Por isso, ele se opõe a Struve,4 que, apesar de reconhecer o mérito da
teoria do fetichismo de ter desvendado as relações capitalistas de pro-
dução por trás da mercadoria, não considera correto estendê-la ao
conceito de valor ou quaisquer outras categorias econômicas. Assim
como antagoniza com Hammacher,5 que avalia ser a teoria do feti-
chismo uma estéril transferência para a Economia das idéias sobre re-
ligião de Feuerbach.
Rubin encara a teoria do fetichismo como “uma teoria geral das
relações de produção numa economia mercantil”, posto que, com ela,
Marx mostrou
que na economia mercantil, as relações sociais de produção
assumem inevitavelmente a forma de coisas e não podem se
expressar senão através de coisas. A estrutura da economia
mercantil leva as coisas a desempenharem um papel social
particular e extremamente importante e, portanto, a adqui-
rir propriedades sociais específicas (...),6 graças às quais não
só oculta as relações de produção entre as pessoas, como
também as organiza, servindo como elo de ligação entre as
pessoas.7
Ou seja, o fetichismo deve ser entendido como essência de todo
o sistema econômico de Marx, como um elemento-chave que permite
diferenciar seu método do método dos economistas clássicos.
E, de fato, somente um método que em sua essência contenha a
teoria do fetichismo pode conduzir à formulação de categorias que ex-
pressam vários tipos de relação de produção que assumem a forma de
coisas. Somente com base nesta teoria é possível afirmar, como Marx,
que o capital é “uma relação social expressa em coisas e através de coi-
sas”. Que o impacto da sociedade sobre os indivíduos se dá sob a for-
ma social de coisas. Que as coisas se apresentam em cada circunstância
sob diferentes formas, sendo a forma de valor a categoria em que “a
relação social básica entre pessoas enquanto produtoras de mercado-
rias que trocam os produtos de seu trabalho confere aos produtos a
3 RUBIN, 1980, p. 19.
4 STRUVE, apud: RUBIN, op. cit., p. 62.
5 HAMMACHER, apud: RUBIN, op. cit., p. 67.
6 RUBIN, op. cit., p. 20.
7 Ibid., p. 24.

impulso 141 janeiro 99


Impulso.book Page 142 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

propriedade específica de intercambialidade que parece então ser uma


propriedade natural dos produtos”,8 sendo a forma dinheiro a mer-
cadoria socialmente singularizada para servir como equivalente geral,9
sendo a forma capital a categoria que vincula um proprietário de mer-
cadoria (um capitalista) a outro proprietário de mercadoria (um ope-
rário).10
Enfim, as metamorfoses do capital refletem diferentes formas de
relações de produção. Algumas formas pressupõem logicamente ou-
tras e a Economia Política se constrói partindo das formas mais simples
para as mais complexas (valor, dinheiro, capital, taxa de lucro...) e tra-
tando “das relações de produção entre as pessoas, isto é, das formas
sociais do processo de produção, enquanto contrapostas aos aspectos
técnico-materiais”.11
Para Rubin, nesta diferença de abordagem, ou seja, no tratamen-
to das diferenças de forma que se desenvolvem sob certas condições
técnico-materiais, é que reside a grande contribuição de Marx à teoria,
bem como a diferença entre ele e os economistas clássicos, pois estes
tinham sua atenção dirigida à descoberta das bases técnico-materiais de
formas sociais que eles tomavam como dadas, e não sujeitas a análise
posterior, e aquele se preocupava em “descobrir as leis de origem e de-
senvolvimentos das formas sociais assumidas pelo processo de produ-
ção técnico-material a um dado nível de desenvolvimento das forças
produtivas”.12

FETICHISMO E VALOR
Para tornar mais clara a importância da idéia de fetichismo no es-
quema teórico marxista, é oportuno utilizar a noção de preço político
em contraposição à de preço de mercado. Considerando-se o preço
como expressão monetária do valor, as relações que valem para o pre-
ço valem também para o valor. Se numa sociedade de tipo socialista,
o preço (e o valor) é politicamente determinado (via planejamento
central), não se esconde nos produtos, nas coisas, nenhuma relação de
produção. Ao contrário do que ocorre num sistema de mercado. No
socialismo, a relação é do tipo homem-homem, não havendo a neces-
sidade da interposição da mercadoria. Ou seja, não se constitui uma
8 Ibid., pp. 45-46.
9 A forma capital apresenta-se sob diferentes aspectos, conforme a função que cumpra numa dada relação
de produção: meio de circulação, meio de pagamento, tesouro.
10 A forma capital, de acordo com sua função, pode apresentar-se como capital variável ou constante, capi-
tal dinheiro ou capital mercadoria, etc.
11 RUBIN, op. cit., p. 53.
12 RUBIN, ibid.

impulso 142 janeiro 99


Impulso.book Page 143 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

relação homem-mercadoria-homem. Os objetos de uso não se tornam


mercadorias, pois não são produtos de trabalhos privados. Os objetos
de uso, portanto, não se fetichizam; não se apresentam assim atributos
mágicos ou escondendo relações sociais. A forma social valor, na ver-
dade, perde significado. É clara a relação entre trabalho individual e
trabalho social.13

TRABALHO CONCRETO E TRABALHO ABSTRATO


A teoria do valor de Marx carece da noção de trabalho abstrato
para viabilizar-se. Trocar uma mercadoria por outra é o mesmo que
trocar iguais quantidades de trabalho, em número de horas trabalha-
das. Mas cada produtor individual tem seu ritmo, seus métodos e seus
diferentes instrumentos de trabalho para produzir. Como igualar coi-
sas díspares?
Marx afirma que o número de horas trabalhadas que se trocam
no mercado são horas socialmente necessárias para produzir os objetos
que as “cristalizam”. Se para produzir uma cadeira são necessárias, em
média, três horas, esta cadeira poderá ser trocada por outro objeto que
demande o mesmo número médio de horas para ser produzido. Nun-
ca mais do que isso, por maior que possa ser o número de horas con-
cretamente despendidas por um produtor mais lento ou caprichoso. O
número médio de horas socialmente necessário para se produzir uma
mercadoria não é, pois, um número estritamente matemático; é, isto
sim, um número socialmente determinado pelo mercado.
De que modo essa conclusão influencia na discussão sobre o fe-
tiche? De um lado, as mercadorias precisam conter em si mesmas o
número de horas necessárias a sua produção. De outro lado, não está
ao alcance do produtor isolado determinar-lhe o valor, pois este pre-
cisa da mediação do mercado para ser definido, uma vez que o traba-
lho considerado não é o trabalho concreto (com suas especificidades
em cada ramo, com as habilidades individuais existentes), mas o tra-
balho abstrato (meramente dispêndio de energia muscular e cerebral
humanas) e, mais, dispêndio de energia em quantidade socialmente
aceita para um determinado fim (para a produção de determinado
bem de uso). A relação para determinar o número de horas que vale
um objeto é uma relação homem-mercadoria-homem, uma relação
sancionada pelo mercado, com base em padrões tecnológicos preva-
lecentes. Portanto, uma relação fetichizada.
13 Estas observações são feitas limitando-se à lógica, sem entrar em considerações históricas.

impulso 143 janeiro 99


Impulso.book Page 144 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

FETICHISMO E DINHEIRO
O dinheiro, como medida do valor, reforça o fetichismo da mer-
cadoria.
O preço é a denominação monetária do trabalho objetivado
na mercadoria (...) A grandeza de valor da mercadoria ex-
pressa (...) uma relação necessária imanente a seu processo
de formação com o tempo de trabalho social. Com a trans-
formação da grandeza de valor em preço, essa relação neces-
sária aparece como relação de troca de uma mercadoria com
a mercadoria monetária, que existe fora dela.14
A possibilidade de ocorrer uma incongruência quantitativa entre
o preço e a grandeza de valor é inerente à forma preço. Ela será re-
solvida pelo mercado, no qual “a regra somente pode impor-se como
lei cega da média à falta de qualquer regra”.15 Da mesma forma que
a média determina o valor das mercadorias pela via do trabalho soci-
almente necessário, e não pelo trabalho concreto. Da mesma forma
que o lucro é um conceito funcional somente enquanto lucro médio.
Pressuposto o ouro como mercadoria monetária, ouro imaginá-
rio basta como medida de valor, como expressão do preço, o que di-
ficulta uma vez mais a retirada do véu que cobre relações humanas sob
as relações entre as coisas. Se não bastasse ouro imaginário, ouro cor-
póreo seria necessário e este, pelo menos, é claramente resultado de
trabalho humano concreto.
A forma preço da mercadoria é um dos alicerces da coercibili-
dade do mercado sobre as ações humanas, ou de deificação do mer-
cado e, por conseguinte, da mercadoria (= coisa), pois ela “implica a
alienabilidade das mercadorias contra dinheiro e a necessidade dessa
alienação”.16
Como meio de circulação, o dinheiro apresenta-se enquanto
substrato para a metamorfose da mercadoria (dinheiro converte-se em
mercadoria e mercadoria se converte em dinheiro no processo de cir-
culação). Nesse processo contínuo, baseado na divisão do trabalho,
cada produto individual precisa ser transformado em dinheiro para se
tornar mercadoria. Assim, fica ainda mais difícil resgatar o trabalho
humano como verdadeira fonte do valor, sendo o seu vestígio, pre-
sente no valor de uso, completamente obscurecido pelo véu do di-
nheiro, que é a materialização social uniforme do trabalho indistinto.
14 MARX, op. cit., p. 92.
15 Ibid., p. 92.
16 MARX, op. cit., p. 93.

