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Copyright© 2022:

Ivan Montenegro

Título:

No princípio: as incríveis histórias da criação do mundo

Capa:

Ana C. Bahia

Diagramação:

Beatriz Albernaz

Revisão:

Beatriz Amaral

Ilustrações:

Paula Pereira

Foto do Autor:

Isabela Montenegro

Foto de capa:

O Deus Sol e o Monstro do Caos, desenho de L. Gruner, Monuments of Nineveh.

Livro digital:

Lucas Camargo

Gabriela Fazoli

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem o consentimento por escrito do autor.

1ª Edição – 2022

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil)

M61p Montenegro, Ivan

1.ed. No princípio : as incríveis histórias da criação do mundo / Ivan Montenegro. - 1.ed. -

Divinópolis, MG : Adelante, 2022.

ePub3.

Bibliografia.

ISBN: 978-65-89911-82-1

1. Criação - Aspectos religiosos. 2. Criação do mundo. 2. Mitologia. 3. Religião. I.

Título.

01-2022/24 CDD 299.08

Índice para catálogo sistemático:

1. Criação do mundo : Aspectos religiosos 292.08

Bibliotecária : Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

Adelante é um selo editorial de

Gulliver Editora Ltda.

Para mais informações:

www.gullivereditora.com.br

(37) 3511 - 1120


“Um mito é para uma cultura o que um sonho é para um indivíduo. É
uma projeção da relação de um povo com seu passado e seu ambiente. Um
mito é o reflexo da alma de uma cultura, o sentido profundo de si
mesma.”
David Leeming e Jake Page
Para minha mãe, Maria.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

PARTE I - CRESCENTE FÉRTIL, O BERÇO DA CIVILIZAÇÃO


AS MUITAS FACES DE RÁ

O GÊNESIS SUMÉRIO

ENUMA ELISH, O ÉPICO BABILÔNICO

NO PRINCÍPIO [BERESHIT]

A OBRA DE JEOVÁ

A CRIAÇÃO EM OUTROS TEXTOS BÍBLICOS

PARTE II - ÀS MARGENS DO ÍNDICO


O PARADOXO INDIANO

ASSIM FALOU ZARATHUSTRA

O GÊNESIS ISLÂMICO

O CHIFRE DE NGONA

PARTE III - EUROPA, O BERÇO DA CULTURA OCIDENTAL


TEOGONIA DE HESÍODO

VÖLUSPÁ, O POEMA NÓRDICO DA CRIAÇÃO

OS LIVROS APÓCRIFOS DO CRISTIANISMO ESLAVO


PARTE IV - EXTREMO ORIENTE E OCEANIA
O TAO CHINÊS

O KOJIKI E A ORIGEM DO JAPÃO

A VOZ DOS MAORIS

PARTE V - O NOVO MUNDO, NÃO TÃO NOVO ASSIM


O POPOL VUH E A CRIAÇÃO DO MUNDO MAIA

VIRACOCHA, O CRIADOR INCA

A MULHER ARANHA HOPI

OS GUARANIS E A GÊNESE BRASILEIRA

EPÍLOGO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO

Meu interesse pela mitologia vem de longe, coincide com um período da


minha vida em que mudei, paulatinamente, o meu entendimento da Bíblia, que
antes via como a inquestionável e irrefutável Palavra de Deus, mas que com o
tempo e os estudos passei a ver como uma obra de homens extraordinários em
uma época igualmente extraordinária. Antes um defensor ferrenho dos dogmas
cristãos, passei a me considerar um agnóstico. Percebi que muito do que
acreditava ser imperativo absoluto era, na verdade, fruto da consciência coletiva,
repleta de mitos.

Essa época de transformação do meu entendimento coincide com o


nascimento dos meus filhos. Isabela, a mais nova, tinha uma relutância enorme
para dormir, porém não resistia às minhas histórias, os livros de mitologia eram
minha inspiração. Viajante inveterado que sou, sempre passei ao largo dos pontos
turísticos badalados para visitar ruínas, museus e pesquisar sobre as crenças e mitos
locais.

Sou um sujeito bastante curioso e acredito no benefício da dúvida, é ela que


nos permite entender as limitações do nosso modo de pensar e crescer. Minha
curiosidade me faz questionar a existência, a origem de todas as coisas e da própria
vida. Afinal, quem nunca parou para pensar nas perguntas eternas: Como tudo
começou? De onde viemos? Quem somos nós? Por que estamos aqui na Terra?
Qual é a origem da vida?

Este livro é sobre isso, a origem do Universo e da vida. Não do ponto de vista
da ciência, mas de como os povos antigos a concebiam. Fui em busca dos textos
sagrados originais e da tradição oral de antigas culturas, que foram transmitidos de
geração em geração.

A melhor definição que encontrei para a palavra ‘mito’ é de H. S. Bellamy, que


diz que mitos são ‘história fóssil’. Eles são registros de experiências reais, não
simples resultado de raciocínios fantasiosos. O homem presenciou cataclismos
como um espectador privilegiado, e eles deixaram uma impressão indelével na
mente humana, diz o autor. A bem da verdade, diga-se que a Terra nunca foi um
paraíso plácido e estável em meio a um Universo em ebulição, pelo contrário, o
planeta azul foi palco constante de intensas transformações. Massas continentais
se separaram, a crosta terrestre se ergueu formando majestosas cadeias de
montanhas, que por sua vez cuspiram fogo e vieram abaixo com grande estrondo,
incontáveis vezes água copiosa desceu do céu inundando vastas extensões de terra.
As grandes forças da natureza só podiam ser o trabalho dos deuses.

Bellamy se refere aos mitos também como ‘fósseis das religiões antigas’,
consequência não da imaginação, mas da observação interpretada e do acúmulo de
experiências. Por trás desses fósseis da fé estão acontecimentos reais que vão além
do escopo da própria história. Os mitos são assim tentativas de explicar os
fenômenos da natureza, a origem de todas as coisas, o sobrenatural e o humano.
São perfeitos como fonte de ensinamento de verdades espirituais e religiosas que,
de outra forma, permaneceriam incompreensíveis. Os mitos são tradições
primitivas sagradas, a ‘ciência’ dos nossos antepassados desconhecidos mais
longínquos, são a ‘história disfarçada’.

Diante dos achados arqueológicos, podemos afirmar que humanos que


viveram há 60.000 anos tinham linguagem, autoconsciência, crenças e práticas
religiosas, além de arranjos sociais e culturais como música e dança. Muitos
antropólogos acreditam que eventos climáticos extremos podem ter motivado o
deslocamento de humanos modernos (Homo sapiens) pelo continente africano até
o Vale do Nilo, e dali para a Península Arábica e para o resto do mundo. Existem
evidências de que aconteceram diversas ondas migratórias partindo da África, a
primeira delas há pelo menos 130 mil anos, assim teve início o povoamento do
Planeta.

Eu me encantei por essas histórias, verdadeiros fósseis que são das civilizações
da Antiguidade, neste livro destaco vinte delas. Se você também é um amante dos
mitos e heróis, então este é o lugar certo. Mas não espere encontrar um tratado de
mitologia comparada ou uma interpretação psicológica dos mitos, não é este o
meu objetivo. Tampouco pretendo emitir juízo, advogar ou contestar. O que é
mito para um é a religião do outro. Meu propósito, antes de tudo, é mostrar toda a
riqueza e a beleza dos textos sagrados e da tradição oral dos povos da Idade Antiga
nos cinco continentes.

Prepare-se para encontrar constelações de deuses e deusas, que ora emergem


do caos, ora são gerados por outros deuses, se casam, participam de intrigas e
batalhas e às vezes são sacrificados em prol da humanidade ou do séquito divino.
De certa forma os deuses são reais, diz Joseph Campbell, visto que eles
representam forças tanto do macro quanto do microcosmos, ou seja, do mundo
exterior e do mundo interior. Os mitos são relatos dos feitos dos deuses, que
resultaram na criação do mundo, da natureza, do homem e das religiões com suas
práticas, ritos e comportamentos afins.

O mundo está repleto de mitos de origem, todos são falsos do ponto de vista
dos fatos, afirma Campbell, eles são antes interpretações poéticas do mistério da
vida. Eles extrapolam a história com uma simbologia verdadeira, reconhecida e
venerada em todo o mundo. Mito é a linguagem do coração e da mente juntos,
que ultrapassa a maneira comum de nos expressarmos, afirma Jacob Needleman,
segundo ele a natureza muitas vezes nos fala em linguagem mítica.

Os humanos sempre usaram histórias para descrever ou explicar as coisas, os


mitos de origem são provavelmente as histórias mais antigas que conhecemos.
Assim os antigos foram capazes de assimilar os mistérios da natureza e passar o
conhecimento de geração em geração. Todas as culturas parecem ter buscado
explicações para tais mistérios na forma de mitos.

Meu tema específico são os mitos de origem, aqueles que buscam uma
explicação para a origem do Universo e da vida na Terra, são também conhecidos
como mitos cosmogônicos. Cosmogonia, segundo o dicionário Aurélio, diz
respeito à origem ou formação do mundo e do Universo conhecido, trata da
narrativa ou doutrina sobre a origem do Universo.

O leitor atento certamente notará as semelhanças intrigantes das histórias


sagradas e dos seus heróis. Este fato não é aleatório, na verdade isso acontece com
incrível frequência, entre culturas tão diferentes quanto distantes. Existem
explicações bastante plausíveis para isso, a teoria dos arquétipos de Carl Jung é
uma delas. Segundo ele, os elementos ‘formadores do mito’ estão presentes na
psique inconsciente, as imagens primordiais não são os mitos, mas são
componentes dos mitos. Segundo James Frazer este paralelo entre religiões de
Leste a Oeste reflete o ‘efeito de causas semelhantes agindo de modo similar sobre
a constituição semelhante da mente humana em diferentes regiões e sob céus
diferentes’. Nós não pensamos como queremos, mas como temos que pensar, diz
Philip Freund.

A influência direta dos mitos de uma cultura sobre outra é outro fato mais
comum do que se imagina. É inegável que a tradição judaica possui vários
elementos incorporados da Babilônia, que por sua vez foram herdados da Suméria.
Assim como se podem observar elementos persas no hinduísmo, das religiões
chinesas no xintoísmo japonês e dos incas sobre outras culturas andinas.

A criação de teorias sobre a origem do Universo parece não ter fim e isto
acontece porque até hoje nenhuma foi plenamente aceita. As respostas da ciência
moderna para a origem do Universo estão além do escopo deste livro, mas convém
lembrar que muitas teorias desenvolvidas por cientistas respeitados acabaram se
revelando não mais que mitos.

A principal teoria científica sobre o surgimento do Universo é a do Big Bang,


uma enorme explosão de toda a matéria concentrada que teria ocorrido há 13,8
bilhões de anos. Por força dessa explosão inicial o espaço e o tempo tiveram início.
Apesar de ter amplo suporte da comunidade científica, o Big Bang continua sendo
o maior enigma da ciência, muitos físicos argumentam que talvez ele não tenha
acontecido como se acredita. O matemático em seu laboratório, diz Freund,
parece ter os mesmos irresistíveis processos de pensamento do antigo criador de
mitos. O físico Marcelo Gleiser concorda, segundo ele a religião teve, e continua
tendo, um papel crucial no processo criativo dos cientistas.

Mircea Eliade provê a seguinte classificação para a grande variedade de mitos


cosmogônicos:

1. Criação ex nihilo, ou seja, a partir do nada, onde um Ser Supremo cria o


mundo pelo pensamento, pela palavra, ou se aquecendo no vapor dentro de
uma choça.

2. O tema do Mergulhador da Terra, onde um deus envia pássaros ou animais


anfíbios, ou mergulha ele mesmo no fundo do oceano primevo para buscar
um punhado de terra da qual o mundo inteiro se desenvolve.

3. Criação por meio da divisão de uma unidade primordial em duas partes,


possui três variações comuns:
3.1 a separação do Céu e da Terra, os pais do mundo;

3.2 a separação de uma massa original amorfa, o ‘caos’; e

3.3 a cisão de um ovo cósmico em duas partes.

4. Criação por meio do desmembramento de um ser primordial, seja uma


vítima voluntária ou um monstro aquático derrotado após uma batalha
épica.

Os textos aqui reproduzidos abordam todos esses tipos e variações.


PARTE I

crescente fértil, o
berço da civilização

Egito, Suméria, Babilônia e os reinos de Israel e


Judá
O deus Sol Rá, com o disco solar envolto por uma cobra sobre a sua cabeça
de falcão, representado em tumbas egípcias datadas de cerca de 1550 AC.
AS MUITAS FACES DE RÁ

Antes que os deuses viessem a existir, o que havia era a densa escuridão das
águas do abismo, chamado Nu [Nun]. Das águas de Nu saiu Rá [o deus Sol], o
divino menino-homem, herdeiro da eternidade, que gerou a si próprio e nasceu de
si mesmo, rei da Terra, matéria primeva da qual todas as coisas foram feitas. Nu
cuidou dele e ordenou seus membros, Rá brilhou e foi coroado rei dos deuses.1

Eis Osíris dizendo: ‘Ó tu que és Rá quando te levantas, e Temu [o Sol


noturno] quando te pões. Levantas-te, levantas-te, brilhas, brilhas, és coroado rei
dos deuses. Senhor do Céu e senhor da Terra; criador dos deuses luminosos que
habitam nas alturas, e dos habitantes das profundezas. És o Deus Uno surgido no
começo do tempo.’2

As forças destrutivas do caos tramaram contra ele e tomaram a forma do


demônio-serpente Apep. Mas Rá lhe acorrentou os braços e cortou as pernas,
depois lançou no fogo o corpo da serpente. Os filhos da revolta nunca mais se
erguerão.3

Rá fez surgir um outeiro elevado no meio das águas, onde permaneceu. Das
gotas de sangue que saíram do seu falo, quando ele se mutilou a si mesmo,
nasceram os deuses Hu e As [Chu e Tefnut], que estão no séquito de Rá e
acompanham o deus Tem [Temu] todos os dias.4

O deus Rá criou os céus e a Terra, afeiçoou o homem, formou Hapi [o deus


do Nilo], deu vida a todos os seres, coseu as montanhas umas às outras, fez a
humanidade e os animais do campo tomarem forma. [Das lágrimas de Rá
surgiram os primeiros seres humanos].5
Eis Osíris novamente dizendo: ‘Sê adorado, ó tu que a deusa Maat [deusa da
lei, da ordem e da regularidade] abraça de manhã e ao entardecer. Viajas pelo Céu
com o coração inflado de alegria. Ó Uno, poderoso, de miríades de formas e
aspectos, rei do mundo, Príncipe de Anu [Heliópolis], senhor da eternidade e
soberano da perpetuidade, a companhia dos deuses exulta quando te levantas e
navegas pelo Céu, ó tu que és exaltado no barco Sectet, e a voz dos que se rejubilam
ressoa na grandiosa habitação. A majestade do deus sagrado dá brilho à Terra
todos os dias.’6

Rá fez a Terra prosperar com as cheias do Nilo e robusteceu as gerações dos


homens. Assim ele suscitou alegria em todas as terras, em todas as cidades e em
todos os templos.7

Texto elaborado a partir de papiros selecionados do Livro dos mortos, tradução


inglesa da Recensão Tebana de E. A. Wallis Budge.

1. Hino a Rá quando se levanta. Papiro de Nect, Museu Britânico No. 10.471,


folha 21

2. Hino a Rá quando se levanta. Papiro de Hu-nefer, Museu Britânico No.


9.901, folha 1

3. Hino a Rá quando se levanta. Papiro de Quena, Papyrus Égyptiens, T.2,


Lâmina 2

4. Papiro de Ani, Museu Britânico No. 10.470, folhas 7-10; Papiro de Nebseni,
Museu Britânico No. 9.900, folha 14

5. Hino a Rá quando se levanta. Papiro de Hu-nefer, Museu Britânico No.


9.901, folha 1
6. Hino a Rá quando se levanta. Papiro de Quena, Papyrus Égyptiens, T.2,
Lâmina 2

7. Hino a Rá. Papiro de Ani, Museu Britânico No. 10.470, folha 20


Reconstruir a história egípcia da criação não é tarefa simples, existem pelo
menos quatro versões muito diferentes, elas estão associadas a cidades, épocas e
divindades distintas. Para piorar, não existe um cânone egípcio, como a Bíblia
hebraica, as principais fontes são o Livro das pirâmides, que tem origem em
Mênfis e o Livro dos mortos, cuja origem é a cidade de Tebas.[1]

A literatura egípcia antiga era basicamente uma literatura funerária, as


histórias remontam a um período pré-dinástico muito remoto, tão antigas quanto
a própria civilização egípcia, ou mais antiga ainda (3500 AC). São uma coleção de
várias composições que os egípcios inscreveram nas paredes de túmulos e
sarcófagos, esquifes e estelas funerárias, papiros e amuletos, a fim de assegurar aos
seus mortos o bem-estar no mundo de além-túmulo. Elas também trazem
fórmulas para combater cobras, escorpiões e répteis nocivos, que infestavam as
margens do Nilo. Budge afirma que o título (Livro dos Mortos) não é muito
apropriado, o antigo título egípcio é Reu Nu Pert Em Hiru, que significa
‘Capítulos do Sair à Luz’.[2]

Na XIII dinastia o Livro dos Mortos inicia nova fase da sua existência, com a
transição dos escritos das pirâmides e ataúdes para papiros. Um rolo de papiro era
muito mais barato e podia empregar um escriba comum ou mesmo alguém que
quisesse fazer sua própria cópia. A maior parte dos papiros conhecidos foi
encontrada em Tebas, onde eram copiados principalmente para os sacerdotes e
suas famílias, a maioria a serviço de Amon-Rá.[3]

Os egípcios se originaram de povos nativos africanos e de imigrantes do Leste,


que foram absorvidos aos poucos, eles habitavam uma faixa de terra estreita e fértil
ao longo do Nilo, cercada por desertos implacáveis. Se referiam à sua terra como
Quemete (Kmt), ou ‘terra negra’, em contraste com o Deshret (deserto), que
significa ‘terra vermelha’. O Nilo era a força vital do Egito, com sua cheia anual. A
civilização egípcia não encontra paralelo por sua longevidade, prosperidade e pelas
maravilhas arquitetônicas e artísticas. Em torno de 3100 AC já escreviam em
hieróglifos, sistema de escrita complexo com mais de setecentos símbolos, que
representavam objetos, ideias ou sons.[4]

É provável que a versão mais antiga dos mitos da criação egípcios venha de
Mênfis, antiga capital política do Egito. Ptah era a divindade local e seu templo,
Hewet-ka-Ptah (mansão do espírito de Ptah), transliterado para o grego (Aeguptos)
é a origem da palavra Egito. A história de Ptah, contada na pedra de Chabaka, diz
que ele deu vida aos deuses mais antigos, incluindo Atum, de Heliópolis, ‘através
do seu coração e da sua língua’, ou seja, pelo poder do pensamento e pela sua
palavra. Pela simples pronúncia de uma série de nomes Ptah produziu o Egito
inteiro. Mas Ptah nunca chegou a ser o deus supremo de todo o Egito, acabou
sendo assimilado por outros deuses e se tornou um deus dos mortos.[5]

Outra versão importante da criação egípcia vem de Hermópolis, ou Khemmu


na língua local. Khemmu significa cidade dos Oito e era a residência das oito
deidades primordiais, comumente conhecidas como Ogdoad. A região era o
principal centro de adoração a Tot, deus da sabedoria e transmissor do
conhecimento dos hieróglifos aos egípcios antigos. No mito, Tot deu origem aos
oito deuses, sendo quatro casais, os deuses com cabeça de sapo e as deusas com
cabeça de cobra. Eles simbolizavam diferentes aspectos do Universo. Nu e sua
companheira Naunet personificavam as águas primitivas e amorfas; Heh e Hauhet
simbolizam a força da enchente do Nilo; Kek e Kaukek corporificavam as trevas;
Amon e Amaunet eram a encarnação das forças ocultas e eram associados ao vento
e ao ar. Em determinado momento essas entidades interagiram de maneira
explosiva, romperam o equilíbrio e deram origem ao Sol e ao outeiro primitivo, e o
Universo observou o feérico do primeiro nascer do Sol. Três casais do Ogdoad
permaneceram imutáveis no vórtice, mas Amon e Amaunet deixaram Hermópolis
e foram para Tebas, onde ele se tornaria Amon-Rá, o criador transcendente.[6]

Temos ainda a história do deus Khnum, um antigo deus criador que tinha
cabeça de carneiro e surgiu em Elefantina, uma ilha do Nilo próxima de Assuã.
Acreditava-se que o deus controlava as cheias anuais do Nilo, ele corporificava a
fertilidade por meio da inundação. Khnum moldou os deuses, as primeiras pessoas
e os animais, de barro, numa roda de oleiro, e nos seus corpos soprou o fôlego da
vida.[7]

A história mais importante da criação do Egito antigo é, no entanto, a de


Heliópolis, a Cidade do Sol, onde estão as ruínas de Yunu, nos subúrbios do
Cairo. Ela começa com o oceano ilimitado de água inerte, imerso em trevas, uma
entidade primeva chamada Nu, ou Nun, que existia antes da criação. Simboliza a
‘não-existência’. A divindade é retratada em muitos santuários, na forma de um
lago sagrado. Os egípcios temiam que Nu pudesse romper os céus e inundar a
Terra a qualquer instante.[8]

O deus Sol Atum, ‘senhor de Heliópolis’, surgiu de Nu, no começo dos


tempos, para criar os elementos do Universo. Ele se colocou num outeiro elevado,
chamado Benben, uma elevação em forma de pirâmide, que sustentava o deus Sol.
Deus da totalidade, que contém tanto o masculino quanto o feminino, e dos
poderes cósmicos, ele é a quintessência de todas as forças e elementos da natureza.
Mais tarde ele foi associado a Rá e passou a ser cultuado como Rá-Atum.[9]

Como principal divindade egípcia, Rá foi pouco a pouco sendo associado a


outros deuses solares. Uma maneira que os egípcios tinham de explicar essas
associações era identificando Rá com o Sol em suas diferentes posições durante o
dia, pela manhã ele podia ser Horus-Rá e de tarde Atum-Rá.[10]

Em uma época que o Egito alcançou o auge do poder e riqueza, a capital era
Tebas e a divindade local, Amon, que passou a ser adorado como Amon-Rá. Era a
época dos grandes faraós, Tutmés III e Akhenaton, do breve reinado de
Tutancâmon e do bíblico Ramsés II. Nos cinco séculos do Novo Império, Amon-
Rá se tornou o líder incontestável do panteão egípcio, seus títulos incluíam
‘Senhor dos Tronos das Duas Terras’ e ‘Rei dos Deuses’. O esplendor de Tebas é
citado até mesmo por Homero na Ilíada.[11]

Voltando a Heliópolis, o mito continua com Atum em seu esplendor solitário


sobre o Benben, gerando a sua prole, os deuses Chu e Tefnut. Neste ponto existem
algumas variações, o Livro dos Mortos fala que eles teriam sido criados do sangue
do falo mutilado de Rá (Rá-Atum). Mas segundo a Declaração 527 do Livro das
Pirâmides, o deus Atum se masturbou em Heliópolis, ‘tomando o falo em seu
punho e ejaculando para gerar os gêmeos Chu e Tefnut’. Já na Declaração 600,
Atum engoliu sua semente e ‘expeliu’ ou ‘cuspiu’ os gêmeos. Chu era o deus do ar
e Tefnut, com cabeça de leão, a deusa da umidade. Chu e Tefnut geraram Geb,
deus da Terra e Nut, deusa do Céu. A partir daí surgem o Céu, a Terra e a vida.
Geb e Nut, por sua vez, geraram Osíris, Set, Ísis e Néftis. Os nove deuses nomeados
formam o Pesdjet de Heliópolis, ou Ennead em grego. Osíris estava destinado a
governar o Egito.[12]

As pinturas ornamentais da deusa Nut na câmara do sarcófago de Ramsés VI


(1156-1148 AC), no Vale dos Reis, demonstram a importância da deusa. O deus
Sol aparece percorrendo o firmamento ao longo do corpo arqueado de Nut. No
final do dia o deus Sol é engolido pela deusa, ele então percorre a extensão interna
do corpo dela durante a noite e ao amanhecer nasce de novo do ventre de Nut,
envolvido numa auréola vermelha que é o sangue do parto.[13]

Maat, filha de Rá, era a deusa que assegurava a ordem cósmica, conceito que
os egípcios também denominam maat. Era Maat que fazia com que Sol nascesse
todos os dias, e que trazia a cheia anual do rio Nilo.[14]
Osíris, o filho mais velho de Geb e Nut se tornou um dos deuses mais
importantes do Egito antigo. Textos do Livro dos Mortos o colocam na posição de
chefe do ciclo dos deuses dos mortos, esse pressuposto durou até os primeiros
séculos da era cristã. Acreditava-se que Osíris, de origem divina, viveu na Terra
num corpo material, foi traiçoeiramente assassinado e retalhado, que sua irmã Ísis
recolheu os pedaços do seu corpo, e, por meio de palavras mágicas fornecidas pelo
deus Tot, o reconstituiu. O deus assim voltou à vida, tornou-se imortal e entrou
nos infernos, onde passou a ser ao mesmo tempo juiz e rei dos mortos.[15]

Os reis, como todos os seguidores de Osíris, acreditavam que gozariam a vida e


a felicidade eternas num corpo perfeitamente constituído, porque Osíris venceu a
morte, ressurgiu dos mortos e vivia num corpo perfeito. Por gerações, Osíris foi
tido como o emblema da ressureição, incontáveis gerações viveram e morreram
fiadas no seu poder de conferir imortalidade ao homem. Nos hinos que lhe são
dirigidos ele é chamado de ‘rei da eternidade e senhor do sempiterno, que passou
por milhões de anos em sua existência’. No papiro de Hu-nefer, o escriba divino
diz: ‘Homenagem a ti, governador dos que estão em Amentet (o submundo), que
fazes renascer homens e mulheres.’[16]

O grande opositor de Osíris era seu irmão Set, deus que representava as forças
do caos. Enquanto Osíris trouxe as plantas e estações para a Terra, ensinou ao
homem a usar ferramentas e fazer vinho e pão, Set era associado à tempestade e aos
perigos do deserto. Muitas vezes era visto como encarnação do mal. Frases
pintadas nos caixões fúnebres de membros da corte do Médio Império identificam
Set como assassino de Osíris, declarando que ele atacou Osíris em Gahesty e o
matou perto do rio em Nedyet. A rivalidade continuou entre Set e o deus falcão
Hórus, filho de Osíris e Ísis, mas essa é uma outra longa história.[17]
O deus sumério Enki-Ea em detalhe do Selo de Ada, selo cilíndrico acadiano
de cerca de 2300 AC.
O GÊNESIS SUMÉRIO

Naqueles dias longínquos, naquelas noites distantes, em anos de um passado


remoto, o Céu foi separado da Terra e a Terra do Céu.1 Naqueles dias e naquelas
noites, houve separação do Superior e do Inferior, naquele ano os destinos foram
traçados.2

A Terra [Ki], grandiosa, brilhava em seu esplendor, coberta de prata e lazulita,


adornada com diorito, calcedônia, cornalina e antimônio, majestosamente
revestida de bosques e pradarias. A sagrada e verdejante Terra se fez resplandecente
para o puro Céu [Anu]. Então o sublime firmamento consumou seu casamento
com a espaçosa Terra, derramando em seu ventre o sêmen da árvore valente e do
junco. Assim a Terra se achou fecundada pela rica semente do Céu, como se fora
uma perfeita vaca. Logo, com alegria, ela concebia as plantas da vida, produzia
abundância e exultava com vinho e mel.3

Quando Anu [divindade do Céu] se juntou com Enlil [deus do vento] e Ea


[deus das profundezas e da água], para criar o Céu e a Terra, quis fazer evidentes
os sinais dos astros, então eles estabeleceram as estações, as posições dos corpos
celestes, designaram as estrelas e suas trajetórias e desenharam as constelações. Eles
também mediram a duração do dia e da noite, criaram os meses e os anos e
traçaram o caminho do Sol e da Lua. Assim foram tomadas as decisões em relação
ao Céu e à Terra.4

Os deuses supremos, reunidos em conselho, tendo criado Terra e Céu,


consolidaram o solo e trouxeram à existência toda sorte de animais, grandes bestas,
criaturas selvagens e ainda distribuíram em seus domínios o gado e animais
domésticos.5

Tradução livre do livro Eden: the sumerian version of Genesis, de Anton Parks,
texto composto a partir das seguintes referências:

1. Poema de Gilgamesh, Tabuleta BM 54325

2. Início da tabuleta Enki e Ninmah (BM 12845)

3. Prólogo do Debate entre a Árvore e o Junco, Museu do Louvre, Paris (AO


6715)

4. O Grande Tratado de Astrologia Caldéia, Tabuleta 22

5. Prólogo do debate entre dois insetos (CT 13-34)


O presente texto foi elaborado a partir de tabuletas de argila e pedra
encontradas em escavações nas ruínas da cidade suméria de Nipur, onde se
encontrava o templo de Enlil. As tabuletas remontam aos tempos dos reis da
Suméria por volta de 2800 AC, gravadas em escrita cuneiforme, que leva esse
nome por ser feita com o auxílio de objetos em formato de cunha, em tábuas
moldadas de argila ou pedra. Estão entre os mais antigos documentos encontrados
até hoje, rivalizando com os hieróglifos egípcios.

As tabuletas, que hoje se encontram preservadas no Museu Britânico e no


Louvre, foram decifradas por linguistas como Anton Parks, que foi capaz de
recontar os mitos sumérios da criação do mundo, demonstrando a forte correlação
que eles têm com o texto bíblico do Gênesis.

A Suméria é uma das mais antigas civilizações conhecidas, assim como o


antigo Egito e a civilização do Vale do Indo. Floresceu nas terras férteis entre os
rios Tigre e Eufrates, hoje território do Iraque, e foi conquistada por volta de 2270
AC pelo rei Sargão I da Acádia, um povo semita. A Acádia foi o primeiro grande
império da Mesopotâmia e Sargão I ficou conhecido como ‘soberano dos quatro
cantos da Terra’, mas sua dinastia durou relativamente pouco tempo, menos de
dois séculos, e desmoronou em consequência de revoltas internas e invasões
externas.

A simbiose cultural entre os sumérios e os acádios (ou acadianos) foi intensa,


muitos dos mitos sumérios foram assimilados pelos acádios e por isso se fala de
uma literatura sumério-acadiana. Mais tarde a Babilônia sucedeu os acadianos,
assimilando em boa parte os deuses do panteão sumério-acadiano. As tabuletas
traduzidas por Parks foram originalmente escritas em acadiano.

Vamos abordar um pouco do universo mitológico sumério para entender


melhor as tabuletas. Entre as principais figuras mitológicas adoradas pelos
sumérios estão An (Anu), deus do Céu; Nammu, a deusa-mãe; Inana, a deusa do
amor e da guerra (equivalente à deusa Istar dos acadianos); Enlil, o deus do vento
e Enki, o deus da sabedoria, da água, da fertilidade e da criação. Cada um dos
deuses sumérios era associado a uma determinada cidade e sua importância
religiosa dependia do poder político da mesma. Podiam expressar sua ira ou
frustração por meio de terremotos ou catástrofes naturais. Segundo a tradição
suméria, os deuses criaram o ser humano a partir do barro, para o seu serviço.[1]

An (Anu) é o deus do Céu, o deus supremo do panteão sumério, rei dos


deuses e criador dos guerreiros Anunnaki (deuses criados por An). Os sumérios
acreditavam que as estrelas eram os seus soldados e a Via Láctea a sua estrada real.
Segundo a crença, An tinha o poder de proclamar os reis da Suméria, que eram
escolhidos em uma assembleia divina. An foi rebaixado quando a Acádia foi
dominada pelo império Babilônico, mas segundo uma versão mais violenta, ele
teria sido esfolado vivo por seu neto Marduk, sua cabeça decepada e seu coração
arrancado.[2]

Enki, o mais sábio dos deuses, é filho de An e Ki, a deusa da Terra. Também
conhecido como Enki-Ea, ou Ea, deus das profundezas e da água (E-A), Senhor
da Terra (EN-KI), seus títulos incluem também os de criador da humanidade,
artífice da humanidade e serpente.[3]

O Enuma Elish conta como Enki subjugou Apsu, deus que personifica as
águas frescas da escuridão, na verdade, Enki usurpou o título após matar Apsu. Ele
e sua esposa Damkina são os pais de Marduk, que se tornaria o deus supremo da
Babilônia, identificado com o bíblico Baal.[4]

Enlil, senhor dos ventos e do ar, era filho de An e irmão de Enki. Durante
algum tempo ele foi alçado à mais importante posição do panteão substituindo o
pai como rei dos deuses, porém foi banido pela assembleia dos deuses da cidade de
Nippur, onde era cultuado, por ter estuprado a deusa Ninlil (Ninhursaga), deusa
dos grãos, enquanto ela tomava banho. Dessa relação nasceu Nanna, que se
tornou deus da Lua e veio a ser pai de Inana (Ishtar).[5]

Por fim, vamos citar a Epopéia de Gilgamesh, poema sumério que narra os
feitos do rei de Uruk que dá nome ao épico. Seu registro mais completo provém de
tábuas de argila escritas em língua acadiana do século VIII AC, que pertenceram
ao rei Assurbanípal, contudo já se encontraram tábuas do século XX AC, sendo
assim o mais antigo texto literário conhecido. O tema central do poema é a busca
que o herói Gilgamesh empreende para conhecer o segredo da imortalidade, que
era guardado por seu ancestral Utnapishtim, mas o que chama mais a atenção é a
incrível narrativa do dilúvio que seria o equivalente mesopotâmico do dilúvio
bíblico e da famosa Arca de Noé, porém mais antiga.[6]

Na epopeia, Enki revela o plano do dilúvio e instrui Utnapishtim a construir


uma barca e enchê-la com as sementes de todas as coisas vivas. Após uma
tempestade de seis dias e sete noites, a barca para no topo de uma montanha e,
assim como Noé, Utnapishtim liberta os pássaros para buscarem terra firme. A
semelhança com o dilúvio bíblico é inegável e, segundo os estudiosos, não se trata
de uma simples coincidência.[7]
Marduk com o seu dragão Musussu sobre o oceano primevo, selo babilônico
de lápis-lazúli do século IX AC.
ENUMA ELISH, O ÉPICO BABILÔNICO

Primeira Tábua

Quando no alto os céus ainda não existiam, nem a Terra embaixo, apenas
Apsu, o oceano primordial, que os gerou e a tumultuosa Tiamat, a mãe de todos,
misturaram as suas águas. Naquele tempo nenhum campo havia se formado, nem
pântanos existiam. Tampouco os deuses tinham sido gerados, então Lamu e
Lacamu foram criados e seus nomes pronunciados.

Tão logo Lamu e Lacamu atingiram a maturidade, Ansar e Quisar foram


criados e os superaram. Quando já tinham alongado seus dias e multiplicado os
seus anos, Anu foi criado à semelhança do seu pai Ansar. Anu, por sua vez, gerou a
Nudimmud também à sua semelhança, mas Nudimmud [Ea] era superior a seus
predecessores, possuía enorme força e sabedoria, era mais poderoso do que Ansar
e não tinha igual entre os deuses, seus irmãos.

Os deuses daquela geração coexistiam e seu alarido reverberou a ponto de


perturbar as entranhas de Tiamat e irritar o interior de Anduruna. Embora sua
conduta fosse deplorável, Apsu não conseguia acalmar a algazarra e Tiamat
emudecia em face deles. Finalmente Apsu, protetor dos grandiosos deuses,
conclamou Mummu e disse: ‘Ó Mummu, meu pajem que agrada minha alma,
vem, vamos ter com Tiamat.’

Sentados diante de Tiamat, eles discutiram, Apsu assim disse: ‘A conduta deles
é intolerável, eu não posso descansar durante o dia nem dormir à noite! Destrua-se
sua conduta para que a paz retorne e possamos dormir.’ Ouvindo isso, Tiamat
ficou furiosa com seu esposo e respondeu: ‘Por que destruiríamos o que nós
mesmos concebemos? Por mais intolerável que seja a conduta deles, sejamos
pacientes e benignos.’ Mas Mummu o aconselhou assim: ‘Destrói sim, meu pai, a
conduta perturbadora, para que possas descansar de dia e dormir à noite.’ Então
alegrou-se Apsu e sua face brilhou por causa da maldade que preparou contra os
deuses, seus filhos.

Tudo o que tramaram aos deuses foi repetido, ouvindo eles ficaram atônitos,
mas Ea, o mais arguto e sagaz, que a tudo compreende, desvendou-lhes o plano.
Então ele arquitetou um ardil contra Apsu, recitou seu feitiço e o fez dormir.
Também Mummu, o pajem e conselheiro, ficou sonolento. Então Ea despojou
Apsu da sua coroa e do seu manto radiante, depois o derrubou e o matou. Ea se
ergueu em triunfo, trancafiou a Mummu e abateu seus inimigos.

E assim Ea descansou no lugar que chamou de Apsu, ali estabeleceu seu


santuário, sua habitação e sentou-se em majestade com Damkina, sua esposa.
Naquele lugar sagrado foi gerado o mais hábil e sábio entre os deuses, o Senhor
Marduk. Esplêndida era a sua natureza e seu olhar abrasador. Era maduro e
vigoroso desde o nascimento. Anu exultou: ‘Sua divindade é notável, muito mais
extraordinária, supera a todos os deuses.’ Ele tinha quatro olhos e quatro ouvidos,
dos seus lábios saíam labaredas de fogo e se vestia com a aura de dez deuses. Então
Anu produziu quatro ventos e os confiou a Marduk para que ele se divertisse. E
Marduk criou a poeira que os ventos levaram, fez também levantar as ondas e isso
perturbou muito a Tiamat, que se encontrava agitada dia e noite.

Segunda Tábua

Tiamat planejou uma peleja contra os deuses, seus filhos, para vingar Apsu,
mas seus planos não passaram despercebidos a Ea, que ficou gravemente aflito.
Passados os dias aplacou-se a sua ira e ele foi ter com Ansar dizendo: ‘Meu pai,
Tiamat, nossa mãe, concebeu ódio por nós’.
Tiamat se enraiveceu ainda mais e cheia de ira reuniu os deuses que havia
gerado, que se colocaram ao seu lado se preparando para a batalha. Fez armas
invencíveis, gerou serpentes-monstros de dentes afiados e veias cheias de veneno
em vez de sangue, vestiu-os de terror e os fez poderosos como deuses. Criou a
Hydra, o Dragão, o Herói Peludo, o Grande Demônio, o Cão Selvagem, o
Homem--escorpião, o Homem-peixe e o Homem-touro, onze monstros ao todo,
todos munidos de armas impiedosas e de bravura.

Dentre os deuses, seus filhos, Tiamat exaltou a Kingu e o levantou para


marchar diante das suas forças. Colocou-o em um trono e o fez seu esposo, deu-
lhe as Tábuas do Destino e sobre o seu peito as colocou dizendo: ‘A tua ordem
não será sem proveito e prevalecerá sobre os Anunnaki.’

Quando Ansar ouviu como Tiamat estava tão poderosamente em revolta,


seus lábios tremeram e não conseguia se acalmar. Hesitante, chamou a Ea e disse:
‘Meu filho, você provocou essa guerra, matou Apsu e fez Tiamat furiosa, vai ter
com ela para apaziguá-la’. Ea ouviu a palavra de Ansar, seu pai, e tomou o
caminho para Tiamat, mas não pôde continuar e retornando à presença de Ansar
disse: ‘Meu pai, os feitos de Tiamat são muito grandes para mim, seu
encantamento não se pode igualar, ninguém pode resistir.’

Ansar, furioso, conclamou a Anu, seu filho dizendo: ‘Filho honrado, guerreiro
e herói, vai ter com Tiamat e aplaca a sua ira’. Ele tomou o caminho para Tiamat,
mas percebeu seus ardis, parou, ficou em silêncio e voltou para seu pai Ansar,
dizendo: ‘Meu pai, não se pode igualar a força de Tiamat, ela é muito poderosa,
ninguém pode ir contra ela.’

Então Ea pediu a seu filho Marduk que fosse falar com Ansar. Ele se
apresentou diante de Ansar, beijou os seus lábios o acalmando e disse: ‘Meu pai,
não te cales, eu irei e cumprirei teu desejo. Muito em breve pisarás o pescoço de
Tiamat’. Ansar replicou: ‘Ó meu filho, que tens o conhecimento de toda a
sabedoria, pacifica Tiamat com o teu encantamento.’

