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“Os primeiros batistas: redescobrindo a nossa herança inglesa, de Michael Haykin, é um relato

inovador dos primeiros anos do que se tornou o movimento batista particular inglês. Este texto
clássico, um recurso fundamental, continua a fornecer a mais ampla e detalhada discussão sobre
o surgimento da comunidade religiosa que muito contribuiria para moldar as práticas litúrgicas e
eclesiológicas do evangelicalismo global.”
— Crawford Gribben,
Professor de História Britânica Moderna,
Queen’s University Belfast, Reino Unido
“Esta edição do que hoje é uma abordagem clássica dos batistas do século XVII é uma
publicação muito bem-vinda. Michael Haykin aborda esses tópicos não apenas como um
acadêmico reconhecido, mas também como um cristão preocupado com o discipulado de seus
leitores. Ele lida com as pessoas mais influentes, as questões mais relevantes e a confissão mais
importante de fé, mostrando como, até os dias de hoje, tudo isso tem impacto duradouro sobre os
batistas. Esta é uma edição bem-vinda, e eu a recomendo a todos que se interessam por entender
um segmento importante e bastante influente do evangelicalismo moderno.”
— Tom J. Nettles,
Professor Sênior de Teologia Histórica,
Seminário Teológico Batista do Sul
“Os últimos anos testemunharam um autêntico renascimento das publicações sobre os batistas
particulares ingleses do século XVII, devido, em grande parte, à influência de Michael Haykin.
Há muito tempo considero a primeira edição deste livro uma introdução clássica a essa
importante etapa da vida batista. Estou muito satisfeito em ver este volume impresso e disponível
a um novo público. A inclusão de novos materiais sobre o menos conhecido John Norcott e seu
trabalho em relação ao batismo do crente, resumindo a visão coletiva dessa comunidade, torna
este volume imperdível a qualquer estudioso.”
— Steve Weaver,
Professor Adjunto de História da Igreja,
Seminário Teológico Batista do Sul
“Numa época em que algumas questões sobre a identidade batista e suas características dominam
a conversação entre os batistas no Canadá, o trabalho do Dr. Haykin serve como uma
colaboração oportuna. Esta breve incursão na história batista mais antiga é acessível e
esclarecedora, servindo para calibrar nosso pensamento em relação às questões do século XXI,
acerca da identidade e da crença batista. Recomendo esta obra a todos os pastores batistas ou
líderes envolvidos que influenciam o curso da Igreja Batista.”
— Marc Bertrand,
Pastor,
Igreja Batista Walsh, Ontário
“O surgimento dos batistas na Inglaterra do século XVII representou um desenvolvimento
seminal na história da igreja protestante. Este livro é um excelente manual sobre os líderes dos
batistas calvinistas, seus pontos controvertidos e seus princípios e elementos norteadores.”
— John Coffey,
Professor de História da Idade Moderna,
Universidade de Leicester, Reino Unido
“Há alguns anos, chegou às minhas mãos, ainda na língua de Shakespeare, uma obra que lançaria
luz suficiente para que minha compreensão sobre a tradição da qual faço parte fosse histórica e
teologicamente ampliada. Escrita por um dos maiores historiadores batistas contemporâneos, Os
primeiros batistas: redescobrindo a nossa herança inglesa demonstra que as origens do
movimento estavam ligadas à tradição puritana, incluindo-o entre aqueles que defendiam aquela
cadeia de verdades cristãs conhecidas como doutrinas da graça, o antigo evangelho proclamado
por Jesus e seus apóstolos. Diante do cenário ao qual somos atualmente expostos, cenário que
exige urgente lucidez, esta obra é necessária à tarefa de reajustar os rumos do movimento em um
período de grande hostilidade à fé. Por essa razão, recomendo-a de todo o coração, na
expectativa de que o Senhor da Igreja seja, por meio dela, glorificado.”
— Paulo Valle,
Pastor da Igreja Batista do Redentor, Volta Redonda, RJ,
e professor do Seminário Martin Bucer
“Escrito com rigor histórico e entusiasmo pastoral, esta edição de Os primeiros batistas:
redescobrindo a nossa herança inglesa, de Michael Haykin, fornece uma introdução notável a
um ramo do puritanismo inglês que, com frequência, tem sido negligenciado. Perspicaz e
acessível, este livro merece um grande público entre aqueles que buscam entender melhor as
origens e a visão teológica distinta dos batistas ingleses do século XVII.”
— Matthew C. Bingham,
Professor de Teologia Sistemática e História da Igreja,
Oak Hill College, Londres
SUMÁRIO
Prefácio à primeira edição, por Robert W. Oliver 13
Prefácio à segunda edição, por Robert W. Oliver 15
Prefácio à edição em português 19
Introdução 23
Nota à segunda edição [do original estrangeiro] 29
1. A questão das origens batistas 33
2. Os batistas calvinistas 53
3. A Primeira Confissão de Fé de Londres 67
4. William Kiffen (1616–1701),
“um amante da paz e da verdade” 83
5. Hanserd Knollys (1599–1691),
“aquele velho discípulo de Jesus Cristo” 107
6. John Norcott (?–1676) e o modo de batismo:
“a imersão é indicação de Deus” 121
7. A Segunda Confissão de Fé de Londres: seu propósito 139
8. A Segunda Confissão de Fé de Londres: sua teologia 155
9. Benjamin Keach (1640–1704), o teólogo batista 175
Conclusão 201
Apêndice: Thomas Wilcox (1622–1687) 209
Sumário
Prefácio à primeira edição
Prefácio à segunda edição
HENRY JESSEY (1603–1663)
Prefácio à edição em português
Introdução
Nota à segunda edição do original

1 - A questão das origens batistas


2 - Os batistas calvinistas
3 - A Primeira Confissão de Fé de Londres
4 - William Kiffen (1616–1701)
5 - Hanserd Knollys (1599–1691)
6 - John Norcott (?–1676) e o modo de batismo
7 - A Segunda Confissão de Fé de Londres: seu propósito
8 - A Segunda Confissão de Fé de Londres: sua teologia
9 - Benjamin Keach (1640–1704)

Conclusão
Apêndice | Thomas Wilcox (1622–1687)
Sobre o autor
Prefácio à primeira edição
ROBERT W. OLIVER
este cuidadoso trabalho, o Professor Michael Haykin nos apresenta a alguns dos notáveis
N líderes batistas calvinistas ou batistas particulares do século XVII. Eles foram pioneiros
cuja obra consistiu em aplicar a retomada do evangelho dos reformadores ao contexto da
igreja batista. Eles não só marcaram a posição de liderança dos batistas particulares de Londres,
como também exerceram influência significativa em toda a Inglaterra. Porém, de forma
lamentável, esses líderes são praticamente desconhecidos por muitos que agora se deleitam nas
verdades que eles proclamaram. Portanto, este é um livro que necessitava ser escrito.
Os ensinamentos de William Kiffen, Hanserd Knollys e Benjamin Keach repercutem na
Confissão de Fé Batista de 1689. O professor Haykin resume a doutrina e a importância dessa
Confissão, e também discute sua relação com a Confissão anterior, a Confissão de Fé Batista de
1644. Aqui, podemos ver como esses pioneiros lutaram contra grandes adversidades para
estabelecer a ordem da igreja batista e manter a exposição bíblica do evangelho. Eles não tinham
vergonha alguma de se declarar calvinistas, situando-se, assim, na grande Tradição Reformada,
mas eles não eram hipercalvinistas. Na verdade, eles alertaram contra essa tendência, que
resultaria em minar a pregação evangélica, provando-se como uma via de passagem para atrair
tantos para o Castelo dos Incrédulos. Eles também tiveram de assumir uma posição contra os
seekers e os quakers e, ao agirem dessa forma, foram capazes de prover seus sucessores do
século XX de advertências significativas contra os encantos desse movimento carismático.
Durante a segunda metade do século XX, houve uma importante recuperação do ensino da
Reforma entre os batistas do mundo inteiro. No âmbito dessa recuperação, mostra-se relevante a
republicação, em 1959, da Confissão de Fé Batista de 1689. Depois de um século de negligência,
essa Confissão tornou-se o centro de novos interesses e, agora, está impressa em mais línguas do
que em qualquer outro momento de sua história. Para os membros dessas igrejas, este livro tem
importância fundamental. Outros batistas que não subscreveram uma Confissão Reformada
podem descobrir que sua dívida com esses homens do século XVII é maior do que jamais
imaginaram ser possível.
Robert W. Oliver
Bradford-on-Avon
Novembro de 1995
Prefácio à segunda edição
ROBERT W. OLIVER
s batistas reformados precisam estar atentos às suas raízes e, especialmente, à sua

O conexão com a Reforma. Por essa razão, estou muito feliz com o fato de uma segunda
edição deste livro extremamente útil estar sendo publicada. O Professor Haykin
desempenha papel pioneiro nos estudos da história batista particular e estimulou muitas
outras pessoas a fazer o mesmo. Hoje, contamos com um corpus cada vez maior de obras
históricas e teológicas emergentes, mas esta obra fornece uma importante introdução à leitura e à
compreensão de todas as outras obras.
É muito bom que o trabalho de John Norcott tenha sido incluído nesta edição revisada, pois
sua relevância nem sempre é valorizada. Seu pequeno livro de grande utilidade, Baptism
[Baptism: Discovered Plainly & Faithfully, according to the Word of God], foi recentemente
republicado no Reino Unido pela Gospel Standard Publications.
A presente obra revisada de Michael Haykin é um excelente ponto de partida para iniciarmos a
exploração de nossa herança; este livro desafia e inspira. Os pastores devem incentivar seu
estudo em suas respectivas congregações, e os pais podem usá-lo com grande proveito em suas
famílias.
Robert W. Oliver
Bradford-on-Avon
Outubro de 2019
HENRY JESSEY (1603–1663)
Prefácio à edição
em português
ODr. Michael Haykin é um exímio professor de História da Igreja, um homem de notório saber
que tem servido à sua geração com um impressionante trabalho historiográfico, com ênfase no
resgate de memórias, histórias e tradições. Ele é reconhecido como um dos historiadores mais
qualificados da atualidade, servindo como docente em seminários e universidades nos Estados
Unidos, Canadá e Reino Unido. Ao longo das últimas décadas, tem-se dedicado a estudar a
história dos batistas de ambos os lados do Atlântico. Escreveu dezenas de livros e artigos que
revelam sua competência e seu compromisso com a verdade. Os primeiros batistas:
redescobrindo a nossa herança inglesa é uma excelente introdução às origens dos batistas. Este
livro apresenta um rico e fascinante panorama sobre os batistas. O pequeno grão de mostarda
floresceu no solo inglês e se tornou uma árvore frondosa, cujos galhos se estendem sobre o
mundo.
Os batistas chegaram ao Brasil na segunda metade do século XIX. Thomas Jefferson Bowen,
missionário enviado em 1860 pela Junta de Richmond da Convenção Batista do Sul (atualmente
International Mission Board), foi o primeiro batista a servir no Brasil. Depois vieram colonos
americanos que se estabeleceram no interior de São Paulo, pastoreados pelo Rev. Richard
Ratcliff. A missão batista no Brasil ganhou um novo capítulo com a chegada dos missionários
William e Anne Bagby (1881), além de Zachary e Kate Taylor (1882). Somos uma denominação
histórica que caminha para o sesquicentenário. No entanto, por algumas razões, infelizmente, boa
parte dos batistas brasileiros não conhece suas origens. Uma visão superficial e, por vezes,
empobrecida tem prevalecido no cenário batista brasileiro. A leitura de bons livros é parte do
processo de resgate da memória e das tradições batistas. Redescobrir essa preciosíssima herança
é uma bênção que virá acompanhada de muitos benefícios.
A perspectiva sucessionista sobre a história dos batistas não se apoia em fatos históricos, pois,
a rigor, faltam evidências documentais. Não obstante, é muito popular. A tese de “afinidade
anabatista” deve ser confrontada com os fatos, a fim de provar se existe mesmo uma influência
direta no processo de formação dos batistas. O Dr. Haykin defende que os batistas têm suas
raízes nos movimentos puritano e separatista ingleses do final do século XVI a meados do século
XVII. O contexto histórico no qual os batistas surgem é apresentado com o propósito de oferecer
ao leitor o cenário e os principais personagens da história dos batistas. William Kiffen, Hanserd
Knollys, John Norcott e Benjamin Keach recebem um destaque especial por sua importância e
grande contribuição para o movimento batista inglês.
No decurso dos séculos, notáveis servos de Deus têm-se identificado com a fé reformada.
Teólogos, pregadores, missionários, acadêmicos e muitos outros cristãos, em variadas esferas de
atuação e de diversas matrizes denominacionais, identificam-se como reformados. Entre os
batistas, de igual modo, existe uma plêiade de homens que abraçaram o calvinismo como sistema
teológico e serviram ao Senhor no contexto das igrejas batistas. Desde o início da história dos
batistas na Inglaterra, existem os batistas gerais (arminianos) e os batistas particulares
(calvinistas).
Na Inglaterra e depois nos EUA, foi sob a égide dos batistas calvinistas que a denominação
cresceu. As primeiras sociedades batistas missionárias foram organizadas pelos batistas
calvinistas, que levaram o evangelho aos confins da terra. De acordo com o Dr. Timothy George,
“apesar de uma tendência arminiana persistente dentro da vida batista, durante grande parte de
nossa história, a maioria dos batistas aderiu fielmente às doutrinas da graça conforme
estabelecidas na teologia reformada paulino-agostiniana”.1 A herança reformada dos batistas é
uma realidade.
No entanto, infelizmente, alguns batistas brasileiros parecem sugerir que o calvinismo é uma
heresia que deve ser rejeitada e combatida. Há um discurso popular de que ser batista e ser
calvinista são posições autoexcludentes. Um batista pode ser arminiano, de acordo com sua
consciência. No entanto, não é correto negar aos batistas calvinistas a legitimidade de sua fé. A
constatação de os batistas calvinistas serem minoria no Brasil não muda os fatos. Boa parte dos
primeiros batistas e, depois deles, uma plêiade de outros na história eram calvinistas. Embora
houvesse, em ambos os lados, uma crítica à doutrina em si, não existia suspeição quanto à
identidade batista por seu posicionamento teológico, fosse ele arminiano ou calvinista. O livro do
Dr. Haykin é uma boa introdução aos fatos relacionados à nossa herança e será útil para trazer à
luz a verdade e promover liberdade aos batistas que se identificam com o calvinismo.
A Pro Nobis Editora nasceu com o propósito de oferecer livros para a edificação da igreja. O
resgate da herança histórica confessional e o esforço para a publicação de obras clássicas são
norteados pela verdade de que, nas palavras do teólogo medieval Pedro de Blois, “somos todos
anões sobre os ombros de gigantes; graça a eles, podemos ver além deles. Ocupando-nos com os
tratados escritos pelos antigos, apoderamo-nos de seus pensamentos seletos, sepultados pelo
tempo e pela negligência humana, e os soerguemos, por assim dizer, da morte para uma nova
vida”.2
Que a leitura desta obra seja útil para promover um melhor entendimento sobre as raízes do
povo batista e sua preciosa herança espiritual!
Soli Deo gloria
Judiclay Santos
Fundador e diretor da Pro Nobis Editora
Igreja Batista do Jardim Botânico
1 GEORGE, Timothy. Theologians of the Baptist Tradition. Nashville: H&B Publishers, 2001, p. 7.
2 Pedro de Blois apud GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 23.
Introdução
Aherança batista calvinista do século XVII é um tesouro gravemente negligenciado. Dos vários
líderes batistas daquela época, apenas um é bem conhecido na atualidade: John Bunyan, o
“sonhador imortal”. No entanto, de uma forma bastante curiosa, ele foi um agente relativamente
menor no avanço da causa batista ao longo do século XVII. Por outro lado, homens como
William Kiffen, Hanserd Knollys e Benjamin Keach, que se revelaram cruciais para pôr a causa
batista calvinista no mapa, hoje são relativamente desconhecidos. Como este livro sustenta, esses
três homens têm muito a ensinar aos batistas contemporâneos. Foi Kiffen, por exemplo, ao lado
de uma boa quantidade de outros líderes batistas, quem elaborou a Primeira Confissão de Fé de
Londres, documento fundacional para a instrução dos batistas e a construção de igrejas durante
os tumultuados anos de 1640 e 1650. De fato, a concepção de igreja que está estabelecida nessa
Confissão é aquela que ainda se mostra atraente (embora, desde então, já se tenha passado um
bom tempo), repousando no cerne do vibrante testemunho batista de hoje. Outra área na qual
esses batistas podem ajudar seus descendentes de hoje diz respeito aos desafios propostos pelos
movimentos carismáticos contemporâneos. Os batistas do século XVII também tiveram de lutar
contra esses grupos. No caso deles, foram aqueles conhecidos pela história como seekers e
quakers [ou quacres]. A forma como um líder batista da estatura de Knollys contestava as visões
dos seekers representa um incentivo aos batistas modernos, os quais se veem instados a dar uma
resposta às atuais reivindicações e experiências carismáticas.
Além disso, a história batista do século XVII também é um tesouro que deve ser valorizado
por todo o povo de Deus. Keach, por exemplo, foi quem inaugurou o canto de hino no
cristianismo anglófono. Como compositor de hinos, Keach deixou muito a desejar, mas, como
um apologista da prática de cantar hinos, ele foi brilhante, e, obviamente, o impacto de seus
argumentos é sentido ainda em nossos dias.
Deleitar-se na herança espiritual de alguém, registre-se, não significa ser sectário. Fui criado
como católico romano nos dias anteriores ao Vaticano II. E um dos ditames do pré-Vaticano II
era que, “fora da igreja [ou seja, da Igreja Católica Romana], não há salvação”. Ainda me lembro
de minha perplexidade quando fui informado por um batista de terceira geração, pouco tempo
depois de me haver tornado cristão, em 1974, que a população humana do céu seria composta tão
somente por aqueles que nesta vida haviam sido batistas! Igualmente, fiquei estarrecido com a
mente estreita dessa versão batista da exclusividade católica de Roma. Após aprofundar minhas
reflexões, vi que o espírito por trás de uma afirmação desse tipo carece por completo do aroma
de humildade de nosso Senhor Jesus, que encorajou seus discípulos a encontrar sua alegria não
no fato de pertencerem ou não a determinada estrutura denominacional, mas simplesmente no
fato de que o “nome está arrolado nos céus” [Lc 10.20]. A igreja de Deus, alegro-me em admitir,
é muito mais ampla do que aqueles que atendem pelo nome de “batistas”.
Por outro lado, como, nos últimos trinta e poucos anos, passei um tempo considerável
estudando a história batista, especialmente a história dos batistas calvinistas, constatei que essa
herança precisa ser, em primeiro lugar, redescoberta e, em seguida, valorizada. Sim, a família
cristã é mais ampla que a comunidade batista, mas isso não significa que a tradição batista se
abstenha de estudo e reflexão. Estou convencido de que as convicções batistas históricas são
totalmente bíblicas, e que a herança batista tem muito a ensinar tanto àqueles que são batistas
como àqueles que se encontram em outras tradições cristãs. Algumas palavras do grande batista
do século XIX, C. H. Spurgeon (1834–1892), bem resumem minhas convicções a esse respeito.
No centésimo aniversário de nascimento de William Carey (1761–1834), o pregador vitoriano
diria acerca de Carey: “Admiro Carey (...) por ser batista: ele não tinha nenhuma das falsas
compaixões capazes de levar alguns a esconder sua crença, com receio de ofender outras
pessoas; mas, ao mesmo tempo, ele era um homem que amava todos que amavam o Senhor Jesus
Cristo”.3 É no espírito dessas palavras de Spurgeon que os estudos que se seguem são oferecidos.
Deve-se notar que este livro não busca prover uma história exaustiva e sequencial dos batistas
no século XVII. Em vez disso, depois de tocar na questão das origens batistas, os capítulos
subsequentes concentram-se em quatro líderes-chave e em dois documentos cruciais do primeiro
século do movimento batista calvinista. Desse modo, às vezes há sobreposição entre os vários
capítulos. Os estudos buscam despertar o interesse por esse período vital e estruturante da
história batista calvinista, com vistas a promover a redescoberta e a apropriação dos aspectos
duradouros da herança dessa época.
Por seu auxílio na preparação do conteúdo dos capítulos 3, 7 e 8, estou em dívida com o Dr.
Robert W. Oliver, por me haver disponibilizado uma cópia de seu então artigo inédito “Baptist
Confession Making 1644 e 1689”, que ele apresentou à Strict Baptist Historical Society em
março de 1989. Também gostaria de agradecer a Robert por haver redigido o “Prefácio” deste
livro. Aprecio profundamente seu apoio e sua amizade ao longo de todos esses anos. O material
constante nos capítulos 3, 7 e 8 já foi publicado em Reformation Canada, 13, n. 4 (1990); 14, n.
1 (1991); e 14, n. 2 (1991). Sou muitíssimo grato ao editor desse periódico, o Reverendo William
Payne, por me permitir incluí-lo aqui. O Reverendo Payne morreu em 1997, e sua falta é muito
sentida entre nós. Boa parte do capítulo 5 foi publicada pela primeira vez em um artigo intitulado
“Hanserd Knollys (ca. 1599–1691) on the Gifts of the Spirit”, veiculado no The Westminster
Theological Journal, 54 (1992). Gostaria de agradecer ao Dr. Moisés Silva, então editor desse
periódico, pela permissão de incluir partes desse artigo no presente livro. Uma cópia da tese
inédita de doutorado de James Barry Vaughn, “Public Worship and Practical Theology in the
Work of Benjamin Keach (1640–1704)” [Adoração pública e teologia prática na obra de
Benjamin Keach (1640–1704)] (Universidade de St. Andrews, 1989), foi muito útil na escrita do
que agora é o capítulo 9, sobre Benjamin Keach. Quero agradecer ao Dr. Vaughn pelo envio de
uma cópia de sua tese. Também agradeço calorosamente pela permissão para usar o retrato de
Benjamin Keach na capa do original em inglês ao Dr. Peter Masters e ao Metropolitan
Tabernacle, Londres, Inglaterra. Também estou em dívida com o Reverendo Erroll Hulse, pelos
conselhos sobre a estrutura do livro e por seu caloroso incentivo para publicá-lo. Também
agradeço a Jamie Good, pelo gráfico sobre o desenvolvimento da Dissidência no século XVII.
Outubro de 1995
Dundas, Ontário

* O AUTOR SE REFERE AO CONCÍLIO VATICANO II, UMA CONFERÊNCIA REALIZADA ENTRE 1962 E 1965 QUE
CONDUZIU A INTENSAS TRANSFORMAÇÕES NA IGREJA. (N. T.)

3 “C. H. Spurgeon’s Tribute to William Carey”, suplemento ao Baptist Times, 16 abr. 1992.
Nota à segunda
edição do original
esta segunda edição, a única mudança fundamental consiste no acréscimo do capítulo
N sobre “John Norcott e o modo de batismo” segundo o pensamento batista calvinista do
século XVII, ou seja, o Capítulo 6. O texto desse capítulo foi publicado em The Baptist
Quarterly e é reimpresso aqui com a gentil permissão dos editores Karen E. Smith e Simon P.
Woodman. Também fiz algumas alterações na Introdução, com vistas à sua atualização. No
entanto, resisti à necessidade de atualizar, em grande parte, o restante do manuscrito. Não há
nada neste texto que eu ainda não defenda: ainda vejo nos batistas calvinistas dos séculos XVII e
XVIII a comunidade cristã mais fascinante da história da igreja e, para ser honesto, aquela que
melhor captou os elementos-chave da eclesiologia do Novo Testamento. Um apêndice com um
texto clássico da espiritualidade batista, escrito por Thomas Wilcox, também foi adicionado.
Desde o surgimento da primeira edição, em 1995, contamos com a existência de uma obra
relevante sobre Benjamin Keach, de autoria de Austin Walker, Jonathan Arnold e David Riker;
Larry Kreitzer, por sua vez, está envolvido com a publicação de um conjunto maciço de oito ou
nove volumes de estudos sobre William Kiffen, como o Dr. Kreitzer insiste que seu nome deve
ser escrito. Em 2014, também apareceu uma tradução romena da primeira edição. Esta edição é
publicada na esperança de que continue a ser um veículo para recuperar as riquezas da herança
batista calvinista do século XVII.
Abril de 2019
Dundas, Ontário
1
A questão das
origens batistas
á pelo menos três perspectivas distintas sobre as origens batistas.
H OS BATISTAS INGLESES E OS SUCESSIONISTAS
Uma das posições, que pode ser chamada de “sucessionismo batista”, defende uma sucessão
orgânica das igrejas batistas remontando ao ministério de João Batista, às margens do rio Jordão,
ou ao dia de Pentecostes. “Ele [o sucessionismo] traça uma espécie de linhagem até a
denominação batista moderna, por meio de grupos que recebem vários nomes [como os
paulicianos, os albigenses, os valdensianos] (...), ao argumento de que cada grupo detinha
crenças batistas básicas.”4 De acordo com os defensores de tal visão, essa parecia ser uma
consequência lógica das palavras de Jesus em Mateus 16.18: “(...) edificarei a minha igreja, e as
portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Observe-se que o termo “igreja”, nesse versículo,
é compreendido como uma referência a uma igreja local de crentes que se assemelha às
encontradas nos grupos batistas modernos. Uma vez que Cristo prometeu que tais igrejas locais
sempre existiriam ao longo da história, acreditar em algo contrário implicaria questionar a
integridade de Jesus. Coube, portanto, ao historiador batista encontrá-las no registro histórico.
Essa visão tem sido sustentada, entre outros estudiosos, por G. H. Orchard, em sua A Concise
History of Foreign Baptists [Uma história concisa dos batistas estrangeiros], de 1855; J. M.
Cramp, em Baptist History [História batista], de 1868; e J. M. Carroll, em The Trail of Blood [O
rasto de sangue] (1931).
É digno de nota que essa visão tornou-se popular no século XIX, e não era encontrada nos
escritos dos batistas dos séculos XVII e XVIII. Por exemplo, o mais antigo historiador batista,
Thomas Crosby (ca. 1683–ca. 1752), em seus quatro volumes de The History of the English
Baptists [A história dos batistas ingleses], publicados entre os anos de 1738 e 1740, oferece um
panorama do que pode ser descrito como uma “sucessão espiritual”, ao rastrear a origem da
rejeição ao batismo infantil desde o primeiro século. Mas ele não faz nenhum esforço para
mapear todos os grupos que se recusaram a batizar bebês, em uma espécie de árvore genealógica
batista.5 A posição de Crosby é típica de outros autores batistas dos séculos XVII e XVIII que se
contentavam em afirmar que sempre houve, na história da igreja, crentes fiéis no Senhor Jesus.
Como W. Morgan Patterson declara: “Aparentemente, os escritores desse período inicial da
história batista afirmavam nada além de uma continuidade do testemunho evangélico”.6 A
Segunda Confissão de Fé de Londres (26.3) resume bem essa visão: “Mesmo as igrejas mais
puras sobre a terra estão sujeitas a erros doutrinários e a comprometimentos. Algumas se
degeneraram tanto que deixaram de ser igrejas de Cristo, e passaram a ser sinagogas de satanás.
A despeito disso, porém, Cristo sempre teve e sempre terá um reino neste mundo, até o fim dos
tempos. Esse reino é formado dos que nele creem e confessam seu nome”.7
Portanto, o maior problema em relação à visão sucessionista das origens batistas é que ela
simplesmente não passará pelo escrutínio do exame histórico. Embora os grupos que esses
historiadores clamam como batistas genuínos guardem algumas semelhanças com os batistas
posteriores, outras diferenças relevantes invalidam toda a tese.8
OS BATISTAS INGLESES E OS ANABATISTAS
Uma segunda posição sustenta que as origens batistas devem ser traçadas desde o movimento
anabatista do século XVI, no continente europeu, com seus respectivos desdobramentos na
Inglaterra. Na época da Reforma, alguns indivíduos que deixaram a Igreja Romana recusavam-se
a se identificar com o que alguns chamavam de “reformadores magistrais” e com os grupos a
eles associados, ou seja, Martinho Lutero (1483–1546), na Saxônia, e Ulrico Zuínglio (1484–
1531) e João Calvino (1509–1564), na Suíça. Esses indivíduos, em sua maioria, rejeitavam a
ideia de uma igreja nacional, à qual todos os indivíduos da nação pertenciam, além de apoiar o
batismo infantil. Em vez disso, eles defendiam igrejas compostas unicamente por membros que
tivessem sido admitidos com base em uma confissão pessoal de fé e no batismo dos crentes. Dois
anabatistas proeminentes foram Jakob Hutter (1500–1536), que organizou o que se tornaria a
comunidade huterita primitiva, e Menno Simons (1496–1559), um dos fundadores dos
menonitas.
É interessante observar que esses anabatistas costumavam batizar por espargimento ou
aspersão. O primeiro batismo anabatista ocorreu em Zurique, em janeiro de 1525, quando
Conrad Grebel (ca. 1498–1526) batizou Jörg [George] Blaurock (ca. 1492–1529) derramando
água sobre sua cabeça, ou seja, por efusão. Embora, um mês depois, Grebel tenha batizado um
certo Wolfgang Ulimann por imersão, essa foi uma situação excepcional. Isso porque o modo
usual de batismo entre os anabatistas suíços era a efusão. Os primeiros anabatistas alemães —
entre os quais, Hans Hut (1490–1527) é um bom exemplo — também batizavam por efusão. Ao
se referir ao modo de Hut batizar os crentes, Rollin Stely Armour afirma: “Com frequência, (...)
parece que Hut simplesmente derramava [água] sobre a cabeça da pessoa. O aspirante ao batismo
costumava ajoelhar-se, e as outras pessoas presentes faziam o mesmo”. Eventualmente, Hut
batizava os crentes mergulhando o polegar “em um prato de água e fazendo uma cruz na testa do
batizando”, de acordo com sua visão de que o selo mencionado em Apocalipse 7.3 era o
batismo.9 Menno Simons também ensinou e praticou o batismo por efusão. Na verdade, Simons
pode realmente falar de batismo como “receber um punhado de água”.10
A perspectiva que considera os anabatistas continentais os predecessores dos batistas pode ser
descrita como a tese da “afinidade anabatista”. De forma inequívoca, demonstra-se que os
anabatistas já estavam em atividade na Inglaterra antes do surgimento dos batistas.11 Mas isso
não significa que tenha havido influência direta desses anabatistas sobre os batistas que surgiram
no século XVII. Em primeiro lugar, é bem possível que ambos os grupos tenham chegado,
independentemente, a conclusões idênticas, uma vez que tanto um como o outro recorreram às
Escrituras como o padrão para a vida e a ordem da igreja.12 Segundo, se os batistas estivessem
em dívida com os anabatistas, teriam certa relutância em admitir isso, por causa da imagem
popular dos “anabatistas” como revolucionários sociais violentos — imagem que se desenvolveu
ao longo do século XVI. Boa parte dessa imagem negativa dos anabatistas derivava da ocupação
da cidade de Münster, na Alemanha, por um grupo fanático de anabatistas que acreditava que o
reino de Deus poderia ser estabelecido pela via armada. De 1534 a 1535, os habitantes da cidade
foram governados por Jan Matthys e Jan Bockelson, também conhecido como John of Leyden
[ou, como é conhecido no Brasil, João de Leiden]. Leyden estabeleceu uma teocracia segundo a
qual todas as propriedades eram compartilhadas, a poligamia era legalizada, e o adultério, punido
com a morte. Embora esse experimento anabatista tenha durado pouco — a cidade foi invadida
por um exército formado por católicos em junho de 1535 — e, dificilmente, fosse representativo
da essência do anabatismo, o repúdio escandaloso de Münster fez do nome anabatista sinônimo
para fanatismo e anarquia violenta até o século XVII. Por exemplo, quando, em 1644, as
primeiras igrejas batistas calvinistas promulgaram uma Confissão de Fé que delineava suas
crenças teológicas, declararam no frontispício que elas eram “comumente (embora falsamente)
chamadas anabatistas”.13
Notoriamente, essas igrejas queriam dissociar-se, de forma plena, do espectro do anabatismo.
Portanto, é praticamente “impossível aferir o impacto dos anabatistas em um contexto no qual
esse impacto é compelido a ser negado ou ignorado”.14 Terceiro, no desenvolvimento dos
separatistas ingleses, que emergiram do movimento puritano do final dos anos 1500 e que são
examinados sucintamente a seguir, há uma explicação plausível para o desenvolvimento de
convicções e ideias batistas.15 Como o historiador batista inglês Barrie R. White sustentou,
quando uma explicação para o surgimento das convicções batistas no contexto inglês do
movimento dos puritanos, também chamados “separatistas”, está prontamente disponível, o ônus
da prova recai sobre aqueles que defendem o anabatismo continental como desempenhando
papel decisivo no surgimento dos batistas.16
RAÍZES DO MOVIMENTO
DOS PURITANOS, SEPARATISTAS
A terceira posição, que pode ser descrita como a visão da “descendência puritano-separatista”,
sustenta que os batistas emergiram da matriz dos movimentos puritano e separatista ingleses do
final do século XVI até meados do século XVII. Essa visão surgiu no final do século XIX por
uma variedade de motivos, e não menos importante é o fato de que é a que melhor se encaixa nas
evidências históricas, inclusive explicando-as. Os principais defensores dessa corrente incluem
Champlin Burrage, W. T. Whitley, J. H. Shakespeare e, mais recentemente, White. A tese
puritano-separatista não passou, obviamente, incólume a contestações. Ela foi explicitamente
rejeitada por E. A. Payne, que, por muitos anos, foi o decano dos historiadores batistas
britânicos.
A reforma chegou à Inglaterra durante o reinado de Henrique VIII (1509–1547), mas foi só no
reinado de seu filho Eduardo VI (1547–1553) e de sua filha Elizabeth I (1559–1603) que se
consolidou. Na verdade, depois de Elizabeth I ter subido ao trono, não há dúvida de que a
Inglaterra estava, marcadamente, sob a órbita protestante. A questão emergente, contudo, era
saber até que ponto a igreja elisabetana seria reformada. Logo ficou claro que Elizabeth estava
satisfeita com uma igreja “calvinista em teologia, [mas] erastiana na ordem da Igreja e no
governo [ou seja, o Estado prevalecia sobre a igreja nessas áreas], e amplamente medieval na
liturgia”.17 Em resposta a essa “convenção” eclesiástica, surge o movimento puritano, que
procurava reformar a igreja elisabetana segundo o modelo das igrejas na Suíça protestante,
especialmente as de Genebra e Zurique.
Por fim, alguns puritanos radicais, sem esperança de haver uma reforma dentro da Igreja da
Inglaterra, começaram a se separar da igreja estatal, organizando suas próprias congregações
separatistas. O “toque de clarim” do movimento separatista foi a obra A Treatise of Reformation
without Tarrying for anie (1582), de Robert Browne (ca. 1550–1633) — o Robert
“Troublechurch” Browne, como um de seus adversários o apelidou.18 Browne vinha de uma
família importante e era ligado a Robert Cecil, Lord Burleigh, ao lorde-tesoureiro de Elizabeth I
e ao primeiro-ministro. Durante seus anos de graduação na Universidade de Cambridge, Browne
se tornara um “puritano presbiteriano radical”. Alguns anos depois, porém, ele já havia chegado
à convicção de que cada congregação local tinha o direito, de fato, de eleger seus próprios
líderes.19 E, em 1581, ele defendia que o estabelecimento de congregações para além da Igreja
Estabelecida e de suas igrejas paroquiais era uma necessidade, pois, como ele escreveu naquele
ano, “Deus não receberá ninguém para comunhão e aliança com ele que ainda esteja em união
com os ímpios”.20 No mesmo ano, ele fundou uma congregação separatista em Norwich.
Sofrendo perseguição, ele e sua congregação, no ano seguinte, deixaram a Inglaterra para a
liberdade dos Países Baixos. O que atraía os separatistas para os Países Baixos era a proximidade
geográfica com a Inglaterra, sua política de tolerância religiosa, sua incrível prosperidade
comercial — o início do século XVII testemunhou um florescimento tão acentuado nas áreas
literária, científica e artística holandesas que esse período tem sido chamado de “a era de ouro
dos Países Baixos” — e a natureza reformada de suas igrejas. Foi lá que ele publicou seu
Treatise of Reformation. Nesse tratado influente, Browne estabeleceu os pontos de vista que, ao
longo do século seguinte, se tornariam o bem comum de todos os “filhos” teológicos dos
separatistas ingleses, incluindo os batistas.
Em primeiro lugar, Browne reconheceu prontamente o direito das autoridades civis de
administrar e governar. No entanto, ele traçou uma linha distinta entre seus poderes na sociedade
em geral e seu poder em relação às igrejas locais. Como cidadãos do Estado, os membros
individuais dessas igrejas deveriam subordinar-se às autoridades civis, mas, acertadamente, ele
destacava, essas autoridades não tinham o direito de “impor a religião, plantar igrejas com o uso
de força ou coagir o governo eclesiástico por meio de leis e sanções”.21 Portanto, Browne
concebia a igreja local como uma igreja “reunida”, ou seja, como uma companhia de cristãos
unidos para viver sob o governo de Cristo, o Senhor Ressuscitado, cujo testamento tornou-se
conhecido por meio de sua Palavra e de seu Espírito. Por fim, os pastores e líderes da igreja,
embora, em última instância, recebam sua autoridade e seu encargo de Deus, deveriam ser
nomeados para exercer seu ofício com o “devido consentimento e a concordância da igreja (...)
de acordo com a aprovação da maioria”.22 Browne entendia, claramente, que o reino de Deus não
pode ser trazido por meio de decretos de autoridades governamentais e que, em última análise, o
cristianismo é “uma questão de consciência privada, e não de ordem pública, que a igreja é uma
comunidade de crentes, e não um exército de homens pressionados” e de mulheres.23
Embora, mais tarde, Browne se tenha retratado dessas opiniões, ele havia iniciado um
movimento que não podia ser posto em xeque. O manto de Browne, então, ficou a cargo de três
homens — John Greenwood (ca. 1560–1593), Henry Barrow (ca. 1550–1593) e John Penry
(1559–1593) —, todos eles enforcados em 1593, pelo que foi considerado pelo Estado um ato de
desobediência civil, ou seja, a secessão em relação à Igreja Estabelecida. Antes de suas mortes,
contudo, seus sermões e escritos haviam levado um número significativo de pessoas na capital
inglesa, Londres, a adotar os princípios separatistas. Como White observa: “Para muitos, foi
apenas um pequeno passo para o puritanismo ansioso dentro da Igreja Estabelecida se convencer
do separatismo que se encontrava fora”.24
Penry, antes de sua morte, declarou às autoridades governamentais que “as prisões, os
julgamentos e, sim, a morte em si não são armas para convencer a consciência dos homens, a
qual se fundamenta na palavra de Deus”.25 As autoridades governamentais e eclesiásticas não
compartilhavam dessa convicção e, em abril de 1593, foi aprovada uma lei que exigia que todos
com mais de dezesseis anos frequentassem a igreja paroquial local. Não fazê-lo por um mês
inteiro significava prisão. Se, três meses depois da libertação do indivíduo da prisão, ele ainda se
recusasse a obedecer, teria de escolher entre o exílio ou a morte. Em outras palavras, o Estado e a
igreja elisabetanos esperavam livrar-se do problema separatista com o envio dos recalcitrantes ao
exílio. De forma compreensível, quando se viam confrontados a escolher entre a morte e o exílio,
a maioria dos separatistas escolhia o exílio. Cerca de quarenta deles acabaram em Amsterdã,
porém, mais tarde, foram reunidos pelo pastor, um ex-puritano chamado Francis Johnson (?–
1617).
É digno de nota que Francis Johnson foi preso ao mesmo tempo que Greenwood e Barrow. E,
embora esses dois tenham sido executados, Johnson foi mantido na prisão até 1597, quando,
então, foi libertado, sob a condição de que seguisse para o exílio no Canadá! É desnecessário
dizer que Johnson não foi para o Canadá, mas para Amsterdã, a base de sua congregação
separatista. Embora os separatistas, agora, tivessem liberdade para fazer seus cultos, seus
problemas não haviam chegado ao fim. Em primeiro lugar, George Johnson (irmão de Francis)
começou a causar problemas no meio da congregação. George começou a manifestar algumas
queixas em relação à sua cunhada: suas roupas caras, o uso de ossos de baleia em suas anáguas, o
que, de acordo com George, a impedia de ter filhos, e o fato de que ela ficava na cama até as
nove horas das manhãs de domingo!26 George ainda acrescentou uma crítica mais consistente:
seu irmão estava com sede de poder e era, ele próprio, o centro do poder, e não a congregação.27
A congregação, porém, ficou ao lado de Francis Johnson e de sua esposa, e George Johnson,
quando se recusou a retirar suas acusações, foi excomungado, por volta de 1599 ou 1600. Mas os
problemas dessa congregação ainda não haviam acabado. Em 1608, chegou a Amsterdã outra
congregação separatista liderada por um homem chamado John Smyth (ca. 1570–1612). De
início, obviamente, havia uma quase unanimidade entre as duas congregações — ambas eram
separatistas na teologia e ambas eram compostas por homens e mulheres ingleses expatriados —,
mas, um ano depois, já se constatavam diferenças significativas entre os dois grupos, diferenças
que, por fim, levaram a congregação de Smyth a ser a primeira batista de língua inglesa.
JOHN SMYTH E OS BATISTAS GERAIS
As origens exatas de John Smyth são desconhecidas, embora seja muito provável que tenha
nascido em Sturton-le-Steeple, em Nottinghamshire.28 Nossa primeira visão inequívoca de Smyth
foi no momento em que se encontrava no Christ’s College, Cambridge, onde obteve uma
graduação em 1590 e, três anos depois, um mestrado. Nesse período, a Universidade de
Cambridge era o berço do puritanismo e, entre os tutores de Smyth, estava Francis Johnson.
Portanto, não surpreende encontrarmos Smyth em apuros por causa de suas visões puritanas,
alguns anos depois de sua partida de Cambridge. Em 1594, ele havia sido ordenado ministro na
Igreja da Inglaterra, mas, em três anos, já expressava forte discordância em relação a alguns
aspectos da liturgia daquela igreja. Em 1600, foi nomeado pregador na cidade de Lincoln pelo
conselho puritano da cidade, permanecendo nessa posição até 1602. Nessa época, alguns
sermões que ele proferiu — mais tarde, publicados como The Bright Morning Starre (1603) e A
Paterne of True Prayer (1605) — mostram um homem que, embora fosse puritano em teologia,
ainda se considerava um membro leal da Igreja da Inglaterra.29
Por volta do outono de 1607, contudo, Smyth já se convencera, definitivamente, do acerto da
posição separatista e já havia reunido uma congregação separatista na cidade de Gainsborough,
em Lincolnshire, na fronteira com Notttinghamshire. Parece que o fator crítico na convicção de
Smyth, no sentido de que ele deveria deixar a Igreja da Inglaterra, foi a promulgação, no final de
1604, de uma série de decretos da igreja pelo então rei, James I [também conhecido como Jaime
I] (1603–1625), exigindo a plena conformidade de todos os ministros da Igreja da Inglaterra com
os Trinta e Nove Artigos (a fundação doutrinária da Igreja da Inglaterra) e o Livro de Oração
Comum (que estabeleceu a forma de culto e liturgia na Igreja da Inglaterra), bem como a
aquiescência com o governo por parte da Igreja Episcopal. Aparentemente, Smyth se reuniu com
vários outros puritanos, incluindo John Robinson (1575–1625) e John Dod, também conhecido
como “Decálogo Dod”, para discutir o curso de ação que eles deveriam tomar. A maioria decidiu
permanecer no seio da Igreja Estabelecida. Smyth, porém, ao lado de Robinson, estava
convencido de que eles tinham de sair, pois, em sua disputa, a Igreja da Inglaterra estava bem
além da esperança de uma reforma.
Ao longo de 1607 e 1608, a congregação de Smyth foi perseguida pelo Estado, e teve de tomar
a difícil decisão de abandonar a Inglaterra, em busca dos novos ares de liberdade de Amsterdã,
na Holanda. Ao se estabelecerem em Amsterdã, eles naturalmente procuraram a comunhão com
a outra congregação separatista inglesa na cidade, a qual era pastoreada por Francis Johnson.
Logo, porém, começaram a surgir diferenças de relevo entre as duas congregações. Em um livro
que Smyth publicou no ano de sua chegada aos Países Baixos, The Differences of the Churches
of the Separation (1608), ele elencou uma série de pontos de discordância entre sua congregação
e a de Johnson.30 A mais significativa dessas diferenças estava relacionada ao governo da igreja.
Na congregação de Johnson, havia um pastor — responsável por pregar, disciplinar e liderar a
congregação na observância aos sacramentos —, um professor que se limitava a ensinar, e dois
anciãos administradores, os quais auxiliavam o pastor no exercício da disciplina. Essa distinção
relacionada à liderança tinha suas raízes na compreensão de Calvino acerca dos oficiais da igreja
listados em Efésios 4.11. Smyth, contudo, acreditava que não havia real distinção entre pastores,
mestres e anciãos, e que toda congregação deveria contar com uma pluralidade dessas
autoridades.
O resultado líquido dessas diferenças foi a ruptura na comunhão dessas duas congregações,
bem como uma divisão na congregação de Smyth. John Robinson e cerca de cem membros
chegaram à conclusão de que não podiam concordar com o rumo que Smyth estava tomando;
então, separaram-se de Smyth e realmente se mudaram para Leiden. De Leiden, a congregação
de Robinson, por fim, navegaria para a América, desembarcando em Plymouth, no sudeste de
Massachusetts, em 1620. Assim, agora a congregação de Smyth já contava com cerca de
cinquenta membros, cerca de um terço de seu tamanho original.
Em 1609, o pensamento de Smyth deu outro passo significativo, na medida em que ele passou
a aceitar o credobatismo. A questão do batismo havia representado uma espécie de
constrangimento para os separatistas. De acordo com seu pensamento, a Igreja da Inglaterra era
uma igreja falsa. Além disso, todos eles haviam sido batizados, ainda na infância, por essa igreja.
Portanto, a eficácia desse batismo não era duvidosa? Os separatistas, porém, se esquivavam de
fazer esse questionamento, menos ainda de responder a essa pergunta. Os eventos associados aos
anabatistas revolucionários de Münster ainda estavam gravados, de forma consistente, na
memória dos cristãos europeus: o batismo dos crentes só poderia levar a uma desordem social e
política.31 Mas, no terreno que outros evitavam ou temiam pisar, Smyth, como sempre um
pensador independente, era inovador. Se, como concluiu, a Igreja da Inglaterra não era uma
igreja verdadeira, então seu batismo, igualmente, não era um batismo verdadeiro.
Além disso, enquanto estudava as Escrituras, ele descobriu que o Novo Testamento trata
apenas do batismo dos crentes [o credobatismo], e não do batismo infantil [o pedobatismo]. Ele
apresentou sua nova posição em um tratado intitulado The Character of the Beast, obra
publicada em 1609. O batismo, argumentava Smyth, caracteriza-se pelo batismo com o Espírito e
se segue à confissão verbal de Cristo; os bebês, porém, não podem receber o batismo do Espírito,
nem podem confessar Cristo com suas bocas. Igualmente, os bebês não têm capacidade para se
arrepender — e, mais uma vez, o arrependimento deve preceder o batismo.32 Assim, Smyth
concluiu que a prática de batismo infantil [o pedobatismo] entre os separatistas os tingia com as
mesmas tintas de “heresia”, a exemplo de Roma e da Igreja Estabelecida na Inglaterra: “Seja
conhecido, portanto, por toda a Separação, que os contamos em relação à sua constituição como
sendo tão prostituta quanto sua Mãe, a Inglaterra, ou sua avó, Roma, de cujos lombos ela veio.
(...) a Separação, a filha mais jovem e mais justa de Roma, é uma prostituta; pois, como é a mãe,
assim é a filha”.33
Nesse sentido, Smyth se deu conta de que ele e sua congregação estavam cercados por um mar
de apostasia. Ele reconheceu que precisava ser batizado, mas, numa situação como aquela, de
apostasia total, sentia que não havia ninguém a quem pudesse recorrer para receber um batismo
adequado. Assim, ele deu o passo radical — e, para seus contemporâneos, reconhecidamente
chocante — de batizar a si mesmo e, em seguida, batizar sua congregação.34
Na controvérsia subsequente a esse passo dado pela congregação de Smyth, ele foi
questionado por seus contemporâneos separatistas como pudera dar um passo dessa natureza,
pois, se o autobatismo fosse permitido, então as igrejas poderiam ser estabelecidas por homens e
mulheres solitários, o que seria um absurdo. A resposta de Smyth foi que “não há igreja à qual
possamos nos unir com uma boa consciência para receber o batismo”.35 Mas, como apontaram os
críticos de Smyth, nos Países Baixos havia um grupo menonita conhecido como “waterlanders”,
do qual ele poderia ter recebido o batismo. Smyth, assim, decidiu aproximar-se dos waterlanders
para investigar como se posicionavam teologicamente.
A essa altura, Smyth também já havia abandonado o calvinismo, adotando as opiniões do
teólogo holandês Jacob Arminius [ou Jacob Armínio] (1560–1609), em particular a crença de
que Cristo morreu por todos os homens e mulheres. Nessa ocasião, a posição teológica de
Arminius era alvo de intenso debate nos Países Baixos, razão pela qual é bastante compreensível
que Smyth tenha ficado sob a influência dessa posição.36 Do ponto de vista de seu recém-adotado
arminianismo, os waterlanders eram ortodoxos, e Smyth passara a considerar seu autobatismo
um passo prematuro e intempestivo. Assim, ao lado de outros quarenta e dois membros de sua
congregação, ele se inscreveu para se juntar à Igreja Menonita Waterlander. Isso significava
receber outro batismo, agora pelas mãos dos waterlanders, o que representava,
consequentemente, por parte da congregação de Smyth, a admissão de que seu batismo por
Smyth era inválido. Mas havia alguns na congregação de Smyth que se recusavam a admitir que
seu batismo era inválido. Liderados por Thomas Helwys (?–ca. 1615), eles se recusaram a ser
absorvidos pela igreja waterlander e, em vez disso, decidiram, em 1612, retornar à Inglaterra.
Smyth morreu no mesmo ano, e sua congregação, por fim recepcionada na igreja dos
waterlanders, foi finalmente assimilada na cultura anabatista holandesa.37
A congregação de Helwys manteve o arminianismo que eles haviam adotado sob a liderança
de Smyth, tornando-se conhecida como os batistas gerais, ou seja, os batistas que acreditavam
que Cristo morreu por todos os homens e por todas as mulheres. Helwys foi atirado na cadeia tão
logo a congregação retornou à Inglaterra — local onde ele morreu, por volta de 1615. A pequena
congregação de Helwys, que não era composta por mais de dez membros quando eles retornaram
pela primeira vez à Inglaterra, sobreviveu à prisão e à morte de seu líder, tornando-se, por fim, a
denominação “batista geral”. Em 1626, eles já haviam estabelecido congregações em Londres,
Coventry, Lincoln, Salisbury e Tiverton, com aproximadamente cento e cinquenta membros.38
Nitidamente, os batistas gerais saíram do ventre do puritanismo e do movimento separatista.
No entanto, embora os batistas gerais sejam os primeiros batistas de língua inglesa, os batistas
calvinistas é que se tornarão a principal denominação batista nos dois séculos seguintes. Neste
ponto, voltamo-nos para a história de suas origens.