impulso 144 janeiro 99


Impulso.book Page 145 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

FETICHISMO E CAPITAL PORTADOR DE JUROS


O fetiche aparece de forma exacerbada no capital portador de
juros. Marx faz notar que
No capital portador de juros, a relação capital atinge sua for-
ma mais alienada e mais fetichista. Temos aí D-D’, dinheiro
que gera mais dinheiro, valor que valoriza a si mesmo, sem
o processo que medeia os dois extremos. (...) O capital apa-
rece como fonte misteriosa, autocriadora do juro, de seu pró-
prio incremento. A coisa (dinheiro, mercadoria, valor) já é
capital como mera coisa, e o capital aparece como simples
coisa; o resultado do processo global de reprodução aparece
como propriedade que cabe por si a uma coisa.17
De fato, a coisificação atinge seu apogeu no capital portador de
juros. No capital industrial, ainda prevalece a mercadoria (claramente
um trabalho individual que busca objetivar-se) enquanto valor de uso,
produto do trabalho, como mediadora do valor de troca. No capital
comercial, pelo menos a esfera da circulação fica patente, aparecendo
o lucro como resultado de alienação e, portanto, produto de uma re-
lação social. A esfera financeira é, portanto, o ponto culminante da
fetichização da mercadoria.

CONCLUSÃO
A teoria do fetichismo foi a descoberta que conduziu Marx para
além dos postulados da Economia Política clássica, pois esta última (es-
pecialmente pelas mãos de Ricardo), tomando a forma como a riqueza
se distribui entre as classes enquanto o objeto da Economia Política,
não se deteve no questionamento das causas que originaram esta for-
ma de distribuição. Marx, pelo contrário, centrou no estudo das rela-
ções de produção o objeto da Economia Política e, ao fazê-lo, pôde de-
tectar no fetiche da mercadoria um elemento explicativo do surgimen-
to, da consolidação e do modo de operar destas relações e das formas
de distribuição correlatas.
Tendo em vista que não é incomum encontrar afirmações de que
há em Marx uma postura ideológica que conduz a uma teoria envie-
sada do capitalismo, é conveniente, a esta altura, reforçar que, uma vez
aceito o método de Marx, não se pode fugir à conclusão de que ele,
ao invés de partir de uma ideologia para formular sua teoria, pelo con-
trário, descobre, com sua teoria (construída com base em método dis-
17 Ibid., p. 293.

impulso 145 janeiro 99


Impulso.book Page 146 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

tinto do utilizado pelos economistas clássicos) o caráter ideológico da


forma de operar da economia mercantil capitalista. Em outras pala-
vras, sua teoria, graças ao método que utiliza, flagra a ideologia como
componente necessário e como resultante da forma de operar da eco-
nomia mercantil capitalista. Então não é a postura ideológica, mas sim
a postura metodológica de Marx que o conduz à descoberta de con-
ceitos que, nos marcos do supostamente asséptico método dos econo-
mistas clássicos, são conceitos ideológicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HAMMACHER, Emil. Das Philosophisch-okonomische. Apud:
RUBIN, Isaak I. A Teoria Marxista do Valor. São Paulo: Brasili-
ense, 1980.
MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
RICARDO, David. Economia Política e Tributação. São Paulo: Abril
Cultural, 1982.
RUBIN, Isaak Illich. A Teoria Marxista do Valor. São Paulo: Brasiliense,
1980.
SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Abril Cultural,
1983.
STRUVE, P. Khozaystvo i Tsena. Apud: RUBIN, Isaak I. A Teoria Mar-
xista do Valor. São Paulo: Brasiliense, 1980.

impulso 146 janeiro 99


Impulso.book Page 147 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 147 janeiro 99


Impulso.book Page 148 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

impulso 148 janeiro 99


Impulso.book Page 149 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

i

Modernização e
Biblioteconomia Nova
no Brasil
FRANCISCO DAS CHAGAS SOUZA
Orientador: prof. dr. Francisco Cock Fontanella
Defesa: 24/06/95
Investiga as condições do contexto brasileiro que determinam a introdu-
ção da educação bibliotecária, criada pela prática social norte-americana e
desenvolvida nos Estados Unidos da América, como o modelo de ensino pro-
fissional adotado pela ALA (American Library Association). Foram estudadas
as condições sociais, econômicas e políticas do Brasil nos primeiros trinta anos
deste século e o modo e a natureza pelos quais exercem uma forma particular
de determinação para a adoção do modelo, mais particularmente, a partir de
1937, pela biblioteca municipal da capital paulista. Verifica que a implantação
do curso de Biblioteconomia, transformado em seguida em escola, se deu
num momento histórico em que ocorriam fortes mudanças estruturais e no
qual a idéia de modernização fazia parte do discurso do Estado; portanto, o
curso teria o caráter de um dos componentes de apoio a essas mudanças.
Neste sentido, busca identificar e analisar os aspectos que evidenciam a
ocorrência da degradação do modelo, a fim de que se desse a sua introdução
no Brasil, bem como os fatores que geraram o agravamento da degradação do

e
mesmo, levando-o a consolidar-se com o perfil com que se mantém ainda
hoje. Por fim, identifica e analisa fatores que são asseguradores da sustentação
da degradação do modelo, o que faz do ensino de Biblioteconomia praticado
no Brasil um caminho de mão única.

O Cenário Epistemológico
da Complexidade
LAERTHE DE MORAES ABREU JUNIOR
Orientador: prof. dr. Hugo Assmann
Defesa: 09/11/95
Este trabalho aborda a epistemologia da complexidade. Novos conceitos
surgidos nas ciências, tais como sistemas complexos, teoria do caos, auto-orga-
nização e fractais, entre outros, têm motivado o interesse para um estudo
transdisciplinar sobre o conhecimento, convidando-nos a uma reflexão con-
junta sobre o sentido que a educação pode assumir nesse contexto. É preciso
rediscutir os limites entre ciência, filosofia e arte. Nessa discussão não pode-
mos prender os conceitos numa razão imaginária que garanta a separação dos
conhecimentos por áreas e interesses que preexistam à própria organização do
conhecimento. Essa reflexão é tarefa para a educação. Seu papel é organizar as
interações que os conceitos provocam no cenário epistemológico. A caracte-
rística desse processo é que o conhecimento se organiza no limite do caos. A
educação organiza, isto é, pensa os limites do conhecimento dentro de uma
circularidade cognitiva. O conhecimento não é algo que está fora da própria

impulso 149 janeiro 99


Impulso.book Page 150 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

ação de conhecer. Conhecimento, organização e complexidade são os temas


que devem ocupar as discussões sobre a educação no contexto da sociedade
deste final de século. Uma preocupação deste trabalho é com o sentido ético-
político dessa discussão, isto é, o relacionamento desses conceitos na organiza-
ção social, humana e da vida em geral. O objetivo deste trabalho é oferecer
um campo de reflexão abrangente, pois a construção do cenário epistemoló-

o
gico da complexidade atende a interesse acadêmico bastante diversificado.

Rejeição ou não de Alunos
às Aulas de Educação
Física no 2o Grau
MARIA INÊS BALDINI
Orientador: prof. dr. Wagner Wey Moreira
Defesa: 16/02/96
O objetivo do estudo é investigar a rejeição ou não de alunos do então 2º
grau às aulas de Educação Física, em escolas particulares e estaduais da cidade
de Campinas. Participaram 563 indivíduos, de ambos os sexos, na faixa etária
de 14 a 23 anos. Foi utilizado um questionário exploratório para verificação.
A análise estatística demonstrou que 48% dos alunos pesquisados são dispen-
sados das aulas. Dos 52% restantes, ou seja, dos que freqüentam as aulas de
Educação Física, 40% as rejeitam e 60% as aceitam. Tanto para a rejeição
quanto para a aceitação, foram encontradas razões explicativas. Além disso,
ficou demonstrado haver uma grande preferência pelas aulas de Educação
Física de caráter recreativo.

e

Gestão Democrática na
Universidade Pública
FERNANDO AGUIAR FROTA
Orientador: prof. dr. Davi Ferreira Barros
Defesa: 29/02/96
Este trabalho analisa as possibilidades de se realizar uma gestão em base
democrática na universidade pública. Reflete-se sobre a universidade
enquanto instituição, sua história, seus projetos e como se integra na socie-
dade. Se esta oferecer condições de estrutura para a transformação, compete à
universidade coadjuvá-la com a função crítica, o debate de idéias e da moder-
nidade. Verifica-se ser relevante aplicar a democracia às orientações político-
ideológicas e administrativas da instituição universitária. Sobre isso, destaca-se
o estudo a respeito das vocações científica e política. Estando a serviço do
povo, a universidade se torna legítima quando executa a gestão comparti-
lhada, na qual é possível encontrar espaço aberto ao trabalho renovador. Con-
sidera-se a significação do processo administrativo em moldes democráticos,
na universidade pública, a qual, neste país, sofre prolongada crise. Ao lado de
deficiências múltiplas, nota-se a reação construtiva. Tem realce a autonomia.
Para muitos, inclusive o governo, é relativa; para grande número, deveria ser
ampla. Em qualquer caso, ela é indispensável. A democracia possível mostra-

impulso 150 janeiro 99


Impulso.book Page 151 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

se no processo decisório. Compartilhada, a gestão cresce em dinâmica. Aqui,


assume-se o paradigma multidimensional de administração da educação, de
Benno Sander, com suas dimensões e seus critérios. Seguem-se os complemen-
tos, com sugestões de atividades e as conclusões.