Terceira Tábua

Ansar abriu a sua boca e falou com Gaga, seu vizir: ‘Vizir Gaga, que fazes
regozijar o meu espírito, a Lamu e Lacamu te enviarei, trazei-os à minha presença,
trazei os deuses para a mesa do banquete, que eles comam pão e bebam vinho, que
eles decretem o destino de Marduk, seu vingador.’ Gaga foi ter com Lamu e
Lacamu, prostrou-se, beijou o chão diante deles e lhes contou sobre os desígnios
de Tiamat e disse: ‘Marduk, o sábio entre os deuses, está determinado a enfrentar
Tiamat, vinde rápido decretar seu destino, para que ele possa sair e combater o
poderoso inimigo.’

Quando Lamu e Lacamu ouviram o relato do vizir Gaga, soltaram um grito,


os Igigi lamentaram amargamente os desígnios de Tiamat. Então se reuniram aos
grandes deuses, que decretam o destino, entraram na presença de Ansar e se
alegraram, beijaram-se uns aos outros, sentaram-se à mesa, comeram pão e
beberam vinho de sésamo e cerveja.

Exaltados de espírito e embriagados pela bebida, decretaram o destino de


Marduk, seu vingador.

Quarta Tábua

Prepararam para Marduk nobres aposentos e ele se sentou diante dos seus pais
para ser coroado. ‘Você é o mais honrado entre os deuses’, disseram a Marduk,
‘teu destino é inigualável, teu comando é como o de Anu, tuas ordens não poderão
ser anuladas, será teu o poder de exaltar ou de abater e nenhum deus transgredirá a
linha que traçares, tu és Marduk, nosso vingador.’

Então colocaram uma vestimenta no meio deles e continuaram falando a


Marduk: ‘Teu destino é superior ao de todos os deuses, que as tuas armas
destruam os teus inimigos, mas poupem aqueles que confiam em ti. Para destruir e
para criar ordena a tua palavra. Que esta vestimenta desapareça pelo teu comando
e reapareça por tua ordem.’

Assim ordenou Marduk e a vestimenta desapareceu e com um segundo


comando ela reapareceu. Os deuses se regozijaram: ‘Marduk é rei.’ Entregaram-lhe
o cetro, o trono e o anel, deram-lhe uma arma invencível e lhe disseram: ‘Vá, corte
o pescoço de Tiamat e deixe que os ventos levem o seu sangue e espalhem a
notícia.’

Marduk preparou o arco e a lança, colocou um relâmpago diante de si e


revestiu seu corpo com chamas abrasadoras. Fez uma rede para capturar Tiamat e
trouxe os quatro ventos para que não pudesse escapar, os ventos que Anu havia
lhe dado.

Criou ele o vento do mal, a tempestade e o furacão, o vento quatro vezes mais
poderoso, o vento sete vezes mais poderoso, o redemoinho e o vento do caos.
Enviou os sete ventos que havia criado para perturbar as entranhas de Tiamat.
Então lançou o trovão, sua arma poderosa, do alto da sua carruagem, que era
puxada por quatro corcéis: Destruidor, Feroz, Opressor e Veloz, todos treinados
para varrer o que houvesse pela frente.

Marduk prosseguia, em sua cabeça uma aura de terror, então se viu diante da
furiosa Tiamat. Quando viu a bocarra de Tiamat e as artimanhas de Kingu, seu
esposo, ele teve medo e vacilou. Os deuses que o acompanhavam perceberam
aquilo e a visão deles se enturvou. Tiamat lançou seu feitiço sem sequer virar o
pescoço. Lançando seu trovão, Marduk proferiu as seguintes palavras: ‘Por que és
tão agressiva e arrogante? Por que insistes em provocar esta batalha? Você se
levantou contra Ansar, rei dos deuses, e urdiu planos maquiavélicos contra os
meus pais. Cinge as tuas armas, eu e tu batalhemos.’

Ouvindo isso Tiamat ficou insana, seus membros tremeram, mas ela
continuou recitando seu encantamento em alta voz. Tiamat e Marduk se
enfrentaram em batalha, então ele lançou a sua rede e a apanhou, soltou o vento
do mal contra ela, mas abrindo a sua boca ela o engoliu. Como o vento terrível
enchia o seu ventre, Tiamat abriu sua boca para o libertar, mas Marduk apanhou
sua lança, partiu o ventre de Tiamat e perfurou o seu coração tirando-lhe a vida.
Os deuses que a seguiam se retiraram, temendo por suas vidas, mas foram
aprisionados. Kingu foi subjugado e Marduk tomou dele as Tábuas do Destino,
que por direito não lhe pertenciam.

Tendo triunfado sobre os inimigos de Ansar e alcançado o propósito de


Nudimmud, Marduk pôs o seu pé sobre o ventre de Tiamat e esmagou seu
crânio com o bastão. Então deixou o vento do norte levar seu sangue e espalhar a
notícia. Seus pais viram aquilo e exultaram.

Então o Senhor descansou, olhando para o corpo inerte de Tiamat. Ele o


separou em duas metades, como se corta um peixe morto, com uma metade ele
estendeu os céus e colocou uma sentinela para não deixar suas águas escaparem.
Com a outra metade ele formou a Terra.

Quinta Tábua

Ele [Marduk] fez as estações celestiais para os grandes deuses, criou as estrelas
e as constelações, definiu o ano e delimitou as suas divisões. Depois estabeleceu
Nibir [o planeta Júpiter] para fixar o intervalo das estrelas, estabeleceu também as
estações de Enlil e Ea. Fez brilhar o deus-Lua e lhe confiou a noite, a fim de fixar
os dias. Todos os meses, sem cessar, o coroava, assim lhe disse: ‘No princípio do
mês resplandece sobre a Terra, no sétimo dia tua coroa será reduzida à metade, no
décimo quinto dia te põe do lado oposto, enquanto o deus-Sol te vê no horizonte,
no vigésimo nono dia te aproximarás do deus-Sol e no trigésimo estarás junto ao
teu rival, o deus-Sol.’

Marduk moldou as nuvens e a névoa, abriu o abismo e o saciou de água. Dos


olhos de Tiamat fluíram os rios Tigre e Eufrates, dos seus seios se levantaram
montanhas distantes. A metade da deusa ele estendeu para fazer terra firme. Assim
ele terminou seu trabalho com as entranhas de Tiamat.

Passou [Marduk] a formular leis e redigir decretos, colocou cordas guia nas
mãos de Ea, e entregou a Anu as Tábuas do Destino. Lamu, Lacamu e todos os
deuses jubilavam. Ansar o abraçou e o chamou ‘rei vitorioso’. Anu, Enlil e Ea lhe
deram presentes e Damkina, sua mãe, o exaltou com um robe festal, fazendo sua
face brilhar. Os Igigi se juntaram em assembleia e juraram obediência. Todos os
Anunnaki beijaram seus pés e declararam ‘salve o rei.’

Marduk então abriu sua boca e falou aos deuses, seus pais: ‘Sob os céus, cujo
piso eu firmei, construirei minha luxuosa morada e meu templo, ali estabelecerei
meu reinado. Quando desceres do Céu para tomarem decisões, este será o lugar de
descanso perante a assembleia dos deuses, chamarei o seu nome ‘Babilônia, a casa
dos grandes deuses.’

Sexta Tábua

Marduk concebeu um plano inteligente e falou a Ea: ‘O meu sangue tomarei


para formar ossos, farei o homem para que habite a Terra, para que o serviço dos
deuses seja estabelecido e santuários sejam construídos.’

Mas Ea assim falou: ‘Deixe que um dos deuses seja entregue, aquele que
instigou Tiamat a se rebelar e fomentou a batalha.’ Marduk então reuniu a
assembleia dos deuses e, falando aos Anunnaki, inquiriu quem era o culpado, este
seria punido, quanto aos demais poderiam descansar em paz.
Os Igigi, os grandes deuses, responderam: ‘Foi Kingu quem fez Tiamat se
rebelar, ele a instigou à guerra.’ Assim Kingu foi levado diante de Ea e suas veias
foram cortadas, do seu sangue Ea criou a humanidade e a ela impôs o serviço aos
deuses. Com a destreza de Marduk, Nudimmud [Ea] criou o homem.

O rei Marduk pôs 300 Anunnaki para guardar os decretos de Anu, 600 ele
enviou à Terra. Então eles falaram a Marduk: ‘Senhor, agora que estamos livres,
permita-nos erigir um templo e colocar nele um pedestal em tua honra.’ Marduk
exultante respondeu: ‘Construam a Babilônia, esta será a sua missão. Moldem
tijolos e construam o templo.’

Os Anunnaki se empenharam como nunca, por um ano eles fabricaram os


tijolos necessários, no segundo ano ergueram o pico de Esagil e construíram o
templo de Apsu. Para Anu, Enlil e Ea construíram moradas. Depois de completar
o trabalho em Esagil, os Anunnaki construíram seus próprios templos. Marduk
sentou-se com eles, banquetearam e disse [o Senhor]: ‘Esta é Babilônia, vossa
habitação, deleitem-se nela.’

Texto extraído do Enuma Elish, compilado a partir das versões em inglês de L.


W. King e de W. G. Lambert e da versão em português de Jacyntho Lins Brandão.
O Enuma Elish (Quando no alto), o épico babilônico da criação, é um texto
de extrema riqueza e de relevância incontestável. Foi descoberto em 1849 nas
ruínas da biblioteca de Assurbanípal em Nínive (hoje Mossul, Iraque), cópias em
escrita cuneiforme sumério-acadiana foram encontradas também em outros sítios
arqueológicos de antigas cidades assírias e babilônicas como Assur e Sipar. Hoje
são conhecidas aproximadamente 60 versões do épico, a mais antiga data de 1115
AC, mas alguns assiriologistas sugerem uma data ainda mais antiga, cerca de 1400
AC.[1]

A Babilônia era um reino pequeno e sem importância no terceiro milênio AC


e Marduk, um deus pouco conhecido. Hammurabi, que reinou no século XVIII
AC, foi quem colocou a Babilônia no mapa, como capital de um império que
abrangia boa parte da Mesopotâmia, foi ele também o responsável por colocar o
deus Marduk no topo do panteão dos grandes deuses, ao lado dos sumérios Enlil
e Anu.

Por volta do ano 1000 AC o Enuma Elish era um clássico, sendo


intensamente copiado pelos escribas. Era lido todos os anos, em voz alta pelos
sacerdotes do templo de Marduk, na Babilônia, por ocasião das festividades de
ano novo.

O Enuma Elish é assim denominado por causa das duas palavras iniciais do
poema: ‘Quando no alto’. Narra os eventos que iniciam com a separação da ordem
do caos e culmina com a criação do cosmo. A exaltação de Marduk é tema central
do épico. O texto original possui cerca de 1100 linhas, a maioria delas bem
preservadas, embora algumas tenham se perdido, especialmente da quinta
tabuleta, são sete ao todo, feitas de argila. Procurei trazer um texto mais conciso,
em linguagem atual, suprimindo partes de menor interesse.[2]

O trabalho da criação babilônica começa com Apsu e Tiamat. Apsu é o deus


das águas subterrâneas, personifica a água doce como elemento primordial e é um
dos dois deuses originais ao lado de Tiamat, associada às águas salgadas do oceano.
Ao nascerem das águas mescladas de Apsu e Tiamat, os deuses começam a
perturbar Apsu com sua agitação. Ele então planeja mata-los, mas Tiamat se opõe
e Apsu acaba morto e suplantado pelo ardiloso Enki-Ea.[3]

Tiamat, enfurecida, toma a forma de dragão fêmea do caos, mas é morta em


uma batalha épica contra Marduk, o filho prodigioso de Enki-Ea. No combate,
Marduk lança ventos que inflam o corpo de Tiamat como um balão e dispara
uma flecha que penetra a boca escancarada de Tiamat e atinge seu coração. Seu
corpo é esquartejado, metade se transforma no Céu e a outra metade na Terra.
Como recompensa por ter vencido Tiamat, Marduk recebe a supremacia sobre
todos os deuses. Com o auxílio de Enki-Ea, Marduk toma o sangue de Kingu, o
demônio-chefe de Tiamat, e com ele cria os homens de cabelos negros da
Mesopotâmia. O poema termina com a construção do templo dedicado a
Marduk e a exaltação dos feitos do herói.[4]

A palavra Tiamat deriva da raiz semítica thm, presente no texto hebraico,


tehom, o abismo primevo das águas presente em Gênesis 1:1 (havia trevas sobre
tehom). Tiamat deu à luz Lamu e Lacamu, cujos nomes significam ‘lama’, deles
surgiram todos os outros deuses.[5]

Entre os deuses do Enuma Elish temos ainda o proeminente Ansar, o deus do


horizonte celeste, irmão e marido de Quisar, a deusa do horizonte terreno, ambos
são filhos de Lamu e Lacamu. Igigi são os deuses mais velhos, que viviam em
Anduruna, palavra suméria que significa ‘morada celestial’, a morada dos deuses.

Marduk, filho de Enki-Ea, tornou-se o deus supremo da Babilônia após


derrotar Tiamat. Na Bíblia ele é Merodaque, também conhecido como Bel, ou
Baal, que se tornou um dos maiores adversários do Deus hebreu. No templo
babilônico dedicado a Marduk ficava o grande zigurate de Nabucodonosor,
projetado para representar o triunfo da Babilônia sobre seus inimigos. Muitos
historiadores e arqueólogos acreditam que essa construção é a famosa Torre de
Babel, descrita na Bíblia.[6]

A difusão de ideias era algo inevitável entre as culturas antigas do Oriente


Médio, a conexão entre o Enuma Elish e o Gênesis hebreu é patente e tem sido
objeto de muitos argumentos. Na Bíblia é o Deus hebreu que derrota o monstro
marinho do caos. ‘A representação do caos primordial como um dragão ou uma
serpente do mar é uma das metáforas mais universais da mitologia’, diz Davis.[7]
Detalhe do afresco A criação de Adão, de Michelangelo, que decora o teto da
Capela Sistina, pintado entre 1508 e 1512.
NO PRINCÍPIO [BERESHIT]

No princípio [bere’shit] criou Deus [Elohim] os céus e a Terra. E a Terra


[ha’arets] era sem forma [tohu] e vazia [bohu]; e havia trevas sobre a face do abismo
[tehom]; e o Espírito de Deus [veruach Elohim] se movia sobre a face das águas. E
disse Deus [Elohim]: Haja luz; e houve luz. E viu Elohim que a luz era boa; e
separou Elohim a luz da treva. E chamou Elohim à luz Dia, e à treva Ele chamou
Noite; e foi tarde e foi manhã, o dia primeiro.

E disse Elohim: Haja uma expansão entre as águas; e houve separação entre
águas e águas. E fez Elohim a expansão, e Ele fez separação entre as águas que
estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão; e assim foi.
E chamou Elohim à expansão Céus; e foi tarde e foi manhã, o dia segundo.

E disse Elohim: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar e apareça a
porção seca; e assim foi. E chamou Elohim à porção seca terra; e ao ajuntamento
das águas Ele chamou mares [yamim]; e viu Elohim que era bom. E disse Elohim:
Produza a terra erva planta que dê sementeira, árvore frutífera que dê fruto
segundo a sua espécie, cuja semente está nela sobre a terra; e assim foi. […] E viu
Elohim que era bom. E foi tarde e foi manhã, o dia terceiro.

E disse Elohim: Haja luminares na expansão dos céus, para separar entre o dia
e a noite; e sejam eles para sinais e para estações e para dias e anos. E sejam eles para
alumiar na expansão dos céus, para iluminar a terra; e assim foi. E fez Elohim os
dois grandes luminares; o luminar maior para governar o dia, e o luminar menor
para governar a noite e as estrelas. E Elohim os pôs na expansão dos céus para
iluminar a terra, e para governar o dia e a noite, e para fazer separação entre a luz e
as trevas; e viu Deus que era bom. E foi tarde e foi manhã, o dia quarto.

E disse Elohim: Criem as águas criaturas com alma vivente [nefesh chayah]; e
voem as aves sobre a terra, sobre a face da expansão dos céus. E criou Elohim os
monstros marinhos, os grandes e toda alma vivente; o réptil que as águas
produziram conforme as suas espécies; e toda ave de asas conforme a sua espécie; e
viu Elohim que era bom. E Elohim os abençoou, dizendo: Frutificai-vos e
multiplicai-vos, e enchei as águas nos mares; e as aves se multipliquem na terra. E
foi tarde e manhã, o dia quinto.

E disse Elohim: Produza a terra alma vivente [nefesh chayah], conforme a sua
espécie; gado, e répteis, e feras da terra, conforme a sua espécie; e assim foi. […]; e
viu Elohim que era bom. E disse Elohim: Façamos o homem [adam] à nossa
imagem, conforme a nossa semelhança; e domine ele sobre os peixes do mar, e
sobre as aves dos céus, e sobre o gado, sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que
se move sobre a terra. E criou Elohim o homem à sua imagem; à imagem de
Elohim o criou; macho e fêmea os criou. E Elohim os abençoou, e disse-lhes:
Frutificai-vos e multiplicai-vos, e enchei a terra e sujeitai-a. […] E viu Elohim tudo
quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi tarde e foi manhã, o dia sexto.

E Ele terminou os céus e a Terra e todo o exército deles. E, terminou Elohim


no dia sétimo a sua obra, que Ele fizera, descansou no dia sétimo de toda a sua
obra, que Ele tinha feito. E abençoou Elohim o dia sétimo e o santificou; porque
nele descansou de toda a sua obra, que Elohim intentara fazer.

Gênesis 1.1 a 2.3, tradução da Bíblia hebraica de Enih Gil’ead.


A versão mais antiga que temos da Bíblia são os Manuscritos do Mar Morto,
uma coleção de centenas de textos e fragmentos encontrados nas cavernas de
Qumran em 1947. Os documentos datam de aproximadamente 300 AC até o
primeiro século DC. A maioria dos rolos foi escrita em hebraico, com um menor
número em aramaico ou grego; a maior parte em pergaminho e uma menor em
papiro. Foram compilados pelos essênios, um grupo judeu messiânico que foi
dizimado no ano 68 pelas legiões romanas. A biblioteca dos essênios se manteve
intocada até ser descoberta em 1947.[1]

O judaísmo era uma religião diferente de todas as outras (centenas) que


subsistiam no mundo antigo, não só porque os judeus insistiam em adorar apenas
o Deus único de seus ancestrais, mas porque eles tinham um livro ao qual
conferiam o status de ‘escritura sagrada’. Os livros não tinham papel
preponderante nas religiões politeístas do mundo ocidental até então, enquanto o
judaísmo tinha suas leis, costumes e tradições registrados em livros sagrados,
incluindo instruções detalhadas de como deviam prestar culto e viver.[2]

Os judeus acreditavam ter uma ‘aliança’ com o seu Deus, que os deveria
proteger e suprir suas necessidades, em troca de uma devoção absoluta a Ele. Só
Ele deveria ser adorado e obedecido, por isso havia um único templo, em
Jerusalém, onde Deus habitava e eram realizados os sacrifícios de animais e
oferendas de alimentos. O estudo das escrituras e as orações também podiam ser
realizadas nas sinagogas. Assim como os adeptos das outras religiões, os judeus
reconheciam a existência de um reino divino habitado por diversos seres sobre-
humanos, como anjos, arcanjos, principados e potestades.[3]

A Bíblia hebraica não ficou restrita aos judeus, algum tempo depois do
advento do cristianismo, livros hebraicos passaram a integrar o cânone sagrado
aceito pelos cristãos e foram chamados de Antigo Testamento. Ademais, é inegável
o impacto que a Bíblia teve sobre o islamismo, que chama judeus, cristãos e
sabianos de ‘povos do Livro’. O sabeísmo era uma religião do reino de Sabá, no
atual Yemen.[4]

A história do povo hebreu começa com Abraão, em algum momento entre


2000 e 1550 AC, e a história da religião judaica com Moisés, entre 1550 e 1200
AC. Não temos uma melhor estimativa das datas, não só pela falta de evidências
arqueológicas, mas também devido à própria imprecisão da Bíblia. Com os
patriarcas, a natureza do livro do Gênesis toma a forma de um relato histórico.
Jacó, o traiçoeiro filho de Isaque, depois de uma misteriosa luta contra o ‘Anjo de
Deus’ na passagem de Jaboc, teve seu nome mudado para Israel, que significa ‘o
que lutou com El’, nome que passou a designar a descendência de Abraão.[5]

Moisés apascentava o rebanho de Jetro, seu sogro, quando o ‘Anjo do Senhor’


apareceu para ele no monte Horeb, no meio de uma sarça que queimava, mas não
era consumida pelo fogo. E Elohim o chamou no meio da sarça dizendo: ‘Moisés,
Moisés!’ E ele respondeu: ‘Eis-me aqui.’ Então Elohim se identificou como ‘o
Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó,’ e Moisés cobriu o rosto,
porque temia olhar para Ele. Moisés deveria conclamar os hebreus cativos no
Egito, mas ainda não sabia como identificar esse Deus, então insistiu: ‘Quando eu
for aos israelitas e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou até vós; e eles me
perguntarem: Qual é o seu nome? Que lhes direi?’ Então Deus respondeu: ‘Ehyeh
asher Ehyeh,’ comumente traduzido como ‘Eu Sou o Que Sou’, ou ‘Eu Sou
Aquele que É.’ Existe muita discussão e pouca concordância sobre o significado
desse nome, com o tempo Jeová se tornou o nome usado para denominar o Deus
dos judeus. Elohim é o plural enfático da palavra semítica El e aparece com
bastante frequência na Torá (os cinco primeiros livros da Bíblia).[6]

A tradição diz que Moisés escreveu o livro do Gênesis e a Torá, possivelmente


isso se deve à sua duradoura influência e autoridade conferida pela lei e pelos
mandamentos. Hoje se sabe que a Torá foi produto de um longo
desenvolvimento. Não sabemos a identidade dos autores que escreveram o
Gênesis, provavelmente no século VIII AC, mas sabemos que foram pelo menos
dois. O primeiro é chamado de ‘J’, por se referir ao criador como Jeová, enquanto
o segundo é chamado de ‘E’, por preferir o divino Elohim.

No oitavo século AC, os israelitas haviam se dividido em dois reinos, o reino


de Judá, na parte sul da terra de Canaã e o reino de Israel, ao norte; J é identificado
com o primeiro e E com o segundo. Outra distinção importante é quanto à
montanha da Lei, que para J é o Sinai, enquanto para E é Horeb (a localização
deste é desconhecida). Embora eles compartilhem uma perspectiva religiosa
comum, os textos de J e E são bastante distintos.[7]

Tendo por base estudos linguísticos, antropomórficos e o contexto histórico,


os estudiosos da Bíblia acreditam que J seja mais antigo do que E, e que os
respectivos textos conviveram separadamente por muito tempo até serem
reunidos em um mesmo livro. Eles acreditam também que um terceiro autor
produziu o chamado Texto Sacerdotal (TS), no século IV AC, depois do exílio da
Babilônia, que seria a forma final do Gênesis. Quem quer que tenha sido esse
autor, provavelmente foi o responsável por ‘harmonizar’ os textos, por exemplo
traduzindo Jeová como Adonai (Senhor) no segundo capítulo do Gênesis.[8]

Apresento as duas histórias da criação, começando pelo texto elohímico (E), o


primeiro da Bíblia, na sequência veremos o texto jeovista (J). É inegável a
influência da cosmogonia babilônica sobre os textos bíblicos, isso ocorre
principalmente porque o exílio colocou o povo judeu em contato direto com a
civilização sumério-babilônica.

Quando Deus começou a obra da criação, Ele não encontrou nada a não ser
Tohu e Bohu, o Caos e o Vazio. Tome a palavra tohu, acrescente o sufixo m e ela se
transforma em tehom, que vem a ser a personificação das águas do abismo; ambas
as palavras aparecem no segundo versículo de Gênesis 1. Tehom encontra paralelo
em Tiamat, a deusa babilônica das águas salgadas do Oceano, que personifica o
caos primordial na forma de uma serpente ou dragão marinho. Da mesma forma,
bohu se transforma em Beemote, criatura mítica que aparece no livro de Jó (40.15-
24), contraparte terrestre do monstro marinho Leviatã, ambos associados a
Tehom.[9]

Seriam Tohu e Bohu dois monstros que personificavam o Caos e o Vazio?


Autores como Graves e Patai sugerem que sim, mas que, por razões doutrinárias
tais palavras acabaram por adquirir um sentido impessoal. Nos livros dos Salmos e
de Jó, Deus aparece como o criador dos monstros Tehomot (Leviatã) e Behomot
(Beemote).[10]

De fato, o dragão-serpente primevo aparece em vários textos bíblicos, assim


como os monstros míticos Leviatã e Beemote, ao lado de angelicais serafins (anjos
de seis asas) e querubins (mensageiros). Fenômenos como chuvas de fogo, dilúvio,
terremotos e outras catástástrofes eram vistos como instrumentos usados por Deus
para punir os humanos. Bellamy acredita que as palavras Tohu e Bohu sejam
preenchidas de vida, e que Beemote (Bohu) seja a contraparte de Tehom (Tohu),
assim como Apsu de Tiamat.[11]

No princípio Elohim criou o Céu e a Terra. Assim começa essa história


magnífica. A criação se dá pelo poder da palavra e em apenas seis dias ela estava
completa. No primeiro dia Deus criou a luz e separou o dia da noite; no segundo
dia Ele criou os céus e separou as águas; no terceiro dia fez a terra firme e a
vegetação cresceu; no quarto dia foram feitos o Sol, a Lua e as estrelas; no quinto
dia os pássaros, os monstros marinhos e os peixes; no sexto dia fez os animais, o
homem e a mulher; e no sétimo dia descansou.
Detalhe da capa da Bíblia de Lutero, publicada pela primeira vez em 1534.
A OBRA DE JEOVÁ

Estas são as origens dos céus e da Terra, quando foram criados; no dia em que
o SENHOR [transliterado JHVH ou Jeová] Deus [Elohim] fez terra e céus. E
todo arbusto do campo ainda não estava na terra, e toda erva do campo ainda não
brotava; porque o SENHOR Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e
não havia homem para lavrar o solo. E um vapor subia do chão e regava toda a face
da terra.

E o SENHOR Deus formou o homem [adam] do pó da terra [adamah] e


soprou nas narinas dele o fôlego de vida [chayim]; e o homem foi feito alma
vivente [nefesh chayah]. E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden [eden],
da banda do Oriente, e pôs ali o homem que tinha formado.

E o SENHOR Deus fez brotar da terra toda árvore agradável à vista e boa para
se comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do
bem e do mal. E saía um rio do Éden para irrigar o jardim; e dali se dividia e se
tornava em quatro braços. O nome do primeiro é Pisom; ele é o que rodeia toda a
terra de Havilá, onde há ouro. E o ouro daquela terra é bom; lá há o bdélio e a
pedra sardônica. E o nome do segundo rio é Giom; ele é o que rodeia toda a terra
de Cuxe. E o nome do terceiro rio é Hidéquel; ele é o que vai para o oriente da
Assíria; e o quarto rio é o Eufrates.

E tomou o SENHOR Deus ao homem e o pôs no jardim do Éden para o


lavrar e para o guardar. E ordenou o SENHOR Deus ao homem dizendo: De toda
árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e
do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente
morrerás.

E disse o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma
ajudadora adequada a ele. E formou o SENHOR Deus da terra todo animal do
campo e toda ave dos céus, os trouxe a Adão [adam] para ver como lhes chamaria;
e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome. E o homem
pôs nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e a todo animal do campo; mas para o
homem não se encontrou ajudadora adequada a ele.

Então o SENHOR Deus fez cair um sono profundo sobre o homem, e ele
adormeceu; e Ele tomou uma das suas costelas e fechou a carne em seu lugar. E fez
o SENHOR Deus, da costela que tomara do homem, uma mulher; e a trouxe para
o homem. E disse Adão: Esta é agora osso do meu osso e carne da minha carne; a
esta ele chamou mulher, porque do homem ela foi tomada.

Gênesis 2:4-23, tradução da Bíblia hebraica de Enih Gil’ead.


SENHOR é uma transliteração do nome hebreu YHVH. Os judeus não
podiam pronunciar o nome de Deus (YHVH), então eles o substituíam por um
termo diferente, como Adonai (Senhor) ou HaShem (O Nome). Em algum
momento o texto foi alterado para Senhor Deus (Adonai Elohim), conferindo
assim uma aparência de uniformidade aos capítulos iniciais do livro do Gênesis.[1]

O significado exato do tetragrama YHWH é controverso. YHWH tem a


forma de um verbo na terceira pessoa masculina do singular. Alguns o associam a
uma raiz semítica que significa soprar e o interpretam como ‘Deus da tempestade’,
mas a maioria dos estudiosos o associam com o verbo ‘Ser’.[2]

Como vimos, o texto jeovista (ou javista) de Gênesis 2:4-23 é mais antigo do
que o texto elohímico de Gênesis 1:1-2:3, alguns o situam no século IX AC,
enquanto o segundo é, muito provavelmente, do século VIII AC, sendo
posteriormente adaptado por um editor jeovista no século VII AC.[3]

Davi é idealizado como o grande herói do povo judeu, ‘o doce cantor de


Israel’, de cuja linhagem viria o próprio Messias. Ele se tornou famoso ainda jovem
ao matar o herói filisteu Golias. Sob seu governo, Israel atingiu unidade, força
militar e conquistou territórios, como nunca mais veria nos reinados
subsequentes. Davi capturou a cidade jebusita de Jerusalém por volta do ano 1000
AC, fez dela sua capital e para lá transferiu a Arca da Aliança. Foi sucedido pelo
mais astuto dos seus filhos, Salomão, que reinou por aproximadamente 40 anos,
entre 960 e 920 AC. Salomão erigiu um imenso complexo ao norte da muralha da
cidade velha de Jerusalém, que incluía seu magnifico palácio e o glorioso templo, a
casa terrena de Jeová. O tamanho e a magnificência do santuário eram um recado a
todos de que o Deus de Israel era o mais poderoso entre todos os deuses.[4]

O declínio de Israel começou ainda com Salomão, tendo ele imposto tributos
pesados ao povo e empregado trabalho forçado na construção do templo, além de
ser condescendente com outros deuses, construindo para eles santuários e
assentando suas imagens. Os aposentos das prostitutas do culto ficavam nos
recintos do templo e o estábulo dos cavalos do deus Sol na entrada. O povo de
Israel, tendo deixado para trás os tempos longínquos do deserto, assumiu os
costumes da época e adorou os deuses locais.[5]

Depois de Salomão e da divisão de Israel nos reinos do Norte e do Sul, os reis


se distanciaram cada vez mais da Lei de Moisés. O Livro da Lei ficou perdido por
muito tempo, tendo sido finalmente encontrado pelo sacerdote Helcias, no ano de
621 AC, durante a restauração do templo de Salomão. Este episódio é narrado no
livro de 2 Reis. Ninguém parecia se lembrar do Livro da Lei, até o rei Josias
eliminar os necromantes, os adivinhos, os deuses domésticos e todas as
abominações que se viam na terra de Judá. Josias destituiu os sacerdotes que
incensavam a Baal, ao Sol, à Lua e aos planetas, tirou os ídolos da Casa do Senhor
e derrubou as casas de prostituição cultual. Dele se diz que antes ‘não houve rei
semelhante, que se convertesse ao Senhor com todo o seu coração, e com toda a
sua alma, e com todas as suas forças, conforme toda a Lei de Moisés; e, depois dele,
nunca se levantou outro tal’.[6]

Esse é o contexto do autor jeovista (J). Não só os nomes de Deus são distintos
nos dois relatos da criação, eles trazem também outras diferenças fundamentais. O
autor identificado como J não menciona os dias nem períodos de tempo e faz uma
distinção clara da natureza do homem, aqui ele é formado da terra (adamah) e não
de alguma substância divina, ou à ‘imagem’ de Deus. O homem é feito alma
vivente (nefesh chayah) tal como as demais criaturas. Primeiro Deus criou a Terra e
os céus; depois Ele criou o homem; em seguida a vegetação cresceu; depois Deus
criou os animais; e por fim criou a mulher, da costela de Adão.[7]

Aqui temos a proibição de comer do fruto da árvore do conhecimento do bem


e do mal. A história prossegue com quatro personagens, sendo um deles um
animal falante, a serpente. Ela engana primeiro a mulher, depois o homem, que
come do fruto proibido. ‘Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que
estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si.’[8]
Detalhe de A Destruição de Leviatã, gravura de Gustave Doré, de 1865.
A CRIAÇÃO EM OUTROS TEXTOS
BÍBLICOS

Por meio da sua palavra, Deus criou os céus e todo o exército deles, o Sol, a
Lua e as estrelas. Vestido de um glorioso manto de luz, estendeu os céus como se
abre uma cortina e os desenrolou como a uma tenda, cobrindo assim as
profundezas do Abismo. Tendo amarrado as águas superiores com uma prega da
sua veste, estabeleceu sua morada oculta sobre os céus. O pavilhão que o cercava
era a escuridão das águas e as nuvens dos céus. Sobre as águas superiores fez
repousar as vigas das suas câmaras, ali Deus erigiu o Seu trono divino.1

Enquanto trabalhava na criação de tudo o que há, Deus percorria o Abismo


voando sobre as asas do vento, ora montado em um querubim, ora tomando as
nuvens por carruagem; ou fazia dos ventos passantes seus mensageiros. Deus
lançou fundamentos sólidos sobre os quais a terra se ergueu, pesou
cuidadosamente as montanhas, algumas as fez afundar nas águas do Abismo para
servir como pilares para a terra que se curvou sobre eles e então travou esse arco
com as próprias montanhas.2

Então as águas do Abismo se levantaram com estrondo, numa clara ameaça de


Tehom, a rainha das águas, que queria inundar toda a obra de Deus. Mas Ele, a
bordo de sua carruagem flamejante, atravessou as ondas e se lançou contra rajadas
de granizo, raios e trovoadas. Deus enfrentou e venceu os monstros marinhos
Leviatã e Raabe, aliados de Tehom, despedaçou as cabeças do primeiro e
trespassou o segundo com uma espada. Deus repreendeu as águas de Tehom, que
aterrorizadas pela sua voz, recuaram. Os rios correram montanha acima e
retornaram aos vales. Tremendo de medo, Tehom reconheceu a derrota. Com o
brado da vitória, Deus fez secar as águas até que as fundações da terra pudessem ser
vistas novamente. Então Deus mediu as águas que restaram com a concha da sua
mão, as devolveu ao leito do mar e pôs a areia por limite que não mais poderiam
traspassar; quanto a Tehom foi encerrada atrás de portões e ferrolhos por decreto
divino, que jamais poderia quebrar por mais violência que suas águas salgadas
pudessem demonstrar.3

Deus também fixou limites para a terra seca e permitiu às nascentes de Tehom
jorrar sua água por entre os montes e regar os topos dos outeiros desde as suas
câmaras. Assim fez crescer a erva para alimentar o gado, verduras e cereais para o
homem e cedros do Líbano para sombra. Designou a Lua para marcar as estações,
o Sol para luz do dia e as estrelas para luz da noite. Encheu os campos de animais,
nas árvores aninhou os pássaros e os mares povoou de seres sem número,
pequenos e grandes. Fez a noite para que todos os animais da selva saíssem para se
alimentar, mas ordenou que voltassem aos seus covis ao nascer do Sol.4

Na manhã da criação, as estrelas cantavam alegremente em coro e todos os


filhos de Deus jubilavam.5

Tendo completado o trabalho da Criação, Deus se retirou para o seu santuário


no monte Parã, na terra de Temã. Sempre que Ele olha para a Terra ela treme e
tocando os montes eles logo fumegam.6

Texto extraído de Hebrew myths: the book of Genesis, de Robert Graves e


Raphael Patai, composto a partir das seguintes passagens bíblicas:

1. Salmos 18.10-12, 33.6, 93.1-2, 104.2-6, Isaías 40.22, 44.24 e 50.3, I Reis 8.12

2. Salmos 18.10, 65.7 e 104.3-5 Provérbios 30.4, Naum 1.4, Isaías 40.12
3. Salmos 18.15-16, 33.7, 74.13-14, 89.11, 93.3 e 104.6-8, Isaías 40.12 e 51.9,
Jeremias 5.22 e 31.35, Jó 9.13, 26.12-13 e 38.8-11, Naum 1.4

4. Salmos 74.17 e 104.10-26, Jó 38.5, Jeremias 31.35

5. Jó 38.7

6. Salmos 104.32, Habacuque 3.3


Tehom em hebraico significa ‘profundo’ ou ‘abismo’, aparece pela primeira
vez na Bíblia em Gênesis 1:2 ‘e havia trevas sobre a face do abismo’. O registro
hebraico da criação começa com as águas escuras, turbulentas e pré-existentes do
abismo, que foram chamadas de tehom. De acordo com a tradição, Tehom seria a
personificação das profundezas do abismo, do oceano primevo na criação. Desde
então, Deus colocou um selo sobre Tehom para mantê-lo sob estrita obediência, só
uma vez ele foi removido, nos tempos de Noé. Por causa do pecado da
humanidade, Deus permitiu que Tehom se levantasse e se unisse com as águas de
sobre o firmamento para castigar a terra.[1]

Segundo Whatham, ‘é bastante presente no Antigo Testamento a concepção de


que o oceano, ou as águas do grande Abismo, possuem um poder consciente e
hostil a Jeová.’[2]

Raabe é o dragão veloz de Jó (26:12-13), o monstro marinho do salmista


(89:10). Ser primitivo que habitava as águas do abismo e do caos, lutou e foi
derrotado por Deus na criação do mundo. Existe certa ‘coincidência’ entre Raabe
e Leviatã na tradição judaica e também com as versões persa e babilônica.

Leviatã é outra criatura mítica mencionada na Bíblia, tem a forma de uma


serpente marinha, mais parecida com um dragão de várias cabeças, seu lugar de
habitação também era o abismo, ou o oceano, como Raabe também foi derrotado
por Deus na criação do mundo. É lembrado nos Salmos 104:26 e 74:13-14, mas é
Jó (41:1-34) quem traz uma descrição exaustiva do monstro, como criatura feroz,
poderosa, com a pele impenetrável, feita de escudos e a boca apavorante com
dentes temíveis, que atira chamas pela boca e fumaça pelas narinas. Os textos
bíbiclos parecem indicar que existiam várias criaturas monstruosas a serviço de
Tehom.[3]

Alguns defendem que Leviatã teve a vida poupada, como o profeta Isaías
(27:1); no tempo de Deus haverá uma caçada ao Leviatã, os anjos mais poderosos
não serão capazes de vencê-lo, o arcanjo Gabriel será enviado para força-lo a sair do
Abismo, mas Leviatã engolirá anzol, linha e até mesmo pescadores, tudo junto,
então Deus virá pessoalmente para finalmente capturar e abater o monstro
aterrador.
PARTE II

às margens do índico

Índia, Pérsia, Arábia e Leste da África


O deus Brahma com suas quatro cabeças, suas quatro mãos seguram uma
flor de lótus, um japamala (cordão sagrado), um vaso de água e os
Vedas,conforme imagens de templos hindus dos séculos VI-VII.
O PARADOXO INDIANO

O hino da criação1

No princípio não havia nada, nem o não-existente, nem o existente. Não havia
o mundo, nem o firmamento, nem o que está além [do firmamento]. O que dava
abrigo, e onde? Havia água lá, profundidade insondável de água? Não havia morte
nem imortalidade, então. Nenhuma indicação havia do dia ou da noite.

Apenas o Uno [Único] respirava, sem respirar [sem exalar], por sua própria
força. Além dele, não havia nada mais. No começo havia escuridão coberta por
escuridão, tudo era caos indiscriminado, tudo o que existia era vazio e sem forma;
pelo grande poder do calor nasceu essa unidade [pensamento].

No começo surgiu o desejo [kāma: eros ou amor], que foi a primeira semente
da mente [do criador]; os sábios, tendo meditado em seus corações, descobriram a
conexão do existente com o inexistente. A linha de divisão foi estendida, o que
estava acima dela então, e o que estava abaixo dela? Havia progenitores, havia
forças poderosas, o alimento era inferior, o comedor era superior.

Quem realmente sabe? Quem neste mundo pode declarar isso? De onde veio a
criação, de onde foi gerada? Os deuses são posteriores à criação do mundo, então
quem sabe de onde ele surgiu? Aquele de quem esta criação surgiu, ele a formou
toda ou não a formou. Só aquele que tudo vê do mais alto Céu sabe, ou talvez não.

