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Ivan Montenegro
Título:
Capa:
Ana C. Bahia
Diagramação:
Beatriz Albernaz
Revisão:
Beatriz Amaral
Ilustrações:
Paula Pereira
Foto do Autor:
Isabela Montenegro
Foto de capa:
Livro digital:
Lucas Camargo
Gabriela Fazoli
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem o consentimento por escrito do autor.
1ª Edição – 2022
ePub3.
Bibliografia.
ISBN: 978-65-89911-82-1
Título.
www.gullivereditora.com.br
INTRODUÇÃO
O GÊNESIS SUMÉRIO
NO PRINCÍPIO [BERESHIT]
A OBRA DE JEOVÁ
O GÊNESIS ISLÂMICO
O CHIFRE DE NGONA
EPÍLOGO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
Este livro é sobre isso, a origem do Universo e da vida. Não do ponto de vista
da ciência, mas de como os povos antigos a concebiam. Fui em busca dos textos
sagrados originais e da tradição oral de antigas culturas, que foram transmitidos de
geração em geração.
Bellamy se refere aos mitos também como ‘fósseis das religiões antigas’,
consequência não da imaginação, mas da observação interpretada e do acúmulo de
experiências. Por trás desses fósseis da fé estão acontecimentos reais que vão além
do escopo da própria história. Os mitos são assim tentativas de explicar os
fenômenos da natureza, a origem de todas as coisas, o sobrenatural e o humano.
São perfeitos como fonte de ensinamento de verdades espirituais e religiosas que,
de outra forma, permaneceriam incompreensíveis. Os mitos são tradições
primitivas sagradas, a ‘ciência’ dos nossos antepassados desconhecidos mais
longínquos, são a ‘história disfarçada’.
Eu me encantei por essas histórias, verdadeiros fósseis que são das civilizações
da Antiguidade, neste livro destaco vinte delas. Se você também é um amante dos
mitos e heróis, então este é o lugar certo. Mas não espere encontrar um tratado de
mitologia comparada ou uma interpretação psicológica dos mitos, não é este o
meu objetivo. Tampouco pretendo emitir juízo, advogar ou contestar. O que é
mito para um é a religião do outro. Meu propósito, antes de tudo, é mostrar toda a
riqueza e a beleza dos textos sagrados e da tradição oral dos povos da Idade Antiga
nos cinco continentes.
O mundo está repleto de mitos de origem, todos são falsos do ponto de vista
dos fatos, afirma Campbell, eles são antes interpretações poéticas do mistério da
vida. Eles extrapolam a história com uma simbologia verdadeira, reconhecida e
venerada em todo o mundo. Mito é a linguagem do coração e da mente juntos,
que ultrapassa a maneira comum de nos expressarmos, afirma Jacob Needleman,
segundo ele a natureza muitas vezes nos fala em linguagem mítica.
Meu tema específico são os mitos de origem, aqueles que buscam uma
explicação para a origem do Universo e da vida na Terra, são também conhecidos
como mitos cosmogônicos. Cosmogonia, segundo o dicionário Aurélio, diz
respeito à origem ou formação do mundo e do Universo conhecido, trata da
narrativa ou doutrina sobre a origem do Universo.
A influência direta dos mitos de uma cultura sobre outra é outro fato mais
comum do que se imagina. É inegável que a tradição judaica possui vários
elementos incorporados da Babilônia, que por sua vez foram herdados da Suméria.
Assim como se podem observar elementos persas no hinduísmo, das religiões
chinesas no xintoísmo japonês e dos incas sobre outras culturas andinas.