Tempo de Saúde e Tempo

o
de Doença: Desvelando
Representações
THAIS ADRIANA DO CARMO
Orientador: prof. dr. John Cowart Dawsey
Defesa: 29/02/96
O presente trabalho procura promover discussões que contribuam para
a prática da educação em saúde. Para tanto estabelece como objetivos: a iden-
tificação das representações de saúde e doença de uma determinada popula-
ção (pacientes diabéticos e profissionais de saúde de uma Unidade Básica de
Saúde do Município de Piracicaba); a investigação do discurso social contido
nestas representações; a contextualização histórica e social das representações
encontradas; e a busca da compreensão de como as relações entre os pacientes
e os profissionais têm se articulado no interior do sistema público de saúde.
Como metodologia, utiliza-se a etnografia em trabalho de campo fundamen-
tado em entrevistas individuais. Foram entrevistados 12 pacientes, dois médi-
cos, uma funcionária da unidade e um fitoterapeuta (profissional) com grande
ascendência na cidade e na região. Ao final da pesquisa, conclui-se que existem
diferentes formas de perceber e pensar o fenômeno saúde-doença, além do
proposto pela medicina científica, fato que pode determinar diferentes práti-
cas terapêuticas e, portanto, estar contribuindo para a ocorrência de conflitos
entre os diversos sujeitos envolvidos no processo de cura. Esta constatação
sugere que qualquer ação educativa na área de saúde deve levar em considera-

p
ção tais pressupostos para tornar-se realmente um instrumento de conscienti-
zação e de transformação, tanto para os pacientes quanto para os profissionais
de saúde.

Percepções e
Representação do Mundo
no Desenho Infantil – da
Teoria da Forma à
Fenomenologia
HELIANA OMETTO NARDIN
Orientador: prof. dr. John Cowart Dawsey
Defesa: 01/03/96
Para afirmar o desenho infantil como expressão de um eu que interage
com o mundo e com o outro, investigou-se inicialmente, neste trabalho, a perce-
pção e a elaboração do mundo realizada pelo homem por meio dos símbolos.

impulso 151 janeiro 99


Impulso.book Page 152 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Constatou-se que a Teoria da Forma constrói o estudo da percepção realizando


a dicotomia sujeito-objeto e, conseqüentemente, a divisão do campo preceptivo,
em que o sujeito e a consciência são reduzidos a uma dinâmica de estruturas
naturais. Buscou-se a crítica a essa teoria na fenomenologia da percepção, de
Merleau-Ponty, que privilegia a consciência primeira, ou seja, a intencionalidade
da percepção de um ser no mundo. Entendida a questão da percepção, detec-
tou-se a sua articulação com o significado simbólico, especificamente com a
experiência da arte e seu processo de criação simbólica. Investiga-se, então, a
estrutura da mente infantil e a representação que a criança faz do mundo, abor-
dando as relações que ele estabelece com o imaginário e com o simbólico pela
linguagem e pela arte infantil. O estudo da imitação se fez necessário para escla-

o
recer a noção de expressão e explicitar o desenho da criança como prolonga-
mento da percepção infantil e ensaio de expressão de si e do mundo.

O Deficiente Físico nas
Aulas de Educação Física
na Rede Pública de Manaus
KATHYA AUGUSTA THOME LOPES
Orientador: prof. dr. Júlio Romero Ferreira
Defesa: 01/03/96
O presente estudo tem por objetivo detectar os fatores que influenciam a
participação, nas aulas de Educação Física, de alunos portadores de deficiência
exclusivamente física, matriculados em escolas da Rede Pública de Ensino, na
cidade de Manaus. A pesquisa caracteriza-se por uma abordagem qualitativa,
para a qual foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas com oito professores
de Educação Física e quinze alunos portadores de deficiência física de escolas
estaduais e municipais. Estes números foram estabelecidos com base em um
levantamento realizado na Rede Pública de Ensino, que detectou em turmas da
escola regular a presença desses alunos e professores. O trabalho concluiu que a
participação destes alunos está comprometida em função de vários fatores:

c
desde a situação da Educação Física nas Secretarias de Educação e na Escola até
o autoconceito de deficiente em relação às suas capacidades, passando pela
ação do professor, que dispensa estes alunos da prática da Educação Física.

Memória e Percepção do
Tempo: Implicações para
a Aprendizagem
CARLA DA SILVA SANTANA
Orientador: prof. dr. Hugo Assmann
Defesa: 04/03/96
Com o propósito de refletir sobre como a memória e a percepção do
tempo relacionam-se com os processos de aprendizagem, foi feita pesquisa de
natureza bibliográfica combinada com pesquisa empírica, na qual se utilizou

impulso 152 janeiro 99


Impulso.book Page 153 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

dados de segunda mão. A hipótese que serviu de pano de fundo a esta busca
foi a de que as atividades cerebrais têm sido divididas com base em um
modelo estruturalista, no qual cada função específica é vista isoladamente,
como se pudéssemos analisar as funções mentais desconectadas do corpo
como um todo. Como refletem estas teorias estruturalistas, a memória era
vista inicialmente como um depositário de lembranças, tendo função cumula-
tiva dos blocos vivenciais. Valendo-se das contribuições de Restrepo, Garcia-
Albea e Marina, foi composta uma nova visão da memória, que passou a ser
vista como um sistema dinâmico, ativo e criativo, capaz de se autogerir e orga-
nizar. Essa concepção de memória ativa tornou clara a implicação direta entre
memória e aprendizagem, dado que já não se pode pensar a memória como
uma faculdade mental, uma capacidade do indivíduo de reter dados aprendi-
dos e vividos, mas principalmente porque esta visão teceu a imagem de
memória que é puro movimento e não habita um locus específico, ao contrá-
rio, está espalhada pelo cérebro e pelo corpo. Do aporte bibliográfico consul-
tado, ficou claro o quanto a corporeidade tem sido secundarizada pelas
metáforas do corpo-máquina, computador, etc. e a escola aparece como possi-
bilidade de resgate desse ser único, mediante práticas pedagógicas capazes de
intervir de forma prazerosa.


o
Da Classe Comum para a
Classe Especial: as Razões
dos Professores
MARGARETE CARNIO
Orientador: prof. dr. Júlio Romero Ferreira
Defesa: 05/03/96
O presente estudo objetivou identificar os motivos pelos quais os profes-
sores da rede estadual de ensino do então 1º grau, do município de Limeira,
interior do estado de São Paulo, encaminharam seus alunos para avaliação psi-
cológica, entre os anos de 1989 e 1994. Para alcançar o objetivo proposto, foi
realizada análise de 132 questionários, devidamente preenchidos pelos profes-
sores, segundo categorias previamente elaboradas. Estes questionários foram
obtidos com base no encaminhamento dos diretores/professores. Pelos dados
obtidos, verificamos que não existe um único motivo que determine o enca-
minhamento para avaliação psicológica. Constatamos que atitudes de ordem
comportamental, acadêmica e emocional são apontadas como indicativos de
problemas. Porém, o que pode ter contribuído para a não-identificação dos
motivos é que estes são genéricos e o instrumento não permitiu identificar de
forma clara, precisa e objetiva, em virtude da falta de organização e elaboração
das questões.

impulso 153 janeiro 99


Impulso.book Page 154 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

o

A Administração da
Educação de Adultos em
Bauru (1985-1988): um
Relato de uma Experiência
VERA MARIZA REGINO CASÉRIO
Orientador: prof. dr. João dos Reis Silva Júnior
Defesa: 05/03/96
O trabalho aborda a implantação da Divisão de Educação de Jovens e
Adultos, na Prefeitura Municipal de Bauru, uma experiência de educação
popular, de caráter comunitário, cuja viabilização, por acontecer no âmbito de
uma instituição oficial, apresentou um quadro polêmico e muitas vezes
contraditório. Analisa-se a proposta político-pedagógica para alfabetização de
adultos e jovens, que define esta forma de educação como sendo um projeto
coletivo colocado a serviço da população, tentando congregar educadores e
alunos, comunidade escolar e social, em função das necessidades e interesses
objetivos comuns, e procurando desenvolver nos participantes a consciência
da importância da organização e da participação populares. Estuda-se ainda a
metodologia utilizada pelo programa, baseada nos princípios filosóficos de
Paulo Freire e fundamentada nos princípios da Lingüística aplicada à alfabeti-
zação.