Hino ao deus desconhecido2

Hiraṇyagarbha [o germe dourado] [ou Brahma, o criador] estava presente no


início, ao nascer ele era o único senhor de todos os seres criados. Ele fixou e
sustentou essa Terra e o Céu. Vamos oferecer culto com uma oblação ao divino
Ka [Quem] [o deus desconhecido]. Para ele que é o doador do sopro vital, de
poder e vigor, cujos comandos todos os deuses obedecem, cuja sombra é a
imortalidade, vamos oferecer culto com uma oblação ao divino Ka.

Para ele que, por sua grandeza se tornou o único rei de todo o mundo que
respira e vê [dos deuses e homens], que é senhor dos seres de dois pés e de quatro
patas. Por cuja grandeza essas montanhas vestidas de neve existem, o oceano e
Rasa [o rio mítico do firmamento] são posses dele, dele são as regiões celestes, dele
são esses dois braços [protetores]. Vamos oferecer culto com uma oblação ao
divino Ka.

Por quem o firmamento foi feito profundo e a terra sólida, por quem o Céu e
a esfera solar foram fixados, que era a medida da água no firmamento, em quem o
Sol surgido brilha. Quando as vastas águas vieram, contendo o germe universal
[Brahma, nascido do ovo do mundo] e dando à luz Agni [deus do fogo], então foi
produzido o sopro único dos deuses. Vamos oferecer culto com uma oblação ao
divino Ka.

Ele que por seu poder viu as águas por toda parte contendo o poder criador,
dando início ao sacrifício, ele que entre os deuses era o único deus supremo. Que
nunca nos prejudique aquele que é o pai da Terra, que gerou o Céu e as águas
vastas e encantadoras. Vamos oferecer culto com uma oblação ao divino Ka.

Ninguém além de ti, Prajapati [senhor da criação e protetor], tem dado


existência a todos esses seres, concede-nos o desejo dos nossos corações quando te
invocamos, que nós tenhamos posse de abundância de riquezas.

Hino em louvor a Vishnu3

Eu revelarei os atos poderosos de Vishnu [o preservador], que mediu as regiões


terrestres, que sustentou o lugar mais alto de congregação [o Céu onde os deuses
se reúnem], andando a passos largos três vezes colocou sua pegada. Por seus atos
poderosos Vishnu é louvado, ele é como uma fera voraz que vaga pela montanha,
dentro de cujos três passos amplamente estendidos todos os seres vivos têm sua
habitação.

Ele, cujos três passos estão cheios de ambrosia, imperecíveis, deleita [a


humanidade] com alimento sagrado. Ele sustenta sozinho os três elementos, a
Terra, o Céu e todas as criaturas vivas.

O hino do homem4

Purusa [o homem primordial] tem mil cabeças, mil olhos, mil pés, envolvendo
a Terra. Purusa é todo este mundo visível que existiu até agora e tudo que há de
ser. Ele é o senhor da imortalidade, que cresce pelo alimento. Todas as criaturas
são um quarto dele, três quartos permanecem no Céu, sendo imortais. Três
quartos de Purusa ascenderam, o outro quarto que ficou neste mundo se
diversificou em várias formas, em toda a criação animada e inanimada.

Dele [daquele um quarto] nasceu Viraj [a fêmea] e de Viraj novamente


nasceu Purusa [o homem]. Assim que nasceu ele se espalhou para o Leste e para o
Oeste sobre a Terra.

Os deuses prepararam sacrifício tendo Purusa como oferenda e imolaram


sobre a grama sagrada [o altar] o Purusa nascido no tempo mais antigo. Desse
grande sacrifício a gordura gotejante foi recolhida e dela foram feitas as criaturas
do ar e os animais selvagens e domésticos.

Deste grande sacrifício nasceram os versos e os hinos, daí feitiços e


encantamentos [os três vedas: Rigveda, Samaveda e Yajurveda]. Dele nasceram os
cavalos e todos os outros animais que têm duas fileiras de dentes, as vacas
nasceram dele, assim como as cabras e ovelhas.

Quando eles imolaram Purusa, em quantas partes eles o dividiram? Como a


sua boca era chamada, como seus braços, suas coxas e seus pés foram chamados?
Sua boca se tornou o brâmane [casta sacerdotal], seus braços se tornaram o
rajanya [a casta real ou militar], suas coxas se tornaram o vaiśya [casta dos
lavradores e comerciantes] e o śudra [casta dos operários] nasceu de seus pés.

A Lua nasceu de sua mente, o Sol de seus olhos, Indra [deus do Céu] e Agni
[deus do fogo] nasceram de sua boca, Vayu [deus dos ventos] de sua respiração.
De seu umbigo veio a atmosfera, o Céu foi formado de sua cabeça, a Terra de seus
pés, e de seus ouvidos vieram os quadrantes do espaço. Assim eles constituíram o
mundo […]

Pelo sacrifício os deuses adoraram aquele que foi sacrificado. Aqueles


grandiosos se tornaram participantes do Céu, onde as antigas divindades, os
Sadhyas residem.

Livros 1 e 10 do Rig Veda, traduções para o inglês de H. H. Wilson e de Ralph


T. H. Griffith, tradução para o português de Eleonora Meier.

1. Rg Veda, Livro 10 Hino 129, Criação (Nāsadīya Sūkta)

2. Rg Veda, Livro 10 Hino 121, Ka (Quem, o Deus Desconhecido)

3. Rg Veda, Livro 1 Hino 154, V. 1-4, Vishnu

4. Rg Veda, Livro 10 Hino 90, Purusa, o hino do homem


O Rig Veda é o documento mais antigo da literatura hindu, escrito em
sânscrito e composto por hinos escritos entre 1500 e 900 AC, porém a tradição
hindu defende que eles surgiram bem antes, por volta de 3500 AC. Os Vedas
(literalmente ‘conhecimento sagrado’) são o núcleo das crenças e práticas hindus
ao lado de outras fontes como os poemas épicos Mahabharata e Ramayana, que
remontam a 400 AC, os Upanhisades, os Puranas e o Bhagavad Gita, um pouco
mais recentes.[1]

O Bhagavad Gita é a escritura mais lida e admirada pelos hindus, seus


ensinamentos permeiam o diálogo entre o guerreiro herói Arjuna e Krishna, um
dos principais deuses hindus. A alma da cultura indiana são suas crenças e rituais
sagrados, o sânscrito, seus incontáveis templos dedicados a um universo de deuses
e deusas, o Ganges, e seu milenar sistema de castas. Atualmente o hindi e o urdu
são os idiomas mais falados. O hinduísmo não é uma linha reta, mas um
emaranhado de raízes que deram origem a uma coleção complexa de crenças e
escolas de pensamento, além de ramificações importantes como o budismo e o
jainismo.[2]

Embora a presença humana no vale do Indo seja muito mais antiga, a


civilização começou a florescer em suas planícies por volta de 2500 AC, numa
região compreendida entre o atual Paquistão e o noroeste indiano. O ano de 1500
AC marca a conquista do Indo por um grupo de nômades guerreiros, falantes do
sânscrito, do qual derivam todas as outras línguas indo-europeias. A origem desse
povo, que se autodenominava arya (nobre), provavelmente é uma região do
Cáucaso, na Ásia Central, com o tempo eles ficaram conhecidos como arianos. O
panteão do hinduísmo é resultado da mescla dos deuses locais com os arianos.[3]

O que esperar de um mito da criação hindu, senão algo enigmático e


paradoxal? Histórias das mais variadas não faltam, tanto o Rig Veda quanto os
outros textos sagrados que vieram depois trazem teorias diferentes, embora sejam
mais ou menos compatíveis entre si.

O Hino da criação, apesar da linguagem contraditória, ‘explica’ a origem do


mundo como a evolução do existente (sat) a partir do inexistente (asat). O asat
tem em si o potencial latente da existência. Primeiro surge a água e dela a
inteligência que foi gerada pelo calor. A palavra visṛṣṭi, traduzida como ‘criação’,
significa literalmente ‘emissão’ ou ‘descarga’, criação no sentido de fazer do nada é
um conceito desconhecido ao pensamento indiano.[4]

Aquele que tudo vê é Paramatma, o Uno, a essência de tudo que forma o


cosmo, sua compreensão escapa à inteligência humana, ele é ao mesmo tempo a
existência e a não existência. No Hino ao Deus Desconhecido, o criador é
identificado como Ka, que significa ‘Quem’. O termo kasya, literalmente ‘de
quem’, também pode ser traduzido como ‘de Brahma’, ou ‘de Prajapati’, de cujos
nomes, no Veda, é Ka, isto é, o deus desconhecido. Prajapati significa ‘senhor da
criação’, mas pode designar muitos deuses diferentes, dependendo do contexto,
como Brahma, Vishnu, Shiva e Indra entre outros.[5]

Outro texto védico traz o seguinte diálogo: ‘O criador pergunta ao Deus do


Céu, Indra: ‘Quem sou eu?’ Ao que o Deus do Céu responde: ‘Apenas quem
você acabou de dizer’ (Eu sou Quem), foi assim que o criador recebeu o nome
Quem.’[6]

Na religião védica as pessoas experimentavam o poder sagrado pelo ritual do


sacrifício, eles chamavam esse poder de Brahma. Os Upanishads incentivavam as
pessoas a cultivarem o senso de Brahma (ou Brahman), ou seja, o processo de
revelação do sentido das coisas. Todo o mundo passou a ser visto como uma
atividade divina jorrando do misterioso ser de Brahma, o criador, tudo o que
existe ou acontece se torna manifestação dele.[7]
Alguns textos dos Upanishads fazem distinção entre o deus Brahma e o termo
Brahman. O primeiro se refere ao criador, supremo deus hindu, uma deidade
masculina que personifica o princípio divino impessoal e neutro do bramanismo,
chamado de Brahman. Este último é uma abstração impessoal, nem masculino,
nem feminino, e não percebido como a vontade de uma divindade soberana, não
demonstra amor nem raiva e não fala ao homem. Segundo o Chandogya
Upanishad: ‘mesmo que não possamos vê-lo, ele permeia o mundo e, como
Atman, é encontrado eternamente dentro de cada um de nós’. Os Upanishads
trouxeram a noção de que a alma humana deveria escapar do ciclo eterno de
morte, renascimento e ressurreição para se ligar a Brahma.[8]

O deus Brahma é normalmente representado com quatro cabeças, tinha uma


só quando nasceu, depois passaram a ser cinco e finalmente quatro. De acordo
com o mito, Brahma cortou uma parte da lateral do próprio corpo e dela criou a
mulher chamada Saraswati, que envergonhada tentava se esquivar dos olhares
constantes de Brahma movendo-se para todos os lados. Por isso lhe nasceram
cinco rostos, para que pudesse observar a beleza de Saraswati de todos os lados.
Saraswati é uma antiga deusa agrícola da fertilidade e também o nome de um rio
sagrado da Índia, a ela se credita a invenção do sânscrito. Brahma e Saraswati
tiveram um filho que se chamou Manu, que viria a ser o pai de todos os humanos.
Por causa de uma fala desrespeitosa, Brahma acabou perdendo uma de suas
cabeças, que foi queimada por Shiva.[9]

Os hindus desenvolveram a sua Trindade, à qual chamaram Trimúrti,


composta por Brahma, Shiva e Vishnu. Shiva é uma divindade paradoxal do bem
e do mal, da fertilidade e asceticismo, criador e destruidor. Ele era também um
grande Yogi, que inspirava seus devotos à meditação. Diversamente dos demais,
Vishnu era gentil e brincalhão, gostava de se mostrar aos homens por meio de
encarnações ou avatares. No Bhagavad Gita, Vishnu aparece para o príncipe
Arjuna como Krishna, um dos seus personagens favoritos, e provoca uma reação
aterrorizante: ‘Vejo os deuses no seu corpo, ó deus, e hordas de criaturas: Brahma,
o criador cósmico, no seu trono de lótus, todos os videntes e serpentes celestiais’.
Tudo está presente no corpo de Krishna, que de alguma forma preenche o espaço
e inclui todas as divindades.[10]

Apesar de toda a importância que Vishnu tem na mitologia hindu, ele pouco
aparece no Rig Veda. Porém aparece tão poderoso, que o pó erguido da sua
passada envolveu o mundo inteiro; com um passo ele percorre a Terra, com o
segundo passo percorre a atmosfera e com o terceiro passo toda a extensão dos
céus. O Kurma Purana fala sobre as origens de Vishnu e Brahma e expressa bem a
circularidade que é característica marcante da tradição hindu.[11]

Quando os três mundos estavam em escuridão, Vishnu dormia no meio do


oceano cósmico. Um lótus cresceu no seu umbigo. Brahma veio até ele e disse:
‘Diga-me, quem é você?’ Ao que Vishnu respondeu: ‘Eu sou Vishnu, criador do
Universo. Todos os mundos e você mesmo estão dentro de mim. E quem é você?’
Brahma replicou: ‘Eu sou o criador, e tudo está dentro de mim.’ Então Vishnu
entrou dentro do corpo de Brahma e viu os três mundos dentro dele. Atônito, ele
saiu pela boca de Brahma e disse: ‘Agora você deve entrar no meu ventre da
mesma maneira e ver lá dentro os mundos.’ Então Brahma entrou no corpo de
Vishnu e viu os mundos. Tendo Vishnu fechado todas as aberturas, Brahma saiu
pelo umbigo de Vishnu, e descansou no lótus.[12]

No Hino do homem a humanidade é criada pelos deuses a partir de um gigante


cósmico, o homem primordial, que sendo vítima de um sacrifício védico é
desmembrado dando origem a todas as criaturas terrenas. A criação circular se faz
presente no hino, onde a mulher nasce do homem, e o homem da mulher.[13]

O Hino do homem é também uma justificativa teológica para todo o sistema


social védico. O mundo sacrificial dos Vedas nasce de yajña de Puruṣa, ‘o homem
primordial’. O sistema de classes védico, conhecido como varna quadruplo, nasce
desse sacrifício cósmico. O brâmane (sacerdote) era a boca do Puruṣa, por ter o
privilégio de se dirigir aos deuses em prece. Os braços do Puruṣa se tornaram o
rajanya, o príncipe e soldado que maneja a espada e a lança. Suas coxas, as partes
mais fortes de seu corpo, se tornaram o agricultor e o comerciante, que são o
principal suporte da sociedade, e seus pés, símbolos do vigor e atividade, se
tornaram o śudra, ou operário, sobre cujo trabalho pesado e esforço tudo se apoia.
[14]

O mito do desmembramento é encontrado também no texto chamado O


código de Manu, um compêndio de leis sociais concluído no século II. Ele começa
assim:

‘No princípio o Universo era feito de escuridão, sem nada que pudesse ser
discernido, sem marcas evidentes, impossível de se conhecer pelo raciocínio ou
entendimento. Parecia estar completamente adormecido. Então surge o criador e
se põe a trabalhar. Primeiro ele produziu as águas, e expeliu nelas o seu sêmen.
Aquele sêmen se tornou em um ovo de ouro, que ele dividiu em dois. Das duas
metades ele criou o Céu e a Terra, a atmosfera no meio e as oito direções cardinais.
Ele produziu o tempo e as divisões do tempo, as constelações e os planetas, rios,
oceanos, montanhas, o chão áspero e o chão liso, o calor ascético, a linguagem, o
prazer sexual, o desejo e a raiva. Finalmente, ele dividiu seu próprio corpo em dois,
a metade se tornou um homem e a outra metade uma mulher’. O texto hindu se
refere à raça humana como manava, que significa ‘descendentes de Manu’.[15]

Dentre as mais diversas narrativas hindus da criação, a do ‘ovo cósmico’ é uma


das mais frequentes. Uma antiga versão folclórica conta que uma deusa depositou
três ovos em uma flor de lótus e desses ovos emergiram três mundos e três deuses,
Brahma, Vishnu e Shiva. Outros contam que Brahma e Vishnu discutiram sobre
qual dos dois teria criado o Universo, quando um grande linga (falo) surgiu no
oceano, em chamas. Enquanto contemplavam sua imensidão, Brahma e Vishnu
avistaram uma caverna nas profundezas do falo criativo, e o deus Shiva estava
dentro dela. Espantados com a visão, reconheceram que era Shiva o criador.[16]

O séquito de deuses, semideuses, devas e asuras hindus é tão grande que se fala
em 33 milhões de deuses, alguns defendem que esse número seja puramente
figurativo, outros defendem que a tradução correta dos Vedas seriam 33 tipos
(koti) e não milhões (crore). Qualquer que seja o número, é certamente incontável,
cada um tem o poder e a habilidade necessários para governar uma área da criação
ou um propósito específico, por exemplo é Surya quem cuida do Sol e Saraswati,
da sabedoria, das artes e da música (além de ser a mãe de Manu, o primeiro
homem).[17]

Um dos Upanishads mais antigos traz um diálogo entre o mestre Yajnavalkya


e seu pupilo Vidagdha, que pergunta insistentemente, ‘Mas quantos deuses
existem de verdade?’ Ao que o impaciente mestre responde: ‘Tantos quantos estão
nos Visvadevas, trezentos e três, e três mil e três.’ O pupilo repete a pergunta e o
mestre responde: ‘Trinta e três.’ O pupilo continua fazendo a mesma pergunta
repetidas vezes e o mestre responde assim: ‘Seis, então Três, e depois Dois, e então
Um e meio e finalmente Um.’[18]

Isso é só um pouco da multifacetada cultura hindu, que se expressa no


seguinte poema:

‘Para mim, habitando em minha própria glória: Onde está o passado, onde o
futuro? Onde o presente? Onde o espaço? Ou onde está até mesmo a
eternidade?’[19]
Ahura Mazda (Senhor Sábio) representado com suas asas protetivas abertas,
relevo de Persépolis, no atual Irã, do século VI AC.
ASSIM FALOU ZARATHUSTRA

As 16 boas terras criadas por Ahura Mazda e as 16 pragas criadas por Angra
Mainyu

Assim falou Ahura Mazda a Zarathustra:

Eu tornei as terras propícias para os seus habitantes, mesmo que não houvesse
charme algum nelas. A primeira das boas terras e países que eu, Ahura Mazda,
criei foi Airyana Vaêgo [o Paraíso], às margens do Vanguhi Dâitya [um rio
mitológico]. Então veio Angra Mainyu, que é todo morte e, por sua feitiçaria,
contra criou a serpente do rio e o inverno, obra dos Daevas [os demônios]. Há dez
meses de inverno e dois meses de verão, o inverno traz o frio para as águas e para as
árvores, e as suas piores pragas.

A segunda das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foram as
planícies de Sughda [Samarcanda]; então veio Angra Mainyu e contra criou a
mosca Skaitya, que traz morte para o gado. A terceira das boas terras e países que
eu, Ahura Mazda criei, foi a santa e inabalável Môuru [Margiana]; então veio
Angra Mainyu, que é todo morte e contra criou a lascívia.

A quarta das boas terras que eu, Ahura Mazda, criei foi a linda Bâkhdi
[Bactria]; veio Angra Mainyu e contra criou a Bravara [formigas que comem
grãos]. A quinta das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi Nisâya;
veio Angra Mainyu e contra criou, pela sua feitiçaria, o pecado da descrença. A
sexta das boas terras que eu, Ahura Mazda, criei foi Harôyu [Aria], com o seu
lago; veio Angra Mainyu e contra criou o mosquito maculoso.

A sétima das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi Vaêkerta, das
sombras do mal [prov. vale de Cabul]; então veio Angra Mainyu, que é todo
morte e contra criou Pairika Knãthaiti. A oitava das boas terras que eu, Ahura
Mazda, criei foi Urva, de boas pastagens; e Angra Mainyu contra criou o pecado
da tirania. A nona das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi Khnenta
em Vehrkâna [Hircânia]; veio Angra Mainyu e contra criou o pecado antinatural
[sexual].

A décima das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi a linda
Harahvaiti [Aracósia]; veio Angra Mainyu, que é todo morte e, pela sua
feitiçaria, contra criou o pecado de enterrar os mortos. A décima primeira das boas
terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi a gloriosa Haêtumant; veio Angra
Mainyu e contra criou o feitiço do mal de Yâtus [os bruxos], ele mostra sua
natureza pelo mal olhado. A décima segunda das boas terras que eu, Ahura
Mazda, criei foi Ragha, das três corridas; veio Angra Mainyu e contra criou o
pecado da absoluta incredulidade.

A décima terceira das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi a
santa e inabalável Kakhra; veio Angra Mainyu, que é todo morte e contra criou o
pecado de queimar os corpos. A décima quarta das boas terras que eu, Ahura
Mazda, criei foi Varena de quatro cantos, para a qual nasceu Thraêtaona, que
feriu Azis Dahâka; veio Angra Mainyu e contra criou as doenças femininas e a
opressão de governantes estrangeiros. A décima quinta das boas terras que eu,
Ahura Mazda, criei foram os Sete Rios [Punjab]; veio Angra Mainyu e contra
criou doenças femininas e o calor excessivo.

A décima sexta das boas terras que eu, Ahura Mazda, criei foi a terra das
enchentes do Rangha [um rio mitológico], onde as pessoas vivem sem cabeça; veio
Angra Mainyu, que é todo morte e, pela sua feitiçaria do inverno, contra criou
uma obra dos Daevas. Existem ainda outras terras e países lindos, desejáveis e
prósperos.

Yima, o primeiro homem e fundador da civilização

Zarathustra perguntou a Ahura Mazda:

Ó Ahura Mazda, espírito benevolente, criador do mundo material, único


santo! Quem foi o primeiro mortal antes de mim, Zarathustra, a quem ensinaste a
lei de Ahura, a lei de Zarathustra?

Ahura Mazda respondeu:

O justo Yima, o grande pastor, ó santo Zarathustra. Ele foi o primeiro mortal
antes de ti, Zarathustra, a quem ensinei a lei de Ahura.

A ele falei eu, Ahura Mazda, dizendo: ‘Justo Yima, filho de Vîvanghat, sejas
tu o pregador e o portador da minha lei!’ Ao que o justo Yima respondeu: ‘Não
sou nascido e não fui ensinado a ser pregador e portador da tua lei.’ Então eu
repliquei, ó Zarathustra: ‘Visto que não queres ser o pregador e portador da
minha lei, então fazes prosperar e crescer as minhas terras, te comprometas a
nutrir, zelar e governar o meu mundo.’ E o justo Yima assentiu: ‘Enquanto eu for
rei, não haverá vento frio nem vento quente, nem doença ou morte.’

Então eu, Ahura Mazda, lhe trouxe dois implementos: um anel de ouro e um
punhal incrustado de ouro, como sinal do domínio real. Trezentos invernos se
passaram sob o domínio de Yima e a Terra se encheu de rebanhos, manadas,
homens, cães, pássaros e fogueiras vermelhas e não havia mais espaço para
rebanhos, manadas e homens.

Então Yima deu um passo à frente, para encontrar o Sol, e depois pressionou a
Terra com o anel de ouro e a perfurou com seu punhal, falando assim: ‘Ó Spenta
Ârmaiti [o gênio da Terra] abra-se e estenda-se para abrigar os rebanhos, manadas
e homens.’ E Yima fez a Terra crescer um terço do seu tamanho e vieram
rebanhos, manadas e homens tantos quantos ele desejasse.

Então se passaram 600 invernos sob o domínio de Yima e de novo a Terra


estava cheia de rebanhos, manadas, homens, cães, pássaros e fogueiras vermelhas.
De novo Yima falou à Terra, depois pressionou-a com seu anel e perfurou-a com
o punhal, e a Terra cresceu mais dois terços do seu tamanho.

Então se passaram 900 invernos sob o domínio de Yima e de novo a Terra


estava cheia de rebanhos, manadas, homens, cães, pássaros e fogueiras vermelhas.
Mais uma vez Yima falou à Terra, depois pressionou-a com seu anel e perfurou-a
com o punhal, e a Terra cresceu mais três terços do seu tamanho.

O criador, Ahura Mazda, grande nome no Airyana Vaêgo, junto ao rio


Dâitya, convocou uma assembleia dos deuses celestiais e o justo Yima convocou
os excelentes mortais. Então assim falou Ahura Mazda para Yima: ‘Ó justo Yima,
filho de Vîvanghat, sobre o mundo material cairão invernos fatais, trarão geadas
violentas e grossos blocos de neve. E todas as espécies de animais perecerão, os que
vivem nos campos, os que vivem nos topos das montanhas e os que vivem nos
estábulos.’

Continuou dizendo: ‘Antes fartos, agora os campos verão enchentes e neve


derretida, feliz será a terra onde ainda se possam ver pegadas de ovelhas. Faça para
ti uma Vara [um recinto fechado] longo como um campo de cavalos e traga para
ele as sementes de ovelhas, bois, homens, cães, pássaros e de fogueiras vermelhas.
Lá farás com que as águas fluam em um leito e colocarás os pássaros junto às
margens verdes. Lá estabelecerás moradas, casas com varanda e pátio. Para lá trarás
as sementes de homens e mulheres, os melhores sobre a Terra, assim como de todo
tipo de gado, os melhores sobre a Terra. Das árvores as melhores e das frutas
também as melhores sementes, as mais fartas de alimentos e os mais doces sabores,
todas essas sementes deves trazer, duas de cada, para mantimento inesgotável,
enquanto os homens permanecerem nessa Vara.’

‘Não haverá ali corcunda, nem impotente ou lunático; pobreza, mentira,


maldade ou ciúme; nenhum dente cariado ou lepra, nem qualquer uma das
marcas com que Angra Mainyu estampa os corpos dos mortais. Essa Vara tu
deverás selar com o anel dourado e tu farás uma porta e uma janela que brilha por
dentro.’

Então Yima disse consigo mesmo: ‘Como vou conseguir fazer essa Vara que
Ahura Mazda ordenou?’ Ao que Ahura Mazda respondeu: ‘Ó justo Yima,
esmaga a terra com teus pés e depois a amassa com tuas mãos, como o oleiro
amassa o barro.’ Assim Yima construiu a Vara, longa como um campo de cavalos
e trouxe as sementes de ovelhas, bois, homens, cães, pássaros e de fogueiras
vermelhas. Fez o curso d’água, colocou os pássaros à beira e fez moradas para os
homens.

Na parte mais larga ele fez nove ruas, seis na parte do meio e três na menor.
Para as ruas da parte mais larga ele trouxe mil sementes de homens e mulheres,
para a parte do meio seiscentas e para a parte menor trezentas. E selou a Vara com
seu anel de ouro, fez uma porta e uma janela que brilhava para dentro.

Perguntou Zarathustra: ‘Ó criador do mundo material, ó Santo, que luzes


existem para iluminar a Vara que Yima construiu?’ Ao que respondeu Ahura
Mazda: ‘Existem luzes criadas e luzes não criadas, lá as estrelas, a Lua e o Sol são
vistos apenas uma vez por ano, quando nascem e se põem, e um ano parece um
dia. A cada quarenta anos, para cada casal nascem dois filhos, um homem e uma
mulher. E assim é também para todo tipo de gado. E os homens vivem uma vida
feliz.’

Perguntou novamente Zarathustra: ‘Ó criador do mundo material, ó Santo,


quem é aquele que trouxe a lei de Mazda para a Vara que Yima fez?’ Ahura
Mazda respondeu: ‘Foi o pássaro Karshipta, ó sagrado Zarathustra!’

Perguntou Zarathustra: ‘E quem é o governante lá, ó criador do mundo


material, ó Santo?’ Ahura Mazda assim respondeu: ‘Urvatad-nara [filho de
Zarathustra]! E tu mesmo, ó Zarathustra!’

Tradução livre da primeira parte do Avesta (Fargard 1 e 2 do Vendîdâd ),


extraído do livro The zend Avesta, de James Darmesteter.
O conjunto das escrituras sagradas atribuídas a Zoroastro (Zarathustra) é
chamado de Avesta; trata-se de uma compilação de hinos, leis religiosas, histórias
míticas e litúrgicas, escritas em avéstico, idioma tradicional persa, e em pálavi,
idioma medo-persa.[1]

Os reis sassânidas, devotos do zoroastrismo, reuniram diversos comentários do


texto original do Avesta, que ficaram conhecidos como Zend, os quais passaram a
integrar o Zend-Avesta. O cânon do zoroastrismo foi finalmente estabelecido pelo
sumo sacerdote Tansar no reinado de Khusrau II, entre 591 e 628.[2]

O império Persa começou como um ajuntamento de tribos seminômades, que


pastoreavam no platô iraniano. Ciro, o grande, era o líder de uma dessas tribos e
venceu as guerras contra os reinos vizinhos da Média, Lídia e Babilônia. A Bíblia
saúda Ciro por libertar o povo judeu do cativeiro na Babilônia e permitir seu
retorno para Jerusalém.[3]

O primeiro império Persa (império Aqueménida), teve início em 550 AC e


cresceu a ponto de se tornar a primeira superpotência mundial. A história de Ciro
está imortalizada em um cilindro de barro, escrito em 539 AC, o qual relata a
conquista da Babilônia, do rei Nabonido. Na época de Dario, o grande, o império
Persa se estendia do Cáucaso à Ásia ocidental e norte da África; o aramaico se
tornou a língua oficial e foi estabelecido o primeiro serviço postal entre três
continentes: África, Ásia e Europa.[4]

O zoroastrismo, também chamado de dualismo e masdaísmo, se tornou a


religião oficial do império Persa no século VI AC. Acredita-se que Zoroastro viveu
entre 1550 e 1200 AC, porém não existem evidências para se estabelecer uma data
precisa.

Zoroastro era um sacerdote masdaísta, que com 20 anos entrou para a vida
contemplativa e com 30 anos foi se purificar em um rio tendo a primeira visão de
Ahura Mazda, o deus supremo do masdaísmo. A partir de então ele assumiu a
condição de profeta e reformador.[5]

O nome Zoroastro é a forma grega do avéstico Zarathustra, que


provavelmente significa, no persa antigo ‘aquele que controla camelos’, ou ‘aquele
que possui camelos reais’. O nome reflete a época de uma sociedade pastoril
tradicional.[6]

Ele teve três filhos, Isad-vâstra, Hvare-kithra e Urvatad-nara, que foram


respectivamente pais e chefes de três classes: os sacerdotes, os guerreiros e os
lavradores. Os filhos não têm papel ativo na mitologia masdeísta, mas parecem ser
três identidades do próprio Zarathustra.[7]

Zoroastro ensinava haver um deus, Ahura Mazda, o qual criou tudo o que
existe de bom no mundo. Assim ele deu a Ahura Mazda uma posição superior a
de qualquer outra divindade do mundo antigo, alguns consideram o zoroastrismo
como a primeira religião monoteísta, embora haja controvérsias a este respeito.[8]

Ele ensinou também que a perfeita ordem deve incluir a justiça final, onde os
defensores do asha (o bem) seriam recompensados e os defensores de druj (o mal)
seriam punidos. O mal é atribuído a Angra Mainyu, o espírito da destruição e
opositor de Ahura Mazda. Assim, nenhum mal poderia vir de Ahura Mazda,
como nada de bom poderia vir de Angra Mainyu. Essa concepção dualista
influenciou toda a ética e os fundamentos do zoroastrismo.[9]

Quando o mundo foi criado, Angra Mainyu apareceu para se opor a toda
criação de Ahura Mazda, com uma praga matou o primeiro touro, que foi a fonte
da vida na Terra, ele misturou veneno nas plantas, fumaça ao fogo, pecado com o
homem e morte com a vida.[10]

Embora seja o deus supremo, Ahura Mazda não está sozinho no panteão
parsi. Outros seres divinos habitam o mundo sobrenatural, como o Sol, o vento, o
raio, o trovão, a chuva, a oração e o sacrifício.[11]

Ahura Mazda, o deus do Céu, estabeleceu as leis da natureza. Ele é o maior


entre os deuses, não há nada acima dele, nem fora dele, ele fez todas as coisas. Ele é
o mais sábio, aquele que vê todas as coisas. Seu nome também é Varana, ‘o Céu
abrangente’ e Azura, ‘Senhor’. O Avesta o descreve como sendo alvo, brilhante,
pode ser visto de longe, seu corpo é o maior e mais belo de todos, tem o Sol como
olho, os rios do alto por esposas, o fogo do raio por filhos e se veste dos céus como
um adorno. Mora no espaço luminoso e infinito.[12]

O zoroastrismo sobrevive entre os parsis que emigraram da Pérsia para


Gujarat, na Índia, quando da conquista muçulmana da Pérsia. Os parsis
constituem a maior das duas comunidades praticantes do zoroastrismo no
subcontinente indiano, a outra são os iranis, que emigraram do Irã nos séculos
XIX e XX, e se estabeleceram na Índia britânica. Os parsis se integraram à
sociedade indiana, mas ainda mantêm sua identidade étnica e religiosa, seus
costumes e tradições. Hoje são estimados em 2,6 milhões de pessoas os praticantes
do zoroastrismo.[13]

O masdaísmo (ou zoroastrismo) se viu ameaçado diversas vezes, uma delas por
Mani, profeta que criou uma religião gnóstica que veio a ser conhecida como
maniqueísmo, hoje considerada extinta, mas que chegou a ter um rei entre seus
seguidores (Shapûr I, 240-270). Zarathustra profetizou que a religião santa (o
masdaísmo) cairia três vezes, mas três vezes se levantaria. A última queda teria sido
diante dos árabes, que conquistaram a Pérsia no século VII, a restauração é
esperada para o final dos tempos com Soshyos (o último e maior salvador), que virá
libertar o mundo da morte e da decadência, então os mortos se levantarão e a
imortalidade começará.[14]
O profeta Maomé, retratado com o rosto coberto e montado em um animal
com cabeça humana em sua ascensão ao Paraíso, conforme manuscrito
iraniano do século XVI.
O GÊNESIS ISLÂMICO

A luz e as almas

Antes que houvesse o tempo, havia Deus. Ele não nasceu nem jamais morrerá.
Se Ele deseja alguma coisa, simplesmente ordena.

Deus disse: ‘Haja luz!’ E a luz se fez. Então Deus tomou um punhado de luz
em Suas mãos e disse: ‘Estou satisfeito contigo, minha luz, de ti farei o meu
profeta, irei moldá-la na alma de Maomé.’

Tendo Deus criado a alma do profeta Maomé (que Deus ore por ele e lhe dê a
paz), Ele decidiu criar a humanidade, para que pudesse lhe enviar Maomé como
seu mensageiro e trazer Sua palavra para a Terra. Ela ensinaria a diferença entre o
Bem e o Mal, e no final Deus julgaria todas as pessoas e recompensaria aqueles que
tivessem escolhido o Bem.

Com seu conhecimento infinito, Deus previu tudo o que aconteceria nos
séculos vindouros, até o último dia. Com seu poder ilimitado, Deus começou a
criar todas as coisas.

Primeiro criou para si mesmo um Trono e um Tapete, para se sentar no dia do


julgamento. O Trono tem quatro pernas suportadas por quatro bestas fortes. O
Tapete tem as cores do arco-íris e se estende até os confins do Céu. Debaixo do
trono está o lugar mais deleitoso do Universo: as almas que foram permitidas
morar na sombra do Tapete e se regozijam para todo o sempre.

A terceira coisa que Deus criou foi uma Tábua, tão grande que contém a
descrição completa e detalhada de todos os eventos que já aconteceram ou que
acontecerão. A Tábua tem sua própria alma e é um dos servos mais fiéis de Deus.
É chamada a Mãe dos Livros, porque reúne toda a Sua sabedoria e Seus
mandamentos. Os segredos do Universo estão todos inscritos nela, mas só Deus é
capaz de ler.

Com a Tábua Ele criou a Caneta para escrever Seus mandamentos. Uma
Caneta tão longa quanto a distância da Terra ao Céu. Ela pensa e tem
personalidade. Tão logo veio a existir Deus ordenou: ‘Escreva!’ A Caneta
perguntou: ‘Senhor, o que devo escrever?’ Ao que Deus respondeu: ‘Destino.’
Desde então a Caneta não parou de escrever os feitos do homem. Se Deus muda
de ideia e projeta um futuro diferente daquele que estava previsto, os escritos
desaparecem e a Caneta escreve de novo.

A quinta coisa que Deus criou foi a Trombeta e com ela o arcanjo Serafili
[Asrafel]. O arcanjo segura a Trombeta pacientemente junto à boca, enquanto
espera, século após século, até que Deus decida terminar a história. Então Ele dará
o sinal e Serafili soprará seu primeiro sopro. Tamanho é o poder da Trombeta que
as montanhas desabarão, as estrelas cairão e o Dia da Tormenta começará.

A sexta coisa que Deus criou foi o Jardim das Delícias, que foi destinado às
almas boas. Lá elas habitarão para toda a eternidade e esquecerão os sofrimentos
da Terra. Ele tem rios de leite e mel, flores perfumadas e árvores que se dobram
com o peso dos frutos suculentos; assim que um deles cai, outro nasce
imediatamente no mesmo lugar. Quem não daria todas as suas posses para estar
num lugar como esse?

A sétima coisa que Deus criou, prevendo que muitas pessoas não seguiriam
Sua mensagem, foi o Fogo. Ele brotou crepitando da escuridão do abismo. O
cheiro do Mal é sua essência, e sua voz de trovão. ‘Senhor’, disse o Fogo, ‘onde
estão as almas dos pecadores, quero vê-las sofrer’. Quem não rezaria noite e dia
para escapar da tortura eterna?

Deus continuou Sua criação, Ele não precisa de descanso. Criou uma miríade
de anjos para proclamar Sua glória. De pura luz ele os criou, suas asas brilham com
uma luz branca e suave. São servos devotos e tremem diante de Deus.

O primeiro arcanjo é Jiburili [Gabriel], cuja tarefa é levar a Palavra de Deus


aos Seus profetas. Suas muitas asas ressoam no Céu de leste a oeste. Quando Deus
amaldiçoou as cidades de Ló, ele enviou Jiburili para destruí-las, com suas asas ele
as cortou, como se corta um cogumelo venenoso.

Mikaili [Miguel] é o segundo arcanjo. Ele é o responsável pelo sustento de


todas as criaturas da Terra. Milhares de anjos servem sob seu comando. Eles
proveem todas as criaturas de acordo com os desígnios de Deus. Alguns recebem
muito, outros recebem pouco, só Deus sabe o motivo.

Já falamos de Serafili [Asrafel], o anjo da Trombeta, sua tarefa é simplesmente


aguardar o sinal do fim. Zeraili [Asrael], é o anjo da morte, aquele que busca as
almas, que traz a última mensagem a cada criatura. Ele só obedece a Deus,
comanda reis e califas, jinns [criaturas sobrenaturais da mitologia arábica] e
gigantes, e todos o seguem humildemente para o desconhecido. Maliki é o
guardião do Fogo, onde os hipócritas e os pagãos serão punidos. Ele foi criado das
nuvens tenebrosas da ira de Deus. Por fim temos Ridhuani, o guardião do Paraíso,
cujos portões ele abre sempre que Deus ordena, despejando mil fragrâncias pela
Terra.

Muitos outros anjos vivem no Céu, mais do que podemos saber. Um deles
tem mil cabeças, cada uma com mil bocas e cada uma proclama a glória de Deus
em uma língua diferente. Há um anjo cuja metade esquerda é fogo e a metade
direita é neve, à ordem de Deus dois elementos opostos podem coexistir.
Há também um galo no Céu, seus pés estão no nível mais baixo do Paraíso e
sua cabeça além do sétimo Céu. Sua função é cacarejar no momento preciso do
salât-asubuhi, a prece do amanhecer. Seu jubilante Kuku-likuu pode ser ouvido
por todos os galos da Terra, nas fazendas e nos campos, todos repetem
encorajando uns aos outros. É o sinal para que os homens se preparem para a
primeira prece do dia.

O Céu e a Terra

Quando chegou o momento de Deus, Ele começou a criar o mundo material.


Ele desenrolou o dia e a noite como tendas imensas, ou tapetes, cheios de sinais
misteriosos. No Céu noturno Ele colocou as estrelas fixas e outras que se
movimentam pelo Céu, cada uma em seu caminho. A Lua também viaja pelo Céu
noturno e muda de forma como Ele quer. No Céu azul radiante do dia, ele
colocou o Sol, com ordens de nascer no Leste e se pôr no Oeste. Criou também as
nuvens e as pintou de cores diferentes.

Ele fez o Universo dividido em sete céus, no sétimo fica o Paraíso. Cada nível
tem seu próprio planeta, o primeiro é a Lua, o segundo é governado por Mercúrio,
o terceiro por Vênus, o quarto por Marte, Júpiter governa o quinto, Saturno o
sexto e o Sol o sétimo. Os guardiões de cada nível do Céu são as almas de oito
profetas de Deus, Adão é o primeiro, Isa [Jesus] o segundo com seu primo Yahya
[João Batista], Yusufu [José] o terceiro, Idrisi [Enoque] o quarto, Haruni [Arão]
o quinto e Musa [Moisés] o sexto. Abraão é o guardião do sétimo Céu, ele fica
perto da Mesquita Celestial onde 70 mil anjos oram todos os dias, nunca os
mesmos anjos.