A criação de teorias sobre a origem do Universo parece não ter fim e isto
acontece porque até hoje nenhuma foi plenamente aceita. As respostas da ciência
moderna para a origem do Universo estão além do escopo deste livro, mas convém
lembrar que muitas teorias desenvolvidas por cientistas respeitados acabaram se
revelando não mais que mitos.
crescente fértil, o
berço da civilização
Antes que os deuses viessem a existir, o que havia era a densa escuridão das
águas do abismo, chamado Nu [Nun]. Das águas de Nu saiu Rá [o deus Sol], o
divino menino-homem, herdeiro da eternidade, que gerou a si próprio e nasceu de
si mesmo, rei da Terra, matéria primeva da qual todas as coisas foram feitas. Nu
cuidou dele e ordenou seus membros, Rá brilhou e foi coroado rei dos deuses.1
Rá fez surgir um outeiro elevado no meio das águas, onde permaneceu. Das
gotas de sangue que saíram do seu falo, quando ele se mutilou a si mesmo,
nasceram os deuses Hu e As [Chu e Tefnut], que estão no séquito de Rá e
acompanham o deus Tem [Temu] todos os dias.4
4. Papiro de Ani, Museu Britânico No. 10.470, folhas 7-10; Papiro de Nebseni,
Museu Britânico No. 9.900, folha 14
Na XIII dinastia o Livro dos Mortos inicia nova fase da sua existência, com a
transição dos escritos das pirâmides e ataúdes para papiros. Um rolo de papiro era
muito mais barato e podia empregar um escriba comum ou mesmo alguém que
quisesse fazer sua própria cópia. A maior parte dos papiros conhecidos foi
encontrada em Tebas, onde eram copiados principalmente para os sacerdotes e
suas famílias, a maioria a serviço de Amon-Rá.[3]
É provável que a versão mais antiga dos mitos da criação egípcios venha de
Mênfis, antiga capital política do Egito. Ptah era a divindade local e seu templo,
Hewet-ka-Ptah (mansão do espírito de Ptah), transliterado para o grego (Aeguptos)
é a origem da palavra Egito. A história de Ptah, contada na pedra de Chabaka, diz
que ele deu vida aos deuses mais antigos, incluindo Atum, de Heliópolis, ‘através
do seu coração e da sua língua’, ou seja, pelo poder do pensamento e pela sua
palavra. Pela simples pronúncia de uma série de nomes Ptah produziu o Egito
inteiro. Mas Ptah nunca chegou a ser o deus supremo de todo o Egito, acabou
sendo assimilado por outros deuses e se tornou um deus dos mortos.[5]
Temos ainda a história do deus Khnum, um antigo deus criador que tinha
cabeça de carneiro e surgiu em Elefantina, uma ilha do Nilo próxima de Assuã.
Acreditava-se que o deus controlava as cheias anuais do Nilo, ele corporificava a
fertilidade por meio da inundação. Khnum moldou os deuses, as primeiras pessoas
e os animais, de barro, numa roda de oleiro, e nos seus corpos soprou o fôlego da
vida.[7]
Em uma época que o Egito alcançou o auge do poder e riqueza, a capital era
Tebas e a divindade local, Amon, que passou a ser adorado como Amon-Rá. Era a
época dos grandes faraós, Tutmés III e Akhenaton, do breve reinado de
Tutancâmon e do bíblico Ramsés II. Nos cinco séculos do Novo Império, Amon-
Rá se tornou o líder incontestável do panteão egípcio, seus títulos incluíam
‘Senhor dos Tronos das Duas Terras’ e ‘Rei dos Deuses’. O esplendor de Tebas é
citado até mesmo por Homero na Ilíada.[11]
Maat, filha de Rá, era a deusa que assegurava a ordem cósmica, conceito que
os egípcios também denominam maat. Era Maat que fazia com que Sol nascesse
todos os dias, e que trazia a cheia anual do rio Nilo.[14]
Osíris, o filho mais velho de Geb e Nut se tornou um dos deuses mais
importantes do Egito antigo. Textos do Livro dos Mortos o colocam na posição de
chefe do ciclo dos deuses dos mortos, esse pressuposto durou até os primeiros
séculos da era cristã. Acreditava-se que Osíris, de origem divina, viveu na Terra
num corpo material, foi traiçoeiramente assassinado e retalhado, que sua irmã Ísis
recolheu os pedaços do seu corpo, e, por meio de palavras mágicas fornecidas pelo
deus Tot, o reconstituiu. O deus assim voltou à vida, tornou-se imortal e entrou
nos infernos, onde passou a ser ao mesmo tempo juiz e rei dos mortos.[15]
O grande opositor de Osíris era seu irmão Set, deus que representava as forças
do caos. Enquanto Osíris trouxe as plantas e estações para a Terra, ensinou ao
homem a usar ferramentas e fazer vinho e pão, Set era associado à tempestade e aos
perigos do deserto. Muitas vezes era visto como encarnação do mal. Frases
pintadas nos caixões fúnebres de membros da corte do Médio Império identificam
Set como assassino de Osíris, declarando que ele atacou Osíris em Gahesty e o
matou perto do rio em Nedyet. A rivalidade continuou entre Set e o deus falcão
Hórus, filho de Osíris e Ísis, mas essa é uma outra longa história.[17]
O deus sumério Enki-Ea em detalhe do Selo de Ada, selo cilíndrico acadiano
de cerca de 2300 AC.
