No final do século XIX, a seção de atrações teatrais nos jornais do
Rio de Janeiro oferecia aos Cariocas um número grande de opções. Em abril de 1888, por exemplo, residentes da capital podiam escolher entre a “premiére” da zarzuela La Gran Via, de Chueca e Valverde no teatro Lucinda; a paródia em versão de revista, entitulada O Boulevard da Imprensa, por Oscar Pederneiras no teatro Recreio Dramatico; a tradução da comédia Tricoche e Cacolet, de Meihac e Halevy no teatro Santana; a revista Notas Recolhidas, de A. Cardoso de Menezes no teatro Sant’anna; ou um concerto de orchestra organizado por Arthur Napoleão, no Cassino Fluminense. Em julho do mesmo ano, cariocas que gostavam da música de concerto podiam ouvir Mendelssohn, Haydn, Mozart, e Beethoven num concerto regido por Cavalier Darbilly apresentado no teatro São Pedro de Alcântara. Em agosto, uma companhia italiana abria a temporada de ópera no teatro D. Pedro II apresentando várias óperas de Verdi e de outros mestres do bel canto italiano1. 47 E sta proliferação de atrações teatrais e musicais tradu- de artistas e intelectuais, que começavam a olhar para a cultu- ziam o caráter nitidamente cosmopolita do Rio de ra afro-brasileira com uma curiosidade quase científica. Ao Janeiro nas últimas décadas do século. Gêneros e aparecer no palcos cariocas e fazer furor com a população, estilos musicais de várias partes do mundo chegavam à cida- danças “remexidas” como fandangos, fados, batuques, e jon- de em grandes números, e especialmente aqueles em voga em gos, eram na maioria das vezes apresentadas como intermezzos Paris. Os compositores brasileiros deste período que hoje são ou no final de peças teatrais como elemento cômico. Desta caracterizados como “populares” saíram dessa tradição urba- forma, contrastando com árias de ópera e canções líricas de na e eminentemente cosmopolita; suas obras refletem os gos- cunho Europeu, o elemento negro era caracterizado como tos de uma classe média emergente que procurava um meio- exótico e deviante da cultura européia “civilizadora.” termo entre a tradição operistica e de concerto européia, e as A música popular que emergiu no final do século XIX, músicas das ruas da capital, particularmente aquela derivada portanto, refletia a síntese das músicas apresentadas nos tea- da tradição afro-brasileira. No final do século, portanto, a tros da capital, e era o resultado das aspirações artistícas, inte- linha divisória entre a música popular, música tradicional e lectuais, e políticas da nova burguesia brasileira. música “erudita” ainda não estava totalmente delineada; a O início da carreira musical de Chiquinha Gonzaga música “não erudita” era aquela que circulava em grandes (1847-1935) serve como exemplo. Reconhecidamente uma números e por publicações baratas, arranjadas e simplificadas das personalidades mais importantes da música brasileira no para atender um número grande de consumidores. Mas esta final do século XIX e começo do século XX, Chiquinha foi distinção não se aplicava claramente ao gênero ou estilo musi- aluna do imigrante português Arthur Napoleão, um pianista cal: um tango, uma valsa ou uma canção operistica em italia- virtuoso e prolífico compositor de peças de salão. Napoleão, no agradavam igualmente ao público carioca. que fez do Rio de Janeiro a sua moradia desde 1868, atuou As danças em voga nos palcos do Rio de Janeiro neste também no comércio e publicação de música, e como organi- período eram as mesmas danças de sucesso nos teatros pari- zador de concertos de música clássica na capital brasileira. A sienses, como a polca, o tango, e a habanera – as duas últimas sua atuação nos meios musicais e artísticos cariocas era reco- chegavam à capital brasileira pelo circuito Espanha-Paris- nhecida não somente nas altas rodas sociais, mas também Rio2. Portanto, a popularidade do tango neste período não pelo imperador, que lhe concedeu a Ordem da Rosa. refletia necessariamente uma tendêcia para a nacionalização Chiquinha iniciou sua carreira seguindo as pegadas de seu da música popular, mas refletia o gosto da burguesia carioca professor; ela atuou como pianista em salões e escreveu um que acatava amplamente as modas musicais provenientes de grande número de composições para piano no estilo europeu Paris. Fora do teatro, estas danças entravam nas salas de visi- que eram tocadas em reuniões sociais e familiares das classes tas da burguesisa através do piano, e lá subiam de status como média e alta Carioca. Napoleão se engarregou da publicação música digna de admiração e respeito. e distribuição das primeiras composições de Chiquinha, Nos palcos do Rio de Janeiro a música e dança européias como as valsas para piano Plangente e Desalento, que apare- confluiu com estilizações locais da música negra que permea- ceram numa colecão de danças para piano, Alegria dos va as ruas da cidade. É importante ressaltar que o elemento Salões, ao lado de