Do lado oposto aos sete céus estão os infernos profundos, também divididos
em sete níveis, cada um mais terrível que o outro acima dele, cada um destinado a
um tipo de pecador. Os incrédulos ficarão para sempre no mais profundo, o mais
longe possível do criador.

Então Deus desenrolou a Terra, como um tapete onde os homens se sentam


para comer. Pois a Terra é cheia de comida para as criaturas de Deus. Ele deixou
alguns lugares desertos, mas em outros fez nascer grama para os animais de casco,
árvores para os macacos e frutas coloridas.

Ele separou a terra do mar, criou o imenso oceano de um lado e do outro as


paredes altas dos continentes. Criou as montanhas e ordenou aos riachos que
corram em torrentes cristalinas. Ele espalhou ilhas como buquês de flores no
oceano. Deu voz ao vento para sussurrar e para rugir.

Então Ele disse à Terra para pulular de insetos e imediatamente cem mil tipos
passaram a rastejar pela areia e voar pelo ar. Borboletas e besouros têm o símbolo
do criador inscrito em suas costas. Então Ele soltou uma multidão de pássaros que
louvavam o criador em suas próprias línguas. Encheu o oceano de peixes de
diferentes tamanhos e cores. Ele mandou que os lagartos viessem a existir e eles
obedeceram, assim como os sapos coaxantes que louvam o Senhor na sua língua.

Então o criador compassivo chamou à existência os grandes animais e eles


vieram a existir, louvando-o com mugidos e balidos. Ele criou as bestas que
comem carne, desenhou a calma girafa, o búfalo irascível, os antílopes e as zebras,
o hipopótamo que vive nos rios e o gigante elefante. Ele criou o camelo de pernas
fortes e as vacas de úberes cheios de leite. Ele decidiu as leis da criação, que os
peixes pequenos seriam comidos pelos grandes, que seriam comidos por outros
ainda maiores. Ele deu os corpos mortos por alimento aos abutres e aos vermes,
deu os vermes às galinhas e a galinha insuspeita à águia malabarista.

Ele ordenou às criaturas: cresçam e se multipliquem. Qual animal existente


não tem filhotes? O bebê babuíno se agarra ao peito da sua mãe e a girafa de pernas
longas também suga a sua mãe. Ele esqueceu de alguma coisa? Não são todos esses
milagres sinais da sua infinita sabedoria e poder?

Como o homem foi moldado

Deus fez a noite suceder o dia e marcar o avanço do tempo. Um dia, Ele
chamou Seus anjos e disse: ‘Decidi criar um ser com inteligência como vocês, mas
ele será feito de barro. Vou moldá-lo de terra e na Terra ele viverá. Ele vai tomar
posse das minhas criaturas sobre a Terra e governá-las de acordo com as minhas
leis. Seus filhos se espalharão como formigas pela Terra, eles vão me adorar e me
servir.’

Os anjos ficaram apreensivos, com sua mente lúcida eles previram o que
aconteceria. Os anjos são feitos da substância da pura luz, por isso são
transparentes, não têm uma face sólida onde o mal pode se esconder. São puros e
sem pecado. Sua inteligência privilegiada os faz perceber o sofrimento das outras
criaturas e a vontade do seu Mestre.

Mas como seria o homem? Seu corpo seria robusto e cheio de luxúria como os
cachorros e porcos; sua vontade seria de procriar e se multiplicar, guerrear e matar.
Não será transparente como os raios de Sol, mas nebuloso como as nuvens.
Cérebros de barro serão lentos e túrgidos, os homens serão estúpidos e desonestos,
seu pensamento será sensual em vez de sensível, relutante em aceitar a necessidade,
preguiçoso e tendencioso a se vangloriar. O pior de tudo, ele irá satisfazer seus
sentidos em vez de louvar o criador.

Sua cobiça o levará a roubar frutas e fêmeas dos seus vizinhos e os ciúmes vão
inflamar sua mente. Ele buscará a glória conquistando as terras de Deus, ele terá
prazer em matar. Os anjos inteligentes viam nuvens negras de fumaça sobre a
Terra: o fogo feroz da guerra.

Mas Deus lhes disse que não temessem: ‘Eu farei o homem, eu tudo conheço.
Eu tenho um propósito que se cumprirá depois de milhares de anos, então vocês
saberão a razão para ter criado o homem.’ Os anjos nada mais falaram, mas
cantaram hinos em louvor à sua sabedoria.

Então Deus pegou o barro cinza e sólido, e amassou na forma de homem.


Adão [terra] estava pronto, só uma coisa faltava: vida. Deus pronunciou a palavra
e a vida entrou pela sua boca e se espalhou pelo seu corpo, suas veias começaram a
latejar trazendo cor à sua pele. O sangue chegou às suas mãos e aos seus pés, seus
músculos se aqueceram, e as primeiras centelhas se acenderam no seu cérebro
escuro. Seus olhos tremeram e se abriram como a tampa de um cofre cheio de
joias. Os anjos prenderam a respiração quando viram a luz do Sol entrando pelos
bonitos olhos do varão pela primeira vez. Adão abriu a boca, respirou, sua língua
se moveu e levantou a sua voz proclamando a grandeza do criador: ‘Al-Hamdu
Lillâhi r-Rahmâni r-Rahîm! [Louvado seja Alá, o compassivo, o
misericordioso!].’

Texto extraído de Myths and legends of the Swahili, de Jan Knappert.


O islamismo surgiu como um movimento religioso na cidade de Meca, na
Arábia Saudita, no século VII, quando Maomé começou a convocar as pessoas a se
submeterem à vontade de Deus (Alá), expressa na revelação divina que mais tarde
se tornaria o Alcorão, o livro sagrado do Islã. É impossível precisar quando e como
surgiu o mito da criação árabe reproduzido aqui, algumas referências indicam que
se trata de uma coleção de histórias muito antigas, possivelmente de povos que se
sucederam em terras árabes.[1]

Durante os 22 anos que Maomé viveu depois da revelação, ele lançou as bases
do que seria uma das maiores religiões e de um império que se estenderia da Ásia
Central até a Espanha. Exércitos recrutados entre os habitantes da Arábia
conquistaram os países vizinhos em nome do Islã e fundaram o califado, às
margens dos impérios Bizantino e Sassânida. A língua árabe se difundiu e se
tornou o veículo de uma cultura que incorporava elementos das tradições dos
povos absorvidos.[2]

Sob o domínio dos califas o Islã experimentou uma rápida expansão para
muito além da península, na forma de um vasto império Árabe muçulmano. A
expansão muçulmana no norte da África teve início no século VII com o Califado
Omíada, e a partir daí para a costa leste subsaariana onde vivem os bantus, grupo
etnolinguístico que tem o swahili como a língua banta mais falada. O swahili é
uma das línguas oficiais do Quênia, Ruanda, Tanzânia e Uganda. Outros povos
afluíram para a África subsaariana, vindos da Pérsia, Índia e Madagascar, eram
principalmente mercadores e marinheiros muçulmanos. Os sultões de Omã
governaram Zanzibar por mais de 200 anos, entre os séculos XVIII e XIX. Desde
então, os povos suaílis vivem entre dois mundos, as tradições africanas e o Islã.[3]

Os escritos antigos retratam Maomé como um errante solitário entre os


rochedos, quando do seu primeiro contato com o sobrenatural. Um anjo o
convidou a recitar e ele perguntou: ‘Que devo recitar?’ E a voz respondeu: ‘Recita
em nome de vosso Senhor que criou o homem de um coágulo de sangue. E vosso
Senhor é o mais generoso, que ensinou ao homem, junto ao aprisco, o que ele não
sabia. Não, de fato: certamente o homem se faz insolente, pois se julga
autossuficiente. Certamente em vosso Senhor está a volta.’[4]

A partir daí Maomé começou a comunicar uma sucessão de mensagens,


reveladas pelo anjo de Deus. O mundo ia acabar e Deus julgaria a todos, os
prazeres do Céu estavam reservados para aqueles que se submetessem à vontade de
Deus, mas o Inferno esperava aqueles que a recusassem. Aqueles que aceitaram a
mensagem passaram a ser chamados de muçulmanos. O nome dado a Deus era
Alá, que já era conhecido por ser um dos deuses locais.[5]

O culto aos espíritos ainda é presente em muitos países, qualquer um capaz de


usar o poder da mágica para garantir o favor dos espíritos é invejado. ‘Maomé
pregou para os espíritos’, conta Knappert, ‘converteu lagartos, conversou com
cobras, lobos e pássaros, criaturas cujos corpos são frequentemente habitados por
espíritos, alguns bons, outros maus’. O rei Salomão, chamado de Nabii (profeta)
também comandou os espíritos, baniu os maus e usou os bons para levá-lo pelos
céus, para qualquer lugar que ele quisesse, ou para escavar metais preciosos para
construir seus palácios. Não existe uma distinção muito clara entre os motivos
religiosos e os seculares.[6]

Segundo Al-Udhari, muitas histórias do Alcorão advêm de um período mais


antigo, chamado Jahiliyyah, o período pré-islâmico, que significa literalmente ‘a
idade da ignorância’. Infelizmente muito da literatura Jahili se perdeu, mas alguns
poemas foram preservados, o que permite traçar um paralelo com o Alcorão e
afirmar que ele é essencialmente Jahili na sua concepção do mundo. O autor
afirma que os mitos árabes da criação são tão antigos quanto a história da
civilização na Península Arábica.[7]

As primeiras coisas que Alá criou foram um Trono, da sua própria Luz, e um
Tapete. Quando Alá criou a Caneta e a Tábua, passou 50 mil anos redigindo seu
Plano da Criação, e outros 180 mil anos executando o Plano. Da Luz do seu
Trono, Alá criou o Paraíso, o Inferno, os planetas e os anjos. A Terra, o Céu e os
mares foram criados de uma gema verde (uma pedra preciosa). Os sete céus são
separados por uma distância de 500 anos entre cada nível, assim como os sete
infernos.[8]

As primeiras gerações que habitaram a Terra foram destruídas por Alá por
causa da desobediência. Depois Alá moldou o homem de terra embebida da água
de fontes paradisíacas, então o homem tomou um banho prolongado de tristeza e
um banho breve de alegria. Todos os anjos se prostraram diante da ‘Estátua do
Homem’, exceto Azaazeel, que protestou, pois não quis se prostrar diante de um
ser inferior. Então Alá o baniu do paraíso e trocou seu nome para Iblis (Satã). Alá
então ordenou que a alma, que ele havia criado 4 mil anos antes, entrasse na
Estátua do Homem, e ela ganhou vida e se chamou Adão.[9]

Alá revelou parte da sua infinita sabedoria aos seus profetas, sendo Adão o
primeiro deles. A história de Adão é bem conhecida, ele acorda no paraíso, mas
não está satisfeito, pois queria uma companheira. Adão pega no sono e quando
acorda se depara com a mulher, de extrema beleza, brilhando como o Sol, ali
mesmo no jardim das delícias. Ele a chamou de Hawaa (Eva) ou Vida. Deus
instruiu Adão e Eva a comerem de tudo, exceto da Árvore do Conhecimento da
Procriação da Vida. Eles viviam castamente no paraíso.[10]

Mas Iblis veio para testar o homem. Ele tomou a forma da serpente e primeiro
foi ter com a mulher, alegando que Adão só estava interessado em seu ofício de
profeta e no estudo da língua e da natureza, assim despertou ciúmes em Eva,
insinuando também que ela ficaria sem filhos e que Adão poderia tomar outras
esposas entre as ninfas do paraíso. Foi um golpe baixo, já que a mulher fora feita
para ter filhos e era propensa ao ciúme.[11]

O resto da história é conhecida, Eva come do fruto e o dá a um relutante


Adão, eles caem no sono e quando acordam se encontram não mais no paraíso,
mas na Terra. Um dia Eva reclama que tem algo se mexendo dentro dela. Adão
diz: ‘Quão ignorante és Mulher! Eu tenho que explicar que serás a Mãe da
Humanidade?’ Ao que ela replicou: ‘Então todos os povos da Terra sairão do meu
ventre?’ Ao que Adão respondeu: ‘Sim, e do ventre de todas as pequenas Evas,
quando elas tiverem crescido.’[12]
Khuzwane, divindade dos lovedus da África do Sul, identificado com Maori,
(imagem original: Brookston B. Bulletin).
O CHIFRE DE NGONA

Maori [Deus] criou o primeiro homem e deu-lhe o nome de Muuetsi [Lua].


Colocou-o no fundo de um dsivoa [lago] e deu-lhe um chifre cheio de óleo de
ngona. Muuetsi morava no dsivoa. Muuetsi disse a Maori: ‘Quero ir para a Terra.’
‘Você vai se arrepender’, respondeu Maori.

A Terra era fria e não tinha nada. Não havia grama, nem arbustos, nem
árvores. Não havia animais. Muuetsi chorou e perguntou a Maori: ‘Como é que
vou viver aqui?’ Ao que Maori respondeu: ‘Eu bem que avisei. Você entrou num
caminho no fim do qual morrerá. Mas vou lhe dar alguém como você.’

Maori deu a Muutesi uma moça chamada Massassi, a estrela da manhã, e


disse: ‘Massassi será sua mulher durante dois anos.’ E Maori deu uma pederneira a
Massassi.

À noite, Muuetsi entrou numa caverna com Massassi, que disse: ‘Ajude-me.
Vamos acender o fogo. Vou catar chimandra [gravetos] e você vai fazer a rusica [a
parte móvel do instrumento de fazer fogo] girar.’ Massassi catou chimandra e
Muuetsi fez a rusica girar. Depois que acenderam o fogo, Muuetsi se deitou de um
lado e Massassi do outro. O fogo queimava entre eles.

Muuetsi pensou consigo mesmo: ‘Por que Maori me deu essa moça? O que
devo fazer com essa moça chamada Massassi?’

Quando era noite fechada, Muuetsi pegou seu chifre de ngona. Umedeceu o
dedo indicador com uma gota de óleo de ngona. Muuetsi disse: ‘Ndini chaabuca
mhiri ne mhiri (Vou pular por cima do fogo).’ Muuetsi pulou sobre o fogo.
Muuetsi aproximou-se da moça, Massassi. Muuetsi tocou o corpo de Massassi
com o óleo que estava em seu dedo. Depois voltou para sua cama e dormiu.

Quando acordou de manhã, Muuetsi procurou Massassi, e viu que o corpo de


Massassi tinha inchado. Quando o dia nasceu, Massassi começou a parir.
Massassi pariu gramas, arbustos e árvores. Massassi continuou parindo até que a
Terra ficou coberta de grama, arbustos e árvores.

E as árvores cresceram. Cresceram até que o alto de sua copa alcançou o Céu.
Quando o topo das árvores chegou ao Céu, começou a chover. Muuetsi e
Massassi viviam em meio à abundância, tinham frutas e cereais. Muuetsi
construiu uma casa, fez uma pá de ferro, fabricou uma enxada e cultivou
plantações. Massassi fez armadilhas para os peixes e os pegava com elas. Massassi
pegava lenha e água. Massassi cozinhava. E assim viveram durante dois anos.

Depois de dois anos Maori disse a Massassi: ‘O tempo acabou.’ Maori tirou
Massassi da Terra e a devolveu ao dsivoa. Muuetsi chorou e se lamentou. Chorou
e se lamentou, e disse a Maori: ‘Como vou viver sem Massassi? Quem vai pegar
lenha e água para mim? Quem vai cozinhar para mim?’

E Muuetsi chorou e se lamentou durante oito dias. Então Maori disse: ‘Eu
bem que avisei que você estava indo para a morte. Mas vou lhe dar outra mulher.
Vou lhe dar Morongo, a estrela da tarde. Morongo vai ficar com você durante dois
anos. Depois a levarei de volta.’

E Maori deu Morongo a Muuetsi. Morongo se encontrou com Muuetsi na


cabana. À noite, Muuetsi quis deitar-se do lado que era seu, perto do fogo.
Morongo disse: ‘Não se deite aí. Deite-se a meu lado.’

Muuetsi se deitou ao lado de Morongo. Muuetsi pegou o chifre de ngona e


molhou o dedo no óleo. Mas Morongo disse: ‘Não faça isso. Não sou como
Massassi. Agora besunte suas partes com óleo de ngona. Depois besunte minhas
partes com o óleo de ngona.’ Muuetsi fez o que Morongo lhe pedira. E Morongo
disse: ‘Agora copule comigo.’

Muuetsi copulou com Morongo. Depois Muuetsi foi dormir. Pouco antes do
amanhecer, Muuetsi acordou. Olhou para Morongo para ver se o corpo dela tinha
inchado. Quando o dia nasceu, Morongo começou a parir. No primeiro dia,
Morongo pariu galinhas e galos, ovelhas e carneiros, cabras e bodes.

Na segunda noite, Muuetsi dormiu com Morongo de novo. Na manhã


seguinte, ela pariu antílopes, vacas e bois.

Na terceira noite, Muuetsi dormiu com Morongo de novo. Na manhã


seguinte, Morongo pariu meninos e depois pariu meninas. Os meninos que
nasceram de manhã já estavam adultos ao anoitecer.

Na quarta noite, Muuetsi queria dormir com Morongo outra vez. Mas houve
uma tempestade e Maori disse: ‘Pare com isso. Assim você vai morrer logo.’

Muuetsi ficou com medo. A tempestade passou. Depois que a tempestade


acabou, Morongo disse a Muuestsi: ‘Faça uma porta e depois a use para fechar a
entrada da cabana. Assim Maori não vai conseguir ver o que estamos fazendo. E
você vai poder dormir comigo.’ Muuetsi fez a porta e com ela fechou a entrada da
cabana. Depois dormiu com Morongo. Muuetsi caiu no sono.

Pouco antes do amanhecer, Muuetsi acordou. Muuetsi viu que o corpo de


Morongo estava inchado. Quando o dia nasceu, Morongo começou a parir.
Morongo pariu leões, leopardos, serpentes e escorpiões. Maori viu. Maori disse a
Muuetsi: ‘Eu o avisei.’

Na quinta noite, Muuesti queria dormir com Morongo outra vez. Mas
Morongo disse: ‘Olha, suas filhas já estão adultas. Copule com suas filhas.’
Muuesti viu que eram belas e que estavam adultas, e copulou com elas. Elas
tiveram filhos. Os filhos que nasceram de manhã já estavam adultos à noite. E
assim Muuetsi se tornou o mambo [rei] de um povo numeroso.

Mas Morongo dormia com a serpente. Não paria mais. Vivia com a serpente.
Certo dia, Muuetsi voltou a procurar Morongo e queria copular com ela. Morongo
disse: ‘Não quero.’ ‘Mas eu quero’, respondeu Muuetsi. E se deitou com
Morongo. A serpente estava embaixo da cama de Morongo e mordeu Muuesti.
Muuetsi adoeceu.

Depois que a serpente mordeu Muuetsi, ele adoeceu. No dia seguinte não
choveu. As plantas murcharam. Os rios e lagos secaram. Os animais morreram. As
pessoas começaram a morrer. Muita gente morreu. Os filhos de Muuetsi
perguntaram: ‘O que fazer?’ ‘Vamos consultar o hacata [dado sagrado]’, disseram
os filhos de Muuetsi.

E os filhos de Muuetsi consultaram o hacata. O hacata disse: ‘Muuetsi, o


mambo, está doente e definhando. Mandem Muuetsi de volta ao dsivoa.’

E então os filhos de Muuetsi o estrangularam e o enterraram. Enterraram


Morongo com Muuetsi. Depois escolheram outro homem para ser o mambo.
Morongo também viveu durante dois anos no Zimbabué [corte real] de Muuetsi.

Texto extraído de A gênese africana: contos, mitos e lendas da África de Leo


Frobenius e Douglas C. Fox, tradução de Dinah de Abreu Azevedo.
O etnólogo alemão Leo Frobenius é considerado um dos maiores especialistas
em arte pré-histórica. Durante sua vida percorreu, por diversas vezes, a África
desde o deserto do Saara até a África do Sul, estudando a arte rupestre e os mitos
dos povos africanos. Ele mesmo escreveu: ‘Há um vínculo entre o presente e o
passado mais poderoso do que pirâmides e bronzes e esculturas e manuscritos: a
memória dos homens que não aprenderam ainda a escrever, ou que ainda não
tiveram o tesouro das lembranças arruinado pelo uso excessivo da palavra
escrita.’[1]

Algumas das histórias foram transmitidas de geração em geração, como o mito


do chifre de ngona, que é uma epopeia da criação centrada no homem e na sua
relação com a natureza, contada pelos urrongas do Zimbábue (ou Zimbabué),
antiga Rodésia do Sul.

Em Zimbábue, nas encostas de Sangano, vivem os maconis, um povo urronga,


lá viveu um rei chamado Madsivoa. Conta-se que o povo de Madsivoa levava uma
vida difícil por ter perdido o instrumento de acender o fogo, assim eram obrigados
a comer carne e peixe crus. Aquele instrumento não era nenhuma pederneira
primitiva, mas um chifre, chamado moto ui ngona, cheio de óleo muschonga,
considerado mágico, fechado com uma tampa. Se a tampa fosse removida, os gases
que saíam eram fortes o bastante para fazer arder a madeira seca. ‘Cuidar do
instrumento era tarefa da filha do rei e de uma musarre [sacerdotisa]. Um dia, por
causa de uma briga, a musarre escondeu o instrumento e morreu sem revelar onde
estava. Daí as dificuldades pelas quais o povo de Madsivoa passava’.[2]

Diz a lenda que o óleo de ngona era usado para fazer os relâmpagos. Seus
poderes eram tais que uma única gota foi suficiente para fazer a primeira mulher
gerar todo o reino vegetal.

Os urrongas de Rusape contam de uma montanha chamada Chirigui e de um


rei que desejava fazer da Lua um ornamento para pendurar no pescoço. Ele tentou
construir torres e empilhar montanhas, mas falhou porque as torres
desmoronavam e as montanhas não se podiam empilhar. O rei então subiu ao
topo de Chirigui, quando a Lua surgiu ele quebrou os chifres, mas a Lua criou
novos chifres e continuou seu caminho. Exausto o rei procurou uma caverna para
descansar e acabou morrendo. De fato, um par de chifres foi encontrado por
pesquisadores numa caverna de Chirigui, hoje eles se encontram no Afrika Archiv
em Frankfurt.[3]

A África apresenta uma extraordinária mistura colorida de variadas crenças.


As seguidas invasões e a catequização dos povos nativos erradicaram uma rica
variedade de mitos, mas graças ao trabalho incansável de estudiosos como
Frobenius alguns deles chegaram até nós.[4]

Povos nativos do Zimbábue e de Moçambique têm Mwari como o seu deus


supremo, trata-se do mesmo deus maconi Maori. Com a cristianização da África,
Mwari passou a ser o termo usado pelos cristãos falantes de shona para designar o
Deus da Bíblia, tanto católicos quanto protestantes. Eles frequentemente se
referem a Mwari Wokudenga (Deus do Céu) e Mwari Baba (Deus o Pai).[5]

Voltando a nossa história, Massassi, a estrela da manhã, foi criada por Maori
para ser companheira de Muuetsi, a personificação da Lua. Massassi se tornou
progenitora das árvores, gramas e arbustos, depois de dois anos Maori lhe deu
outra mulher, Morongo, a estrela da tarde. Morongo deu à luz primeiro aos animais
domésticos, depois pariu meninos e meninas. As crianças que nasciam pela manhã
já eram adultas ao anoitecer. Depois, por causa da desobediência de Muuetsi e
Morongo, ela deu à luz aos animais selvagens: leões, leopardos, serpentes e
escorpiões. Muuetsi passou a copular com suas filhas e se tornou o mambo (rei) de
um povo numeroso. Morongo já não paria e dormia com uma serpente, que
acabou mordendo seu marido enquanto ele tentava força-la. Assim Muuetsi
adoeceu e terminou sendo estrangulado por seus filhos. Outro mambo foi
escolhido para seu sucedê-lo.

De fato, o regicídio por estrangulamento era prática comum na região que


viria a ser a Rodésia do Sul, quando os portugueses lá aportaram em 1498.

O deus criador assume uma identidade diferente em cada povo, mas as


histórias têm sempre alguns elementos em comum: um ovo cósmico, serpentes
primevas, xamãs, animais com poderes sobrenaturais, entre outros. Citarei apenas
alguns exemplos de deuses criadores: do povo tutsi, de Ruanda é Imana; dos
lubas, no Zaire, é Kalumba; dos ibos da Nigéria é Chuku e dos bushong do Congo
é Bumba.[6]

Destacarei dois deles: primeiro Imana, o deus primitivo, que os ruandeses


associam ao Deus cristão. A tradição diz que no princípio Imana criou duas
terras, a primeira nas nuvens, entre o Sol e as estrelas, a segunda ele modelou com
as mesmas linhas, mas sem beleza ou alegria, que é a Terra onde vivemos, cheia de
miséria, sofrimento, trabalho e revolta. Antes dessa dupla criação só existia Imana.
Ele criou todas as coisas no Céu, plantas, animais e homens, que viviam em
harmonia com Imana, mas eram estéreis. Então Nyinakigwa, a mulher, pediu e
recebeu de Imana três filhos, moldados de barro, com a condição de manter
segredo. Como ela não foi capaz de mantê-lo, contando o segredo de Imana à sua
irmã, seus filhos foram punidos, expulsos do paraíso celestial e enviados para a
Terra, onde receberam as plantas para cultivar e os animais que Imana criara no
Céu.[7]

O segundo destaque é Bumba, o peculiar deus congolês, também chamado de


Mbombo. A história conta que no início Bumba estava sozinho em meio ao caos, a
escuridão e as águas primordiais cobriam toda a Terra. Bumba tinha a forma de
homem, era branco e seu tamanho era enorme. Um dia ele começou a sentir uma
dor intensa no estômago e começou a vomitar. Primeiro ele vomitou o Sol, depois
a Lua e as estrelas, assim criou a luz. O calor do Sol fez evaporar a água, criando
nuvens e as colinas secas emergiram. Bumba começou a vomitar de novo trazendo
nove animais: o leopardo, a águia, o crocodilo, o peixe, a tartaruga, um animal
parecido com o leopardo negro, a garça-real branca, o escaravelho e a cabra.
Bumba também vomitou muitos homens, apenas um era branco como ele e foi
chamado Loko Yima. Os animais vomitaram outros animais e popularam a Terra,
e um dos filhos de Bumba vomitou as plantas. Assim foi criado o mundo como
conhecemos hoje.[8]
PARTE III

europa, o berço da
cultura ocidental

Grécia, Vikings e Eslavos


Zeus aponta seu raio para um gigante (não mostrado), figura de um vaso
grego de aproximadamente 470 AC.
TEOGONIA DE HESÍODO

Os deuses primordiais

No princípio de tudo, surgiu o Caos. Depois dele vieram Gaia [a Terra] de


seios amplos e alicerce inabalável que sustenta os picos nevados do Olimpo;
Tártaro [o submundo] nevoento das profundezas da Terra; e Eros [desejo], o mais
belo entre os deuses imortais, aquele que alvoroça os membros e sobrepuja a
mente e os conselhos sábios de todos os deuses e dos homens. Do Caos nasceram
Érebos [a escuridão do submundo] e a Noite negra [a escuridão da Terra]; da Noite
nasceram Éter [o éter, o brilho do espaço] e Dia [o brilho do mundo], que ela
concebeu da sua união em amor com Érebos.

Gaia, por si mesma, deu à luz Urano [o Céu], para que pudesse envolvê-la e
cobri-la completamente e ser um lar seguro para os deuses para todo o sempre.
Então ela pariu altas montanhas e belos abrigos das deusas ninfas que moram nas
montanhas frondosas. E também pariu o abismo infrutífero com sua onda furiosa,
Póntos [o mar], sem desejo nem amor.

Depois pariu, do coito com Urano: Oceano, de redemoinhos profundos, Coios,


Crios, Hipérion, Jápeto, Téia, Réia, Têmis [lei], Mnemósina [memória], Febe, de
áurea coroa, e a amorosa Tétis [esses são os Titãs]. Depois deles nasceu Cronos
[tempo], o astuto, o mais jovem e o mais terrível dos seus filhos, que odiava seu
pai.

Pariu ainda os Ciclopes de soberbo coração: Brontes [trovão], Steropes [raio] e


Arges [brilho], foram eles que deram a Zeus o trovão e forjaram o raio. Em tudo se
pareciam com os deuses, mas tinham apenas um olho no meio da testa, por isso
eram chamados Ciclopes, pelo seu olho circular. Eram engenhosos, vigorosos e
violentos.

De novo outros três filhos nasceram da união da Terra e do Céu: Cotos,


Briareu e Giges. Dos seus ombros saíam cem braços e cinquenta cabeças, eram
enormes, violentos e tinham uma força irresistível. De todos os filhos nascidos de
Gaia e Urano eram os mais terríveis, seu pai os odiou desde o primeiro dia.

História do Céu e de Cronos

Assim que nasciam, Urano escondia de Gaia seus filhos em um lugar secreto
não permitindo que vissem a luz e se alegrava com sua obra maligna. Gaia sentia-
se atulhada e gemia, ela então urdiu um plano, moldou uma grande foice de sílex e
disse aos filhos: ‘Meus filhos, e de um pai insensato, se me obedeceres devemos
punir o vil ultraje de vosso pai.’ Ousado, o grande Cronos respondeu: ‘Mãe, eu
prometo que cumprirei esta obra, não tenho por ele reverência pelas coisas
vergonhosas que fez.’ E Gaia se alegrou em espírito, o escondeu e pôs nas suas
mãos a foice.

O poderoso Urano veio trazendo a noite e envolvendo Gaia, ávido de amor.


Ei-lo que se aproxima e se estende completamente sobre ela. Mas o filho, saindo
do seu esconderijo, esticou a mão esquerda, enquanto com a direita pegava a
enorme foice de dentes afiados, bruscamente ceifou o membro do seu pai e em
seguida o jogou ao acaso, para trás. Porém, salpicos sangrentos jorraram dele e
Gaia os recebeu a todos; com o passar do ano ela gerou as Erínias, os gigantes e as
ninfas chamadas Freixos. Quanto aos testículos, tão logo Cronos os cortou com a
foice, atirando-os da terra às ondas incessantes do mar, eles foram levados ao largo,
por muito tempo. Uma espuma branca se espalhou do esperma que saía do
membro divino e, dessa espuma, nasceu uma jovem, a bela e adorável Afrodite
[deusa do desejo e sexualidade].
A linhagem dos deuses

Os Titans popularam a Terra com semi-deuses ao copular com as ninfas ou


entre eles. Tétis gerou de Oceano os rios rodopiantes: Nilo, Alfeu e Erídano. […]
Outros tantos rios que fluem fragorosos são filhos de Oceano e Tétis.

Téia gerou Helios [o Sol], Selene [a Lua] e Eos [a aurora], que brilha a todos os
humanos e aos deuses imortais que vivem no Céu, de Hipérion ela os gerou em
amor. Aurora deu à luz o brilhante Zéfiro, os ventos de ânimo violento, enquanto
Eos deu à luz Eósforo, a estrela da manhã, e todas as estrelas brilhantes que coroam
o Céu. […]

O nascimento de Zeus

Rea se uniu a Cronos e lhe deu filhos gloriosos: Héstia, Deméter e Hera [a
deusa dos olhos bovinos], de sandálias douradas; o forte Hades [o deus do mundo
inferior], de coração impiedoso que sob o chão habita; o troante Treme-Terra; e o
sábio Zeus, pai dos deuses e dos homens, sob cujo trovão toda a Terra se abala. E
engolia-os o grande Cronos, tão logo cada um deles descia do ventre sagrado da
mãe até seus joelhos, tramando para que outro dos magníficos Uranidas não
tivesse entre os imortais a honra de ser rei. Ele sabia, graças a Gaia e Urano, que era
seu destino sucumbir um dia nas mãos de seu próprio filho. Por isso, vigilante, ele
montava guarda sem cessar, à espreita, para engolir todos os seus filhos, e uma dor
terrível invadia Rea.

Quando estava para nascer o filho mais jovem, Rea suplicou aos seus pais
queridos, a Terra e o Céu estrelado, a tecerem um ardil para que oculta pudesse
conceber e que o grande e ardiloso Cronos recebesse o justo castigo pelo mal que
fez engolindo os filhos. Eles escutaram e atenderam à filha querida, enviaram-na a
Licto, nas ricas terras de Creta, quando já estava pronta para conceber. Ali ela
tomou a criança em seus braços, a escondeu numa gruta íngreme sob o covil da
terra divina no monte das Cabras. Então ela encontrou uma pedra grande, a
envolveu em faixas de pano e entregou ao soberano Uranida. Cronos de pronto
tomou o embrulho em suas mãos e o engoliu, o desgraçado não imaginava que seu
filho estaria seguro, em breve iria vencê-lo e reinaria sobre os deuses imortais.

O vigor e a glória do príncipe cresciam rapidamente; com o passar dos anos,


enganado pelas instigações da Terra, o grande e ardiloso Cronos vomitou sua prole,
primeiro veio a pedra, que ele havia engolido por último. Em Delfos Zeus cravou
aquela pedra, ao pé do Parnaso, para servir de sinal e maravilha aos mortais. E
libertou os filhos do Céu a quem o pai, em desvario havia prendido.

A história de Prometeu

Jápeto desposou Clímene de belos tornozelos, filha de Oceano, e entraram no


mesmo leito. Ela então gerou Atlas [ou Atlante] de ânimo violento; ela também
gerou o mui glorioso Menécio e o astuto Prometeu, cheio de artimanhas, e o
desacertado Epimeteu, que desde o começo foi mal aos homens que comem pão,
pois foi ele quem primeiro tomou de Zeus a mulher, a virgem que ele havia
formado.

Menécio era soberbo, então Zeus o atingiu com um raio lúgubre e o mandou
para o Érebos, por causa da sua estultícia. Quanto a Atlas, ele sustenta o vasto Céu
com a cabeça e braços incansáveis, de pé nos confins da Terra, ante as Hespérides
cantoras; este é o destino que o sábio Zeus lhe atribuiu. E ao astuto Prometeu ele
prendeu com laços fortes e cruéis e sobre ele incitou uma águia de longas asas; ela
devorava seu fígado imortal, mas esse crescia à noite, igual ao que fora comido de
dia. O valente Héracles [Hércules], filho de Alcmena de belos tornozelos, matou o
pássaro e libertou o filho de Jápeto do seu longo tormento, não sem o
consentimento de Zeus, o sublime soberano, para que a glória do tebano Héracles
fosse maior sobre a Terra. Assim ele honrou seu famoso filho e pôs fim ao rancor
que tinha, porque Prometeu ousou se igualar em sagacidade ao pujante Zeus.

Em Mecona, Prometeu ofereceu um banquete ao grande Zeus, matou um belo


touro, porém intentou trapacear; diante dele colocou uma porção de ossos
brancos e sobre eles uma camada brilhante de gordura, as carnes e vísceras ele
cobriu com pele e pôs à parte. O pai dos homens e dos deuses disse: ‘Filho de
Jápeto, glorioso entre os reis, dividiste as partes de forma muito injusta.’ Ao que
respondeu o astuto Prometeu: ‘Zeus, o de maior glória e poder entre os deuses
perenes, toma qualquer uma destas porções, como mandar o seu coração.’ Mas
Zeus, cuja sabedoria é eterna, percebeu o ardil e em seu coração previu o mal que
viria sobre os homens mortais. Com as duas mãos ele ergueu a porção que tinha a
gordura por cima e se irou quando viu os ossos brancos sob a dolosa arte; por isso
as tribos dos homens sobre a Terra queimam ossos brancos aos deuses imortais
sobre os altares.

Colérico, Zeus falou a Prometeu: ‘Filho de Jápeto, o mais hábil em seus


desígnios, ainda não esqueceste a dolosa arte.’ Negou, pois, Zeus a força do fogo
infatigável aos homens mortais, que sobre a Terra habitam. Porém o bravo filho
de Jápeto o enganou e furtou o fogo infatigável em um caule oco de erva. Zeus se
enraiveceu em espírito quando viu entre os homens o brilho distante do fogo e
intentou um mal aos homens: de terra ele formou uma virgem pudente, Atena de
olhos glaucos. Adornou a deusa com vestes alvas e um véu laborioso que descia da
cabeça, ao redor de Palas Atena [deusa da guerra e da sabedoria] pôs coroas de
flores novas da relva, na sua cabeça colocou uma coroa de ouro, […] e ela brilhava
com magnífica beleza e maravilhados estavam os deuses imortais e os homens
mortais ao virem aquela que seria ardil incombatível aos homens. Dela descende a
geração de mulheres que vivem entre os homens mortais. […]

Não se pode furtar nem superar o espírito de Zeus, pois nem o filho de Jápeto,
o benéfico Prometeu escapou-lhe à pesada cólera, mas sob coerção cadeias pesadas
o prenderam, apesar dos seus estratagemas.

Teogonia de Hesíodo, traduções de J. A. A. Torrano (Teogonia: a origem dos


deuses) e de Evelyn-White (Homeric Hymns, Epic Cycle).
Teogonia, de Hesíodo, é a mais completa obra da Grécia antiga que versa sobre
as origens dos deuses e a história da criação. É também conhecida por Genealogia
dos Deuses e foi escrita no século VIII AC. Devemos a Hesíodo e a Homero muito
do que sabemos sobre os mitos gregos. O poema original é bastante extenso,
possui 1.022 versos, portanto procurei trazer aqueles mais representativos, de
acordo com o nosso tema.

O poema de Hesíodo é a chave para se entender a origem do mundo segundo


os gregos da antiguidade, por meio das sucessivas gerações de deuses que
personificavam fenômenos ou aspectos básicos da natureza.[1]

A Titanomaquia, a luta de Titãs, retratada em detalhes na Teogonia, é uma


batalha épica que marca o início da dinastia de Zeus e Hera. Zeus saiu vitorioso da
grande peleja contra os Titãs, que durou 10 anos (ou talvez 10 séculos), depois que
usou de um estratagema. Métis, filha de Oceano, serviu uma bebida a Cronos que o
fez regurgitar os irmãos de Zeus: Poseidon, Hades, Hera, Deméter e Héstia, que
então juntaram suas forças com Zeus. Ele foi apoiado também pelos Ciclopes e
pelos Centímanos, que eram gigantes com cem braços. Assim Zeus subjugou seus
adversários e estabeleceu o seu reinado. Outra guerra ainda iria eclodir, a
Gigantomaquia, a batalha dos deuses olímpicos contra os gigantes que surgiram
do sangue salpicado de Urano. De novo Zeus saiu vitorioso.[2]

Encontramos um segundo relato para o surgimento de Atena no poema.


Segundo Hesíodo, Zeus temia que um dos seus filhos o destronasse, como ele
fizera com o próprio pai. Por isso engoliu Métis (inteligência), sua primeira esposa,
na esperança de absorver sua inteligência e sabedoria. Quando começou a sentir
uma forte dor de cabeça, outro deus deu-lhe uma machadada na cabeça e dela saiu
Atena de olhos glaucos, adulta e armada, soltando um grito de guerra. A criança
que o destronaria nunca chegou a nascer.[3]
Depois Zeus desposou Têmis, Eurímone, Deméter, Memória, Leto e por
último Hera, que foi a mãe de Hebe, Ares e Ilitía. Leto gerou Apolo, deus da luz, e
Ártemis, irmã gêmea de Apolo, a indomável protetora dos animais. Hera, por raiva
e para desafiar o marido, gerou sozinha Hefesto, deus da metalurgia e do fogo.
Maia, filha de Atlas subiu ao leito sagrado de Zeus e pariu o ínclito Hermes,
arauto dos imortais.

Zeus também teve inúmeras consortes humanas, tais como Sêmele, Alcmena,
Europa, Leda, Io, Antíope e Dânae. Sêmela, filha de Cadmo, o fundador de Tebas,
unida a Zeus em amor gerou o esplêndido Dioniso, ‘multialegre’ e imortal.
Alcmena, rainha de Tirinto e mulher de Anfitrião, foi enganada por Zeus, que
atraído por sua beleza tomou a forma do marido dela enquanto ele estava longe na
guerra, ela então gerou a força de Héracles. Dânae é a mãe do herói Perseu e Leda,
princesa de Esparta, de Zeus gerou Pólux, Castor e a famosa Helena de Troia, que
tinha a reputação de ser a mulher mais bela do mundo, por quem se deu a guerra
de Troia, na qual morreram os heróis Heitor e Aquiles.