O GÊNESIS SUMÉRIO
Tradução livre do livro Eden: the sumerian version of Genesis, de Anton Parks,
texto composto a partir das seguintes referências:
Enki, o mais sábio dos deuses, é filho de An e Ki, a deusa da Terra. Também
conhecido como Enki-Ea, ou Ea, deus das profundezas e da água (E-A), Senhor
da Terra (EN-KI), seus títulos incluem também os de criador da humanidade,
artífice da humanidade e serpente.[3]
O Enuma Elish conta como Enki subjugou Apsu, deus que personifica as
águas frescas da escuridão, na verdade, Enki usurpou o título após matar Apsu. Ele
e sua esposa Damkina são os pais de Marduk, que se tornaria o deus supremo da
Babilônia, identificado com o bíblico Baal.[4]
Enlil, senhor dos ventos e do ar, era filho de An e irmão de Enki. Durante
algum tempo ele foi alçado à mais importante posição do panteão substituindo o
pai como rei dos deuses, porém foi banido pela assembleia dos deuses da cidade de
Nippur, onde era cultuado, por ter estuprado a deusa Ninlil (Ninhursaga), deusa
dos grãos, enquanto ela tomava banho. Dessa relação nasceu Nanna, que se
tornou deus da Lua e veio a ser pai de Inana (Ishtar).[5]
Por fim, vamos citar a Epopéia de Gilgamesh, poema sumério que narra os
feitos do rei de Uruk que dá nome ao épico. Seu registro mais completo provém de
tábuas de argila escritas em língua acadiana do século VIII AC, que pertenceram
ao rei Assurbanípal, contudo já se encontraram tábuas do século XX AC, sendo
assim o mais antigo texto literário conhecido. O tema central do poema é a busca
que o herói Gilgamesh empreende para conhecer o segredo da imortalidade, que
era guardado por seu ancestral Utnapishtim, mas o que chama mais a atenção é a
incrível narrativa do dilúvio que seria o equivalente mesopotâmico do dilúvio
bíblico e da famosa Arca de Noé, porém mais antiga.[6]
Primeira Tábua
Quando no alto os céus ainda não existiam, nem a Terra embaixo, apenas
Apsu, o oceano primordial, que os gerou e a tumultuosa Tiamat, a mãe de todos,
misturaram as suas águas. Naquele tempo nenhum campo havia se formado, nem
pântanos existiam. Tampouco os deuses tinham sido gerados, então Lamu e
Lacamu foram criados e seus nomes pronunciados.
Sentados diante de Tiamat, eles discutiram, Apsu assim disse: ‘A conduta deles
é intolerável, eu não posso descansar durante o dia nem dormir à noite! Destrua-se
sua conduta para que a paz retorne e possamos dormir.’ Ouvindo isso, Tiamat
ficou furiosa com seu esposo e respondeu: ‘Por que destruiríamos o que nós
mesmos concebemos? Por mais intolerável que seja a conduta deles, sejamos
pacientes e benignos.’ Mas Mummu o aconselhou assim: ‘Destrói sim, meu pai, a
conduta perturbadora, para que possas descansar de dia e dormir à noite.’ Então
alegrou-se Apsu e sua face brilhou por causa da maldade que preparou contra os
deuses, seus filhos.