o

Ensino de Graduação em
Farmácia: a Lógica da
Profissionalização
MANOEL ROBERTO DA CRUZ SANTOS
Orientador: prof. dr. Valdemar Sguissardi
Defesa: 05/03/96
O autor desenvolve reflexão sobre a perda de identidade da profissão far-
macêutico, assinalando a dicotomia entre um profissional de saúde e um tecnó-
logo, dicotomia esta acentuada principalmente a partir da década de 30, com a
implantação de um novo modelo de desenvolvimento no país. Estes estudos,
que não se limitam somente à questão brasileira, passam por indagações funda-
mentais sobre origem histórica, definição de identidade, compreensão das
transformações ocorridas no setor, etc. Essas questões refletem, no fundo,
preocupações nítidas com a relação profissional/formação/função social. Preo-
cupado com o impasse estabelecido e com a falta de alternativas que possam
estabelecer uma pauta mínima de discussão fora do campo estéril do corporati-
vismo, o autor desenvolve sua reflexão sobre as questões pedagógicas de currí-
culo de formação e as relações que estas mantêm com o contexto social e
político. Para isso, o autor utiliza paradigmas filosóficos e sociológicos que per-
mitem revelar o objeto de estudo: o ensino colocado dentro da lógica da profis-
sionalização (formação de profissionais), em detrimento do ensino acadêmico
voltado para a criação e a transmissão do conhecimento universal. Enfim, o

impulso 154 janeiro 99


Impulso.book Page 155 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

estudo mostra ser consensual a opinião de que houve uma perda de identidade
do profissional farmacêutico. Entretanto, a realidade tem mostrado que as
reformas e as alterações curriculares promovidas pelas Escolas de Farmácia têm
se voltado, em essência, para o atendimento do mercado de trabalho, resul-
tando no agravamento do problema. Traçando um quadro mais amplo desta
problemática e das soluções apontadas até o momento, o estudo mostra ser

o
possível avançar na discussão do processo de formação profissional.

Talento, Treinamento
e Rendimento no
Basquetebol Feminino
VAGNER ROBERTO BERGAMO
Orientador: prof. dr. Ademir De Marco
Defesa: 06/03/96
O objetivo deste estudo foi verificar se há, com o treinamento, um efeito
positivo nos aspectos biológicos, aumentando com isso o nível de aptidão física
de jovens atletas. Nós avaliamos 120 jovens atletas de equipes competitivas, as
quais costumavam treinar em média cinco vezes/semana, com duração média de
duas horas/dia. Para a análise do comportamento da curva de crescimento das
jovens atletas, utilizamos como ponto de referência os dados das escolares (cole-
tados pela CELAFISCS) que freqüentavam aulas de educação física em média
três vezes/semana, com duração média de 50 minutos por sessão. Foi utilizada
uma bateria de testes em ambos os grupos, segundo protocolo CELAFISCS. Na
análise dos resultados, foi usado o tratamento estatístico descritivo de média,
desvio padrão. As diferenças entre os grupos foram comparadas pelo teste “t”,
de Student, ao nível de significância p < 0,01, enquanto que, para a compara-
ção de mais de duas médias independentes, adotamos a análise de variância do
tipo one way, com teste post-hoc, do tipo Scheffé. Os resultados evidenciaram
diferenças significativas entre os grupos, podendo concluir que: as jovens atletas
mostraram superioridade em todas as variáveis físicas, em todas as idades,
quando comparadas com as escolares; as escolares apresentaram em média esta-
bilidade de crescimento em todas as variáveis físicas, enquanto as jovens atletas
apresentaram somente estabilidade de crescimento nas variáveis de amadureci-
mento precoce e crescimento significativo para as variáveis dependentes do cres-
cimento somático e funcional; as jovens atletas com nível de aptidão física
próximo aos da população abandonaram, com o passar dos anos, o basquete-
bol, contrariamente às atletas com valores de aptidão física superiores aos valo-
res críticos, sendo hoje integrantes do grupo de elite do basquetebol nacional; as
jovens atletas apresentaram, somente aos 17 anos, valores médios significativos
nos níveis de aptidão física; na análise da maturação biológica, as escolares apre-
sentaram, em todas as variáveis, nível de maturação mais precoce do que as
jovens atletas; a estratégia Z demonstrou ser um instrumento altamente qualifi-
cado para a seleção de talento esportivo, pois, não só detectou atletas com índi-
ces de aptidão física inferiores aos da população, como também detectou atletas
com valores superiores até mesmo aos das atletas de elite. A falta de critério no
processo de seleção e principalmente o processo pedagógico permitem ao

impulso 155 janeiro 99


Impulso.book Page 156 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

mesmo tempo treinar juntas as atletas com valores de aptidão física inferior à
média da população de escolares com atletas com valores acima do grupo de
elite; a melhoria do nível de aptidão física deu-se pela ocorrência dos processos
de crescimento, permitindo-nos sugerir que o treinamento não culminou em
melhora do nível de aptidão física das jovens atletas; a correlação alta entre o
índice Z inicial e final em atletas jovens e adultas confirma a pouca influência na
melhoria do nível de aptidão física; e, quanto ao processo pedagógico, não
encontramos nenhuma relação com a prática do basquetebol nesse estudo.


c
Educação Física no Ciclo
Básico da Rede Pública de
São Paulo em Piracicaba:
Construtivismo ou
Ecletismo
LUCIENE FERREIRA DA SILVA
Orientador: prof. dr. Wagner Wey Moreira
Defesa: 28/03/96
Com base na implantação de uma proposta construtivista de Educação
Física para o Ciclo Básico, editada pela CENP (Coordenadoria de Estudos e
Normas Pedagógicas) no ano de 1989, a autora se preocupou em investigar
como estas alterações se davam no cotidiano escolar. Com efeito, esta proposta
tinha por objetivo subsidiar a prática da Educação Física desde as primeiras
séries, buscando romper com o ensino tradicional, que está diretamente ligado à
repetição padronizada de movimentos e ao desempenho ideal em atividades
esportivas visando o rendimento e a performance físicos. O objetivo principal
do estudo foi detectar qual é a prática da Educação Física no Ciclo Básico após o
lançamento da proposta construtivista da CENP. Para isso, a autora trabalhou
com pesquisa bibliográfica e documental, detendo-se, num primeiro momento,
nos autores construtivistas que, direta ou indiretamente, influenciaram a elabo-
ração da proposta. Fez-se necessário também o levantamento dos documentos
que implementaram tais mudanças, para obtenção do quadro geral de altera-
ções ocorridas para reestruturação do ensino no primeiro ciclo. De posse desses
dados, a autora foi a campo observar as aulas de Educação Física e entrevistar os
professores. Conjuntamente, esses elementos puderam proporcionar informa-
ções importantes, em especial quando confrontados entre si. A seguir, analisou
os resultados, discutindo o que parecia mais relevante ao estudo. As conclusões a
que a autora chegou comprovam que os professores não tiveram conhecimento
da proposta de Educação Física para o Ciclo Básico e que eles apenas “ouviram
falar sobre”, mas não participaram de treinamentos efetivos que permitissem
ações seguras em seu cotidiano. Detectou que as aulas de Educação Física, após
a implantação da proposta da CENP, estavam orientadas por práticas ecléticas,
em que os professores demonstraram uma postura tradicional, alicerçada princi-
palmente sobre as suas experiências cotidianas. Dessa forma, concluiu que a
ausência de ações efetivas quanto à capacitação, orientação e supervisão dos
professores pode promover modismos que elevam os índices de fracasso escolar,
comprometendo a qualidade do ensino.

impulso 156 janeiro 99


Impulso.book Page 157 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

d

Evasão Escolar: uma
Pesquisa com Evadidos
SINCLAIR CORRÊA SOARES
Orientador: prof. dr. Francisco Cock Fontanella
Defesa: 25/06/96
Desde o seu início, no período colonial, o sistema educacional adotou uma
tendência elitista e discriminatória. A educação foi estabelecida visando atender
crianças e adolescentes do grupo dirigente da sociedade colonial. As crianças das
classes pobres sempre foram dificultadas, e mesmo impedidas, de freqüentar as
poucas escolas existentes. A evasão escolar atravessou esse período e veio aflorar,
com muito mais força, durante a República, quando foram abertas, aos alunos
das classes mais pobres, maiores oportunidades à educação escolar. No período
republicano, com o início da escolarização das camadas populares, as dificulda-
des para freqüentar os cursos eram tão grandes que poucos alunos conseguiram
ser promovidos no final do período letivo. Para descobrir os motivos da elimina-
ção da maioria dos alunos matriculados e evadidos das escolas, realizamos uma
pesquisa de campo no município de Diadema, na Grande São Paulo, e constata-
mos esses fatos relacionados à evasão escolar das camadas pobres da população.
Ainda hoje, as crianças das camadas populares não conseguem permanecer no
sistema escolar, não atingindo o término do ensino fundamental. Conforme
dados colhidos, mais da metade das crianças matriculadas nas escolas desiste, a
cada ano, de estudar, nas primeiras e segundas séries. Os principais fatores que
geram essa desistência são de origem socioeconômica. O trabalho é apontado
como a principal causa provocadora de evasão e desistência escolar, levando
milhares de crianças a abandonar a escola. Devido à necessidade de trabalhar,
apenas quatro em cada cem alunos no grupo entrevistado conseguiram atingir a
quarta série. Dentro do contexto socioeconômico atual, sabemos que a educa-
ção é um dos únicos caminhos para a solução dos problemas e conflitos que

a
estamos vivendo; daí a insistência em conhecer as causas que levam à evasão,
acreditando que, por meio da educação escolar, esses problemas podem ser
minimizados ou até mesmo solucionados.