Vimos como Prometeu roubou o fogo em favor dos humanos e como ele foi
severamente punido por Zeus. Outras fontes contam que Prometeu moldou um
boneco de barro, procurando fazê-lo semelhante aos deuses em todos os seus
atributos. Ao ver o boneco, os deuses resolveram presenteá-lo, cada um com uma
dádiva, assim um lhe concedeu a vaidade do pavão, outro a timidez da lebre, outro
a ferocidade do tigre, outro a astúcia da raposa e assim por diante. Finalmente, o
grande Zeus decidiu animar aquele boneco e permitiu que Prometeu moldasse
muitos outros para que não ficassem sós. Assim nasceram os primeiros humanos,
que não eram nem homem nem mulher, pois eram imortais e não precisavam se
multiplicar.[4]

Depois de castigar Prometeu, Zeus condenou os homens à perda da


imortalidade dizendo-lhes: ‘Eu vos abandonarei à sua própria sorte e sina.’
Ordenou que os deuses se retirassem e que os homens fossem abandonados na
Terra. ‘De ora em diante os deuses apenas sugerem o destino a cumprir. Aqueles
que o seguirem, acalantados serão, mas aqueles que o negarem, arrastados serão.
Declaro ainda que na Terra tudo agora se paga; o homem obterá o alimento com o
suor do seu rosto; uma desgraça nunca virá só, ela será tripla. Ordeno finalmente
que se vistam, pois sua nudez não revela a essência, ao contrário, na aparência
escondem a verdade.’[5]

A primeira mulher foi Pandora, criada por Hefestos a pedido de Zeus (algumas
fontes afirmam que as mulheres já existiam antes disso). Ela ganhou de Atena
vestes de ouro, de Afrodite recebeu ‘a irresistível graça que seduz todo homem e
para seu leito o conduz’; já Apolo concedeu-lhe a voz do rouxinol ‘que adoça o
mais cruel coração’ e Hermes a ensinou como iludir. Em Os trabalhos e os dias,
Hesíodo relata o surgimento de Pandora: ‘Pandora! Tens todos os bens, mas és
um belo mal! Um mal amável, o reverso de um bem. És o contrário e a
companheira dos humanos; tu trazes a esperança no ventre, mas também o
amanhã incerto. Incitas ao trabalho, pois não suportas a miséria. Em teu ventre
armazenas o fruto do esforço e gastas a força do macho; consomes seu fogo num
dessecamento lento e implacável.’[6]

Zeus ao dar a famosa caixa a Pandora a alertou para que jamais fosse aberta,
pois nela residiam a esperança, mas também todos os males. Mas Pandora se casou
com Epimeteu, irmão de Prometeu; se Prometeu era prudente e pensava antes de
agir, Epimeteu era justo o contrário, ou seja, o pai dos tolos, daqueles que agem e
depois pensam. Foi Epimeteu quem, curioso, abriu a ‘caixa de Pandora’ e deixou
escapar dela os males que se espalharam sobre toda a humanidade. Só restou
dentro dela a esperança.[7]
Odin monta seu cavalo de oito patas chamado Sleipnir, ilustração de um
manuscrito islandês do século XVIII.
VÖLUSPÁ, O POEMA NÓRDICO DA
CRIAÇÃO

Eu peço a atenção de toda a sagrada descendência, nobres e modestos filhos de


Heimdall [sentinela dos deuses]; eu fui chamada, Valfodr [Odin; Pai dos Mortos],
para bem narrar os antigos acontecimentos do mundo, como para lembrar dos
tempos longínquos.

Eu me lembro dos gigantes nascidos no primórdio, aqueles que outrora a mim


criaram; nove mundos eu lembro [os mundos dos deuses, dos elfos, dos homens,
dos gigantes, do fogo, dos elfos negros, dos mortos, dos Wanes e dos anões], os
nove sustentados pela ilustre Árvore Mediadora [Yggdrasil; simboliza o
Universo], cujas raízes fortes penetram no chão.

Foi no começo dos tempos, quando nasceu Ymir [o gigante cujo corpo deu
origem ao mundo], não havia areia, nem mar e nem ondas gélidas; não havia a
Terra e nem o Céu acima, apenas um vazio enorme, grama não havia em lugar
algum.

Primeiro os filhos de Borr [Odin, Vili e Vé] ergueram a Terra, e criaram a


gloriosa Midgard [a Terra-média; o mundo dos homens]; do Sul brilhou Sól
[deusa que representa o Sol], aquecendo as pedras da terra, assim o chão ficou
coberto com o verde alho-poró.

Do Sul se lançou Sól, a companheira de Máni [a Lua, irmão de Sól], sua mão
direita estendida até os limites do Céu; Sól não sabia onde estava a sua morada,
nem Máni sabia que poder ele tinha, nem as estrelas conheciam seu lugar no Céu.

Então os deuses se sentaram em assembleia, as divindades sagradas, para


debaterem sobre isso; à Nótt [Noite] e à sua prole deram nomes, eles foram
chamados Morginn, Midjan Dagr, Undorn e Aptann [Manhã, Meio-dia, Tarde e
Crepúsculo] para contar os anos.

Os Ӕsir se reuniram em Idavoll [campo das façanhas, lugar de encontro dos


deuses], e edificaram altares e templos de madeira; acenderam suas forjas, forjaram
riquezas, moldaram pinças e fizeram ferramentas.

No campo jogavam em tabuletas, eram felizes, não sentiam falta de ouro; até
chegarem três donzelas gigantes, muito poderosas, de Jotunheim [reino dos
gigantes].

Então os deuses se sentaram em assembleia, as divindades sagradas, para


debaterem sobre isso; que dos anões deveriam criar o chefe, do sangue de Brimir e
das pernas de Bláinn [Brimir e Bláinn são também nomes de Ymir].

Assim foi que Motsognir se tornou o mais estimado de todos os anões, o


segundo era Durinn; seres com forma humana foram moldados na terra pelos
anões, assim disse Durinn. […]

A lista dos anões, da estirpe de Dvalin, aos descendentes dos homens contados
desde Lofar; eles que saíram dos salões de pedra de Aurvangar, para habitar em
Joruvellir. […] Esses são enaltecidos enquanto viverem os homens, os ditos da
parentela de Lofar.

Até que vieram três da morada dos deuses, poderosos e graciosos; Ӕsir [Odin,
Hænir e Lodurr] à casa, encontraram na Terra Askr e Embla [o primeiro casal
humano] desprovidos de força e de destino.

Eles não tinham respiração, nem tinham espírito, nem calor [sangue] ou
movimento, sequer boa cor; Odin concedeu a respiração, Hænir concedeu o
espírito e Lodurr concedeu o calor e a boa cor.
Eu conheço o freixo que se ergue chamado Yggdrasill, uma grande árvore,
respingando com água branca; de onde vem o orvalho, que cai sobre os vales
sempre verdes, sobre a fonte de Urd.

Dali provêm as damas de muita sabedoria, três do lago que está abaixo da
árvore; a primeira se chama Urd [deusa do passado], a segunda Verdandi
[presente] - em uma tábua escreviam - e Skuld [futuro] é a terceira; elas ditavam as
leis, escolhiam as vidas dos filhos, dos homens e definiam seus destinos.

Voluspa: a profecia da vidente, Edda poética; tradução de Henry Adams


Bellows para o inglês e de Pablo Gomes de Miranda e Márcio Alessandro Moreira
para o português.
Relegado desde o advento do cristianismo na Escandinávia, o Códex regius foi
redescoberto em 1643 pelo bispo de Skalhot em uma antiga fazenda islandesa.
Escrito em nórdico antigo no século XIII, continha uma coleção de poemas
míticos do período viking, que remontam à época pré-cristã. A compilação desses
poemas é atribuída a Saemund Sigfusson, por isso conhecida como A Edda
(poesia) de Saemund, a Edda antiga, ou Edda poética. Isso porque existe uma
outra obra, de autoria de Snorri Sturluson, conhecida como A Edda em prosa, que
foi escrita por volta de 1220 e é a mais importante fonte de informação sobre a
mitologia nórdica. Voluspa (a Profecia da Vidente) é a primeira parte da Edda
poética, que conta uma magnífica história do começo e do fim do mundo. As
outras partes são Grimmismal, na qual o deus supremo Odin fala
disfarçadamente com Grimmir (o encapuzado) e Havamal, que conta a história
do autoenforcamento de Odin.[1]

Conhecidos como ‘homens do Norte’, ou nórdicos, os povos que habitavam a


Escandinávia aterrorizaram a Europa entre os anos 780 e 1070. Mais tarde eles
ficariam conhecidos como vikings, nome que provavelmente deriva de Vik, cidade
localizada no sul da Noruega. As primeiras migrações para a região que hoje
corresponde à Dinamarca, Noruega e Suécia, aconteceram por volta de 2000 AC,
envolvendo tribos germânicas que se estabeleceram como agricultores e
pescadores. O clima inóspito do Norte e o crescimento da população os levou à
pirataria e às invasões, valendo-se do vasto conhecimento que tinham de
navegação oceânica. Foram responsáveis por grandes derrotas dos legionários
romanos, além de terem conquistado a costa francesa na Normandia e invadido a
Inglaterra de Guilherme, o Conquistador, em 1066. O ramo sueco dos vikings
migrou para o Leste Europeu e ficou conhecido como ‘rus’, de onde deriva o
termo ‘Russia’.[2]

Os vikings chegaram a tomar grande parte das ilhas britânicas e colonizaram a


Islândia, onde a cultura nórdica antiga floresceu. Somente no ano 1000 a
Assembleia islandesa aprovou o abandono da antiga religião em favor do
cristianismo, mas os antigos deuses continuaram sendo cultuados ainda por um
bom tempo. Existem relatos de testemunhas oculares de sacrifícios a Odin no
templo de Uppsala, na Suécia, em 1070, séculos depois de terem se tornado
cristãos.[3]

O universo mitológico dos nórdicos é retratado pelas ‘Eddas’ em três níveis.


No primeiro nível, superior, ficava Asgard, onde viviam os Aesir, os deuses
guerreiros, tendo à frente Odin, o deus supremo do panteão nórdico, senhor da
cura, da vida e da morte, pai de Thor, Balder e de outros deuses, ele governava a
morada dos deuses. Em Asgard ficava Valhala, o paraíso dos combatentes, o
grande salão onde os guerreiros mortos combatiam, tornavam a morrer,
ressuscitavam e se banqueteavam com carne de porco e hidromel. As Valquírias,
mensageiras de Odin, conduziam os guerreiros ao Valhala e os serviam. Neste
nível também viviam os Vanir, deuses da fertilidade, os elfos, que viviam em
Alfheim, e os mortos honrados, que iam para um lugar chamado Gimli. Conta-se
que Valhala tinha 540 portas, por onde passavam 800 guerreiros quando iam
para a guerra.[4]

O mundo dos humanos era o nível intermediário do Universo, era chamado


Migdard. Cercado pelo oceano onde vivia a serpente de Migdard, filho do deus
Loki, que era tão grande que cobria toda a Terra e formava um cinturão
mordendo a própria cauda, era o arqui-inimigo de Thor. Do outro lado do oceano
viviam os gigantes, inimigos dos Aesir, os elfos escuros e os anões viviam em
Nidavellir (morada sombria) e em Svartalfheim, ao Norte.[5]

No nível mais baixo do Universo ficava Nilheim, a casa dos mortos perversos,
lugar de escuridão extrema, onde a cidadela chamada Hel era dominada por uma
rainha monstruosa que também se chamava Hel. A árvore colossal chamada
Yggdrasil era o eixo desse universo mitológico, suas raízes chegavam a Hel, no
tronco ficava Migdard e no topo Asgard. Na base da árvore ficavam diversas
fontes e entre elas a fonte de Urd, onde as Nornas tecem o destino dos deuses e dos
homens, e a fonte de Mimir, deus da sabedoria.[6]

A Profecia da Vidente é uma narrativa em forma de monólogo, feito por uma


vidente (Volva) que é chamada dos mortos pelo deus Odin para contar os fatos do
passado e do futuro, que resultariam na morte e renascimento dos habitantes do
universo mitológico nórdico, incluindo homens, deuses, anões e gigantes. A
vidente é, ela mesma, muito antiga, foi criada pelos gigantes e considerada uma
‘mulher sábia’, ao longo do poema ela revela vários mistérios por meio de
metáforas. A vidente apresenta uma longa lista dos anões criados por Motsognir
(suprimida neste texto), bem como os primeiros humanos Askr e Embla. Snorri
conta que eles foram feitos dos troncos de árvores sendo necessário a combinação
de forças dos deuses para produzir a vida.[7]

Pouco se sabe sobre Borr (Bur), o pai dos deuses Odin, Vili e Ve, apenas que
sua esposa era Bestla, filha de Bolthorn, como conta o Havamal, e só. Vili e Ve
também não são muito mencionados nas Eddas, é possível que sejam os mesmos
Honir e Lothur, que também aparecem ao lado de Odin. Lothur pode ser um
antigo nome de Loki, o filho traiçoeiro, mais engenhoso de Laufey, que foi
adotado por Odin, para arrependimento do grande deus.[8]

Odin, também conhecido como Wodan, Wotan ou Woden pelos germânicos


e anglo-saxões, é o rei do panteão nórdico, aquele que pode ver tudo o que há em
todos os mundos do Universo, vive em Asgard com sua mulher Frigg. É chamado
também de Pai dos Mortos, pelas suas qualidades xamânicas e pelo seu
conhecimento mágico, ele recebe os bravos guerreiros vikings em Valhala. Odin
tinha vários papéis como deus da sabedoria, da guerra, da morte, da magia, da
poesia e da profecia. O Havamal descreve o misterioso episódio do seu auto
sacrifício, quando ele se enforca na árvore Yggdrasill, como assinala Jaan Puhvel
(citado por Leeming): ‘Sei que pendi da árvore batida pelo vento, durante nove
dias e noites. Fui espetado por uma lança e entregue a Odin, eu mesmo ofertado a
mim mesmo.’ Com isso, deu-se início aos ritos de enforcamento e esfaqueamento
associados ao culto a Odin. O Voluspa conta que Odin sacrificou um de seus olhos
em troca de um gole do líquido mágico da fonte de Mimir, por isso ele é retratado
com um único olho, mas era um olho poderoso, que tinha o poder de paralisar.[9]

O segundo na hierarquia de Asgard e o mais popular entre os deuses nórdicos


é Thor, filho de Odin e da deusa terrestre Fyorgyn (Terra). Thor é o deus do Céu e
do trovão, protetor da lei e da ordem de Midgard. Enquanto Odin é imprevisível
e traiçoeiro, Thor é confiável e gentil, mas inflexível na luta dos deuses contra os
gigantes. Era imenso, de barba vermelha, olhos flamejantes e um apetite voraz.
Levava consigo seu poderoso martelo, chamado Mjollnir, ‘o destruidor’, uma
arma mortífera que simboliza os raios e trovões. Thor morreu na batalha de
Ragnarok, afogado no veneno de sua própria vítima, a serpente do mundo,
Jormungand. Mas ele foi eternizado num dos dias da semana, pois do seu nome
deriva a palavra Thrusday, quinta-feira em inglês.[10]
Detalhe da obra Creation of the Earth, de Maxim
Sukharev, que retrata a dualidade divina representada
pelos deuses Belobog (Deus Branco) e Chernobog (Deus
Negro).
OS LIVROS APÓCRIFOS DO
CRISTIANISMO ESLAVO

O Mar de Tiberíades

Quando não havia Céu nem Terra, apenas o Mar de Tiberíades existia, nem
praia ele tinha. Então o Senhor desceu do alto através do ar até o Mar de
Tiberíades e viu um pato nadando, envolto em espuma do mar, este pato era
Sotana-il [Satã]. E o Senhor disse a Sotana-il, como se não o conhecesse: ‘Quem é
você?’ E Sotana-il respondeu: ‘Eu sou Deus.’

E Deus perguntou: ‘Como você vai me chamar, então?’ Ao que Sotana-il


respondeu: ‘Você é o Deus dos Deuses e Senhor dos Senhores.’ Se Sotana-il não
tivesse dito essas palavras, o Senhor o teria erradicado de imediato do Mar de
Tiberíades.

E Deus disse: ‘Sotana-il, mergulhe no mar e me traga terra e pederneira!’


Sotana-il obedeceu ao Senhor, mergulhou no mar e trouxe para a superfície terra e
pederneira. Então o Senhor pegou a terra e a areia e espalhou ao longo do Mar de
Tiberíades e disse: ‘Que a terra seja rica [grossa] e vasta no mar!’ Deus pegou a
pederneira de Sotana-il e a quebrou em duas partes, manteve a que estava na sua
mão direita para Si mesmo e a que estava na mão esquerda Ele deu a Sotana-il.
Então Deus pegou seu bastão e começou a bater na pederneira, dizendo: ‘Anjos e
arcanjos, voem para fora dessa pederneira, segundo a minha incorpórea forma e
imagem.’ Forças impetuosas começaram a voar para fora da pederneira, e Deus
criou os anjos, arcanjos e as nove ordens [de anjos]. Sotana-il viu o que Deus criou
e começou a bater na pederneira que ele recebera da mão esquerda de Deus. Os
anjos de Sotana-il começaram a voar para fora [da pederneira] e ele criou para si
grandes forças. Deus fez de Sotana-il o chefe de todas as fileiras de anjos, e ele
próprio chegou à nona ordem [dos anjos].

Quando Sotana-il viu todas as forças angelicais que se originaram de Deus, e


como Ele foi glorificado, pensou em ser igual a Deus, e em seu orgulho ponderou:
‘Colocarei o meu trono nas nuvens e serei como o Altíssimo.’ Conhecendo seus
pensamentos astutos, Deus desejou lança-lo para baixo, então enviou o arcanjo
Miguel. Miguel foi até ele, mas Sotana-il o queimou com o seu fogo. Miguel foi a
Deus e disse: ‘Fiz o que o Senhor ordenou, mas o fogo de Sotana-il me queimou.’
Então Deus cortou o cabelo dele, tornou-o um monge e deu-lhe o nome de
Migue-il. E Sotana-il passou a ser chamado de Sotona. Deus ordenou que Miguel
atingisse Sotona com o cetro e o lançasse à terra, junto com todas as suas forças
malignas. […] As suas forças caíram por três dias e três noites, como gotas de
chuva. No terceiro dia, os anjos foram reunidos em conselho e Deus colocou o
arcanjo Miguel acima de toda a hoste angelical. Algumas das forças [diabólicas]
caíram nas montanhas, outras no abismo, algumas ficaram no ar, e outras se
encontraram nos pântanos, flutuando pelo movimento dos seus braços e pernas.
Onde cada um deles parou, é ali que eles moram até hoje.

E então Deus criou o Éden para o Oriente, e pensou em criar o primeiro


homem, Adão.

O Livro dos Segredos de Enoque

No sexto dia fiz uso da minha sabedoria para criar o homem de sete
componentes: a sua carne da terra, seu sangue do orvalho, seus olhos do Sol, seus
ossos de pedra, sua inteligência da vivacidade dos anjos e das nuvens, seus tendões
e seus cabelos das plantas da terra e sua alma do meu espírito e do vento. E dei-lhe
sete atributos: a audição da carne, a visão dos olhos, o olfato da alma [o cheiro ou
sopro do espírito], o toque dos tendões, o paladar do sangue, a resistência dos
ossos, o prazer dos pensamentos.

Pensei nestas palavras sábias: da natureza invisível e visível eu criei o homem,


de duas coisas, morte e vida. A imagem conheceu a palavra, uma nova e pequena
criatura se fez, pequena na sua grandeza e grande na sua pequenez.

Eu o coloquei na Terra como um segundo anjo, nobre, grande e glorioso, e o


designei como governante na Terra, e lhe dei a minha sabedoria e não havia
ninguém igual a ele entre todas as criaturas existentes. E dei-lhe um nome baseado
em quatro componentes: do Leste, Oeste, Norte e Sul. Designei-lhe quatro estrelas
especiais e o chamei pelo nome de Adão, mostrei-lhe os dois caminhos, o da luz e o
das trevas, e disse-lhe: ‘Isto é bom e isso é mau’, para saber se ele nutre amor ou
ódio por mim e para saber quem dentre sua gente me ama. Eu conheço sua
natureza, mas ele próprio não a enxergou, por isso veio a grave transgressão e eu
disse: ‘Além do pecado, que há senão a morte?’

Mandei-lhe um sono profundo, ele dormiu, tirei-lhe uma das costelas com a
qual criei uma mulher para que a morte lhe viesse por meio desta sua mulher,
tomei sua última letra [M; de adam] e a chamei de Mãe de todos os viventes, ou
seja, Eva.

Então eu criei um jardim no Éden, ao Leste, para que ele pudesse manter a
aliança e observar os meus mandamentos. Fiz com que os céus se abrissem diante
dele para que pudesse ver os anjos cantando o hino da vitória. Ele permaneceu na
luz eterna do paraíso, onde não havia escuridão, e o demônio entendeu que eu
queria criar outro mundo, onde Adão seria o senhor, para governar a Terra. O
demônio é o gênio do mal das regiões inferiores, como um fugitivo ele se tornou
Sotona, mas no Céu o seu nome era Sotana-il. Por isso ele é diferente dos anjos.
Sua natureza não mudou, mas os seus pensamentos mudaram quanto ao certo e
ao errado, […] de tal forma que ele entrou no paraíso como um ladrão e seduziu
Eva, mas não atingiu Adão. Amaldiçoei a ignorância, mas o que eu havia
abençoado anteriormente, isso eu não amaldiçoei, nem amaldiçoei o homem, nem
a Terra nem as outras criaturas, mas o fruto e as obras ruins do homem.

Disse-lhe: ‘Tu és terra e à terra da qual te tirei, tornarás, não te destruirei mas
devolver-te-ei de onde te tomei. Então, poderei tomar-te de volta na minha
segunda vinda.’ E abençoei todas as minhas criaturas, visíveis e invisíveis, no
sétimo dia, no qual descansei de todas as minhas obras.

Designei o oitavo dia como sendo o primeiro dia criado após a minha obra, os
sete primeiros como sendo ciclos de sete mil [anos] e no início dos oito mil
estipulei um tempo incontável, infinito, não medido por anos, meses, semanas,
dias ou horas.

Extraído do ensaio The bible in the making: slavonic creation stories, de


Florentina Badalanova e do Segundo livro de Enoque, tradução de Nelson Marins.
A versão de Mar de Tiberíades apresentada é russa, do século XVI, foi
compilada por Florentina Badalanova, a autora aponta similaridades do texto com
a tradição oral do sul da Europa, bem como com a literatura búlgara do século XI.
O Livro dos Segredos de Enoque é um manuscrito dos séculos XVI-XVII,
preservado pela Biblioteca Nacional de Belgrado. Alguns especialistas atribuem a
autoria do livro, também chamado de 2 Enoque, a uma seita judaica pré-cristã,
outros a atribuem aos cristãos no século I. O texto chegou à Bulgária medieval no
século X, além dele são conhecidos apenas fragmentos escritos em copta.

Os livros são chamados de ‘apócrifos’, porque não fazem parte do cânone


bíblico judaico-cristão. O número de livros apócrifos é maior que o da Bíblia
canônica, são mais de 100, acredita-se que foram escritos entre 200 AC e 400.
Certas igrejas cristãs incluem alguns deles no corpo da sua versão bíblica. O
cânone bíblico começou a ser definido por Jerônimo no ano 405, quando ele
completou a sua versão da Bíblia, que ficou conhecida como Vulgata Latina. Até
então circulavam diversos textos e extratos latinos, todos baseados na tradução
grega e em estado bastante precário.[1]

‘Eslavo’ é todo um ramo étnico e linguístico de povos indo-europeus, que


vivem principalmente na Europa central e oriental. Não é um povo único, mas
vários, bem diversos e se estendem desde a Cassúbia, no norte da Polônia, até a
Macedônia, no sul da Europa. Os eslavos emergiram com sua identidade étnica
por volta do século V e se espalharam nos séculos seguintes. Hoje mais da metade
da Europa é habitada por comunidades falantes de línguas eslavas.[2]

Sendo relativamente jovens no espectro de povos europeus, os eslavos


compartilham inúmeras tradições e mitos, que resistiram a conversão ao
cristianismo de forma veemente. O isolamento, especialmente da Rússia,
contribuiu para a preservação dos mitos. Finalmente acabaram sendo
cristianizados, como evidenciado pelas diversas manifestações folclóricas.[3]

Entre os mitos da criação cristianizados, possivelmente o mais comum é o do


‘mergulhador’, onde a água é o elemento primordial e a cooperação entre um deus
bom e um deus mal é necessária para levar a cabo a criação, nesse caso o Deus
cristão e Sotona (Satã). Outras versões da criação, como a do ovo cósmico e a do
desmembramento de um ser primordial, também são encontradas, notadamente
nos Cárpatos (a primeira) e na Polônia (a segunda). Os nomes dos deuses pagãos
dos povos eslavos são conhecidos, mas pouco se sabe sobre os seus cultos antigos.
Svarog, deus do Céu, é a divindade mais antiga, seus filhos são Dazhbog, deus do
Sol, e Svarozhich, personificação do fogo. Svantovit é um deus ligado ao culto aos
ancestrais, tinha quatro cabeças que simbolizavam seu grande poder e Makosh era
a deusa da fertilidade, da generosidade e da umidade, igualmente poderosa.[4]

Os polábios, eslavos que viviam entre o rio Elba e o Báltico, tinham em sua
mitologia a dualidade representada por Belobog (Deus Branco), deus da bondade,
da luz e da vida, e por sua contraparte Chernobog (Deus Negro), divindade do mal.
A história é mencionada por Helmond na Chronica Slavorum. Helmond foi um
monge alemão que testemunhou a cristianização dos eslavos, em seu relato ele
afirma que ‘eles têm uma crença estranha, mantida em suas festas, eles ao mesmo
tempo abençoam e amaldiçoam em nome dos seus deuses, em nome do Bem e do
Mal, dizendo que as coisas boas vem do deus bom e o mal vem do maligno; eles
chamam o deus mau de Chernobog, ou deus negro.’[5]

Os eslavos antigos acreditavam que o mundo era uma ilha flutuando na água e
que debaixo dela existia outro mundo, onde o Sol se escondia a noite. A jornada
do herói em busca do ‘Outro Mundo’ simbolizava um rito de iniciação, onde o
iniciado precisava morrer antes de renascer em um novo estágio da existência. O
Outro Mundo era objeto de desejo, podia estar além de uma floresta impenetrável,
debaixo do mar, ou além da terra, seja onde for, ele era intimamente ligado ao Sol.
[6]

A figura mítica mais conhecida da tradição eslava é a bruxa Baba Iaga. Ela tem
poder sobre pássaros e feras, viaja em um pilão apagando seus rastros com uma
vassoura, o dia e a noite a obedecem. Baba Iaga vive em uma tenda que fica na
perna de uma galinha, no meio de uma densa floresta. Acreditavam que Baba Iaga
seria a guardiã da porta de entrada para o Outro Mundo.[7]

Com o cristianismo, os santos assumiram lugar proeminente na cultura eslava,


em lugar dos antigos deuses. São Nicolau de Mira é cultuado em algumas regiões
da Bulgária, Sérvia, Macedônia, Croácia e Eslovênia, onde sua imagem é associada
aos rituais de oferecimento das carpas. Ele é considerado o primeiro dos santos e o
senhor do ‘universo náutico’, aquele que preserva a harmonia entre os dois
grandes domínios cósmicos, o aquático e o terrestre. São Nicolau é o padroeiro da
Rússia, Grécia e Noruega. Canções búlgaras o retratam como um demiurgo
vivendo no meio do oceano primordial, enquanto ele dorme o mundo se torna
um lugar estéril e quieto, o Sol não brilha, o vento não sopra e não há chuva.
Quando ele desperta, traz consigo o renascimento ou a recriação do mundo e a sua
transformação em um lugar florescente.[8]

Histórias semelhantes são contadas em textos apócrifos como Mar de


Tiberíades, onde Deus, ou um santo que age como seu substituto, espalha areia
para formar a terra. Em alguns casos ele age em cooperação com o diabo, seu
arqui-inimigo. Alguns desses relatos falam de um Universo criado por Deus, a
partir do caos das águas primordiais e do aparecimento da terra cultivável, dos
‘insetos abençoados’, isto é, as abelhas, e das ‘feras boas’ e animais domésticos.
Outras histórias apontam o ‘Outro Mundo’ como uma espécie de antiuniverso,
com criaturas malignas, ‘insetos amaldiçoados’, isto é, vespas e mosquitos,
‘pássaros maus’ e outros.[9]

Os eslavos dos Bálcãs acreditam que os peixes foram as primeiras criaturas


criadas por Deus e os únicos que não foram destruídos pelo dilúvio, por serem
‘sem pecado’. Por isso eles podem ser consumidos durante períodos de jejum, pois
‘seu sangue é puro’. O primeiro peixe criado foi a carpa, segundo uma lenda
búlgara, por isso o topo da cabeça das carpas é marcado com o sinal da cruz. Os
sérvios compartilham a crença de que o peixe é um ser sagrado criado por Deus.
Nos rituais do dia de São Nicolau, o corpo sacrificial da carpa é visto como a
substância a partir da qual a ‘nova criação’ toma forma.[10]

Também são sagradas a nogueira-comum, cujo fruto é a noz inglesa, que foi a
primeira árvore criada por Deus antes de qualquer outra planta e o gerânio, que
foi a primeira flor. No noroeste da Bulgária, o entorno das nogueiras é
considerado lugar consagrado, onde são feitas cerimônias de cura. As abelhas
foram os primeiros insetos criados, acredita-se que elas ajudaram a Deus quando
Ele derrotou o diabo. Vários textos eslavos apontam as abelhas como um dos
principais aliados de Deus na criação do mundo.[11]

Entre os animais terrestres, o ouriço-cacheiro é considerado o mais antigo e


por isso o mais sábio, o mago do Universo, cujos segredos mais profundos ele
guarda, alguns que até mesmo Deus desconhece. Ele possui o segredo das ervas
que garante a imortalidade, por isso o tempo não conta para ele. No princípio,
quando Deus deu forma ao Céu e à Terra, a Terra era muito maior que o Céu, e o
Céu não podia cobri-la. Como consertar esse erro de Deus? Como fazer a Terra
encolher de forma que o Céu pudesse cobri-la adequadamente? Deus não tinha a
resposta, mas com a ajuda do ouriço-cacheiro, Ele conseguiu resolver o enigma.
Ele fez isso espremendo a Terra, que ainda estava fresca e maleável. Por isso a Terra
tem o formato de um ouriço-cacheiro, quando ele está enrolado como uma bola.
[12]
PARTE IV

extremo oriente e
oceania

China, Japão e Maoris


Imagem de Pangu (P’an Ku) extraída do Sancai Tuhui,obra publicada por
Wang Qi em 1609.
O TAO CHINÊS

Questões do Céu

É dito: No princípio da antiguidade remota, quem estava lá para contar a


história do que aconteceu? Antes que o mundo superior e o inferior fossem
formados, como poderiam eles ser conhecidos? Visto que a escuridão e a luz
estavam escondidas e encerradas, quem poderia imaginá-las? Na extensão sem
forma, quando havia apenas imagens, como alguém poderia saber o que eram?
Quando foram criados o brilho e as trevas? Yin e Yang se misturaram três vezes,
qual era a sua forma original e como foram transformados? A esfera redonda e
seus portões nove vezes maiores, quem os planejou e mediu? Quem fez tudo isso?
Quem primeiro os criou? Como a Concha de Dipper e a Corda são presas, e como
os polos do Céu foram ligados? Por que os oito pilares se inclinam para o sudeste e
por que há uma falha? Onde se situam as extremidades dos Nove Céus, e onde eles
se unem? Seus cantos e bordas são tantos, quem sabe seu número? Como os céus
coordenam suas doze divisões? Como o Sol e Lua se conectam? Como a multidão
de estrelas é arranjada?1

Os escritos de Huai-nan Tzu

Antes que o Céu e a Terra existissem, havia apenas imagens, mas nenhuma
forma, tudo era uma vasta desolação, uma névoa escura e tenebrosa, e não eram
conhecidos os seus portais. Dois deuses nasceram do caos, eles teceram os céus e
formaram a Terra. Tão grandes eles eram que ninguém conhecia suas profundezas
e tão exaltados eram que ninguém sabia onde descansariam. Então eles se
dividiram em Yin e Yang, e se separaram nos Oito Polos. Formaram o duro e o
macio, e uma miríade de seres vivos tomou forma. O vapor denso e turvo se
transformou em insetos, e o vapor puro se transformou em humanos.2

Primeiro veio o Caminho [Tao] do espaço vazio, do espaço vazio nasceu o


cosmos e o cosmos deu à luz o Sopro, que tinha seus limites. A luz límpida [Yang]
subiu enevoada e se tornou o Céu, o turvo e pesado [Yin] congelou e se tornou a
Terra. […] Da dupla essência do Céu e da Terra se fez o Yin e Yang, da essência
complexa do Yin e Yang vieram as quatro estações e da essência difusa das quatro
estações vieram as dez mil coisas da natureza. Do Sopro quente e concentrado do
Yang nasceu o fogo, a essência do Sopro ardente se tornou o Sol, do Sopro frio e
concentrado do Yin veio a água, e a essência do Sopro húmido tornou-se a Lua. O
excesso do Sol e da Lua tornou-se as estrelas. O Céu recebeu o Sol, a Lua e as
estrelas, a Terra recebeu os rios, as chuvas, a poeira e o lodo. O Céu é redondo,
quadrada é a Terra.3

O mito de P’an Ku

O Céu e a Terra estavam um caos, como um ovo de galinha, e P’an Ku nasceu


desse meio. Em 18 mil anos o Céu e a Terra se abriram e se desdobraram. O
límpido, que era Yang, tornou-se o Céu, enquanto o turvo, que era Yin, tornou-se
a Terra. P’an Ku vivia dentro deles, em apenas um dia ele passou por nove
transformações, tornando-se mais divino que o Céu e mais sábio que a Terra. A
cada dia o Céu ficava três metros mais alto, a terra ficava três metros mais espessa e
P’an Ku três metros mais alto. E foi assim que, em 18 mil anos, os céus atingiram
sua altura máxima, a terra a sua maior profundidade e P’an Ku ficou totalmente
crescido. Depois disso vieram as Três Divindades Soberanas. Os números
começaram com um, foram estabelecidos com três, aperfeiçoados por cinco,
multiplicados por sete e fixados por nove. É por isso que o Céu está a 90 mil léguas
da Terra.4
Quando P’an Ku estava se aproximando da morte seu corpo foi
transformado. Sua respiração se tornou o vento e as nuvens, sua voz estrondos de
trovão. Seu olho esquerdo se tornou o Sol e o direito a Lua. Seus quatro membros
e cinco extremidades se tornaram os quatro pontos cardeais e os cinco picos. Seu
sangue e sêmen se tornaram água e rios. Seus músculos e veias se tornaram as
artérias da Terra, e sua carne os campos e o solo. Seu cabelo e barba se tornaram
estrelas, e seus pelos, plantas e árvores. Seus dentes e ossos se tornaram metal e
rocha, e sua medula se transformou em pérolas e jade. Seu suor e seus fluidos
corporais se tornaram uma chuva torrencial. Todos os ácaros do seu corpo foram
tocados pelo vento e se transformaram em pessoas de cabelos negros.5

O mito de Nü Kua

Como foi feito o corpo de Nü Kua? Como ela ascendeu, quando subiu ao
alto e se tornou imperatriz?6

Quando o mundo começou havia duas pessoas, Nü Kua e seu irmão mais
velho. Eles viviam no monte K’un-lun. Não havia ainda nenhuma pessoa comum
no mundo. Eles conversaram sobre se tornarem marido e mulher, mas sentiram
vergonha. Assim, o irmão subiu rapidamente o monte K’un-lun com Nü Kua e
orou: ‘Ó Céus, se fizerdes de nós marido e mulher, fazei com que todo o vapor
enevoado se concentre, senão, fazei com que ele se disperse.’ Então todo o vapor
enevoado se concentrou imediatamente. Quando Nü Kua ficou íntima do seu
irmão, ambos entrelaçaram algumas folhas de grama para cobrir seus rostos. Até o
dia de hoje, quando um homem toma sua esposa, ambos seguram um leque,
símbolo do que aconteceu.7

As pessoas dizem que, quando o Céu e a Terra se abriram e se desdobraram, os


seres humanos ainda não existiam. Nü Kua amassou o barro amarelo e modelou
os primeiros seres humanos. Embora ela trabalhasse febrilmente, não tinha força
suficiente para terminar sua tarefa, então puxou sua corda através de um sulco da
lama e a sacudiu para fazer os seres humanos. Os ricos aristocratas são aqueles
moldados do barro amarelo, enquanto os pobres comuns foram feitos do sulco da
lama.8

Extraído de Chinese mythology, an Introduction, de Anne Birrell.