Tudo o que tramaram aos deuses foi repetido, ouvindo eles ficaram atônitos,
mas Ea, o mais arguto e sagaz, que a tudo compreende, desvendou-lhes o plano.
Então ele arquitetou um ardil contra Apsu, recitou seu feitiço e o fez dormir.
Também Mummu, o pajem e conselheiro, ficou sonolento. Então Ea despojou
Apsu da sua coroa e do seu manto radiante, depois o derrubou e o matou. Ea se
ergueu em triunfo, trancafiou a Mummu e abateu seus inimigos.
Segunda Tábua
Tiamat planejou uma peleja contra os deuses, seus filhos, para vingar Apsu,
mas seus planos não passaram despercebidos a Ea, que ficou gravemente aflito.
Passados os dias aplacou-se a sua ira e ele foi ter com Ansar dizendo: ‘Meu pai,
Tiamat, nossa mãe, concebeu ódio por nós’.
Tiamat se enraiveceu ainda mais e cheia de ira reuniu os deuses que havia
gerado, que se colocaram ao seu lado se preparando para a batalha. Fez armas
invencíveis, gerou serpentes-monstros de dentes afiados e veias cheias de veneno
em vez de sangue, vestiu-os de terror e os fez poderosos como deuses. Criou a
Hydra, o Dragão, o Herói Peludo, o Grande Demônio, o Cão Selvagem, o
Homem--escorpião, o Homem-peixe e o Homem-touro, onze monstros ao todo,
todos munidos de armas impiedosas e de bravura.
Ansar, furioso, conclamou a Anu, seu filho dizendo: ‘Filho honrado, guerreiro
e herói, vai ter com Tiamat e aplaca a sua ira’. Ele tomou o caminho para Tiamat,
mas percebeu seus ardis, parou, ficou em silêncio e voltou para seu pai Ansar,
dizendo: ‘Meu pai, não se pode igualar a força de Tiamat, ela é muito poderosa,
ninguém pode ir contra ela.’
Então Ea pediu a seu filho Marduk que fosse falar com Ansar. Ele se
apresentou diante de Ansar, beijou os seus lábios o acalmando e disse: ‘Meu pai,
não te cales, eu irei e cumprirei teu desejo. Muito em breve pisarás o pescoço de
Tiamat’. Ansar replicou: ‘Ó meu filho, que tens o conhecimento de toda a
sabedoria, pacifica Tiamat com o teu encantamento.’
Terceira Tábua
Ansar abriu a sua boca e falou com Gaga, seu vizir: ‘Vizir Gaga, que fazes
regozijar o meu espírito, a Lamu e Lacamu te enviarei, trazei-os à minha presença,
trazei os deuses para a mesa do banquete, que eles comam pão e bebam vinho, que
eles decretem o destino de Marduk, seu vingador.’ Gaga foi ter com Lamu e
Lacamu, prostrou-se, beijou o chão diante deles e lhes contou sobre os desígnios
de Tiamat e disse: ‘Marduk, o sábio entre os deuses, está determinado a enfrentar
Tiamat, vinde rápido decretar seu destino, para que ele possa sair e combater o
poderoso inimigo.’
Quarta Tábua
Prepararam para Marduk nobres aposentos e ele se sentou diante dos seus pais
para ser coroado. ‘Você é o mais honrado entre os deuses’, disseram a Marduk,
‘teu destino é inigualável, teu comando é como o de Anu, tuas ordens não poderão
ser anuladas, será teu o poder de exaltar ou de abater e nenhum deus transgredirá a
linha que traçares, tu és Marduk, nosso vingador.’