4 Albert W. Wardin Jr., Baptist Atlas (Nashville: Broadman Press, 1980), 5.


5 W. Morgan Patterson, Baptist Successionism: A Critical View (Valley Forge: The Judson Press, 1969), 19-20. Para uma
refutação do sucessionismo, veja James Edward McGoldrick, Baptism Successionism: A Crucial Question in Baptist History
(Metuchen, New Jersey/London: The American Theological Library Association/The Scarecrow Press, Inc., 1994).
6 Patterson, Baptist Successionism, 75.
7 William L. Lumpkin, Baptist Confessions of Faith (2nd. ed.; Valley Forge: Judson Press, 1969), 285-286.
8 Para uma boa análise dessa visão da história batista, veja Patterson, Baptist Successionism, e McGoldrick, Baptist
Successionism.
9 Anabaptist Baptism: A Representative Study (Scottdale, Pennsylvania: Herald Press, 1966), 94.
10 Veja John Horsch, “Did Menno Simons Practice Baptism by Immersion?”, The Mennonite Quarterly Review, 1 (1927), 54-56.
11 Kenneth R. Manley, “Origins of the Baptists: the case for development from Puritanism-Separatism”, em William H.
Brackney com Ruby J. Burke (orgs.), Faith, Life and Witness: The Papers of the Study and Research Division of The Baptist
World Alliance 1986–1990 (Birmingham, Alabama: Samford University Press, 1990), 57.
12 Manley, “Origins of the Baptists”, 57. Veja também B. R. White, The English Baptists of the Seventeenth Century (London:
The Baptist Historical Society, 1983), 22.
13 The First London Confession of Faith, Prefácio (Lumpkin, Baptist Confessions, 153).
14 Manley, “Origins of the Baptists”, 57. Veja também White, English Baptists, 22. Sobre o episódio Münster, veja Michael R.
Watts, The Dissenters (Oxford, Clarendon Press, 1978), I, 8-9.
15 Manley, “Origins of the Baptists”, 57. Veja também White, English Baptists, 22.
16 Citado em Manley, “Origins of the Baptists”, 57.
17 Robert C. Walton, The Gathered Community (London: Carey Press, 1946), 59.
18 B. R. White, The English Separatist Tradition from the Marian Martyrs to the Pilgrim Fathers (London: Oxford University
Press, 1971), 42. Sobre Browne, veja White, English Separatist Tradition, 44-66; Watts, Dissenters, I, 27-34.
19 White, English Separatist Tradition, 45-48.
20 White, English Separatist Tradition, 48-49.
21 White, English Separatist Tradition, 59.
22 Citado por Watts, Dissenters, I, 30.
23 Watts, Dissenters, I, 34.
24 White, English Separatist Tradition, 84.
25 Citado por Watts, Dissenters, I, 39. Para um estudo acerca de Penry, veja Geoffrey Thomas, “John Penry and the Marprelate
Controversy”, em The Trials of Puritanism. Papers read at the 1993 Westminster Conference (London: The Westminster
Conference, 1993), 45-71.
26 Watts, Dissenters, 40.
27 White, English Separatist Tradition, 102.
28 B. R. White, “Smyth, John”, em Richard L. Greaves e Robert Zaller (orgs.), Biographical Dictionary of British Radicals in the
Seventeenth Century (Brighton, Sussex: The Harvester Press, 1984), III, 186; James Robert Coggins, John Smyth’s
Congregation: English Separatism, Mennonite Influence, and the Elect Nation (Waterloo, Ontário/Scottdale, Pennsylvania:
Herald Press, 1991), 32. Ambos os trabalhos foram muito úteis para se mapear a carreira de Smyth.
29 White, English Separatist Tradition, 117-118; Coggins, John Smyth’s Congregation, 32.
30 Para uma discussão acerca dessas diferenças, veja James R. Coggins, “The Theological Positions of John Smyth”, The Baptist
Quarterly, 30 (1983–1984), 250-252; idem, John Smyth’s Congregation, 50-55.
31 Watts, Dissenters, I, 44.
32 The Works of John Smyth, org. por W.T. Whitley, (Cambridge: Cambridge University Press, 1915), II, 567-568.
33 The Works of John Smyth, II, 565, 571. Ao atualizar essa citação de The Character of the Beast, segui a versão moderna da
introdução ao seu tratado, escrita, compilada e organizada por Sydnor L. Stealey, A Baptist Treasury (New York: Thomas Y.
Crowell Co., 1958), 2-9.
34 Veja a discussão do pensamento de Smyth sobre esse ponto em White, English Separatist Tradition, 137-138.
35 Citado em Watts, Dissenters, I, 45.
36 White, English Separatist Tradition, 138. Cf. Coggins, “The Theological Positions of John Smyth”, 257-258.
37 Para a história da congregação após a ruptura de Smyth com Helwys, e a morte deste último, veja Coggins, John Smith’s
Congregation, 107-114.
38 Sobre Helwys, veja Ernest A. Payne, Thomas Helwys and the First Baptist Church in England (London: The Baptist Union of
Great Britain and Ireland, 1959 [?]); B. R. White, “Helwys, Thomas”, em Richard L. Greaves e Robert Zaller (orgs.),
Biographical Dictionary of British Radicals in the Seventeenth Century (Brighton, Sussex: The Harvester Press, 1983), II, 76-77.
Sobre a história da congregação de Helwys após seu retorno à Inglaterra, veja Watts, Dissenters, I, 49-50; Coggins, John Smyth’s
Congregation, 104-107.
2
Os batistas calvinistas
uando se trata das origens batistas no século XVII, a atenção dos historiadores batistas

Q está voltada, em boa parte, para os batistas gerais. No entanto, os batistas calvinistas —
que, embora surjam no cenário histórico mais tarde do que os batistas gerais — é que se
revelam mais importantes para o fluxo da história batista. Glen H. Stassen enuncia
quatro razões consistentes na defesa de que os holofotes devem voltar-se para os batistas
calvinistas.39 Os batistas gerais, à exceção de algumas congregações, desapareceram no final do
século XVIII, no deserto do unitarianismo. No início do século XVIII, eles se recusaram a
censurar as opiniões de Mateus Caffyn (1628–1714), um pastor batista geral que, sentindo-se
incapaz de compreender o mistério da Trindade e o da divindade de Cristo, concluiu que nenhum
dos dois poderia ser verdadeiro. Em meados do século XVIII, a linha de raciocínio de Caffyn era
a da maior parte dos batistas gerais. Como Dan Taylor (1728–1816) — um batista geral que
buscou, sem êxito, trazer renovação à sua denominação nos últimos anos do século XVIII —
declarou: “Eles ultrajaram Jesus Cristo, e ele os degradou”.40 Dois outros fatores que retiveram o
desenvolvimento dos batistas gerais foram sua intensa relutância em erguer edificações da igreja
e sua aplicação rigorosa de uma política de endogamia (ao confinar o casamento entre membros
de sua própria família da igreja).
Nesse sentido, foram os batistas calvinistas que recuperaram a visão do batismo como
testemunho da morte, do sepultamento e da ressurreição do Senhor Jesus. Os batistas gerais
consideravam o batismo principalmente um sinal externo da lavagem interna do coração do
crente. Em outras palavras, a visão batista calvinista do batismo era substancialmente diferente
da visão que os batistas gerais tinham nos primeiros anos. Em terceiro lugar, foram os batistas
calvinistas, no início da década de 1640, que redescobriram que o batismo deveria ser por
imersão — até então, os batistas gerais haviam batizado por aspersão ou espargimento. Por fim
— e isso é o mais importante —, os batistas calvinistas têm uma gênese ligeiramente distinta dos
batistas gerais. Suas razões para abraçar o credobatismo e toda a atmosfera fora da qual eles
emergiram eram consideravelmente diferentes das motivações dos batistas gerais. Outro ponto
importante é que os batistas calvinistas revelam, de uma forma muito mais clara que os batistas
gerais, que as origens batistas devem ser encontradas no puritanismo do final do século XVI e do
início do século XVII, e não no anabatismo continental do século XVI. Como tal, esses batistas
são os herdeiros da comunidade reformada do século XVI e não podem ser compreendidos sem
que se faça referência a esse movimento.41

IGREJA JACOB-LATHROP-JESSEY
Há uma igreja específica que repousa na fonte dos batistas calvinistas: a congregação sediada em
Londres conhecida pelos historiadores como Igreja Jacob-Lathrop-Jessey, assim denominada em
alusão aos nomes de seus três primeiros pastores.42
Henry Jacob (1563–1624) e um grupo de crentes com ideias afins em Londres estabeleceram a
congregação em 1616. Até hoje, não se sabe em que medida Jacob e sua congregação foram
influenciados por separatistas como Francis Johnson e John Robinson — Jacob conheceu ambos
os homens durante sua vida: Johnson, em 1599, e Robinson, em 1610.43 O que está claro, no
entanto, é o fato de que a congregação de Jacob estava determinada a não romper integralmente
com a comunidade dos puritanos que haviam permanecido na Igreja da Inglaterra. Na declaração
de fé que essa congregação publicou no momento de sua fundação, ficou estabelecido,
claramente, que o comparecimento aos cultos realizados nas igrejas paroquiais locais era
permitido, desde que “nem nossa aceitação nem a presença silenciosa se devam a mera tradição
humana”. Ao contrário dos separatistas, Jacob e sua congregação recusaram-se a negar que a
Igreja da Inglaterra ainda contava com “autênticas igrejas visíveis”, razão pela qual não foi de
todo descabido manter a comunhão com eles nos pontos que não envolviam aquilo que a
congregação de Jacob considerava um erro definitivo. Não surpreende que as autoridades da
Igreja da Inglaterra tenham acusado a congregação de ser uma entidade separatista, e que os
separatistas os tenham apelidado de “idólatras”.44
Devido a essa hostilidade e a essa perseguição, Jacob decidiu, em 1622, partir da Inglaterra
rumo à Virgínia, onde, dois anos depois, morreu. Seu sucessor foi John Lathrop (1584–1653).
Durante o pastorado de Lathrop, pelo menos dois grupos se retiraram amigavelmente da igreja
para fundar congregações separatistas — e uma delas veio a ser pastoreada por Samuel Eaton (?–
1639). Eaton teve problemas com a legitimidade do batismo de bebês por ministros da Igreja da
Inglaterra, embora não pareça que ele realmente tenha adotado o credobatismo como a única
base para a membresia na igreja.45
No início da década de 1630, quando William Laud (1573–1645), o arcebispo arminiano de
Cantuária, estava tentando livrar a Inglaterra do puritanismo, Lathrop também decidiu emigrar
para o Novo Mundo. Ele partiu em 1634 e, só em 1637, um novo pastor foi encontrado: Henry
Jessey (1601–1663).46 Jessey tornara-se puritano enquanto estudava em Cambridge, no início da
década de 1620. Ordenado padre em 1626, na Igreja da Inglaterra, Jessey sentia-se cada vez mais
desconfortável com a liturgia e o culto na Igreja Estabelecida nos oito anos seguintes. Em 1635,
ele conheceu a Igreja Jacob-Lathrop — no início, presumivelmente, para participar dos cultos na
congregação, tendo sido chamado, dois anos depois, para atuar como pastor da igreja. Jessey, um
homem conciliador, manteve a tradição “jacobita”, ou seja, a política estabelecida por Henry
Jacob de se manter em comunhão com os puritanos dentro da Igreja da Inglaterra.

JOHN SPILSBURY E
A PRIMEIRA IGREJA BATISTA CALVINISTA
Um ano depois de Jessey se haver tornado pastor dessa igreja, surgiu a questão da eficácia do
batismo infantil. Em um documento elaborado nessa ocasião, o denominado Manuscrito Kiffin,*
lemos que, em 1638, “Mr. Tho: Wilson, Mr. H. Pen & mais 3 convenceram-se de que o batismo
não era destinado a bebês”.47 Provavelmente, John Spilsbury (1593–ca. 1668) tinha a profissão
de sapateiro, e pode ter sido um membro da igreja Jacob-Lathrop-Jessey em algum momento.48
Sua igreja é claramente a primeira a se dedicar à causa batista calvinista. Por muitos anos, estava
localizada em uma área de Londres chamada Wapping. Por volta de 1670, cerca de trezentos
membros frequentavam regularmente os cultos da igreja. Mais tarde, mudou-se para Prescot
Street e, depois, para Commercial Street; e, finalmente, para Walthamstow, onde, de 1924 a
1934, era pastoreada por Ernest Kevan. Hoje, ainda existe e é um trabalho evangélico próspero.
Spilsbury escreveu uma série de pequenas obras que apontam para suas fortes convicções
calvinistas. Por exemplo, em God’s Ordinance, The Saint’s Privilege, Spilsbury enfatizou uma
das notas distintivas do movimento batista calvinista, afirmando que “Cristo não apresentou à
justiça de seu Pai uma satisfação pelos pecados de todos os homens; mas tão somente pelos
pecados dos que criam nele, ou seja, apenas pelos eleitos”.49 É importante notar que a
congregação de Spilsbury, que provavelmente era um pouco maior que uma pequena igreja logo
no início, manteve uma boa relação com sua igreja-mãe. Há evidências de reuniões conjuntas
para oração e de que os membros da congregação de Spilsbury continuaram a participar de
reuniões na igreja Jacob-Lathrop-Jessey. De todos os vários grupos que, por fim, acabaram por
deixar a igreja, B. R. White observou que “não havia muros erguidos de amargura entre eles e até
mesmo suas retiradas da congregação mostravam-se fraternais”.50
Em maio de 1640, a Igreja Jacob-Lathrop-Jessey havia crescido tanto que não mais era
possível reunir-se em um só lugar. Assim, tomou-se a decisão de dividir a congregação em duas:
uma parte ainda sob a liderança pastoral de Jessey e a outra sob a liderança de Praise-God
Barebone (?–1679). Naquele ano, a congregação de Jessey foi materialmente atacada pelo então
prefeito de Londres, Sir John Wright, que, de acordo com uma fonte, “veio violentamente sobre
eles, batendo neles e empurrando, pressionando e chutando homens ou mulheres que fugiam do
alcance de suas mãos”. Entre os que foram agredidos, estava uma mulher grávida chamada Sra.
Berry, que, como resultado desses maus-tratos, perdeu não só o bebê em um aborto espontâneo,
como também a própria vida.51

RICHARD BLUNT E O MODO DE BATISMO


Contemporânea a essa crise externa, a questão do batismo veio, mais uma vez, à tona. Um
homem chamado Richard Blunt, que havia deixado a congregação Jacob-Lathrop-Jessey em
1633, na companhia de Samuel Eaton, retomou a comunhão com a igreja em 1640. Blunt logo
levantou a questão de o batismo dos crentes por imersão ser a única espécie que realmente
correspondia àquela praticada nos tempos do Novo Testamento. Parece que, até esse ponto, a
congregação de Spilsbury batizava os crentes por aspersão ou espargimento. De acordo com o
Manuscrito Kiffin, “o sr. Richard Blunt, (...) ao se convencer também do batismo por imersão do
corpo na água, assemelhando-se ao sepultamento e à ressurreição, (...) Cl 2.12; Rm 6.4, tinha
uma visão moderada na igreja”.52 Os principais textos que convenceram Blunt de que o batismo
do crente deveria ser por imersão são nomeados aqui como Colossenses 2.12 e Romanos 6.4, e
ambos relacionam o batismo à morte, ao sepultamento e à ressurreição do crente com Cristo.
Blunt e pensadores afins não conheciam nenhuma congregação na Inglaterra que batizasse os
crentes por imersão, razão pela qual não havia ninguém próximo à cuja instrução eles pudessem
recorrer. Após algumas buscas, descobriu-se um grupo de crentes nos Países Baixos que batizava
por imersão, um grupo menonita conhecido como os Collegiants [ou Collegians].* Blunt, então,
que falava holandês, foi à Holanda para debater o assunto com eles e, presumivelmente, assistir a
um batismo em primeira mão. O Manuscrito Kiffin nos diz que, ao retornar, Blunt batizou um
certo “Sr. Blacklock, que era um professor entre eles, &, após o sr. Blunt ter sido batizado, ele e
o sr. Blacklock batizaram os demais companheiros”, quarenta e um ao todo.53 Duas igrejas foram
formadas: uma pastoreada por Richard Blunt e a outra por Thomas Kilcop. Entre os batizados
após o retorno de Blunt da Holanda, estava Mark Lucar (?–1676), que desempenhou papel
significativo na disseminação dos princípios batistas calvinistas na América do Norte.54 Logo
após o retorno de Blunt, Spilsbury e sua congregação também adotaram a imersão como o modo
adequado de batismo. A essa altura, uma quarta congregação batista calvinista em Londres
também havia sido plantada — em Crutched Fryers, por John Green, um fabricante de chapéus, e
John Spencer, um cocheiro.55
UM DEBATE SOBRE O BATISMO DO CRENTE
Enquanto isso, os princípios batistas continuavam a se espalhar na Igreja Jacob-Lathrop-Jessey.
Por volta de 1644, Hanserd Knollys (ca. 1599–1691), que se tornaria um dos principais líderes
da causa batista calvinista durante o século XVII e cuja vida será abordada de forma mais
completa no Capítulo 5, convencera-se do credobatismo e, posteriormente, passou a liderar mais
um grupo que se havia retirado da Igreja Jacob-Lathrop-Jessey, com vistas a formar uma
congregação calvinista. Encontramos um bom exemplo da defesa do credobatismo por essas
igrejas batistas incipientes em A Declaration concerning the Publike Dispute... concerning
Infants-Baptisme [Uma declaração sobre a disputa pública... em relação ao batismo de infantes].
Trata-se de um documento elaborado por Knollys, em coautoria com outros dois líderes batistas
calvinistas, William Kiffen (1616–1701) e Benjamin Cox,56 publicado em 1645, após o
cancelamento de um debate público sobre o tema do batismo. O debate foi cancelado quando
houve rumores de que esses três líderes batistas pretendiam trazer “espadas, tacos e bastões” para
impor seu ponto de vista, e que o principal porta-voz do batismo infantil [o pedobatismo],
Edmund Calamy (1600–1666), um presbiteriano notável, teria sorte se escapasse com vida!57
Knollys, Kiffen e Cox argumentavam, de forma enfática, que não há texto, explícito ou
implícito, nem no Novo Testamento nem no Antigo Testamento, com a recomendação para se
batizarem os infantes.58 Aqueles que batizam bebês, portanto, estão adicionando aos
mandamentos das Escrituras, ou seja, roubando de Cristo sua honra como Rei e Legislador.
Como os autores sustentam, ao agirem assim, tais pessoas estão
subestimando o Ofício Majestoso de Cristo, no sentido de dar leis à sua Igreja nesse assunto; dizem que vão cumprir um
dever para com Cristo, mas não são capazes de apontar nenhum comando de Cristo para esse agir; mas devem usar sua
própria Arte e Razão para tornar a Lei de Cristo forte o suficiente, de modo a mantê-la como um dever. Como se o
regozijo da Arte, da Política e da Razão humanas em relação às Leis de Cristo não subestimasse a Cristo, como se as leis
de Cristo não fossem perfeitas o suficiente para seu povo (...) deixamos os sábios para julgar. E, ao fazer isso, eles
excedem ao tomar (...) a Honra e a Preeminência dele, que o Espírito Santo lhes dá.59

O fracasso em cumprir os comandos das Escrituras significava que aqueles que defendiam o
batismo infantil eram realmente culpados de se envolver em “culto à vontade”. Essa expressão,
derivada de Colossenses 2:23, era uma acusação frequente lançada pelos puritanos contra
aqueles na Igreja da Inglaterra que resistiam às reformas desejadas. Castigava-se o culto assim
descrito como tendo sua origem apenas na vontade e na imaginação de homens e mulheres. Por
trás do uso dessa expressão, estava a convicção puritana de que todo culto na igreja deve estar
em conformidade com o que é explicitamente ordenado nas Escrituras. Puritanos como Calamy,
que haviam tentado organizar o culto em suas igrejas de acordo com essa convicção, se teriam
mostrado particularmente sensíveis a — e até mesmo bastante irritados com — tal acusação. Mas
os líderes batistas estavam simplesmente aplicando de forma lógica essa convicção ao batismo.
Se tudo no culto da Igreja deve ser realizado de acordo com a Palavra, e não há um comando
explícito para o batismo de bebês, então apenas o dos crentes deve ser administrado.
Knollys, Kiffen e Cox também recorreram a textos como Mateus 28.19, que eles descreviam
como “a única ordem escrita para batizar”. Esse texto orienta a igreja a “batizar discípulos de
forma única”. Como os infantes ainda não têm a capacidade de aprender sobre Cristo e depositar
sua fé nele, não podem ser discípulos e, portanto, não devem ser batizados.
Calamy não estava convencido desses argumentos, mas outros puritanos, sim — e, entre eles,
estava Henry Jessey. Em 29 de junho de 1645, Knollys teve a satisfação de batizar seu ex-pastor.
Embora Jessey se tivesse convencido pessoalmente do batismo do crente [credobatismo],
recusava-se a se livrar de seu irenismo.* Sua congregação continuou a aceitar, em sua
membresia, aqueles que haviam sido batizados quando ainda eram infantes. Desse modo, a
política de adesão aberta de Jessey o distanciava dos batistas calvinistas, que insistiam no fato de
que cada membro de suas igrejas locais fosse um crente batizado. Jessey manteve relações
amistosas com os batistas calvinistas até sua morte, em 1663 — na verdade, Knollys estava
presente quando Jessey morreu —, mas sempre se mostrou um pouco receoso de que eles
houvessem ido longe demais em seus princípios fechados de membresia e estivessem realmente
idolatrando o batismo.60 No que diz respeito aos batistas calvinistas, no entanto, eles estavam
apenas procurando ser fiéis a todos os mandamentos de Deus.
* EMBORA, NESTE LIVRO, SEJA ADOTADA, EM RELAÇÃO A KIFFEN, A GRAFIA RECOMENDADA NA SEGUNDA
EDIÇÃO DO ORIGINAL EM INGLÊS PELO AUTOR, O NOME DO DOCUMENTO, MANUSCRITO KIFFIN, É TRAZIDO
DA FORMA COMO TEM SUA GRAFIA CONSAGRADA. (N.T.)

39 “Anabaptist Influence in the Origin of the Particular Baptists”, The Mennonite Quarterly Review, 36 (1962), 322-323.
40 Citado por W. E. Blomfield (org.), “Yorkshire Baptist Churches in the 17th and 18th Centuries”, em The Baptists of Yorkshire
(2nd ed.; Bradford e London: Wm. Byles & Sons Ltd./London: Kingsgate Press, 1912), 105.
41 Theron D. Price, “The Anabaptist View of the Church”, em Duke K. McCall (org.), What Is the Church? (Nashville,
Tennessee: Broadman Press, 1958), 112-113.
42 Stassen, “Anabaptist Influence”, 325.
43 Sobre Henry Jacob, veja especialmente Stephen Brachlow, “The Elizabethan Roots of Henry Jabob’s Churchmanship:
Refocusing the Historiographical Lens”, The Journal of Ecclesiastical History, 36 (1985), 228-254. Sobre a Igreja Jacob-
Lathrop-Jessey, veja Murray Tolmie, The Triumph of the Saints. The Separate Churches of London 1616-1649 (Cambridge:
Cambridge University Press, 1977), 7-27.
44 Brachlow, “The Elizabethan Roots of Henry Jacob’s Churchmanship”, 238-239.
45 Paul Linton Gritz, “Samuel Richardson and the Religious and Political Controversies Confronting the London Particular
Baptists, 1643 to 1658” (tese Ph.D., Southwestern Baptist Theological Seminary, 1987), 25-29.
46 Sobre Jessey, veja especialmente B. R. White, “Henry Jessey in the Great Rebellion”, em R. Buick Knox (org.), Reformation
Conformity and Dissent. Essays in honour of Geoffrey Nuttall (London: Epworth Press, 1977), 132-153.
47 Esse texto pode ser acessado em Champlin Burrage, The Early English Dissenters in the Light of Recent Research (1550–
1641) (Cambridge: Cambridge University Press, 1912), II, 302-305. O texto citado é da p. 302.
48 Sobre Spilsbury, veja R. L. Greaves, “Spilsbury (or Spilsbery), John”, em R. Greaves e Robert Zaller (orgs.), Biographical
Dictionary of British Radicals in the Seventeenth Century (Brighton, Sussex: The Harvester Press, 1984), 193-194; Robert W.
Oliver, From John Spilsbury to Ernest Kevan. The Literary Contribution of London’s Oldest Baptist Church (London: Grace
Publications Trust on Behalf of the Evangelical Library, 1985), 8-9; B. R. White, “The London Calvinistic Baptist Leadership
1644–1660”, em J. H. Y. Briggs (org.), Faith, Heritage and Witness (London: The Baptist Historical Society, 1987), 37-38;
Gritz, “Samuel Richardson”, 26-27.
49 Citado por Oliver, John Spilsbury to Ernest Kevan, 9.
50 “Henry Jessey”, 135.
51 Citado em Michael R. Watts, The Dissenters (Oxford: Clarendon Press, 1978), I, 80-81.
52 Burrage, Early English Dissenters, II, 302-303.

* OS COLLEGIANTS ERAM INTEGRANTES DE UMA ASSOCIAÇÃO FUNDADA EM 1619 ENTRE OS ARMINIANOS E


ANABATISTAS DA HOLANDA. (N.T.)

53 Burrage, Early English Dissenters, II, 303-304.


54 David J. Terry, “Mark Lucar: Particular Baptist Pioneer”, Baptist History and Heritage, 25, n. 1 (janeiro de 1990), 43-49.
55 W. T. Whitley, “The Seven Churches of London”, The Review and Expositor, 7, n. 3 (julho de 1910), 387-388.
56 Sobre Kiffen, veja, a seguir, Capítulo 4; sobre Cox, veja W. T. Whitley, “Benjamin Cox”, Transactions of the Baptist
Historical Society, 6, n. 1 (1918), 50-59.
57 A Declaration concerning the Publike Dispute… concerning Infants-Baptisme (London, 1645), 4-6.
58 A Declaration concerning the Publike Dispute… concerning Infants-Baptisme, 19.
59 A Declaration concerning the Publike Dispute… concerning Infants-Baptisme, 14-15.

O IRENISMO É UMA ESPÉCIE DE COMPORTAMENTO CONCILIADOR QUE BUSCA IGNORAR E, ASSIM,


EXTINGUIR EVENTUAIS QUERELAS DE NATUREZA RELIGIOSA, ESPECIALMENTE ENTRE CRISTÃOS DE
CREDOS DISTINTOS. (N.T.)

60 White, “Henry Jessey”, 152-153, 143.


3
A Primeira Confissão
de Fé de Londres
m meados de outubro de 1644, um livreiro chamado George Thomason, cuja loja situava-se
E nas proximidades do Cemitério de St. Paul’s, em Londres, começou a vender um pequeno
tratado intitulado The Confession of Faith of those churches which are commonly (though
falsly) called Anabaptists [A Confissão de Fé dessas igrejas que são comumente (embora
falsamente) chamadas anabatistas]. Os autores desse panfleto não eram nomeados no
frontispício, embora, em nota de rodapé no Prefácio, aparecessem quinze nomes — a liderança
pastoral das sete igrejas batistas calvinistas então existentes, todas situadas na capital. Em relação
a quais desses líderes foram os reais autores da Confissão (posteriormente conhecida como A
Primeira Confissão de Fé de Londres), sabe-se que John Spilsbury, William Kiffen e Samuel
Richardson foram aqueles que desempenharam o papel mais proeminente em sua elaboração.61

AS RAZÕES PARA A CONFISSÃO


Eles elaboraram a Confissão principalmente para se defender de várias falsas acusações que
estavam sendo veiculadas na capital. Como explicavam no Prefácio, eles eram retratados como
homens e mulheres “que se encontravam sob aquela calúnia e a insígnia clandestina de hereges,
semeadores de divisão”. Nos púlpitos e nos escritos de seus companheiros puritanos, eles eram
acusados de “sustentar o livre-arbítrio e a queda da graça, de negar o pecado original, de
renunciar aos Magistrados, de negar assistência, tanto pessoal como de recursos, em qualquer um
de seus comandos lícitos, de cometer atos impróprios ao dispensar a ordenança do batismo, de
modo a não serem identificados entre os cristãos”.62 Em relação às três primeiras acusações,
parece que os batistas calvinistas estavam sendo confundidos com os batistas gerais, que eram
explicitamente arminianos em sua teologia. As duas acusações que se seguem estão relacionadas
a subversão política e rebelião. Tais acusações provavelmente fundamentavam-se no mal-
entendido de que os batistas calvinistas assemelhavam-se aos anabatistas continentais e
revolucionários do século anterior. É digno de nota que, no título de sua Confissão, os batistas
calvinistas enfatizavam que eram “comumente (embora falsamente) chamados de anabatistas”. A
acusação final — a de serem indecorosos na administração do batismo — era uma grande
calúnia, mas algo que, com frequência, se imputava aos primeiros batistas. Por exemplo, Daniel
Featley (1582–1645), um ministro influente dedicado à Igreja da Inglaterra e crítico do
puritanismo, fora autor de um ataque escrito difamatório contra os batistas, intitulado The
Dippers dipt. Or, The Anabaptists duck’d and plunged Over Head and Eares [Os Dippers. Ou,
os anabatistas se abaixam e mergulham a cabeça e os ouvidos] (1645). Nesse escrito, ele
sustentava que os batistas tinham o hábito de se despir, ficando “completamente nus, não só
quando se reúnem em grandes multidões, homens e mulheres juntos, mergulhando em seus
Jordões; mas também em outras ocasiões, quando a estação climática assim permite”!63
O resultado de tais acusações — acusações que os autores desse prefácio afirmavam, de forma
veemente, ser “notoriamente falsas” — foi que muitos crentes piedosos não desejavam ser
associados aos batistas calvinistas, e muitos incrédulos foram encorajados a pensar da seguinte
forma: “se eles pudessem, encontrariam o lugar do nosso encontro, para se reunir em grupos e
nos apedrejar, bem como olhar para nós como um povo (...) que não é digno de viver”.64 John
Spilsbury, por exemplo, mencionou, em 1643, que suas convicções acerca do batismo dos
crentes haviam tornado seus oponentes “tão indignados contra mim, a ponto de buscar atentar
contra minha vida”.65
Desse modo, em 1644, a liderança batista calvinista de Londres decidiu elaborar uma
Confissão de Fé que fosse capaz de demonstrar, de forma definitiva, sua solidariedade
fundamental com a comunidade calvinista internacional. E, nesse mesmo ano, A Primeira
Confissão de Fé de Londres passou por pelo menos duas impressões, tendo sido relançada, em
30 de novembro de 1646, uma segunda edição. Parece que essa Confissão alcançou seu objetivo
de desarmar a crítica de muitos colegas puritanos, tornando-se, em pouco tempo, o padrão
doutrinário para o primeiro período do avanço batista calvinista, o qual teve seu fim em 1660,
com a restauração de Carlos II (que reinou no período de 1660–1685).66

O CONTEÚDO DA CONFISSÃO
A edição de 1644 da Confissão é composta por cinquenta e três artigos. Os primeiros artigos
abordam a natureza e os atributos de Deus, a doutrina da Trindade, a eleição divina, a queda e o
pecado de toda a humanidade, bem como a pessoa e a obra de Cristo em seus ofícios de profeta,
sacerdote e rei. Os artigos XXI a XXXII abordam a obra da salvação, revelando, de forma
inequívoca, o calvinismo da Confissão.67 O artigo XXII, por exemplo, que discute a fé salvífica,
afirma que “a fé é o dom de Deus operado nos corações dos eleitos pelo Espírito de Deus”.68 E,
como dom de Deus, essa fé não pode ser perdida, como declara o artigo XXIII: “Aqueles que
têm esta fé preciosa operada neles pelo Espírito nunca podem finalmente, nem totalmente,
cair”.69 Além disso, essa fé salvífica é possuída apenas pelos eleitos de Deus. De acordo com o
artigo XXI: “Cristo Jesus, por sua morte, operou a salvação e a reconciliação apenas em prol dos
eleitos, que eram os tais que Deus, o Pai, lhe deu”.70 No entanto, como Robert W. Oliver
observa, essa “crença na redenção particular não inibiu o evangelismo”. No mesmo artigo
elaborado por aqueles que atrelaram sua Confissão à redenção particular, também lemos que “o
Evangelho (...) deve ser pregado a todos os homens”.71
Os últimos cinco artigos da Confissão refutam, de maneira consistente, a acusação de que os
batistas calvinistas de Londres seriam revolucionários anabatistas, enfatizando que o poder civil
é ordenado por Deus, e que esse poder conta não apenas com a obediência, mas também com sua
defesa em todas as questões de natureza civil.72 Na segunda edição de 1646, houve o acréscimo
de um artigo assinalando que era perfeitamente legítimo que “um cristão fosse um Magistrado ou
uma Autoridade Civil” e “fizesse um Juramento” — o que fora contestado pelos anabatistas
continentais do século XVI.73