1. Ch’u Tz’u, T’ien wen, SPTK 3.Ib-4a

2. Huai-nan Tzu, Ching shen, SPPY 7.Ia

3. Huai-nan Tzu, T’ien wen, SPPY 3.Ia, 3.9b

4. San Wu li chi, CH I.2a

5. San Wu li chi, PCTP I.2a

6. Ch’u Tz’u, T’ien wen, SPTK 3.20b

7. Tu yi chih, TSCC 3.5I

8. Feng su t’ung-yi, CFCE I.83


A criação é descrita em diversas histórias, muito difundidas na China e que
chegaram a nós por meio de antigos documentos e fragmentos. Normalmente são
caracterizadas pela ausência de um criador ou de uma vontade divina no momento
da criação, por isso não são chanceladas por um ‘selo de autoridade de um sistema
religioso e cultural monolítico’, assinala Anne Birrell.[1]

Questões do Céu é o mais antigo e valioso documento da mitografia chinesa e


faz parte das Canções de Ch’u. Foi escrito por volta do século IV AC em forma de
perguntas. Sua autoria é tradicionalmente atribuída a Ch’u Yuan, um aristocrata
da corte de Ch’u. Outra fonte importante é Huan-nan Tzu, do período Han,
escrita por Liu An, rei de Huai-nan, por volta de 139 AC. As citações são dos
capítulos Deuses sagrados e O sistema dos céus.[2]

A história de P’an Ku é a mais tardia, do século III, e também a mais popular


entre os mitos da criação. O nome da obra é longo, Registros históricos das três
divindades soberanas e dos cinco deuses, de Hsu Cheng. Outra divindade tão
popular quanto P’an Ku é Nü Kua, a deusa da fertilidade e mãe da criação, o mito
de Nü Kua é pelo menos seis séculos mais antigo que o de P’an Ku. As referências
a Nü Kua são de Questões do Céu, dos escritos de Ying Shao, do período Han, e do
Tratado das coisas extraordinárias e estranhas, de Li Jung, da dinastia T’ang, por
volta do ano 850.[3]

A Grande Muralha da China é um símbolo importante da história chinesa. A


grande muralha como conhecemos hoje foi construída durante a dinastia Ming
(1368-1644), porém as primeiras muralhas datam do século VII AC. Ao longo da
sua história de 4 mil anos, a China viveu grande parte em isolamento, procurando
se proteger de potenciais invasores. A primeira dinastia, que unificou as tribos do
vale do rio Amarelo, foi a Xia, cujo domínio se estendeu de 2100 a 1600 AC, o
símbolo chinês do dragão vem dela. Depois vieram os Shang, que dominaram a
China por mais de 500 anos. Sua divindade mais importante era Shang Di,
reverenciado como ancestral da dinastia, governou o panteão de deuses, incluindo
o Sol, a Lua, o vento, a chuva e os pontos cardeais.[4]

Os Shang foram sucedidos pela dinastia Zhou, que governou até o ano 771
AC e estabeleceu o culto a Tian (Céu), porém as antigas divindades nunca
deixaram de ser cultuadas, especialmente os deuses ligados à Terra, à chuva e aos
rios, dos quais dependia diretamente a subsistência do povo. Na final da era Zhou
emergiram as grandes filosofias de Confúcio (ou Kong Fuzi, seu nome nativo) e de
Laozi (Lao Tzu, o velho mestre). O confucionismo foi proclamado religião do
Estado em 136 AC, durante a poderosa dinastia Han, e dominou a vida chinesa
até a Revolução Comunista de 1949, que marcou o início de uma nova era
comandada com mão de ferro pelo líder supremo Mao Tse-tung. O budismo foi
importado da Índia ainda na dinastia Han convivendo em harmonia com o
taoísmo e o confucionismo, num espirito de respeito mútuo.[5]

Os confucionistas tendiam a ser agnósticos em relação aos deuses e espíritos da


tradição chinesa, sua filosofia se baseava em rituais e na piedade, enfatizava a
ordem social, a lealdade e a veneração dos antepassados. O confucionismo é um
código de conduta projetado para se atingir um mundo ideal e pacífico. O
taoísmo, por sua vez, advoga o retorno à simplicidade e a não intervenção do
Estado. Acima de tudo, os taoístas acreditavam que as pessoas deveriam viver em
harmonia com a natureza sem tentar dominá-la.[6]

Desafiado pela popularidade crescente do budismo, o taoísmo aos poucos


assumiu um caráter religioso, assimilando muitos cultos e mitos populares,
assumindo como seu fundador o mítico ‘Imperador Amarelo’, suposto progenitor
da raça chinesa, bem como o próprio Laozi. Assim foram adotados adereços
religiosos como templos, monges, imagens e incenso, além de um panteão de
divindades animistas e figuras heroicas do passado. Desenvolveram também a
crença de que os seres humanos podiam alcançar a imortalidade por meio do
taoísmo.[7]

Voltando à nossa história, o cosmo é criado de uma matéria pré-existente, o


vapor primordial, que se acreditava conter toda a energia que governa a matéria, o
tempo e o espaço. Essa energia passa por uma transformação no momento da
criação, de forma que a névoa de vapor se diferencia em duas formas, o Yin e o
Yang. Yin e Yang são conceitos do taoísmo, que expõem a dualidade de tudo o
que existe no Universo, as duas forças fundamentais, opostas e complementares.
[8]

As transformações misteriosas do Yin e Yang ensejaram o ordenamento do


Universo, primeiro apareceram os céus e os corpos celestes. O domo celeste, com
nove camadas e nove portões, sustentado pela Terra por meio de oito pilares.
Outro texto explica que Kung Kung (deus das águas) foi o responsável por causar
a desordem cósmica que causou a inclinação dos pilares e o surgimento de uma
‘falha’.[9]

O segundo texto, Huai-nan Tzu, traz a ideia do Tao, ou ‘Caminho’. Tao


significa ‘o modo pelo qual o Universo funciona’, é, segundo Campbell, ‘algo
muito semelhante a Deus, no sentido abstrato e filosófico do termo’. O diagrama
chinês da palavra Tao representa a interação de dois princípios, o Yin, feminino,
escuro, frio, úmido, maligno e negativo, e seu oposto, o Yang, masculino, claro,
quente, seco, benéfico e positivo. O Yin e o Yang estão presentes em todas as
coisas, inclusive no homem e na mulher, eles não podem ser separados nem se
pode dizer que sejam bons ou maus. Funcionam sempre em conjunto, ora
predomina um, ora o outro. Os dois deuses nascidos do caos se dividiram no Yin e
Yang, dando origem às ‘dez mil coisas do Universo’. Assim lemos no Tao Te
Ching: ‘Na origem, esses dois são o mesmo, embora diferentes em nome. A origem
nós chamamos o Grande Mistério: e desse Mistério, o mistério ainda mais obscuro
é o portal de todas as essências secretas.’[10]

Outro trecho do Tao Te Ching retrata como a vida se movimenta no ritmo do


Tao: ‘Magnífico, ele prossegue. Prosseguindo, torna-se remoto. Tendo se tornado
remoto, retorna. Por isso, o Tao é magnífico; o Céu é magnífico. A Terra é
magnífica e o rei sábio é também magnífico. A lei dos homens provém da Terra; a
da Terra, do Céu; a do Céu, do Tao. E a lei do Tao é ela ser o que é.’[11]

P’an Ku foi o primeiro a nascer, não era um deus, muito menos humano,
pode ser considerado um semideus, era uma criatura primordial gigantesca,
descrita como ‘a criança do Yin e Yang’. Foi também o primeiro a morrer, a
criação do mundo resulta do seu corpo moribundo desmembrado. O mito de
P’an Ku difere dos demais em vários aspectos, a começar que o mundo era um ovo
enorme recheado de caos, onde P’an Ku esteve adormecido por 18 mil anos.
Quando P’an Ku cresce o suficiente para rachar o ovo, seu fluido translúcido, a
matéria etérea do Yang, vaza e forma os céus. A gema, mais pesada, a matéria-
prima do Yin se torna a Terra. P’an Ku passa os próximos 18 mil anos
empurrando o Céu com a cabeça e a Terra com os pés. Quando se convence de
que o Céu e a Terra estão suficientemente separados, ele se deita exausto e morre
dormindo. Nenhuma parte do seu corpo deixa de ser utilizada na criação do
mundo. Até mesmo os parasitas do seu corpo se transformam em uma espécie
ancestral do homem.[12]

No mito de Nü Kua, a deusa começa a moldar os humanos a partir do barro


úmido das margens do rio Amarelo, ela produz pequenas figuras e impregna cada
uma com a força do Yin e Yang, assim elas adquirem vida. Aquelas que recebem o
Yang se tornam homens, e as que recebem o Yin se tornam mulheres. Porém Nü
Kua se cansa de modelar e resolve acelerar o processo, então ela puxa uma corda
em uma vala cheia de lama e depois a sacode, as figuras que surgem dos montes de
lama caídos a esmo no chão se tornam os homens que nascem pobres, ao passo
que aqueles modelados pelas mãos da deusa se tornam a nobreza chinesa. O mito
de Nü Kua trata também da relação incestuosa da deusa com seu irmão, Fu Hsi,
um deus criador tido como um dos lendários governantes da China antiga. Nü
Kua e Fu Hsi eram retratados, durante a dinastia Han, como tendo cabeças
humanas, corpos de serpentes e normalmente apareciam entrelaçados. O incesto
entre irmãos é tema recorrente na mitologia.[13]

Não poderia faltar à mitologia chinesa uma boa batalha épica, ela aconteceu,
de acordo com Questões do Céu, entre o deus da água Kung Kung (Gong Gong) e
Zhu Rong, o deus do fogo, e se transformou numa peleja cósmica que acabou por
abalar a Terra, inclinando seus pilares e abrindo uma falha no Céu. Zhu Rong
governava o Universo com firmeza e sabedoria, ele garantia que o Sol aparecesse
regularmente no Céu, trazendo as condições favoráveis para as pessoas que Nü
Kua havia criado. Gong Gong, uma criatura deplorável, com cabeça humana em
corpo de serpente, coberta de assustadores cabelos vermelhos, invejava Zhu Rong e
planejava tomar o controle do Universo. A batalha entre os deuses foi feroz,
primeiro no Céu e depois na Terra. Gong Gong reuniu todas as criaturas dos mares
e dos rios contra as forças de Zhu Rong, mas eles não puderam vencê-lo, pois o
calor do Sol fez a água ferver em seus corpos e eles acabaram chamuscados e
indefesos. Irado, Gong Gong bateu com sua cabeça na Montanha Imperfeita,
fazendo com que ela colapsasse. Essa montanha era uma das que suportavam os
céus, no noroeste do mundo, assim os pilares do Céu se inclinaram abrindo um
buraco. O mundo perdeu o equilíbrio e as pessoas sofreram com os desastres que
sobrevieram, como fogo nas montanhas e enchentes nas planícies. É por isso que
se diz que os rios correm para o sudeste da China, onde as terras são mais baixas.
[14]

Nü Kua, compadecida com o sofrimento dos seus filhos, decidiu reparar o


buraco do Céu. Foi até o leito de um rio e selecionou um grande número de
pedras, então construiu um forno e derreteu as pedras, para que pudesse moldá-
las. Voando até o Céu, a deusa tampou o buraco com as pedras derretidas, e para
garantir que o Céu não quebrasse de novo, Nü Kua matou uma tartaruga gigante
e usou suas quatro pernas para suportar o Céu no lugar da Montanha Imperfeita.
[15]
Pintura de Eitaku Kobayashi que mostra Izanami e Izanagui consolidando
a terra com sua lança Ame-no-Nuboko, obra de 1885.
O KOJIKI E A ORIGEM DO JAPÃO

A origem do Céu e Terra

Os nomes das divindades que nasceram [vieram a existir] em Takama-no-hara


[planície do alto Céu], quando o Céu e a Terra começaram, eram Ame-no-
Minakanushi, a Suprema-Divindade-do-Universo; Takamimussubi, Suprema-
Divindade-da-Força-Criadora; e Kamimussubi, Altíssima-Divindade-da-Força-
Criadora. Essas três divindades nasceram sozinhas e jamais revelaram as suas
pessoas.

Pouco tempo depois, surgiram outros dois: Umashi-Ashikabi-Hikoji,


Divindade-dos-Magníficos-Brotos-de-Caniço, e Ame-no-Tokotati, Divindade-
Perpetuadora-do-Mundo-Celestial. Naquela época, a Terra ainda era uma massa
inconsistente parecida com uma mancha oleosa flutuando como água-viva. Essas
duas divindades também nasceram sozinhas e jamais revelaram as suas pessoas.

As sete gerações divinas

Os nomes das divindades que nasceram depois foram Kuni-no-Tokotati,


Divindade-Perpetuadora-do-Mundo-Terrestre e Toyokumono, Divindade-dos-
Campos-e-das-Nuvens-Férteis. Essas duas divindades também nasceram sozinhas e
jamais revelaram as suas pessoas.

Depois, cinco pares de deuses, formados por uma divindade masculina e outra
feminina, originaram as cinco gerações seguintes: Uhijini, Deus-do-Barro, e sua
irmã mais nova Suijini, Deusa-da-Areia; depois vieram Tsunogu’i e sua irmã
Ikugu’i, Deus e Deusa-da-Germinação; depois Ôtonoji e sua irmã Ôtonobe, Deus
e Deusa-da-Fertilização; depois Omodaru e sua irmã Ayakashikone, Deus e Deusa-
da-Plenitude; e por fim Izanagui e sua irmã mais nova Izanami, Deus e Deusa-da-
União. Essas são as Sete Gerações Divinas.

A ilha de Onogoro

Então os cinco deuses celestiais enviaram Izanagui e Izanami a fim de tornar


a Terra sólida, e assim ordenaram: ‘Solidifiquem aquela massa flutuante,’ e lhes
concederam uma lança cravada de joias celestiais. Izanagui e Izanami partiram
para realizar a missão divina, então chegaram a Ame-no-Ukihashi, a Ponte-
Celestial-Flutuante, que, em forma de arco-íris, unia o Céu à Terra.

De pé em cima da ponte, as duas divindades começaram a revolver o mar com


Ame-no- Nuboko, a Lança-Celestial-Cravada-de-Joias, e mexendo com a lança
fizeram a salmoura endurecer até coalhar. Então puxaram a lança para cima e a
salmoura que escorria da ponta da lança se solidificou formando uma ilha. Esta é a
ilha de Onogoro.

A corte dos Deuses da União

Tendo descido do Céu para essa ilha, Izanagui e Izanami cuidaram da


construção de um pilar sagrado grandioso e de um salão de oito braças [um
palácio]. Então Izanagui, o Deus-da-União, disse a Izanami, a Deusa-da-União:
‘Devemos gerar filhos. Vamos contornar o pilar sagrado, eu pela direita e você pela
esquerda, quando nos encontrarmos do outro lado vamos nos unir.’ Quando eles
se encontraram, Izanami falou primeiro: ‘Ah, que belo e adorável homem você é!’
E Izanagui respondeu: ‘Ah, que donzela bela e adorável você é! Mas não é nada
bom a mulher falar primeiro.’

A criança que eles geraram se chamava Hiruko, nasceu deformado, como uma
sanguessuga, aos três anos de idade ainda não conseguia ficar de pé. Então eles o
colocaram num barco de junco e deixaram que fosse levado pelas águas. Pouco
tempo depois, os deuses geraram a ilha de Awashima, que também nasceu
deformada e foi abandonada.

Em seguida, Izanagui e Izanami se conselharam, dizendo: ‘As crianças que


geramos não são boas. É melhor declarar isso em Takama-no-Hara [o mundo
celestial]. Então eles subiram ao Céu e indagaram às suas augustas divindades
celestiais, e eles assim responderam: ‘Elas não eram boas porque a mulher falou
antes do homem. Desçam novamente a Onogoro-Shima e endireitem suas
palavras.’ Então eles rodearam o pilar sagrado novamente e dessa vez Izanagui foi
o primeiro a falar: ‘Ah, que donzela bela e adorável você é!’ Depois Izanami, sua
irmã mais nova falou: ‘Ah, que belo e adorável homem você é!’

Então os Deuses da União conseguiram gerar filhos perfeitos, assim nasceram


as ilhas do arquipélago japonês: Awajishima, a primeira delas; Shikoku, que
possuía quatro cabeças em um único corpo, cada uma com um nome diferente;
Oki, formada por três ilhas, como se fossem trigêmeas; Kyûshû, também
constituída por um corpo e quatro cabeças; Iki, chamada de ‘ilhota afastada’;
Tsushima, Sado e Honshû, a maior delas. É por isso que o Japão ficou conhecido
primeiro como Ooyashima-Guni, o País-das-Oito-Grandes-Ilhas. Muitas outras
ilhas vieram depois.

As mortes de Izanami e do Deus-do-Fogo

Após conceber o país, Izanagui e Izanami geraram muitas divindades: das-


Rochas-e-das-Terras, dos-Grandes-Portais, dos-Grandes-Telhados, das-Árvores,
dos-que-Governam-os-Mares, dos-Estuários, dos-Ventos, das-Montanhas, dos-
Campos. […] Ao todo foram 14 ilhas e 35 divindades geradas, até que Izanami
perdeu as forças.

Quando o Deus-do-Fogo nasceu, a genitália de Izanami se queimou e ela


nunca mais conseguiu se recuperar. Porém, mesmo doente, ainda lhe restou um
pouco de energia. Do vômito da deusa, nasceram o Deus e a Deusa dos-Minérios.
De seus excrementos, fez-se o Deus-da-Argila. Da sua urina surgiram a Deusa-
Controladora-das-Águas e o Jovem-Deus-Controlador-da-Produção-Agrícola.
Depois de gerar tantos filhos, Izanami não resistiu e morreu.

Então Izanagui disse: ‘Oh! Minha adorável e augusta irmã! Se pudesse trocar
um único filho por você!’ Izanagui realizou os rituais póstumos, engatinhou em
volta do corpo de Izanami e chorou copiosamente. De suas lágrimas nasceu a
Deusa-do-Pântano-Murmurante. Izanami foi enterrada no monte Hibanoyama,
no limite entre as províncias de Izumo e Hanaki.

Izanagui não perdoou o Deus-do-Fogo pela morte da deusa, sua irmã e


esposa; sem piedade ele puxou o seu sabre e cortou a cabeça do seu filho. O sangue
do deus do fogo manchou a espada e respingou nas rochas sagradas, gerando várias
divindades. Do sangue que espirrou da ponta da espada nasceram três deuses que
representam as rochas. Do sangue que respingou na guarda [parte que separa o
punho da lança], surgiram três deuses que representam o trovão. Da
empunhadura, o sangue escorreu entre os dedos de Izanagui e gerou dois deuses
que representam a água. Do corpo do Deus-do-Fogo nasceram ainda oito deuses
que representam as montanhas.

Extraído do Kojiki, tradução de Basil Hall Chamberlain e do livro A origem do


Japão: mitologia da era dos deuses, de Nana Yoshida e Lica Hashimoto.
O Kojiki é a mais antiga crônica japonesa preservada, foi compilada por um
cortesão chamado Ono Yasumaro, a partir de documentos ainda mais antigos (que
infelizmente não existem mais), a pedido da imperatriz Gemmei, em 711. Escrito
em uma mistura de japonês arcaico e chinês, a obra versa sobre a criação das ilhas
que deram origem ao território nipônico e seus kami (divindades) e também trata
da genealogia da família imperial japonesa e da morte do imperador Suiko em 641.
[1]

A segunda fonte da mitologia japonesa é o Nihonshoki, Crônicas do Japão, da


mesma época que o Kojiki. Juntas elas contêm os registros mais importantes que
inspiraram os mitos, o Shinto (xintoísmo) e a história da Terra do Sol Nascente.[2]

Shinto significa ‘caminho dos deuses’ e é a religião nativa japonesa, centrada na


adoração aos kami, as divindades que, segundo o xintoísmo, habitam cada
fenômeno da natureza, incluindo os seres humanos. Cada comunidade ou vila, em
todo o Japão, reverencia os santuários xintoístas, que são geralmente cercados por
densas florestas onde os espíritos residem. A mitologia japonesa abriga muitos
tipos de divindades, algumas tomam a forma humana e expressam sentimentos,
como os deuses criadores Izanagui e Izanami. Outros tipos de divindades são
associados a animais, plantas e a todo tipo de fenômeno natural, como o oceano,
as montanhas, o vento, a chuva e as pedras, uma miríade de oito milhões de
deuses. Para os japoneses os espíritos divinos residem no mundo natural, porém
em uma esfera sobrenatural de energia.[3]

O xintoísmo surgiu como instituição religiosa formalmente centralizada no


século VI, depois da chegada do budismo, do confucionismo e do taoismo ao país.
Budismo e xintoísmo se misturaram de uma maneira complexa, com várias
tradições assimiladas de um e de outro, mas a partir do século XVII o xintoísmo
experimentou um grande avivamento. Entre 1872 e 1945, assumiu o status de
religião oficial do Japão, mas depois da II Guerra Mundial o xintoísmo passou a
ser praticado de forma relativamente independente nos templos locais, sem uma
teocracia única. O evento mais importante de cada jinja (templo) é o matsuri, o
festival anual onde uma imagem do kami local é carregada nos ombros das
pessoas, abençoando toda a comunidade.[4]

O Japão é um arquipélago constituído de mais de seis mil ilhas, sendo que 97%
do seu território se concentra nas ilhas de Honshu, Hokkaido, Kyushu e Shikoku.
O país se encontra na confluência de quatro placas tectônicas, sobre o Anel de
Fogo do Pacífico; possui 265 vulcões classificados como potencialmente ativos, o
que representa cerca de 10% da atividade vulcânica do planeta. A movimentação
constante das placas tectônicas causa milhares de terremotos todos os anos (de 2 a
5 mil, segundo fontes diferentes), a maioria é imperceptível, mas pelo menos uma
centena deles tem magnitude suficiente para chacoalhar a superfície.[5]

A história do país é caracterizada por longos períodos de isolamento, textos


chineses do século I fazem breve menção ao Japão. O ano 552 marca o início da
tradição literária do país. Naquele ano o reino coreano de Paekche enviou
missionários budistas ao Japão como um gesto de amizade. A principal instituição
japonesa na época era o uji, ou clã, cada um controlava seu território e tinha
divindades próprias relacionadas aos seus ancestrais. O clã Yamato unificou o país
no século VI, a família imperial continuou sua linhagem até o presente e se tornou
o foco principal da mitologia japonesa.[6]

A criação do mundo, segundo o Kojiki, está relacionada ao mito de Izanagui e


sua irmã e esposa Izanami, as crianças que eles geraram eram as ‘oito grandes
iIlhas’ e se tornaram a origem do Japão.[7]

Depois da morte de Izanami, Izanagui resolve procurá-la em Yomi-no-Kuni,


o Reino da Escuridão, numa tentativa de trazê-la de volta à vida. Quando
Izanagui a encontrou, ele a viu apenas nas sombras e pediu que ela voltasse com
ele para terminar de construir o país. Izanami concordou em discutir o assunto
com os deuses do submundo, mas advertiu seu marido a não olhar para ela.
Cansado de esperar, Izanagui entrou na caverna, arrancou um dente do
yutsutsuma-gushi, seu pente sagrado e com ele fez uma tocha. Izanagui quase
desmaiou quando viu o corpo de Izanami sendo consumido pelos vermes, oito
deuses do trovão gerados do corpo putrefado da deusa o encaravam. Ele fugiu sem
demora e Izanami, enfurecida, mandou as ogras do Reino da Escuridão atrás dele.
Izanami continuou a persegui-lo, mas com a força de mil homens Izanagui
arrastou uma rocha gigante e bloqueou a passagem entre os dois mundos. Então
Izanami falou essas palavras: ‘Meu amado esposo, você não me deixou escolha, a
cada dia, mil vidas terei de eliminar.’ E Izanagui respondeu: ‘Pois então, minha
adorada esposa, a cada dia, mil e quinhentas novas vidas conceberei.’ Esse é o ciclo
de vida e de morte que se perpetua até os nossos dias.[8]

Do ritual de purificação de Izanagui, quando ele tomava o banho sagrado,


nasceram vários deuses, entre eles Amaterassu-Oomikami, a Deusa-do-Sol, que
nasceu do seu olho esquerdo; Tsukuyomi-no-Mikoto, o Deus-da-Lua, que nasceu
do seu olho direito; e Sussano-o-no-Mikoto, o Deus-do-mar, que foi gerado do seu
nariz. Izanagui deu um reino a cada um deles. Amaterassu é a divindade mais
significativa no panteão japonês, conhecida como ‘entidade augusta que faz o Céu
brilhar’, a ela foi confiada a tarefa de governar o domínio dos céus. Ao seu irmão
Tsukuyomi foi designado o domínio da noite e ao outro irmão, Sussano, o governo
dos oceanos. Sussano é também o deus das tempestades e a personificação das
forças da desordem.[9]

Amaterassu e Sussano são os protagonistas de um clássico da mitologia


japonesa, recheado de intrigas familiares, incesto e uma batalha épica que
terminou com a Deusa-do-Sol se escondendo na caverna do Céu, fazendo o
mundo mergulhar na escuridão. Com a iminente destruição do mundo, os outros
deuses se apressaram em fazer com que Amaterassu deixasse a caverna, quando
finalmente obtiveram sucesso, o mundo foi mais uma vez banhado em luz e as
forças do mal desapareceram. Sussano foi banido dos céus, mas ganhou algum
respeito mais tarde ao derrotar o dragão de oito cabeças Yamato-noorichi. Jimmu,
o lendário imperador ancestral do Japão, é considerado descendente de
Amaterassu, assim como todos os imperadores japoneses que vieram depois.[10]
Tangaroa retratado no ato da criação de outras divindades, escultura de
madeira encontrada nas Ilhas Tubuai, Polinésia Francesa, onde ele é
chamado de A’a.
A VOZ DOS MAORIS

Os homens tiveram apenas um par de ancestrais primitivos, eles surgiram do


vasto Céu que existe acima de nós e da Terra que está abaixo. De acordo com as
tradições de nossa raça, Rangi [Céu] e Papa [Terra] foram a origem de todas as
coisas. O Céu e a Terra ainda estavam unidos, pois não haviam sido separados até
então; os filhos que eles geraram pensavam qual seria a diferença entre a escuridão
e a luz, eles sabiam que os seres haviam se multiplicado, mas ainda não havia luz.
Por isso os antigos diziam nos seus ritos religiosos: ‘Havia escuridão desde a
primeira divisão do tempo, até a décima, até a centésima, e até a milésima,’ isto é,
por muito tempo. Essas divisões do tempo eram consideradas como seres, cada
uma chamada um Po.

Então os filhos do Céu e da Terra, cansados da escuridão contínua, reuniram-


se e disseram: ‘Vamos determinar o que faremos com Rangi e Papa, se melhor
seria matá-los ou separá-los.’ Então falou Tu-matauenga, o mais feroz dos filhos
do Céu e da Terra: ‘Está bem, vamos matá-los.’ Mas Tane-mahuta, o pai das
florestas e de todos os seus habitantes, assim falou: ‘Não, é melhor separá-los, e
deixar lá em cima o Céu, como um estranho para nós, mas que a Terra permaneça
perto de nós, como nossa mãe que nos alimenta.’ Cinco dos irmãos consentiram
com a proposta, exceto Tawhiri-ma-tea, o pai dos ventos e tempestades, pois
temia que seu reinado estivesse ameaçado.

Daí estes ditos antigos, que fazem parte das nossas orações: ‘Trevas, trevas, luz,
luz, a busca, no caos, no caos;’ significa como os filhos do Céu e da Terra lidaram
com seus pais, para que os seres humanos pudessem viver e se multiplicar. […]
Finalmente os planos foram acordados, então Rongo-ma-tane, o deus e pai do
alimento cultivado pelo homem, ergueu-se para separar o Céu e a Terra, ele lutou,
mas não conseguiu separá-los. Eis que Tangaroa, o deus e pai dos peixes e répteis,
ergueu-se para os separar, mas também não foi capaz. Veio a seguir Haumia-
tikitiki, o deus e pai do alimento que brota sem cultivo, levantou-se e lutou
inutilmente. Então, Tu-matauenga, o deus e pai dos ferozes seres humanos,
levantou-se e lutou, mas também falhou em seus esforços. Por fim Tane-mahuta,
o deus e pai das florestas, dos pássaros e dos insetos, ergueu-se lentamente e lutou.
Em vão ele tentou separar seus pais apenas com suas mãos e braços. Então ele
parou, colocou sua cabeça firmemente sobre sua mãe, a Terra, e seus pés contra
seu pai, o Céu, e esticou suas costas e membros com grande esforço até separar
Rangi e Papa. Com gritos e gemidos de dor eles disseram em voz alta: ‘Por que
matar assim seus pais? Por que cometer um crime tão terrível como nos separar?’
Mas Tane-mahuta não levou em conta os gritos e prantos e continuou
pressionando a Terra para baixo e o Céu para longe, bem longe acima.

Daí estes ditos antigos: ‘Foi a força de Tane que rasgou o Céu da Terra, de
modo que eles foram separados e as trevas se manifestaram, assim como a luz’.
Assim que o Céu e a Terra foram separados, uma multidão de seres humanos que
eles haviam gerado foi descoberta, pois eles permaneciam escondidos entre os
corpos de Rangi e Papa.

Então surgiu no peito de Tawhiri-ma-tea, o deus e pai dos ventos e


tempestades, um desejo forte de travar guerra contra seus irmãos, por terem
separado seus pais e desejado que Papa-tu-a-nuku, ou a Terra sozinha, assim
permanecesse.

O deus dos furacões e tempestades também temia que o mundo se tornasse


belo e aprazível, então ele seguiu seu pai para o reino do alto e se abrigou no vasto
Céu. Lá ele se aninhou, consultou longamente seu pai e concebeu o que devia
fazer. Então, por ele mesmo e pelo vasto Céu, foi gerada sua numerosa prole, que
Tawhiri-ma-tea enviou para oeste, para o sul, para o leste e para o norte, os ventos
poderosos.

Enviou ele rajadas violentas, redemoinhos, nuvens densas, nuvens pesadas,


nuvens escuras, nuvens densas sombrias, nuvens flamejantes, nuvens que
precedem furacões, nuvens negras flamejantes, nuvens que refletem a luz vermelha
brilhante, nuvens de tempestades e nuvens velozes, no meio delas, o próprio
Tawhiri-ma-tea a tudo varria selvagemente. Oh! Então ele enviou o violento
furacão; Tane-mahuta e suas florestas resistiram, o sopro violento da boca de
Tawhiri-ma-tea os golpeou com força, árvores gigantescas foram arrancadas. Oh!
Seus galhos e ramos rasgados e espalhados sobre a Terra, árvores e galhos
igualmente deixados para os insetos, as larvas e a podridão repugnante.

Das florestas ele seguiu para os mares, Tawhiri-ma-tea chicoteou o oceano


com fúria. Oh! Ondas imensas se bateram contra os altos penhascos e vieram os
redemoinhos. Tangaroa, o deus do oceano e pai de todos que nele habitam, voou
assustado por seus mares. Tangaroa havia gerado a Punga, e este a Ika-tere, o pai
dos peixes, e Tu-te-wehiwehi, ou Tu-te-wanawana, o pai dos répteis.

Quando Tangaroa fugiu, Tu-te-wehiwehi, Ika-tere e seus filhos discutiram


como escapar das tempestades, então Tu-te-wehiwehi e os répteis fugiram para
terra, enquanto Punga e os peixes se esconderam no oceano. A isso chamamos ‘a
separação de Tawhiri-ma-tea’ em nossos ritos religiosos. Essas tradições foram
assim transmitidas, Ika-tere, o pai dos que habitam a água, gritou para Tu-te-
wehiwehi: ‘Oh, vamos todos escapar para o mar.’ Mas Tu-te-wehiwehi gritou em
resposta: ‘Não, não, vamos voando para terra.’ […]

Tangaroa enfurecido com alguns dos seus filhos que o abandonaram e se


abrigaram em terra seca, tem travado guerra contra seu irmão Tane. Tane fornece
canoas, lanças e anzóis feitos de suas árvores, além de redes tecidas de fibras das
suas plantas à descendência de seu irmão Tu-matauenga, para que possam destruir
a descendência de Tangaroa. Em retorno, Tangaroa engole a prole de Tane,
esmagando canoas com as suas ondas, engolindo terras, árvores e casas, que são
varridas pelas enchentes, assim como insetos, pássaros pequenos e outros animais.
Todas essas coisas estão registradas nas orações que são oferecidas a esses deuses.

Tawhiri-ma-tea passou a atacar seus irmãos Rongo-ma-tane e Haumia-


tikitiki, os deuses e progenitores dos alimentos cultivados e não cultivados, mas
Papa, para salvar da fome os seus filhos, escondeu os dois irmãos em um lugar
seguro. Tão bem foram escondidos pela sua mãe Terra que Tawhiri-ma-tea os
procurou em vão.

Tendo Tawhiri-ma-tea vencido todos os seus outros irmãos, avançou em


direção a Tu-matauenga, exercendo toda a sua força, mas não pôde prevalecer
contra ele, sequer abalá-lo. Tu-matauenga fora aquele, entre todos os irmãos, que
planejou a destruição dos seus pais. Os outros irmãos haviam cedido rapidamente
ante os ataques ferozes de Tawhiri-ma-tea, mas Tu-matauenga mostrou bravura e
tenacidade no combate. Tane-mahuta e sua prole foram quebrados e
despedaçados, Tangaroa e seus filhos fugiram para as profundezas do oceano ou
para os recessos costeiros, Rongo-ma-tane e Haumia-tikitiki foram escondidos,
mas Tu-matauenga, o homem, permaneceu ereto e inabalável sobre o peito da sua
mãe Terra. Desde então, os corações do Céu e do deus das tempestades ficaram
tranquilos e suas paixões aplacadas.

Tu-matauenga, o homem feroz, tendo resistido com sucesso a seu irmão, o


deus dos furacões e tempestades, voltou-se contra os outros irmãos, porque eles
não o ajudaram na peleja contra Tawhiri-ma-tea, e pensava em matá-los. A morte
ainda não tinha poder sobre o homem. Foi depois do nascimento dos filhos de
Taranga e de Makea-tu-tara, de Maui-taha, de Maui-roto, de Maui-pae, de
Maui-waho e de Maui-tikitiki-o-Taranga, o semideus que tentou enganar Hine-
nui-te-po, que a morte passou a ter poder sobre os homens. Se aquela deusa não
tivesse sido enganada por Maui-tikitiki, os homens não teriam morrido, mas
viveriam para sempre. Foi assim que a morte obteve poder sobre a humanidade e
penetrou em todas as partes da Terra.

Tu-matauenga continuou a refletir sobre a maneira covarde com que seus


irmãos agiram, então procurou algum meio de ferir Tane-mahuta, porque ele não
o ajudara e estava ciente de que Tane tinha uma prole numerosa, que poderia se
tornar hostil. Então começou a coletar folhas da árvore whanake e fez laços e
armadilhas. Aha! Os filhos de Tane caíram diante dele e não podiam mais voar
nem se mover em segurança. Em seguida ele se vingou do seu irmão Tangaroa,
teceu redes com as folhas da planta do linho e arrastou os filhos de Tangaroa para
a praia. Encontrou seus irmãos Rongo-ma-tane e Haumia-tikitiki, cavou a terra e
puxou todos os tipos de plantas com raízes comestíveis, assim Tu-matauenga
devorou e consumiu seus irmãos, em vingança por eles o terem abandonado e o
deixado lutar sozinho contra Tawhiri-ma-tea e Rangi.

Tendo vencido seus irmãos, Tu’ assumiu vários nomes, a saber, Tu-ka-riri,
Tu-ka-nguha, Tu-ka-taua, Tu-whaka-heke-tan-gata, Tu-mata-wha-iti e Tu-
matauenga; um nome para cada um de seus atributos exibidos nas vitórias sobre
seus irmãos. Quatro de seus irmãos se tornaram sua comida, mas um deles,
Tawhiri-ma-tea, permance como inimigo do homem, e sempre o ataca com
tempestades e furacões tentando destruí-lo tanto por mar como por terra. […]

Desde então a luz brilha sobre a Terra e todos os seres que antes estavam
escondidos entre Rangi e Papa, quando ainda estavam unidos, agora se
multiplicam na Terra. Os filhos de Tu-matauenga foram gerados nesta terra,
cresceram e se multiplicaram até que chegaram à geração de Maui-taha e de seus
irmãos Maui-roto, Maui-waho, Maui-pae e Maui-tikitiki-o-Taranga.

Até hoje, o vasto Céu tem estado separado de sua esposa, a Terra, embora o
amor mútuo continue. Os suspiros quentes e suaves do seio amoroso da Terra
ainda se erguem até ele [o Céu], subindo pelos vales e montanhas, e os homens
podem sentir esse vapor. O vasto Céu pranteia a separação de sua amada, durante
as noites longas, derramando lágrimas frequentes em seu peito, que os homens
chamam de gotas de orvalho.

Extraído de Polynesian mythology, de George Grey.


George Grey chegou à Nova Zelândia, em 1845, para administrar a então
colônia britânica, lá ele se aprofundou no estudo da língua e das tradições maoris.
Grey logo percebeu que a comunicação dos nativos era em grande parte baseada
em formas figurativas e poemas antigos, que os tradutores sequer entendiam. Este
relato é feito em primeira pessoa pelos próprios maoris, possivelmente trata-se do
registro mais antigo da sua cultura e mitologia na língua inglesa.

A Polinésia é uma sub-região da Oceania que se estende desde o Havaí, ao


norte, até a Nova Zelândia, ao sul e a Ilha de Páscoa, a leste. As outras sub-regiões
que compõem a Oceania são a Melanésia, a Micronésia e a Austrália. Os povos
indígenas das mais de mil ilhas que compõem somente a Polinésia, guardam
muitas semelhanças de idioma, cultura e crenças. Eles tinham uma forte tradição
como navegadores.[1]

Os holandeses foram os primeiros europeus a chegar à Nova Zelândia, em


1642, e foram recebidos com hostilidade pelos maoris. Os europeus só voltaram à
Nova Zelândia em 1769, quando o explorador britânico James Cook aportou na
ilha, porém somente em 1840 a coroa britânica declarou soberania sobre ela. A
população maori foi de tal forma dizimada, que em 1862 havia apenas 101
sobreviventes.[2]

Os mitos floresceram em toda a Oceania por meio dos rituais que celebravam
os feitos dos deuses. Entre tantos mitos relacionados à origem do mundo, o mais
conhecido é a história dos polinésios sobre a separação forçada do Céu e da Terra,
para libertar os seus filhos. Este tema também é encontrado na Micronésia, nas
ilhas Gilbert e Kiribati, onde se conta que a divindade primordial Nareau
persuadiu uma enguia a separar o Céu e a Terra.[3]

Os maoris da Nova Zelândia, assim como outros povos polinésios, tinham no


topo do seu panteão, Rangi, o Céu masculino, e Papa, a Terra feminina. No
princípio eles estavam presos um ao outro, abraçados em um escuro vazio
primordial. No meio deles se encontravam aprisionados os filhos que haviam
gerado, os deuses Tane, Tangaroa, Tu, Rongo, Haumia e Tawhiri, que buscavam
um meio de escapar. Tane é o único que consegue, habilmente, separar os pais.
Então começa a guerra dos deuses, por causa do ciúme entre eles.[4]

A fúria de Tawhiri contra seus irmãos foi a causa do desaparecimento de


grande parte da terra firme, durante a peleja parte da mãe Terra foi submersa, de
modo que apenas uma pequena porção ficou projetada acima do mar, ou seja, as
ilhas do Pacífico.[5]

Tu (ou Ku, como é conhecido no Havaí) é o deus da guerra, da caça, da pesca


e da culinária, é também conhecido como o ‘homem feroz’. É aquele que se vinga
dos seus irmãos, por eles o terem abandonado na luta contra Tawiri, assim ele
subjugou todas as criaturas da natureza. Tu lançou encantamentos sobre seus
irmãos, para que pudessem lhe servir de alimento. Também lançou
encantamentos para Tawhiri trazer ventos favoráveis, assim como orações ao Céu
(Rangi) por bom tempo e à mãe Terra (Papa) para que produzisse todas as coisas
em abundância. Sacrifícios humanos eram feitos a Tu na Nova Zelândia e em
outros reinos polinésios.[6]

Outras fontes apontam Tane como o artista-criador da humanidade, elas


narram como Tane moldou a imagem de uma mulher com terra vermelha em
Kurawaka, depois a figura de barro foi vivificada. O sangue trouxe calor para os
seus membros, suas narinas se abriram, ela espirrou, abriu os olhos e se levantou.
Os polinésios chamam a primeira mulher de Hine-ahu, a moça-formada-da-terra,
mãe da humanidade. Tane teve relações com ela e os dois tiveram uma filha,
chamada Hine-titama, a quem Tane também tomou por esposa. Envergonhada,
Hine-titama fugiu para o submundo. A história tem variações, como a versão que
conta que ambos os progenitores eram humanos, nascidos da terra, sendo o
primeiro homem chamado Ki’i ou Tiki.[7]

A mitologia maori também tem os seus heróis humanos, como Tawaki e


Rata, cujas façanhas são bem conhecidas na Nova Zelândia, Tuomotu,
Rarotonga, Taiti e Havaí, mas talvez o herói mais conhecido em toda a Oceania
seja Maui. Ele é um rebelde sedutor, conhecido por suas aventuras extravagantes e
sobrenaturais. Na versão encontrada no Atol de Arawa, conta-se que ao nascer sua
mãe o teria embrulhado numa mecha do seu cabelo e jogado ao mar para morrer,
mas ele foi salvo pelo deus Sol e mais tarde devolvido à sua mãe. Um dos primeiros
feitos de Maui foi desacelerar a jornada do Sol, batendo nele com a mandíbula
encantada da sua avó morta, para que sua mãe tivesse mais luz do dia para fazer
mais roupas de tapa (casca). Outra de suas façanhas seria a pesca de algumas ilhas
com anzol, entre elas a ilha de Hawaki (Peixe de Maui), que seria onde o povo
maori se originou.[8]

Assim como Souw e Sosom na Melanésia, Maui está envolvido na perda da


imortalidade da humanidade, que envolve um incidente embaraçoso. Maui viaja
para o submundo e encontra Hine-nui-te-po, uma deusa gigante do submundo e
da morte, que estava dormindo. Ele se despe e ordena aos seus companheiros
pássaros, que fiquem em silêncio, enquanto se preparava para penetrar a deusa e
desafiar a morte. Mas um dos pássaros não se contém e começa a rir ao ver Maui
entalado dentro da deusa gigante, ela termina por acordar e o mata. Na versão de
Arawa, o pai de Maui o incentiva a entrar na deusa pela vagina e sair pela boca,
pois assim ele alcançaria a imortalidade. Novamente uma ave ri ao vê-lo entrar na
deusa, que desperta e o mata esmagando seu corpo. Em ambos os relatos o
resultado é o mesmo: devido à transgressão de Maui, os humanos jamais serão
capazes de alcançar a imortalidade.[9]
PARTE V

o novo mundo, não


tão novo assim

Maias, Incas, Hopis e Guaranis


Os gêmeos prodigiosos Junajpu e Ixb’alanke, pintura de Lacambalam a
partir de motivo retirado de uma antiga cerâmica maia.
O POPOL VUH E A CRIAÇÃO DO
MUNDO MAIA

A criação da Terra

No princípio tudo estava em calma e silêncio. Tudo estava sem movimento


porque toda a extensão do Céu estava vazia. Não havia gente, animais, pássaros,
peixes, caranguejos, pedras, ravinas nem montanhas; apenas o Céu estava lá, sem
nada. A Terra ainda não existia, nem barulho algum havia. O mar estava lá, quieto
na escuridão. Somente os Criadores e Formadores, Tepew e Q’uk’umatz estavam
acima das águas, cercados de luz e cobertos com plumas verdes e azuis. Eles eram
sábios e grandes pensadores, ajudantes do Coração do Céu, que é o nome de Deus.

Tepew e Q’uk’umatz juntaram suas palavras e pensamentos, então decidiram


criar as árvores e as videiras, pela vontade de Coração do Céu eles criaram as
plantas na escuridão. Tepew e Q’uk’umatz se perguntavam como trazer a aurora
para que amanhecesse o dia, e quem cultivaria a terra, para que houvesse
mantimento.

Então disseram: ‘Que assim seja! Que se preencha o vazio do Céu! Que as
águas se retirem e que surja a terra! Que amanheça e que haja claridade no Céu e
sobre a Terra! Nossa criação não estará completa enquanto não existir a criatura
humana sobre a Terra.’