Criou ele o vento do mal, a tempestade e o furacão, o vento quatro vezes mais
poderoso, o vento sete vezes mais poderoso, o redemoinho e o vento do caos.
Enviou os sete ventos que havia criado para perturbar as entranhas de Tiamat.
Então lançou o trovão, sua arma poderosa, do alto da sua carruagem, que era
puxada por quatro corcéis: Destruidor, Feroz, Opressor e Veloz, todos treinados
para varrer o que houvesse pela frente.
Marduk prosseguia, em sua cabeça uma aura de terror, então se viu diante da
furiosa Tiamat. Quando viu a bocarra de Tiamat e as artimanhas de Kingu, seu
esposo, ele teve medo e vacilou. Os deuses que o acompanhavam perceberam
aquilo e a visão deles se enturvou. Tiamat lançou seu feitiço sem sequer virar o
pescoço. Lançando seu trovão, Marduk proferiu as seguintes palavras: ‘Por que és
tão agressiva e arrogante? Por que insistes em provocar esta batalha? Você se
levantou contra Ansar, rei dos deuses, e urdiu planos maquiavélicos contra os
meus pais. Cinge as tuas armas, eu e tu batalhemos.’
Ouvindo isso Tiamat ficou insana, seus membros tremeram, mas ela
continuou recitando seu encantamento em alta voz. Tiamat e Marduk se
enfrentaram em batalha, então ele lançou a sua rede e a apanhou, soltou o vento
do mal contra ela, mas abrindo a sua boca ela o engoliu. Como o vento terrível
enchia o seu ventre, Tiamat abriu sua boca para o libertar, mas Marduk apanhou
sua lança, partiu o ventre de Tiamat e perfurou o seu coração tirando-lhe a vida.
Os deuses que a seguiam se retiraram, temendo por suas vidas, mas foram
aprisionados. Kingu foi subjugado e Marduk tomou dele as Tábuas do Destino,
que por direito não lhe pertenciam.
Quinta Tábua
Ele [Marduk] fez as estações celestiais para os grandes deuses, criou as estrelas
e as constelações, definiu o ano e delimitou as suas divisões. Depois estabeleceu
Nibir [o planeta Júpiter] para fixar o intervalo das estrelas, estabeleceu também as
estações de Enlil e Ea. Fez brilhar o deus-Lua e lhe confiou a noite, a fim de fixar
os dias. Todos os meses, sem cessar, o coroava, assim lhe disse: ‘No princípio do
mês resplandece sobre a Terra, no sétimo dia tua coroa será reduzida à metade, no
décimo quinto dia te põe do lado oposto, enquanto o deus-Sol te vê no horizonte,
no vigésimo nono dia te aproximarás do deus-Sol e no trigésimo estarás junto ao
teu rival, o deus-Sol.’
Passou [Marduk] a formular leis e redigir decretos, colocou cordas guia nas
mãos de Ea, e entregou a Anu as Tábuas do Destino. Lamu, Lacamu e todos os
deuses jubilavam. Ansar o abraçou e o chamou ‘rei vitorioso’. Anu, Enlil e Ea lhe
deram presentes e Damkina, sua mãe, o exaltou com um robe festal, fazendo sua
face brilhar. Os Igigi se juntaram em assembleia e juraram obediência. Todos os
Anunnaki beijaram seus pés e declararam ‘salve o rei.’
Marduk então abriu sua boca e falou aos deuses, seus pais: ‘Sob os céus, cujo
piso eu firmei, construirei minha luxuosa morada e meu templo, ali estabelecerei
meu reinado. Quando desceres do Céu para tomarem decisões, este será o lugar de
descanso perante a assembleia dos deuses, chamarei o seu nome ‘Babilônia, a casa
dos grandes deuses.’
Sexta Tábua
Mas Ea assim falou: ‘Deixe que um dos deuses seja entregue, aquele que
instigou Tiamat a se rebelar e fomentou a batalha.’ Marduk então reuniu a
assembleia dos deuses e, falando aos Anunnaki, inquiriu quem era o culpado, este
seria punido, quanto aos demais poderiam descansar em paz.