A ECLESIOLOGIA DA CONFISSÃO
Os quinze artigos que se situam entre aqueles que discutem a obra de Deus na salvação dos
pecadores e aqueles que detalham a relação das igrejas locais com o Estado contêm uma
discussão completa acerca da natureza da igreja e de sua vida. A igreja local, segundo assinalado
no artigo XXXIII, “é uma companhia visível de santos, chamados e separados dentre o mundo,
pela Palavra e pelo Espírito de Deus, para a visível profissão da fé do Evangelho, sendo
batizados na fé, e unidos ao Senhor, e uns aos outros, de comum acordo”.74 Em outras palavras, a
igreja local deve ser composta tão somente por aqueles que professaram
a fé em Cristo e que renasceram como testemunhas visíveis dessa fé ao serem batizados. Nesse
artigo, o que se entende ao colocar o batismo após a profissão de fé é apresentado mais adiante,
nos artigos XXXIX e XL.75 No primeiro desses artigos, há uma declaração clara de que apenas
aqueles que professaram a fé ou que são “discípulos, ou ensinados, os quais estão sob uma
profissão de fé, devem ser batizados”.76
Em seguida, o artigo XL passa a descrever o modo adequado e o significado do batismo. Deve
ser por imersão, ou por “mergulhar ou imergir todo o corpo sob a água”. Quanto ao seu
significado, os autores da Confissão observaram três sentidos para o batismo. Primeiro, ele
carrega o testemunho da lavagem de toda a alma no sangue de Cristo. Em edições posteriores da
Confissão, esse significado foi omitido. Segundo, significa “a morte, o sepultamento e a
ressurreição” do crente com Cristo. Por fim, ajuda a dar ao crente a garantia de que, assim como
ele é levantado das águas do batismo, “certamente os corpos dos santos serão ressuscitados pelo
poder de Cristo, no dia da ressurreição”. Na margem lateral desse artigo, também havia uma
refutação veemente à acusação de que os batistas, quando da administração da ordenança do
batismo, estariam envolvidos em atos de imoralidade. O batismo dos crentes era realizado,
segundo a Confissão, com “roupas convenientes tanto por parte do administrador como do
sujeito, com toda a modéstia”.77
Ao ingressarem na igreja local pela porta do batismo, os crentes estão declarando reconhecer
Cristo como “seu Profeta, Sacerdote e Rei”, colocando-se “debaixo de sua direção celestial e
governo, para que guie as suas vidas em seu redil, e jardim bem regado” (artigo XXXIV).78 A
metáfora final aqui usada para descrever a igreja, “jardim regado”, teria uma história notável
entre os batistas calvinistas. A frase é extraída de Cântico 4.12: “Jardim fechado és tu, minha
irmã, noiva minha, manancial recluso, fonte selada” e, ao longo do século seguinte, viria a se
repetir, inúmeras vezes, nos documentos batistas calvinistas que falavam sobre a natureza da
igreja.79
Um número significativo de residências na Inglaterra do século dezessete tinha jardins
fechados. Embora alguns desses jardins fossem desenvolvidos principalmente por razões
estéticas, sendo compostos, principalmente, por flores e arbustos, muitos eram pomares e hortas,
projetados para produzir pequenas frutas, ervas, verduras, legumes e outros vegetais. Tinham a
forma, em geral, retangular, e eram fechados por muros ou cercas que podiam atingir até cinco
metros. Esses muros ofereciam proteção contra os eventuais efeitos provocados pelos ventos,
além de conferir privacidade ao proprietário.80 De fato, durante a turbulenta era da década de
1640, quando as Ilhas Britânicas experimentaram os horrores e a devastação da guerra civil,
esses jardins passaram a ser vistos cada vez mais como “refúgios seguros contra os perigos das
disputas políticas e religiosas”.81
Em vista da característica de insularidade desses jardins fechados, a adoção crescente desse
termo pelos batistas calvinistas no final do século XVII e início do século XVIII como uma
descrição favorável de suas igrejas dificilmente pode ser considerada fortuita. Isso porque,
quando os batistas calvinistas ingressaram no século XVIII, sua comunidade era cada vez mais
insular. O uso dessa expressão, revestida de todos os seus tons introspectivos, só incentivaria os
batistas calvinistas a se trancar mais ainda em seus locais de reunião e limitar seus horizontes à
manutenção da vida na igreja. Mas, quando essa Confissão foi redigida, tudo isso ainda era uma
possibilidade remota, pertencente a um momento no futuro, e os homens que a elaboraram
estavam longe de ser “fechados em si mesmos”. Como já observamos, eles estavam firmemente
convencidos de que “o Evangelho (...) deve ser pregado a todos os homens”.
O artigo XXXV assinala que todos os crentes na igreja local são dotados para o serviço. “E
todos os seus servos [ou seja, de Cristo] são chamados para fora [ou seja, para a igreja], para que
apresentem seus corpos e almas, e tragam seus dons que Deus lhes deu; assim vindo, eles são,
por ele mesmo, estabelecidos em suas diversas ordens, posições peculiares e uso devido, sendo
adequadamente unidos e entrelaçados, de acordo com a eficaz operação de cada parte, para a
edificação em amor.”82 A Confissão parte do pressuposto de que Deus dotou todos os crentes
com pelo menos um dom espiritual; assim, na condição de autênticos servos de Cristo, os crentes
devem “trazer seus dons” para a igreja, onde, então, podem ser empregados na edificação e na
construção do corpo de Cristo. Um artigo posterior, o de número XLV, identifica explicitamente
um desses dons. “Os tais a quem Deus concedeu dons”, assinala esse artigo, “sendo julgados na
igreja, podem e devem, com a nomeação da congregação, profetizar, de acordo com a proporção
da fé, e assim ensinar publicamente a Palavra de Deus, para a edificação, a exortação e o consolo
da igreja”.83
Agora, nos círculos batistas gerais, acreditava-se que o dom da profecia no Novo Testamento
estava sendo exercido quando, como regularmente acontecia, os membros da congregação se
levantavam e entregavam mensagens improvisadas, após o sermão, ou até mesmo no lugar do
sermão.84 Essa prática, porém, não parece ser o que está em vista no texto citado acima da
Primeira Confissão de Londres. Aqueles que “profetizavam” eram reconhecidos pela
congregação como pessoas especialmente dotadas no ensino público da Palavra de Deus e, pela
“nomeação da congregação”, exercem um ministério regular a esse respeito. Uma interpretação
semelhante acerca do dom da profecia pode ser encontrada em uma obra de Hanserd Knollys —
Knollys assinaria a segunda edição da Confissão, em 1646. Em An Exposition of the Whole Book
of Revelation [Uma exposição de todo o Livro do Apocalipse], ele faz o seguinte comentário
sobre Apocalipse 11.3, que aborda o ministério profético de duas testemunhas: “[O] Dom de
Profecia, Cristo dá aos seus Ministros fiéis nas Igrejas dos Santos, de modo que eles podem ser
suas Testemunhas (...) produzindo seu testemunho para Cristo (...) em todos os Ofícios de sua
Mediação”.85
Os artigos XXXVI e XLII a XLV são uma descrição clássica da gestão na igreja
congregacional. Com base em Mateus 18.17 e 1Coríntios 5.4, afirma-se que “Cristo tem (...)
dado poder a toda a sua Igreja para receber e expulsar, por meio de excomunhão, qualquer
membro; e este poder é dado a cada congregação em particular, e não a uma pessoa em
particular, seja membro ou autoridade, mas à totalidade da congregação”.86 Os membros da
igreja local, de forma conjunta, têm autoridade e poder para receber novos membros em seu
meio, bem como para excomungar aqueles que se recusam a caminhar sob o senhorio de Cristo.
Além disso, “toda Igreja tem o poder dado a elas de Cristo (...) para escolher para si pessoas
capacitadas ao ofício de Pastores, Mestres, Anciãos, Diáconos” [artigo XXXVI].87 Também
destacava-se que “nenhum outro tem poder para impor” líderes à congregação a partir de fora.
Enquanto as edições posteriores vão limitar os nomes dos líderes da congregação em “Anciãos”
e “Diáconos”, não haverá recuo do fato de que “o ministério foi (...) firmemente subordinado à
autoridade imediata da comunidade da aliança”.88 Como B. R. White apontou, essa preocupação
zelosa em relação à autonomia congregacional foi motivada pelo profundo desejo de os membros
serem livres para obedecer a Cristo, e não serem obrigados pelos ditames dos homens e das
tradições humanas.89 Em suma, Cristo havia confiado às congregações individuais a autoridade e
o direito de ordenar suas vidas em conjunto, na condição de crentes. A compreensão da igreja
local, apresentada nesses artigos, coloca sobre os membros da igreja uma grande
responsabilidade. Nas palavras do falecido Stanley Grenz, professor de teologia no Carey Hall,
em Vancouver:
Os crentes são iniciados em uma vida em comunidade na qual eles devem envolver-se pessoalmente e sobre a qual
devem assumir propriedade pessoal. Como o povo é a igreja, a vida congregacional batista exige o envolvimento de cada
membro de uma forma incomparável, em virtude da política centrada no líder das igrejas tradicionais e dos novos grupos
carismáticos.90
ASSOCIAÇÕES BATISTAS PRIMITIVAS
Essa afirmação veemente em relação à autonomia congregacional nos textos acima citados, que
poderia facilmente conduzir ao isolacionismo, foi contrabalançada pelo artigo XLVII, no qual se
afirmou: “Embora a congregação particular seja distinta e composta por membros variados, cada
uma sendo como uma cidade compacta e una em si mesma; mesmo assim, todas elas devem
caminhar segundo uma única e mesma Regra e, por todos os meios convenientes, devem ter
conselho e ajudar umas às outras em todos os assuntos de necessidade da Igreja, como membros
de um corpo na fé comum sob Cristo, seu único Cabeça”.91 A autonomia de cada congregação
local é reconhecida como um dado bíblico, mas o fato é que cada congregação, em última
instância, pertence a apenas um Corpo e cada uma compartilha a mesma autoridade maior, o
Senhor Cristo. Portanto, as congregações locais devem esforçar-se para auxiliar umas às outras.
O tipo de ajuda contemplada pelos autores dessa Confissão pode ser visto nos textos que foram
apensados a esse artigo em suas edições de 1644 e 1646. A primeira edição citou, entre outros
versículos, 1Coríntios 16.1, que se refere à arrecadação de dinheiro por Paulo junto às
congregações na Grécia e na Ásia Menor, em prol dos pobres na igreja de Jerusalém, e
Colossenses 4.16, em que a igreja em Colossos é instada a compartilhar a carta de Paulo que lhe
fora enviada com a igreja em Laodiceia e vice-versa. Na edição de 1646, algumas citações
bíblicas foram descartadas e, entre as adicionadas, estão Atos 15.2-3, que trata do Concílio de
Jerusalém, e 2Coríntios 8.1, 4, que diz respeito à coleta de dinheiro para a igreja em Jerusalém.
Em outras palavras, os autores dessa Confissão vislumbravam as igrejas ajudando umas as outras
nas áreas de necessidade financeira, bem como dando conselhos em relação a questões
doutrinárias e éticas. Em última análise, o que uniu as igrejas foi uma determinação comum para
caminhar de acordo com “uma única e mesma Regra”, ou seja, as Escrituras. Somente quando há
essa concordância genuína quanto à fonte de autoridade final para regular a vida e a doutrina, as
igrejas locais podem caminhar e trabalhar juntas.92
Aqui, no artigo XLVII, está a gênese do que, posteriormente, se tornaria uma característica dos
primeiros batistas calvinistas, ou seja, as associações regionais, as quais ligavam as congregações
locais em áreas geográficas específicas da Grã-Bretanha. E, se alguém indagar de onde os
signatários da Confissão extraíram suas convicções a esse respeito, imediatamente nos vem à
mente a experiência que muitos deles tiveram na Congregação Jacob-Lathrop-Jessey. Lá, eles
haviam vivenciado uma vida na igreja que estava longe de ser isolacionista e que, de forma
bastante consciente, se esforçara para reforçar os laços entre seus próprios membros e entre as
outras congregações.93
Essas associações representaram o principal fator para o crescimento significativo que a causa
batista calvinista testemunhou no final da década de 1640 e durante os anos 1650. Esses foram
anos tumultuados na história inglesa, pois a região foi abalada por uma guerra civil e
experimentou intensa revolta social, política e econômica. No entanto, os batistas calvinistas
floresceram nessa época, e seu compromisso com as associações desempenhou papel crucial em
seu crescimento. As associações ofereciam força mútua e senso de comunidade, um instrumento
para preservar a integridade e a ortodoxia congregacional, um meio de suprir as necessidades
financeiras das congregações mais pobres e uma forma de apoiar a plantação de igrejas e
empreender os esforços evangélicos. O lugar de destaque que a primeira geração desses batistas
atribuiu às suas associações está bem delineado por White, quando afirma que “eles não
acreditavam mais que uma congregação individual deveria ser livre para seguir seu próprio
caminho, da mesma forma que um crente individual não poderia ser um cristão sério se não fosse
comprometido com uma congregação local e visível”.94
A causa batista calvinista provocou a expansão das sete igrejas em Londres, em meados de
1640, para cerca de cento e trinta em toda a Inglaterra, País de Gales e Irlanda no final da década
de 1650. Foi realmente um tempo único de colheita espiritual e de bênçãos. E a Primeira
Confissão de Fé de Londres estava pronta para ajudar a ganhar convertidos para a posição batista
e reuni-los.
WILLIAM KIFFEN (1616–1701)
61 Joseph Ivimey, The Life of Mr. William Kiffin (London, 1833), 99; B. R. White, “The Doctrine of the Church in the Particular
Baptist Confession of 1644”, The Journal of Theological Studies, N.S., 19 (1968), 570; William L. Lumpkin, Baptist Confessions
of Faith (2nd ed.; Valley Forge: Judson Press, 1969), 145-146.
62 The First London Confession of Faith, Prefácio (Lumpkin, Baptist Confessions, 154-155).
63 Citado em Gordon Kingsley, “Opposition to Early Baptists (1638–1645)”, Baptist History and Heritage, 4, n. 1 (janeiro de
1969), 29. Sobre Daniel Featley, veja mais em W. J. McGlothlin, “Dr. Daniel Featley and the First Calvinistic Baptist
Confession”, The Review and Expositor, 6 (1909), 579-589. Para a questão da imoralidade sexual, veja também J. F. McGregor,
“The Baptists: Fount of All Heresy”, em seu livro coeditado com B. Reay (orgs.), Radical Religion in the English Revolution
(Oxford: Oxford University Press, 1984), 41-42; James Barry Vaughn, “Public Worship and Practical Theology in the Work of
Benjamin Keach (1640–1704)” (tese Ph.D., University of St. Andrews, 1989), 60.
64 The First London Confession of Faith, Prefácio (Lumpkin, Baptist Confessions, 155).
65 White, “Doctrine of the Church”, 571, n. 1.
66 Murray Tolmie, The Triumph of the Saints. The Separate Churches of London 1616–1649 (Cambridge: Cambridge University
Press, 1977), 61-65; White, “Doctrine of the Church”, 570; idem, “The Origins and Convictions of the First Calvinistic Baptists”,
Baptist History and Heritage, 25, n. 4 (outubro de 1990), 45.
67 Robert W. Oliver, “Baptist Confession Making 1644 and 1689” (artigo apresentado à Strict Baptist Historical Society em 17
de março de 1989), 4.
68 Lumpkin, Baptist Confessions, 162.
69 Lumpkin, Baptist Confessions, 163.
70 Lumpkin, Baptist Confessions, 162.
71 Lumpkin, Baptist Confessions, 162; Oliver, “Baptist Confession Making”, 4.
72 Veja especialmente First London Confession of Faith XLVIII–XLIX (Lumpkin, Baptist Confessions, 169).
73 Veja Lumpkin, Baptist Confessions, 148.
74 Lumpkin, Baptist Confessions, 165.
75 White, “Doctrine of the Church”, 580.
76 Lumpkin, Baptist Confessions, 167. Na segunda edição, de 1646, foi adicionada uma cláusula ao final de seu artigo que
limitava a participação na Ceia do Senhor aos crentes batizados.
77 Lumpkin, Baptist Confessions, 167. Para o significado do batismo nos escritos de um dos signatários dessa Confissão, veja B.
R. White, “Thomas Patient in England and Ireland”, Irish Baptist Historical Society Journal, 2 (1969-1970), 43-45.
78 Lumpkin, Baptist Confessions, 165-166.
79 Veja, por exemplo, Benjamin Keach, Gospel Mysteries Unveiled (London: L. I. Higham, 1815), II, 332: “Uma parte de um
deserto foi transformada em um jardim ou em um vinhedo frutífero: então, Deus saiu do meio do povo deste mundo, tomou suas
igrejas e as emparedou, de modo que nenhuma das batidas selvagens possa machucá-las”; Keach, Gospel Mysteries Unveiled, II,
339: “a igreja de Cristo é um jardim fechado, ou uma comunidade de cristãos distintos do mundo: ‘Um jardim fechado, minha
irmã, minha noiva’” (Ct 4.12). O pacto de Bourton, na Water Baptist Church [Igreja Batista da Água], em Gloucestershire,
elaborado por volta de 1720, estabelecia que os membros da igreja deveriam “prometer manter os segredos de nossa igreja
íntegros, sem divulgá-los a qualquer um que não seja membro desse corpo em particular, ainda que sejam pessoas queridas e
próximas de nós; pois acreditamos que a igreja deveria ser como um Jardim fechado e uma fonte selada” (citado em Charles W.
Deweese, Baptist Church Covenants [Nashville, Tennessee: Broadman Press, 1990], 124). É digno de nota que Keith W. F.
Stavely descreve essa imagem de um jardim fechado como “a imagem mais frequentemente usada para descrever a igreja” no
“discurso eclesiástico do século dezessete” (“Roger Williams and the Enclosed Gardens of New England”, em Francis J. Bremer
[org.], Puritanism: Transatlantic Perspectives on a Seventeenth-Century Anglo-American Faith [Boston: Massachusetts
Historical Society, 1993], 261).
80 David C. Stuart, Georgian Gardens (Londres: Robert Hale Ltd., 1979), 142-143.
81 Tom Turner, English Garden Design. History and styles since 1650 (Woodbridge, Suffolk: Antique Collectors’ Club Ltd.,
1986), 9.
82 Lumpkin, Baptist Confessions, 166.
83 Lumpkin, Baptist Confessions, 168.
84 Michael R. Watts, The Dissenters (Oxford: Clarendon Press, 1978), I, 306-307. Vale destacar que, durante os anos 1640, de
acordo com o polêmico presbiteriano Thomas Edwards (1599–1647), o líder batista calvinista Hanserd Knollys criou “vários
protestos e tumultos” ao percorrer, uma a uma, as igrejas e falar após os sermões. Veja também Rufus M. Jones, Studies in
Mystical Religion (London: Macmillan, 1909), 424-425.
85 An Exposition of the whole Book of the Revelation (London, 1689), 129.
86 The First London Confession of Faith XLII (Lumpkin, Baptist Confessions, 168).
87 The First London Confession of Faith XLII (Lumpkin, Baptist Confessions, 166).
88 White, “Doctrine of the Church”, 581; idem, “Origins and Convictions of the First Calvinistic Baptists”, 46. O primeiro desses
artigos de White tem sido muito útil para a reflexão acerca da eclesiologia dessa Confissão. Sobre o fato de que deveria haver
apenas dois ofícios na igreja, de Ancião e Diácono, veja as observações de Benjamin Keach, The Glory of a True Church, and its
Discipline display’d (London, 1697), 15-16.
89 “Doctrine of Church”, 584.
90 “A Baptist Ecclesiology for the Contemporary World”, Search, 22, n. 4 (Verão de 1993), 8-9.
91 Lumpkin, Baptist Confessions, 168-169.
92 White, “Doctrine of the Church”, 583-584.
93 R. Dwayne Conner, “Early English Baptist Associations. Their Meaning for Baptist Connectional Life Today”, Foundations,
15 (1972), 167-168, 172-177.
94 “Origins and Convictions of the First Calvinistic Baptists,” 47.
4
William Kiffen (1616–1701)
“UM AMANTE DA PAZ E DA VERDADE”
uando, em 1833, Joseph Ivimey (1773–1834), o historiador batista do século XIX,

Q publicou a vida de William Kiffen, ele o fez na certeza de que Kiffen era “uma das
pessoas mais extraordinárias que a denominação [batista calvinista] já produziu, tanto
em relação à consistência e à retidão de seus princípios como no que se refere à
eminência de seu caráter mundano e religioso”. Em especial, Ivimey esperava que esse relato da
vida e do ministério de Kiffen incentivasse seus contemporâneos batistas mais jovens a encarar
Kiffen como “um padrão de devoção e integridade”.95 Não sabemos até que ponto essa esperança
foi concretizada, mas, nos dois séculos que separam os dias de Ivimey dos nossos dias, a vida
notável de Kiffen tem-se tornado cada vez mais conhecida entre os acadêmicos que estudam as
origens e a ascensão dos batistas calvinistas na Inglaterra do século XVII.
Em um artigo escrito há mais de cinquenta anos, Barrie R. White afirmou que ainda não havia
uma biografia adequada de Kiffen.96 A última metade do século não assistiu a nenhuma alteração
real nesse contexto. Esse fato deve ser lamentado, pois Kiffen ocupou, de acordo com as palavras
de White, “um lugar único de honra e grande influência” entre os primeiros batistas calvinistas
ingleses. Por exemplo, entre aqueles que assinaram a Primeira Confissão de Fé de Londres, em
1644, apenas Kiffen estava vivo em 1689 para convidar representantes de igrejas batistas
calvinistas em toda a Inglaterra e no País de Gales para se reunir em Londres, para sua primeira
assembleia nacional. Foi nessa assembleia que os representantes aprovaram a Segunda Confissão
de Fé de Londres — descrita como “a mais influente e importante de todas as confissões
batistas”.97 E o segundo nome na lista daqueles que aprovaram formalmente essa Confissão foi o
de Kiffen, que assinou pela igreja que ele pastoreava na Devonshire Square, em Londres. O fato
é que, da década de 1640 até sua morte, no início do século seguinte, Kiffen foi uma fonte de
força e estabilidade para o movimento batista calvinista, e desempenhou papel vital em seu
crescimento e avanço.

CONVERSÃO E EXPERIÊNCIA CRISTÃ PRECOCE


Nascido em Londres, em 1616, Kiffen ficou órfão aos nove anos, quando seus pais morreram em
virtude de um surto da peste. Em 1629, Kiffen foi aprendiz de um luveiro,98 porém, dois anos
depois, segundo suas próprias palavras, “crescentemente melancólico”, ele decidiu fugir de seu
mestre.99
Na ocasião, de forma providencial, ele passou pela igreja de St. Antholin, onde o puritano
Thomas Foxley (1640) estava pregando sobre “o dever dos servos em relação aos mestres”. Ao
avistar uma multidão de pessoas entrando na igreja, Kiffen decidiu reunir-se ao grupo. Como tem
sido a experiência de muitos sob a pregação ungida pelo Espírito da Palavra, Kiffen se
convenceu de que o sermão de Foxley fora dirigido de forma intencional a ele. Então, ele voltou
para casa, para seu mestre, com a determinação de “ouvir um pouco mais daquelas pessoas, a
quem chamavam de ‘ministros puritanos’”.100 Depois de ouvir, com frequência, vários
pregadores puritanos, inclusive John Davenport (1597–1670) e Lewis Du Moulin (1606–1680),
foi através da pregação do arminiano John Goodwin (ca. 1594–1665) que Deus, por fim, trouxe
Kiffen a Cristo.
Pouco tempo depois de sua conversão, Kiffen tornou-se membro de um grupo de jovens
zelosos. Esse grupo tinha por hábito participar de um culto de pregação matinal. Antes do culto,
que começava às seis da manhã, Kiffen e seus amigos, nas palavras de Kiffen:
Encontrávamo-nos uma hora antes do culto, para nos dedicar à oração, e comunicar uns aos outros qual experiência
havíamos recebido do Senhor; ou, então, para repetir algum sermão que tínhamos ouvido antes. Algum tempo depois,
também passamos a ler alguns trechos das Escrituras, e falávamos sobre o que agradava a Deus nos permitir; nisso, eu
encontrava uma vantagem muito grande e, aos poucos, fomos alcançando uma pequena medida de conhecimento. Eu
considerava o estudo das Escrituras muito agradável e prazeroso para mim.101

Como White assinalou, essa passagem mostra, de modo admirável, a forma segundo a qual
Kiffen foi teológica e espiritualmente preparado para liderar uma congregação batista calvinista
por quase sessenta anos. A exemplo da maior parte dos primeiros líderes batistas calvinistas,
Kiffen não contou com uma educação teológica formal.102 Ele se tornou hábil no conhecimento e
no uso das Escrituras porque primeiro ouvia regularmente a pregação da Palavra, depois passou a
compartilhar com seus companheiros o impacto dessa pregação em sua vida e, por fim, começou
a pregar sobre várias passagens das Escrituras, na medida em que o Senhor o capacitou para isso.
Durante a década de 1630, os puritanos dentro da Igreja da Inglaterra, como Kiffen, sofreram
grande pressão para alinhar seus pensamentos e comportamentos com as opiniões de William
Laud. Laud tornara-se arcebispo de Cantuária em 1633 e sua teologia tinha caráter fortemente
arminiano. Além disso, ele estava firmemente convencido de que o ritual da Igreja da Inglaterra,
com o uso de vestes por ministros, a ornamentação da mesa de comunhão e o uso do sinal da
cruz no serviço de batismo, contava com a plena aprovação de Deus. Laud procurou impor uma
uniformidade ao ritual e à doutrina na Igreja da Inglaterra, recusando-se a fazer qualquer
concessão à consciência individual. Mas, em vez de se conformar a esse padrão, um bom número
de indivíduos trocou a Inglaterra pelos Países Baixos ou a Nova Inglaterra. Outros, porém,
recusaram-se a abandonar sua terra natal, fundando ou se juntando àquilo que a Igreja da
Inglaterra entendia como “congregações ilegais”. No último grupo, estava Kiffen.

CONVICÇÕES BATISTAS
Quando, muitos anos depois, Kiffen escreveu A Sober Discourse of Right to Church-Communion
[Um discurso sóbrio do direito à comunhão eclesiástica], mencionou que, nesse período final da
década de 1630 e início dos anos 1640, ele havia consultado, de forma diligente, as Escrituras,
em busca “da vontade de Deus, para que eu pudesse conduzir, de maneira correta, o culto”.103
Essa busca nas Escrituras o levou a abandonar a igreja do estado em 1638 e juntar-se à
congregação independente que fora liderada por um tempo por Samuel Eaton. No entanto,
quando Kiffen se juntou a essa congregação, Eaton estava na prisão, onde viria a morrer no ano
seguinte, e a igreja estava sem pastor. Kiffen foi convidado a pregar para a congregação e, em
algum momento ao longo dos três ou quatro anos seguintes, ele foi escolhido como seu pastor.
Nesse período, Kiffen continuou a estudar a Palavra de Deus para obter orientação quanto à
constituição e à forma da Igreja. No outono de 1642, ele e a congregação haviam chegado a uma
posição decididamente batista.104 Como escreveu em seu Sober Discourse, ele chegou à
convicção de que a “maneira mais segura” de seguir em sua vida cristã seria trilhar “os Passos do
Rebanho, a saber, essa ordem estabelecida por Cristo e seus apóstolos, e praticada pelos cristãos
primitivos em sua época. Segundo descobri, essa ordem era: após a Conversão, eles eram
Batizados, adicionados à Igreja e Mantidos na Doutrina dos Apóstolos, na Comunhão, no Partir
do Pão e na Oração; de acordo com isso, pensei que eu mesmo me sentia na obrigação de ser
adaptável”.105 Esse texto, ao lado do outro acima citado, sobre os primeiros passos no
desenvolvimento espiritual de Kiffen, ilustra bem o que B. A. Ramsbottom (um autor inglês que
escreveu amplamente sobre figuras da história batista calvinista) sustentava ser a chave para a
vida de Kiffen, ou seja, seu anseio sério por seguir as Escrituras a qualquer custo.106
Como já vimos, em 1644 havia sete congregações batistas calvinistas na Inglaterra, inclusive a
pastoreada por Kiffen. Naquele ano, como discutimos no Capítulo 3, essas igrejas elaboraram a
Primeira Confissão de Fé de Londres, na qual Kiffen parece ter desempenhado papel
significativo. Em face da postura fechada em relação à comunhão, posteriormente adotada por
Kiffen, é digno de destaque que a edição de 1644 dessa Confissão não traz nenhuma declaração
explícita sobre a relação entre o batismo e a Ceia do Senhor. A segunda edição, contudo,
prescrevia que apenas aqueles que haviam sido batizados poderiam participar da Mesa do
Senhor.107

APOIO A OLIVER CROMWELL


O final da década de 1640 e o início da década de 1650 assistiram às várias reimpressões da
Confissão, uma clara evidência do crescimento da causa batista calvinista. Kiffen desempenhou
papel proeminente nesse crescimento, ao planejar a plantação de novas igrejas e associações,
dando-lhes aconselhamento e consultoria, e garantindo, de forma geral, estabilidade para aquela
causa incipiente.108 Foi um período tumultuado, no qual a mão firme de homens como Kiffen se
fazia bastante necessária, pois essa foi a época das Guerras Civis Inglesas, durante as quais o rei
Carlos I (que reinou no período de 1625–1649) foi executado e um governo republicano foi
criado.
O período seguinte, entre a execução de Carlos e a restauração da monarquia, em 1660,
tornou-se conhecido como “Commonwealth”. À frente desse governo, como líder da maior parte
desse período, estava Oliver Cromwell (1599–1658), de quem John Maidstone, seu escudeiro,
certa vez comentou: “Uma alma maior raramente habita em uma casa de barro”.109 Um dos
homens mais tolerantes do século XVII, Cromwell via as guerras civis inglesas principalmente
como uma luta por liberdade religiosa. Ele desejava criar uma Inglaterra onde a liberdade de
consciência fosse reconhecida como um “direito fundamental” e “natural”.110 Ele testemunhara
homens e mulheres sendo forçados pelo Arcebispo Laud a deixar a Inglaterra para o “vasto
deserto uivante na Nova Inglaterra”, com o propósito de desfrutar a liberdade religiosa, e, como
resultado, ele estava determinado a impedir que perseguições religiosas dessa natureza voltassem
a ocorrer. De acordo com o outrora batista Roger Williams (1603–1683), em determinada
ocasião, Cromwell sustentou, em uma discussão pública, “com muito zelo cristão e afeto (...),
que ele preferia que o maometismo, ou seja, o maometanismo, fosse permitido entre nós a
admitir que um dos filhos de Deus fosse perseguido”.111
Kiffen e muitos de seus companheiros batistas calvinistas eram defensores ferrenhos do
governo cromwelliano, e isso por lealdade ao que eles viam como autoridades ordenadas por
Deus, por satisfação com a política de tolerância de Cromwell e por um medo profundo da
anarquia. Na verdade, Kiffen sentou-se como membro do Parlamento por Middlesex em 1656.
No entanto, havia um bom número de batistas calvinistas, especialmente alguns no exército
irlandês, que se mostravam bastante críticos a Cromwell. Kiffen, John Spilsbury e Joseph
Sansom escreveram aos seus irmãos batistas irlandeses em janeiro de 1654, instando-os a
“consultar, com essa régua abençoada da verdade, que vocês professam ser seu guia, para que a
voz não expresse outra coisa aos cristãos senão o fato de que estamos sujeitos a todos os poderes
civis, que provêm de Deus, e devemos orar por tudo que está em posição de autoridade, pois, sob
ela, somos capazes de viver uma vida tranquila e devota, em toda a piedade e honestidade”.
OLIVER CROMWELL (1599–1658]

Essa carta de Kiffen e Spilsbury foi especialmente crítica ao que se chamou de movimento da
Quinta Monarquia, um grupo de indivíduos que acreditavam que as profecias de Daniel 2 seriam
literalmente cumpridas em sua vida e que o reino milenar de Cristo estava prestes a ser
estabelecido. Enquanto uma ala do movimento da Quinta Monarquia era moderada, não violenta,
incluindo homens como Henry Jessey — “estudantes inofensivos da Bíblia” —, outras tinham
tendências revolucionárias bem-definidas e estavam convencidas de que deveriam desempenhar
um papel ativo, até mesmo violento, no cumprimento das profecias de Daniel 2. Buscando
neutralizar a influência dos integrantes desse movimento sobre os batistas irlandeses, estes
últimos foram instados por Kiffen, Spilsbury e Sansom a refletir sobre o fato de que os batistas
calvinistas nas Ilhas Britânicas haviam tido uma oportunidade maravilhosa de “dar um
testemunho público em face do mundo, de que nossos líderes não são, em essência, da forma
como têm sido julgados pela maior parte dos homens — ou seja, temos recusado sua autoridade
e destruído toda a magistratura”.112
Um momento especialmente crítico veio em maio de 1658, quando, na reunião da Associação
Ocidental das Igrejas Batistas em Dorchester, alguns indivíduos simpáticos à política
potencialmente subversiva do movimento da Quinta Monarquia buscaram convencer os
representantes da Associação a defender publicamente os ideais e os objetivos do partido desse
movimento. Kiffen, que estava presente com outros representantes das igrejas em Londres,
convenceu, com êxito, a Associação Ocidental a não se comprometer nesse sentido.113 Como a
carta enviada por Kiffen aos batistas irlandeses havia destacado, a adesão aberta e generalizada a
essas opiniões por parte dos batistas calvinistas teria repercussões prejudiciais e sérias para seu
movimento como um todo.
Também ao longo desses anos, Kiffen mostrou-se bastante engajado como negociante no
comércio de tecidos. Tão bem-sucedidos foram seus negócios que ele logo alcançou grande
riqueza. Apesar dessa rápida ascensão da pobreza para a riqueza, Kiffen, como White observa,
“parece haver permanecido imaculado”.114 Além disso, “a riqueza que ele adquiriu no mundo dos
negócios lhe conferiu uma posição que, nos dias sombrios e tumultuados de perseguição, ele foi
capaz de usar para proteger e defender seus irmãos mais pobres”.115 Esses dias de perseguição
começaram com a restauração da monarquia na pessoa de Carlos II (que reinou no período de
1660–1685), o filho mais velho sobrevivente de Carlos I, que vivia em exílio no continente desde
1651.

KIFFEN & A CASA DE STUART


Após a morte de Oliver Cromwell, em 1658, como nenhum líder de estatura semelhante surgiu,
parecia, a algumas das figuras-chave do exército, que a Inglaterra estava escor-
regando rumo à anarquia. Portanto, tomou-se a decisão de convidar Carlos II para voltar à
Inglaterra, com vistas a assumir o trono. Carlos havia prometido tolerância religiosa antes de sua
restauração ao trono, mas, quase imediatamente após ter assumido o poder, as congregações
independentes começaram a experimentar o fogo da perseguição e, durante boa parte das três
décadas que se seguiram, a igreja seria “a igreja sob a cruz”. Kiffen foi preso várias vezes nos
dois ou três anos após a restauração de Carlos II, mas apenas por períodos muito pequenos. As
bênçãos da liberdade e da influência que Deus dera a Kiffen não estavam perdidas para ele. Em
um bom número de vezes, ele usou sua posição e riqueza para intervir em nome de
companheiros dissidentes. Por exemplo, em 1664, ele resgatou doze batistas gerais que haviam
sido condenados à morte por participação em uma reunião clandestina. Quando Kiffen foi
informado da situação desses indivíduos, foi diretamente ao rei e obteve dele um indulto para
todos eles.116
Na verdade, parece que Kiffen se dava bem com o rei. De acordo com uma história que chegou
a nós de Thomas Crosby (1683–ca. 1751), o historiador batista do século XVIII, Carlos II
precisara, em certa ocasião, de uma grande soma em dinheiro. Ele, então, pediu a Kiffen que lhe
concedesse um empréstimo de quarenta mil libras! Ao que parece, Kiffen estava ciente de que, se
anuísse com um empréstimo desse porte ao rei, havia muita probabilidade de que a quantia nunca
viesse a ser paga. Assim, ele ofereceu ao rei uma doação de dez mil libras, a qual o rei aceitou
com prazer. Depois, quando contava a história, Kiffen dizia, de forma jocosa, que, ao agir dessa
forma, economizara trinta mil libras!117
No entanto, a grande riqueza de Kiffen lhe foi pouco proveitosa durante o que se revelou um
evento profundamente angustiante para ele nos últimos anos desse período de perseguição. Após
a morte de Carlos II, em 1685, seu irmão, o católico romano James II [ou Jaime II] (que reinou
no período de 1685–1688), subiu ao trono. No entanto, havia um bom número de pessoas que
consideravam o Duque de Monmouth, protestante e filho ilegítimo de Carlos II, o verdadeiro
herdeiro. Então, no verão de 1685, foi fomentada, a favor do Duque, uma rebelião, a qual,
contudo, acabou sendo arruinada por James II — ao custo de um grande derramamento de
sangue. Entre os que apoiavam a candidatura do Duque ao poder, estavam dois netos de Kiffen:
William e Benjamin Hewling. Ambos foram presos após o fracasso da rebelião, julgados e
executados. Kiffen tentou, sem êxito, obter a liberdade dos netos em troca de três mil libras por
sua absolvição. Em suas palavras: “Perdemos a porta certa, pois o senhor chefe da justiça
[Jefferies], achando que haviam sido feitos acordos com outras pessoas, e que pouca atenção fora
dispensada a ele, foi o mais propenso a usar todo o tipo de crueldade com os pobres prisioneiros,
de modo que poucos escaparam”.118 Jefferies, que sentenciou os Hewling à morte, disse a
William Hewling, durante seu julgamento, “que seu avô também merecia a morte que ele próprio
provavelmente sofreria”.119
No entanto, três anos depois, Jefferies foi preso e James II partiu para o exílio no continente,
na medida em que o regime de James caiu, antes da Gloriosa Revolução de 1688. Essa
revolução, que colocaria William de Orange no trono, como William III [Guilherme III],120
representou o início de uma nova era para dissidentes como Kiffen. Em 1689, William III
autorizou a aprovação do Ato de Tolerância, que concedeu aos dissidentes liberdade de culto e
imunidade de perseguição, embora certas discussões civis contra eles tenham permanecido em
vigor.

KIFFEN E A QUESTÃO
DA COMUNHÃO FECHADA
Kiffen, ao lado de outros líderes batistas em Londres, aproveitando a oportunidade dessa
mudança de ares, deu-se o luxo de convocar, em julho de 1689, uma assembleia nacional de
batistas calvinistas, a primeira do gênero. Representantes de mais de cem igrejas se reuniram.
Entre outras coisas, eles agradeceram a Deus por “haver levantado nosso atual Rei William [Rei
Guilherme], para ser um instrumento abençoado, em sua Mão, para nos livrar do Papado e do
Poder Arbitrário”.121 E aprovaram a adoção de uma confissão de fé, conhecida como a Segunda
Confissão de Fé de Londres, que havia sido elaborada originalmente em 1677, por William
Collins (?–1702) e Nehemiah Coxe (?–1689), copastores da Igreja Petty France, em Londres.
Essa Confissão será discutida em mais detalhes nos capítulos 7 e 8.
Aqui, é preciso observar um ponto relevante: o fato de a comunhão fechada, um requisito na
segunda edição da Primeira Confissão de Londres, estar ausente da Segunda Confissão de
Londres. Um apêndice anexado à Confissão quando foi emitida pela primeira vez, em 1677,
declarava o seguinte:
Não somos insensíveis ao fato de que, quanto à ordem da casa de Deus, e toda a comunhão nela, há algumas coisas em
que nós (assim como outros) não temos um acordo completo entre nós mesmos, como, por exemplo, o princípio
conhecido e o estado das consciências de diversos de nós que concordaram nesta Confissão é tal que não podemos
celebrar a comunhão eclesiástica com quaisquer outros senão os crentes batizados e as igrejas constituídas dos tais; no
entanto, alguns outros de nós têm uma liberdade e uma concessão maiores em nossos espíritos dessa forma; e, portanto,
omitimos, propositalmente, a menção a coisas dessa natureza, para que concordássemos, ao dar esta evidência de nosso
acordo, tanto entre nós mesmos como com outros bons cristãos, nesses artigos importantes da religião cristã,
principalmente insistidos por nós.122
WILLIAM III (1650–1702)

Uma das razões para essa diferença entre as duas confissões é que Nehemiah Coxe, que estava
intimamente envolvido na elaboração da Segunda Confissão de Londres, fora chamado ao
ministério em 1672 pela comunhão aberta, igreja de membros abertos em Bedford que John
Bunyan (1628–1688) pastoreou de 1672 até sua morte, dezesseis anos depois.123 Além disso, a
Igreja Petty France em Londres, que Coxe, mais tarde, viria a pastorear, recebia regularmente em
sua membresia crentes de igrejas batistas calvinistas de comunhão aberta.124 Ainda mais
significativo foi o fato de que, em 1677, tanto as igrejas batistas calvinistas abertas como as
fechadas haviam experimentado dezessete anos de perseguição. Nas palavras de Robert W.
Oliver, “a desunião era um luxo que eles mal podiam pagar”.125
A Assembleia na qual a Segunda Confissão de Londres foi adotada também aprovou uma
resolução no sentido de que as igrejas deveriam ter a liberdade de seguir seu próprio julgamento
quando se tratava de comunhão aberta ou fechada. Essa resolução diz o seguinte: “Nas coisas em
que uma igreja difere de outra igreja em seus princípios ou práticas, a respeito da comunhão, (...)
não podemos, não devemos impor o assunto a nenhuma igreja em particular, mas deixar a cada
igreja sua própria liberdade de caminhar da forma como recebida do Senhor”.126 A. C.
Underwood e Joshua Thompson, ambos historiadores batistas do século XX, entendiam que essa
resolução significava que, embora a comunhão e o reconhecimento fossem estendidos às igrejas
de comunhão aberta com membresia fechada, não deveriam ser estendidos às igrejas que, como a
de Bunyan, mantinham comunhão aberta e membresia aberta.127 No entanto, como White
apontou, havia pelo menos uma igreja de membresia aberta que enviara um representante para
essa Assembleia Batista Calvinista em 1689: a Igreja Broadmead, em Bristol.128 O batismo do
crente e uma profissão pessoal de fé diante da igreja eram os requisitos normais para a admissão
à membresia dessa igreja, mas, eventualmente, alguns foram recebidos entre a membresia com
base em um testemunho pessoal.129
O aspecto significativo acerca dessas declarações relativas à comunhão aberta e à comunhão
fechada é que, nos anos 1670 e início dos anos 1680, Kiffen estivera envolvido em uma longa
controvérsia sobre essa mesma questão com ninguém menos que John Bunyan. Na verdade, essa
controvérsia atraíra Kiffen para seu trabalho mais importante: A Sober Discourse of Right to
Church-Communion [Um discurso sóbrio do direito à comunhão eclesiástica] (1681), uma
resposta estudada e sincera a uma série de tratados de John Bunyan em favor da comunhão
aberta e da adesão aberta. Embora, atualmente, Bunyan seja um dos mais célebres autores
cristãos do século XVII, em seus próprios dias ele teve pouca influência entre seus companheiros
batistas.130 Seu intenso compromisso com a comunhão aberta e a adesão aberta o deixou sem
sintonia com a maior parte dos batistas calvinistas do século XVII, que se mostravam favoráveis
à comunhão fechada e à membresia fechada. Em sua obra Sober Discurse, Kiffen caracteriza-se
por uma “lógica clara e uma apresentação límpida”; esse discurso, sem dúvida, dirigia-se a
Bunyan, embora o pastor de Bedford nunca seja nomeado de forma explícita na obra. Sob a
perspectiva de Kiffen, a prática de comunhão aberta e adesão aberta “destrói a Ordem e contradiz
categoricamente a prática dos cristãos primitivos”. Para ele, a “Ordem certa do Evangelho” está
estabelecida em Atos 2.41-42, passagem na qual os crentes são, em primeiro lugar, batizados,
depois “recebidos na comunhão da Igreja” e, só então, compartilhavam a Mesa do Senhor.131
Embora, oito anos depois, Kiffen tenha publicado essa defesa da comunhão fechada e da adesão
fechada, ele assinou a Segunda Confissão de Londres, o que indica que, em 1689, o líder batista
de Londres estava claramente disposto a divergir sobre o assunto.

ANOS FINAIS
Nos últimos anos de Kiffen, ele continuou ativo em seu pastorado na Igreja Devonshire Square e
na vida dos ingleses batistas calvinistas como um todo. Por exemplo, foi junto a Kiffen que duas
igrejas batistas calvinistas buscaram ajuda em ocasiões distintas, quando estavam em desacordo
entre si. Como White observa, “talvez não possa haver maior testemunho da estima deles!”132
No entanto, esses também foram anos trágicos no lar de Kiffen. A essa altura, três filhos de
Kiffen, bem como sua primeira esposa, Hanna, já haviam morrido: William, seu primogênito,
aos vinte anos de idade, em 1669; um segundo filho em Veneza, que Kiffen afirmava ter sido
envenenado por um padre católico romano;133 uma filha, Priscilla, em 1679; e Hanna, sua esposa,
em 1682. Respeitando a vida e a morte de sua esposa, Kiffen escreveria mais tarde:
Agradou ao Senhor levar para si mesmo minha querida e fiel esposa, com quem vivi por quase quarenta e quatro anos;
cujas ternura por mim e fidelidade a Deus eram tais que não posso expressar, pois ela constantemente simpatizava
comigo em todas as minhas aflições. Posso realmente dizer, nunca a ouvi pronunciar o menor descontentamento sob
todas as várias providências que atendia a mim ou a ela; ela viu a mão de Deus em todas as nossas tristezas, de modo a
me encorajar constantemente nos caminhos de Deus: sua morte foi a maior tristeza que já conheci no mundo.134

No entanto, a segunda esposa de Kiffen, Sarah, fora formada de um tecido diferente. Em 2 de


março de 1698, ela foi acusada de uma série de delitos pela Igreja Devonshire Square. Após
averiguação, ela foi encontrada, entre outras coisas, fraudando seu marido em duzentos pesos e
fazendo falsas acusações a seu respeito. Quando Sarah recusou-se a comparecer diante da
congregação, foi suspensa da comunhão em 24 de abril de 1698.135 Para adicionar ainda mais
tristeza à sua situação, um terceiro filho, Harry, faleceu em 8 de dezembro de 1698. Sem dúvida,
esses eventos devem ter causado profunda angústia em Kiffen, mas ele não vacilou em seu
compromisso com aquele a quem havia servido pela maior parte de sua vida. Como ele escreveu
em 1693, ao final de suas memórias: “O mundo está cheio de confusões; os últimos dias estão
sobre nós; os sinais dos tempos são bastante visíveis; a iniquidade é abundante, e o amor de
muitos na religião está esfriando. Deus está, por sua providência, sacudindo a terra sob nossos
pés; não há fundação certa para descanso e paz, mas apenas em Jesus Cristo”.136
Ele dormiu em Cristo em 29 de dezembro de 1701 e foi sepultado em Bunhill Fields, e sua
vida de fato foi a de “um amante da verdade e da paz”, a autodescrição que ele havia colocado no
frontispício de sua obra, A Sober Discourse of Right to Church-Communion [Um discurso sóbrio
do direito à comunhão eclesiástica].
Bunhill Fields, onde William Kiffen foi sepultado com Hanserd Knollys e John Bunyan. Só o túmulo de Bunyan é identificável
hoje.
HANSERD KNOLLYS (1599–1691)

NOS ESTUDOS ACADÊMICOS EM GERAL, ENCONTRAM-SE AS DUAS GRAFIAS: WILLIAM KIFFIN E WILLIAM
KIFFEN. NESTA OBRA, O AUTOR OPTOU POR ADOTAR A GRAFIA KIFFEN NA SEGUNDA EDIÇÃO, O QUE ORA
SE RESPEITA E ADOTA. (N.T.)