‘Terra’, eles disseram, e no mesmo instante a Terra foi feita. Montanhas


surgiram das águas e como mágica se formaram os montes e os vales. A Terra foi
coberta com plantas, árvores e videiras. Ao ver tudo isso, Q’uk’umatz se encheu de
alegria e disse: ‘Tua benção foi generosa, Coração do Céu, agora podemos
continuar nossa criação.’

Dessa forma foram criados os montes e os vales, as águas foram separadas para
formar os mares e os lagos e os rios buscaram seu caminho nas ravinas. Assim foi a
criação da Terra, quando Coração do Céu, Coração da Terra, reuniu seus
pensamentos para que sua obra fosse perfeita.

A criação dos animais

Os Criadores e Formadores disseram: ‘É conveniente que haja vida nas árvores


e nos bosques.’ E de imediato criaram os animais grandes e pequenos, que
passaram a habitar as árvores e os bosques. Criaram os cervos, os pássaros, os
jaguares e as serpentes, e deram aos animais lugar apropriado para viver.

Assim disseram aos cervos: ‘Vocês, cervos, viverão nas pastagens, nas ravinas e
nos vales dos rios, andarão nas quatro patas e se multiplicarão.’ Disseram aos
pássaros: ‘Vocês, pássaros, viverão nas árvores e vinhedos, neles farão os seus
ninhos e se multiplicarão.’ Assim falaram a todos os animais.

Depois os Criadores e Formadores disseram aos animais: ‘Falem, gritem e


cantem de acordo com sua espécie. Digam nossos nomes e agradeçam por terem
sido criados. Invoquem os Criadores e Formadores, que são os pais e mães da vida.
Agradeçam a Deus, o Progenitor, Coração do Céu, Coração da Terra.’ Porém não
podiam fazer com que os animais falassem, eles só grasnavam, uivavam ou rugiam,
cada um a seu modo.

Quando os Criadores e Formadores se deram conta disso disseram: ‘Mudamos


de ideia, porque vocês não foram capazes de falar, nem de agradecer. Assim
permanecerão nessa condição. Continuaremos o nosso trabalho, faremos uma
criatura que seja obediente e que dê graças. De agora em diante suas carnes serão
cortadas e comidas, este é o seu destino.’ Desde então a carne dos bichos é
comestível.

A primeira criação do ser humano: gente de barro

Os Criadores e Formadores assim disseram: ‘Vamos tentar criar o homem, já é


madrugada, precisamos ter pronto aquele que irá nos sustentar, mas como
podemos ter certeza de que seremos invocados e lembrados sobre a Terra?
Falhamos com as primeiras criaturas que criamos.’

Então começou a criação do homem. Os Criadores e Formadores fizeram de


barro o corpo do homem. De pronto se deram conta de que sua obra não era boa,
pois imediatamente ela começou a se desfazer. O corpo era demasiado frágil, não
podia mover os braços nem tinha visão. Podia falar, mas não tinha sentidos nem
entendimento, não podia caminhar nem se multiplicar. Logo começou a se
desfazer com a água. Os Criadores e Formadores tiveram que desmantelar sua
criação e começar de novo.

A segunda criação do ser humano: gente de madeira

Então pediram ajuda aos anciãos, ao primeiro avô, Ixpiyakok, e à primeira avó,
Ixmukane. ‘Vamos retomar a criação’, disseram os Criadores e Formadores a
Ixpiyakok, o avô do dia, e Ixmukane, a avó do amanhecer. ‘Façamos o homem que
nos sustente, que nos invoque e recorde. Consultem um ao outro, avô e avó,
façam sua adivinhação com grãos de milho e tz’ite’ e decidam como deve ser o
corpo do homem que vamos criar.’

Então Ixpiyakok e Ixmukane fizeram sua adivinhação dizendo aos grãos de


milho e tz’ite’: ‘Unam-se e articulem sua mensagem, digam-nos se é conveniente
fazer o homem de madeira entalhada. Se o homem de madeira será mantenedor e
adorador do criador, quando amanhecer e se fizer dia sobre a face da Terra.’

De pronto responderam os grãos de milho e tz’ite’: ‘Os homens feitos de


madeira serão bons, eles falarão e povoarão a Terra.’ Então disseram os Criadores e
Formadores: ‘Que assim seja.’ No mesmo instante os homens de madeira foram
criados. Se pareciam com homens, falavam, tiveram filhos e filhas e se
multiplicaram, mas não tinham alma e nem razão. Não lembravam dos seus
Criadores e Formadores, por isso caíram em desgraça e passaram a andar de
quatro. Podiam falar, mas sua cara era dura, seca e sem expressão. Seus pés e suas
mãos não tinham consistência, pois não tinham sangue nem substância. Estes
foram os primeiros homens que habitaram a Terra em grande número.

Um dilúvio destruiu a gente de madeira por vontade de Coração do Céu. O


corpo do homem era feito de tz’ite’ e o da mulher de junco. Uma chuva de resina
fervente caiu do Céu, Xek’otk’owach, o urubu lhes arrancou os olhos, o vampiro
Kamalotz lhes decepou a cabeça, chegou Kotz’b’alam, o jaguar, e os devorou e o
puma Tukum b’alam sugou tutano dos seus ossos. Assim foram castigadas essas
criaturas que não pensaram no criador que é Coração do Céu, também chamado
Juraqan. […]

Até os cães se voltaram contra eles: ‘Vocês nos causaram muito dano e nos
comeram a carne. Agora vamos morder seus corpos.’ As pedras de moer também
vindicaram: ‘Vocês nos atormentaram de dia e de noite, moendo milho sobre
nossas caras, agora sentirão a dor de serem moídos.’ […]

Os homens de madeira fugiam por toda parte, subiam nos telhados, mas as
casas desmoronavam, trepavam nas árvores, mas elas sacudiam suas ramas e os
lançavam longe. Quiseram se esconder nas cavernas, mas elas se fechavam para que
eles não entrassem. Dessa forma foram destruídos os homens de madeira. Diz-se
que os macacos são seus descendentes. Por isso os macacos se parecem com os
homens, porque são os sobreviventes da geração de homens feitos de madeira
pelos Criadores e Formadores.
Terceira criação: gente de milho

Então Tepew e Q’uk’umatz, os Criadores e Formadores, continuaram a obra


de criação do homem. ‘É chegado o tempo de amanhecer e precisamos terminar a
criação. Que apareçam o homem e a humanidade sobre a superfície da Terra para
nos sustentar’, disseram.

Pensaram a respeito e chegaram a uma decisão sobre do que seria feita a carne
do homem. Nos lugares chamados Paxil e K’ayala’ encontraram o milho que seria
usado. Foram os animais que primeiro encontraram o milho e ensinaram o
caminho aos Criadores e Formadores, o gato da montanha, o coiote, o papagaio e
o corvo. Assim eles puderam encontrar a terra formosa de Paxil, que tinha
suprimento abundante de milho branco e milho amarelo.

Em seguida Tepew e Q’uk’umatz, entraram em acordo para iniciar a criação do


homem e da mulher. De milho branco e milho amarelo fizeram os braços e as
pernas de quatro homens. A avó Ixmukane moeu espigas brancas e amarelas e fez
uma bebida, dela veio a força desses homens. Esses são os nomes desses quatro
homens: B’alam Ki’tze’, o primeiro; B’alam Aq’ab’, o segundo; Majukutaj, o
terceiro e Iq’ B’alam, o quarto. Eles podiam falar, ver, ouvir e foram dotados de
inteligência.

Então os Criadores e Formadores perguntaram: ‘Que pensam vocês da sua


condição? Podem ver tudo o que foi criado?’ Eles responderam assim: ‘Em
verdade lhes damos graças repetidas vezes, ó Criadores e Formadores. Fomos
criados com uma boca e uma cara, falamos, ouvimos, pensamos, andamos,
sentimos as coisas e conhecemos o que está longe e o que está perto. Podemos ver
o grande e o pequeno, seja no Céu ou nos quatro rincões da Terra.’

Ouvindo isso, os Criadores e Formadores ficaram preocupados e foram a


conselho novamente: ‘Não é bom que nossas criaturas possam ver o grande e o
pequeno que está no Céu e na Terra. Que sua vista fique um pouco anuviada,
para que não vejam tudo o que está distante e não sejam como os deuses.’ Então
Coração do Céu fez descer uma névoa sobre a vista dos homens, que ficou
embaçada. Desde então eles só podem ver o que está perto dos olhos.

Logo os Criadores e Formadores decidiram fazer esposas para os quatro


homens que haviam criado. Durante a noite, enquanto dormiam, quatro bonitas
mulheres apareceram junto deles, assim que despertaram e viram as mulheres eles
ficaram muito felizes.

Os nomes das esposas eram Kaja’ Paluma’, a esposa do primeiro; Chomija’,


do segundo; Tz’ununija’, do terceiro e K’aqixaja’, do quarto. Essas foram as
mulheres dos quatro primeiros pais, que deram origem a todos os povos da nação
K’iche’ [quiché], entre eles os tepew, oloman, kojaj, tamub’ e ilokab’. […]

O presente do fogo

B’alam Ki’tze’, B’alam Aq’ab’, Majukutaj e Iq’ B’alam esperavam o


amanhecer, já eram muitos os povos ali reunidos. Então foram ao lugar chamado
Tulan Suiwa buscar seus protetores, cada um deles recebeu um ídolo. Quando
saíram de Tulan a língua comum dos diferentes povos se confundiu e já não
podiam entender uns aos outros.

Nenhum povo tinha fogo e muita gente morria de frio. Então B’alam Ki’tze’ e
B’alam Aq’ab’ pediram a seus ídolos Tojil e Awilix que lhes trouxesse o fogo, ao
que foram prontamente atendidos; mas veio um grande aguaceiro e o apagou.
Então todos os povos reunidos pediram: ‘Tenham compaixão, nos deem um
pouco do seu fogo pois morreremos de frio.’

Então Tojil disse que lhes daria o fogo, com a condição de que aceitassem
servi-lo e serem sacrificados por ele, Tojil, ídolo dos k’iche’s. Como estivessem
todos morrendo de frio, aceitaram. Logo receberam o fogo e se aqueceram. Só um
povo não aceitou as condições e roubou o fogo, eles são os kaqchikeles.

Os povos regressaram às suas terras passando por uma fileira de pedras,


quando o mar se abriu. Seguiram caminhando até chegar à montanha Chi Pixab’,
onde jejuaram. Esconderam os ídolos nas cavernas e nas montanhas, pois logo ia
amanhecer.

Então surgiu a aurora e apareceu a luz do Sol, da Lua e das estrelas. Primeiro
saiu Vênus, a estrela brilhante, e eles começaram a queimar incenso, cheios de
alegria. Depois saiu o Sol, e os animais se alegraram junto aos homens. O pássaro
K’eletzu cantou primeiro, o jaguar e o puma rugiram alegres. A águia e o urubu-rei
abriram suas asas para aquecê-las.

Antes de sair o Sol a terra estava úmida e lamacenta, mas logo começou a secar
porque o calor se tornou insuportável. De pronto os ídolos Tojil, Awilix, Jakawitz
e Nikatakaj, assim como os animais ferozes se converteram em pedras, pelo calor
do Sol. Quando B’alam Ki’tze’, B’alam Aq’ab’, Majukutaj e Iq’ B’alam foram ver
seus ídolos, eles milagrosamente se converteram em ‘muchachos’ e foram
alimentados com oferendas de incenso, aves e cervos.

Texto extraído de Popol Vuj: libro sagrado de los mayas, de Víctor Montejo.
Também conhecido como a Bíblia Maia, o Popol Vuh é um documento de
inestimável importância dos povos indígenas da Guatemala. Estudiosos acreditam
que tenha sido escrito em hieróglifos maias em tempos pré-hispânicos, porém os
originais se perderam com a conquista espanhola, que dizimou os maias, assim
como os seus códices. O Popol Vuh sobreviveu como tradição oral, em 1558 foi
escrito em maia por um indígena, que havia aprendido o alfabeto latino, por isso
se admite uma possível influência do cristianismo.[1]

Quando os conquistadores espanhóis desembarcaram na ilha de Cozumel em


fevereiro de 1519, surpreenderam-se com a quantidade de documentos que
encontraram, os quais incorporavam a sabedoria maia. Os volumes que
sobreviveram à sanha espanhola eram de uso restrito dos ah k’ines, os sacerdotes
maias, e descreviam os rituais que deviam ser celebrados e quando deviam fazê-lo.
Descreviam também a trajetória de corpos celestes como a Lua e Vênus. O
cronista Pedro Mártir de Anglería relatou ao Papa que os nativos possuíam
‘inumeráveis livros’. Infelizmente a maioria se perdeu.[2]

Hoje só conhecemos quatro livros maias, três deles foram levados pelos
espanhóis para a Europa e redescobertos nos séculos XVIII e XIX em diferentes
bibliotecas e arquivos, assim são chamados códices de Dresden, Madrid e Paris.
Eles remontam aos últimos anos da história maia antiga, depois do chamado
período Clássico. O quarto é conhecido como Códice Grolier, foi descoberto em
uma caverna de Chiapas na década de 1960, é o único que permanece na Cidade
do México. O mais antigo de todos é o Códice Dresden, que reúne um verdadeiro
tesouro em 74 páginas de cenas perfeitamente desenhadas e textos em hieróglifos,
que versam sobre a religião e astrologia dos antigos maias.[3]

A civilização maia é reconhecida como uma das mais avançadas da América


pré-colombiana, seu sistema de escrita era sofisticado, assim como sua arte,
arquitetura, matemática, o calendário e o seu sistema astronômico. As primeiras
aldeias maias surgiram no período Arcaico, entre 8000 a 2000 AC, é difícil
precisar, mas a civilização maia floresceu no período pré-clássico, entre 2000 AC e
250 DC. A ocupação maia de Cuello, no atual Belize, foi datada por volta de 2600
AC, naquela época os maias já cultivavam milho, feijão, abóbora e pimenta.[4]

Popol Vuh no idioma quiché significa ‘livro da comunidade’ ou ‘livro do


poder’. Vem das palavras ‘pop’, que literalmente significa esteira, e em um sentido
metafórico poder, e da palavra ‘vuh’, ou ‘wuj’ que quer dizer papel.[5]

A criação do mundo e da humanidade é o tema central do Popol Vuh. Os


deuses venerados pelos quichés são retratados em sua busca contínua por um ser
que tivesse capacidade de os adorar e servir. Uma história paralela é dedicada aos
gêmeos prodigiosos Junajpu, deus da caça e Ixb’alanke, cujo nome significa
‘pequeno jaguar’, e sua luta contra os senhores de Xib’alb’a, o submundo.[6]

Junajpu e Ixb’alanke são netos dos anciãos Ixpiyakok e Ixmukane, que


aparecem no texto aconselhando os deuses Tepew e Q’uk’umatz. Os gêmeos
prodigiosos Junajpu e Ixb’alanke nasceram da princesa Ixkik’, que ouviu a história
de uma árvore de frutos proibidos e quis vê-la, depois quis tocar os frutos, mas
estes na verdade eram caveiras, inclusive a de Jun Junajbu, filho dos anciãos
Ixpiyakok e Ixmukane, que viria a ser pai dos gêmeos prodigiosos, e que havia sido
morto pelos senhores de Xib’alb’a.[7]

Quando a princesa Ixkik’ se aproximou, foi instruída a estender a mão direita,


então a caveira de Jun Junajbu cuspiu em sua mão e daquela saliva ela engravidou
dos gêmeos prodigiosos. Mas esta é outra história.[8]
Representação do deus Viracocha na Puerta del Sol em Tiahuanaco, imagem
do século XII.
VIRACOCHA, O CRIADOR INCA

Há muito, muito tempo, o que havia era a escuridão. E na escuridão havia um


lago, tão escuro como o Céu, Titicaca era o seu nome. Das águas do lago saiu Con
Tici Viracocha Pachayachachic, o criador de todas as coisas.

Viracocha surgiu das profundezas do lago Titicaca, da escuridão das águas ele
se ergueu e começou a criar o mundo ao redor. Mas era um mundo sem luz, pois
Viracocha ainda não havia criado o Sol, a Lua, e as estrelas. Nesse mundo sem luz,
Viracocha esculpiu uma raça de gigantes, homens e mulheres enormes, para
povoar a Terra, e os pintou com cores de todos os tipos. E disse Viracocha aos
gigantes: ‘Vivam! Caminhem, respirem e falem. Vivam sem pelejar entre vocês.
Sirvam e obedeçam ao seu criador.’

Os gigantes ganharam vida pela palavra de Viracocha e caminhavam na


escuridão. Mas logo começaram a pelejar entre si e se esqueceram do criador.
Assim Viracocha converteu alguns deles em grandes pedras, a outros fez com que a
terra se abrisse sob seus pés e fossem engolidos. Outros foram arrastados para o
mar por grandes ondas. Nenhum dos gigantes foi visto novamente.

Viracocha ficou desolado com o fracasso da sua criação, então fez chover por
sessenta dias e sessenta noites, logo os rios e lagos transbordaram, a água subiu e
toda a Terra ficou encoberta pelas águas do dilúvio. Tudo o que Viracocha havia
feito foi tragado pelas águas. Quando elas baixaram, Viracocha voltou ao lago
Titicaca, para a ilha do Sol, que se encontra no lago. Ele pensou que desta vez
começaria sua criação de um modo diferente. Então Viracocha criou luzeiros para
iluminar o Céu, criou o Sol [Inti], a Lua [Pajsi] e as estrelas.
O Sol apareceu e se agradou do seu brilho. ‘Sou a coisa mais brilhante dos
céus’, disse o Sol, ‘todos vão me olhar com espanto’. Então a Lua apareceu ainda
mais brilhante que o Sol. Isso deixou o Sol com ciúmes, assim ele se pôs, tomou
um punhado de cinzas e as jogou na Lua. A face da Lua ficou salpicada com as
cinzas e sua luz se tornou obscurecida.

Depois de criar as luzes dos céus, Viracocha deixou a ilha do Sol e foi para
Tiahuanaco, tomou as pedras que encontrou às margens do lago e começou a
molda-las semelhante as pessoas, mas não gigantes. Deu características diferentes a
cada um, deu-lhes roupas para se vestirem, línguas que pudessem falar e canções
para cantar, deu-lhes também sementes para que pudessem cultivar seus próprios
alimentos.

Quando o povo estava feito, Viracocha lhes deu vida. Em seguida os enviou
para uma jornada abaixo da terra, cada um pelo caminho que devia seguir,
conforme as vestes que usavam e as línguas que falavam. Eles saíam da terra à
medida que chegavam aos lugares que Viracocha lhes havia designado. Alguns
saíram das águas dos rios e nascentes, outros das cavernas e outros das montanhas.
Onde quer que surgissem, ali faziam suas casas.

Con Tici Viracocha teve dois filhos, um se chamava Imaymana Viracocha e o


outro Tocapu Viracocha. Antes de enviar as pessoas em suas jornadas subterrâneas,
Con Tici Viracocha os mostrou a seus filhos, dizendo: ‘Observem as pessoas com
cuidado, lembrem-se de como se vestem, como falam e das canções que eles
cantam, porque teremos deveres para com os povos da Terra, quando emergirem
em seus lugares.’

Con Tici Viracocha enviou Imaymana para as montanhas e para a selva.


Tocapu Viracocha foi enviado ao lugar onde o mar se encontra com a terra e
percorreu a costa. Con Tici Viracocha seguiu pelo vale em direção a Cuzco. Em
todos os lugares proclamavam em alta voz que todos os povos deviam obedecer a
Con Tici Viracocha Pachayachachic, que lhes ordenou que construíssem suas casas
em seus lugares, que se multiplicassem e povoassem a Terra. Então as pessoas
saíram das nascentes dos rios, cavernas e montanhas e começaram a construir suas
casas.

Quando chamavam as pessoas, Viracocha e seus filhos lhes ensinavam as coisas


que deviam saber para viver. Mostravam como cultivar as plantas, quais delas
podiam usar como medicina e lhes ensinavam todos os nomes das plantas e das
criaturas.

Então Viracocha decidiu fazer uma viagem, vestiu sua capa, pegou seu bastão e
caminhou para o norte em direção à cidade de Cuzco. No caminho parou em um
povoado chamado Cacha, onde vivia o povo caná. Eles vieram ao mundo armados
para a guerra, era uma gente feroz e perigosa. Os canás viram Viracocha andando
pelo caminho, mas não o reconheceram. Se armaram e saíram da aldeia pensando
em matar aquele estranho. Viracocha viu os homens armados, sabia que suas
intenções não eram boas, então se enfureceu, ergueu as mãos e fez cair uma chuva
de fogo. O povo caná se deu conta do erro e caiu diante de Viracocha pedindo
perdão. Viracocha apagou as chamas, mas não fez a relva voltar a crescer naquele
lugar, que permaneceu queimado e seco para sempre, até as pedras foram
queimadas e tiveram seu peso alterado, assim podiam ser levadas por um só
homem.

Viracocha seguiu para o norte e chegou a um lugar chamado Urcos, sentou-se


no topo da montanha e falou às pessoas do lugar. Aquelas pessoas adoravam
Viracocha, fizeram para ele uma huaca, que é um lugar sagrado para os deuses e ali
colocaram uma imagem de Viracocha feita de ouro. Então Viracocha seguiu para
Cuzco, pelo caminho ele instruía as pessoas sobre como deviam viver.
Finalmente chegou a Cuzco, nome que o próprio Viracocha deu àquele lugar.
Viracocha convocou um homem chamado Alcaviza, que foi nomeado o primeiro
senhor de Cuzco. Depois seguiu viagem, dessa vez para o lugar que agora se chama
Puerto Viejo, lá ele se reuniu com seus filhos. Uma grande multidão chegou para
ouvir seu criador que assim lhes disse: ‘Devo deixa-los agora, mas vou lhes contar
as coisas que hão de acontecer. Com o tempo chegará gente às suas terras, pessoas
que afirmam ser eu, Viracocha, o criador de todas as coisas. Não lhes deem
ouvidos porque falam falsamente. Só eu sou Con Tici Viracocha e cuidarei de
vocês enviando mensageiros para lhes proteger e ensinar.’

Tendo Viracocha falado ao povo, ele e seus filhos foram para o oceano,
caminharam sem parar para o oeste até que desapareceram de vista, as pessoas
ficaram maravilhadas ao vê-los caminhando sobre a água, tão rápido como se fosse
sobre terra firme. Por isso as pessoas chamaram a seu criador Viracocha, que
significa ‘espuma do mar’.

Texto extraído de Mitologia Inca: mitos fascinantes incas sobre los dioses, diosas
y criaturas legendarias, de Matt Clayton.
Os incas não tinham uma linguagem escrita, como os maias e os astecas, além
do que muito da arte e cultura inca foi destruída pelos espanhóis. O que temos
hoje são as histórias contadas pelos indígenas e registradas por missionários
jesuítas.

Na língua quéchua, o império Inca é chamado de Tawantinsuyu, que significa


literalmente ‘quatro partes juntas’. O termo quéchua ‘Inka’ significa ‘governante’
ou ‘senhor’ e foi adotado pelos espanhóis. Foi o maior império da América pré-
colombiana, cujo centro administrativo e militar ficava na cidade de Cuzco. A
civilização inca floresceu nas terras altas do Peru no início do século XIII, e sua
derrocada se deu em 1572 quando os espanhóis conquistaram o último reduto
inca. O império chegou a abranger uma grande extensão geográfica, incluindo
terras que hoje pertencem ao Peru, Equador e Colômbia ao norte, até a Bolívia,
Chile e Argentina ao sul, sua população foi estimada em 10 milhões de pessoas.[1]

A mitologia é parte inseparável da história inca, como ocorre com o deus Sol
Inti. Foi Inti quem apareceu a Pachacuti Inca Yupanqui e assegurou que lhe daria
a vitória sobre seus inimigos e que ele conquistaria inúmeras terras. Assim
Pachacuti liderou a grande expansão inca e transformou uma tribo local em um
império. O império Inca representou o apogeu de uma cultura que se desenvolveu
por milhares de anos nos Andes, chegando a um nível de desenvolvimento
inimaginável na arquitetura, engenharia, astronomia, medicina (incluindo cirurgia
do crânio), administração, cultivo em terraços e muitos outros campos do
conhecimento.[2]

O império Inca era uma espécie de federação composta de povos diferentes,


sob a autoridade do Sapa Inca, o imperador, tido como filho do deus Sol Inti. O
idioma principal era o quéchua, mas o aimará e diversas outras línguas eram
faladas nas quatro suyus, as províncias que compunham o império. Os quéchuas
atuais são descendentes da poderosa civilização inca e hoje contam com mais de 10
milhões de pessoas, falantes da língua quéchua, enquanto o aimará é falado por
mais de um milhão de bolivianos.[3]

Atahualpa foi o último imperador inca, ele enfrentou as armas de fogo


espanholas com armas rudimentares feitas de madeira, pedra, cobre e bronze.
Depois os espanhóis instalaram seu irmão, Manco Capac II no poder, que foi
sucedido por seu filho Túpac Amaru, mas os incas já não eram nem sombra do
que haviam sido.[4]

A religião inca era centrada na adoração ao deus Sol Inti, mas haviam vários
deuses criadores, cada um com sua própria mitologia. Haviam também os huacas,
seres espirituais ou divindades menores, sejam animais, objetos ou lugares
venerados pelos povos andinos nativos. O mítico fundador da civilização inca,
Manco Capac, seria o iniciador do culto ao Sol, ele mesmo filho de Inti, conta a
lenda.[5]

Uma ideia comum aos vários mitos da criação dos povos andinos, era a crença
de que o mundo havia sido criado e destruído muitas vezes, e que depois de cada
destruição, ou cataclismo, um novo mundo nasce do caos. Na língua quéchua esse
conceito cíclico de destruição e criação é chamado de pachacuti, união das palavras
pacha, que significa espaço-tempo, era, mundo ou Terra, e cuti, que significa
inversão, revolução, algo como virar de ponta-cabeça.[6]

Os povos andinos tinham grande temor do pachacuti, porque significaria o


fim do mundo existente. Muitos mitos pré-colombianos descreveram o fim do
mundo pelo fogo, dilúvio, terremoto, petrificação ou outros cataclismos,
usualmente provocados por divindades raivosas, sempre seguidos por uma nova
criação. Hoje em dia os nativos andinos estenderam esse conceito para eventos
históricos ou simbólicos, como a eleição de Evo Morales na Bolívia, o primeiro
presidente indígena do país.[7]

Con Tici Viracocha Pachayachachic é um dos muitos nomes do criador inca.


Pachayachachic significa aquele que ensina o pacha ou professor do pacha, é um
termo associado a Viracocha, de acordo com os hinos incas traduzidos por
Cristóbal de Molina e Bernabé Cobo. Ticci (Tici) Viracocha pode ser traduzido
como Viracocha da Criação. Cobo descreve uma guaca (templo) chamada
Pucamarca, encontrada em Cuzco, dedicada aos sacrifícios a Pachayachachic,
onde crianças eram sacrificados. Con, por sua vez, provavelmente deriva de
Cuniraya, outro dos nomes de Viracocha.[8]

Se Viracocha era o deus criador para os incas das terras altas, os povos costeiros
adoravam a Pachacámac. Infelizmente a maior parte da mitologia desses povos se
perdeu, em parte porque deu lugar ao culto ao deus Sol inca, mas também pela
cristianização promovida pela coroa espanhola. Pachacámac também é o nome de
um importante sítio arqueológico, que contém as ruínas do templo do deus de
mesmo nome.[9]

No mito costeiro, Pachacámac é irmão de Con, um deus poderoso, filho do


Sol, que criou as primeiras pessoas e lhes deu boas terras e chuvas. Mas as pessoas
se comportaram mal e Con as castigou convertendo os seus campos em desertos.

Pachacámac tencionou fazer melhor, expulsou Con e converteu aquelas


pessoas, que Con havia criado, em bestas, macacos, raposas e pássaros. Pachacámac
criou um homem e uma mulher, mas o homem logo morreu porque não tinha
comida e a mulher não sabia o que fazer. O Sol viu que a mulher era bonita e
enviou seus raios e assim ela engravidou. Depois de quatro dias nasceu uma
criança, mas Pachacámac, doente de ciúmes, fez a criança em pedaços e os
espalhou pela Terra. As plantas foram criadas dos pedaços da criança, dos dentes
brotou o milho, dos ossos a mandioca e da carne brotaram as frutas e verduras. O
Sol se entristeceu ao ver o que Pachacámac havia feito e decidiu fazer outro filho,
tomou o pênis e o umbigo da criança desmembrada e criou outra criança, inteira, a
quem chamou Vichama.

Enfurecido, Pachacámac foi até a mulher, a matou e esquartejou. Então fez


outro homem e outra mulher, que tiveram filhos e filhas. Depois de algum tempo,
Vichama regressou de viagem e juntou cuidadosamente os pedaços do corpo da
mãe, quando terminou ela era uma mulher completa novamente e Vichama lhe
devolveu a vida. Vichama converteu em pedras todas as pessoas que Pachacámac
havia feito e o sucedeu como soberano. Então Vichama intercedeu ao Sol, seu pai,
que lhe deu três ovos. Um de ouro, de onde saíram os curacas (aristocratas) e os
nobres. Outro de prata, de onde saíram as mulheres. E o terceiro de cobre, de onde
saíram os plebeus. E assim o mundo foi povoado mais uma vez.[10]
Detalhe da escultura Avó Aranha, da artista Lauren Raine (usado com
permissão).
A MULHER ARANHA HOPI

No princípio só haviam dois: Tawa, o deus Sol, e a Mulher Aranha, a deusa da


Terra. Todos os mistérios e o poder do Alto pertenciam a Tawa, enquanto a
Mulher Aranha controlava a magia do Abaixo. Eles moravam no Submundo, a
morada dos deuses, ali eles eram tudo. Não havia homem nem mulher, pássaros ou
animais, nenhum ser vivente, até se cumprir a vontade destes dois deuses.

Com o tempo, ocorreu-lhes que deveriam haver outros deuses para


compartilhar seus trabalhos. Então Tawa dividiu a si mesmo e apareceu
Muiyinwuh, deus de todas as formas de vida e dos germes; a Mulher Aranha
também se duplicou e gerou a Huzruiwuhti, a deusa regente de todas as pedras e
metais, que se tornou consorte de Tawa. Eles formaram o primeiro casal e da
união deles nasceram os maravilhosos Gêmeos Mágicos, Puukonhoya, o jovem, e
Palunhohoya, o eco. Depois nasceram Hicanavaiya, ancião dos seis guardiões das
direções [os quatro pontos cardeais, acima e abaixo], o Homem-Águia, a Grande
Serpente Emplumada e muitos outros seres sobrenaturais. Somente Masauwhu, o
Deus da Morte, não nasceu destes dois, mas de uma magia ruim que apareceu
depois que as criaturas foram geradas.

Então estes dois tiveram um pensamento poderoso, eles criariam a Terra para
ser colocada entre o Alto e o Abaixo, onde ficavam as águas infinitas cintilantes.
Eles se sentaram lado a lado, balançando seus belos corpos de bronze ao som da
música pulsante de suas próprias vozes, assim criaram a primeira canção mágica,
uma canção de ventos impetuosos e águas correntes, uma canção de luz, som e
vida.
‘Eu sou Tawa,’ cantou o deus Sol, ‘eu sou luz. Eu sou vida. Eu sou o pai de
tudo que virá.’ ‘Eu sou Kokyanwuhti,’ replicou a Mulher Aranha em uma nota
mais suave, ‘eu recebo a luz e nutro a vida. Eu sou a mãe de tudo o que virá.’

‘Muitos pensamentos estranhos estão se formando na minha mente, belas


formas de pássaros para flutuar no Alto, animais para se moverem sobre a Terra e
peixes para mergulhar nas águas,’ entoou Tawa.

‘Que essas coisas que se movem no pensamento do meu senhor apareçam,’


cantou a Mulher Aranha, enquanto que com seus dedos delgados ela pegava argila
ao lado e fazia os pensamentos de Tawa tomarem forma. Um por um ela os
modelou e os colocou de lado, mas eles não podiam respirar nem se mexer.

‘Precisamos fazer algo a respeito,’ disse Tawa. ‘Não é bom que eles estejam
quietos e sem vida. Cada coisa que tem forma deve ter também espírito. Agora,
minha amada, devemos fazer uma magia poderosa.’ Então colocaram uma manta
branca felpuda sobre as muitas figuras, tão macia como se fora tecida de nuvens,
fizeram um encantamento poderoso e as figuras começaram a se mexer e respirar.

‘Agora, vamos fazer outros como você e eu, para que governem e desfrutem
destas criaturas inferiores,’ cantou Tawa. Assim a Mulher Aranha modelou os
pensamentos do seu senhor em figuras masculinas e femininas, como eles mesmos,
mas depois que a magia do cobertor foi feita, as figuras ainda permaneceram
inertes. Então a Mulher Aranha os reuniu em seus braços, junto aos seus seios
jovens e quentes, enquanto Tawa inclinava seus olhos brilhantes sobre eles.
Ambos os criadores entoaram a ‘canção da vida’ sobre os recém-modelados seres
humanos até que aos poucos eles começaram a se mexer.

‘Isso foi algo bom e poderoso,’ disse Tawa. ‘Agora tudo está terminado, que
essas criaturas que fizemos se multipliquem, cada uma conforme a sua espécie. Eu
farei a minha jornada pelo Alto a cada dia para verter minha luz sobre eles e
retornarei para Huzruiwuhti cada noite. Agora irei lançar meu escudo flamejante
sobre as águas sem fim, para que a terra seca apareça. E este dia será o primeiro dia
sobre a Terra.’ E a Mulher Aranha respondeu assim: ‘Guiarei todas essas criaturas
pela terra que farás surgir sobre as águas.’

Então Tawa tirou seu escudo polido da parede turquesa do kiva e


rapidamente tomou seu glorioso caminho para o Alto. Depois a Mulher Aranha
curvou seus olhos sábios, que tudo vêem, sobre os seres humanos aglomerados ao
seu redor e os separou em grupos [os clãs das tribos nativas]. ‘Desta forma
permanecerão, cada um na sua tribo para sempre,’ disse a Mulher Aranha. ‘Vocês
são zunis, vocês kohoninos e vocês pah-utes.’ E todo o povo hopi foi nomeado por
Kokyanwuhti.

Com os Gêmeos Mágicos ao seu lado, a Mulher Aranha conclamou todas as


pessoas a segui-la e os conduziu pelas quatro grandes cavernas do mundo
subterrâneo. De lá eles saíram por uma abertura, uma sipapu, que dava na parte
mais profunda do Pisisbaiya [o rio Colorado], aquele era o lugar onde deveriam
colher sal. Tão recentemente tinham as águas sem fim baixado, que o Koyona, o
peru, arrastou sua cauda na lama negra, deixando marcas escuras que permanecem
até hoje.

O pombo da manhã fez um sobrevoo, chamando alguns a segui-lo para junto


das fontes que ele avistara, esses foram chamados de Huwinyamu, por causa dele.
Então a Mulher Aranha escolheu uma criatura para guiar cada clã ao local onde
deveriam construir suas casas. O puma, a serpente, o antílope, o cervo e outras
criaturas de chifres, cada um guiou um clã. Cada clã carrega o nome da criatura
que o guiou.

Então a Mulher Aranha falou com eles assim: ‘A mulher do clã deve construir
a casa e o nome da família deve descender dela. Ela deve construir e cuidar da casa.
Ela deve modelar vasilhas para armazenar comida e água, deve moer o grão para
comida e cuidar das crianças. O homem do clã deve construir kivas de pedra sob o
chão, onde prestará tributo aos deuses. Nas kivas ele deve erigir altares e imagens
de areia colorida, elas se chamarão ponya. Deve fazer também pahos [bastões de
oração], para receber suas orações sobre o ponya. Wupo Paho, o grande paho, será
meu. Devem haver quatro pahos azuis, Cawka Paho, um para o grande Tawa,
outro para Muiyinwuh, outro para Huzruiwuhti e outro para Hicanavaiya. Cada
paho deve ser forjado secretamente com orações e canções. O homem deve tecer as
mantas do clã com símbolos próprios, deve confeccionar armas, caçar e proteger
sua família.’

Ela se abaixou e pegou um pouco de areia, depois deixou que escorresse pelos
seus dedos, então ela disse: ‘Vejam o movimento da areia. Assim será a vida, que
fará crescer todas as coisas. A Grande Serpente Emplumada, o relâmpago, atingirá
a terra para a fertilizar, nuvens de chuva derramarão água e Tawa irá sorrir fazendo
com que as plantas germinem para alimentar os meus filhos.’

Seus olhos buscavam Tawa no Alto, quando ele já se preparava para entrar em
sua kiva do ocidente, em toda a sua glória vermelha e dourada. ‘Eu vos deixarei
agora, meus filhos, mas não tenham medo, porque nós dois estaremos cuidando
de vocês’, disse ela. ‘Obedeçam às palavras que eu lhes dei, e tudo irá bem com
vocês, se necessitarem de ajuda me chamem e eu enviarei meus filhos para ajuda-
los.’

As pessoas olhavam sua beleza resplandecente com os olhos arregalados. Ela


vestia uma túnica branca sobre uma saia azul bordada com flores e espigas, com
desenhos geométricos amarelos, vermelhos, marrons e pretos. Usava mocassim de
camurça branca em seus pés pequenos, um enorme colar e brincos de turquesa,
coral e conchas. Seu rosto era reluzente, seus olhos calorosos, seus lábios vermelhos
e ternos e sua forma graciosa. Ela ergueu a mão direita e sorriu para eles, enquanto
caminhava para onde a areia girava como um redemoinho. Maravilha das
maravilhas, ante os olhos de todos as areias pareciam sugá-la rapidamente até que
ela desapareceu por completo da vista deles.

Extraído do livro The world of myth, de David Adams Leeming.


O mito da Mulher Aranha, dos hopis do Arizona, é um dos mais antigos entre
os nativos norte-americanos, possivelmente do século XI. Existem numerosas
versões dele, preservadas pela tradição oral dos índios.