Pedagogia Histórico-crítica
e Educação Física: a
Relação Teórica e Prática
RÓBSON LOUREIRO
Orientador: prof. dr. Valdemar Sguissardi
Defesa: 30/08/96
A crise de hegemonia do regime militar pós-64 iniciou na década de 70.
No período de 1974 a 1985, o país viveu a fase de “transição democrática”.
Nessa época, desenvolveram-se, na área educacional, críticas ao modelo de edu-
cação implementado pela ditadura – o tecnicismo. Este pretendeu racionalizar o
trabalho pedagógico, atribuindo-lhe as mesmas características do trabalho nas

impulso 157 janeiro 99


Impulso.book Page 158 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

fábricas: eficiência, produtividade e neutralidade científica. No processo de crí-


tica, foi importante a contribuição da teoria crítico-reprodutivista, amplamente
divulgada e acolhida por parcela dos educadores brasileiros. Contudo, tomando
por base essa teoria, não se conseguiu elaborar nenhuma proposta alternativa à
pedagogia oficial do governo militar. Frente à necessidade de superar a fase da
crítica sem proposições, os esforços começaram a ser canalizados no sentido de
se elaborar uma nova forma de intervenção pedagógica. Este foi o marco da
construção da pedagogia histórico-crítica. Em 1992, surge na Educação Física
um projeto pedagógico preocupado em apresentar uma alternativa de metodo-
logia do ensino para esta disciplina, que superasse a perspectiva tradicional
representada pelo modelo da aptidão física. Tal proposta vem sendo identificada
como a pedagogia histórico-crítica da Educação Física brasileira. Esta pesquisa
busca compreender como e por que surge o projeto histórico-crítico na Educa-
ção Física brasileira. Para tanto, historiciamos alguns aspectos, na tentativa de
compreender como e porque surge, no Brasil, a tendência pedagógica histórico-
crítica. Partimos do pressuposto de que uma teoria pedagógica nasce como res-
posta a um contexto de crise social. Nesse sentido, buscamos compreender o
que significou o regime militar pós-64 e, especificamente, o momento de transi-
ção para um regime civil – a Nova República. A promessa de democratização e
as mobilizações sociais fizeram com que a Educação Física iniciasse um processo
de debate, tentando reconquistar a reflexão filosófica e política por meio da
contribuição de várias áreas do conhecimento, entre elas, a pedagogia. Nesse
anseio, ocorreu a primeira aproximação da Educação Física com os pressupos-
tos da pedagogia histórico-crítica. Essa fase caracterizou-se pela tentativa de ela-
borar uma proposta identificada com esta concepção pedagógica. Em 1992,
inaugura-se uma nova etapa, na qual a pretensão de identificação mecânica é
substituída por um diálogo mais complexo, que envolve recriações e
reinterpretações. A proposta de uma Educação Física crítico-superadora pode
ser entendida como resultado dessa nova relação estabelecida. Isso contribui não
só para o avanço da disciplina pedagógica em particular, mas também da teoria

a
pedagógica no seu âmbito geral.

Cultura Corporal e Saúde:
um Discurso Ideológico
SANDRA SOARES DELLA FONTE
Orientador: prof. dr. Valdemar Sguissardi
Defesa: 30/08/96
A concepção de que a prática de atividades corporais promove saúde
é bastante disseminada e aceita pela sociedade. Esta concepção não é
recente; ela se encontra implícita em aforismos da Antiguidade clássica,
como ginástica para o corpo e música para a alma e mente são em corpo
são; e também nas formulações do pensamento médico-higienista, desen-
volvidas a partir da consolidação da sociedade burguesa. O objetivo deste
estudo é apreender o sentido do discurso da promoção da saúde pela ativi-

impulso 158 janeiro 99


Impulso.book Page 159 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

dade corporal (tanto a vivenciada no tempo de lazer quanto aquela temati-


zada pela Educação Física escolar) na sociedade contemporânea. Por meio
de uma pesquisa teórica, caracterizamos dois modelos científicos que
defendem, cada qual a seu modo, a atividade corporal como promotora de
saúde: a aptidão física moderna, que se desenvolveu no Brasil a partir da
década de 70, representa um discurso mais tradicional, pautado no positi-
vismo filosófico, tratando os temas da cultura corporal em termos de habi-
lidades físicas e esportivas e enfatizando a concepção funcionalista de saúde
como ausência de doença; e a teoria da motricidade humana, discurso apa-
rentemente inovador, baseado numa concepção holística de saúde. Para
essa teoria, a Educação Física tem possibilidade de promover saúde na
medida em que incorpore o paradigma da complexidade (também cha-
mado holístico ou pós-moderno). A principal fragilidade desse discurso é
reproduzir aquilo que, em princípio, combateria os reducionismos, especi-
almente ao naturalizar a história e o ser humano e ao adotar perspectivas
internalistas de ciência. Coletamos dados sobre o tratamento dado ao tema
de nossa pesquisa por um veículo de comunicação de massa – a revista Boa
Forma – que aborda a atividade corporal sob o prisma do lazer, direcio-
nando-se, especialmente, para o público feminino. Esse discurso apresenta
a atividade corporal e a saúde como mercadorias. Esta concepção torna-se
hegemônica porque, ao permanecer no plano do não-evidente, ela não
exclui as demais concepções, mas as incorpora à lógica do mercado. No
entanto, a acentuada mercadorização da saúde e da cultura corporal não
representa um fenômeno isolado, mas faz parte de um processo muito mais
amplo de mercadorização da cultura e dos direitos sociais.

o

Ações Pedagógicas em Pré-
escolas Públicas Estaduais,
em Bom Jesus, Piauí
ALCILENE MARIA BENVINDO FERREIRA
Orientador: prof. dr. Júlio Romero Ferreira
Defesa: 29/08/96
O trabalho procura mostrar as ações pedagógicas desenvolvidas nas pré-
escolas da rede pública estadual, na cidade de Bom Jesus, Piauí. O seu objetivo
é investigar tanto as atividades didático-pedagógicas quanto as ações que não
se configuram como atividades, para conhecer o que as professoras dizem e
fazem com as crianças, e melhor compreender o trabalho pedagógico desen-
volvido nessas pré-escolas. A pesquisa caracterizou-se por uma abordagem
qualitativa, especificamente um estudo de caso, para a qual foram utilizadas
gravações em cassete de cinco aulas observadas e entrevistas realizadas com as
professoras representantes de cada classe. Foram selecionadas três classes com
base em um levantamento realizado na fase preliminar deste estudo. A pes-
quisa apresenta dois momentos: o primeiro, realizado em março de 1995,

impulso 159 janeiro 99


Impulso.book Page 160 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

com o objetivo de contextualizar o município e caracterizar, de modo geral, a


educação. O segundo, desenvolvido em abril de 1996, visando efetivar a pes-
quisa empírica nas pré-escolas estaduais. A análise dos dados coletados com-
prova que o ambiente pré-escolar é pouco explorado enquanto elemento
aguçador dos interesses das crianças ou estimulador de suas curiosidades. Ele é
contraditório e de limitação de espaço físico, de horário de atendimento, de
recursos humanos e materiais. A finalidade fundamental expressa no cotidi-
ano das classes pré-escolares parece ser o processo de treinamento e adestra-
mento que garante a prontidão ou até mesmo a iniciação da criança no
processo de alfabetização, e formação de crianças ajustadas, servis, adaptadas
de forma passiva e obediente às regras do meio em que estão inseridas. As
docentes têm dificuldades na sua prática pedagógica. Ao mesmo tempo que
estão preocupadas em compensar as carências infantis, acreditam que é funda-
mental alfabetizar as crianças antes da primeira série. Na realidade, o discurso
é reflete-se em uma prática muito confusa, em que convivem diferentes conce-
pções de ensino e idéias sobre a educação pré-escolar.