95 The Life of Mr. William Kiffin (London, 1833), xi, ii. Essa obra é uma versão editada e anotada da autobiografia de Kiffen.
96 “William Kiffin — Baptist Pioneer and Citizen of London”, Baptist History and Heritage, 2, n. 2 (julho de 1967), 91. Ao
longo dos anos, White produziu uma série de fragmentos brihantes sobre a vida e as condições de Kiffen, pois ele vinha
preparando uma biografia dele (“William Kiffin”, 91, n. 1). Essa biografia, contudo, nunca veio a público. Recentemente, B. A.
Ramsbottom produziu uma biografia muito popular e acessível de Kiffen: Stranger Than Fiction. The Life of William Kiffin
(Harpenden, Hertfordshire: Gospel Standard Trust Publications, 1989). Para uma revisão desse livro, veja Michael A. G. Haykin,
“The Life of William Kiffin”, Reformation Today, 119 (janeiro e fevereiro de 1991), 23-26. Para fontes dessa biografia de Kiffen,
os volumes que reúnem ensaios organizados por Larry J. Kreitzer revelam-se essenciais. Veja, de sua autoria, William Kiffen and
His World (Oxford: Centre for Baptist History and Heritage, 2010), 5 vols.
97 W. J. McGlothlin, Baptist Confessions of Faith (Filadélfia: American Baptist Publication Society, 1911), 219.
98 White, “William Kiffin”, 94. Joseph Ivimey afirma que Kiffen foi aprendiz de John Lilburne (ca. 1615–1657), mais tarde um
dos líderes de um grupo radical político conhecido como “Levellers” (A History of the English Baptists [London, 1811], I, 147,
164). Como White aponta, isso é claramente impossível, pois Lilburne tinha aproximadamente a mesma idade de Kiffen; veja de
sua autoria “William Kiffin”, 94, n. 11.
99 Ivimey, Life of Mr. William Kiffin, 2.
100 Ivimey, Life of Mr. William Kiffin, 2-3.
101 Citado em White, “William Kiffin”, 94.
102 De fato, nos primeiros anos do ministério de Kiffen, parece que ele estava ao lado daqueles puritanos que, de forma bastante
estridente, rejeitaram toda a instrução teológica formal. Em 1655, por exemplo, ele redigiu um Posfácio para a obra Samuel How
The Sufficiencie of the Spirits Teaching without Humane Learning, sustentando que o aprendizado humano não auxilia na
compreensão da vontade de Deus. How estava convencido de que, entre dois crentes — um que aprendeu e outro que não
aprendeu —, o último deve ser preferível para o exercício do ministério vocacional, pois “a sabedoria deste mundo é tolice com
Deus”. Por volta de 1689, contudo, Kiffen mostrava-se favorável à recomendação de “um conhecimento competente das línguas
hebraicas, gregas e latinas” para que se pastoreassem as igrejas batistas calvinistas, de modo que esses pastores estariam mais
bem-equipados para defender “a verdade em face dos oponentes” (Ivimey, History, I, 500). Ao mesmo tempo, deve-se notar, ele
continuava a afirmar com razão que, em última análise, “as graças e os dons do Espírito Santo” são “suficientes para a criação e a
continuidade de um ministério honrado nas igrejas” (Ivimey, History, I, 499).
103 “To the Christian Reader” em A Sober Discourse of Right to Church-Communion (London, 1681).
104 Para uma discussão mais detalhada acerca do caminho que conduziu Kiffen à posição batista, veja White, “William Kiffin”,
95-96; idem, “How did William Kiffin join the Baptists?”, The Baptist Quarterly, 23 (1969–1970), 201-207.
105 “To the Christian Reader.”
106 Stranger Than Fiction, 18, 102. Em um prefácio de apresentação à obra Baptism discovered plainly and faithfully according
to the word of God, de John Norcott (1621–1676), William Kiffen disse sobre Norcott: “Ele norteou toda a sua trajetória pela
bússola da palavra, fazendo da Escritura um preceito e um exemplo de suas regras constantes em matéria de religião. As opiniões
ou as interpretações de outros homens não eram o padrão que o guiava; mas, através da assistência do Espírito Santo, ele
trabalhou arduamente para descobrir o que o próprio Senhor havia dito em sua palavra” (citado em Joseph Ivimey, A History of
the English Baptists [London: B. J. Holdsworth, 1823], III, 300). Essa declaração de Kiffen em relação a Norcott revela tanto
sobre as próprias prioridades de Kiffen como sobre Norcott. Para Norcott, veja o Capítulo 6, a seguir.
107 First London Confession of Faith 39 (The First London Confession of Faith, 1646 Edition [Repr. Rochester, New York:
Backus Book Publishers, 1981], 14).
108 Para mais detalhes acerca do papel de Kiffen nessa matéria, veja especialmente White, “William Kiffin”, 97.
109 Citado em Antonia Fraser, Cromwell: Our Chief of Men (1973 ed.; repr. London: Mandarin Paperbacks, 1989), 706.
110 Veja seu discurso diante do Parlamento em 12 de setembro de 1654 (Speeches of Oliver Cromwell, org. por Ivan Roots
[London: J. M. Dent & Sons Ltd., 1989], 51-52). Sobre sua tolerância, veja especialmente Geoffrey F. Nuttall, The Holy Spirit in
Puritan Faith and Experience (2nd ed.; Oxford: Basil Blackwell, 1947), 126-133; H. F. Lovell Cocks, The Religious Life of
Oliver Cromwell (London: Independent Press Ltd., 1960), 45-63; Gordon Murray, “Oliver Cromwell —The Father of
Toleration?”, em Divisions and Dissensions. Papers read at the 1987 Westminster Conference ([London]: The Westminster
Conference, 1987), 38-56.
111 The Fourth Paper, Presented by Maior Butler, to the Honourable Committee of Parliament, for the Propagating the Gospel
of Christ Jesus (London: G. Calvert, 1652). Ao contrário da tolerância religiosa praticada nas nações ocidentais de hoje, fruto da
ampla indiferença em relação às questões de religião, o compromisso de Cromwell com essa tolerância era pautado em
convicções e princípios. Para uma defesa irrefutável da política congregacional do século XVII como o principal leito para a
tolerância religiosa posterior, veja J. Waye Baker, “Church, State, and Toleration: John Locke and Calvin’s Heirs in England,
1644–1689” em W. Fred Graham (org.), Later Calvinism: International Perspectives (Kirksville, Missouri: Sixteenth Century
Journal Publishers, Inc., 1994), 525-543.
112 Carta de William Kiffen, John Spilsbury e Joseph Sansom, 20 de janeiro de 1654, em John Nickolls Jr. (org.), Original
Letters and Papers of State Addressed to Oliver Cromwell (London, 1743), 159-160. Vale ressaltar que Kiffen, segundo as
palavras de Richard D. Land, era “um grande defensor de Cromwell” (“Doctrinal Controversies of English Particular Baptists
(1644–1691) as Illustrated by the Career and Writings of Thomas Collier” [tese D. Phil, Oxford University, 1979], 257). Sobre as
relações entre os batistas calvinistas e o movimento da Quinta Monarquia, veja especialmente Louise Fargo Brown, The Political
Activities of the Baptists and Fifth Monarchy Men In England During The Interregnum (New York: Burt Franklin, 1911); B. R.
White, The English Baptists of the Seventeenth Century (London: The Baptist Historical Society, 1983), 84-87, 99-101; Marilyn
A. Hartman, “‘For Christ and the People: The Ideology of the Good Old Cause, 1653–1660” (tese Ph.D., Indiana University,
1977), 82-91. As palavras “estudantes inofensivos da Bíblia” são aquelas de White (English Baptists, 85).
113 Para uma discussão mais aprofundada sobre esse evento, veja White, “William Kiffin”, 97-98.
114 White, “William Kiffin”, 126.
115 White, “William Kiffin”, 91.
116 Para um relato dessa história, veja Ivimey, History, I, 336-338.
117 The History of the English Baptists (London, 1740), III, 4.
118 Ivimey, Life, 63.
119 Ivimey, Life, 64. Para o relato completo do julgamento dos Hewling e da forma cristã como se comportaram no momento de
suas respectivas mortes, veja Ivimey, Life, 62-84. White descreve Jefferies como “o indescritível juiz Jefferies” (“William
Kiffin”, 102).
120 Com frequência, William III [Guilherme III] é retratado pelos historiadores como um calvinista comprometido. No entanto,
em um estudo de seu compromisso religioso, Jonathan I. Israel sustenta que a religiosidade pessoal de William era
“definitivamente tépida”, embora, em sua juventude, ele tivesse ficado sob a tutela de Cornelius Trigland, um pilar do calvinismo
holandês [“William III and Tolerance”, em Ole Peter Grell, Jonathan I. Israel e Nicholas Tyacke (orgs.), From Persecution to
Toleration. The Glorious Revolution and Religion in England (Oxford: Clarendon Press, 1991), 129-170].
121 Citado em Ivimey, History, 336.
122 Second London Confession of Faith, Apêndice 4 (McGlothlin, Baptist Confessions, 287).
123 Robert W. Oliver, “Baptist Confession Making 1644 and 1689” (artigo apresentado à Strict Baptist Historical Society, em 17
de março de 1989), 17.
124 T. E. Dowley, “A London Congregation during the Great Persecution: Petty France Particular Baptist Church, 1641–1688”,
The Baptist Quarterly, 27 (1977–1978), 233-234.
125 Oliver, “Baptist Confession Making”, 20.
126 Citado em Ivimey, History, I, 490.
127 A. C. Underwood, A History of the English Baptists (London: The Baptist Union Publication Dept. (Kingsgate Press), 1947),
129; Joshua Thompson, “The Communion Controversy and Irish Baptists”, Irish Baptist Historical Society Journal, 20 (1987–
1988), 29-30.
128 “Open and Closed Membership among English and Welsh Baptists”, The Baptist Quarterly, 24 (1971–1972), 332; idem,
English Baptists, 9.
129 The Records of a Church of Christ in Bristol, 1640–1687 (org. Roger Hayden [Bristol: Bristol Record Society, 1974], 52-53).
A relação de Kiffen com a Igreja Broadmead parece ter sido cordial. Veja White, English Baptists, 112.
130 Sobre a questão controvertida, em relação a Bunyan ser ou não ser realmente um batista, veja Thomas Armitage, A History of
the Baptists (New York: Bryan, Taylor, & Co., 1887), 529-539; John Brown, John Bunyan (1628–1688): His Life, Times, and
Work, revisado por Frank Mott Harrison (London/Glasgow/Birmingham: The Hulbert Publishing Co., 1928), 221-225, 236-238;
Joseph D. Ban, “Was John Bunyan a Baptist? A Case-Study in Historiography”, The Baptist Quarterly, 30 (1983–1984), 367-
376. Esse autor concordaria com a avaliação de Richard L. Greaves, ao afirmar que “Bunyan é considerado, acertadamente, um
membro batista aberto” (“Conscience, Liberty, and the Spirit: Bunyan and Nonconformity” em N.H. Keeble [org.], John Bunyan:
Conventicle and Parnassus. Tercentenary Essays [Oxford: Clarendon Press, 1988], 35). A esse respeito, veja também Kenneth
Dix, John Bunyan: Puritan Pastor ([Dunstable, Bedfordshire]: The Fauconberg Press for The Strict Baptist Historical Society,
1978), 8.
131 Sober Discourse, 16-17. A descrição desse tratado é extraída de T. L. Underwood, “’It pleased me much to contend’: John
Bunyan as Controversialist”, Church History, 57 (1988), 468.
132 “William Kiffin”, 103.
133 Ivimey, Life, 57.
134 Ivimey, Life, 58.
135 Murdina D. MacDonald, “London Calvinistic Baptists 1689–1727: tensions within a Dissenting community under
Toleration” (D. Phil. tese, Oxford University, 1982), 181.
136 Ivimey, Life, 94-95.
5
Hanserd Knollys
(1599–1691)
“AQUELE VELHO DISCÍPULO
DE JESUS CRISTO”
anserd Knollys foi o único líder batista calvinista importante, além de William Kiffen, que
H vivenciou os dias dourados entre 1640 e 1650 e que viveu para ver a tolerância ampliada
por Guilherme III a eles e aos outros não conformistas em 1688, após terem sido
perseguidos por quase três décadas.137 Ao contrário de Kiffen e de seus companheiros batistas,
Knollys tinha formação universitária. Ele havia estudado em Katherine Hall, na Universidade de
Cambridge, onde, segundo suas palavras, “eu orava diariamente, ouvia todos os ministros
piedosos que podia, lia e buscava ler as Escrituras Sagradas e bons livros, e estava familiarizado
com cristãos graciosos, então chamados puritanos”.138 Quando saiu de Cambridge, Knollys foi
ordenado e nomeado ministro da igreja paroquial em Humberstone, Lincolnshire.139 No entanto,
Knollys, em 1631, viu-se compelido a renunciar a essa responsabilidade, pois, entre outras
coisas, ele não podia mais usar o sinal da cruz no batismo ou continuar “admitindo pessoas
perversas para a Ceia do Senhor”.140
Em 1635, Knollys havia rompido por completo com a Igreja da Inglaterra, deixando a
Inglaterra rumo à América. No entanto, ele teve problemas com os congregacionistas da Nova
Inglaterra e, no outono de 1641, decidiu voltar para a Inglaterra. Dentro de três anos, ele passava
a adotar o batismo dos crentes e a se identificar com a nova causa batista calvinista centrada em
Londres. A identificação de Knollys com os batistas calvinistas o levou, inicialmente, a uma
controvertida turnê de pregação em Suffolk, durante a qual, em uma ocasião, uma “multidão
rude” o impediu de pregar, atirando-lhe pedras enquanto ele estava no púlpito.141 Foi também
durante essa turnê de pregação que ele proferiu o sermão que, posteriormente, viria a publicar
como Christ Exalted [Cristo Exaltado], um excelente exemplo da espiritualidade centrada em
Cristo dos primeiros batistas calvinistas e que veremos com mais detalhes em breve. Essa turnê
de pregação foi seguida por algumas publicações que sustentavam as crenças batistas; por seu
envolvimento como patrono da causa batista em uma série de debates formais; e por sua
assinatura na segunda edição de A Primeira Confissão de Londres, publicada em 1646.
Knollys assinou essa Confissão como o pastor de uma importante congregação londrina —
uma congregação que pode ter contado com mais de mil pessoas chegando para ouvir suas
pregações no final dos anos 1640 e nos anos 1650.142 Ao longo desses anos, no entanto, Knollys
foi ativo não apenas na promoção da causa batista em Londres, mas também na busca por
estabelecer obras batistas em outras áreas da Inglaterra e no País de Gales. Como já mencionado,
esses anos foram uma fase de colheita para os batistas calvinistas. Aproveitando a tolerância
religiosa estendida a eles por Oliver Cromwell, eles foram capazes de plantar cerca de cento e
trinta igrejas nessas duas décadas,143 e Knollys desempenhou papel-chave nessa expansão.
KNOLLYS E OS SEEKERS
Ao defender a causa batista, Knollys teve de lidar com os ataques de um grupo amorfo
conhecido como os “seekers que floresceu durante as décadas de 1640 e 1650. Os seekers,
como aponta J. F. McGregor, consideravam, como sinal de uma verdadeira igreja de Cristo, “sua
posse da graça dada aos apóstolos e demonstrada por meio de milagres”. Assim, como nenhuma
das congregações puritanas alegava estar em posse de tais dons carismáticos, os seekers sentiram
que tinham de se retirar de seu meio e esperar pelo que acreditavam ser uma nova dispensação
divina.144
William Erbery (1604–1654),145 por exemplo, que começara a carreira como um vigário
puritano em Cardiff e acabou como “o defensor dos seekers”, argumentava que ele e seus
contemporâneos estavam vivendo em uma era que se caracterizava pela ausência do Espírito de
Deus que dá vida. O Espírito se havia retirado da igreja após os dias dos apóstolos, em virtude
dos modos apóstatas da igreja. Devido a essa ausência do Espírito e de seus dons carismáticos,
qualquer tentativa de reunir igrejas com base no que o Novo Testamento tem a dizer sobre a
igreja local e suas ordenanças estava fadada ao fracasso. Com base nessa perspectiva, Erbery
julgava os batistas calvinistas muito iludidos em sua tentativa de estabelecer congregações do
Novo Testamento. Os apóstolos, afirmava ele, poderiam batizar os crentes porque “tinham a
manifestação do Espírito em múltiplos dons”, mas, perguntava ele, “qual manifestação do
Espírito alguma das igrejas tem hoje?”.146 De fato, sustentava Erbery, os crentes do Antigo
Testamento encontravam-se em um estado melhor do que os crentes de sua época: “A igreja, sob
a Lei, tinha alguns dons do Espírito manifestando-se em seu meio, como o dom da Profecia, o
dom da Cura, sim, o dom de levantar os mortos, com sinais e milagres; isso é mais do que as
igrejas atuais têm, pois contam com menos manifestação do Espírito do que a da Lei, portanto
[eles] devem estar mais em cativeiro na Babilônia, não tendo um dom do Espírito para prosseguir
em sua Igreja-Estado com a glória evangélica”.147 Assim, porque as congregações batistas
não têm a aparência do Espírito do alto, o Senhor vai rugir nelas, e fará cada uma delas tremer (...) porque aí elas
desobedecem ao comando de Cristo; eles dizem aos seus prosélitos, Você deve ser mergulhado, porque deve obedecer ao
comando de Cristo, eu digo, batizar, ou ser batizado, sem o batismo do Espírito sobre a Igreja, esse não é o comando de
Cristo, mas contra ele (...) Qual é o batismo do Espírito? É a presença do Espírito? Os Apóstolos tiveram a presença do
Espírito antes [Pentecostes]; É a abundância do Espírito? Cristo soprou sobre eles antes [Pentecostes], e disse: “Recebam
o Espírito Santo”, mas eles não foram batizados com o Espírito. O batismo do Espírito (como eu sempre disse) derrama
de todos os dons do Espírito sobre a Igreja (...) Portanto, batizar de forma evangélica sem o Batismo do Espírito é negar
o Espírito de Jesus.148

Uma forma ilustrativa da resposta batista calvinista à posição seeker está em The Shining of a
Flaming Fire in Zion, obra de autoria de Knollys publicada em 1646. Esse livro foi uma resposta
a um panfleto escrito pelo radical puritano John Saltmarsh (ca. 1612–1647), intitulado The
Smoke in the Temple (1646).149 Nesse panfleto, Saltmarsh, embora não fosse propriamente um
seeker, resumiu, de forma precisa, uma série de argumentos dos seekers contra os batistas. Entre
esses argumentos, os principais são aqueles observados por Erbery e acima citados.150
Em resposta a esses argumentos, Knollys sustentou que os batistas calvinistas não “se
julgavam capazes de batizar qualquer irmão, ou de administrar outras ordenanças, a menos que
tivessem recebido tais dons do Espírito, habilitando-os a pregar o Evangelho. E, com esses dons
sendo experimentados pela primeira vez, e conhecidos pela Igreja, esse Irmão é escolhido, e
nomeado para tanto pelo Sufrágio da Igreja”.151 Aqueles nomeados pelas congregações batistas
calvinistas para pregar e administrar as ordenanças não eram desprovidos de dons espirituais.
Verdade, eles não tinham a mesma variedade de dons espirituais de seus parceiros do primeiro
século. Mas Knollys continua a enfatizar: “Tais dons e milagres [extraordinários] serviram, sim,
para trazer a Palavra do Evangelho ao mundo e para glorificar a primeira vinda de Cristo em
carne e osso, e não para depois, Hebreus 2.3, 4; João 20.29, 30, 31”.152 Knollys não considerava
os dons milagrosos da igreja do primeiro século vitais para a vida da igreja em todas as eras.
Esses dons foram concedidos para iluminar a entrada do evangelho no cenário histórico e para
adornar o primeiro advento de Cristo. Em suporte bíblico, ele citou dois textos: Hebreus 2.3-4,
que afirma claramente o papel desempenhado pelos dons espirituais concedidos no início da
igreja, e João 20.29-31, que também destaca o papel de confirmação dos milagres.
Essa linha argumentativa não era nova; ele voltava a reformados como Martin Bucer (1491–
1551) e João Calvino.153 A propósito, Knollys sustentava que os batistas encontravam realmente
sua proclamação do evangelho acompanhada por milagres — milagres de regeneração. “Tantas
vezes o Evangelho não chegou a vocês somente em palavra, mas também em poder, no Espírito
Santo, 1Tessalonicenses 1.3, 4, que há um Milagre operado naqueles que recebem o Evangelho,
Lucas 7.22, e então eles recebem o Espírito Santo com seus dons e graças... Desse modo, não
precisamos ficar com [ou seja, esperar por] um Ministério com Milagre, pois temos uma Palavra
com Milagre”.154 A pregação que é fortalecida pelo Espírito para a salvação dos pecadores é, em
si, um ato milagroso. Essa perspectiva está totalmente alinhada com o pensamento puritano
daqueles dias. O pregador puritano Thomas Adams, por exemplo, já havia afirmado:
Mesmo assim, Deus faz milagres, embora não tomemos conhecimento deles. Que nossos corações sejam convertidos,
isso é um milagre! Que nossa fé esteja acima da razão, isso é um milagre (...) Mesmo quando ele não busca água em uma
rocha, busca o arrependimento do pecado, e faz o coração pedregoso jorrar lágrimas; esse é um milagre muito maior.155

Assim, Knollys concluiu: “Embora não tenhamos dons em nossas Igrejas além daqueles que
recebemos, e não recebemos dons do Espírito para nos gabar deles, ainda assim devo suportar
este Testemunho; o que recebemos somos obrigados a abençoar para Deus, e ter o desejo de
honrar Cristo, nosso Senhor, com todos os dons que recebemos dele”.156 Knollys e seus
companheiros batistas não reivindicavam possuir todos os dons que estavam presentes no início
da igreja, mas estavam conscientes de que o Espírito estava trabalhando entre eles por meio de
uma variedade de dons.
A convicção de Knollys quanto à questão dos dons espirituais é especialmente instrutiva em
nossos dias, quando os herdeiros do século XXI dos seekers afirmam que toda a panóplia dos
dons do Espírito está sempre disponível à igreja. Knollys não estava convencido de que os
crentes do período pós-Novo Testamento tinham acesso a todos os dons espirituais em evidência
na era apostólica. Além disso, ao contrário da opinião dos seekers, Knollys não acreditava que a
ausência desses dons representasse algum obstáculo ao estabelecimento de congregações cheias
do Espírito. O Espírito sempre dá aquilo de que a igreja precisa. Como o amigo de Knollys,
Benjamin Keach (1640–1704), outro líder batista fundamental na segunda metade do século
XVII, escreveu em um livro que Knollys elogiou publicamente: “Enquanto houver um único
Militante da Igreja, os Santos deste lado da Perfeição, (...) os Dons Espirituais necessários ao seu
Estado atual serão dados, e estarão entre eles, em Apoio à grande Ordenança do Ministério, e
para o bem da Igreja”.157
Merece destaque, no último texto acima citado, extraído de The Shining of a Flaming Fire in
Zion, a ênfase trinitária que Knollys assinala: na outorga dos dons do Espírito, Deus, o Pai, e
Cristo, o Filho, também estão primordialmente envolvidos. Knollys teve a oportunidade de
discutir ainda mais o envolvimento de Cristo na outorga dos dons espirituais em outra obra,
Christ Exalted [Cristo Exaltado], um sermão sobre Colossenses 3.11. Cristo, afirmava Knollys,
comprou os dons por meio de sua morte e, como tal, é o “Alfa e o Ômega, o começo e o fim, de
todas essas graças, dons e frutos do Espírito que estão presentes no novo homem”. É Cristo quem
confere “brilho e beleza” a cada dom espiritual. Na verdade, foi projeto do Pai que “Cristo deve
comunicar toda a graça, todos os dons etc. ao seu povo”.158 E, como Cristo é a fonte dos dons,
deve ser mais valorizado do que qualquer um deles.
Ao fazer essa última observação, Knollys enuncia o que se tornaria uma temática familiar na
tradição batista calvinista, ou seja, a importância subsidiária dos dons do Espírito na vida cristã.
Permitam que Cristo esteja presente, de modo geral, nos dons do Espírito e nas graças da santificação; pois... ele é o
Autor, o Preservador e Finalizador de tudo isso. Portanto, ele tem preeminência sobre tudo, atribuindo uma elevada
estima de cada dom e graça de Deus, e considerando um pouco de graça melhor do que todas as riquezas, honras,
prazeres e confortos das criaturas deste mundo. Mas você deve valorizar Cristo muito acima de todos os seus próprios
dons e de suas graças em nós, pois ele é a vida de todos eles, a essência e a substância de tudo. O que significa todo o
conhecimento se você não reconhecer Deus em Cristo? 1Coríntios 13.2: nada. O que é toda a fé, exceto se Cristo for o
objeto dessa fé? 1Coríntios 13.2: nada.159

Knollys insistia em que Cristo é muito mais precioso do que qualquer um de seus dons. Pois a
posse de Cristo é evidência de salvação, enquanto a dos dons, não. “Se você tem Cristo, você
tem tudo (...) mas, se você perdê-lo, perderá tudo; você perderá as esperanças, os consolos e
todos os seus deveres; sim, você perderá Deus, o Céu e a alma, e tudo o mais. Não importa o que
você tem — nenhum dom, dever, reforma, qualificação, ou qualquer outra coisa, vai fazer você
feliz sem Cristo (...) Portanto, certifique-se de que Cristo é seu”.160 Então, Knollys passou a
aplicar essa perspectiva acerca dos dons do Espírito ao antigo problema dos crentes sendo
intimidados por outras pessoas, por outros cristãos mais dotados.
Ouçam isso, pobres de espírito, seus recém-nascidos em Cristo, que têm as pessoas dos crentes (especialmente os
pregadores) como objeto de admiração, colocando-os no topo de seus corações e exaltando-os com suas línguas; porque
vocês são capazes de discernir humildade, amor, paciência, fé e outros dons do Espírito, e graças da santificação neles:
vocês não deveriam, ao contrário, passar a admirar Cristo, exaltar Cristo e enaltecê-lo, aquele que é o comprador, o
proprietário, o doador e o autor de todos esses dons e graças espirituais, pois não temos nada além do que recebemos, por
sua graça é que somos quem somos, e toda a graça que temos foi dele que recebemos, João 1.16? Portanto, deixem-no
receber a glória de todos, e deixem-no ter preeminência sobre tudo, pois ele está em tudo.161

Esse texto revela bem a natureza centrada em Cristo do pensamento e da adoração batista
calvinista em seus primórdios. Cristo, e não seus servos, é que deve ser o objeto de adoração da
igreja.162

KNOLLYS E A CURA FÍSICA


No período sombrio de perseguição, entre os anos 1660 e 1680, Knollys foi preso duas vezes,
mas, como já mencionado, sobreviveu para ver o início de uma nova era, quando, em 1689,
William III [Guilherme III] assegurou a aprovação da Lei de Tolerância. Embora, aparentemente,
a capacidade física de Knollys estivesse um pouco limitada, ele e seu companheiro batista
William Kiffen aproveitaram a ocasião dessa declaração de tolerância para emitir um apelo à
Primeira Assembleia Nacional dos Batistas Calvinistas. Em setembro de 1689, os representantes
das cem igrejas que se reuniram em Londres emitiram um parecer formal ao documento que é
conhecido como A Segunda Confissão de Fé de Londres, a confissão batista calvinista definitiva
do século XVII. Anexada à Confissão, havia uma lista de nomes, ao todo trinta e sete pastores
batistas calvinistas que concordavam com a Confissão, e era apropriado que, encabeçando essa
lista, estivesse o nome de Knollys.
No mesmo ano em que essa assembleia aconteceu em Londres, Knollys esteve envolvido em
um evento que é registrado por Thomas Crosby em The History of the English Baptists [A
história dos batistas ingleses]. O sogro de Crosby era Benjamin Keach, que adoeceu gravemente
em 1689, esperando-se que viesse a morrer. Mas Crosby registra: “O reverendo Sr. Hanserd
Knollis,163 ao ver seu então amigo moribundo, um irmão no Evangelho, a toda evidência
expirando, foi tomado pela oração e, de uma forma sincera e extraordinária, implorou que Deus o
poupasse e adicionasse aos seus dias o tempo que havia concedido ao seu servo Ezequias. E,
assim que ele concluiu sua oração, disse ele, o irmão Keach I deve estar no céu diante de
você”.164 Knollys morreria dois anos depois; Keach viveu mais quinze anos, vindo a morrer em
1704, o mesmo número de anos que Deus adicionou à vida de Ezequias, de acordo com Isaías
38.
Como esse evento na vida de Knollys pode ser conciliado com sua crença claramente
sustentada de que os dons extraordinários do Espírito eram algo que pertencia ao passado? A
resposta dada por Joseph Ivimey é que Knollys provavelmente pensou: “A direção dada [em]
Tiago, vv. 14-16, não se restringia àqueles que possuíam os “dons da cura”, como um dos dons
extraordinários do Espírito Santo concedidos nos tempos apostólicos, estendendo-se a todos os
ministros de Cristo”.165 Uma resposta mais genérica, baseada na de Ivimey, seria que, embora
Knollys não acreditasse na continuidade dos dons extraordinários concedidos à Igreja do
primeiro século, nem buscasse sua restauração, não desejava restringir a soberania de Deus e
limitar seus atos milagrosos ao passado. Deus poderia curar — e realmente curou — em resposta
à oração. A posição de Knollys parece ser essencialmente a mesma de outros autores puritanos.
Por exemplo, John Owen (1616–1683), o principal teólogo do puritanismo, afirmaria em A
Discourse of Spiritual Gifts [Um discurso sobre os dons espirituais]: “Não é improvável que
Deus possa, em algumas ocasiões (...), manifestar seu poder em algumas operações milagrosas; e
assim ele ainda pode fazer isso e talvez às vezes realmente faça”.166 Knollys morreu em 1691,
aos 93 anos, um homem maduro, um “velho discípulo de Jesus Cristo”. Até o fim, ele manteve
sua clareza de espírito e a solicitude demonstrada por seu rebanho, como uma carta final enviada
à sua igreja amplamente testemunha. Após Knollys recomendar à igreja, nessa carta, “que
prosseguisse na doutrina e na comunhão dos Apóstolos, no partir do pão e na oração”, passou a
exortar seu rebanho, clamando a ser zeloso em relação ao serviço de Deus, e ter esse zelo
orientado pela “luz do conhecimento” e pela glória de Deus.167 Mais de cem anos depois, essa
carta despertaria, em um revisor anônimo do periódico The Baptist Magazine, o desejo de que “o
espírito que a ditou estivesse presente, em uma medida abundante, em todos os nossos
Pastores”.168

137 Para dois estudos sobre a vida e o ministério de Knollys, consulte Pope A. Duncan, Hanserd Knollys: Seventeenth-Century
Baptist (Nashville, Tennessee: Broadman Press, 1965); B. R. White, Hanserd Knollys and Radical Dissent In the 17th Century
(London: Dr. Williams’s Trust, 1977); e Dennis C. Bustin e Barry K. Howson, Zealous for the Lord: The Life and Thought of the
Seventeenth-Century Baptist Hanserd Knollys (Eugene, Oregon: Pickwick, 2019). Para um esboço biográfico útil, veja B. R.
White, “Knollys, Hanserd (1599–1691)”, em Richard L. Greaves e Robert Zaller (orgs.), Biographical Dictionary of British
Radicals in the Seventeenth Century (Brighton, Sussex: Harvester Press, 1983), 2:160-162.
138 The Life and Death of that Old Disciple of Jesus Christ, and Eminent Minister of the Gospel, Mr. Hanserd Knollys (London:
E. Huntington, 1812), 11.
139 The Life and Death of … Hanserd Knollys, 12.
140 The Life and Death of … Hanserd Knollys, 17.
141 The Life and Death of … Hanserd Knollys, 32-33. Veja também Hanserd Knollys, Christ Exalted: A Lost Sinner Sought, and
saved by Christ: Gods people are an Holy people (London, 1646), i.
142 Murray Tolmie, The Triumph of the Saints: The Separate Churches of London 1616–1649 (Cambridge: Cambridge
University Press, 1977), 60.
143 Michael R. Watts, The Dissenters (Oxford: Clarendon Press, 1978), I, 160.
144 J. F. McGregor, “Seekers and Ranters”; e de sua autoria e de B. Reay (orgs.), Radical Religion in the English Revolution
(Oxford: Oxford University Press, 1984), 122-123. Sobre as origens dos seekers, veja Watts, Dissenters, I, 185-186. Por fim,
muitos dos seekers tornaram-se quakers (Watts, Dissenters, I, 193, 195-196, 204). Nas palavras de Tolmie, Triumph of the Saints,
6: “Os quakers (...) foram bem-sucedidos em ir dando forma e direção ao tumulto espiritual dos seekers e antiformalistas”.
145 Para compreender o pensamento de Erbery, a obra que se segue mostra-se bastante útil: Christopher Hill, The Experience of
Defeat. Milton and Some Contemporaries (London: Faber and Faber, 1984), 84-97; B. R. White, “William Erbery (1604–1654)
and the Baptists”, The Baptist Quarterly, 23 (1969–1970), 114-125. As obras de Erbery foram reunidas após a sua morte e
publicadas como The Testimony of William Erbery, Left Upon Record for The Saints of Succeeding Ages (London: Giles Calvert,
1658).
146 The Children of the West. Or, The Fears of all who are in Forms, especially of Water-Baptism (Testimony, 138).
147 The great Earthquake, Revel. 16:18 (Testimony, 302).
148 Children of the West (Testimony, 136, 137).
149 Sobre a vida e o pensamento de Saltmarsh, veja Leo F. Solt, “John Saltmarsh: New Model Army Chaplain”, The Journal of
Ecclesiastical History, 2 (1951), 69-80; N. T. Burns, “Saltmarsh, John (1612–1647)”, em Richard L. Greaves e Robert Zaller
(orgs.), Biographical Dictionary of British Radicals in the Seventeenth Century (Brighton, Sussex: Harvester Press, 1984), 3:136-
137. A resposta de Knollys a Saltmarsh foi uma das várias obras batistas escritas em resposta aos seekers. Veja Tolmie, Triumph
of the Saints, 54-55.
150 The Smoke in the Temple (Londres: G. Calvert, 1646), 17-18.
151 The Shining of a Flaming Fire in Zion (London, 1646), 9.
152 The Shining of a Flaming Fire in Zion, 9.
153 Veja W. P. Stephens, The Holy Spirit in the Theology of Martin Bucer (Cambridge: Cambridge University Press, 1970), 185-
189; Leonard Sweetman, Jr., “The Gifts of the Spirit: A Study of Calvin’s Comments on 1 Corinthians 12:8-10, 28; Romans
12:6–8; Ephesians 4:11”, em David E. Holwerda (org.), Exploring the Heritage of John Calvin (Grand Rapids: Baker Book
House, 1976), 273-303.
154 Shining of a Flaming Fire, 10.
155 Citado por Victor Budgen, The Charismatics and the Word of God (Welwyn, Hertfordshire: Evangelical Press, 1985), 144.
156 Shining of a Flaming Fire, 15.
157 The Gospel Minister’s Maintenance Vindicated (London, 1689), 7.
158 Christ Exalted, 11, 4.
159 Christ Exalted, 10.
160 Christ Exalted, 7.
161 Christ Exalted, 11.
162 Para um excelente exemplo da natureza centrada em Cristo do pensamento e da espiritualidade batista calvinista primitiva,
consulte o Apêndice, que contém um sermão de Thomas Wilcox (1622–1687).
163 O nome de Knollys recebeu várias grafias. Veja Duncan, Hanserd Knollys, 9, n. 3.
164 The History of the English Baptists (London, 1740), IV, 307-308. Para alguns outros eventos similares da vida de Knollys,
veja Michael A.G. Haykin, “Hanserd Knollys (ca. 1599–1691) on the Gifts of the Spirit”, The Westminster Theological Journal,
54 (1992), 110-112.
165 Joseph Ivimey, A History of the English Baptists (London, 1814), II, 23.
166 The Works of John Owen (org. William H. Goold, 1850–1853; repr. Edinburgh: Banner of Truth 1967), IV, 475. Para
discussões acerca da abordagem dos puritanos em relação aos dons extraordinários do Espírito, veja J.I. Packer, “The Puritans
and Spiritual Gifts”, em Profitable for Doctrine and Reproof ([London: The Puritan Conference, 1967]), 15-27; Garth B. Wilson,
“The Puritan Doctrine of the Holy Spirit: A Critical Investigation of a Crucial Chapter in the History of Protestant Theology”
(tese Ph.D., Knox College, Toronto, 1978), 292-300; Budgen, Charismatics, 133-145; Sinclair B. Ferguson, John Owen on the
Christian Life (Edinburgh: Banner of Truth, 1987), 201-208.
167 Life and Death of … Hanserd Knollys, 58-67.
168 The Baptist Magazine, 5 (1813), 78.
6
John Norcott (?–1676)
e o modo de batismo

“A IMERSÃO É A INDICAÇÃO DE DEUS”169


oi na época da primeira experiência inglesa com o governo republicano, na década de 1650,
F que o pastor da obra batista particular em Plymouth, Abraham Cheare (1626–1668), recebeu
um pedido da parte de um certo capitão Francis Langdon, em Cornwall, membro do
Parlamento de Barebone [Pequeno Parlamento], para vir e batizá-lo.170 O único problema era que
Langdon sofria de tuberculose e estava extremamente fraco. No entanto, ele estava convencido
de que Deus iria curá-lo quando fosse batizado. Dessa forma, o Senhor colocaria seu selo de
aprovação na imersão dos crentes como o devido modo de batismo, providenciando uma
refutação concreta à acusação pedobatista de que a imersão era “um ato de assassinato”.171
Quando Cheare viajou para encontrar Langdon, ficou horrorizado ao vê-lo praticamente à beira
da morte. Os médicos que o acompanhavam já não tinham mais qualquer esperança quanto à sua
recuperação. Nas próprias palavras de Cheare:
(...) sua respiração já havia quase o deixado, sua fala era quase imperceptível, pouco conseguia pôr-se de pé; e, quando
ficava de pé, dificilmente conseguia dar um passo sem que precisassem segurá-lo, os tendões de seu pescoço frágeis, a
cabeça tombada sobre o peito, a tosse rasgando-o em pedaços. Ele não havia dormido uma hora sequer em muitas noites,
apenas duas ou três vezes na semana anterior, em atendimento às orações que os servos da casa haviam feito por ele,
segundo seu desejo; ele não recebia mais nenhum alimento, exceto um pouco de leite, e tinha deixado de lado todas as
cordialidades. De fato, quando o vi pela primeira vez, pensei que ele dificilmente viveria até a manhã seguinte, em face
de sua aparência.

E, para piorar a situação, era janeiro quando Cheare tinha viajado para encontrar Langdon e
havia muita neve.
O lugar onde Langdon seria batizado era um reservatório em um moinho, situado a cerca de
oitocentos metros de sua casa. Cheare estava inseguro sobre o que deveria fazer. “A primeira
noite após a minha chegada”, escreveria ele mais tarde, “foi dedicada à oração em conjunto [com
outros crentes batistas] e, sobre o assunto em si, minha alma estava extremamente obscurecida,
incapaz de ver com clareza”. Então, as palavras de Jesus em Lucas 4.12 — “Não tentarás o
Senhor, teu Deus” — vieram à sua mente com uma força particular, e ele compreendeu que não
deveria seguir adiante com o pedido de Langdon. Alguns irmãos batistas que estavam com
Cheare também acreditavam nisso, embora houvesse alguns, entre os presentes, que estavam
convencidos, assim como Langdon, de que Deus o curaria no momento de seu batismo. No
entanto, outros acreditavam que, embora Langdon não pudesse ser curado, não poderia ter seu
quadro agravado por causa do batismo. E, assim, Deus “reivindicaria sua ordenança à vista de
todos os observadores, mostrando que a ordenança, em si, não era prejudicial a qualquer pessoa
fiel e obediente”.
Cheare e seus companheiros batistas passaram um tempo considerável em oração. Enquanto
isso, nitidamente, Langdon ficava cada vez mais fraco: nas palavras de Cheare, ele “havia
decaído mais no intervalo de um dia do que havia piorado em toda a semana anterior”. Mas ele
ainda insistia em ser batizado. Quando, finalmente, chegou a hora do batismo público, Cheare
primeiro batizou duas mulheres que estavam presentes. Em seguida, Langdon foi trazido para as
margens da água, mas Cheare reconheceu que não tinha fé suficiente para batizá-lo. Langdon,
então, voltou-se para outro irmão batista, um homem chamado Muckle, e perguntou-lhe se ele
tinha fé suficiente para batizá-lo. Muckle respondeu que sim. Mais tarde, Cheare viria a
descrever o que se passou naquele momento:
O irmão Muckle imergiu com ele na água e, liderado por dois ou três homens, ele o batizou. Imediatamente, assim que se
viu fora da água, exigiu que ninguém o segurasse e, com determinação e rápido como um corredor, subiu sozinho a
colina, que era bastante íngreme, cerca de quinze ou dezoito metros acima, e depois foi conduzido com auxílio até em
casa, declarando que, naquele mesmo instante, havia encontrado a recuperação. Ele foi colocado em sua cama, e falou de
forma veemente e com todo o seu coração; depois de esperar por cerca de uma hora, pediu que lhe trouxessem provisões,
desejando comer bife e carne de porco; em seguida, foi dormir, e dormiu muito bem durante toda aquela noite, pelo
espaço de sete ou oito horas; não apresentou crise de tosse e, ao acordar, declarou que podia ter dormido mais, mas não
estava disposto a ver os amigos partirem sem que ele lhes tivesse falado acerca da salvação de Deus. Mostrou-se muito
saudável durante toda a manhã, levantou-se por volta do meio-dia, mas não se demorou muito de pé, declarando que
estava considerando a cama mais acolhedora que o fogo, e acho que teve uma ligeira fraqueza, mas ainda declarou que
sempre vivera pela fé para ter a cura aperfeiçoada aos poucos, assim como sua fraqueza, que crescia aos poucos. Ele se
alegrou muito pelo fato de o Senhor lhe haver permitido experimentar sua ordenança (...).172

O aspecto significativo nesse texto acerca do modo de batismo é que ninguém parece haver
pensado em encontrar um modo alternativo para batizar Langdon, por espargimento ou aspersão.
A razão é simples: para Cheare e seus companheiros batistas, o batismo significava uma coisa
apenas: imersão. E, como um contemporâneo de Cheare, o pastor batista de Londres John
Norcott apresentou essa informação em um tratado extremamente popular sobre o assunto: “O
batismo é por imersão ou mergulho. (...) A imersão é a indicação de Deus”.173

RESPONDENDO AOS CRÍTICOS DA IMERSÃO


Houve várias acusações contra os batistas quando emergiram da matriz do puritanismo, no
século XVII. Por exemplo, eles foram acusados de ser pessoas violentas, de ser revolucionários
sociais que se assemelhavam aos anabatistas do século XVI, homens que acreditavam que o
reino de Deus poderia ser estabelecido pela força das armas — e que tentaram, efetivamente,
fazer isso, ao tomar a cidade de Münster, na Alemanha, de fevereiro de 1534 a junho de 1535.
Como já observado no Capítulo 1, ao longo desses dezesseis meses que durou a ocupação, os
habitantes de Münster foram aterrorizados por Jan Matthys e Jan Bockelson, também conhecido
como John of Leyden [João de Leyden], ao estabelecerem uma teocracia segundo a qual todas as
propriedades deviam ser compartilhadas, a poligamia era legalizada e o adultério era punido com
a morte. E, como vimos no Capítulo 3, os batistas ingleses também foram acusados de “cometer
atos impróprios na dispensação do batismo, não devendo ser considerados cristãos”,174 e de
colocar em risco a saúde das pessoas, batizando-as em lagoas, rios e lagos no clima frio do norte
da Inglaterra. Observe-se que as duas últimas acusações dizem respeito ao modo de batismo
praticado pelos batistas particulares do século XVII, ou seja, a imersão. Como vimos, Daniel
Featley redigiu um ataque aos batistas, intitulado The Dippers dipt. Or, The Anabaptists duck’d
and plunged Over Head and Eares [Os Dippers. Ou, os anabatistas se abaixam e mergulham a
cabeça e os ouvidos] (1645). Nesse documento, havia uma imagem na capa que trazia as
mulheres batistas sendo batizadas em completa nudez! Ele sustentava que os batistas tinham o
hábito de se despir e ficar “completamente nus, não só quando se reúnem em grandes multidões,
homens e mulheres juntos, mergulhando em seus Jordões; mas também em outras ocasiões,
quando a estação climática assim permite!”.175 E, como também já vimos no Capítulo 3, essa
acusação foi séria o suficiente para merecer uma refutação na Primeira Confissão de Londres, de
1644, o padrão doutrinário da primeira geração de batistas particulares ingleses. Nessa primeira
Confissão, havia a informação de que os crentes eram batizados com “roupas convenientes tanto
por parte do administrador como do sujeito, com toda a modéstia”.176 Mais tarde, ainda naquele
século, James Owen (1654–1706), um respeitado e culto não conformista galês, fez acusações
similares.177 Na ocasião, Benjamin Keach (1640–1704), o principal teólogo batista do final do
século XVII, respondeu diretamente a Owen:
Providenciamos roupas decentes para o administrador do batismo, da cabeça aos pés; e os homens que são batizados
também recebem roupas providenciadas especialmente para eles; para as mulheres, vestidos e casacos pequenos são
feitos com esse propósito, e elas vão para a água vestidas com mais decência, talvez, do que muitas outras que
frequentam as assembleias cristãs.178

Os batistas também eram acusados de usar o batismo como uma forma de matar as pessoas —
daí a referência, no relato de Cheare, ao batismo dos crentes como “um ato de assassinato”.
William Burkitt (1650–1713), reitor anglicano de Milden, Suffolk, argumentava que a imersão
implicava uma violação ao sexto mandamento, “Não matarás”, pois “quantos milhares de
pessoas fortes e fracas, velhas e jovens, teriam suas cabeças e seus ouvidos mergulhados nos
países do norte, pessoas que, na temporada de inverno, infalivelmente seriam destruídas e
mortas?”.179 O teólogo presbiteriano Richard Baxter (1615–1691), um controversialista
destemido, também sustentava que o batismo dos crentes por imersão era uma violação ao sexto
mandamento. Em suas palavras:
[A] prática ordinária de batizar imergindo a cabeça em água fria (...) não é uma ordenança de Deus, mas um pecado
hediondo (...) o magistrado deve coibir essa prática, a fim de salvar a vida de seus súditos (...) Pois o que tende
diretamente a exterminar a vida dos homens, sendo intencionalmente usado, é assassinato: a imersão trivial ou em geral
das pessoas em água fria tende a prejudicar diretamente sua saúde e sua vida; portanto, é assassinato. Catarro e
obstruções são as duas grandes fontes da maior parte das doenças mortais no organismo do homem (...) Apoplexias,
letargias, paralisias e todas essas doenças podem decorrer dessa prática. Assim como (...) doenças de estômago (...) e
quase todas as febres, disenterias, diarreias, cólicas (...) convulsões, espasmos, tremores etc... Concluo dizendo que, se o
assassinato é um pecado, então imergir a cabeça em água fria, na Inglaterra, é um pecado.180

Como vimos, o relato de Cheare sobre a cura de Langdon enquanto ele estava sendo batizado
era uma forma de responder a essa acusação. Outro texto vem de Keach, em sua defesa clássica
do batismo do crente, Gold Refin’d; or, Baptism in its Primitive Purity [Ouro refinado; ou
batismo em sua pureza primitiva] (1689). Citando Mateus 28.19-20, que ele chama de “a Grande
Comissão”,181 ele pergunta aos seus leitores:
Observe a extensão da comissão dada por Cristo aos seus discípulos: “Vão ensinar a todas as nações, batizando-as”. Vão
a todas as nações; ou, como Marcos diz: “Por todo o mundo” (Mc 16.15). Leste, oeste, norte e sul, nos países frios, bem
como nos países quentes, e façam discípulos aonde quer que vocês vão, e “batizem-nos” etc., não por aspersão; e não
também apenas mergulhando-os nos climas quentes e aspergindo-os nos climas frios.182

Aqui, o argumento de Keach em prol da imersão também é essencialmente o da observação


lapidar de John Norcott, ou seja, de que “a imersão é a indicação de Deus”. De acordo com a
interpretação de Keach da Grande Comissão, não se permitia a adaptação do rito do cristianismo
ao tipo de clima em que o evangelho era pregado: independentemente de o clima ser quente ou
frio, os discípulos deveriam ser batizados por imersão. A Grande Comissão fixou os detalhes da
ordenança de Deus no que diz respeito ao modo de batismo, que não pode ser alterado.