Os hopis descendem dos anasazi, um povo que habitava os penhascos no


sudoeste americano, cujo apogeu se deu no século XII. Os anasazi deram origem a
diversos povos indígenas além dos hopis, como os índios acoma, laguna, tanoan e
keres; os mitos da criação desses povos guardam muitas semelhanças, a despeito
das diferentes línguas, indicando que houve uma fonte comum em todos eles, um
sistema religioso mais antigo, que pode ser evidenciado por achados arqueológicos
do povo anasazi, como trabalhos em cerâmica e em pedra.[1]

A preservação fiel destes mitos se deve aos ritos secretos e ao conservadorismo


religioso desses povos. Os jovens hopis aprendem o significado dos seus mitos
durante o ritual do Wuwuchim. Para eles existem três mundos antes deste em que
vivemos e os hopis foram o povo escolhido para a emergência final em um mundo
perfeito por meio de suas cerimônias religiosas complexas.[2]

A origem dos ameríndios é incerta, existe um grande debate quanto a quem


eles eram, de onde vieram e como chegaram à América. Segundo uma teoria que
foi defendida por muito tempo, as primeiras migrações teriam acontecido há cerca
de 12 mil anos, perto do fim da última Era do Gelo, quando caçadores-coletores
nômades teriam cruzado uma ponte de gelo que ligava a Sibéria ao Alasca.
Contudo, novas pesquisas mostraram que a presença humana nas Américas é bem
mais antiga, os primeiros humanos possivelmente chegaram entre 30 e 60 mil anos
atrás, em sucessivas ondas, não pela ponte de gelo, mas por meio de pequenas
embarcações cobertas de pele, navegando perto da costa do Pacífico até o extremo
da América do Sul. Aos poucos eles foram se espalhando pelo continente em um
processo bastante demorado.[3]
Diferentemente dos espanhóis, que foram rápidos e implacáveis na conquista
da América ‘espanhola’, outros europeus que chegaram à América do Norte se
movimentaram mais lentamente, eles não tiveram outra opção, primeiro porque
encontraram centenas de tribos espalhadas por um território enorme, algumas
delas bem organizadas, depois porque elas aprenderam rapidamente a revidar. No
final, o resultado foi o mesmo, 90% da população nativa, estimada em 40 a 100
milhões de pessoas, foi dizimada. Por pouco não exterminaram por completo os
povos nativos, com suas línguas, tradições e crenças sagradas.[4]

Ainda assim a tradição indígena sobreviveu, das 300 línguas que existiam antes
da chegada dos europeus, 200 ainda são faladas por cerca de um milhão de
indígenas ao todo, mas algumas têm pouco mais de 30 falantes, como é o caso do
chinookan. A enciclopédia das religiões nativas americanas, citada por Davis,
afirma que ‘A nação indígena da América do Norte ainda é o berço de centenas de
tradições religiosas, que vêm sobrevivendo à longa história de perseguição e
supressão por parte de governos e missionários.’ E continua: ‘As crenças sagradas
dos ameríndios são tão dignas, profundas, viáveis e multifacetadas quanto
qualquer outra religião praticada no mundo. A sabedoria sagrada dos nativos não
foi destruída nem perdida; pelo contrário, permanece viva como o coração da
cultura ameríndia hoje.’[5]

A religião permeia a vida dos indígenas americanos em todos os aspectos, os


mitos são sagrados, eles explicam a ordem do cosmos e da sociedade, bem como a
relação dos homens com os deuses. Os mitos também explicam a origem dos
humanos, a morte, o milho e a caça. Só podem ser contados sob certas
circunstâncias e em certas épocas do ano.[6]

A despeito da enorme variedade de culturas norte-americanas, existem alguns


poucos tipos básicos de mitos da criação, mas com variações numerosas. As
divindades comumente encontradas são o Grande Espírito e a Mãe Terra. O
primeiro é o deus supremo, tem poderes insuperáveis e aparece como o criador e
vigia do Universo, em geral é associado ao Sol e assume vários nomes, como por
exemplo Kitchi Manitou, ou ‘Grande Mistério’ para as tribos algonquinas que se
espalham desde a costa leste até os Grandes Lagos e as Montanhas Rochosas, e
Wakan Tanka para os lakota, sioux, osage e outras tribos das planícies do Meio-
oeste. Em geral, o papel do Grande Espírito é criar outras divindades, como a Mãe
Terra, que são encarregadas dos atos da criação, enquanto o deus supremo se retira
para o Céu.[7]

A Mãe Terra é a fonte da fertilidade e força protetora, é uma divindade muito


popular entre os ameríndios. Entre os cherokees ela é conhecida como avó Sol, e
entre os hopis como Mulher Aranha, ou Kokyanwuhti, a deusa da criação que
ensinou o povo a tecer e fazer cerâmica. Entre os navajos ela é conhecida como
Mulher Mutante, ou Estsanatlehi, que nasceu a partir de um pedaço de turquesa e
engravidou do deus Sol, como uma parideira milagrosa ela gerou os gêmeos
Matador de Monstros e Nascido para a Água, que são os responsáveis por tornar o
mundo um lugar seguro para os navajos. A Mulher Mutante criou as pessoas a
partir de uma mistura de pó de milho e da pele de seus seios.[8]

História muito comum é a do ‘ser que mergulha na terra’, encontrada entre os


inuit e os atabascas do Ártico, além de diversas tribos desde a Califórnia até o
nordeste americano. Nela o deus supremo ou seu assistente enviam um animal,
normalmente um castor ou um pato, para mergulhar no oceano primevo e trazer
um punhado de lama ou argila, que será usada pelo deus criador para formar a
Terra, algumas vezes nas costas de uma tartaruga. Entre os cheyenne se diz que a
terra expandiu de tal forma que somente a Avó Tartaruga foi capaz de carregá-la.
[9]
Outro tipo frequente de criação é o da ‘emergência’, particularmente
prevalente no sul e no meio-oeste americano, algumas vezes conjugado com o ‘ser
que mergulha’. No mito, as pessoas ‘emergem’ de um ou mais submundos. O
submundo, neste contexto, pode ser visto como o útero da mãe Terra, onde são
concebidos os humanos, plantas e animais, e onde eles amadurecem gradualmente,
até que estejam prontos para nascer por meio de uma abertura sagrada, o sipapu
dos hopis. No submundo as pessoas permanecem na escuridão, enquanto são
preparadas para uma nova vida, sob a luz do Sol. Esse mito é particularmente
importante para os navajos e para os apaches, sendo a base dos seus rituais e
cerimônias de cura, que marcam um novo começo.[10]

O mito da ‘emergência’ é essencialmente feminino, divindades masculinas têm


papel secundário uma vez que ele representa o processo de nascimento de uma
deusa-parteira, como a Mulher Aranha dos hopis, a Mulher Mutante dos navajos,
a Mulher Pensamento dos keres ou a Mãe Milho dos pawnees. Elas sugerem uma
sociedade matrilinear, onde a Terra era sagrada e as deusas reinavam. Estes mitos
geralmente vão muito além da criação do mundo e se tornam a verdadeira história
das tribos norte-americanas.[11]
Representação artística do deus Ñanderuvusu (imagem original: Mitologia
Brasil).
OS GUARANIS E A GÊNESE BRASILEIRA

O advento de Ñamandu1

Ñanderu Papa Tenonde, Nosso Pai, o Último, o Primeiro [o Absoluto], fez


com que seu próprio corpo surgisse da noite originária. A divina planta dos pés, o
pequeno traseiro redondo, no coração da noite originária ele os desdobra. Divinas
palmas das mãos, palmas divinas de ramagens floridas. Ele os desdobra, criando a si
mesmo, Ñamanduí, no meio da noite originária.

No cimo da cabeça divina, adornada de flores, as plumas que a coroam são


gotas de orvalho. O pássaro originário Maino, o colibri, esvoaça entre as flores.
Nosso primeiro Pai, em seu próprio desdobramento, existia no meio dos ventos
primitivos. Antes de haver concebido sua futura morada terrena, antes de haver
concebido o firmamento celeste e sua terra futura, que originalmente surgiram, o
colibri refrescava sua boca. Era o colibri quem alimentava Ñamandu com
produtos do paraíso.

Ñanderu Ñamandu Tenondegua, Nosso Pai Ñamandu, o Primeiro, antes de


haver criado sua futura morada celeste, ele não via a noite, todavia Kuaray [o Sol]
ainda não existia. Ele era iluminado pelo reflexo do seu próprio coração.

Ñamandu Ru Ete Tenondegua, Ñamandu Pai Verdadeiro Primeiro habitava


o coração dos ventos originários, onde urukure’a, a coruja, descansava e produzia
trevas, ela faz com que se pressinta o espaço tenebroso. […] Terminado o tempo
primitivo, quando a árvore tajy está florida, então o vento se converte em tempo
novo, ei-los já aqui, os ventos novos, o tempo novo, o tempo de coisas não-
mortais.
Fundamentos da linguagem humana2

O verdadeiro Pai Ñamandu, o Primeiro, de uma pequena porção da sua


própria divindade, do seu saber divino, fez com que a chama e a bruma se
engendrassem.

Então ele se ergueu em seu saber divino e concebeu o ayvu rapyta, o


fundamento da Palavra [a origem da linguagem humana]. Antes que a Terra
existisse, em meio às trevas primordiais, antes do saber das coisas, ele criou o
fundamento da Palavra futura e a fez parte da sua própria divindade.

Tendo concebido a origem da futura linguagem humana, em seu divino saber,


em virtude da sua sabedoria criadora, ele concebeu a fonte do que está destinado a
reunir [amor]. E fez brotar, em sua solidão, a origem de um único canto sagrado,
antes de existir a Terra, em meio às trevas originárias ele o fez.

Havendo criado, em sua solidão, o fundamento da linguagem, havendo criado


uma pequena porção de amor, e havendo criado, em sua solidão, um breve canto
sagrado, refletiu profundamente sobre a quem fazer partícipe do fundamento da
Palavra, do pequeno amor e do canto sagrado. Com força seu olhar procura, do
divino saber ele criou aqueles que seriam companheiros da sua divindade.

Do seu divino saber, fez com que surgisse Ñamandu de Coração Grande
[Ñamandu Py’a Guachu], para ser o pai verdadeiro das numerosas crianças que
estão por vir. Depois, do seu divino saber das coisas, ao verdadeiro pai dos futuros
karai, ao verdadeiro pai dos futuros jakairá e ao verdadeiro pai dos futuros tupã,
ele os fez conscientes da divindade. Ele fez com que se saibam divinos os pais
verdadeiros de seus numerosos filhos que estão por vir, verdadeiros pais da Palavra
que habitará os numerosos filhos que estão por vir.

Ñamandu Ru Ete [Pai verdadeiro], a fim de que tome lugar em face de seu
coração, fez com que se saiba divina a futura mãe dos ñamandu. Karai Ru Ete a
fim de que tome lugar em face de seu coração, fez com que se saiba divina a futura
mãe dos karai. Jakairá Ru Ete, a fim de que tome lugar em face de seu coração, fez
com que se saiba divina a futura mãe dos jakaira. Tupã Ru Ete, de igual modo, fez
com que se saiba divina a futura mãe dos tupã.

Encarregados do divino saber das coisas, do fundamento da Palavra, da fonte


daquilo que reúne [amor], e do canto sagrado, depois de haverem se inspirado na
sabedoria criadora, são assim igualmente chamados excelsos pais verdadeiros da
Palavra-alma.

Yvy Tenonde, a primeira Terra3

O verdadeiro Pai Ñamandu, o Primeiro, tendo concebido sua morada terrena,


da sabedoria contida em sua própria divindade e em virtude de sua sabedoria
criadora, fez que na extremidade de sua vara fosse engendrada a Terra.

Criou uma palmeira eterna no futuro centro da Terra, criou outra na morada
de Karai, outra na morada de Tupã, criou outra na origem dos bons ventos e
ainda outra na origem do espaço-tempo primitivo. Criou cinco palmeiras eternas,
as palmeiras eternas sustentam a morada terrena.

Existem sete paraísos, o firmamento descansa sobre quatro colunas, que são
varas-insígnias. Com os ventos, Nosso Pai empurrou o firmamento estendido,
colocando-o em seu lugar. Tendo colocado primeiramente apenas três colunas no
paraíso, este se movia, por isso colocou uma quarta coluna de varas-insígnia,
depois disso ele ficou em seu devido lugar e não mais se movia.

A primeira a sujar a morada terrena foi a serpente originária; agora só existe sua
imagem sobre a nossa Terra. A verdadeira serpente está nos arredores do paraíso
do Nosso Pai.
O primeiro ser que cantou na morada terrena de Nosso Primeiro Pai, o
primeiro que entonou sua lamentação, foi yrypa, a pequena cigarra vermelha. A
cigarra vermelha originária está nos arredores do paraíso de Nosso Pai, e esta que
está na morada terrena é apenas sua imagem.

Yamai, o girino, é o senhor das águas, aquele que faz as águas. O verdadeiro
yamai está nos arredores do paraíso de Nosso Pai, este que existe atualmente em
nossa Terra é apenas a sua imagem.

Quando Nosso Pai fez a Terra, dizem que ainda não haviam os bosques e os
campos. Por esse motivo e para que trabalhasse na formação das pradarias, criou o
tuku, o grilo verde. E onde o grilo fincou sua extremidade inferior se engendraram
as matas e pastos; somente então se formaram as pradarias. O grilo original está
nos arredores do paraíso de Nosso Pai, este que hoje está na Terra é apenas sua
imagem. E quando apareceram as pradarias, o primeiro a entonar seu canto e
manifestar seu regozijo foi inambu, a perdiz vermelha.

O primeiro a remover a terra na morada terrena de Nosso Pai foi o tatui, o


tatu. Este que existe hoje na Terra não é o verdadeiro tatu, mas sua simples
imagem. A dona das trevas é urukure’a, a coruja. Nosso Pai, o Sol é o dono do
amanhecer.

Nosso Primeiro Pai está em vias de se aprofundar em sua morada celeste, assim
ele falou a Karai Pai verdadeiro: ‘Só você, Karai de Coração Grande, quanto às
chamas inacessíveis, em que me inspiro, faça com que seu filho seja delas guardião
e seja chamado senhor das chamas.’

Depois falou a Jakairá: ‘Veja! Quanto a você, Jakairá de Coração Grande,


será o guardião da bruma, onde nascem as Belas Palavras, faça com que seu filho
seja dela guardião e seja chamado senhor da bruma das Belas Palavras.’
Depois falou a Tupã, Pai verdadeiro: ‘Quanto a você, será guardião do grande
mar e das ramificações do grande mar em sua totalidade. Farei que o firmamento
seja fresco para você, por isso, graças aos seus inúmeros filhos, Tupã de Coração
Grande, você enviará essa fonte de frescor em favor dos nossos filhos, os bem-
adornados, e em favor de nossas filhas, as bem-adornadas.’ […]

Depois dessas coisas, ele inspirou o canto sagrado do homem para os


verdadeiros primeiros pais de seus filhos, assim como inspirou o canto sagrado da
mulher para as verdadeiras primeiras mães de suas filhas, para que prosperem e
sejam numerosos sobre a Terra.

O dilúvio4

Nosso Pai, o grande, desceu sobre a Terra e falou a Guyraypoty: ‘Dancem, pois
tudo irá mal sobre a Terra!’ Eles dançaram durante três anos, antes de ouvir o
ruído das coisas más. A Terra estava prestes a cair e balançava do lado do Sol
poente. Então Guyraypoty disse a seus filhos: ‘Vamos! O ruído das coisas más nos
assombra’! E eles caminharam para o Leste, para a beira-mar. Os filhos de
Guyraypoty perguntaram: ‘A coisa má chegará até aqui?’ ‘Não’, respondeu
Guyraypoty, ‘somente no final de um inverno chegará a coisa má’. E seus filhos se
puseram a trabalhar.

O ano se passou e novamente se ouviu o ruído da coisa má e eles caminharam


novamente. A Terra tremia com mais frequência. ‘Agora, dizem, o mal vai se
acelerar, agora não façam mais roça’, assim falou Nosso Pai a Guyraypoty, que
transmitiu a seus filhos. Então os filhos de Guyraypoty não fizeram roça e
perguntaram: ‘E como vamos sobreviver’? Guyraypoty respondeu: ‘Eu farei
aparecer o que será nossa alimentação’. E eles caminharam novamente,
caminharam longe. […] Guyraypoty pisou contra uma árvore e fez aparecer
jabuticabas para que seus filhos comessem. ‘Deixem um galho para que aqueles
que virão depois de nós possam comer’ disse Guyraypoty. Entretanto a Terra ardia
cada vez mais.

Novamente caminharam e então ele falou a seus filhos: ‘Este lugar, dizem, é a
montanha que detém o mar. Ela é, dizem, destinada a subsistir. É chegado o
tempo de construir nossa morada, é preciso que a façam de madeira! Senão, dizem,
ela desaparecerá nas águas. Eis o que me disse Nosso Pai, o grande.’

E Guyraypoty falou ao jyparu: ‘Ajude meus filhos!’ ‘Nenhuma ajuda! Vou


fazer piroga [canoa]’, respondeu ele. Ao pato ele disse: ‘Ajude meus filhos!’ Mas o
pato respondeu: ‘Também não ajudo, pois posso voar.’ E disse ao suruvá: ‘Você
também não ajudará meus filhos?’ ‘Eu também não’, respondeu o suruvá. E
Guyraypoty falou: ‘Então fique, veremos quando a água chegar!’

Eles fizeram uma casa de tábuas, terminaram a casa e se puseram a dançar. […]
Então a água veio e se espalhou. E o jyparu gritou: ‘Tragam-me um machado de
pedra, vou talhar uma piroga’, mas a espuma da água já envolvia o alto da sua
cabeça. O pato quis voar, mas os habitantes da água o devoraram. O suruvá
também gritou: ‘A água veio mesmo!’ E, quando falava, a água encheu sua boca e
sua alma-palavra se transformou em pássaro.

A filha de Guyraypoty tinha levado consigo um tatu. E a água cobriu a casa. A


mulher de Guyraypoty falou: ‘Suba na vertente da casa!’ Guyraypoty se pôs a
chorar e sua mulher disse: ‘Não tenha medo, meu velho! Mostre seus braços aos
pássaros. Se os pássaros favoráveis vierem pousar sobre eles, erga-os acima de nós.’
Em seguida, ela fez ressoar várias vezes seu bastão de dança nas vigas da casa. Então
Guyraypoty entoou o canto ñeengarai. E a casa parou de tremer, saindo das águas;
eles se elevavam e se iam. Chegaram à porta do Céu e a água, seguindo seus traços,
também chegava.

Yvy Pyau, a Nova Terra5


Ñamandu, Pai verdadeiro, a seu mensageiro: ‘Bem, vá, meu filho! A Karai,
Pai verdadeiro, pergunte se estabelecerá em seu lugar verdadeiro sua futura
morada terrena.’ Karai, Pai verdadeiro, respondeu ao mensageiro: ‘Não
estabelecerei, quanto a mim, em seu lugar verdadeiro, nada que é destinado a não
durar. Farei, quanto a mim, abater minha cólera sobre esta Terra.’

Ñamandu, Pai verdadeiro, a seu mensageiro: ‘Bem, sendo assim, vá e pergunte


a Jakairá, Pai verdadeiro, se sua futura morada terrena será instalada em seu
verdadeiro lugar.’ Jakairá, Pai verdadeiro, respondeu: ‘Desejo, quanto a mim,
estabelecer em seu lugar minha futura morada terrena. Vejam que minha Terra já
anuncia infortúnios para nossos filhos e para os filhos de nossos filhos. Apesar
disso, farei com que se espalhe a bruma vivificante sobre todos os seres
verdadeiros, que seguirão pelos caminhos da imperfeição. Criarei o tabaco e o
cachimbo, para que nossos filhos se defendam, e espalharei docemente sobre os
seres da floresta a luz dos meus raios silenciosos.’

Texto extraído das seguintes fontes, Ayvu Rapyta: Textos Míticos de los Mbyá-
Guaraní del Guairá, de León Cadogan; A fala sagrada: Mitos e cantos sagrados
dos índios Guarani, de Pierre Clastres e Mitologia Guarani: A criação e a
destruição da Terra, de Aldo Litaiff.

1. Cadogan, Cap. 1; Clastres, pp. 20-25

2. Ibid., Cap. 2; Ibid., pp. 26-33

3. Ibid., Cap.3; Litaiff, pp. 31-33

4. Unkel apud Litaiff, pp. 41-42; Clastres, pp. 51-54

5. Cadogan, Cap. 7; Clastres, pp. 58-59


Os relatos dos índios mbya-guarani e apokuva-guarani foram feitos aos
etnólogos León Cadogan e Curt Unkel Nimuendaju, no início do século XX.
Nimuendaju é o nome de batismo apokuva do alemão Curt Unkel, que viveu em
diversas tribos guaranis entre 1905 e 1945. Cadogán foi um etnólogo paraguaio,
um dos maiores estudiosos da linguagem e da cultura guarani.

Os guaranis pertencem ao tronco tupi e à família linguística tupi-guarani.


Constituíram uma das sociedades indígenas sul-americanas mais numerosas,
habitavam boa parte das regiões litorâneas do sul e sudeste do Brasil, estendendo-
se pelas bacias dos rios Paraná e Prata, até o Paraguai e a Bolívia. Quando os
portugueses aportaram na Terra de Vera Cruz, a população guarani possivelmente
chegava a 2 milhões de pessoas. Hoje restam poucas comunidades que tentam
sobreviver à margem da sociedade ‘branca’. O litoral sul e sudeste do Brasil
atualmente concentra os mbya e chiripa, no território onde viveram seus ancestrais
carijós, que desapareceram no século XVII.[1]

Os relatos de André Thevet, que viveu entre os tupinambás nos idos de 1575,
guardam semelhanças consideráveis com a gênese mbya-guarani relatada por
Cadogan quase quatro séculos depois, com a diferença de que o deus tupinamba é
Monan, sem começo nem fim, o criador do Céu e da Terra. Por causa da
ingratidão do homem Monan fez descer fogo do Céu que consumiu tudo que
existia na face da Terra, assim ela teve que ser refeita da maneira que é hoje.[2]

Os mitos do Dilúvio e dos Irmãos (falaremos dele adiante) são encontrados


entre quase todos os povos da família tupi-guarani, afirma a antropóloga francesa
Hélène Clastres. Esses mitos são muito antigos, remontam a uma era pré-histórica,
muito anterior à colonização. Bartolomeu Melià identificou uma matriz mítica do
tronco tupi de dois milênios ou mais.[3]

Poucos povos demonstraram tanto zelo em preservar sua história e sua religião
como os guaranis. Seu universo religioso é ao mesmo tempo fonte e fim da forma
de viver, mantido em segredo e transmitido de pai para filho. Nem mesmo os
obstinados missionários conseguiram penetrar nesse universo. Por isso o mundo
branco permaneceu por tanto tempo em total ignorância em relação ao mundo
guarani com toda a sua profundidade e beleza da linguagem. Era preciso merecer a
confiança, foi assim com Cadogan, que sendo aceito pelos mbya-guarani recebeu
um nome indígena e o direito de partilhar das suas histórias.[4]

Para os guaranis tudo tem um cunho religioso, exemplo disso são as grandes
migrações que ocorreram no início do século XX em direção ao litoral brasileiro,
por povos vindos de várias regiões do Mato Grosso, Paraguai e Argentina.
Forçados pela invasão de suas terras por colonizadores eles saíram em busca de Yvy
Mara Ey, a Terra sem Mal, ou Yvy Dju, a Terra Sagrada.[5]

Os guaranis atuais conhecem bem essa narrativa. Foi em Yvy Mara Ey que
Ñamandu descansou depois de criar Yvy Tenonde, a primeira Terra, mas só depois
de ter certeza que ela estava bem segura pelas cinco palmeiras eternas. Este nhande
rekoram idjipy (mito) é o início do sistema de vida e da história do povo guarani,
afirma o cacique Adolfo Vera, da terra indígena de Rio Silveira. Segundo ele, os
índios não matam os bichinhos que ajudaram na criação do mundo, o tatu’i, o
maino’i e o kururu (o tatu, o colibri e o sapinho).[6]

Ñamandu Ru Ete, Ñanderu Papa Tenonde, Ñamanduí, Ñamandu Ru Ete


Tenonde, Ñamandu Yma e Ñanderusuvu são todos nomes do Absoluto, o deus
supremo e criador, figura central da teogonia mbya-guarani, segundo Cadogan.
Os nomes referem-se a diferentes atributos como pai, verdadeiro ou primeiro.
Ñamandu foi o primeiro Ñanderu (Pai), depois vieram outros: Karai, Jakairá e
Tupã. Os deuses deram origem aos humanos, assim como a outros seres divinos
como Kuaray e Jacy.
A primeira Terra representou a idade de ouro de uma humanidade formada
por homens-divinos. A contrapartida era a obrigação essencial de permanecerem
conforme às normas enunciadas pelos deuses. O frescor que Tupã produzia
deveria mantê-los longe de qualquer transgressão, mas não é o que aconteceu. O
fim da primeira Terra marca a separação entre o divino e o humano.[7]

Segundo versões mbya, o fim de Yvy Tenonde, provocado pelo dilúvio, está
relacionado à união incestuosa de um homem karai com sua tia paterna. Esse mito
foi encontrado entre os mbya atuais e guarda semelhança com as versões
tupinambá e chiripa. Outros negam o incesto, mas sempre colocam o dilúvio
como fator de divisão, criando uma dicotomia entre a Segunda Terra, lugar da
descontinuidade e da morte, e Yvy Mara Ey, a distante terra da eternidade.
Aqueles que não procedem bem são condenados a habitar a terra de Anham (o
maligno).[8]

Não poderia deixar de abordar o mito dos Irmãos, também conhecido como
Ciclo dos Irmãos, ou dos Gêmeos, que está intimamente associado à criação da
Segunda Terra. Segundo uma das muitas versões os irmãos são os primeiros
habitantes da nova Terra, ambos são filhos de Ñandecy, a esposa de Ñanderusuvu
(Nosso Pai, o grande), mas só o mais velho é filho legítimo dele. Mais tarde os
meninos se transformarão, o primeiro, Kuaray, no Sol e o segundo, Jacy, na Lua.
É impróprio, portanto, chamá-los de gêmeos. Enquanto Kuaray é filho de
Ñanderuvusu, Jacy é filho de uma figura pouco conhecida, Ñanderu Mbaekuaa,
Nosso Pai que sabe das coisas. Ele aparece apenas para engravidar a mulher já
grávida do seu marido, que decide deixar a mulher infiel e abandonar a nova Terra
à sua própria sorte. O divino e o humano estão definitivamente separados.[9]

O mito dos Irmãos conta uma longa sequência de eventos tragicômicos. No


mito, Ñandecy acaba sendo morta pelos jaguares primordiais, Kuaray tenta
ressuscitar a mãe por meio de rezas e danças, mas Jacy se agarra a ela tentando sugar
seu leite, impedindo que ela se coloque de pé e que Kuaray consiga ressuscitá-la.
Segundo o mbya Leonardo Vera Tupã, ‘se Ñandecy tivesse conseguido ficar
totalmente de pé ela teria retornado à vida, mas Jacy não permitiu’. Ao final da
odisseia, os dois irmãos, convertidos em astros, percorrem o firmamento, que
habitarão por toda a eternidade ao lado de Ñanderuvusu.[10]
EPÍLOGO

Enquanto trabalhava na edição final deste livro, deparei-me com um livro


pequeno em tamanho, porém enorme em profundidade, trata-se de Ideias para
adiar o fim do mundo de Ailton Krenak. O autor, de origem indígena, fala com
muita propriedade da relação da humanidade com o meio ambiente, não do ponto
de vista de quem olha pelo ‘buraco da fechadura’, mas de quem aprendeu, desde
criança, os segredos das matas, dos bichos e dos rios.

Os krenak são conhecidos como os últimos ‘Botocudos do Leste’, assim


chamados por seus botoques auriculares e labiais. A aldeia krenak fica na margem
esquerda do rio Doce, do outro lado tem uma serra, cujo nome Ailton aprendeu
cedo, chama-se Takukrak, aprendeu também que ela tem personalidade. As
pessoas olham para ela pela manhã, diz o autor, e sabem se o dia vai ser bom ou se é
melhor ficar quieto. Quando ela amanhece esplêndida as pessoas podem fazer
festa, dançar e pescar, mas quando ela está com cara de poucos amigos é melhor
ficar atento.

Hoje as pessoas olham a previsão do tempo no smartphone e sabem que tem


um enorme aparato por traz, mas Takukrak não é o Climatempo. A relação dos
krenak com a natureza é outra, quando olham para a montanha não veem uma
fonte de informação mas sim uma manifestação deste organismo vivo que é a
Terra, que para muitas culturas continua sendo a mãe provedora, não só no
sentido da subsistência e manutenção da vida, mas também na dimensão
transcendente que dá sentido à existência.

Quanto ao rio Doce, que os krenak chamam de Watu, ‘nosso avô’, é para eles
uma pessoa, não um recurso, que foi tremendamente afetado pela lama da
mineração em uma das maiores tragédias ambientais do mundo. Ailton critica a
ideia de humanidade como algo separado da natureza, uma ‘humanidade que não
reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô’.

Percorrendo os Andes, aprendi que os povos andinos originários se


relacionam com as montanhas do mesmo modo que os krenak se relacionam com
Takukrak. Ali as montanhas formam casais, têm filhos, tem virtudes, defeitos e
sentimentos bastantes humanos como ciúmes e afeto. Cuspir lava e fumaça é
apenas uma forma de mostrar superioridade, enquanto os cumes aplainados são
sinal de respeito daqueles que foram subjugados.

Aprendi sobre uma criatura curiosa venerada pelos mapuches, a malévola


serpente Cai Cai. Segundo o mito foi ela quem provocou o diluvio por causa da
ingratidão dos humanos, ela também costumava petrificar as almas dos guerreiros
mapuches, transformando-os em magníficas montanhas.

O arquétipo da serpente se repete com Quetzalcoatl, a ‘serpente emplumada’


dos astecas, deus da vida, da luz e da sabedoria, senhor do dia e dos ventos; com
Ananta, ‘infinito’ em sânscrito, a serpente primordial venerada pelos hindus, que
simboliza a eternidade e a ausência do tempo; a serpente Jormungand, o ‘Fecho do
Mundo’ dos nórdicos, filho do deus Loki; ou de Tiamat, a deusa dos mares,
representada como uma serpente marinha ou um dragão nas mitologias suméria e
babilônica, a personificação do caos primordial, e sua homóloga bíblica Tehom,
entre tantas outras.

Não podemos ignorar o padrão que se repete em culturas tão distintas. O


inimigo cósmico, diz Freund, aparece sempre sob a mesma forma, de um monstro
tenebroso que solta fogo pelas ventas, e invariavelmente acaba subjugado pelo
herói venerado naquela cultura.
Muitas vezes o dragão-monstro ou o ser primordial é desmembrado e partes
do seu corpo dão origem ao cosmos. É assim com Tiamat, cujo corpo
esquartejado se transformou no Céu e na Terra, ou Ymir, o gigante do gelo
nórdico, ou ainda o gigante hindu Purusha e o chinês P’an Ku.

Curioso descobrir traços arquetípicos do monstro aquático entre os


yanomami, um dos maiores povos indígenas da atualidade, senão o maior, que
vivem relativamente isolados entre o extremo norte do Brasil e o sul da Venezuela.
Só foram contatados na década de 1940 quando o governo brasileiro enviou
equipes para delimitar a fronteira com a Venezuela. Desde então os napë (inimigo,
estrangeiro, ‘branco’) tem sido uma ameaça constante aos yanõmami thëpë, ‘seres
humanos’ na língua nativa.

Omama é a divindade criadora dos yanomami, que tirou das águas a filha do
monstro aquático Tëpërësiki, dono das plantas cultivadas, mas ela não tinha
genitália, apenas um diminuto buraco do tamanho do ânus de um beija-flor.
Omama tomou dentes de piranha para moldar a genitália da mulher e com ela
copulou, tornando-se pai de uma prole numerosa, ancestrais dos yanomamis.
Omama estabeleceu as regras da sociedade e da cultura yanomami e criou os
espíritos auxiliares dos pajés. O primeiro xamã era filho de Omama e seu irmão
ciumento e malvado Yoasi é a origem da morte e dos males do mundo.

Outro mito conta que o povo yanomami surgiu do sangue de Periboriwa,


deusa da Lua, que foi derramado sobre a Terra, transformando-se em homens
assim que atingia o solo. Os yanomamis se consideram ‘o povo feroz’, por terem
nascido do sangue da deusa.

Sol e Lua são personagens importantes na mitologia, como a dupla tupi-


guarani Kuaray e Jacy, ou os gêmeos prodigiosos maias, Junajpu e Ixb’alank. Os
inuítes (esquimós) contam a história de Igaluk, a Lua, irmã do deus Sol Malina, e
os chibcha, da Colômbia, contam que o Sol e a Lua criaram o primeiro homem de
barro e a primeira mulher de junco. Céu e Terra também formam um casal
primordial, tal como na história egípcia de Nut e Geb ou na história maori de
Rangi e Papa.

A memória ancestral dos povos originários, sejam dos krenak, hopis ou


mapuches, só foi preservada pela capacidade desses povos de contar histórias. É
assim que Ailton Krenak quer adiar o fim do mundo, contando histórias. ‘Se
pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim’, diz o autor. Desistir dos sonhos
seria para ele o ‘fim do mundo’, assim como a assimilação das ideias e da vida num
tipo de ‘humanidade zumbi’.

Em seu livro, Krenak conta a história de um pesquisador europeu que, no


começo do século XX, chegou a uma aldeia hopi, nos Estados Unidos, onde
tencionava entrevistar uma anciã. Quando foi encontrá-la, ficou esperando por
algum tempo enquanto ela continuava parada perto de uma rocha. O pesquisador
então travou o seguinte diálogo com o seu facilitador: ‘Ela não vai conversar
comigo, não?’ Ao que ele respondeu: ‘Ela está conversando com a irmã dela.’ ‘Mas
é uma pedra’, disse o pesquisador. E o camarada respondeu: ‘Qual é o problema?’

Sim, que pergunta pertinente: ‘Qual é o problema’?


NOTAS

AS MUITAS FACES DE RÁ

[1] Budge, p. 9

[2] Ibid. pp. 13-16

[3] Ibid., p. 25

[4] Davis pp. 95-102

[5] Hart, p. 18

[6] Ibid., pp. 19-21

[7] Willis, p. 39

[8] Hart, p. 11

[9] Ibid., pp. 11-12

[10] Davis, pp. 89-90; 127

[11] Hart pp. 22-23

[12] Ibid., pp. 12-13


[13] Ibid., p. 15

[14] Davis, p. 96

[15] Budge, pp. 31-32

[16] Ibid., p.32

[17] Hart, pp. 29-33


O GÊNESIS SUMÉRIO

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Suméria

[2] Davis, p. 206

[3] Parks, e-book pos. 307

[4] Davis, p. 208

[5] Ibid., p. 209

[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Gilgamés

[7] Davis, p. 223


ENUMA ELISH, O ÉPICO BABILÔNICO

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Enuma_Elis

[2] Eliade, p. O conhecimento sagrado de todas as eras, pp. 74-75

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] Graves & Patai, p. 31

[6] Davis, p. 227

[7] Ibid., pp. 212-213


NO PRINCÍPIO [BERESHIT]

[1] https://www.imj.org.il/en/wings/shrine-book/dead-sea-scrolls

[2] Ehrman, p. 28

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] Goldberg, pp. 17-18

[6] Ibid., p. 31

[7] Armstrong, p. 20

[8] Campbell, M. Ocidental, p. 92

[9] Graves e Patai, p. 31

[10] Ibid.

[11] Bellamy, pp 169-190


A OBRA DE JEOVÁ

[1] Graves, p. 24

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/YHWH

[3] Campbell, M. Ocidental, p. 92

[4] Golberg, p. 48

[5] Campbell, M. Ocidental, p. 91

[6] 2 Reis 23.25

[7] Armstrong, p. 21

[8] Gênesis 3.7


A CRIAÇÃO EM OUTROS TEXTOS BÍBLICOS

[1] Graves & Patai, p. 29

[2] Whatham p.329

[3] Gouvêa pp. 71-78


O PARADOXO INDIANO

[1] Davis, pp. 436-438

[2] Ibid., p. 433

[3] Ibid., pp. 433-434

[4] Rg Veda, Livro 10:129, Wilson, Nota 1

[5] Ibid., Livro 1:24, Wilson, Nota 2; Livro 10:129, Griffith, Nota 19

[6] Aitareya Brahamana 3.21, In Doniger, p. 91

[7] Armstrong, p. 40

[8] Ibid., p. 41

[9] Davis, pp. 456-457

[10] Ibid., p. 106

[11] Rg Veda, Livro 1:22, Wilson, Nota 8; Doniger, p. 94

[12] Kurma Purana (Varanasi: All-India Kashiraj Trust, 1972), 1.9, In Doniger,
p. 95

[13] Doniger, p. 94
[14] Rg Veda, Livro 10:90, Wilson, Nota 18

[15] The Laws of Manu 1.8-25; 1.31-32, In Doniger, pp. 97-98

[16] Davis, pp. 449, 457

[17] https://amrithallan.medium.com

[18] Brihadaranyaka Upanishad 3.9.1, In Donniger, p. 92

[19] Astavakra-samhita 19.3, In: Campbell, M. Oriental, p. 32


ASSIM FALOU ZARATHUSTRA

[1] Soares, p. 128

[2] Ibid., p. 126

[3] https://www.history.com/topics/ancient-middle-east/persian-empire

[4] Ibid.

[5] Soares, p. 122

[6] Ibid., p. 120

[7] Darmesteter, p. 251

[8] Soares, p. 131

[9] Ibid., p. 131

[10] Darmesteter, p. 51

[11] Ibid., p. 42

[12] Ibid., p. 40

[13] https://en.wikipedia.org/wiki/Parsis
[14] Darmesteter, pp. 26 e 57
O GÊNESIS ISLÂMICO

[1] Al-Udhari, p. 371

[2] Hourani, p. 21

[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Bantus

[4] Alcorão 96.1-8, In: Hourani, p. 33

[5] Hourani, p. 33

[6] Knappert, p. 5

[7] Al-Udhari, p. 370

[8] Ibid., p. 372

[9] Ibid.

[10] Knappert, p. 29

[11] Ibid.

[12] Ibid., p. 31
O CHIFRE DE NGONA

[1] Frobenius & Fox, p. 12

[2] Ibid., p. 35

[3] Ibid., p. 36

[4] Davis, p. 545

[5] https://www.cambridge.org/core/books/invention-of-god-in-indigenous-
societies

[6] Davis., pp. 563-564

[7] Schipper, pp. 130-137

[8] Ibid., pp. 137-138


TEOGONIA DE HESÍODO

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Teogonia

[2] Willis, p. 129

[3] Davis, p. 284

[4] Salis, e-book pos. 267

[5] Ibid., pos. 293

[6] Ibid., pos. 316

[7] Ibid., pos. 321


VÖLUSPÁ, O POEMA NÓRDICO DA CRIAÇÃO

[1] Leeming, Do Olimpo a Camelot pp. 96-97

[2] Davis pp. 406-408

[3] Leeming, Do Olimpo a Camelot p. 96

[4] Ibid., p. 98;

[5] Ibid., p. 99

[6] Ibid., p. 99

[7] Miranda, pp. 180-182

[8] Bellows, Notas 4 e 18

[9] Leeming, Do Olimpo a Camelot pp. 102-103

[10] Davis, p. 418


OS LIVROS APÓCRIFOS DO CRISTIANISMO ESLAVO

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Biblical_apocrypha

[2] Willis p. 206

[3] Ibid.

[4] Ibid., pp. 206-207

[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Chernobog

[6] Willis., p. 208

[7] Ibid., p. 209

[8] Badalanova, pp. 173-174

[9] Ibid., p. 175

[10] Ibid., p. 173

[11] Ibid., pp. 170-171; 180

[12] Ibid., pp. 177-178


O TAO CHINÊS

[1] Birrell, p. 24

[2] Ibid., p. 26

[3] Ibid., pp. 33-34

[4] Willis, p. 88

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] Ibid., p. 98

[8] Birrell p. 23

[9] Ibid.

[10] Campbell, M. Oriental, pp. 28-29

[11] Ibid., p. 32

[12] Davis p. 503

[13] Willis p. 91
[14] Ibid., p. 92

[15] Ibid.
O KOJIKI E A ORIGEM DO JAPÃO

[1] Willis, p. 111

[2] Ibid.

[3] Wilds, p. xi

[4] Willis, p. 111

[5] https://voyapon.com/earthquakes-japan

[6] Willis, p. 110

[7] Yoshida, pp. 17-19

[8] Ibid., pp; 25-28

[9] Davis, pp. 523-528

[10] Ibid.
A VOZ DOS MAORIS

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Polinésia

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Nova_Zelândia

[3] Willis, p. 290

[4] Ibid., p. 294

[5] Grey, p. 14

[6] Willis, p. 295

[7] Freund, p. 109

[8] Willis, p. 297

[9] Ibid.
O POPOL VUH E A CRIAÇÃO DO MUNDO MAIA

[1] Montejo, p. 7

[2] Stuart, pp. 23-24

[3] Ibid., pp. 30-31

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Civilização_maia

[5] Montejo, p. 7

[6] Nicholson, p. 56

[7] Montejo, pp. 37-38

[8] Ibid., p. 39
VIRACOCHA, O CRIADOR INCA

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Império_Inca

[2] Maín-Dale, pp. 3-4

[3] Clayton, p. 6

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Império_Inca

[5] Maín-Dale, p. 98

[6] Ibid., p. 91

[7] Ibid., p. 92

[8] Kusch, pp. 52-53

[9] Clayton, p. 13

[10] Ibid., pp. 13-16


A MULHER ARANHA HOPI

[1] Leeming & Page, p. 90

[2] Ibid., p. 91

[3] Davis, p. 594

[4] Ibid., p. 596

[5] Ibid., p. 599

[6] Willis, p. 220

[7] Ibid., p. 222

[8] Davis, p. 603

[9] Leeming & Page, p. 77

[10] Ibid., p. 89

[11] Ibid., p. 90
OS GUARANIS E A GÊNESE BRASILEIRA

[1] Litaiff, pp. 15-19

[2] Ibid., pp. 29-31

[3] Ibid., p. 49

[4] Clastres, p. 10

[5] Litaiff, p. 16

[6] Ibid., p. 34

[7] Clastres, p. 46

[8] Litaiff, pp. 42-46

[9] Clastres, p. 60

[10] Litaiff, pp. 55-56


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SOBRE O AUTOR

Ivan Montenegro é um apaixonado por mitologia. Quando criança queria ser


astronauta ou escritor, cursou Teologia e Filosofia, mas seu destino era ser
engenheiro. Graduou-se pela UFMG, rodou o mundo e fez carreira como
executivo de grandes empresas. Atuou como professor ou palestrante em
instituições de prestígio como PUC e FGV. Não conseguiu ser astronauta, mas
nunca deixou de escrever, foram dezenas de artigos e crônicas, este é o seu terceiro
livro.

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