A Formação do Educador

o
Vista a Partir do Curso de
Pedagogia da Universidade
Federal do Pará: Estudo de
um Caso
SONIA DE JESUS NUNES BERTOLO
Orientador: prof. dr. João dos Reis Silva Júnior
Defesa: 13/09/96
O presente estudo insere-se na temática formação do educador e aborda
as representações que professores e alunos fazem de um determinado curso de
formação de educador. Nessa discussão, priorizei o exame/a análise das obser-
vações, opiniões, angústias, explicações presentes nas falas de professores e de
alunos do curso de Pedagogia da UFPA (Universidade Federal do Pará), assim
como me detive na análise dos documentos oficiais da Instituição e na produ-
ção teórica sobre a formação do educador no âmbito do curso de Pedagogia.
Com esse intuito, o trabalho se organiza em quatro partes. Na primeira, dis-
cuto a formação do educador no âmbito do curso de Pedagogia. Para isso, fez-
se um esforço de compreender a proposta de formação do educador em nível
nacional. Faço, também, um levantamento histórico do curso de Pedagogia da
UFPA e finalizo recuperando a trajetória do movimento pela reformulação
dos cursos de formação do educador, procurando identificar na evolução dos
cursos de Pedagogia o despontar de várias concepções que orientam o debate
sobre o processo de formação dos profissionais da educação. Num segundo
momento, verifico como a formação do educador é vista e pensada pelos pro-
fessores do curso de Pedagogia da UFPA, com base na falas desses sujeitos. No
terceiro, trago para discussão as principais propostas de formação do educa-
dor, consubstanciadas nos documentos oficiais do Centro de Educação da
UFPA. Finalmente, concluo este trabalho buscando sintetizar a discussão sobre
a formação do educador no âmbito do curso de Pedagogia da UFPA. Dessa

impulso 160 janeiro 99


Impulso.book Page 161 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

forma, valendo-me do que pude apreender e sistematizar na presente pes-


quisa, no confronto da realidade e as intenções presentes nos documentos
examinados, emergem alguns traços da formação do educador processada no
curso de Pedagogia da UFPA. Esses traços indicam que a formação do educa-
dor nesse curso é debilitada em vários aspectos, como, por exemplo, a
estruturação curricular, que se apresenta dicotomizada, descontextualizada e
sem consistência teórica.

o

Menino de Rua ou de um
Beco sem Saída
CONSTANTINO RIBEIRO DE OLIVEIRA
JÚNIOR
Orientador: prof. dr. Francisco Cock Fontanella
Defesa: 14/11/96
O trabalho enfoca a problemática do menino de rua na sociedade capita-
lista. O problema abordado foi a incompatibilidade entre o discurso e a prática
de projetos assistenciais destinados a estas crianças. O discurso se refere à possi-
bilidade da inclusão social, pela qual a cidadania seria exercida. Ocorre que o
discurso não corresponde à prática efetiva. O projeto COCASPE (Centro Ocu-
pacional para Crianças e Adolescentes sob Proteção Especial), desenvolvido em
Ponta Grossa, Paraná, serviu-nos de referência. Tomando por base sua estru-
tura teórica, desenvolvemos alguns referenciais básicos. A primeira etapa refe-
riu-se à análise da sociedade capitalista ocidental, baseada na origem da
pobreza, bem como o início da luta pelo direito à vida, à liberdade e à proprie-
dade. Além disso, realizamos um texto identificando a origem do discurso da
aptidão natural como modelo ideológico, justificador de desigualdades sociais.
Outro marco teórico adotado foi a transição existente no modelo de acumula-
ção de capital. Ao mesmo tempo, procuramos identificar os fundamentos
filosóficos da doutrina liberal. Entendemos que estes deram subsídios para a
implementação das atividades do Estado. De forma direta, este fato contribuiu
e contribui para a formação de políticas sociais destinadas à população. As
características das políticas neoliberais e o entendimento do que seja um cida-
dão completam o suporte teórico. Concluímos que, ainda hoje, utiliza-se um
modelo assistencial, em políticas públicas destinadas aos meninos de rua, que
não corresponde às novas transições do meio de acumulação do capital. As
contradições estão nas seguintes perspectivas: pretende-se resgatar os meninos
de rua com a possibilidade de inseri-los no mercado, preparando-os para o tra-
balho; na prática, não se os prepara efetivamente para o trabalho, limitando-se
a assisti-los com relação a algumas necessidades básicas; pretende-se resgatar,
implicitamente, o trabalho como o meio efetivo de sobrevivência, mas esquece-
se de que a acumulação flexível adota posturas que deixam cada vez mais
escassa a oferta de trabalho. Neste novo meio em que se caracteriza o capita-
lismo, necessitamos de dois pontos básicos para o resgate do menino de rua:
rever no plano político-econômico novas relações entre Estado e mercado; e
que a humanidade resgate a vida como algo prioritário frente ao capital.

impulso 161 janeiro 99


Impulso.book Page 162 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

n

A Ginástica Rítmica
Desportiva nas
Universidades Públicas do
Paraná: um Estudo de Caso
ROSELI TEREZINHA SELICANI TEIXEIRA
Orientador: prof. dr. Francisco Cock Fontanella
Defesa: 14/11/96
Nosso intuito foi apontar a importância da G.R.D. (Ginástica Despor-
tiva Rítmica) para o desenvolvimento do indivíduo, bem como investigar sua
realidade e suas possibilidades na transmissão, aquisição e operacionalização
desse conhecimento junto a docentes que a ministram nos cursos de gradua-
ção em Educação Física, acadêmicos e egressos que atuam em escolas, então,
de 1o e 2o graus. Fizemos uma pesquisa de campo, numa abordagem qualita-
tiva, para a qual foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas, realizadas com
quatro professoras docentes de quatro universidades públicas do estado do
Paraná e oito professores egressos, que se formaram nestas instituições e
atuam nas escolas, então, de 1o e 2o graus, e questionário aplicado a 40 acadê-
micos que cursam a disciplina de G.R.D. nas mesmas instituições. Após coleta
e análise dos dados, com orientação de Triviños (1987) e Bardin (1994), con-
cluímos que, apesar dos conteúdos da G.R.D. serem importantes e, portanto,
contribuírem para o desenvolvimento do indivíduo na perspectiva da amostra
pesquisada, eles não são trabalhados nas escolas, então, de 1o e 2o graus, em
razão de um possível desconhecimento da disciplina pelos acadêmicos e pela
população em geral. Há ainda o fato de a G.R.D. ser ainda uma modalidade
esportiva em termos de competições oficiais somente para o sexo feminino,
dificultando a prática masculina desses conteúdos. Acrescente-se ainda o fato
de ela apresentar uma característica muito técnica no processo ensino-apren-
dizagem, em virtude da bibliografia que subsidia o processo de transmissão-
aquisição em termos de formação acadêmica. Este estudo não pretende ser

p
conclusivo, mas fomentador de novas pesquisas e encaminhamentos para a
G.R.D., enquanto disciplina ministrada na graduação, modalidade esportiva
de competição e conteúdo das aulas de Educação Física de, então, 1o e 2o
graus, centros esportivos, clubes e praças públicas.

Dança na Escola: uma
Proposta Pedagógica
ÉRICA BEATRIZ LEMES PIMENTEL VERDERI
Orientador: prof. dr. Hugo Assmann
Defesa: 27/11/96
Poderemos perceber ao longo deste estudo uma gama de fatores que nos
levarão a concordar com a importância de se estar utilizando a educação rít-
mica como um meio educacional. Estaremos utilizando a dança na escola
como um meio para o exercício da corporeidade dos alunos, provocando situ-
ações em que a criança possa utilizar seu corpo por inteiro e descobrir, por

impulso 162 janeiro 99


Impulso.book Page 163 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

meio de experimentações e vivências, as ações que dele possam emergir e,


assim, estar desenvolvendo e aprimorando os domínios do comportamento
humano: motor, cognitivo e sócio-afetivo. Ao chegarmos ao final desta expla-
nação, teremos diante de nós uma oportunidade de buscar novos paradigmas
e novas concepções para a aplicação da dança nas aulas de Educação Física.

o

O Corpo no Esporte
Escolar, Lazer e Alto Nível:
um Diálogo na Busca de
Significados
DOURIVALDO TEIXEIRA
Orientador: prof. dr. Wagner Wey Moreira
Defesa: 11/12/96
O presente estudo teve por objetivo investigar o entendimento de corpo
que permeia a prática de esportes nas dimensões de esporte escolar, esporte de
lazer e esporte de alto nível. No quadro teórico, partiu-se num primeiro
momento de uma análise histórica sobre o corpo na sociedade ocidental, reali-
zada em quatro momentos: antes do domínio cristão, quando observou-se o
corpo evoluindo no ecossistema, prevalecendo nele os valores de sobrevivên-
cia; em seguida, abordamos a visão de corpo sob o domínio do cristianismo,
percebendo que o corpo humano passou a conviver com a natureza, mas per-
manecia sob o jugo da ética e da religião; no terceiro momento, procuramos
visualizar as visões de corpo que se formaram a partir da ciência tradicional,
onde houve a racionalização do corpo humano e este passou a viver sob a
influência dos valores econômicos e políticos; para finalizar esta primeira
etapa do quadro teórico, buscou-se identificar o corpo na prática do esporte
moderno, momento de vivência entendido como possibilitador da percepção
corporal por excelência. Ainda no quadro teórico, procurou-se estabelecer,
pela apresentação de algumas teorias que tratam questões da motricidade no
esporte, um afunilamento em nosso enfoque, buscando subsídios para as aná-
lises subseqüentes. Abordou-se neste momento a complexidade do fenômeno
esportivo por meio de uma análise translógica dos termos brincadeira, jogo e
esporte; em seguida, apresentou-se as teorias de Le Boulch, Parlebas e Manuel
Sérgio, no sentido de fundamentar, com seus conhecimentos, a pesquisa de
campo, bem como a análise e a apresentação dos dados. A pesquisa de campo,
visando captar o entendimento de corpo na prática esportiva, foi realizada
valendo-se da aplicação de entrevista semi-estruturada a 18 praticantes de
ambos os sexos, sendo seis em cada uma das três dimensões de esporte previa-
mente estabelecidas, em relação a três subtemas: entendimento de corpo,
entendimento de esporte, e entendimento de corpo no esporte. No trata-
mento dos dados coletados, foi utilizado o método de análise de conteúdo, o
que proporcionou uma riqueza inesperada a este momento do estudo. Após a
descrição e uma síntese preliminar da fala de cada praticante, tornou-se possí-
vel a realização das inferências e da síntese ideográfica de cada dimensão de
esporte sobre cada um dos temas. Este foi um momento decisivo, que possibi-
litou passar para as considerações finais, em que se pôde vislumbrar que, no