JOHN NORCOTT E SEU


TRATADO SOBRE O BATISMO
No século XVII, o cenário eclesiástico britânico testemunhou uma série de grupos cristãos
alegando que haviam recuperado o modelo do Novo Testamento quanto à natureza da igreja e de
seus ritos: anglicanos, presbiterianos, independentes ou congregacionalistas, batistas, quakers
[ou quacres], mugletonianos,* para nomear apenas os mais proeminentes. De todos esses grupos,
apenas os batistas batizavam os crentes, e apenas os batistas empregavam o modo de imersão,
apesar das críticas já referidas. De uma forma que não nos causa surpresa, a defesa de sua
posição sobre o tema está presente em uma grande quantidade de panfletos e tratados. William
H. Brackney calcula que esse número ultrapasse mais de cem.183 Ao examinar a defesa que os
batistas faziam do modo de imersão, este capítulo se concentra, em especial, naquele que
provavelmente foi o mais popular desses textos: Baptism Discovered Plainly & Fainfully
According to the Word of God (1672), de autoria de John Norcott.
Quando Norcott escreveu essa obra, estava servindo como o segundo pastor da Igreja Batista
Particular em Wapping, Londres. Essa congregação era a mais antiga congregação batista
particular nas Ilhas Britânicas, tendo sido plantada na década de 1630, como já observado no
Capítulo 2, quando seu primeiro pastor, John Spilsbury, chegou para elucidar as convicções
batistas.184 Na verdade, Spilsbury foi o primeiro batista particular a escrever sobre o batismo dos
crentes; seu texto, A Treatise Concerning the Lawfull Subject of Baptisme [Um tratado sobre o
sujeito legal do batismo], veio a público em 1643.185 As próprias raízes de Norcott estavam
fincadas na Igreja da Inglaterra. Ele era um ministro puritano que fora forçado a deixar a igreja
do estado quando o Ato de Uniformidade* foi aprovado, em 1662. Tornou-se pastor da
congregação Wapping por volta de 1670. Benjamin Keach, que pregou o sermão fúnebre de
Norcott, o chamou de “um pregador doce e eleito”.186
O tratado de Norcott sobre o batismo foi objeto de grande popularidade nos duzentos e
quarenta anos subsequentes.187 Foi reimpresso em novas edições em 1675, 1694, 1700 e 1709, a
última ocasião em uma gráfica de Dublin. Em seguida, surgiu em quatro edições separadas, entre
1721 e 1723, sendo uma delas a primeira edição americana. Houve mais quinze reimpressões
entre as décadas de 1720 e 1911, com Charles Haddon Spurgeon (1834–1892) trazendo à luz
pelo menos três edições distintas com muitos exemplares entre 1878 e 1887. O tratado de
Norcott também foi traduzido para o galês na época da terceira edição (1694)188 — a edição
usada na confecção deste capítulo. No final do século XIX, houve uma segunda edição galesa e
algumas traduções para os idiomas alemão, turco, armênio, espanhol e búlgaro.
Contando com cinquenta e seis páginas — essa contagem corresponde ao número de páginas
da terceira edição —, o tratado de Norcott estabelece a posição batista padrão do século XVII
sobre o tema do batismo (dos crentes),189 o modo correto de administrá-lo (por imersão)190 e seu
significado (principalmente a identificação com Cristo em sua morte, seu sepultamento e sua
ressurreição).191 Vale ressaltar que em nenhum momento Norcott discute a questão sobre quem
pode aplicar adequadamente o batismo, algo que incomodou alguns teólogos do século XVII,
como John Smyth e Roger Williams. Partindo dos exemplos de Paulo ao batizar os coríntios
Crispo, Gaio e Estéfanas (1Co 1.14-15), e de Filipe batizando o etíope (At 8.38), Norcott afirma
que “aquele que é chamado para ser pregador não precisa de nenhum chamado para batizar”,
uma vez que “o batismo faz parte de seu ofício de pregação”.192 Norcott também busca
demonstrar por que o batismo do Espírito não é um substituto para o batismo na água193 — a
posição adotada pelos quakers — e por que o batismo dos infantes não é bíblico.194

DEFENDENDO A IMERSÃO
A defesa de Norcott quanto à imersão se traduz em cerca de quatro argumentos. Primeiro, ele
traz o argumento etimológico de que o verbo grego batizō e seus cognatos pressupõem imersão,
desde que adequadamente traduzidos, significando “mergulhar, submergir”.195 Em apoio a essas
interpretações de batizō, Norcott remete seus leitores ao batismo de Jesus, em Mateus 3.16, e à
comparação de Jesus na cruz em Lucas 12.50 — “Tenho, porém, um batismo com o qual hei de
ser batizado; e quanto me angustio até que o mesmo se realize!”.196 Em relação ao primeiro texto
— que a Versão King James (1611) traduziu como “Jesus, quando foi batizado, saiu direto da
água” —, Norcott sustenta que Jesus não poderia ter “saído da água se não estivesse lá dentro”.197
Norcott também cita o fato de que, de acordo com João 3.23, João Batista batizava
frequentemente em Enon, perto de Salim, no rio Jordão, “porque lá havia muita água” (versão
King James). Por que a menção a “muita água”, pergunta, de forma retórica, Norcott, se João não
estava imergindo aqueles que atendiam ao chamado ao arrependimento — “não seria um pouco
de exagero se servia apenas para aspergir o rosto?”.198
Uma segunda consideração tinha a ver com o significado do batismo. Stephen Holmes observa
que, historicamente, essa foi uma área em que, de fato, os batistas se destacaram, a despeito de
sua grande preocupação com os sujeitos adequados e o modo correto de batismo.199 No entanto, a
primeira confissão batista particular, A Primeira Confissão de Londres (1644), em seu artigo XL,
elencou três significados para o batismo. Recapitulando o que já registramos no Capítulo 3:
primeiro, ele testemunha a lavagem interna do crente pelo sangue de Cristo. Nas edições
posteriores da Confissão — de 1646, 1651 e 1653 —, esse significado foi omitido.200 Segundo,
significa “a morte, o sepultamento e a ressurreição” do crente com Cristo. Por fim, confere ao
crente a garantia de que, assim como ele é levantado das águas do batismo, “certamente os
corpos dos Santos serão levantados pelo poder de Cristo, no dia da ressurreição”.201 Norcott só
fez referência explícita ao segundo desses significados. Uma vez que o batismo significa o
sepultamento com Cristo — Norcott cita Romanos 6.4 e Colossenses 2.12 como prova —, o
modo adequado tem de ser a imersão, pois “não supomos um homem sepultado com um punhado
de terra jogada em seu rosto; ele é enterrado depois de coberto”.202 Para Norcott, este é o
principal significado do batismo: “Se não houver um sepultamento debaixo d’água para
demonstrar o sepultamento de Cristo, a finalidade em si da ordenança se perde”.203
Norcott também entende o batismo de acordo com Gálatas 3.27 — “porque todos quantos
fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes”. Ele compara essa frase paulina àquilo que
um servo faz ao adotar o estilo característico de seu mestre: ele se identifica como “um servo de
determinado Senhor”.204 Em outras palavras, o batismo é o meio pelo qual declaramos pertencer
a Cristo.
Em terceiro lugar, o batismo por imersão foi ordenado por Cristo, e seus servos não têm
liberdade para mudar as ordens de seu Senhor. Como o batismo se dá pelos atos de “imergir ou
mergulhar”, a aspersão apenas não “servirá, pois não foi aquilo que Deus recomendou. (...)
Acaso Deus não é sábio o suficiente para apontar como a adoração a ele deve ser realizada?”.205
Aqui, o modelo geral do argumento de Norcott provém de décadas de batalha dentro da Igreja da
Inglaterra sobre a adoração. Nessas batalhas, os antepassados puritanos de Norcott afirmavam
que a Palavra de Deus é a regra para adorá-lo, e que os cristãos só podem incluir, entre os
elementos de adoração, o que traz em si um mandamento claro da Palavra de Deus. Vale
ressaltar que a terceira edição do tratado de batismo de Norcott contém um prefácio
recomendatório escrito pelo famoso batista londrino William Kiffen e por um certo Richard
Claridge (1649–1723),206 enfatizando que uma perspectiva biblicista estava no cerne do
ministério de Norcott:
Ele guiou toda a sua trajetória pela bússola da Palavra, fazendo dos preceitos contidos nas Escrituras, ou de seus
exemplos, a regra constante em matéria de religião: as opiniões ou as interpretações de outros homens não constituíram o
padrão que o orientou; mas, com o auxílio do Espírito Santo, ele trabalhou para descobrir o que o próprio Senhor havia
dito em sua Palavra.207

O biblicismo de Norcott é bastante evidente em sua insistência de que Cristo nos ordenou
seguir um padrão específico quando se trata do modo de batismo, ou seja, a imersão. Nas
palavras de Norcott: “A imersão é a indicação de Deus”.208 Todos os exemplos de batismo do
crente no Novo Testamento209 e, acima disso, “o grande modelo [do batismo do crente], o Senhor
Jesus” confirmam essa convicção, pois todos ocorreram por imersão.210

LEGADO DE NORCOTT
D. M. Himbury observa que boa parte dos argumentos sustentados por batistas como Norcott, no
século XVII, em relação ao batismo, permaneceu praticamente inalterada nos duzentos anos que
se seguiram.211 Anne Dutton (1692–1765), descrita, com bastante acerto, como “talvez a mulher
batista mais teologicamente capaz e influente de sua época”,212 reproduziu o argumento de
Norcott acerca do verbo batizō — “o termo (...) significa mergulhar, sepultar ou submergir” — e
sua ênfase em que a imersão é o que melhor representa o sepultamento num texto sobre batismo
que ela publicou em 1746.213 Os argumentos de Norcott para o modo de batismo também
encontraram voz poética nos hinos de batismo de Maria de Fleury (1773–1791), a compositora
mais reconhecida entre os dissidentes calvinistas de Londres entre 1781 e 1791:
Venham, Pecadores, salvos pelo amor divino,
Com grande assombro, venham ver
A doce graça e o incomparável brilho da glória,
Naquele que morreu por você e por mim...
Nós, para o riacho sagrado, descemos,
E nos lembramos, com gratidão, de ti;
Nosso amigo moribundo e todo-triunfante,
Nós celebramos tua vitória:
sepultados com Cristo, pela Fé emergimos,
E reinamos com ele acima dos céus.214

No último quarto do século seguinte, como já assinalado, o pregador batista vitoriano


Spurgeon reimprimiu o tratado de Norcott, fazendo apenas ligeiras alterações: ele atualizou a
linguagem em algumas passagens, esclareceu algumas frases, de modo a “tornar o sentido do
autor ainda mais claro ao leitor”, e fez alguns acréscimos.215 Obviamente, Spurgeon acreditava
que a maior parte do tratado de Norcott havia resistido ao teste do tempo e que ainda era uma
peça de defesa poderosa em relação ao batismo dos crentes por imersão — uma convicção que,
para este escritor, não estava equivocada.
* OS MUGLETONIANOS FORMAVAM UM PEQUENO GRUPO CRISTÃO PROTESTANTE DE OPOSIÇÃO AOS
QUAKERS, INICIADO EM 1651. O NOME É UMA HOMENAGEM A LODOWICKE MUGGLETON. (N.T.)

169 O subtítulo vem de John Norcott, Baptism Discovered Plainly & Faithfully, According to the Word of God (orgs. William
Kiffin e Richard Claridge, 3rd ed.; London, 1694), 20. Este capítulo foi originalmente concebido como um artigo em um
workshop durante a Convenção Nacional da Sociedade das Igrejas Batistas Evangélicas no Canadá, realizada em 11 de outubro
de 2014. Posteriormente, foi publicado em The Baptist Quaterly e é publicado aqui com a gentil permissão dos editores.
170 Para o que se segue em relação a Cheare e Langdon, veja Henry M. Nicholson, Authentic Records Relating to the Christian
Church Now Meeting in George Street and Mutley Chapels, Plymouth: 1640 to 1870 (London: Elliot Stock, 1904), 13-17. Esse
relato também pode ser encontrado em Brian L. Hanson com Michael A. G. Haykin, Waiting on the Spirit of Promise: The Life
and Theology of Suffering of Abraham Cheare (Eugene, OR: Pickwick Publications, 2014), 41-45.
171 Veja, a seguir, uma explicação do que foi feito em relação à acusação de que o batismo era “um ato de assassinato”.
172 Para um milagre similar durante o batismo, veja J. Ivimey, “A Wonderful Appearance of Providence at Baptism”, The
Baptist Magazine, 10 (1818), 257. O autor batista vitoriano G. Holden Pike considerou essa ligação entre o batismo e a cura uma
“ilusão”, algo que beirava o fanatismo. Veja, de sua autoria, “A Western Pastor in the Olden Time”, The Sword and the Trowel
(1º de setembro de 1870), 407.
173 Baptism Discovered, 21, 20.
174 The First London Confession of Faith, Prefácio (William L. Lumpkin, Baptist Confessions of Faith [2nd ed.; Valley Forge:
Judson Press, 1969], 154-155).
175 Citado em Gordon Kingsley, “Opposition to Early Baptists (1638–1645)”, Baptist History and Heritage, 4, n. 1 (janeiro de
1969), 29. Sobre Daniel Featley, veja, a seguir, p. 32-33 e n. 3. Veja também Linford D. Fisher, J. Stanley Lemons e Lucas
Mason-Brown, Decoding Roger Williams: The Lost Essay of Rhode Island’s Founding Father (Waco, TX: Baylor University
Press, 2014), 25.
176 First London Confession of Faith, XL (Lumpkin, Baptist Confessions of Faith, 167).
177 Para detalhes, veja Austin Walker, The Excellent Benjamin Keach (Dundas, ON: Joshua Press, 2004), 309-331. Para Owen,
veja R. T. Jenkins, “Owen, James”, The Dictionary of Welsh Biography Down to 1940 (London: The Honourable Society of
Cymmrodorion, 1959), 708; Alexander Gordon, “Owen, James”, The Dictionary of National Biography (org. por Leslie Steophen
e Sidney Lee, 1894–1895 ed.; repr. London: Oxford University Press, 1937–1938), 14: 1313-1314; Vaughn, “Public Worship and
Practical Theology”, 39-40.
178 Light Broke Forth in Wales, Expelling Darkness; or The Englishman’s Love to the Antient Britons (London, 1696), 261.
179 An Argumentative and Practical Discourse of Infant-Baptism (2nd ed.; London: Thomas Parkhurst, 1695), 55. Para um breve
ensaio sobre a vida e os escritos de Burkitt, veja Richard J. Ginn, The Labour of Love: William Burkitt and his Ministry at
Dedham 1692–1703 (2nd ed.; Dedham, Essex: Dedham Ecclesiastical Lectureship Trust, 2005).
180 Plain Scripture Proof of Infants Church-membership and Baptism (4th ed.; London, 1656), 134-136, passim.
181 Gold Refin’d; or, Baptism in its Primitive Purity (London, 1689), 65.
182 Gold Refin’d, 65. Norcott segue o mesmo raciocínio. Ver Baptism Discovered, 10.
183 The Baptists (Westport, CT: Praeger, 1994), 57.
184 Robert W. Oliver, From John Spilsbury to Ernest Kevan: The Literary Contribution of London’s Oldest Baptist Church
(London: Grace Publications Trust for The Evangelical Library, 1985), 6. Para a história da igreja, veja Ernest F. Kevan,
London’s Oldest Baptist Church: Wapping 1633 —Walthamstow 1933 (London: Kingsgate Press, 1933).
185 B. R. White, The English Baptists of the Seventeenth Century (edição revista; London: The Baptist Historical Society, 1996),
72. Garry Stephen Weaver observou: “Enquanto a obra de Spilsbury representou, em grande parte, uma resposta às críticas
pedobatistas, a obra de Norcott dispensava um tratamento bíblico muito mais positivo em relação ao tema do batismo” (“Hercules
Collins: Orthodox, Puritan, Baptist” [dissertação P.hD.; The Southern Baptist Theological Seminary, 2013], 163).
186 Citado em Kevan, London’s Oldest Baptist Church, 62. Para mais detalhes acerca de Norcott, veja Joseph Ivimey, A History
of the English Baptists (London: B. J. Holdsworth, 1823), III, 295-301; Kevan, London’s Oldest Baptist Church, 62-64; Geoffrey
F. Nuttall, “Another Baptist Ejection (1662): The Case of John Norcott”, em William H. Brackney e Paul S. Fiddes com John
H.Y. Briggs (orgs.), Pilgrim Pathways: Essays in Baptist History in Honour of B.R. White (Macon, GA: Mercer University Press,
1999), 185-188.
187 Para mais detalhes desse parágrafo, veja Edward C. Starr, A Baptist Bibliography (Rochester, NY: American Baptist
Historical Society, 1972), 17:73-75; Fisher, Lemons e Mason-Brown, Decoding Roger Williams, 1, 3. Para a impressão mais
recente do tratado de Norcott, veja Fisher, Lemons e Mason-Brown, Decoding Roger Williams, 115-152.
188 Baptism Discovered, [iii].
189 Baptism Discovered, 11-17.
190 Baptism Discovered, 17-21.
191 Baptism Discovered, 17, 20.
192 Baptism Discovered, 42-43. Veja também Baptism Discovered, 3, para um comentário sobre João, o Batista, como um
administrador do batismo. Em seu tratado The Shining of a Flaming Fire in Zion (London: Jane Coe, 1646), 9, Hanserd Knollys
abordou especialmente essa questão e chegou à seguinte conclusão, dirigindo-se aos batistas particulares londrinos: “Não estamos
afirmando que todos os discípulos comuns possam batizar... ou... administrar outras ordenanças; somente se ele recebeu esses
dons do Espírito, como apto ou inapto para pregar o Evangelho”.
193 Baptism Discovered, 23-24, 30-31.
194 Baptism Discovered, 31-47, 52-54.
195 Baptism Discovered, 17. Veja os argumentos similares de Hercules Collins, Believers-Baptism from Heaven, and of Divine
Institution. Infants-Baptism from Earth, and Human Invention (London, 1691), 12-14. Collins seguiu Norcott como o pastor da
igreja Wapping. Seu tratado sobre o batismo deve muito ao de Norcott. Veja também B. W. Ball, The English Connection: The
Puritan Roots of Seventh-day Adventist Belief (Greenwood, SC: Attic Press, 1981), 94-95.
196 Baptism Discovered, 18.
197 Baptism Discovered, 5. Veja também Baptism Discovered, 19, 20-21.
198 Baptism Discovered, 17. Veja argumentação similar de Hanserd Knollys, Flaming Fire in Zion, 3, e dos textos citados por
Ball, English Connection, 94.
199 “Baptists” em Hans Dieter Betz, Don S. Browning, Bernd Janowski e Eberhard Jüngel (orgs.), Religion Past & Present:
Encyclopedia of Theology and Religions (Leiden/Boston: Brill, 2007), I, 587-588. Essa é uma parte de um artigo mais longo
sobre “batismo”. William H. Brackney observa de forma similar: “A partir de uma grande preocupação com os detalhes textuais
do Novo Testamento e do desejo de recriar a igreja primitiva, os batistas dedicaram-se a técnicas, estilos e preparação dos
aspirantes a participar dos sacramentos, em detrimento dos mistérios das relações divino-humanas” (Baptists, 69-70). Para uma
análise anterior na mesma linha, veja J. M. Ross, “The Theology of Baptism in Baptist History”, The Baptist Quarterly, 15
(1953–1954), 100.
Para dois estudos da teologia do batismo na maior tradição batista particular, veja J. R. C. Perkin, “Baptism in Nonconformist
Theology, 1820–1920, with special reference to the Baptists” (tese D. Phil., Oxford University, 1955); e Stanley K. Fowler, More
Than A Symbol: The British Baptist Recovery of Baptismal Sacramentalism (“Studies in Baptist History and Thought” [Estudos
na História e no Pensamento Batista], vol. 2; Carlisle, Cumbria/Waynesboro, GA: Paternoster Press, 2002).
200 Vale destacar que Henry Jessey, de cuja igreja boa parte dos primeiros batistas particulares veio, descreveu o significado do
batismo como “simbolizar, representar e selar” em relação àqueles que são batizados, com “a remissão levando embora seus
pecados” (Miscellanea Sacra: or, Diverse necessary Truths [London: Livewell Chapman, 1665], 128).
201 First London Confession of Faith XL (Lumpkin, Baptist Confessions of Faith, 167).
202 Baptism Discovered, 17-18.
203 Baptism Discovered, 19. Veja também Baptism Discovered, 20. De forma similar, para Collins, “eles perdem o grande
objetivo dessa ordenança, ao aspergir em vez de batizar” (Believers-Baptism from Heaven, 15).
204 Baptism Discovered, 18-19. Veja também Collins, Believers-Baptism from Heaven, 17.
205 Baptism Discovered, 20. Veja também Baptism Discovered, 21, e Collins, Believers-Baptism from Heaven, 20.
206 Claridge tornou-se um quaker em 1697. Veja Ivimey, History, III, 300, n.*, e 361.
207 “The Epistle Dedicatory” a Norcott, Baptism Discovered, [ii–iii]. Cf. o biblicismo em C.H. Spurgeon, “Prefácio” a John
Norcott, Baptism Discovered Plainly & Faithfully, According to the Word of God (London: Passmore & Alabaster, 1878), iv-v.
208 Baptism Discovered, 20.
209 Baptism Discovered, 11-17.
210 Baptism Discovered, 7, 5. Sobre Cristo como um exemplo quando se trata de batismo, veja também Baptism Discovered, 3-4.
211 “Baptismal Controversies, 1640–1900” em A. Gilmore (org.), Christian Baptism: A Fresh Attempt to Understand the Rite in
terms of Scripture, History, and Theology (Chicago, IL/Philadelphia, PA/Los Angeles, CA: Judson Press, 1959), 305.
212 Karen O’Dell Bullock, “Dutton [nascida Williams], Anne”, Oxford Dictionary of National Biography, Oxford University
Press, 2004; edição on-line, janeiro de 2009
http://www.oxforddnb.com.libaccess.lib.mcmaster.ca/view/article/71063
(
acesso em 9 de julho de 2014). Para um excelente estudo de sua vida, devoção e influência, veja também Michael D. Sciretti, Jr.,
“‘Feed My Lambs’: The Spiritual Direction Ministry of Calvinistic British Baptist Anne Dutton During the Early Years of the
Evangelical Revival” (tese Ph.D., Baylor University, 2009).
213 Brief Hints concerning Baptism: Of the Subject, Mode, and End of this Solemn Ordinance (London: J. Hart, 1746), 12.
214 Hino VII em Hymns for Believer’s Baptism (London, 1786), 12-13.
215 “Prefácio” a Norcott, Baptism Discovered, vi.
7
A Segunda
Confissão de Fé de Londres:
seu propósito
m 1689, quando os batistas calvinistas se reuniram em Londres para sua primeira
E assembleia nacional, a decisão mais significativa que eles tomaram, sob a perspectiva
histórica, foi a publicação de uma confissão de fé, a Segunda Confissão de Fé de Londres, a
qual viria a ser a clássica expressão da doutrina batista calvinista. Contudo, como já observado
no Capítulo 3, essa Confissão viera pela primeira vez à luz doze anos antes, em 1677. No
prefácio anexado à Confissão por ocasião da primeira edição, havia duas razões explícitas para a
publicação de uma nova confissão. Em primeiro lugar, a Primeira Confissão de Londres servira,
em parte, para dar satisfação a muitos de que os batistas calvinistas não eram “de forma alguma
culpados por heterodoxias ou erros fundamentais que, com frequência, eram cobrados deles sem
fundamento ou sem que deles dessem causa”. Além disso, “muitos outros” haviam “abraçado a
mesma verdade” estabelecida na Primeira Confissão de Londres e que, presume-se, haviam
solicitado uma expressão compacta de sua fé.216 No entanto, indaga-se, por que simplesmente
não reimprimir a Primeira Confissão de Fé de Londres? Para responder a essa questão, é
necessário analisar os eventos ocorridos entre a publicação da Primeira Confissão de Londres e a
publicação da Segunda Confissão de Londres.

PERSEGUIÇÃO
A Primeira Confissão de Fé de Londres foi muito útil aos batistas calvinistas durante as décadas
de 1640 e 1650, quando as normas do Parlamento e, em seguida, as leis aprovadas por Oliver
Cromwell lhes proporcionaram um grau de liberdade até então inédito para evangelizar e plantar
novas igrejas. Mas, como já vimos, o retorno de Carlos II à Inglaterra, em 1660, mudou esse
contexto. A perseguição tornou-se a ordem do dia. Curiosamente, Carlos II, que praticava o
catolicismo romano em segredo, e foi recebido na Igreja Romana em seu leito de morte, parece
ter tido o desejo sincero de pôr em prática a tolerância religiosa. E, provavelmente, esse desejo
decorre do fato de que essa tolerância conferia uma relativa segurança aos companheiros
católicos romanos. Mas, como o historiador britânico Michael R. Watts observa, “embora Carlos
II se inclinasse à tolerância religiosa, inclinava-se muito mais à coroa”.217 Para manter a coroa
que havia conquistado, Carlos II precisava do Parlamento, e o Parlamento que havia chegado ao
poder com ele, em 1660, nutria pouquíssima simpatia pelo puritanismo, dentro ou fora da Igreja
da Inglaterra. Desse modo, nos vinte e oito anos subsequentes, aqueles que não se conformavam
com a Igreja da Inglaterra eram submetidos a uma “perseguição planejada e, com frequência,
impiedosa”.218 Por exemplo, em junho de 1662, a Igreja Batista Calvinista de Petty France foi
atacada por um grupo de soldados que, segundo alguns registros, “vieram ao local com muita ira
e violência, com suas espadas desembainhadas; eles feriram alguns, atingiram outros, quebraram
o púlpito e fizeram bastante estrago”.219
É claro que os batistas calvinistas não foram os únicos a sofrer nesse período de intensa
perseguição; em alguma medida, todos os que discordavam dos ritos e das práticas da Igreja da
Inglaterra sofriam. E esse caldeirão de aflição coletiva serviu apenas para reforçar, na mente de
muitos batistas calvinistas, quanto havia em comum entre eles e outros calvinistas que eram
presbiterianos ou congregacionalistas, sendo este último grupo conhecido como o dos
“Independentes”. Além disso, eles tinham em mãos um documento capaz de mostrar, de forma
concreta, a unidade doutrinária essencial entre esses três grupos, ou seja, a Confissão de Fé de
Westminster. Essa Confissão, a declaração oficial de fé tanto da Igreja da Escócia como dos
presbiterianos ingleses, havia sido emitida pela Assembleia de Westminster, em 1646.
Posteriormente, os Independentes passaram a usá-la como o alicerce de sua declaração de fé,
conhecida como Declaração de Savoy — documento elaborado em 1658, por autores puritanos
como John Owen e Thomas Goodwin (1600–1680).220 O desejo de apresentar uma frente
calvinista unida diante daquela perseguição levou, consequentemente, os batistas calvinistas a
também adotar a Confissão de Westminster, da forma como fora alterada pela Declaração de
Savoy, tomando-a como base para uma nova confissão.221

HIPERCALVINISMO
Uma segunda razão para a redação de uma nova confissão foi o surgimento, no sudoeste da
Inglaterra, do hipercalvinismo. Andrew Gifford (1642–1721), pastor da Igreja Batista Calvinista
Pithay, em Bristol, conhecia “alguns ministros que sustentavam que ninguém poderia orar de
forma aceitável sem a influência do Espírito Santo, e que os homens não convertidos eram
destituídos dessa influência, razão pela qual não tinham o dever de orar, tampouco era dever dos
ministros exortá-los a buscar as bênçãos espirituais”.222 Então, Gifford escreveu aos pastores
batistas em Londres, em busca de uma opinião sobre o assunto.
Em janeiro de 1675, William Kiffen e outros batistas de Londres redigiram uma carta. Nela,
afirmavam, de forma inequívoca, que “a oração faz parte do culto que todo homem tem o dever
de prestar a Deus” e que se trata de “um dever que pertence à ordem natural, e não apenas à
religião instituída”. O suporte para essa posição foi encontrado em Atos 17.26-27, passagem em
que o apóstolo Paulo declara aos filósofos atenienses, no Areópago, que Deus ordenou a história
do mundo de tal modo que tanto homens como mulheres “deveriam buscar o Senhor”. Como
Kiffen e seus companheiros batistas passaram a observar: “O que quer que, nesse texto, esteja
coberto pela busca em si, a oração não pode (por qualquer razão) ser excluída; e, se a oração está
incluída, é extensiva a toda a humanidade. Não se pode supor que o homem, na condição de
criatura que é, não esteja obrigado a amar, a temer e a obedecer a Deus”. Em resposta à objeção
de que “tais pessoas não têm o Espírito [e], portanto, não devem orar”, os batistas de Londres
foram inequívocos em sua resposta.
Essa objeção não é convincente, dado que nem a moção imediata do Espírito nem sua assistência no dever isentam o
homem da obrigação em si. Se assim fosse, então também diria respeito a todos os outros deveres; e, consequentemente,
toda religião estaria envolvida. Se a obrigação com esta e com outras funções está suspensa apenas por falta de tais
moções ou de assistência, então as pessoas não convertidas estão tão longe de pecar na omissão de tais deveres que é sua
obrigação omiti-los. É certo que nenhum homem pode, sem a ajuda do Espírito Santo, arrepender-se ou passar a crer; no
entanto, não se segue que a impenitência e a incredulidade não sejam pecados; e, se são pecados, então o contrário deve
ser o dever.223

Chegando apenas alguns anos antes da publicação da Segunda Confissão de Londres, com
certeza se esse texto estava na mente daqueles que a compilaram.

A AMEAÇA DOS QUAKERS


Outra razão que motivou a elaboração de uma nova confissão foi a ameaça representada pelos
quakers [ou quacres].224 O movimento quaker teve início no final da década de 1640, quando
George Fox (1624–1691), um sapateiro e pastor em período parcial, começou a ganhar
convertidos para um perspectiva sobre a fé cristã que rejeitava boa parte da teologia puritana
ortodoxa. Fox e os primeiros quakers proclamavam a possibilidade de salvação para a
humanidade inteira, exortando homens e mulheres a recorrer à luz existente em seu íntimo para
encontrar a salvação. “Clamamos todos os homens a seguir na direção da Luz que eles têm em
suas próprias consciências”, escreveu Samuel Fisher (1605–1665), um batista geral que se
tornara quaker; “sob a liderança dessa Luz (...) eles podem vir a Deus, e trabalhar sua
salvação”.225 Via de regra, essa ênfase na luz interior, que os quakers frequentemente chamavam
de Cristo ou Espírito, levava-os a alçá-la a uma posição acima das Escrituras.
Para os puritanos, inclusive para os batistas calvinistas, a natureza da obra do Espírito nos
autores das Escrituras era única, pertencendo, definitivamente, ao passado. Agora, o Espírito
estava iluminando o que havia inspirado, e as experiências do Espírito deveriam ser vivenciadas
através das Escrituras. Como Richard Baxter declarou:
Não devemos buscar as Escrituras por causa, principalmente, de nossas apreensões espirituais, mas por causa de nossa
apreensão quanto às Escrituras: ou seja, devemos preferir os Apóstolos inspirados pelo Espírito ditando as Escrituras,
com a iluminação do Espírito para entendê-las; e, se nos virmos diante de qualquer inspiração, devemos preferir a do
Espírito, a mais perfeita de todas; porque Cristo deu aos Apóstolos o Espírito para nos entregar, de forma infalível, seus
próprios mandamentos, e para ditar as regras para as eras seguintes; mas ele nos dá o Espírito apenas para entender e usar
essa regra de forma correta. Essa inspiração do Espírito nas Escrituras não é um cenário que traduza as Escrituras acima
do próprio Espírito; mas tão somente o Espírito pelo Espírito; ou seja, as operações do Espírito em si e suas revelações
(...) pelas operações do Espírito nos Apóstolos e por suas revelações registradas para nosso uso.226

Em relação aos quakers, porém, havia uma profunda convicção de que o Espírito falava neles,
assim como havia falado nos Apóstolos. Na prática, isso, frequentemente, conduzia a uma
elevação de sua experiência acerca da habitação do Espírito sobre as Escrituras. Assim, quando
alguns batistas em Huntingdonshire e Cambridgeshire tornaram-se quakers e declararam que “a
luz em suas consciências era a regra segundo a qual desejavam pautar sua conduta”, e não as
Escrituras, estavam simplesmente expressando o que estava implícito em todo o movimento
quaker.227
Esse desejo de viver segundo aquilo que eles consideravam os ditames da habitação do
Espírito, e não da Palavra escrita, levou, eventualmente, os primeiros quakers a adotar padrões
de comportamento bastante bizarros. Provavelmente o mais estranho deve ter sido a prática de
“se despir como um sinal”!228 Um quaker que parece ter sido “especialista” nesse tipo de
comportamento foi Solomon Eccles (ca. 1618–1683). Quando ele se despiu pela primeira vez,
em 1659, afirmou que o fizera porque, “pelo mesmo espírito [que moveu Isaías e Ezequiel], o
Senhor me criou, para servir de sinal para essa Geração sombria”. Embora, de 1662 em diante, a
prática de “se despir como um sinal” tenha sido uma ocorrência relativamente rara — apesar de
Eccles ainda estar envolvido nela até 1669 —, o fenômeno ilustra bem a tendência inerente ao
movimento quaker de exaltar o Espírito em detrimento da Palavra.
Isaac Penington, o Jovem (1616–1679), é um dos primeiros autores do movimento quaker que
ilustra bem essa tendência de fazer do Espírito Habitante, em vez das Escrituras, a pedra de toque
e a autoridade final para o pensamento e a prática. Convertido ao quakerismo em 1658, depois de
ouvir George Fox pregar no ano anterior, Penington tornou-se uma figura importante no
movimento. Nas palavras de J. W. Frost, Penington “continua a ser um exemplo primordial da
sofisticação intelectual da segunda geração de quakers convertidos”.229 Em 1670, em uma carta
escrita a um colega quaker chamado Nathanael Stonar, Penington declarou ao seu
correspondente que uma das principais diferenças entre ele e outros “mestres” dizia respeito a
“regras”. Enquanto este último afirmava que as Escrituras eram a regra segundo a qual homens e
mulheres deveriam pautar suas vidas e seus pensamentos, Penington estava convencido de que o
Espírito da vida que habitava nele era “mais próximo e mais poderoso do que as palavras ou as
relações externas que dizem respeito a essas coisas nas Escrituras”. Como Penington observou:
O Senhor, no estado do evangelho, prometeu estar presente com seu povo; não como um transeunte, por uma noite
apenas, mas para habitar neles e andar neles. Sim, se eles forem tentados e se virem em perigo de errar, ouvirão uma voz
atrás de si dizendo: “Este é o caminho, caminhe nele”. Eles não vão reconhecer nisso uma regra, assim como as regras
contidas nas Escrituras? Não é uma direção mais completa para o coração, nesse estado, do que uma escolha fora das
Escrituras? O Espírito, que inspirou as palavras, é maior do que as palavras; portanto, não podemos deixar de valorizá-lo,
e colocá-lo mais alto em nosso coração e em nossos pensamentos do que as palavras que dão testemunho dele, embora
elas também sejam muito doces e preciosas ao nosso gosto.230

Penington afirmou que os quakers consideravam as Escrituras “doces e preciosas”, mas ele se
mostrava igualmente inflexível no sentido de que o Espírito Habitante deveria ser considerado a
autoridade suprema quando se tratava de um rumo para a vida cristã e o pensamento cristão.231
Os quakers atormentavam especialmente as congregações batistas, destruindo muitas delas no
processo de ganhar convertidos. E, embora os batistas gerais se mostrassem mais suscetíveis às
opiniões dos quakers, os batistas particulares também não estavam imunes às suas influências.
Por exemplo, um membro da Igreja Batista Particular Petty France, depois de ser advertido, foi
excomungado, em outubro de 1676, por se haver juntado aos quakers. Outro bom exemplo é
Luke Howard, que se mostrou fundamental para convencer Samuel Fisher a se tornar um quaker.
Howard havia sido batizado por William Kiffen em 1643 ou 1644, mas, posteriormente, juntou-
se ao movimento quaker.232 No sudoeste da Inglaterra, por exemplo, vários líderes entre os
quakers haviam sido batistas antes de mudar de opinião. Thomas Budd, conhecido como um
“mestre batista”, abriu sua propriedade para a realização de grandes assembleias dos quakers.
William Ames, que servira como ministro batista em Somerset, tornou-se quaker enquanto
atuava como soldado na Irlanda. Jasper Batt (1702), que, mais tarde, faria uma pregação no
funeral de George Fox, também já fora batista.233 Nesse contexto, para minimizar as perdas
batistas calvinistas para os quakers, ficou claro que se fazia necessária uma declaração mais
abrangente sobre a natureza da autoridade das Escrituras — mais abrangente do que as várias
observações encontradas aqui e ali na Primeira Confissão de Fé de Londres.

A DESERÇÃO DOUTRINÁRIA
DE THOMAS COLLIER
Possivelmente a razão doutrinária mais premente para uma nova confissão foi a deserção de
Thomas Collier (1634?–1691).234 Collier, um membro da igreja de William Kiffen, servira como
capelão junto às tropas parlamentares nos últimos anos da Guerra Civil. Em 1651, tornou-se um
evangelista itinerante no sudoeste da Inglaterra, onde trabalhou pelos quinze anos seguintes.
Nesse período, tornou-se um líder reconhecido entre os batistas calvinistas. O testemunho da
importância de Collier vem de Thomas Edwards (1599–1647), um presbiteriano e puritano em
teologia, mas que nutria profunda antipatia pelos batistas. Ele descreveu Collier da seguinte
forma: “Esse Collier é um grande sectário no oeste da Inglaterra, um sujeito mecânico [ou seja,
um indivíduo vulgar, pertencente às classes mais baixas] e um grande emissário, um
mergulhador que passa por Surrey, Hampshire e outros países pregando e mergulhando”.235
Em 1674, no entanto, Collier publicou uma obra intitulada A Body of Divinity [Um corpo de
divindade], a qual enviou verdadeiras “ondas de choque” por toda a comunidade batista
calvinista, pois, nesse livro, Collier negava a doutrina calvinista do pecado original,
argumentando que Cristo havia morrido por todos os homens e mulheres, e sustentando que a
humanidade de Cristo era eterna.236 Devido à posição de Collier entre os batistas calvinistas, era
imperativo que suas opiniões fossem enfrentadas. Um encontro foi organizado entre Collier e
cinco ministros batistas de Londres, incluindo Kiffen e Nehemiah Coxe, que fora um dos
pastores da Igreja Batista Calvinista Petty France.237 Entretanto, Collier recusou-se a renunciar às
suas novas opiniões e foi devidamente acusado de heresia. Embora, em 1677, Coxe tenha
publicado uma extensa refutação das opiniões de Collier, a controvérsia ameaçava pôr em dúvida
o compromisso dos batistas calvinistas com o calvinismo. Portanto, uma nova declaração de seu
compromisso com o calvinismo se fazia necessária.
JOHN BUNYAN (1628–1688)

PUBLICAÇÃO DA CONFISSÃO
A nova Confissão foi publicada em 1677. E, embora tenha sido publicada de forma anônima,
parece que foi preparada por Coxe e por seu colega pastor William Collins.238 Collins havia
estudado na França e na Itália, obtendo um bacharelado na Inglaterra. Haviam sido feitos alguns
esforços no sentido de enquadrá-lo à Igreja da Inglaterra, mas ele resistira a todos e, em 1675,
aceitou um convite para pastorear a Igreja Petty France. Originalmente, Coxe havia sido membro
da igreja de John Bunyan, em Bedford, passara um tempo com Bunyan na prisão por pregar o
evangelho e fora ordenado para o ministério na mesma reunião em que Bunyan recebeu o
convite para pastorear a igreja.239
Como já observado, Collins e Coxe usaram a Confissão de Westminster e a Declaração de
Savoy [ou Confissão de Savoy] na preparação da Segunda Confissão de Londres. No entanto,
eles não reproduziram essas confissões de uma só vez. Como eles afirmaram no Prefácio: “De
fato, algumas coisas foram adicionadas em certos lugares, alguns termos omitidos e alguns
poucos modificados”.240 Essas mudanças dizem respeito não apenas a coisas óbvias como o
batismo e a governança da igreja, mas também incluem modificações em outras áreas menos
óbvias. O tratado de reprovação, por exemplo, tanto na Confissão de Westminster como na
Declaração de Savoy, descreve o reprovado como “predestinado à morte eterna”. A Segunda
Confissão de Londres atenua isso um pouco, afirmando que os reprovados são “deixados a agir
em seus pecados para a sua justa condenação”.241 Além disso, no mesmo artigo, um parágrafo
inteiro sobre a reprovação que é encontrado na Confissão de Westminster e na Declaração de
Savoy foi excluído da Segunda Confissão de Londres. Outra mudança está presente no artigo
relativo à adoração. Na Confissão de Westminster e na Declaração de Savoy, o canto é restrito ao
“canto dos salmos”. Mas, na Segunda Confissão de Londres, os “hinos e as canções espirituais”
são incluídos ao lado dos Salmos como material adequado para cantar.242 No entanto, como
observa Robert Oliver: “Essas diferenças não devem obscurecer a concordância massiva entre a
Segunda Confissão de Londres e a Confissão de Westminster e a Declaração de Savoy. A
Confissão Batista pode ser claramente vista como inserida no contexto da teologia evangélica,
que fluiu da Assembleia de Westminster”.243
Como já vimos, doze anos após a publicação da Segunda Confissão de Londres, em 1677, ela
foi ratificada pela primeira Assembleia Nacional de Batistas Calvinistas, como a “confissão que
possuímos, aquela que contém a doutrina de nossa fé e de nossa prática”.244 No capítulo seguinte,
analisamos os aspectos dessa doutrina, aqueles relacionados às Escrituras, a soteriologia
calvinista e a Ceia do Senhor, na esperança de que a Segunda Confissão de Londres seja
apreciada não apenas como um documento histórico, mas também como um guia relevante para
a vida cristã de hoje.
216 Veja Michael R. Watts, The Dissenters (Oxford: Clarendon Press, 1978), I, 221-222.
217 Watts, Dissenters, I, 222.
218 Watts, Dissenters, I, 222.
219 Citado em T. E. Dowley, “A London Congregation during the Great Persecution: Petty France Particular Baptist Church,
1641–1688”, The Baptist Quarterly, 27 (1977–1978), 233.
220 Embora a maioria dos artigos da Declaração de Savoy tenha sido extraída, palavra por palavra, da Confissão de Fé de
Westminster, há um bom número deles cuja redação foi alterada pelos autores da Declaração de Savoy, inclusive com o
acréscimo de novos artigos. Para algumas dessas mudanças, veja Peter Toon, Puritans and Calvinism (Swengel, Pennsylvania:
Reiner Publications, 1973), 77-84; Robert W. Oliver, “Baptist Confession Making 1644 and 1689” (artigo apresentado à Strict
Baptist Historical Society, em 17 de março de 1989), 11-12.
221 Second London Confession of Faith, Prefácio (William L. Lumpkin, Baptist Confessions of Faith [edição revisada; Valley
Forge: Judson Press, 1969], 244-245).
222 Citado em Joseph Ivimey, A History of the English Baptists (London, 1811), I, 416.
223 Citado em Ivimey, History, I, 417-418.
224 Oliver, “Baptist Confession Making”, 12-13.
225 Citado em Barry Reay, The Quakers and the English Revolution (New York: St. Martin’s Press, 1985), 33. Para uma
discussão da abordagem de Fisher à Escritura, veja Dean Freiday, The Bible: Its Criticism, Interpretation and Use in 16th and
17th Century England (Pittsburgh: Catholic and Quaker Studies, 1979), 97-102.
226 Citado em Geoffrey F. Nuttall, The Holy Spirit in Puritan Faith and Experience (2nd ed.; Oxford: Basil Blackwell, 1947),
32.
227 Citado em Reay, Quakers, 34.
228 Para um excelente estudo desse fenômeno, veja Kenneth L. Carroll, “Early Quakers and ‘Going Naked as a Sign’”, Quaker
History, 67 (1978), 69-87. O parágrafo que se segue tem uma dívida com esse estudo. Veja também Richard Bauman, Let Your
Words Be Few: Symbolism of Speaking and Silence among Seventeenth-Century Quakers (Cambridge: Cambridge University
Press, 1983), 84-94.
229 “Penington, Isaac (the Younger)” em Richard L. Greaves e Robert Zaller (orgs.), Biographical Dictionary of British Radicals
in the Seventeenth Century (Brighton, Sussex: The Harvester Press, 1984), III, 23.
230 Letters of Isaac Penington (2nd ed.; repr. London: Holdsworth and Ball, 1829), 202-203. Pelo acesso a essas cartas, devo
muito a Heinz G. Dschankilic.
231 Veja também as observações de Richard Dale Land, “Doctrinal Controversies of English Particular Baptists (1644–1691) as
Illustrated by the Career and Writings of Thomas Collier” (tese D.Phil., Regent’s Park College, Oxford University, 1979), 205-
211. Nas palavras de Richard Bauman (Let Your Words Be Few, 38): “Os quakers eram muito dedicados à Bíblia, não como
fonte de autoridade tradicional, mas como validação histórica dos padrões e das dinâmicas de sua própria missão profética
carismática”.
232 B. R. White, “The Frontiers of Fellowship Between English Baptists, 1609–1660”, Foundations, 11 (1968), 250.
233 Dowley, “London Congregation”, 237; Land, “Doctrinal Controversies”, 191-192.
234 Oliver, “Baptist Confession Making”, 13. Para uma análise completa do ministério e dos escritos de Collier, veja Land,
“Doctrinal Controversies”.
235 Citado em Thompson Cooper, “Collier, Thomas”, The Dictionary of National Biography (1887 ed.; repr. Oxford: Oxford
University Press, 1963–1964), IV, 810-811.
236 Oliver, “Baptist Confession Making”, 13.
237 Para mais detalhes acerca da biografia de Nehemiah Coxe, veja Dowley, “London Congregation”, 238, n. 12; Joseph Ivimey,
A History of the English Baptists (London, 1814), II, 403- 407.
238 Sobre William Collins, veja Ivimey, History, II, 397-403.
239 Christopher Hill, A Turbulent, Seditious, and Factious People: John Bunyan and his Church, 1628–1688 (Oxford:
Clarendon Press, 1988), 122.
240 Lumpkin, Baptist Confessions, 245.
241 Westminster Confession 3.3; Savoy Declaration 3.3; Second London Confession 3.3 (Lumpkin, Baptist Confessions, 254).
242 Westminster Confession 21.5; Savoy Declaration 22.5; Second London Confession 22.5 (Lumpkin, Baptist Confessions,
281). Para uma discussão adicional, veja o Capítulo 8.
243 “Baptist Confession Making”, 21.
244 Citado em Lumpkin, Baptist Confessions, 239.
8
A Segunda
Confissão de Fé de Londres:
sua teologia
UMA VISÃO ELEVADA DAS ESCRITURAS
eguindo a ordem da Confissão de Westminster e da Declaração de Savoy, a Segunda