peças de Strauss, do Italiano Luigi Arditi, e negro dessa emergente música popular não era advindo das dos franceses Henri Hertz e Joseph Ascher. autênticas rodas de batuques e de capoeira Afro-brasileiros, Ao mesmo tempo que Chiquinha Gonzaga publicava mas de adaptações desta música para o palco, feitas para agra- valsas, ela também se ocupava escrevendo peças para o tea- dar uma burguesia predominantemente branca, cujo gosto tro, como tangos e habaneras no estilo das danças trazidas ao musical era constantemente regido por ditames parisienses. Rio de Janeiro por companhia espanholas de zarzuela (e com Na realidade, a inclusão de danças de origem Afro-brasileira sucesso em Paris). Mesmo assim, seus tangos Seductor e nos teatros cariocas refletia o momento político do pais, a Sospiro, publicados por Arthur Napoleão na década de eminente abolição da escravatura, e um interesse particular 1880, apareceram em coleções para piano ao lado de peças 48 extraídas da ópera Carmem e de uma ver- realidade, visto como interessante com são estilizada da zamacueca chilena escri- tanto que fosse exótico. ta pelo violinista Cubano José White. Dois meses depois da abertura d’A Em 1885, Chiquinha Gonzaga escre- Mulher Homem, um novo número final veu a música para a opereta A Corte na foi adicionado à revista, entitulado “Um Roça, com texto de Palhares Ribeiro. A maxixe na Cidade-Nova.” Para este qua- peça foi apresentada no teatro Príncipe dro final, Chiquinha Gonzaga e Imperial como “opereta em 1 ato de cos- Henrique de Magalhães escreveram tumes brasileiros”. A ação da opereta se música para caracterizar a zona pobre da passava na “fazenda das Cebolas, em cidade, especificamente a parte chamada Queimados” e tinha a participação de cidade nova, onde um maxixe era um “roceiras e roceiros”. Para a opereta Chi- evento dançante da classe baixa com a quinha escreveu umas “composições o participação de negros, mulatos, e imi- cunho caracteristico da música de estilo grantes portugueses. Na revista, o maxixe brasileiro” anunciava o critico do Jornal incluía danças como “fados e jongos de do Commercio3. Mas o seu lundú e cateretê final,“apimen- negros.” Um crítico local descreveu as novas peças como tados” como o descreveu o anúncio do jornal, servira para “composições que têm um toque especial…que pode ser visto caracterizar o “roceiro” – aquele que vivia fora da zona urba- nos seus requebros rítmicos.” O crítico conclui ressaltando na – e não a música dos cariocas cosmopolitas. Para estes, que “talvez haja um elemento lascivo nestas danças, mas não cantou-se no intervalo árias de ópera italiana e cançonetas se pode negar a graça e o encanto que vêm naturalmente do francesas, bem urbanas e cosmopolitas. nosso caráter e do nosso povo6.”Embora o maxixe tenha sido Um ano mais tarde Chiquinha Gonzaga atingiu o seu apresentado ao público como cena final, com o objetivo espe- maior sucesso quando compôs algumas peças para a revista cífico de fazer a população rir e se exaltar, talvez tenha sido A Mulher-Homem, escrita por Valentim de Magalhães e esta aceitação do crítico local um primeiro indicativo de que Filinto de Almeida e posto em cena “com todo luxo” em janei- o elemento afro-brasileiro, e não as árias e cançonetas euro- ro de 1885 no teatro Sant’anna4. A revista baseava-se num péias, podia caracterizar uma suposta “brasilidade” na música escândalo que se passou em 1885, quando um homem vesti- popular. do de mulher tentou conseguir emprego de doméstica. Em volta deste evento principal, A Mulher-Homem também NOTAS comentava, parodiava, e satirizava eventos políticos recentes, 1 Todas estas atrações foram anunciadas no Jornal do Commercio, de principalmente a lei dos sexagenários que emancipava escra- abril a agosto de 1888. vos com mais de sessenta anos. Mas apesar da revista ter 2 Paulo Roberto Peloso Augusto, “Os Tangos Urbanos no Rio de como fio condutor um texto totalmente localizado, os seus Janeiro: 1870-1920, Uma Análise Histórica e Musical,” Revista Música 32 números de música incluiam um coquetel de árias e aber- 8/1-2 (maio/nov, 1997): 106. tura de óperas, como a abertura da ópera La Gioconda de A. 3 Jornal do Commercio, 23 de Janeiro de 1885. Ponchielli e a marcha da opera Le Prophète de Meyerbeer5. 4 Jornal do Commercio, 16 de fevereiro de 1886. No final da peça aparecia o número cômico: um jongo escri- 5 A denominação dos números de música aparece no Jornal do to por Henrique de Magalhães entitulado “Jongo dos pretos Commercio, de 13 de janeiro de 1886. sexagenários”. Como era de costume, cariocas ouviam estes 6 Jornal do Commercio, 15 de fevereiro de 1886. números “apimentados” como peça de fechamento, que ale- gravam e divertiam uma platéia predominantemente burgue- Cristina Magaldi é professora de história de música na Towson sa. O elemento afro-brasileiro era desta forma distanciado da University, Universidade Estadual de Maryland, EUA. 49