impulso 163 janeiro 99


Impulso.book Page 164 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

entendimento do praticante de esporte, o ser humano é dual e o seu corpo é


visto de forma fragmentada, como um instrumento ou um objeto que deve ser
preservado, condicionado e aperfeiçoado para a produção do máximo rendi-
mento. Não passou desapercebido o quanto o corpo praticante é irreflexivo e
alienado. Este vê o esporte de forma simplista, como um bem total.

e

Impasses no Ensino de
História de 1º Grau –
Condições de Trabalho e
Representatividade
ELOISA BALAROTI
Orientador: prof. dr. Ademir Gebara
Defesa: 17/12/96
Este trabalho procura entender as dificuldades que emperram as mudan-
ças no ensino de História do, então, 1o grau, considerando que, nas décadas
de 80 e 90, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo divulgou, pela
CENP (Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas), duas propostas
para o ensino de História deste referido grau. Para tanto, o estudo inicia-se
discutindo e refletindo a análise de alguns autores sobre o processo de
mudança do ensino de História, especificamente na década de 80, momento
histórico para educação brasileira, de ampla participação e debate sobre as
reformas curriculares e as questões relacionadas às condições de trabalho e
ensino. A participação e representação dos professores na discussão e na ela-
boração dos projetos educacionais e a relação da universidade com os, então,
1o e 2o graus na produção e divulgação do conhecimento foram questões des-
tacadas nesta reflexão como desafios a serem superados para a implantação
das reformas curriculares. De igual modo, as perspectivas do ensino de Histó-
ria foram debatidas e contempladas, bem como outros limites foram conside-
rados e apresentados pela autora, com o objetivo de identificar o
distanciamento entre as propostas de ensino e a prática em sala de aula. Os
guias curriculares das décadas de 70, 80 e 90, emitidos pela Secretaria da Edu-
cação do Estado de São Paulo, que orientavam e orientam os professores na
preparação de seus programas de ensino de História, foram analisados quanto
aos objetivos e conteúdos, buscando identificar as concepções de História e
Educação que nortearam as suas elaborações e a pertinência dessas propostas
de ensino de História à realidade do ensino público do estado de São Paulo.
Para isso, foram entrevistados professores de História da Rede Pública de
Ensino da cidade de Piracicaba. Com base nos seus depoimentos sobre o seu
cotidiano em sala de aula e a sua avaliação sobre o ensino de História, buscou-
se compreender os limites e as possibilidades de efetivação das mudanças no
ensino sugeridas pelas propostas curriculares a partir da década de 80. A con-
clusão deste trabalho apenas confirma e ressalta questões que foram citadas
pelos professores entrevistados, destacando-se a necessidade da participação
dos professores nos processos de mudanças e a garantia de condições de traba-
lho e ensino adequadas a essas propostas.

impulso 164 janeiro 99


Impulso.book Page 165 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

c

Prestação de Serviço
Público Municipal:
Esporte e Lazer -
Tentativa de Mudança
FERNANDO RENATO CAVICHIOLLI
Orientador: prof. dr. Ademir Gebara
Defesa: 18/12/96
Com o objetivo de discutir a relação do poder público municipal com a
prestação do serviço de esporte e lazer, o estudo analisa o resultado de uma
pesquisa empírica, realizada no município de Leme, São Paulo. Tomando-se
por base a análise do cotidiano, pode-se observar a tentativa de reorganização
e mudanças propostas pelo primeiro governo eleito na década de 90, que pos-
suía uma grande virtude: a de ter rompido com a bipolarização política das
famílias tradicionais que se alternavam no poder local. Ocorre uma tentativa
de ruptura frente a antigas forças políticas, cria-se um clima político para se
romper, mas, devido à série de ajustes realizados, o setor de esporte e lazer não
avança em direção às mudanças anunciadas. Com o foco nesse processo com-
plexo, a pesquisa enfatizou as ações dos agentes nela envolvidos, descrevendo
sua relação com a prática cotidiana na prestação do serviço público. Também
foi dada atenção aos espaços físicos e sua ocupação pela população. A
contextualização da pesquisa empírica foi precedida pela caracterização do
município nos seus aspectos histórico, social, econômico, cultural, da legisla-
ção federal, estadual e municipal que a ele se reporta, assim como da reflexão
sobre a origem da prestação de serviços nos centros urbanos. A análise efetu-
ada revelou que as tentativas de mudanças são um processo muito longo,
complexo e multifacetado. Alterações na reorganização da prestação de servi-
ços requerem uma investigação aprofundada do processo de delegação, como
também estar atento às especificidades do local a ser transformado. São for-
muladas algumas sugestões, as quais, acreditamos, poderão contribuir para

a
que os serviços públicos do esporte e lazer tornem-se mais eficientes.

Produção do Discurso
Historiográfico da
Educação Física Brasileira
na Década de 80
VERTER PAES CAVALCANTI
Orientador: prof. dr. Ademir Gebara
Defesa: 19/12/96
Até meados da década de 80, a produção historiográfica da Educação
Física brasileira identificava-se com a visão de história tradicional, baseada na
concepção positivista. O momento político que se desenvolveu entre 1964
(período do implantação da ditadura militar) e o final dos anos 80 (fase da
reabertura política) marcou de modo geral a produção acadêmica, como reve-
lou uma inquietação no seio da sociedade, face à supressão dos direitos de

impulso 165 janeiro 99


Impulso.book Page 166 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

cidadania. Tal fato despertou anseio de mobilização e luta por uma maior par-
ticipação política. No bojo desse contexto, que envolveu a reorganização da
sociedade civil, as discussões acadêmicas iriam proporcionar reflexões na Edu-
cação Física e a incorporação de idéias e teorias que circulavam em outras
áreas. Com isso, a Educação Física brasileira pôde vivenciar um momento de
questionamento face ao paradigma científico que vinha norteando os discur-
sos produzidos nessa área – entre esses, o historiográfico. Nesse contexto é
que se materializa o discurso do historiador da Educação Física brasileira na
década de 80, revelando a incorporação de visões de mundo que se destaca-
ram pela crítica à ideologia política numa tentativa de ruptura com o modelo
historiográfico produzido até aquele momento. Mesmo revelando um certo
avanço no distanciamento da visão tradicional de história, deficiências teóricas
e metodológicas contidas na produção do conhecimento da Educação Física
impediram um desenvolvimento de caráter epistemológico, não experimen-
tando, portanto, a construção de uma história própria.

o

Educação e Corporeidade:
o Vivido e Pensado na
ESEF-PA
PEDRO PAULO MANESCHY
Orientador: prof. dr. Wagner Wey Moreira
Defesa: 19/12/96
O presente trabalho faz uma reflexão acerca de experiências vividas no
processo de formação profissional efetivado pela ESEF-PA (Escola Superior de
Educação Física do Pará). Sua intencionalidade é a de poder discutir, com base
no cotidiano escolar, questões de educação e corporeidade, bem como suas
relações e seus nexos com temas da história, linguagens e paradigmas. A pers-
pectiva histórica é percorrer os caminhos trilhados pela ESEF-PA, buscando,
numa relação presente/passado, montar o palco no qual emergem as grandes
questões debatidas no processo de formação profissional da Instituição. Sobre
a questão educacional, o trabalho visa construir um mosaico que possibilite
aproximar dialeticamente os diversos elementos de reprodução e produção
do processo educativo, tendo como elemento colante o paradigma da com-
plexidade e a concepção fenomenológica da educação. Na temática dos para-
digmas, vislumbra-se uma exposição das principais idéias que dão sustentação
às concepções metafísicas e racionalistas do real, suas relações com a Educação
Física e o processo de formação da ESEF-PA, bem como as possibilidades de
superação pela via da complexidade e dos caminhos da educação motora.
Como reflexões finais e provisórias, vislumbra-se uma arte de formação do
professor de Educação Física que garanta uma interpenetração, como bricola-
gem, das dimensões profissional, política e epistemológica, e que, dessa forma,
possibilite uma atuação profissional crítica e criativa no contexto da região
amazônica.