S Confissão de Fé de Londres começa com um capítulo extenso sobre as Escrituras. De


acordo com as palavras dos autores batistas americanos L. Ross Bush e Tom J. Nettles,
esse capítulo “contém a declaração confessional mais clara sobre as Escrituras de toda a
cristandade”.245 Além de um parágrafo introdutório e de uma sentença final, essa Confissão
praticamente reproduz os capítulos correspondentes da Confissão de Westminster e da
Declaração de Savoy. A Introdução, porém, é bastante significativa e um calibre valioso para se
aferir em que ponto os batistas calvinistas do século XVII se encontravam em relação à natureza
das Escrituras.
“As Sagradas Escrituras”, afirma, “são a única, suficiente, correta e infalível regra de todo
conhecimento, fé e obediência salvíficos”.246 Essa frase descreve a natureza das Escrituras por
quatro termos cuidadosamente escolhidos. O primeiro deles, “única”, enfatiza que, além das
Escrituras, não há outra fonte de autoridade religiosa definitiva. Mais adiante, em sua declaração
sobre as Escrituras, a Segunda Confissão de Londres desenvolve essa assertiva, afirmando que
nada deve ser adicionado às Escrituras, “seja por novas revelações do Espírito, seja pela tradição
dos homens”.247 No contexto histórico da Confissão, essa declaração excluiria especialmente as
revelações dos quakers, que seus oponentes julgavam estar se elevando a uma posição de
autoridade, ao lado das Escrituras.
Então, essa sentença de abertura da Confissão assinala que, embora Deus se revele de outras
formas além das Escrituras, como, por exemplo, através do reino criado, apenas as Escrituras são
“suficientes” para “dar esse conhecimento de Deus e de sua vontade que se faz necessário à
salvação”.248 Ou, nas palavras da Segunda Confissão de Londres 1.6: “Todo o conselho de Deus
concernente a todas as coisas necessárias para a sua própria glória, a salvação do homem, fé e
vida, ou é expressamente declarado ou necessariamente contido nas Sagradas Escrituras”.249 As
Escrituras escritas são necessárias para que Deus seja devidamente glorificado por homens e
mulheres, além de se mostrarem vitais para que eles cheguem ao conhecimento salvífico de
Deus, desenvolvendo, em seguida, uma visão de mundo (assim Bush e Nettles interpretam a
“fé”)250 e um estilo de vida em consonância com sua salvação.
Os próximos dois termos da frase de abertura desse artigo sobre as Escrituras se assemelham,
embora não sejam idênticos, em seu sentido. As Escrituras são “corretas”, ou seja, não contêm
erro. Bush e Nettles consideram esse termo equivalente à palavra “inerrante” — termo que,
atualmente, é usado nos círculos evangélicos para denotar o que é totalmente verdadeiro. As
Escrituras também são consideradas “infalíveis”, um termo com uma longa história de uso na
teologia cristã, e que identifica a Escritura como detentora da qualidade de ser totalmente
confiável e fidedigna.251
Em face da ameaça concreta que era representada pelo movimento quaker às igrejas batistas
calvinistas, parece bem provável que o reforço dessa declaração sobre as Escrituras seja uma
resposta definitiva a essa situação. Em sua ênfase nas Escrituras como o supremo árbitro para a
vida cristã, os batistas calvinistas estavam refletindo a herança puritana, pois o “puritanismo, em
primeiro lugar e acima de tudo, foi um movimento centrado nas Escrituras”.252 Assim, do ponto
de vista batista calvinista, os quakers haviam sido os responsáveis por fazer uma clivagem não
bíblica entre o Espírito e a Palavra. Como Benjamin Keach declarou, em 1681, em uma alusão
direta aos quakers: “Muitos estão confiantes de que têm o Espírito, a Luz e o Poder, quando tudo
não passa de mera ilusão. O Espírito sempre conduz e orienta de acordo com a Palavra escrita:
‘[o Espírito Santo], a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos
fará lembrar de tudo o que vos tenho dito’, diz Cristo [cf. Jo 14.26]”.253
Para que não se pense que os batistas calvinistas do século XVII, em seu desejo de enfatizar a
autoridade das Escrituras, foram ao extremo oposto e depreciaram a importância do trabalho do
Espírito na vida cristã, é preciso observar os dizeres da Segunda Confissão de Londres 1.5,
passagem em que se afirma que “podemos ser movidos e compelidos pelo testemunho da Igreja
de Deus a um alto e reverente apreço pelas Escrituras Sagradas; (...) ainda assim, não obstante, a
nossa plena persuasão e certeza de sua verdade infalível e autoridade Divina provêm da operação
interna do Espírito Santo, testemunhando por meio da e com a Palavra em nossos corações”,
convencendo os crentes de que a Palavra de Deus é, de fato, o que afirma ser.254

NA HERANÇA REFORMADA
À luz dos documentos que foram empregados na elaboração da Segunda Confissão de Londres,
bem como de algumas das razões para sua publicação, espera-se apenas que os princípios
distintos do calvinismo sejam altamente visíveis na Confissão. Cada um dos pontos descritos
como “os cinco pontos do calvinismo” é tratado de forma clara e abrangente. E uma excelente
vitrine para se observar o calvinismo da Segunda Confissão de Londres é sua doutrina da obra do
Espírito Santo.
Foi Benjamin B. Warfield, o teólogo presbiteriano do início do século XX, quem afirmou,
certa vez, que a maior contribuição de João Calvino, o pai espiritual dos batistas calvinistas, para
a ciência da teologia foi sua exposição sistemática da obra do Espírito Santo. De acordo com as
palavras de Warfield, foi Calvino “quem primeiro relacionou toda a experiência de salvação
especificamente à obra do Espírito Santo, explorando seus detalhes e contemplando seus vários
passos e etapas na confecção do produto da obra específica do Espírito Santo na aplicação da
salvação à alma. Assim, ele conferiu uma expressão sistemática e adequada a toda a doutrina do
Espírito Santo, tornando-a uma possessão garantida da Igreja de Deus”.255 E, dos herdeiros
teológicos de Calvino, foram especialmente os puritanos aqueles que compartilharam esse
grande interesse do reformador francês.256 Portanto, revela-se bem apropriado examinar o
calvinismo da Segunda Confissão de Londres por meio da discussão da obra do Espírito Santo na
salvação.257
Para um homem ou mulher se arrepender e recorrer a Deus, é necessário haver uma obra
prévia do Espírito. Como diz a Segunda Confissão de Londres 10.1-2:
Aqueles que Deus predestinou à Vida, ele se satisfaz, em seu tempo nomeado e devido, em chamar por meio de sua
palavra, e Espírito, para fora desse estado de pecado, e morte, estado no qual eles estão por natureza, para a graça e a
salvação de Jesus Cristo; iluminando suas mentes, espiritualmente, e salvando-os para que compreendam as coisas de
Deus; removendo seu coração de pedra e dando-lhes um coração de carne; renovando suas vontades e, por seu poder
todo-poderoso, determinando a eles o que é bom e, efetivamente, atraindo-os para Jesus Cristo; assim, eles vêm mais
livremente, mostrando-se dispostos por meio de sua Graça.258

Como aqueles que se encontram fora de Cristo estão espiritualmente mortos, cegos para as
coisas de Deus, incapazes de responder aos seus apelos e na escravidão do pecado, Deus tem de
operar em seu nome para que eles sejam salvos. Ele faz isso pelos pecadores que escolheu para
salvar, remodelando suas vontades e dando-lhes novos afetos. Na mesma ação, Deus os vivifica
e lhes dá uma nova vida através de seu Espírito. Agora, eles são capazes de responder a Deus e
abraçar tudo o que Cristo fez por eles.
A mesma verdade é enfatizada em um artigo posterior intitulado “Sobre o Evangelho e a
Extensão de sua Graça”. Esse artigo não é encontrado na Confissão de Westminster, mas já havia
aparecido na Declaração de Savoy, que se revela a fonte para sua inclusão na Segunda Confissão
de Londres.259 No quarto parágrafo desse artigo, lemos que, “apesar de o Evangelho ser o único
meio exterior de revelação de Cristo e da graça salvífica e, como tal, para tanto abundantemente
suficiente, ainda assim, para que os homens que se encontram mortos em delitos possam
renascer, ser vivificados ou regenerados, é necessário haver uma obra eficaz e invencível do
Espírito Santo sobre toda a alma, a fim de produzir neles uma nova vida espiritual, sem a qual
nenhum outro meio será suficiente para a sua conversão a Deus”.260 Para uma pessoa ser
convertida, não basta que ouça o evangelho e busque responder a ele com sua própria força. A
resposta positiva ao evangelho só pode ocorrer quando o Espírito trabalha com um poder
invencível no coração do incrédulo, dando-lhe as condições irresistíveis para recorrer a Deus.
Passagens como Ezequiel 36.26-27 [“Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito
novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós o meu
Espírito e farei com que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis”]
levaram aqueles que redigiram essa Confissão a ver que Deus prometera “dar a todos os que são
ordenados para a vida eterna o seu Espírito Santo, a fim de torná-los dispostos e capazes de
crer”.261 Portanto, não deve ser motivo de surpresa que a fé salvífica também seja reconhecida
pela Confissão como uma obra do Espírito. “A graça da fé”, lemos no artigo 14, parágrafo 1º,
“pela qual os eleitos são habilitados a crer para a salvação de suas almas, é obra do Espírito de
Cristo em seus corações”.262
Nesse sentido, também vale ressaltar que a Segunda Confissão de Londres enfatiza a estreita
ligação que se faz presente entre a obra do Espírito na salvação e a Palavra de Deus. A chamada
efetiva, por exemplo, é pela “Palavra e o Espírito”. Além disso, a “graça da fé”, descrita, acima,
como uma “obra do Espírito de Cristo” no coração, é normalmente dada através do “Ministério
da Palavra”.263
Ademais, aqueles a quem o Espírito regenera, ele também santifica: “Aqueles que são unidos a
Cristo, eficazmente chamados e regenerados, tendo um novo coração e um novo espírito criados
neles, por meio da virtude da morte e da ressurreição de Cristo, também são santificados real e
pessoalmente, através da mesma virtude, pela sua Palavra e pelo Espírito que habita neles”. A
Confissão enfatiza especialmente que, nesta vida, a santificação de qualquer crente “ainda é
imperfeita”, uma vez que, dentro de cada filho de Deus, há “uma guerra contínua e
irreconciliável; a carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne”, uma clara alusão às
palavras de Paulo em Gálatas 5.17. Embora a carne, ou “a corrupção remanescente por um
tempo, possa grandemente prevalecer, através do suprimento contínuo de força do Espírito
santificador de Cristo, a parte regenerada triunfa”.264 Em outras palavras, apesar dos
contratempos e dos fracassos, o resultado final da luta do crente contra a carne será a vitória para
ele. Mas essa vitória só é possível diante do poder dado ao crente pelo Espírito Santo que nele
habita.
Essa perspectiva sobre a vida cristã era essencialmente a dos puritanos. John Owen, por
exemplo, em uma série de sermões sobre Romanos 8.13, argumenta que o crente tem o dever
constante de conduzir o pecado que ainda habita sua natureza mortal à morte. Mas esse dever só
é possível na força fornecida pelo Espírito Santo, que, sozinho, é “suficiente para realizar esse
trabalho”.265 Um autor puritano anterior, Richard Sibbes (1577–1635), afirma que àqueles a
quem Deus perdoa, “ele dá seu Espírito para santificá-los. O mesmo Espírito que me assegura o
perdão do meu pecado santifica minha natureza”.266 O argumento de Owen, o comentário de
Sibbes e o parágrafo da Confissão Batista são um corretivo adequado para aqueles segmentos
evangélicos de hoje que afirmam que a regeneração não precisa ser seguida pela santificação, ou
seja, em linguagem popular, que é possível ter Jesus como Salvador, e não como Senhor. Os
primeiros batistas calvinistas, assim como o movimento puritano do qual surgiram, teriam
considerado tais sentimentos equivocados e não bíblicos. Naqueles em quem o Espírito trabalha
com a fé salvífica, ele também vem habitar e, como o Espírito Santo nunca habita sem sua
santidade, ele antes remodela o caráter moral daqueles em quem vem habitar.267
A Confissão continua apontando que o Espírito, juntamente com o Pai e o Filho, está
intrinsecamente empenhado em que os crentes continuem na fé. “Aqueles a quem Deus aceitou
no Amado”, lemos na Segunda Confissão de Londres 17.1, 2, “foram eficazmente chamados e
santificados pelo seu Espírito, e receberam o dom da fé preciosa de seus eleitos, não podem nem
total nem finalmente cair do estado de graça; mas certamente perseverarão até o fim, e serão
eternamente salvos”. Em última instância, a perseverança do crente não depende do exercício de
sua própria vontade, mas, entre outras coisas, da “eternidade do Espírito e da semente de Deus
dentro dele”.268
A perseverança, em última análise, resulta em glorificação; e aqui também, indica a Confissão,
o Espírito Santo está ativo. Como afirma no capítulo 31:3: “Os corpos dos injustos serão, pelo
poder de Cristo, ressuscitados para a desonra; os corpos dos justos, pelo seu Espírito, para a
honra”.269 O texto ao qual a Confissão se volta para justificar a inclusão de “pelo seu Espírito”
encontra-se em Filipenses 3.21 [“(O Senhor Jesus Cristo) o qual transformará o nosso corpo de
humilhação, para ser igual ao corpo de sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até
subordinar a si todas as coisas”], um versículo que não contém menção explícita ao Espírito.
Evidentemente, aqueles que redigiram a Confissão entenderam a frase “segundo a eficácia do
poder” como uma referência oblíqua ao Espírito Santo. Provavelmente um texto de prova melhor
sobre esse ponto teria sido Romanos 8.11, em que o envolvimento do Espírito Santo na
ressurreição dos crentes é claramente indicado.
É preciso ressaltar que esse calvinismo vigoroso da Segunda Confissão de Londres também é
um calvinismo firmemente evangélico. Por exemplo, no capítulo 7.2, afirma-se inequivocamente
que, “tendo o homem trazido a si mesmo a maldição da lei, por sua queda, agradou ao Senhor
fazer um Pacto de Graça, no qual ele oferece, livremente, aos pecadores a vida e a salvação por
meio de Jesus Cristo, exigindo deles que tenham fé nele, para que eles sejam salvos”.270 A
afirmação de que Deus “oferece livremente aos pecadores vida e salvação por meio de Jesus
Cristo” prevê uma pregação sem ônus do evangelho a todos e sem restrição.271 Numerosas
declarações poderiam ser retiradas dos escritos daqueles que elaboraram essa Confissão
abordando o mesmo ponto. Por exemplo, Hanserd Knollys afirmaria inequivocamente:
A sentença que diz que Deus tem, em sua infinita sabedoria, o desejo de converter os pecadores, e também de construí-
los em Cristo, é a Palavra pregada, Romanos 10.8, 17. Essa palavra do Evangelho, Deus terá pregado a cada criatura em
todas as partes do mundo, Marcos 16.15. Ninguém está isento ou proibido de ouvir o Evangelho pregado, mas aquele
que tem ouvidos ouça o que o Espírito tem a dizer, Apocalipse 2.7.272

E Benjamin Keach sustentou que o Espírito Santo é “um rio que está aberto a todos os pobres
pecadores; qualquer um deve vir a essas águas”, e que “Cristo é enviado a todos, aos judeus e
gentios, ao Pequeno, bem como ao Grande, ao Pobre, bem como ao Rico; ninguém está
excluído”.273
No século seguinte, um número significativo de pregadores batistas calvinistas rejeitaria esse
aspecto da Confissão. Abraçando o hipercalvinismo, eles teriam pouco ou nada a dizer aos não
convertidos. Sua visão acerca da salvação reduziu a coragem do evangelismo batista e, não
surpreendentemente, conduziu a uma certa negligência em relação à Segunda Confissão de
Londres. Houve novas edições da Confissão até a quinta edição, em 1720. Mas, até 1791,
nenhuma nova edição foi publicada. Como Robert Oliver observou: “Esse longo eclipse de uma
Confissão, que recebera a recomendação de uma assembleia representativa em 1689, conduz à
suspeita de que sua teologia não foi completamente aceitável durante boa parte do século
XVIII”.274 É digno de nota, porém, que novas edições da Confissão começaram a surgir quando o
avivamento chegou aos batistas calvinistas, no final do século XVIII, e quando o calvinismo
evangélico foi, mais uma vez, amplamente abraçado como calvinismo bíblico por essa
comunidade batista.

CEIA DO SENHOR
O capítulo da Confissão que trata da Ceia do Senhor, o capítulo 30, é um bom exemplo da forma
como os batistas calvinistas buscaram demonstrar sua solidariedade em relação a outros
calvinistas. Após a Confissão de Westminster e a Declaração de Savoy, a Confissão batista
denuncia como não bíblica a doutrina da Igreja Romana da missa, sua prática de realizar missas
privadas, sua recusa em permitir que qualquer pessoa além do padre compartilhe do cálice e seu
dogma da transubstanciação.275 Após se dar conta desses erros em relação à Mesa do Senhor,
uma compreensão correta dessa ordenança é apresentada. “Aqueles que comungam de forma
digna, participando exteriormente dos elementos visíveis dessa ordenança, em seguida, também
interiormente pela fé, realmente, não de maneira carnal e corporalmente, mas espiritualmente,
recebem e alimentam-se de Cristo crucificado, e de todos os benefícios de sua morte; o corpo e o
sangue de Cristo não são corporais ou carnais, mas espiritualmente presentes pela fé dos crentes
nessa ordenança, como estão os próprios elementos aos seus sentidos exteriores.”276 Uma
comparação estreita entre essa declaração e as declarações correspondentes na Confissão de
Westminster e na Declaração de Savoy revela dois pontos principais de divergência. As duas
confissões anteriores usam o termo “sacramento” para descrever a Ceia do Senhor, enquanto, na
Segunda Confissão de Londres, isso foi alterado para “ordenança”.277 Nenhum dos dois termos é
realmente usado no Novo Testamento, mas o termo “ordenança” parece ter sido adotado para
enfatizar a instituição divina da Ceia do Senhor.278
A segunda mudança é uma omissão. A omissão é mais bem-visualizada com a exibição
concomitante das passagens relevantes, lado a lado, na tabela a seguir.

Confissão de Westminster/ Segunda Confissão


Declaração de Savoy279 de Londres280
O corpo e o sangue de Cristo não são corporais ou carnais, dentro, com O corpo e o sangue de Cristo não são corporais ou
ou sob o pão e o vinho; no entanto, como realmente, mas carnais, mas espiritualmente presentes pela fé dos
espiritualmente presentes pela fé dos crentes nessa ordenança, como crentes nessa ordenança, como estão os próprios
estão os próprios elementos aos seus sentidos externos. elementos aos seus sentidos exteriores.

A frase que foi omitida na Segunda Confissão de Londres tinha a intenção de rejeitar a
explicação luterana de como Cristo está presente na Ceia do Senhor.281 De acordo com a visão de
Martinho Lutero, o corpo e o sangue de Cristo estão presentes “dentro, com e sob” o pão e o
vinho. Ao contrário do dogma romano da transubstanciação, o pão permanece como pão; mas, de
alguma forma, também contém o corpo de Cristo após a oração da consagração. Da mesma
forma, o vinho é seu sangue, mas permanece como vinho. A razão para a Segunda Confissão de
Londres omitir essa frase não está clara. Possivelmente, a visão de Lutero não foi recepcionada
por ninguém da comunidade batista calvinista durante o século XVII, de modo que foi omitida
para evitar sobrecarregar a Confissão com declarações desnecessárias.
As diferenças entre as três confissões, contudo, são mínimas em comparação com os pontos de
convergência. Todas as três afirmam que, como os crentes participam do pão e do vinho, estão
realmente se alimentando do Cristo crucificado. Ao contrário do dogma da Igreja Romana, essa
alimentação não implica comer o corpo físico de Cristo e beber seu sangue físico. Trata-se de
uma alimentação espiritual; Cristo está “espiritualmente presente” para os crentes na Ceia do
Senhor.
O que aqueles que aprovaram essa Confissão entendiam por essa expressão “espiritualmente
presente”? Um dos que a aprovaram foi Hercules Collins, pastor da Igreja Batista Wapping, em
Londres. De acordo com John Piggott, que pregou seu sermão fúnebre: “Embora ele não
contasse com o rigor de alguns homens, ainda assim havia nele uma chama constante: pois
nenhum homem seria capaz de pregar com uma atenção mais afetuosa à salvação das almas”.282
Em seu An Orthodox Catechism [Catecismo ortodoxo] (1680), Collins afirmou que, na Ceia do
Senhor, participamos “verdadeiramente de seu Corpo e de seu Sangue através da obra do
Espírito Santo”.283 Sob a perspectiva de Collins, é o Espírito Santo que torna Cristo presente na
Ceia do Senhor. Embora o corpo de Cristo esteja no céu, podemos estar em comunhão com o
Cristo ressuscitado através do Espírito. Mais uma vez, William Kiffen, em sua resposta a John
Bunyan sobre a questão da comunhão aberta ou fechada, assinalou que “a Ceia [do Senhor] é
uma participação espiritual do Corpo e do Sangue de Cristo pela Fé”.284
Essas visões são essencialmente de João Calvino. G. S. M. Walker resumiu a visão de Calvino
sobre a presença de Cristo na Ceia da seguinte forma: “Embora a comunhão seja um ato
espiritual, envolve um compartilhamento real em carne e sangue de Cristo, e embora seu corpo
tenha ascendido fisicamente ao céu, não somos menos capazes de fazer contato com ele através
do Espírito. Como essas coisas podem acontecer, isso permanece como um mistério — mistério
que, nessa condição, deve ser tratado com reverência e aceito na fé”.285 A Confissão Batista
calvinista compartilha a perspectiva de Calvino em sua maior expressão. Ao declarar que Cristo
está “espiritualmente presente” na Ceia do Senhor, sustenta que a presença de Cristo na Ceia é
causada pelo Espírito Santo.
Uma discussão mais detalhada sobre a importância da Ceia do Senhor para a vida cristã é
fornecida no primeiro parágrafo do capítulo 30. Lá, afirma-se que a “Ceia do Senhor Jesus foi
instituída por ele na mesma noite em que foi traído, para ser observada em suas igrejas até o fim
do mundo; para lembrança perpétua e demonstração do sacrifício de si mesmo em sua morte,
confirmação da fé dos crentes em todos os benefícios, seu alimento espiritual e crescimento nele,
seu maior envolvimento em todos os deveres deles para com o Senhor; e para ser um vínculo e
um penhor de sua comunhão com ele e uns com os outros”.286 Nessa enumeração das razões para
a Mesa do Senhor, a Segunda Confissão de Londres segue de perto a Confissão de Westminster e
a Declaração de Savoy. De acordo com esse parágrafo, Cristo instituiu a Ceia do Senhor por
cinco razões. A Ceia serve como um lembrete vívido e testemunhal da morte sacrificial de
Cristo. Desse modo, a participação na Ceia do Senhor permite aos crentes compreender, de
forma mais clara, tudo que Cristo fez por eles através de sua morte na cruz. Em outras palavras, a
Ceia do Senhor é um meio de nutrição espiritual e de crescimento. Em quarto lugar, a Ceia do
Senhor constitui um momento em que os crentes podem comprometer-se com Cristo. Por último,
a Ceia do Senhor afirma a união indissolúvel que existe, por um lado, entre Cristo e os crentes, e,
por outro lado, entre os crentes individualmente.
Não podemos deixar de ler esses parágrafos sobre a Ceia do Senhor sem a convicção de que
aqueles que elaboraram essa Confissão estavam profundamente conscientes da importância da
Ceia do Senhor para a vida cristã. Benjamin Keach fala por seus companheiros batistas ao
afirmar, provavelmente fazendo referência aos quakers, que eles haviam descartado a
observância tanto do batismo como da Ceia do Senhor: “Alguns homens se vangloriam do
Espírito, e concluem que têm o Espírito, mas, ao mesmo tempo, clamam e difamam suas
abençoadas ordenanças e instituições, as quais ele deixou em sua Palavra para que fossem
cuidadosamente observadas e preservadas (...) O Espírito assegura seus limites, e sempre
percorre seu canal espiritual, qual seja, a Palavra e as Ordenanças”.287
Nessa apreciação calorosa da Ceia do Senhor, esses primeiros batistas estão, mais uma vez, na
tendência do pensamento puritano. Em geral, os puritanos consideravam a Ceia um veículo que o
Espírito empregava como um meio de graça eficaz para o crente. E, na maioria das vezes, eles se
opunham à visão associada ao nome do reformador suíço Ulrico Zuínglio, que olha para o pão e
o vinho como simples sinais e, para a Ceia, como uma espécie de memorial.288 Nas recentes
discussões sobre a perspectiva de Zuínglio acerca da Ceia do Senhor, com frequência sustenta-se
que ele não era realmente um zuingliano, ou seja, ele via mais na Ceia do Senhor do que
simplesmente um memorial.289 De qualquer forma, teve início uma tradição, a partir de alguns
aspectos de seu pensamento, enfatizando principalmente a natureza memorial da Ceia do Senhor.
Nos círculos batistas calvinistas, essa perspectiva zuingliana sobre a Ceia do Senhor acabaria por
ser o consenso esmagador no final dos séculos XVIII e XIX. No final das contas, as pessoas
esqueciam que os primeiros batistas calvinistas tinham uma mente bem diferente. Os batistas do
século XVII teriam julgado a visão zuingliana da Ceia do Senhor sob a perspectiva de ser um
meio rico de graça. De fato, ao buscar articular uma visão mais equilibrada da Mesa do Senhor, o
melhor que os batistas contemporâneos podem fazer é ouvir de novo o que seus antepassados
batistas escreveram no capítulo 30 da Segunda Confissão de Londres.

CONCLUSÃO
A Segunda Confissão de Londres certamente não é perfeita,290 mas tem muito a ensinar aos
batistas do século XX, como a discussão anterior de certos aspectos doutrinários da Confissão
bem demonstrou. Os comentários de C. H. Spurgeon no que diz respeito à utilidade da
Confissão, feitos quando ele a republicou em 1855, ainda são relevantes. “Este pequeno volume
não é emitido como uma regra autoritativa, ou código de fé, pelo que vocês devem ser
constrangidos, mas como uma ajuda para vocês em controvérsia, uma confirmação na fé e um
meio de edificação na justiça. (...) Apeguem-se fortemente à Palavra de Deus que está aqui
mapeada para vocês”.291
BENJAMIN KEACH (1640–1704)

245 Baptists and the Bible. The Baptist doctrines of biblical inspiration and religious authority in historical perspective
(Chicago: Moody Press, 1980), 62.
246 Second London Confession 1.1 (Lumpkin, Baptist Confessions, 248). A análise que se segue deve-se, em parte, a Bush e
Nettles, Baptists and the Bible, 65-72.
247 Second London Confession 1.6 (Lumpkin, Baptist Confessions, 250).
248 Second London Confession 1.1 (Lumpkin, Baptist Confessions, 248).
249 Second London Confession 1.6 (Lumpkin, Baptist Confessions, 250).
250 Baptists and the Bible, 68.
251 Baptists and the Bible, 70. Para a definição dos termos “inerrante” e “infalível”, veja J. I. Packer, “Infallibility and Inerrancy
of the Bible”, em Sinclair B. Ferguson, David F. Wright e J. I. Packer (orgs.), New Dictionary of Theology (Downers Grove,
Illinois: InterVarsity Press, 1988), 337. Veja também idem, ‘Fundamentalism’ and the Word of God. Some Evangelical
Principles (London: InterVarsity Fellowship, 1958), 94-96.
252 Richard Dale Land, “Doctrinal Controversies of English Particular Baptists (1644–1691) as Illustrated by the Career and
Writings of Thomas Collier” (tese D. Phil., Regent’s Park College, Oxford University, 1979), 205.
253 Tropologia: A Key to Open Scripture-Metaphors (London: Enoch Prosser, 1681), II, 312.
254 Second London Confession 1.5 (Lumpkin, Baptist Confessions, 250). Para a importância do equilíbrio nessa área, veja as
observações de D. Martyn Lloyd-Jones, Authority (1958 ed.; repr. Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1984), 62-64.
255 “John Calvin the Theologian” em sua obra Calvin as a Theologian and Calvinism Today (London: Sovereign Grace Union,
[1951]), 9.
256 Benjamin B. Warfield, “Nota Introdutória” a Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, trans. Henri De Vries (1900 ed.;
repr. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1956), xxxiii, xxxv.
257 Das quarenta e cinco referências explícitas ao Espírito Santo na Confissão, a maior parte diz respeito ao papel do Espírito na
aplicação da obra salvadora de Deus aos crentes. Veja as observações de Douglas J. W. Milne sobre a pneumatologia da
Confissão de Westminster: “The Doctrine of the Holy Spirit in the Westminster Confession”, The Reformed Theological Review,
52 (1993), 121.
258 Lumpkin, Baptist Confessions, 264-265.
259 Para uma discussão desse artigo sob outras óticas, veja Peter Toon, Puritans and Calvinism (Swengel, Pennsylvania: Reiner
Publications, 1973), 80-83; Alan P. F. Sell, The Great Debate, Calvinism, Arminianism and Salvation (edição de 1982; repr.
Grand Rapids: Baker Book House, 1983), 39-40.
260 Second London Confession 20.4 (Lumpkin, Baptist Confessions, 278–279).
261 Second London Confession 7.2 (Lumpkin, Baptist Confessions, 259-260).
262 Second London Confession 14.1 (Lumpkin, Baptist Confessions, 268).
263 Second London Confession 10.1; 14.1 (Lumpkin, Baptist Confessions, 264, 268). Veja também Milne, “Doctrine of the Holy
Spirit”, 126.
264 Second London Confession 13.1, 2-3 (Lumpkin, Baptist Confessions, 267-268). Para outras referências ao Espírito Santo
como espírito santificador, veja, por exemplo, Second London Confession 15.3; 16.3; 17.1 (Lumpkin, Baptist Confessions, 270,
271, 272-273). Veja também as observações de Milne, “Doctrine of the Holy Spirit”, 127.
265 Of the Mortification of Sin in Believers (The Works of John Owen, ed. William H. Goold [edição de 1850–1853; repr.
Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1965], VI, 16).
266 Citado em J. I. Packer, “The Puritan Treatment of Justification by Faith”, The Evangelical Quarterly, 24 (1952), 143.
267 Esse texto deve-se, em parte, a George Verwer, Revolution of Love and Balance (ed. revisada; Bromley, Kent/Waynesboro,
Georgia: STL Books, 1980), 19.
268 Lumpkin, Baptist Confessions, 272-273. Veja também Milne, “Doctrine of the Holy Spirit”, 128.
269 Milne, “Doctrine of the Holy Spirit”, 295.
270 Milne, “Doctrine of the Holy Spirit”, 259.
271 Robert William Oliver, “The Emergence of a Strict and Particular Baptist Community Among the English Calvinistic
Baptists, 1770–1850” (tese Ph.D., London Bible College, 1986), 16.
272 Christ Exalted: A Lost Sinner Sought, and Saved by Christ (London, 1646), 12.
273 Key to Open Scripture-Metaphors, II, 313, 140.
274 “Strict and Particular Baptist Community”, 20-21.
275 Second London Confession 30.2–6 (Lumpkin, Baptist Confessions, 291-293).
276 Second London Confession 30.7 (Lumpkin, Baptist Confessions, 293).
277 É preciso observar que tanto a Confissão de Westminster como a Declaração de Savoy usam o termo “ordenanças” nos
últimos parágrafos para descrever a Ceia do Senhor.
278 W. Morgan Patterson, “The Lord’s Supper in Baptist History”, Review and Expositor, 66, n. 1 (inverno de 1969), 26. Cf.,
contudo, a discussão de Erroll Hulse sobre esses dois termos em “The Implications of Baptism” em Hulse et al., Local Church
Practice (Haywards Heath, Sussex: Carey Publications, 1978), 46-47.
279 A Confissão de Fé de Westminster 29.7 (The Confession of Faith of the Assembly of Divines at Westminster, org. por S.W.
Carruthers [Glasgow: Free Presbyterian Publications, 1978], 22-23); Declaração de Savoy 30.7 (The Savoy Declaration of Faith
and Order 1658 [London: Evangelical Press, 1971], 41).
280 Second London Confession 30.7 (Lumpkin, Baptist Confessions, 293).
281 Para a rejeição puritana à posição adotada por Lutero, veja John F.H. New, Anglican and Puritan. The Basis of Their
Opposition, 1558–1640 (Stanford, California: Stanford University Press, 1964), 60.
282 Citado em Ernest F. Kevan, London’s Oldest Baptist Church. Wapping 1633-Walthamstow 1933 (London: The Kingsgate
Press, [1933]), 68. Sobre Collins e seu ministério, veja Kevan, London’s Oldest Baptist Church, 38-50, 64-68.
283 Citado em E. P. Winter, “Calvinist and Zwinglian Views of the Lord’s Supper Among the Baptists of the Seventeenth
Century”, The Baptist Quarterly, 15 (1953–1954), 327.
284 A Sober Discourse of Right to Church-Communion (London, 1681), 25.
285 “The Lord’s Supper in the Theology and Practice of Calvin” em G.E. Duffield (org.), John Calvin (Grand Rapids: Wm. B.
Eerdmans Publishing Co., 1966), 133-134. Outra boa discussão acerca do tratamento dispensado por Calvino à Ceia do Senhor é
“‘Union with Christ’: John Calvin on the Lord’s Supper”, em Union and Communion, 1529–1979 (London: The Westminster
Conference, 1979), 35-54.
286 Lumpkin, Baptist Confessions, 291.
287 Key to Open Scripture-Metaphors, II, 312.
288 Para a visão puritana da Ceia do Senhor, veja Geoffrey F. Nuttall, The Holy Spirit in Puritan Faith and Experience (2nd ed.;
Oxford: Basil Blackwell, 1947), 90-101; New, Anglican and Puritan, 59-76; Hywel W. Roberts, “‘The Cup of Blessing’: Puritan
and Separatist Sacramental Discourses” em Union and Communion, 55-71.
289 Veja Derek R. Moore-Crispin, “‘The Real Absence’: Ulrich Zwingli’s View of the Lord’s Supper” em Union and
Communion, 22-34.
290 Veja, por exemplo, os comentários em “Introdução” a A Faith to Confess. The Baptist Confession of Faith of 1689 (4th ed.;
Haywards Heath, Sussex: Carey Publications Ltd., 1982), 10-13.
291 Citado em “Prefácio” a The Baptist Confession of Faith with Scripture Proofs (Choteau, Montana: Gospel Mission, n.d.), 6.
Para mais comentários acerca da aplicabilidade atual da Segunda Confissão de Londres, veja Erroll Hulse, “The Reformed
Confessions of 17th Century England”, The Evangelical Library Bulletin, 83 (agosto de 1989), 7; idem, “The 1689, Why Another
Confession?” (artigo inédito), 17-19.
9
Benjamin Keach (1640–1704)
O TEÓLOGO BATISTA
m uma história da religião na Grã-Bretanha, Michael Mullett identificou Benjamin Keach
E como o principal teólogo batista de sua época, semelhante, em grau de importância para sua
denominação, ao que Richard Baxter foi para os presbiterianos ingleses; John Owen para os
congregacionalistas; e Robert Barclay (1648–1690) para os quakers.292 Mullett pode muito bem
estar se baseando em uma descrição anterior de Keach feita por Murdina D. MacDonald: “O
mais importante apologista para as visões batistas calvinistas” no final do século XVII. Essa foi a
forma como MacDonald descreveu Keach em sua tese de Oxford, defendida em 1982. Houve,
obviamente, outros importantes autores batistas nesse período — homens como Hercules Collins
e Joseph Stennett (1663–1713), o pastor de uma congregação que se reunia no Pinners’s Hall, em
Londres —, porém “nem o escopo nem a extensão de suas obras alcançaram a produção de
Keach”.293 Keach argumentou contra os quakers e assumiu para si o dever dos colegas puritanos
— em especial de Richard Baxter e John Flavel (ca. 1630–1691), que defendiam o batismo
infantil; ele defendia a prática da imposição de mãos na época do batismo, um rito que era
comum entre os batistas gerais, mas que raramente era praticado entre os batistas calvinistas;294
ele escrevia histórias, agora há muito esquecidas, que, em sua época, rivalizavam com as de John
Bunyan em popularidade e vendas; ele defendia longamente o canto dos hinos e até mesmo
compilou alguns de seus próprios; publicou uma série de coleções de sermões, incluindo A
Golden Mine Open (1694) e Gospel Mysteries Unveiled (1701), que ainda têm um valor
inestimável, embora não sejam amplamente usados, representando verdadeiros tesouros para o
estudo do pensamento batista do século XVII;295 e também escreveu o primeiro tratado batista
calvinista especificamente dedicado ao governo eclesiástico, The Glory of a True Church and its
Doctrine display’d [A glória de uma verdadeira igreja e a exibição de sua doutrina] (1697).

PRIMEIROS ANOS
Keach nasceu em 29 de fevereiro de 1640. Seus pais, John e Fodora Keach, eram um casal
anglicano que, na época, residia em Stoke Hammond, no norte de Buckinghamshire.296 Criado
como um anglicano, juntou-se aos batistas gerais quando contava com apenas quinze anos. Três
anos depois de seu batismo como crente, ele foi chamado para pregar na congregação batista
geral que se encontrava em Winslow, Buckinghamshire, não muito longe de Stoke Hammond.
Em Winslow, ainda existe uma antiga casa de reunião batista que data de 1695, chamada “Casa
de Reunião de Keach”. Não se sabe se Keach frequentava ou não essa antiga capela. No entanto,
trata-se de uma boa forma de registrar a conexão desse grande líder batista com essa área de
Buckinghamshire.297
Na mesma época de sua chamada ao ministério da Palavra, Keach casou-se com Jane Grove
(?–1670), uma jovem nativa de Winslow. Durante os dez anos de casamento, o casal teve cinco
filhos, dos quais três sobreviveram à infância. Uma delas, Hannah, mais tarde se tornaria quaker,
o que teria causado algum sofrimento ao pai. Seu único filho sobrevivente desse casamento,
Elias Keach (1667–1701), desempenharia papel fundamental para o avanço da causa batista
dentro e ao redor da Filadélfia, na América.
Como já notamos, o período entre as décadas de 1660 e 1680 foi um momento de intensa
perseguição para qualquer um que procurasse adorar fora da Igreja da Inglaterra, razão pela qual,
em mais de uma ocasião, Keach se viu em apuros com o Estado. Por exemplo, em 1664, Keach
foi preso sob a acusação de ser “uma pessoa sediciosa, herética e sectária, perversamente
disposta e insatisfeita com o governo de Sua Majestade e o governo da Igreja da Inglaterra”.298
Parece que uma cartilha infantil que Keach havia escrito, contendo lições de leitura, instrução em
pontuação e aritmética, além de listas de palavras com uma, duas ou três sílabas, fora lida pelo
então reitor anglicano de Stoke Hammond, Thomas Disney. Disney teria reportado às
autoridades governamentais não apenas que essa cartilha seria imprópria para crianças, como
também definitivamente sediciosa. Hoje, não existem cópias dessa cartilha. Isso porque, no
momento de seu julgamento, todos os exemplares foram destruídos, embora tenhamos notícias
de que, mais tarde, Keach teria reescrito esse manual de memória, vindo a publicá-lo como The
Child Delight: or Instructions for Children and Youth [O prazer da criança: ou instruções para
crianças e jovens]. A cartilha original fora considerada herética especialmente por causa das
referências ao batismo do crente e à interpretação de Keach do Livro do Apocalipse.299 Levado a
julgamento em 8 de outubro de 1664, Keach foi considerado culpado, preso por duas semanas e
multado em vinte libras — naqueles dias, uma quantia considerável para um pobre pregador
batista.
Além dessas punições, Keach teve de permanecer por dois períodos de duas horas cada no
pelourinho, uma estrutura de madeira que tinha buracos na cabeça e nas mãos da pessoa que
estava sendo punida. Em geral, o pelourinho era colocado na praça da cidade ou da aldeia, onde
o infrator também poderia ser submetido a várias formas de ridicularização pública. Nessa
ocasião, contudo, Keach aproveitou para pregar à multidão que se reuniu ao seu redor. “Boas
pessoas”, começou ele na primeira ocasião em que esteve no pelourinho, “não me envergonho de
estar aqui hoje, (...) pois meu Senhor Jesus não se envergonhou de sofrer na cruz por mim; e é
por sua causa que fui tornado um espetáculo. Saibam que não é por haver cometido maldade que
estou aqui, mas por ter escrito e publicado suas verdades, verdades que o Espírito Santo revelou
nas Escrituras Sagradas.” A essa altura, um clérigo da Igreja da Inglaterra, possivelmente o
ministro local, tentou silenciar Keach, dizendo-lhe que ele estava no pelourinho por “ter escrito e
publicado coisas erradas”. Nesse momento, Keach, reconhecendo uma oportunidade de ouro para
o debate público e seu testemunho, apressou-se em respondeu: “Senhor, consegue fazer prova
desses erros para eles?”. Mas, antes que o clérigo pudesse responder, viu-se cercado por outras
pessoas que estavam na multidão, pessoas que o conheciam como um ébrio. Então, Keach
começou a falar em defesa de suas convicções, embora algumas outras autoridades tenham
tentado silenciá-lo. Por fim, disseram-lhe que, se ele não ficasse em silêncio, teria de ser
amordaçado. Depois disso, ele se manteve em silêncio, exceto por sua citação de Mateus 5.10:
“Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”.300
Em outra ocasião, quando Keach foi preso em flagrante por uma tropa de cavaleiros, em
virtude de estar pregando, quatro deles ficaram tão irados com ele que juraram que o
atropelariam até a morte com seus cavalos. Ele, então, foi amarrado e forçado a se deitar no chão.
Mas, quando eles estavam prestes a lançar seus cavalos sobre a vítima, o comandante da tropa
chegou e os impediu de ferir Keach, que, quase certamente, teria sido morto.301

A MUDANÇA PARA LONDRES


E A ADESÃO AO CALVINISMO
Em 1668, Keach mudou-se para Londres, onde se juntou a uma assembleia batista geral na
Tooley Street, em Southwark, o primeiro subúrbio de Londres localizado ao sul das margens do
rio Tâmisa. Logo, Keach foi ordenado como ancião dessa congregação. No entanto, pouco tempo
depois de sua chegada a Londres, ele conheceu Hanserd Knollys e William Kiffen; assim, por
ocasião de seu segundo casamento, em 1672, com Susannah Partridge (?–1732), de
Rickmansworth, Seutfordshire — Jane, sua primeira esposa, havia morrido em 1670 —, ele já se
havia tornado calvinista. Nada sabemos acerca dos detalhes desse importante movimento
teológico feito por ele. Como o historiador americano J. Barry Vaughn observou, “a data e as
circunstâncias que cercaram a aceitação do calvinismo por Benjamin Keach representam o
grande enigma de sua vida”.302 No entanto, o fato de Knollys ter sido o oficiante do casamento de
Keach com Susannah Partridge certamente nos leva a acreditar que essa influente figura
desempenhou papel fundamental na vinda de Keach para os batistas calvinistas. É interessante
notar que, embora tal mudança — dos batistas gerais para os batistas calvinistas — não tenha
sido incomum durante os séculos XVII e XVIII, raramente havia movimento dos batistas
calvinistas para os batistas gerais.303
No mesmo ano de seu casamento, Keach e alguns indivíduos alinhados com seu pensamento,
possivelmente ex-membros da causa batista geral na rua Tooley, deram início a uma obra batista
calvinista em Horselydown, Southwark. Assim, uma casa de reunião acabou sendo erguida e,
após uma série de acréscimos realizados ao longo dos anos, o local foi capaz de abrigar cerca de
até mil pessoas. Evidentemente, Keach era um pregador poderoso; seus sermões, como,
posteriormente, seu genro viria a observar, eram “cheios de sólida divindade”.304
Além de seu trabalho como pastor, Keach também se mostrou ativo na plantação de outras
igrejas no sul da Inglaterra e, regularmente, empregava sua pena e sua tinta para elucidar as
Escrituras e defender a causa batista calvinista. Dos muitos temas sobre os quais ele escreveu,
sua contribuição para dois em particular se provaria especialmente influente. O primeiro deles foi
sua defesa, sob uma perspectiva calvinista, da salvação. Durante as décadas de 1680 e 1690, na
época em que as obras de Keach estavam sendo amplamente publicadas, o calvinismo se
encontrava cada vez mais sob ataque. A teologia de teólogos puritanos como Keach e John Owen
estava sendo considerada com escárnio e desdém, como algo ultrapassado e antiquado.
Encorajados pelo pensamento “moderado” de Richard Baxter, que buscava desenvolver uma
perspectiva teológica que atenuasse algumas doutrinas-chave do calvinismo tradicional,
abraçando alguns elementos do arminianismo, não foram poucos os herdeiros do puritanismo,
em particular os presbiterianos ingleses, que se envolveram em um recuo maciço de sua herança
calvinista. No entanto, não foi isso que ocorreu com os batistas calvinistas, o que se deve, em
grande parte, aos escritos de Keach.