impulso 166 janeiro 99


Impulso.book Page 167 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

Normas para
Apresentação de Artigos
REVISTA IMPULSO
PRINCÍPIOS GERAIS
1 A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão, nas áreas de ciências sociais e hu-
manas, dedicando parte do espaço de cada edição a um tema principal.
2 Os temas podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de artigo:
• ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre de-
terminado tema;
• COMUNICAÇÃO (10 a 18) − relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento;
• REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da bi-
bliografia disponível;
• COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;
• RESENHA (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou teses.
3 Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.
4 Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes CRITÉRIOS, sendo o au-
tor informado do andamento do processo de seleção:
• adequação ao escopo da revista;
• qualidade científica, atestada pela Comissão Editorial e por consultores especialmente con-
vidados, cujos nomes não serão divulgados;
• cumprimento das presentes Normas para Apresentação de Artigos.
5 Uma vez aprovado o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.
6 Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções gra-
maticais, adequações estilísticas e editoriais).
7 Não há remuneração pelos trabalhos. Cada autor recebe gratuitamente cinco exemplares da
edição. Acima disto, pode comprá-los com um desconto de 30% sobre o preço de capa. Para
a publicação de eventuais separatas, o autor deve entrar em contato com a Editora.
8 Os artigos devem ser encaminhados ao editor, acompanhados de ofício, do qual constem:
• cessão dos direitos autorais para publicação na revista;
• concordância com as presentes normatizações;
• informações sobre o autor: titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua, ende-
reço para correspondência, telefone e e-mail.

impulso 167 janeiro 99


Impulso.book Page 168 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

ESTRUTURA
9 Cada artigo deve conter os seguintes elementos, em folhas separadas:
a) Identificação
• TÍTULO (e subtítulo, se for o caso): conciso e indicando claramente o conteúdo do texto;
• nome do AUTOR, titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;
• SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento recebidos;
• AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.
b) Resumo e palavras-chave
• Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (deno-
minado ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um;
• para fins de indexação, o autor deve indicar os termos-chave (mínimo de três e máximo
de seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).
c) Texto
• O texto deve ter uma INTRODUÇÃO, um DESENVOLVIMENTO e uma CONCLUSÃO. Cabe
ao autor criar os entretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiús-
culas, não são numerados;
• no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do
livro comentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local,
editora; ano; total de páginas; título original, se houver). No caso de TESES, segue-se o
mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre a instituição na
qual foi produzida.
d) Anexos
• Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).
e) Documentação
A documentação de um artigo é dada pelas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (veja suas especifica-
ções abaixo). Já as NOTAS EXPLICATIVAS,1 quando houver, serão dispostas no rodapé, remetidas por
números sobrescritos no corpo do texto.

As CITAÇÕES devem obedecer à seguinte apresentação:

I) A identificação das citações (Sobrenome do autor, ano) deverão aparecer logo após as re-
ferentes citações, no próprio corpo do texto, não em nota de rodapé. Ex.:
Identificou-se em vários estudos a sustentação destes conceitos (Faraco & Moura, 1997, e
Gil, 1991), comprovando-se a constatação de Castro (1989).

1 Esta numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o
empregado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores deve ser grafado em maiúscula, seguido do ano da publi-
cação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989.

impulso 168 janeiro 99


Impulso.book Page 169 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

II) Toda vez que a citação for literal, ou específica a um trecho da obra, e tiver menos que
quatro linhas, ela deve aparecer entre aspas, e não em itálico. Ex.:
Fica claro, portanto, que “esta relação muda só ganha expressão através da linguagem, fun-
damental, portanto, no pensamento pontyano”, conforme afirma Faria (1996, p. 64).
Se a citação for igual ou maior que quatro linhas, deve ter recuo de quatro centímetros das
margens do texto e receber itálico (sem aspas), sendo destacada em parágrafo próprio. Ao fi-
nal dele, um número sobrescrito remeterá à nota explicativa indicando o SOBRENOME do
autor, ano de publicação e a página em que se encontra a citação.
Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de
publicação, etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao final de cada artigo, seguin-
do o padrão abaixo.
A lista de fontes (livros, artigos, etc.) que compõe as REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS deve apa-
recer no final do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, seguin-
do-se o padrão apresentado abaixo.
LIVROS
SOBRENOME, N.A. (nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; nomes de
até dois autores, separar por “&”, quando houver mais de dois, registrar o primeiro de-
les seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo. Cidade: Editora, ano completo, vo-
lume (ex.: v. 2). [Não deve constar o número total de páginas]. Ex.:

FARACO, C.E. & MOURA, F.M. Língua Portuguesa e Literatura. São Paulo: Ática, 1997, v. 3.

FARIA, J. A Tragédia da Consciência: ética, psicologia, identidade humana. Piracicaba: Edi-


tora UNIMEP, 1996.

GARCIA, E.E.C. et al. Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/


ITAL, 1984.

GIL, A.C. Técnicas de Pesquisa em Economia. São Paulo: Atlas, 1991.

• MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM MESMO AUTOR: após a primeira citação completa, in-
troduzir a nova obra da seguinte forma:
• ______. Magic Paula. Piracicaba: Editora UNIMEP, 1995.
• OBRAS SEM AUTOR DEFINIDO:
• Manual Geral de Redação. Folha de São Paulo, 2° ed. São Paulo, 1987.

PERIÓDICOS
NOME DO PERIÓDICO. Cidade. Órgão publicador. Entidade
de apoio (se houver). Data. Ex.:
REFLEXÃO. Campinas. Instituto de Filosofia e Teologia. PUC. 1975.
• ARTIGOS DE REVISTA:

impulso 169 janeiro 99


Impulso.book Page 170 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

SOBRENOME, N.A. Título do artigo. Título da revista, Cidade, volume (número/fas-


cículo): páginas incursivas, ano. Ex.:
FERRAZ, Tércio S. Curva de demanda, tautologia e lógica da ciência. Ciências Eco-
nômicas e Sociais, Osasco, 6 (1): 97-105, 1971.
• ARTIGOS DE JORNAL:
SOBRENOME, N.A. Título do artigo, Título do jornal, Cidade, data, seção, páginas,
coluna. Ex.:
PINTO, J.N. Programa explora tema raro na TV, O Estado de São Paulo, 08/02/1975,
p. 7, c. 2.

APRESENTAÇÃO
10 Os artigos devem ser escritos em português, podendo, contudo, a critério da Comissão Edi-
torial, ser aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.
11 Os artigos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço dois, em papel branco,
não transparente e de um lado só da folha, com 30 linhas de 70 toques cada lauda (2.100 to-
ques). As laudas devem ter ao alto e à direita uma ‘retranca’ (isto é: a palavra-chave do título
abreviado), seguida do número da página. Cada trabalho deve ser entregue em duas vias (uma
para a redação e a outra para a Comissão Editorial), acompanhadas de uma cópia em disquete.
12 As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão do
texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo
a garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras mi-
núsculas. As tabelas devem ser editadas na versão Word.6 ou .7, lembrando-se que sua forma-
tação necessariamente precisa estar de acordo com as dimensões da revista. Devem vir inseridas
nos pontos exatos de suas apresentações ao longo do texto.
As TABELAS não devem ser muito grandes e nem ter fios verticais para se separar colunas.
As FOTOGRAFIAS devem ser em preto e branco, sobre papel brilhante, oferecendo um bom con-
traste e um foco bem nítido.
No caso de GRÁFICOS e DESENHOS, além de sua inclusão nos locais exatos do texto (tanto na
cópia impressa quanto no disquete em linguagem Word), eles precisam ser enviados necessa-
riamente em seus arquivos originais (p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush, etc.)
em separado.
As fotografias devem oferecer bom contraste e foco nítido.
As figuras, gráficos e mapas, caso sejam enviados para digitalização, devem ser preparados em
tinta nanquim preta. As convenções precisam aparecer em sua área interna.
13 ETAPAS de encaminhamento dos artigos:
• Etapa 1 – Apresentação de três cópias para submissão à Comissão Editorial da Revista e aos
consultores. Os pareceres, sigilosos, são encaminhados aos autores para as eventuais mu-
danças;

impulso 170 janeiro 99


Impulso.book Page 171 Thursday, October 2, 2003 9:25 AM

• Etapa 2 – Apresentação de uma via em papel e outra em disquete, com arquivo gravado
no formato Word. No caso da cópia em papel, o texto deve estar editorado. Devem acom-
panhar eventuais gráficos e desenhos suas respectivas cópias eletrônicas em linguagem ori-
ginal. Após a editoração final, o autor recebe uma prova para análise e autorização de im-
pressão.
14 O(s) autor(es) pode(m) retirar na própria Editora UNIMEP ou de sua home page (www.uni-
mep.br/~editora) um template (modelo) da formatação adotada na REVISTA IMPULSO, acima
descrita, e aplicá-lo diretamente ao seu texto.

impulso 171 janeiro 99

You might also like