VISÕES CALVINISTAS SOBRE A SALVAÇÃO


Considere, por exemplo, seu último grande trabalho, Gospel Mysteries Unveiled, publicado
apenas três anos antes de sua morte, em 1704. Originalmente, esse trabalho foi uma série de
sermões que expunham, de forma exaustiva, todas as parábolas de Cristo. A discussão sobre a
parábola da ovelha perdida (Lc 15.4-7), por exemplo, deu origem a dezesseis sermões e produziu
mais de cem páginas na edição de quatro volumes que foi publicada na década de 1810.305 Em
seu décimo quinto sermão sobre essa parábola em particular, Keach apresentou um entendimento
acerca da regeneração e da conversão que era comum à maior parte dos batistas calvinistas de
sua época e serviu para distingui-los de outras denominações, como os presbiterianos, que
estavam se movendo rapidamente para fora da órbita calvinista.
Keach começou observando que essa parábola ensina, de forma clara, que “os pecadores
perdidos não podem voltar para casa, para Deus, por si mesmos”; eles devem ser levados a Deus
nos ombros de Cristo. Para Keach, essa conclusão doutrinária estava, antes de tudo, bastante
clara pela referência à ovelha perdida sendo colocadas sobre os ombros do pastor. Quando outras
passagens das Escrituras falam do “dedo de Deus” (Lc 11.20) ou do “braço do Senhor” (Is 53.1),
esses antropomorfismos devem ser compreendidos como referências ao poder divino.
Igualmente, argumentava Keach, a menção aos ombros do pastor, em Lucas 15.5, deve ser uma
referência ao “poder efetivo e eficaz de Cristo”, especialmente em face da natureza da parábola,
no que se refere à “regeneração e à conversão”.306
Keach, então, aduziu mais provas bíblicas de que a regeneração era totalmente uma obra de
Deus — uma obra na qual homens e mulheres são inteiramente passivos. Citava, por exemplo,
João 15.5, passagem em que Cristo informa aos apóstolos: “sem mim, nada podeis fazer”. De
uma forma bastante nítida, esse versículo tem a ver com a vida fora da vida cristã, mas,
evidentemente, Keach viu alguns princípios embutidos nele que também se aplicam à entrada
nessa vida. Keach compreendeu a declaração de Cristo “sem mim” como uma alusão ao “braço
todo-poderoso de Cristo (...) descoberto” e seu “poder exercido”. Portanto, se é verdade que o
poder de Cristo é vital para a presença de “frutos aceitáveis a Deus” durante a vida cristã, quanto
mais é o caso de que esse poder é exigido para “a implantação de um pecador em Cristo”!307 No
entanto, como o versículo diz respeito a viver uma vida cristã frutífera, que envolve esforço tanto
por parte do crente como de Cristo, não tem fundamento a afirmação de Keach de que o pecador
é passivo na regeneração.
O próximo versículo que ele cita, João 6.44a [“Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me
enviou, não o trouxer”], é muito mais relevante. Aqui, a imagem envolvida, segundo Keach, são
“as influências sublimes e irresistíveis do Santo Deus sobre o coração, por meio das quais ele
inclina, curva e submete a vontade teimosa e rebelde de crer e receber o Senhor Jesus Cristo”.
Keach, com razão, viria a associar esse versículo a outro posterior do mesmo capítulo: “Ninguém
poderá vir a mim se, pelo Pai, não lhe for concedido” (Jo 6.65). O que é dado, enfatiza Keach, é
o que permite que um pecador venha a Cristo: o dom do Espírito que habita, os afetos de um
novo coração, a graça, a fé e o poder divino.308
O terceiro texto que Keach cita é mais um joanino, João 1.13. Os filhos de Deus, afirma esse
versículo, “não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas
de Deus”. A regeneração não se baseia na linhagem física, nem nos “privilégios legais” (foi
assim que Keach interpretou “nem da vontade da carne”). Nem o novo nascimento é realizado
por qualquer “poder da vontade do homem, pois é preciso que, antes, “um princípio vital seja
infundido” em uma pessoa; sem isso, tudo que ele ou ela venha a fazer são “obras mortas”. A
declaração “simples e evidente” desse versículo é que “Deus é o grande agente eficaz na
regeneração”.309
O pregador batista, então, cita uma série de versos paulinos — Romanos 9.16; Tito 3.5-6;
2Coríntios 3.5; 4.7; Filipenses 2.12-13 — como mais uma forma de ratificar sua posição. Em
relação aos dois textos de 2Coríntios, Keach enfatiza especialmente que, no que diz respeito à
pregação, não é o pregador que pode efetuar a mudança sobre a qual ele vem falando. Não é “no
poder do ministro mais capaz do mundo que a palavra pregada torna-se efetiva; não, não, (...) é
de Deus” que a pregação recebe poder para mudar o coração humano.310
Na próxima seção desse sermão, Keach fornece argumentos adicionais em suporte à sua
perspectiva sobre a regeneração. Esses argumentos baseiam-se em vários textos da Escritura, a
maior parte extraída do Novo Testamento. É nessa seção do sermão que Keach define o que
entende sobre regeneração e conversão. A regeneração, que ele descreve como “a modelagem de
Cristo na alma”, uma nova criação ou um novo nascimento, é realizada pela atuação do Espírito
Santo. Keach acreditava que a regeneração ocorre quando o Espírito Santo vem para habitar em
uma pessoa, e uma nova natureza, a de Cristo, é formada no interior desse indivíduo, em seu
coração. Por isso, a inimizade em relação a Deus que está impregnada no coração de cada
incrédulo é removida, e um amor e um deleite para com Deus como seu bem maior são
transmitidos. Além disso, assim como uma criança não nascida não contribui em nada para sua
formação no útero, os “pecadores são totalmente passivos em sua regeneração”.311
Quando Keach chegou a definir conversão, incluiu o que já havia dito sobre regeneração, de
modo que a distinção entre os dois termos estava meio embaçada. A conversão, afirmava ele,
envolve um “ato duplo”:
(1) Passivo, que é o ato do Espírito de Deus, ato por meio do qual ele infunde um princípio vital, além de hábitos
graciosos, ou qualidades divinas, na alma: nesse ato, a criatura é totalmente passiva. Cristo (...) infunde a vida na alma
morta, da forma como fez com Lázaro morto. (2) Ativo, de modo que, através do poder dessa graça, o pecador é
vivificado, capacitado a crer e a retornar a Deus: ao agir em nós, nós também agimos; o Espírito Santo (...) move a alma,
e a alma age, e se move em direção a Deus (...) primeiro o coração do pecador é virado e, então, o pecador retorna: se
Cristo não nos procurou primeiro, e não nos encontrou primeiro, e não nos levou primeiro por seus braços e em seus
ombros de poder divino, nunca o encontraremos nem nos voltaremos para ele.312

Embora essa passagem mostre Keach falhando em se dar conta de uma distinção bastante
nítida entre os dois termos, seu significado é claro. O que ele chamou de aspecto “passivo” desse
“ato duplo” é o que ele já chamou de “regeneração”, que constitui plenamente um ato de Deus,
um ato para o qual os seres humanos em nada contribuem. O Espírito Santo entra na alma, e lhe
dá tanto o poder como o desejo de se voltar para Deus. Assim, é na regeneração que “a semente
da conversão real é semeada” no coração de uma pessoa.313 Por outro lado, na conversão, o
indivíduo está literalmente envolvido, exercendo sua capacidade recém-recebida de recorrer a
Deus.
Por fim, deve-se notar que, ao apresentar essa perspectiva solidamente calvinista sobre
regeneração e conversão, Keach teve o cuidado de se proteger contra o alto calvinismo ou o
hipercalvinismo, que, como notamos no capítulo anterior, alguns de seus herdeiros do século
XVIII possivelmente sustentariam. Por exemplo, John Brine (1703–1765), um teólogo bastante
influente entre os batistas calvinistas em meados do século XVIII,314 seguiu claramente o
ensinamento de Keach ao sustentar que “a regeneração é a infusão de um novo princípio de vida
espiritual” em uma pessoa, “a produção de um princípio disposto a ações santas e agradáveis a
Deus, por Jesus Cristo”. Isso precede o momento da conversão e deve ser considerado sua
“fundação e seu manancial”. Na regeneração, os pecadores são “meramente passivos”, enquanto,
na conversão, mostram-se definitivamente “ativos”.315
No entanto, uma área-chave na qual Brine não seguia Keach estava relacionada com a doutrina
da justificação eterna, uma perspectiva sobre a justificação que havia sido articulada em meados
do século XVII e era intensamente debatida na década de 1690.316 De acordo com as palavras de
Brine acerca dessa doutrina, uma vez que “Deus tinha em vista, desde a eternidade, a expiação
feita por Cristo; e, por conta do engajamento de Cristo para sofrer pelos pecados dos eleitos, ele
os absolveu como se Cristo tivesse realmente sofrido a penalidade merecida por sua
transgressão”, de modo que o eleito pode ser considerado como tendo sido justificado desde a
eternidade.317 Se isso fosse verdadeiro, então a fé salvífica seria reduzida a uma realização do que
Deus tem feito no ato de justificação eterna. E esse estilo de pregação, em que os perdidos são
explicitamente instados a se voltar a Cristo, torna-se bastante desnecessário. O que é necessário
na pregação é simplesmente proclamar o que Deus fez em Cristo. Deus usará isso para despertar
os eleitos e mostrar-lhes o que ele já fez por eles.
No entanto, Keach opôs-se firmemente a essa posição durante a década de 1690. Em sua obra
seminal sobre justificação, A Medium betwixt two Extremes [Um meio entre dois extremos]
(1698), Keach havia indagado: “Não vamos pregar a todos que estão fora de Cristo, aos ímpios,
àqueles que estão sob ira e condenação em suas próprias pessoas, e assim permanecem até que
venham a crer e ter união com Cristo? Nosso Senhor não veio para chamar os Justos, nem os
hipócritas, tampouco aqueles que, em um sentido evangélico, são pessoas justas, mas, sim, para
chamar os pecadores ao arrependimento; a esses que foram realmente perdidos no primeiro
Adão, e que se encontram sob a Escravidão do Pecado, e a Lei”.318 Homens e mulheres estão
justificados apenas quando passam a crer em Cristo. Portanto, o ministério do púlpito de Keach
caracterizou-se por um evangelismo vigoroso e por chamadas regulares aos não convertidos para
responder a Cristo na fé. De acordo com C. H. Spurgeon, ao falar aos perdidos, Keach era
“intensamente direto, solene e impressionante, não vacilando em declarar os terrores do Senhor,
nem em ocultar a liberdade da graça divina”.319 Algo típico dos apelos evangélicos de Keach aos
não convertidos é o seguinte, segundo Spurgeon cita, para ilustrar a afirmação acima:
Venham, aproveitem, suas almas estão sob a justiça de Cristo; Cristo é capaz de salvá-los, embora vocês sejam sempre
grandes pecadores. Venham até ele, atirem-se aos pés de Jesus. Olhem para Jesus, que veio para buscá-los e salvar os
que estão perdidos (...) Vocês podem ter a água da vida livremente. Não digam: “Quero que as qualificações ou a
mansidão venham de Cristo”. Pecadores, vocês não têm sede? Não têm sede de justiça? Isso não é justiça, mas um
sentimento de falta de justiça, que é, sim, a qualificação para a qual devem olhar. Cristo tem justiça suficiente para vesti-
los, tem pão da vida para alimentá-los, tem graça para adorná-los. O que vocês quiserem encontrarão nele. Dizemos a
vocês que há ajuda dele, há salvação nele. “Através da propiciação em seu sangue”, vocês devem ser justificados, e isso
apenas pela fé.320

A CONTROVÉRSIA DO HINO-CANTO
A outra área-chave em que Keach influenciou as gerações futuras foi a adoração pública,
especialmente no que diz respeito ao canto dos hinos.321 Seu significado é bem resumido nas
palavras de Hugh Martin: Keach foi “o primeiro a introduzir o canto regular de hinos no culto
normal de uma congregação inglesa”.322 Enquanto alguns grupos, como os presbiterianos
ingleses e os congregacionalistas, estavam convencidos de que apenas os Salmos deveriam ser
cantados em adoração pública,323 e outros, como os batistas gerais e os quakers, rejeitavam
qualquer forma de canto congregacional, havia muitos batistas calvinistas antes de Keach que
acreditavam que sua adoração não deveria vir desacompanhada de canção e que deveria incluir
hinos e salmos. O galês de comunhão aberta, o batista Vavasor Powell (1617–1670), declarou
sua convicção em uma confissão pessoal de fé, no sentido de que o “canto de salmos
(particularmente os salmos contidos nas Escrituras) e de hinos é uma continuação da ordenança
evangélica e um dever, algo que deve ser realizado por todos, mas especialmente nas igrejas”.324
Em 1663, Hanserd Knollys também sustentou que o canto de “canções espirituais e hinos” era
“uma ordenança de adoração a Deus”, embora, com base em 1Coríntios 14.15, ele sustentasse
que a única instância legítima para esse canto era quando o Espírito Santo “ditava” as palavras e
a melodia. Além disso, parece que o canto que o cantor Knollys tinha em mente era aquele
realizado por uma voz solo e não congregacional.325 No entanto, em 1680, Hercules Collins
publicou An Ortodox Catechism [Um catecismo ortodoxo], no qual havia “um apêndice sobre a
Ordenança do Canto”. Esse apêndice, claramente, dava suporte à prática do canto
congregacional.326
Keach havia introduzido pela primeira vez o canto de um hino entre 1673 e 1675, ao final da
celebração da Mesa do Senhor, em sua congregação de Southwark. Alguns anos depois, alguns
hinos também estavam sendo cantados nos cultos de ação de graças. Em uma reunião da igreja
realizada em 1º de março de 1691, a maioria de seus membros votou para que se cantasse um
hino após o culto, todos os domingos. No entanto, havia alguns na igreja que consideravam essa
prática uma inovação não escrita. Por fim, eles deixaram a igreja em março de 1691 e, depois de
uma curta passagem pela igreja que Hanserd Knollys havia pastoreado por muitos anos, eles
formaram uma nova congregação, que passou a se encontrar em Maze Pond. Nos artigos de fé
que os fundadores da igreja Maze Pond elaboraram, em fevereiro de 1694, havia uma declaração
explícita de que o canto congregacional era “um erro grosseiro”.327
As convicções desses dissidentes foram compartilhadas por uma série de outros batistas em
Londres, incluindo William Kiffen, Robert Steed (?–1700), copastor com Hanserd Knollys, e
Isaac Marlow (1649–1719), um rico joalheiro e membro proeminente da Igreja Batista Mile End
Green. Steed pregou contra a canto congregacional em pelo menos uma ocasião e parece ter
encorajado Marlow a publicar um livro contra essa prática, obra que recebeu o título de Brief
Discourse concerning singing [Um breve discurso sobre o cantar] (1690). Embora outros
também tenham escrito contra o canto congregacional, foi Marlow quem se tornou o principal
oponente dessa prática. Durante a controvérsia sobre o canto de hinos, que durou de 1690 a
1698, Marlow escreveu nada menos que onze livros abordando o assunto.328 O ardor gerado pela
controvérsia pode ser avaliado, até certo ponto, pelos termos que os dois lados atiravam um no
outro. Marlow nos diz que foi rotulado de “Rabiscador ridículo”, “Insolente”, “Entusiasta”, ou
seja, fanático, e “quaker”. Mas Marlow era capaz de dar de si o melhor. Ele via seus oponentes
como “uma confraria de papistas queimadores de livros”, gente que estava tentando minar a
Reforma, pois, nesse particular, eles estavam endossando uma prática que não tinha fundamento
nas Escrituras.329 Essas observações amargas de ambos os lados do debate sugerem que a divisão
sobre o canto de hinos não era uma questão trivial, rasgando a comunidade batista de Londres
em duas partes. Nas palavras de Murdina MacDonald, “efetivamente, isso destruiu a capacidade
dos batistas calvinistas como um todo de estabelecer uma organização nacional naquele
momento”. Como MacDonald ainda observa, a extensão dessa divisão está patente no fato de
que os dois estadistas mais velhos da comunidade, Hanserd Knollys e William Kiffen,
encontravam-se em lados opostos.330
Marlow e aqueles que se opuseram à prática do canto de hinos desenvolveram cinco
argumentos principais em apoio à sua posição.331 Primeiro, eles afirmavam que o uso de um hino
composto previamente produz o mesmo efeito que a leitura de uma oração escrita, ou seja, um
formalismo, de modo que conduz a um arrefecimento do Espírito. Eles também estavam
convencidos de que alguns exemplos de canto na época do Novo Testamento haviam envolvido a
prática de um dom espiritual “extraordinário”. Uma vez que esses dons haviam cessado com a
passagem daquele tempo, os exemplos de canto encontrados no Novo Testamento não poderiam
servir como um precedente para os seus dias. Então, eles sustentavam que o canto
congregacional comprometia a pureza da igreja, pois poderia muito bem envolver pessoas na
congregação que não eram indivíduos regenerados. Em quarto lugar, eles acreditavam que, nos
primórdios da igreja, o canto público era realizado por uma única voz; e não por um esforço
congregacional. Finalmente, nos locais em que homens e mulheres estavam envolvidos com
cantos congregacionais, praticava-se uma violação clara de 1Coríntios 14.34 e 1Timóteo 2.11-12
— textos que, segundo o entendimento deles, diziam que as mulheres não devem pronunciar uma
única palavra no culto público da igreja.
Embora tenha chegado logo no início da controvérsia, a obra de Keach, publicada em 1691,
The Breach Repaired in God’s Worship: or, Singing of Psalms, Hymns, and Spiritual Songs,
proved to be an Holy Ordinance of Jesus Christ [A Brecha Reparada na Adoração de Deus: ou,
como o Cântico de Salmos, Hinos e Canções Espirituais provou-se uma Santa Ordenança de
Jesus Cristo], era uma resposta definitiva a esses vários argumentos. Keach estava ansioso para
defender a prática do canto congregacional porque estava convencido de que uma das principais
razões para a causa batista de sua época estar experimentando “certa desmotivação lamentável” e
a “falta da presença de Deus, ou da vivacidade do Espírito” era sua negligência com tal
“ordenança” bíblica.332 Em outras palavras, longe de promover o formalismo, o canto dos hinos
era um meio eficaz para a renovação espiritual. O fracasso em se envolver com o canto de hino
estava, assim, roubando de Deus “uma grande parte de seu glorioso Louvor”, além de estar
privando os crentes de “uma alegria e de um refrigério doces e celestiais”.333
No entanto, como Alan Clifford observa, Keach não empreendia sua luta primariamente com
argumentos pragmáticos.334 Ele recorreu às Escrituras para demonstrar que as hostes angelicais
no céu cantam louvores a Deus, como os santos de Deus fizeram ao longo da história. Além
disso, Keach foi capaz de citar comandos explícitos no Novo Testamento que exortam os crentes
a essa prática: Efésios 5.19, Colossenses
3.16 e Tiago 5.13. Respondendo aos vários argumentos que estavam sendo formulados contra o
canto congregacional, Keach, em primeiro lugar, destacava que, se, no Novo Testamento, o ato
de cantar se baseava em um dom “extraordinário” do Espírito, o mesmo aconteceu com muitas
outras áreas da vida da Igreja Apostólica. “Os Apóstolos tinham um Espírito extraordinário, ou
melhor, um Espírito infalível, na Pregação, na Oração, nas Profecias, na Interpretação das
Escrituras.” Mas, em consonância com outros batistas como Hanserd Knollys (ver Capítulo 5),
Keach sustentava que esses dons extraordinários “cessaram todos, uma vez que ninguém, agora,
tem esses dons milagrosos”. Se a lógica daqueles que se opõem ao canto congregacional seguisse
esse caminho, “ninguém, agora, poderia, ou deveria, pregar, orar ou interpretar”. Se o canto
congregacional deve ser rejeitado porque somente pode ser colocado em prática com base em um
dom espiritual “extraordinário” — e todos esses dons cessaram —, então a conclusão exigida
pela posição dos oponentes de Keach era que “todas as Ordenanças se foram, ou devem ser
extinguidas”.335
O receio de que o canto de hino congregacional envolvesse as assembleias batistas não
regeneradas também foi decisivamente contestado por Keach. O teólogo batista apontou, com
razão, que os incrédulos entrarem em suas assembleias e cantarem com os crentes era uma coisa;
e “os crentes se alegrarem com os incrédulos” era outra coisa bem diferente. Além disso, se uma
assembleia cristã não deve envolver-se em canto coletivo, com receio de que possa haver um ou
mais incrédulos presentes, outros atos de culto na congregação, como, por exemplo, a oração,
podem ocorrer? “[Em oração] a Comunhão em Espírito é mais próxima e íntima do que a de unir
as Vozes; de modo que, se é considerado ilegal deixá-los cantar conosco, também é ilegal deixar
seus corações alegres por orarem conosco. Os filhos não devem receber seu pão porque alguns
estranhos também receberão um pouco dele? Na verdade, Keach acreditava que o raciocínio de
Marlow e de outros como ele a esse respeito conduziria ao fim do evangelismo. Pois “ouvir a
Palavra de Deus na pregação” não é o mesmo que uma “ordenança sagrada” como cantar? Se o
raciocínio de Marlow em relação ao último for aplicado ao primeiro, então os batistas deveriam
“fechar as portas sobre eles [ou seja, os incrédulos]” e adorar a Deus sozinhos, sem medo de ser
contaminados!336
Ao argumento de que “as mulheres não deveriam cantar na igreja, porque não lhes era
permitido falar nesse ambiente”, Keach respondeu que havia certas ocasiões em que era
permitido que as mulheres falassem na assembleia do povo de Deus. Por exemplo, Keach
chamou a atenção de seus leitores para o fato de que, quando as mulheres eram admitidas em
suas igrejas locais, eram convidadas a “fazer um relato de sua conversão na igreja, ou de como
Deus se agradara de trabalhar em suas Almas”.337 Em outras palavras, Keach argumentava que
textos como 1Coríntios 14.34 ou 1Timóteo 2.11-12 tinham de ser compreendidos como
proibindo as mulheres de falar à congregação apenas em situações específicas. Esses textos não
exigiam das mulheres silêncio absoluto na assembleia. Dessa forma, não poderiam ser usados
para proibir as mulheres de cantar com os membros masculinos da congregação.
O método de Keach de contestar o argumento final, de que cantar no Novo Testamento era um
ato solo, consistia simplesmente em mostrar que o ato de cantar era “realizado com as vozes
unidas” no Novo Testamento, tal como fora feito na era do Antigo Testamento. Por exemplo, os
comandos para cantar em Efésios 5.19 e Colossenses 3.16 são claramente direcionados “não a
qualquer cristão determinado, mas a toda a igreja”.338
Vaughn aponta que, em toda essa controvérsia, havia uma questão ausente, ou seja, o que
deveria ser cantado? Deveriam ser simplesmente salmos, ou deveriam ser incluídos hinos cuja
composição fosse genuinamente humana? Ao contrário de muitos protestantes de língua inglesa
de sua época, Keach se mostra claramente favorável a que se cantem ambas as composições.
Assim como, na pregação, o pregador não está restrito a “não mais do que ler as Escrituras, ou
citar uma Escritura após outra (...) mas pode usar outras palavras para edificar a igreja, desde que
estejam em consonância, ou sejam coerentes, com a Palavra de Cristo”, então, também ao cantar,
eram admitidos hinos compostos por homens que não fossem apenas aqueles inspirados nas
Escrituras, desde que fossem “absolutamente congruentes” com a Palavra de Deus.339 Ao
argumentar assim, Keach está claramente abrindo caminho para as obras de Isaac Watts, o pai do
hino inglês.
Além disso, a exemplo de Watts, Keach não se contentou apenas em argumentar sobre o
cântico de hinos; ele também os compôs. Keach publicou dois livros de cânticos, Spiritual
Melody (1691) e Spiritual Songs (1700), que continham, ao todo, mais de quatrocentos hinos.
Embora nenhum deles possa ser comparado com os melhores hinos de Watts, as composições de
Keach não devem ser inteiramente rejeitadas, como mero “doggerel”,* como tantas vezes tem
ocorrido. Não há dúvida de que alguns de seus hinos fazem uma poesia horrível. No entanto,
como Vaughn bem mostrou, Keach não estava tentando ser um poeta cristão tanto quanto um
arauto cristão: seus hinos destinavam-se a ser “doutrina métrica” e “sermões métricos”. Soando
as grandes verdades do cristianismo, eles eram “longos em doutrina e louvor objetivos”, embora,
em geral, “curtos em interioridade” e experiência cristã.340

DIAS FINAIS
Quando, no verão de 1704, Keach estava morrendo, pediu a Joseph Stennett, um de seus colegas
ministros batistas calvinistas em Londres, para pregar um sermão de uma porção de 2Timóteo
1.12 [“porque sei em quem tenho crido, e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu
depósito até aquele dia”] em seu funeral. Prontamente, Stennett concordou. Como se viu, porém,
Stennett estava muito doente para pregar na hora da morte de Keach, e esse sermão em 2Timóteo
1.12 teve de ser adiado até depois do funeral. Agora, o que é fascinante sobre o pedido de Keach
é que ele e Stennett divergiam sobre o dia da semana que deveria ser reservado à adoração cristã.
Stennett era um sabatariano convicto e a igreja que ele pastoreava se reunia no Pinners’ Hall, em
Londres, para adoração aos sábados. Como uma das várias igrejas batistas do sétimo dia que se
desenvolveram na Inglaterra desde a década de 1650, a congregação de Stennett prosperou sob
seu ministério.341 De fato, entre 1695 e 1700, a Igreja Pinners’ Hall recebeu em sua filiação
quinze indivíduos que já haviam sido membros da Igreja Horsleydown, de Keach. E um desses
quinze membros era a própria filha de Keach, Hannah!342
Bastante contrariado com a perda de seus membros para a congregação do sétimo dia, Keach
decidiu pregar uma série de sermões contra o sabatarianismo, que, posteriormente, ele publicou
como The Jewish Sabbath Abrogated, or The Saturday Sabbatarians Confuted [O sábado judeu
revogado, ou o sábado sabatariano refutado] (1700). Stennett não reagiu a esse ataque às suas
crenças, e parece que o livro de Keach não surtiu efeito nocivo na amizade de ambos. Se tivesse
causado algum prejuízo, certamente Keach não teria pedido ao batista do sétimo dia para pregar
seu sermão fúnebre.
Nesse pequeno incidente dos últimos dias de Keach, vemos os batistas calvinistas do século
XVII em seu melhor: vigorosos e firmes em suas convicções, mas possuídos de um espírito
católico consciente do que era e do que não era essencial. A divergência de Keach em relação às
convicções do sétimo dia foi suficiente para impeli-lo a publicar uma obra contra eles. Mas,
obviamente, ele foi capaz de reconhecer que a divergência em relação a essa questão não era tão
vital a ponto de prejudicar a comunhão no Salvador. Assim, tanto em termos de caráter como em
termos de pensamento, Keach pode ser considerado, com muita justiça, um dos mais importantes
teológos batistas calvinistas do século XVII.

* TAMBÉM CONHECIDA COMO “VERSALHADA” OU “DOGGREL”, TRATA-SE DE UMA ESPÉCIE DE POESIA


IRREGULAR NO RITMO E NA RIMA, COM FREQUÊNCIA RECURSO USADO PARA PROVOCAR EFEITO BURLESCO
OU CÔMICO. VERSOS DE RIMA FÁCIL E SIGNIFICADO TRIVIAL. (N.T.)

292 “Radical Sects and Dissenting Churches, 1600–1750”, em Sheridan Gilley e W.J. Sheils (orgs.), A History of Religion in
Britain. Practice and Belief from Pre-Roman Times to the Present (Oxford/Cambridge, Massachusetts: Basil Blackwell Ltd.,
1994), 205.
293 “London Calvinistic Baptists 1689–1727: Tensions Within a Dissenting Community under Toleration” (tese D.Phil.,
Regent’s Park College, University of Oxford, 1982), 77. Sobre Collins, veja Robert W. Oliver, From John Spilsbury to Ernest
Kevan. The Literary Contribution of London’s Oldest Baptist Church (London: Grace Publications Trust on behalf of the
Evangelical Library, 1985), 9-11; e G. Stephen Weaver, Jr., Orthodox, Puritan, Baptist: Hercules Collins (1647–1702) and
Particular Baptist Identity in Early Modern England (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2015); sobre Stennett, veja B.A.
Ramsbottom, Through Cloud and Sunshine. Four generations of faithful witness—the story of the Stennett family (N.p.: Gospel
Standard Trust Publications, 1982), 4-7.
294 Keach acreditava que a imposição de mãos era uma ordenança “de profunda importância prática”, e que aqueles que a ela se
submetiam recebiam “muito mais” do Espírito de Deus (J.K. Parratt, “An Early Baptist on the Laying on of Hands”, The Baptist
Quarterly, 21 [1966–1967], 325-327, 320).
295 James Barry Vaughn, “Benjamin Keach”, em Timothy George e David S. Dockery (orgs.), Baptist Theologians (Nashville,
Tennessee: Broadman Press, 1990), 68.
296 A principal fonte de informação sobre Keach vem de seu genro, o historiador batista primitivo Thomas Crosby. Veja, de sua
autoria, The History of the English Baptists (London, 1740), IV, 268-314. Para relatos mais recentes de sua vida, veja Hugh
Martin, Benjamin Keach (1640–1704): Pioneer of Congregational Hymn Singing (London: Independent Press Ltd., 1961); James
Barry Vaughn, “Public Worship and Practical Theology in the Work of Benjamin Keach (1640–1704)” (tese Ph.D., University of
St. Andrews, 1989), 6-28; idem, “Benjamin Keach”, em George and Dockery (orgs.), Baptist Theologians, 49-76. Para um
resumo de sua vida, veja R. L. Greaves, “Keach (or Keeche), Benjamin”, no livro de sua autoria com Robert Zaller (orgs.),
Biographical Dictionary of British Radicals in the Seventeenth Century (Brighton, Sussex: The Harvester Press, 1983), II, 150-
151.
297 Sobre a história dessa casa de reunião, veja Kenneth Dix, Benjamin Keach and a Monument to liberty (Dunstable,
Bedfordshire: The Fauconberg Press, 1985).
298 Citado em Martin, Benjamin Keach, 3.
299 Sobre a escatologia em Keach, veja Kenneth G.C. Newport, “Benjamin Keach, William of Orange and the Book of
Revelation: A Study in English Prophetical Exegesis”, The Baptist Quarterly, 36 (1995–1996), 43-51.
300 Crosby, History, II, 204-208.
301 Crosby, History, II, 185-186.
302 Vaughn, “Public Worship and Practical Theology”, 18. Para uma discussão das possíveis circunstâncias, veja Vaughn,
“Public Worship and Practical Theology”, 18-22.
303 B. R. White, The English Baptists of the Seventeenth Century (London: The Baptist Historical Society, 1983), 7-8.
304 Crosby, History, II, 305.
305 Gospel Mysteries Unveiled: or, An Exposition of All the Parables and Many Similitudes spoken by Our Lord and Savior
Jesus Christ (London: L. I. Higham, 1815), II, 321-428. Sobre a composição de Gospel Mysteries Unveiled e seu estilo, veja
Vaughn, “Public Worship and Practical Theology”, 89-127.
306 Gospel Mysteries Unveiled, II, 392-393.
307 Gospel Mysteries Unveiled, II, 394.
308 Gospel Mysteries Unveiled, II, 394-395.
309 Gospel Mysteries Unveiled, II, 395-396.
310 Gospel Mysteries Unveiled, II, 396-397.
311 Gospel Mysteries Unveiled, II, 400-401, 404-405, 407-408, 412.
312 Gospel Mysteries Unveiled, II, 405-406.
313 Gospel Mysteries Unveiled, II, 406.
314 Sobre Brine, veja Walter Wilson, The History and Antiquities of Dissenting Churches and Meeting Houses in London,
Westminster, and Southwark (London, 1808), II, 574-579; Peter Toon, The Emergence of Hyper-Calvinism in English
Nonconformity 1689–1765 (London: The Olive Tree, 1967), 100-102.
315 A Treatise on Various Subjects, revisado por J. A. Jones (4th ed.; London: James Paul, 1851), 48, 52; idem, Some Mistakes in
a Book of Mr. Johnson’s of Liverpool, Intitled, The Faith of God’s Elect (London: John Ward, 1755), 33.
316 Para uma discussão dessa doutrina, veja R. T. Kendall, Calvin and English Calvinism to 1649 (Oxford: Oxford University
Press, 1979), 186-187; Robert William Oliver, “The Emergence of a Strict and Particular Baptist Community among the English
Calvinistic Baptists 1770–1850” (tese Ph.D., London Bible College, 1986), 23-24; Peter Naylor, Picking Up a Pin for the Lord:
English Particular Baptists from 1688 to the Early Nineteenth Century (London: Grace Publications Trust, 1992), 173-185.
317 A Defence of the Doctrine of Eternal Justification (edição de 1732; repr. Paris, Arkansas: The Baptist Standard Bearer, Inc.,
1987), 41.
318 A Medium betwixt two Extremes (London: Andrew Bell, 1698), 31. Sobre a perspectiva de Keach relativa à justificação, veja
mais em Vaughn, “Public Worship and Practical Theology”, 208-242, passim.
319 The Metropolitan Tabernacle; Its History and Work (London: Passmore and Alabaster, 1876), 31.
320 Citado em The Metropolitan Tabernacle, 31.
321 Há uma quantidade significativa de obras de Keach na hinódia inglesa. Veja especialmente Hugh Martin, “The Baptist
Contribution to Early English Hymnody”, The Baptist Quarterly, 19 (1961–1962), 195-208; David W. Music, “The Hymns of
Benjamin Keach: An Introductory Study”, The Hymn (julho de 1983), 147-152; James Patrick Carnes, “The Famous Mr. Keach:
Benjamin Keach and His Influence on Congregational Singing in Seventeenth Century England” (tese M.A., North Texas State
University, 1984); Alan Clifford, “Benjamin Keach and Nonconformist Hymnology”, em Spiritual Worship (London:
Westminster Conference, 1985), 69-93; Vaughn, “Public Worship and Practical Theology”, 128-187; Donald C. Brown, “To Sing
or Not to Sing: Seventeenth Century English Baptists and Congregational Song”, em Handbook to The Baptist Hymnal
(Nashville, Tennessee: Convention Press, 1992), 55-64. Para a controvérsia no cântico de hinos entre os batistas calvinistas, veja
especialmente MacDonald, “London Calvinistic Baptists”, 49-82, passim.
322 “Baptist Contribution”, 199.
323 Veja, a esse respeito, A Confissão de Fé 21.5 e a Declaração de Savoy 22.5.
324 The Life and Death of Mr. Vavasor Powell, that Faithful Minister and Confessor of Jesus Christ (N. p.: 1671), 41.
325 Hanserd Knollys, “[To the] Courteous Reader”, Prefácio a Katherine Sutton, A Christian Womans Experiences of the
glorious working of Gods free grace (Rotterdam: Henry Goddaeus, 1663), [ii].
326 Carnes, “Famous Mr. Keach”, 82.
327 MacDonald, “London Calvinistic Baptists”, 88.
328 Para uma lista, veja MacDonald, “London Calvinistic Baptists”, 387-391.
329 MacDonald, “London Calvinistic Baptists”, 62, 72-73, 74.
330 MacDonald, “London Calvinistic Baptists”, 69, 63.
331 MacDonald, “London Calvinistic Baptists”, 53-54.
332 The Breach Repaired in God’s Worship: or, Singing of Psalms, Hymns, and Spiritual Songs, proved to be an Holy Ordinance
of Jesus Christ (London, 1691), 99, 176. Para uma análise mais extensa do argumento de Keach, veja especialmente Vaughn,
“Public Worship and Practical Theology”, 172-187.
333 Breach Repaired, 21.
334 “Benjamin Keach and Nonconformist Hymnology”, 79.
335 Breach Repaired, 62-64.
336 Breach Repaired, 105-106, 110.
337 Breach Repaired, 139-141.
338 Breach Repaired, 74, 80-81.
339 Breach Repaired, 93-94. Sobre esse assunto, veja mais em Clifford, “Benjamin Keach and Nonconformist Hymnology”, 82-
84; Vaughn, “Public Worship and Practical Theology”, 183-184.
340 Vaughn, “Public Worship and Practical Theology”, 155-157, 162. Para o estudo de seus hinos, veja Vaughn, “Public
Worship and Practical Theology”, 143-162; Music, “Hymns of Benjamin Keach”.
341 Para uma história recente dos batistas do sétimo dia, bem como dos outros grupos sabatarianos na Inglaterra, ao longo dos
séculos XVII e XVIII, veja Bryan W. Ball, The Seventh-day Men: Sabbatarians and Sabbatarianism in England and Wales,
1600–1800 (Oxford: Clarendon Press, 1994).
342 Ball, The Seventh-day Men, 122–123. Por fim, Hannah juntou-se aos quakers.
Conclusão
om a morte de Keach, uma era distinta na história batista calvinista chegava ao fim.

C Todos os principais líderes que ajudaram a dar forma e substância a esse movimento
dinâmico — entre eles, Kiffen, Knollys e Keach — haviam entrado na recompensa pela
qual haviam trabalhado e esperado. Atrás de si, eles deixaram um legado que buscamos
detalhar nas páginas anteriores e que pode ser resumido com o auxílio de três títulos.

UMA HERANÇA CONFESSIONAL


Primeiro, esses primeiros batistas estavam firmemente convencidos de que, para seu movimento
florescer, era necessário contar com parâmetros doutrinários claros. Assim, logo no início da
existência do movimento, na década de 1640, uma confissão de fé, a Primeira Confissão de Fé
de Londres, foi elaborada, indicando, de forma bastante clara, em que ponto esses batistas se
encontravam em relação às pessoas da Trindade, à autoridade das Escrituras, à pessoa e à obra de
Cristo, à forma de salvação, à natureza da igreja local, ao batismo dos crentes e à relação entre
igreja e Estado. Essa confissão foi bastante útil aos batistas calvinistas nas primeiras décadas de
sua existência. Então, principalmente por causa das várias ameaças doutrinárias, em particular a
dos quakers e a da deserção de Thomas Collier da verdade reformada, uma nova confissão foi
redigida, A Segunda Confissão de Fé de Londres. Essa Confissão viria a se tornar o padrão da
doutrina batista calvinista para muitos batistas de língua inglesa até o século XIX e, nas últimas
décadas, pela misericórdia de Deus, foi redescoberta pelos batistas reformados. Em outras
palavras, os batistas calvinistas do século XVII não tinham medo de apontar, de forma detalhada,
onde se encontravam do ponto de vista doutrinário e, por assim dizer, imprimir suas cores no
mastro.
Contudo, o final do século XVIII assistiria ao início de um movimento nos círculos batistas
que estava longe das declarações confessionais. Esse movimento estava enraizado tanto na
convicção de que a Bíblia é a pedra de toque suficiente para a doutrina como no receio de que as
confissões exerçam tirania sobre a consciência. Esse movimento se fortaleceria no final do
século XIX e no início do século XX, promovendo certa antipatia entre alguns grupos de batistas
em relação às confissões de fé que existem até os dias atuais.343 Mas, se as confissões de fé têm o
potencial de rivalizar com as Escrituras e com o senhorio da consciência, como, então, explicar a
posição de nossos antepassados batistas calvinistas do século XVII? Como vimos, eles estavam
completamente convencidos da natureza autoritativa das Escrituras sobre todas as tradições e
documentos meramente humanos e do fato de que “só Deus é Senhor da consciência”.344 No
entanto, eles não receavam recorrer às confissões, que, em conjunto, expressavam claramente
suas convicções como cristãos e batistas.
A posição batista calvinista do século XVII a esse respeito só pode ser compreendida se, antes
de tudo, reconhecermos que essas confissões batistas eram uma forma de enfatizar a importância
vital da doutrina ortodoxa para a vida cristã. Assim como o movimento puritano do qual
emergiram, os batistas calvinistas que foram objeto deste livro estavam completamente cientes
do fato de que as brasas da ortodoxia sempre se fazem necessárias para o fogo da
espiritualidade.345 Quando a doutrina ortodoxa for considerada sem importância, inevitavelmente
o fogo da piedade cristã será extinto. Em segundo lugar, as confissões serviram como um veículo
de unidade, possibilitando que os batistas calvinistas se envolvessem, com bastante vigor, na
tarefa de plantar igrejas, e fornecendo-lhes um muro de proteção contra a incursão de grupos
como o dos quakers.
Com certeza, nossos tempos atuais não são como os de nossos antepassados batistas
calvinistas. No entanto, suas convicções em relação a confissões de fé não deixaram de ser
válidas. Se, hoje, os batistas calvinistas e reformados vão conhecer uma espiritualidade vital, vão
assistir ao crescimento da igreja e vão se posicionar contra as incursões de perspectivas
equivocadas acerca da vida cristã, uma confissão de fé se faz essencial.346

UMA HERANÇA CONGREGACIONAL


Uma área em que os batistas calvinistas do século XVII não tinham vergonha de declarar suas
crenças era a da governança da igreja e da natureza do batismo. Como mostramos, eles estavam
firmemente comprometidos com uma forma congregacional de governo da igreja na qual o
centro da autoridade, sob Cristo, estava nas mãos da congregação. Com base na doutrina
reformada do sacerdócio de todos os crentes e nas percepções de Robert Browne e de outros
separatistas primitivos, eles declararam sua convicção de que a igreja local é um corpo de santos
visíveis que, voluntariamente, concordam em caminhar juntos sob o senhorio de Cristo. Eles
repudiaram com veemência a ideia de uma igreja estatal, em que a igreja é mais como um
exército de recrutas do que o povo livre de Deus.
Há pouca dúvida de que esse conceito da igreja local tenha conferido, aos primeiros batistas,
uma intensidade em sua adoração corporativa, adoração que, em geral, não é encontrada na igreja
paroquial anglicana tradicional. Por exemplo, Benjamin Keach afirmava que, na adoração
pública da igreja, o crente pode experimentar “a semelhança mais próxima do Céu” e receber as
“manifestações mais claras da Beleza de Deus”. O crente pode conhecer mais da “presença
efetiva” e “íntima” de Deus nesse contexto de adoração do que em qualquer outro lugar. Citando
Salmos 87.2 [“O Senhor ama as portas de Sião mais do que as habitações todas de Jacó”] como
prova, o batista de Londres declarava, de forma inequívoca, “preferir a adoração pública de Deus
à adoração em privado”, embora esta última certamente não deva ser negligenciada. Em suma, o
lugar no qual “Deus é mais glorificado” está bem no meio de uma congregação de adoração
composta por santos visíveis.347
É preciso reconhecer que essa ênfase na autoridade congregacional entre os batistas do século
XVII não resultou no isolamento da igreja local. Como vimos, eles se mostraram igualmente
inflexíveis no sentido de que deveria haver estreita cooperação entre as igrejas que
compartilhavam a mesma fé. De acordo com as palavras de David Kingdon, para nossos
antepassados batistas calvinistas, “a comunhão entre as igrejas é tão importante quanto a adesão
à igreja para o crente individual em uma igreja local”.348
Para os batistas calvinistas do século XVII, o ingresso na igreja local se dava por meio do
batismo dos crentes, como vimos no capítulo sobre John Norcott.349 Durante o século XVII, os
batistas calvinistas, ao lado dos batistas gerais, eram as únicas denominações que insistiam no
batismo dos crentes [credobatismo]. Contudo, eles estavam convencidos de que haviam
recuperado a compreensão do batismo do Novo Testamento, como um ato realizado no caso de
os homens ou mulheres já se encontrarem regenerados. Como tal, o batismo tornou-se uma
declaração pública de que uma pessoa havia nascido novamente, trazendo-a das sombras para a
maravilhosa luz de Deus. O fato de o batismo ser realizado ao ar livre, em um lago, um córrego
ou um rio, fazia do ato uma declaração ainda mais contundente. Somente no século XIX a maior
parte das igrejas batistas passou a contar com batistérios construídos dentro dos recintos da
edificação da igreja.
O sentido do batismo, como um ato de declaração pública de fé em Cristo, foi perdido para
muitos batistas de hoje por causa da prática do chamado do altar. Este último tornou-se, para
esses batistas, o local de declaração pública e batismo, reduzido a um “simples” passo de
obediência. Os primeiros batistas calvinistas, porém, sem nada saber do chamado do altar,
tinham uma compreensão muito mais rica acerca do batismo — e, na visão deste autor, uma
perspectiva muito mais bíblica sobre essa ordenança.

UMA HERANÇA REFORMADA


Embora os batistas calvinistas do século XVII não estivessem atrasados em confessar suas
crenças distintas, também estavam bastante conscientes de que se encontravam em um
movimento mais amplo que remontava à época da Reforma — um movimento no qual certas
verdades cruciais do Novo Testamento, especialmente a doutrina da salvação, haviam sido
redescobertas. Os batistas calvinistas se consideravam parte de um movimento internacional
reformado que incorporava os crentes de toda a Europa.
Não por acaso, por exemplo, a Segunda Confissão de Fé de Londres foi, em grande parte,
extraída de outros dois documentos reformados: a Confissão de Westminster e a Declaração de
Savoy. Ao fazer isso, os batistas declararam, de forma explícita, sua solidariedade essencial com
outros grupos reformados na Inglaterra e no País de Gales. O que os unia a esses companheiros
crentes era, em última análise, algo muito mais significativo do que aquelas coisas sobre as quais
se viam divididos. Uma lição importante que deriva desse exemplo é trazida por Samuel E.
Waldron, pastor da Igreja Batista Reformada em Grand Rapids, Michigan: “Quantas vezes
grupos pequenos, isolados e desprezados de batistas reformados ou de outros cristãos reformados
reagiram superdimensionando seus elementos distintivos e exibindo vulnerabilidade a todos os
tipos de peculiaridades e excentricidades! Tais coisas destruíram boa parte de seu proveito. O
que se faz necessário é o mesmo tipo de catolicidade de espírito que nossos primeiros pais
manifestaram. Sem trair nossas convicções, devemos enfatizar nossa unicidade de espírito junto
a outros cristãos conservadores e reformados”.350
A “catolicidade do espírito”, aqui abordada por Waldron, permeia boa parte do testemunho
batista calvinista do século XVII. É encontrada na amizade entre Hanserd Knollys e Henry
Jessey, apesar da recusa deste último em levar sua igreja para o campo dos batistas de filiação
fechada. Pode ser vista na disposição de William Kiffen, no sentido de permitir que a questão da
comunhão fechada não se torne um teste de comunhão na comunidade batista calvinista no
momento em que essa comunidade está endossando a Segunda Confissão de Fé de Londres, em
1689. Pode ser vislumbrada no convite de Benjamin Keach ao batista de sétimo-dia Joseph
Stennett para pregar seu sermão fúnebre, em 1704.
De fato, essa é uma herança bastante rica que os batistas calvinistas do século XVII legaram
àqueles, nos dias de hoje, que compartilham convicções semelhantes. Que nós e nossas igrejas
possamos refletir bem sua experiência histórica e conhecer, pela graça de Deus, a alegria de viver
nossas vidas no “jardim murado e regado” de Cristo!

343 W. M. S. West, “Baptists and Statements of Faith” em Cyril S. Rodd, ed., Foundation Documents of the Faith (Edinburgh: T.
& T. Clark, Ltd., 1987), 88-97.
344 West, “Baptists and Statements of Faith”, 87, 88.
345 C. H. Spurgeon citado por David Kingdon, “C H Spurgeon and the Downgrade Controversy”, em seu et al., A Marvelous
Ministry. How the All-round Ministry of C H Spurgeon Speaks to Us Today (Ligonier, Pennsylvania: Soli Deo Gloria
Publications, 1993), 128. Veja James P. Boyce a esse respeito: Thomas J. Nettles, “Creedalism, Confessionalism, and the Baptist
Faith and Message” em Robison B. James (org.), The Unfettered Word: Southern Baptists Confront the Authority–Inerrancy
Question (Waco, Texas: Word Books, 1987), 150.
346 A esse respeito, veja a discussão de Robert Paul Martin, “Introduction: The legitimacy and use of confessions”, em Samuel
E. Waldron, A modern exposition of the 1689 Baptist Confession of Faith (Darlington, Co. Durham: Evangelical Press, 1989), 9-
23; Erroll Hulse, “The 1689 Confession — its history and role today”, de sua autoria e de outros, Our Baptist Heritage (Leeds:
Reformation Today Trust, 1993), 28-31.
347 The Glory of a True Church, and its Discipline display’d (London: 1697), 63-68, passim.
348 “Independency and Interdependency”, em Our Baptist Heritage, 37. Esse artigo é uma excelente discussão da importância da
eclesiologia batista do século XVII para os batistas calvinistas de hoje.
349 Um bom número de batistas do século XVII também usava os compromissos na igreja como parte do processo em que novos
membros eram admitidos em uma igreja local. Veja Charles W. Deweese, Baptist Church Covenants (Nashville, Tennessee:
Broadman Press, 1990), 24-38.
350 Modern exposition, 430.
Apêndice |
Thomas Wilcox (1622–1687)
A CHOICE DROP OF HONEY
FROM THE ROCK CHRIST*
os muitos autores batistas calvinistas do século XVII, havia apenas três que estavam sendo
D lidos extensivamente depois de um ou dois séculos. John Bunyan, claro, era um eles. Outro
era Benjamin Keach, cuja vida e cujos ensinamentos examinamos no Capítulo 9. O
terceiro foi Thomas Wilcox, sobre quem praticamente não sabemos nada.351 Sabemos que ele
nasceu em 1622, em Lyndon, e que, depois, foi para Rutland. Seu início de carreira, porém, está
envolto em certa obscuridade. Na década de 1660, ele estava vivendo em Londres, em Cannon
Street, onde uma congregação de crentes que ele pastoreava se reunia regularmente em sua casa
para adorar o Senhor. Ao longo da década seguinte, Wilcox pregou para essa congregação em
Three Cranes, uma construção de madeira na rua Tooley, em Southwark. Embora fosse um
batista convicto, Wilcox era suficientemente católico em seu íntimo para ser convidado com
relativa frequência para pregar entre os presbiterianos e congregacionistas. Ele também suportou
a prisão com muita coragem, várias vezes, em vez de sacrificar suas convicções como um
dissidente. Ele esperava, dizem-nos, que sua morte acontecesse de forma súbita, uma esperança
que, aparentemente, se realizou quando ele morreu, em maio de 1687. O epitáfio em seu túmulo,
em Bunhill Fields, o cemitério dos não conformistas em Londres, foi uma observação que ele
frequentemente fazia a esse respeito: “Morte súbita, glória súbita”. Após sua morte, os membros
de sua congregação parecem ter-se juntado a outras congregações batistas calvinistas na cidade.
Wilcox redigiu uma série de tratados, entre os quais o mais conhecido é o apresentado a seguir.
Baseado em uma passagem de Salmos 81.16 [“Eu o sustentaria com o trigo mais fino e o saciaria
com o mel que escorre da rocha”], esse texto foi publicado antes do Grande Incêndio de Londres,
em 1666. Na década de 1840, passou por pelo menos sessenta edições e já havia sido traduzido
para vários idiomas, como o galês, o gaélico irlandês, o francês, o alemão e o finlandês. À luz
dessa quantidade de exemplares, não é exagero descrevê-lo como um pequeno clássico do final
da era puritana.352 Fora de impressão durante a maior parte deste século,353 capta bem a devoção
centrada em Cristo dos primeiros batistas calvinistas e a forma como sua piedade foi nutrida por
aqueles temas centrais da Reforma: solus Christus e sola fide. A ortografia, a pontuação e a
divisão de parágrafos de A Choice Drop of Honey from the Rock Christ foram atualizadas para
adequar esse texto à linguagem moderna.

A CHOICE DROP OF HONEY


FROM THE ROCK CHRIST
Um conselho para meu próprio coração e para o seu. Você é uma pessoa religiosa e participa de
todas as ordenanças. Você faz bem nisso. Esses são privilégios gloriosos; mas, se você não tem o
sangue de Cristo na raiz de sua religião, esse entusiasmo vai se desvanecer, e isso vai se provar
capaz de concorrer para você ir para o inferno. Se você retém a culpa e a autojustificação, essas
víboras vão devorar todos os sinais vitais. Tente examinar, com mais rigor, diariamente, qual é o
terreno sobre o qual sua religião e sua esperança de glória se constroem, se foram depositadas
pela mão de Cristo. Caso contrário, você nunca será capaz de suportar a tempestade que virá
contra si; satanás vai lançar tudo abaixo, e grande será sua queda (Mt 7.27).
Você, que tem a glória de ser cristão, deve ser padejado. Toda a disposição de sua confissão
será tentada. É terrível ver tudo tombando, e não encontrar nada além de si mesmo para se
posicionar. Você, que se orgulha de ser cristão, veja suas asas de cera, que agora vão derreter sob
o calor da tentação. Que miséria é negociar muito, e estar falido longamente, e não ter estoque,
nenhuma base estabelecida para a eternidade em sua alma!
Olhe para sua alma diariamente e pergunte: Onde está o sangue de Cristo para ser visto em
minha alma? Em que base de justiça estou prestes a ser salvo? Consegui fugir de toda a minha
presunção? Muitas pessoas religiosas eminentes vieram gritar, à vista da ruína de todos os seus
deveres: “Anulados, anulados, por toda a eternidade!”. Veja bem, os maiores pecados podem
ocultar-se sob os maiores deveres e os maiores temores. Observe para que a ferida que o pecado
abriu em sua alma seja perfeitamente curada pelo sangue de Cristo, e não esfolada com deveres,
humilhações e alargamentos. Aplique o que quiser além do sangue de Cristo, e isso contaminará
a ferida. Você vai ver que o pecado nunca estará verdadeiramente mortificado se você não tiver
visto Cristo sangrando na cruz por você. Nada pode matar o pecado além da contemplação da
justiça de Cristo.
A natureza não pode fornecer nenhum bálsamo adequado à cura da alma. Curar a si mesmo a
partir do dever, e não a partir de Cristo, é a mais desesperadora das moléstias. A natureza pobre e
andrajosa, com todas as suas grandes melhorias, não pode produzir uma vestimenta
suficientemente fina para cobrir a nudez da alma. Nada pode reparar a alma; tão somente a
justiça perfeita de Cristo. Qualquer coisa da natureza pode ser desvendada antes que a justiça de
Cristo possa ser colocada. O que quer que seja da natureza, satanás virá e saqueará cada trapo e
deixará a alma despida e aberta à ira de Deus. Aquilo que a natureza é capaz de fazer nunca será
suficiente para compor o menor grão de graça capaz de mortificar o pecado, ou para capacitar
você a olhar para Cristo por um dia sequer.
Você é conhecido como uma pessoa cristã, e continua ouvindo, orando e recebendo, mas,
ainda assim, pode ser miserável. Olhe para si mesmo: você já olhou para Cristo como distinto de
todas as outras excelências e da retidão do mundo, com tudo o mais sendo abatido diante da
majestade de seu amor e de sua graça (Is 2.17)? Se você verdadeiramente viu Cristo, você viu a
graça pura, a justiça pura nele, em todos os sentidos, algo bem superior a todo pecado e a toda
miséria. Se você viu Cristo, é capaz de desprezar toda justiça dos homens e dos anjos, de modo
que será trazido à aceitação com Deus. Se você já viu Cristo, não fará mais nada sem ele por
milhares de mundos (1Co 2.2). Se você já viu Cristo, você o viu como uma Rocha, maior que a
autojustificação, maior que satanás e maior que o pecado (Sl 61.2), e essa Rocha segue você
(1Co 10.4), e dela fluirão, continuamente, mel e graça para satisfazê-lo (Sl 81.16). Observe se,
alguma vez, você já viu Cristo como o único gerado do Pai, pleno de graça e verdade (Jo 1.14).
Assegure-se de ter vindo a Cristo, de estar sobre a Rocha de todas as gerações, e de haver
atendido ao seu chamado para sua alma, e de estar comprometido com ele para a justificação.
Os homens falam corajosamente em crer, mas poucos sabem o que é isso. Cristo é o mistério
das Escrituras; a graça, o mistério de Cristo. Crer é a coisa mais maravilhosa do mundo. Atribua
qualquer coisa a si mesmo e você estragará tudo. Quando você crê e vem a Cristo, deve deixar
para trás sua própria justiça e trazer nada além de seu pecado; (Oh, isso é difícil!) e deixe para
trás toda a sua santidade, santificação, deveres, humildade e assim por diante; não traga nada
além de seus desejos e de suas misérias, ou então Cristo não é adequado para você, da mesma
forma que você não é adequado para Cristo. Cristo será um Redentor e um Mediador autêntico, e
você deve ser um pecador arrependido, ou Cristo e você nunca estarão de acordo. A coisa mais
difícil do mundo é reconhecê-lo como Cristo. Leve a ele qualquer coisa de sua propriedade, e
você o desfaz como Cristo.
O que quer que você leve consigo quando vai a Deus em busca de aceitação, além de Cristo,
significa chamá-lo de Anticristo; permita que apenas a justiça de Cristo triunfe. Tudo além disso
é Babilônia, que deve cair quando Cristo se levantar, e você deve alegrar-se no dia dessa queda
(Is 14.4). Cristo, sozinho, pisou as uvas no lagar e não havia ninguém com ele (Is 63.3). Se você
juntar qualquer coisa a Cristo, Cristo pisará nela com fúria e raiva, e manchará as próprias vestes
com sangue. Você acha que é fácil crer. Mas sua fé já foi provada por uma hora de tentação e a
visão completa do pecado? Alguma vez você teve de lidar com satanás e a ira de Deus sobre sua
consciência, quando você estava na boca do inferno e à beira do túmulo? Então, Deus apontou
você para Cristo, um resgate e uma justiça; e você poderia dizer: “Oh! Eu vejo graça suficiente
em Cristo”. Você pode afirmar que essa é a melhor palavra do mundo, acredite. Fé não testada é
fé incerta.
Para crer, você deve ter uma convicção clara do pecado, dos méritos do sangue de Cristo e da
vontade de Cristo de salvar acima de tudo, mesmo sabendo que você é tão somente um pecador
— algo que é muito mais difícil do que fazer o mundo. Nenhum poder da natureza pode levantar-
se tão alto em uma tempestade de pecado e culpa quando você realmente crê que há graça e
vontade em Cristo para salvar. Quando a alma, em todos os seus deveres e em todas as suas
angústias, é capaz de dizer: “É, porém, por iniciativa dele que vocês estão em Cristo Jesus, o
qual se tornou sabedoria de Deus para nós, isto é, justiça, santidade e redenção” (1Co 1.30), é
porque essa alma se libertou de suas constrições.
Todas as tentações, todos os incentivos de satanás e todas as nossas queixas repousam na
autojustificação e na autoexcelência. Deus persegue aqueles que põem satanás em seu encalço,
assim como Labão fez com Jacó. Isso impede Cristo de entrar; e, até Cristo entrar, a culpa não
vai sair; e, onde se encontra culpa, há dureza de coração; e, portanto, muita culpa afirma muito
pouco ou quase nada de Cristo. Quando a culpa é removida, preste atenção para se sentir
aliviado, mas tão somente pelo sangue de Cristo; caso contrário, tenderá a endurecer. Faça de
Cristo sua paz — “pois ele é a nossa paz” (Ef 2.14) —, e não sua obrigação ou suas lágrimas;
faça de Cristo, sua justiça, e não suas graças. Você pode destruir Cristo tanto pela obrigação
como pelo pecado. Olhe para Cristo e faça o máximo que desejar. Deposite todos os seus fardos
sobre a justiça de Cristo. Preste atenção para não ter um pé na própria justiça e outro em Cristo.
Até Cristo vir e sentar-se no alto do trono da graça em sua consciência, não há nada além de
culpa, temores, suspeitas ocultas, a alma pendendo entre a esperança e o medo, o que se revela
um estado contrário ao evangelho.
Aquele que teme a vilania do pecado, o inferno absoluto de seu próprio coração, suspeita dos
méritos de Cristo. Para que você nunca seja um grande pecador, peça a Cristo para se tornar seu
Advogado e você encontrará Jesus Cristo, o Justo (1Jo 2.1). Em todas as dúvidas, os medos as
tempestades da alma, olhe fixamente para Cristo. Não discuta com satanás; ele não deseja nada
de bom para você. Mande-o ir até Cristo, e Cristo responderá. É seu ofício ser nosso Advogado
(1Jo 2.1); seu ofício consiste em responder à lei como nosso Garantidor (Hb 7.22); seu ofício
consiste em responder com justiça, na qualidade de nosso Mediador (Gl 3.20; 1Tm 2.5); e ele fez
um juramento para exercer esse ofício (Hb 7.20, 21). Ponha Cristo sobre todas as coisas. Se você
vai fazer algo para satisfazer o pecado, renuncie a Cristo, o Justo, que se fez pecado por você
(2Co 5.21).
Satanás pode avançar e corromper as Escrituras, mas não é capaz de responder às Escrituras. É
a palavra de Cristo que tem autoridade e poder. Cristo frustrou satanás [“Não ponha à prova o
Senhor, o seu Deus”] (Mt 4.7). Em todas as Escrituras, não há uma só palavra ruim contra um
pobre pecador despojado de autojustificação. Não! As Escrituras apontam claramente para esse
homem na condição de sujeito da graça do evangelho, e nada mais. Creia na vontade de Cristo, e
isso fará com que você se torne capaz. Se você acha que não é capaz de crer, lembre-se de que é
obra de Cristo fazer você crer. Deixe isso por conta dele. Ele opera em você tanto o querer como
o realizar, de acordo com a boa vontade dele (Fp 2.13). Lamente sua incredulidade, pois a
incredulidade é apenas uma configuração de culpa na consciência acima de Cristo,
desvalorizando os méritos de Cristo, considerando seu sangue profano, algo comum e
insatisfatório. Você se queixa muito de tudo. Seu pecado faz você olhar mais para Cristo, e
menos para si mesmo? Isso é certo; de outra forma, o ato de reclamar é mera hipocrisia. Olhar
para as obrigações, para as graças, quando você deveria estar olhando para Cristo, é lamentável.
Olhar para essas coisas vai deixá-lo orgulhoso; mas olhar para a graça de Cristo vai torná-lo
humilde. Pela graça, vocês são salvos (Ef 2.5). Considere motivo de grande alegria o fato de
passar por diversas provações (Tg 1.2). Essas ondas talvez não tenham o objetivo de derrubá-lo,
mas tão somente de lançá-lo sobre a Rocha de Cristo.
Você pode ser trazido para baixo, até mesmo à beira do inferno, pronto para cair; mas você não
pode ser trazido mais para baixo do que o ventre do inferno. Muitos santos já estiveram lá,
ensopados no inferno; no entanto, mesmo assim, você pode chorar, pois, ainda que esteja lá, será
capaz de olhar para o templo sagrado (Jn 2.4). Nesse templo, ninguém pode entrar, tão somente
os purificados, e com uma oferta (At 21.26). Mas agora Cristo é nosso templo, nosso sacrifício,
nosso altar, nosso sumo sacerdote, aquele a quem os pecadores vêm, e sem qualquer oferta, tão
somente seu próprio sangue uma vez oferecido (Hb 7.27).
Lembre-se de todos os padrões de graça que estão no céu. Você pensa, ó, que monumento você
seria! Há milhares de monumentos tão ricos quanto você pode ser. O maior pecador nunca
alcançou a graça de Cristo. Não se desespere. Tenha esperança ainda. Mesmo quando as nuvens
são as mais negras, olhe para Cristo, o pilar permanente do amor e da graça do Pai, estabelecido
bem alto no céu para todos os pecadores o contemplarem continuamente. O que quer que satanás
ou sua consciência diga, não conclua contra si mesmo. Cristo terá a última palavra. Ele é o Juiz
dos vivos e dos mortos, e deve pronunciar a sentença final. Seu sangue fala de reconciliação (Cl
1.20), purificação (1Jo 1.7), compra (At 20.28), redenção (1Pe 1.19), sacrifício (Hb 9.7, 13, 14),
remissão (Hb 9.22), liberdade (Hb 10.19), justificação (Rm 5.9), proximidade com Deus (Ef
2.13). Nenhuma gota desse sangue deve ser perdida. Levante-se e ouça o que Deus dirá, pois ele
falará de paz ao seu povo, para que eles não retornem mais à loucura (Sl 85.8). Ele falará de
graça, misericórdia e paz (2Tm 1.2). Essa é a língua do Pai e de Cristo. Espere que Cristo
apareça como a estrela da manhã (Ap 22.16). É certo que ele virá, tão certo quanto a manhã virá;
e será tão refrescante quanto a chuva (Os 6.3).
O sol pode muito bem ser escondido pelo nascer de Cristo, o Sol da Justiça (Ml 4.2). Não olhe
nem por um instante para algo além de Cristo. Não olhe para o pecado; olhe para Cristo em
primeiro lugar. Quando você lamenta o pecado, se você vê Cristo, deve afastar-se desse pecado
(Zc 12.10). Em todas as tarefas, você deve olhar para Cristo; diante do dever de perdoar; no
dever de ajudar; após o dever de aceitar. Sem isso, é algo apenas carnal, serviço descuidado. Não
legalize o Evangelho, como se Cristo fosse apenas um Mediador parcial e você devesse suportar
parte de seu próprio pecado, e pudesse gozar de um deleite parcial. Permita que o pecado
trespasse sua alma, mas não sua esperança no evangelho.
Olhe mais para a justificação do que para a santificação. Nos mais altos comandos, considere
Cristo não como um tirano a exigir, mas como um devedor comprometido a trabalhar de acordo
com sua promessa. Se você olha para a palavra, os deveres e as qualificações mais do que para os
méritos de Cristo, isso vai lhe custar caro. E não à toa você vai reclamar; graças podem ser
evidências, e apenas os méritos de Cristo devem ser a base de sua esperança para se manter
firme. Somente Cristo pode ser a esperança da glória (Cl 1.27).
Quando vamos a Deus, não devemos levar nada além de Cristo conosco. Qualquer elemento
adicional, ou qualquer qualificação prévia nossa, envenenará e corromperá a fé. Aquele que se
baseia em deveres, graças etc. não conhece os méritos de Cristo. Isso torna o ato de crer muito
difícil, bem acima da natureza. Se você crer, deve renunciar a todo o resto diariamente, como
esterco e escória (Fp 3.7, 8), aos seus privilégios, à sua obediência, ao seu batismo, à sua
santificação, aos seus deveres, às suas graças, às suas lágrimas, à sua comoção, à sua humildade,
e nada além de Cristo deve ser mantido. Diariamente, suas obras, sua autossuficiência, devem ser
destruídas. Cristo é o dom de Deus (Jo 4.10). A fé é dom de Deus (Ef 2.8). O perdão é um dom
gratuito (Is 45.22). Ah, como a natureza ataca, se preocupa e se enfurece com isto: que tudo é
gratuito, nada podendo ser comprado com seus atos, lágrimas e obras, que todas as obras são
excluídas e desprovidas de valor no céu. Se, à natureza, tivesse sido atribuída a tarefa de
pavimentar o caminho da salvação, ela preferiria colocar essa tarefa nas mãos de santos ou de
anjos para, depois, vendê-la; Cristo, porém, a dá livremente. A natureza teria criado uma maneira
de comprar a salvação através das obras; portanto, a natureza abomina os méritos de Cristo,
como se fosse a coisa mais destrutiva para ela. A natureza faria qualquer coisa para ser salva em
vez de ir a Cristo ou aproximar-se dele. Cristo não teria nada; a alma forçaria algo próprio sobre
Cristo. Nesse ponto reside essa grande controvérsia. Veja, você já olhou para os méritos de
Cristo, e para a infinita satisfação causada por sua morte? Você olhou para isso quando o fardo
do pecado e a ira de Deus estavam pesando em sua consciência? Aqui está a graça. A grandeza
do mérito de Cristo é conhecida apenas pelas pobres almas, no auge de sua angústia. Convicções
insignificantes terão apenas um vislumbre remoto do sangue e dos méritos de Cristo.
Pecador desesperado! Você olha para sua mão direita e para sua mão esquerda, e diz: “Quem
vai nos proporcionar algum bem?” Você está tropeçando em todos os seus deveres para pôr
remendos em uma justiça capaz de salvá-lo. Olhe para Cristo agora; volte-se para ele e seja salvo
desde os confins da terra (Is 45.22). Não há mais ninguém. Ele é o Salvador e não há outro além
dele (Is 45.21). Procure em outro lugar e você estará perdido. Deus não olhará para nada além de
Cristo e você também não deve olhar para mais nada além dele. Cristo é levantado tão alto, como
a serpente de bronze no deserto, que os pecadores desde os confins da terra, nos pontos mais
remotos, podem vê-lo e olhar para sua face. E a menor visão dele será capaz de salvá-lo e curá-lo
sem nem ao menos tocá-lo.
E Deus quer que você olhe para ele, pois ele o colocou em um trono de glória bem alto, à vista
de todos os pobres pecadores que o desejam. Você tem infinitas razões de olhar para ele,
nenhuma razão para desviar o olhar dele; pois ele é manso e humilde de coração (Mt 11.29). Ele
mesmo fará o que exige de sua criatura, ou seja, suportar as fraquezas, não agradar a si mesmo
(Rm 15.1-2). Ele o restaurará com seu espírito de mansidão e carregará seus fardos (Gl 6.1-2).
Ele perdoará, não só até sete vezes, mas setenta vezes sete (Mt 18.21, 22). Aumentará a fé do
apóstolo para crer nisso (Lc 17.4, 5). Porque é difícil para nós perdoar, consideramos que para
Cristo também é.
Nós vemos o pecado grande; achamos que Cristo também se comporta assim, e medimos seu
amor infinito amor com nossa própria régua, seus infinitos méritos por nossos pecados, o que
representa grande orgulho e blasfêmia (Sl 103.11, 12; Is 40:15). Ouça o que ele diz, “Encontrei
um resgate” (Jó 33:24). “Nele me agrado” (Mt 3.17). Deus não terá nada mais. Nada mais lhe
fará bem, ou satisfará a consciência, mas tão somente Cristo, que agradou ao Pai. Deus faz tudo
por causa de Cristo. Você merece o inferno, a ira, a rejeição. Os dignos de Cristo são vida,
perdão e aceitação. A glória e a felicidade de Cristo consistem em perdoar. Considere que,
enquanto Cristo esteve sobre a terra, ficava mais entre os escribas e os fariseus, seus adversários
confessos; pois eles eram hipócritas. Não é como você imagina, que seu estado de glória o
tornaria negligente, desdenhando dos pobres pecadores. Não, ele tem o mesmo coração agora no
céu. Ele é Deus e não muda. Ele é “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).
Ele passou por todas as suas tentações, desânimos, angústias, tristezas e rejeições (Mt 4.3-12; Mc
15.24; Lc 22:44; Mt 26.38); e bebeu a parte mais amarga do cálice e deixou a doce. A
condenação acabou. Cristo bebeu toda a ira do Pai de um só gole, e nada além da salvação foi
deixado para você.
Você diz que não pode crer, que não pode se arrepender. Volte-se para Cristo se você não tem
nada além de pecado e miséria. Vá até Cristo com toda a sua impenitência e toda a sua
incredulidade para obter fé e arrependimento dele; isso é glorioso. Diga a Cristo: “Senhor, eu não
trouxe justiça, nenhuma graça a ser aceita ou justificada. Eu vim para ti, e para ter isso”. Nem um
centavo das maiores melhorias da natureza passará no céu. A graça não se sustentará com as
obras (Tt 3.5; Rm 11.6). Esse é um aspecto terrível para a natureza, que não consegue imaginar
ser despojada de tudo, de não contar com mais nenhum andrajo de justiça.
A presunção e a autossuficiência são as queridinhas da natureza, que ela preserva como se
fosse a própria vida. Isso faz Cristo parecer perigoso para a natureza. A natureza não consegue
desejá-lo. Ele se opõe diretamente a todos os interesses gloriosos da natureza. Cristo fez o
evangelho para você, ou seja, para os pecadores necessitados, os ímpios, os injustos, os
amaldiçoados. A natureza não suporta pensar que o evangelho é apenas para os pecadores. Ela
prefere se desesperar a ir a Cristo em termos tão terríveis. Quando a natureza é confrontada com
a culpa e a ira, e buscará refúgio na presunção e na autobondade. Um poder infinito deve
derrubar essas fortalezas. E Cristo se voltará para o pecador mais abominável que se postar
diante dele.
Dizer, de forma lisonjeira, “Eu sou pecador” é fácil; mas orar com o publicano, “Senhor, tenha
misericórdia de mim, um pecador”, é a oração mais difícil do mundo. É fácil dizer: “Eu creio em
Cristo”; mas ver Cristo cheio de graça e verdade, aquele de cuja plenitude você pode receber
graça pela graça, isso é fé de fato. É fácil confessar Cristo com a boca; mas é difícil confessá-lo
com o coração, como Pedro fez, como sendo o Cristo, o Filho do Deus vivo, o único Mediador,
aquele que está acima da carne e do sangue. Muitos chamam Cristo de Salvador; alguns o
conhecem assim. Ver a graça e a salvação em Cristo é a melhor visão do mundo. Ninguém
consegue fazer isso, mas, ao mesmo tempo, eles devem ver que a glória e a salvação pertencem a
eles. Devo me envergonhar porque, no meio de tanta confissão, conheci tão pouco do sangue de
Cristo, que é a principal coisa do evangelho. Uma religião formal e que não tem Cristo será a
visão mais sombria do inferno que se pode ter. Você nunca vendeu tudo; você nunca se afastou
da própria presunção e assim por diante. Você pode estar no alto do cumprimento de seus
deveres e, ainda assim, ser um autêntico inimigo e adversário de Cristo em cada oração, em cada
ordenança. Trabalho após a santificação, acima de tudo; mas não permite a presença de Cristo
nisso, para ter a sua salvação; e, se assim for, ele virá, de uma forma ou de outra. A infinita
satisfação de Cristo, e não a sua santificação, representará a sua justificação diante de Deus.
Quando o Senhor parecer terrível, fora de seu lugar sagrado, o fogo consumirá tudo isso, como
feno e restolho.
Esta será uma religião sólida: para descansar sobre todas as eternas montanhas do amor e da
graça de Deus em Cristo; para viver continuamente à vista da justiça e dos méritos infinitos de
Cristo, eles são santificados. Sem isso, o coração é carnal; e, naquelas visões em que se enxerga
a vileza em sua plenitude, está o pecado (em comparação com a justiça de Cristo), e a visão de
todos perdoados; naquelas visões, para orar, ouvir e assim por diante, enxergando seu eu
contaminado e todas a sua performance fraca aceita reiteradas vezes; naquelas visões em que se
pisoteiam todas as suas glórias próprias, sua presunção, seus privilégios abomináveis,
encontrando-se continuamente na justiça de Cristo apenas, regozijando-se nas ruínas de sua
própria justiça, o despojo de todas as suas próprias excelências; a visão de que somente Cristo
como Mediador pode ser exaltado em seu trono. Lamente por todos os seus atos, por mais
gloriosos que sejam, se você não agiu à vista do amor de Cristo. Sem o sangue de Cristo em sua
consciência, tudo estará morto (Hb 9.14).
Essa opinião de livre-arbítrio (pela qual tantos clamam) será facilmente combatida, como
ocorre nas Escrituras, pelo coração que teve qualquer trato espiritual com Jesus Cristo quanto à
aplicação de seus méritos e sujeição à sua justiça. Cristo é magnífico demais para que a natureza
pobre possa aproximar-se dele ou apreendê-lo. Cristo é tão infinitamente santo que a natureza
nunca se atreve a olhar para ele; tão infinitamente bom que a natureza não consegue acreditar
que ele possa ser assim diante da visão de tanto pecado. Cristo é tão altivo e glorioso para a
natureza que ela não é capaz de tocá-lo. É preciso haver, em primeiro lugar, uma natureza divina
posta na alma para lhe permitir tocá-lo. Ele está infinitamente além da visão ou do alcance da
natureza. Esse Cristo que o livre-arbítrio natural pode apreender é apenas um Cristo natural
criado pelo próprio homem, não o Cristo do Pai, nem Jesus, o Filho do Deus vivo, a quem
ninguém pode vir sem que o Pai o atraia (Jo 6.44).
Finalmente, procure as Escrituras diariamente como minas de ouro nas quais o coração de
Cristo repousa. Mantenha vigilância contra os pecados aos quais você é propenso, veja-os em
toda a sua repugnância, e eles nunca irromperão em você. Mantenha sempre um coração humilde
e sensível a qualquer má conduta espiritual, observando todos os seus pensamentos, seus atos
interiores. Não acolha a culpa na consciência, mas aplique o sangue de Cristo imediatamente.
Deus cobra o pecado e a culpa em você para fazê-lo olhar para Cristo, a serpente de bronze. Não
julgue o amor de Cristo pela providência, mas pelas promessas. Abençoe Deus por sacudir falsas
fundações, por qualquer meio pelo qual ele mantenha a alma desperta e buscando por Cristo; é
melhor ter doenças e tentações do que segurança e superficialidade.
Um espírito pequeno se transformará em um espírito profano, e também vai pecar e orar. A
leveza é a bandeira da religião real. Se não for arrancada do coração por procedimentos
constantes e sérios, com a contemplação de Cristo nos deveres, ficará cada vez mais forte e
mortal, por estar sob as ordenanças da igreja. Não meça suas graças pelas conquistas alheias, mas
pelo julgamento das Escrituras. Seja sério, reto no dever; mas tenha tanto medo de obter o
consolo dos deveres como dos pecados. O consolo que vem de outras mãos que não as de Cristo
é mortal. Dedique-se à oração, ou você nunca estará em comunhão com Deus. Assim como você
se dedica à oração privada, também se dedique à prática de outras ordenanças.
Não considere os deveres com expressões altivas; contemple Cristo. Trema diante dos dons e
dos deveres. Assim dizia um grande santo: “Ele tinha mais medo de suas obrigações do que de
seus pecados”. Valorize as manifestações do amor de Cristo, as quais tornam o coração humilde
diante de Cristo, e alto demais para o pecado. Não despreze a menor das evidências de graça;
Deus pode colocá-lo para fazer uso da menor delas. E até isso pode valer muito para você (1Jo
3.14).
Seja fiel à verdade, mas não turbulento ou desdenhoso. Restaure aqueles que caírem; ajude-os
a se levantar novamente com todas as entranhas de Cristo. Coloque os ossos quebrados e
desarticulados na lugar, com a graça do evangelho. O cristão confiante não despreza os santos
fracos; você pode vir a desejar estar na condição do mais desprezado entre eles. Esteja atento às
enfermidades dos outros, mas perceba especialmente a sua própria. Visite com frequência os
leitos dos doentes e as almas desertas; eles são excelentes para os estudiosos.
Suporte sua vocação. Seja zeloso em todas as relações, assim como é em relação ao Senhor.
Contente-se com o pouco que o mundo possa dar a você; esse pouco servirá. Pense pouco na
terra, não muito. Pense muito no céu, não pouco, porque Cristo é rico e livre. Pense que cada um
é melhor do que você, e sempre carregue a autoaversão sobre si mesmo, como alguém que pode
ser pisoteado por todos os santos. Observe a vaidade do mundo e a desgraça de todas as coisas
terrenas; e não ame nada além de Cristo. Lamente o fato de ser capaz de ver tão pouco de Cristo
no mundo; pouquíssimos o querem; as trivilidades é que agradam a eles. Para a alma
autoconfiante, Cristo não passa de uma fábula e as Escrituras não passam de uma história.
Lamente o fato de tantos estarem sob o batismo e a ordem da igreja e não estarem sob a graça.
Prepare-se para a cruz; dê-lhe as boas-vindas; suporte-a triunfantemente como a cruz de Cristo,
independentemente das zombarias, do desprezo das vaias, das prisões, e assim por diante, mas
observe para se certificar de que é realmente a cruz de Cristo, e não a sua própria. O pecado o
impedirá de se gloriar na cruz de Cristo. Omitir que pequenas verdades venham à luz pode gerar
o inferno na consciência, assim como cometer os maiores pecados à luz do dia. Se você foi tirado
do ventre do inferno para o seio de Cristo, e se foi compelido a tomar assento entre os príncipes
na casa de Deus, oh, como você tem o dever de viver segundo um padrão de misericórdia!
Alma redimida e restaurada, que somas infinitas você deve a Cristo! Com que sentimentos
singulares você deve caminhar e realizar todas as missões! Nos sábados, louvando e cantando
aleluias. A comunhão na igreja, que é o paraíso, estar com Cristo e em comunhão com os anjos e
santos! Que grande submersão ter a alma no amor eterno como se tivesse sido sepultada com
Cristo, morrendo para todas as coisas ao seu lado. Toda vez que você pensar em Cristo,
surpreenda-se e maravilhe-se; e, quando você vir o pecado, volte-se para a graça de Cristo,
aquele que o perdoou; e, quando se sentir orgulhoso, olhe para a graça de Cristo, que humilhará e
golpeará você na pó.
Lembre-se do tempo de amor de Cristo quando você estava nu (Ez 16.8, 9), e então ele o
escolheu. É possível que você tenha um só pensamento de orgulho? Lembre-se dos braços que o
apoiaram do naufrágio e o libertaram das profundezas do Sheol (Sl 86.13), grite nos ouvidos de
anjos e homens (Sl 148) e sempre cante: “Louvado, louvado; graça, graça”. Diariamente,
arrependa-se, ore e caminhe segundo a visão da graça, como aquele que tem a unção da graça
sobre si. Lembre-se de seus pecados, do perdão de Cristo; de sua fraqueza, da força de Cristo; e
seu orgulho, da humildade de Cristo; de suas muitas enfermidades, da restauração de Cristo; de
suas culpas, das novas aplicações do sangue de Cristo; de suas falhas, da ressurreição de Cristo;
de seus desejos, da plenitude de Cristo; de suas tentações, da sensibilidade de Cristo; de sua
vileza, da justiça de Cristo. Alma abençoada, a quem Cristo deve encontrar sem que você tenha
sua própria justiça (Fp 3.9), mas com suas vestes lavadas e alvejadas no sangue do Cordeiro (Ap
7.14).
Não brinque com as ordenanças. Dedique-se à meditação e à oração. Esteja atento e diligente a
todas as oportunidades de ouvir. Somos carentes de doutrina, reprovação, exortação, consolo,
como as ervas e a grama têm necessidade da chuva, do orvalho, da chuva branda e da garoa (Dt
32.2). Faça tudo o que você faz como um trabalho de sua alma, como se fosse para Cristo (Zc
7.5, 6), como se ele estivesse olhando para você e você para ele, e busque toda a sua força nele.
Observe quais movimentos sagrados você encontra em sua alma para cumprir com seus deveres.
Valorize até mesmo o menor pensamento que você tem para Cristo, e todas as palavras, até
mesmo as mínimas que sejam, que você pronuncia com sinceridade, de todo o coração. Rica
misericórdia! Oh, bendito seja Deus por isso! Você pode contar com a brilhante Estrela da
Manhã, com as renovadas influências de graça e paz constantemente surgindo (Ap 22.16), e
Cristo docemente cumprimentando sua alma em todos os deveres? O dever que não se torna mais
espiritual vai tornar-se mais carnal; o que não vivifica e humilha vai matar e endurecer.
Judas pode ter o paliativo, o privilégio externo do batismo, da ceia, da comunhão da igreja etc.,
mas João se apoiou no seio de Cristo (Jo 13.23); essa é a postura evangelicamente ordenada
segundo a qual devemos orar e ouvir, e desempenhar todos os nossos deveres. Nada além de nos
recostar em seu seio dissolverá a dureza de coração. Isso humilhará de fato, e tornará a alma
cordial com Cristo, e o pecado, um vilão da alma — sim, transforme o pedaço mais feio do
inferno em glória de Cristo. Nunca pense que está certo até se sentir vivendo no seio de Cristo,
aquele que está no seio do Pai (Jo 1.18). Você pode vir sem nenhum pedido que lhe agrade mais.
Ele tirou o Filho de seu próprio seio com essa finalidade, para que se mantivesse à vista de todos
os pecadores, como o monumento eterno do amor de seu Pai.
Olhar na direção do sol enfraquece o olho. Quanto mais você olhar para Cristo, o Sol da
Justiça, mais forte e mais claro será o olho da fé. Olhe somente para Cristo, você vai amá-lo e
viver nele. Pense nele continuamente. Mantenha os olhos fixos no sangue de Cristo, ou cada
explosão de tentação vai sacudi-lo. Olhe para Cristo primeiro, com sofrimento e satisfação. Se
você estiver olhando para suas próprias graças, para sua santificação, não fique olhando para
elas; em primeiro lugar, olhe para a justiça de Cristo (veja o Filho e você verá tudo); em segundo
lugar, olhe para suas próprias graças.
Vá para Cristo vislumbrando seu próprio pecado e sua própria miséria, e não sua graça ou sua
santidade. Isso não tem a ver com suas graças ou santificação; elas serão apenas como um véu
para Cristo, até que você tenha visto Cristo em primeiro lugar. Aquele que olha para Cristo
através de suas graças é como aquele que vê o sol na água, vacilando e se movendo, como a água
faz. Olhe para Cristo somente, aquele que brilha no firmamento do amor e da graça do Pai; e
você o verá em sua própria glória, que é indescritível. O orgulho e incredulidade vão levá-lo a
ver um pouco de si mesmo primeiro. Mas a fé terá a ver apenas com Cristo, que é indizivelmente
glorioso, e deve absorver sua santificação, bem como seu pecado (1Co 1.30; 2Co 5.21). Basta
desviar o olhar de Cristo e, prontamente, como Pedro, você mergulha em dúvidas.
Um cristão nunca carece de conforto, mas, ao romper com a ordem do evangelho, ao optar
entre olhar para si mesmo ou olhar para a justiça perfeita de Cristo, ele escolhe entre viver à luz
de velas ou viver à luz do sol. O mel que você suga de sua própria justiça se tranformará em fel,
e a luz que você extrai dele para caminhar se transformará em trevas para a alma. Satanás está
tentando você, ao colocá-lo para trabalhar em sua própria graça, a fim de obter conforto nisso.
Então, o Pai vem e aponta para a graça de Cristo, como algo rico, glorioso e infinitamente
agradável a ele, e o convida a ver a justiça de Cristo. Esse é um movimento abençoado, um
sussurro doce, que impede sua incredulidade. Siga a menor sugestão disso com muita oração.
Considere esse ato uma joia inestimável. Trata-se de uma promessa de mais por vir.
Mais uma vez, se você ora e se sente desencorajado, veja Cristo orando por você, defendendo
seus interesses junto ao Pai; o que mais pode faltar a você? (Jo 14.16). Se você está perturbado,
veja em Cristo sua paz (Ef 2.14), deixando-lhe a paz quando foi para o céu, ordenando-lhe,
repetidas vezes, que não tenha preocupação, que não se ocupe com nada que possa obstruir seu
conforto ou sua crença (Jo 14.1-27). Agora, ele está no trono, depois de haver destruído na cruz,
no estado mais baixo de humilhação, tudo o que é capaz de ferir ou aborrecer você. Ele suportou
todos os seus pecados, tristezas, problemas, tentações, e partiu com o fim de preparar mansões
para você. Você, que é capaz de ver Cristo como tudo e a si mesmo como absolutamente nada,
que faz de Cristo toda a sua vida e que está morto para toda a justiça, você é um verdadeiro
cristão, alguém muito amado e que conta com os favores de Deus, um dos favoritos do céu. Faça
a Cristo este favor em troca de todo o seu amor por você: ame todos os seus pobres santos e a
igreja. Os mais desprezados, os menores, os mais fracos, todos estão gravados em seu coração
sob os nomes dos filhos de Israel, no peitoral de Arão (Êx 28:29). “Orai pela paz de Jerusalém!
Sejam prósperos os que te amam” (Sl 122.6).
351 Nossa principal fonte de informações sobre Wilcox é Thomas Crosby, The History of the English Baptists (London, 1740),
III, 101. Veja também Joseph Ivimey, A History of the English Baptists (London: 1814), II, 465; W.T. Whitley, The Baptists of
London 1612–1928 (London: The Kingsgate Press, 1928), 120. Veja também J. Stephen Yuille, Looking unto Jesus: The Christ-
Centered Piety of Seventeenth-Century Baptists (Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers, 2013), Capítulo 2.
352 A esse respeito, veja Charles E. Hambrick-Stowe, “The Spirit of the Old Writers: The Great Awakening and the Persistence
of Puritan Piety”, em Francis J. Bremer (org.), Puritanism: Transatlantic Perspectives on a Seventeenth-Century Anglo-American
Faith (Boston: Massachusetts Historical Society, 1993), 281.
353 Há uma edição sobre esse tratado disponível em Chapel Library, ٢٦٠٣, W. Wright Street, Pensacola, Florida 32505.
Sobre o autor
ichael A. G. Haykin nasceu na Inglaterra, de pai irlandês e mãe curda. Atua como reitor e
M professor de História da Igreja no Seminário Teológico Batista do Sul, Louisville,
Kentucky, e é diretor do Centro Andrew Fuller de Estudos Batistas, também no Batista
do Sul. Haykin é bacharel em Filosofia pela Universidade de Toronto (1974), mestre em Religião
por Wycliffe College e pela Universidade de Toronto (1977), e obteve um doutorado em
Teologia, especificamente em História da Igreja, pela Wycliffe College e pela Universidade de
Toronto (1982). Ele também atua como professor de História da Igreja no Heritage Theological
Seminary, em Cambridge, Ontário. Ele e sua esposa, Alison, residem em Dundas, Ontário.

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