Os Igigi, os grandes deuses, responderam: ‘Foi Kingu quem fez Tiamat se
rebelar, ele a instigou à guerra.’ Assim Kingu foi levado diante de Ea e suas veias
foram cortadas, do seu sangue Ea criou a humanidade e a ela impôs o serviço aos
deuses. Com a destreza de Marduk, Nudimmud [Ea] criou o homem.
O rei Marduk pôs 300 Anunnaki para guardar os decretos de Anu, 600 ele
enviou à Terra. Então eles falaram a Marduk: ‘Senhor, agora que estamos livres,
permita-nos erigir um templo e colocar nele um pedestal em tua honra.’ Marduk
exultante respondeu: ‘Construam a Babilônia, esta será a sua missão. Moldem
tijolos e construam o templo.’
O Enuma Elish é assim denominado por causa das duas palavras iniciais do
poema: ‘Quando no alto’. Narra os eventos que iniciam com a separação da ordem
do caos e culmina com a criação do cosmo. A exaltação de Marduk é tema central
do épico. O texto original possui cerca de 1100 linhas, a maioria delas bem
preservadas, embora algumas tenham se perdido, especialmente da quinta
tabuleta, são sete ao todo, feitas de argila. Procurei trazer um texto mais conciso,
em linguagem atual, suprimindo partes de menor interesse.[2]
E disse Elohim: Haja uma expansão entre as águas; e houve separação entre
águas e águas. E fez Elohim a expansão, e Ele fez separação entre as águas que
estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão; e assim foi.
E chamou Elohim à expansão Céus; e foi tarde e foi manhã, o dia segundo.
E disse Elohim: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar e apareça a
porção seca; e assim foi. E chamou Elohim à porção seca terra; e ao ajuntamento
das águas Ele chamou mares [yamim]; e viu Elohim que era bom. E disse Elohim:
Produza a terra erva planta que dê sementeira, árvore frutífera que dê fruto
segundo a sua espécie, cuja semente está nela sobre a terra; e assim foi. […] E viu
Elohim que era bom. E foi tarde e foi manhã, o dia terceiro.
E disse Elohim: Haja luminares na expansão dos céus, para separar entre o dia
e a noite; e sejam eles para sinais e para estações e para dias e anos. E sejam eles para
alumiar na expansão dos céus, para iluminar a terra; e assim foi. E fez Elohim os
dois grandes luminares; o luminar maior para governar o dia, e o luminar menor
para governar a noite e as estrelas. E Elohim os pôs na expansão dos céus para
iluminar a terra, e para governar o dia e a noite, e para fazer separação entre a luz e
as trevas; e viu Deus que era bom. E foi tarde e foi manhã, o dia quarto.
E disse Elohim: Criem as águas criaturas com alma vivente [nefesh chayah]; e
voem as aves sobre a terra, sobre a face da expansão dos céus. E criou Elohim os
monstros marinhos, os grandes e toda alma vivente; o réptil que as águas
produziram conforme as suas espécies; e toda ave de asas conforme a sua espécie; e
viu Elohim que era bom. E Elohim os abençoou, dizendo: Frutificai-vos e
multiplicai-vos, e enchei as águas nos mares; e as aves se multipliquem na terra. E
foi tarde e manhã, o dia quinto.
E disse Elohim: Produza a terra alma vivente [nefesh chayah], conforme a sua
espécie; gado, e répteis, e feras da terra, conforme a sua espécie; e assim foi. […]; e
viu Elohim que era bom. E disse Elohim: Façamos o homem [adam] à nossa
imagem, conforme a nossa semelhança; e domine ele sobre os peixes do mar, e
sobre as aves dos céus, e sobre o gado, sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que
se move sobre a terra. E criou Elohim o homem à sua imagem; à imagem de
Elohim o criou; macho e fêmea os criou. E Elohim os abençoou, e disse-lhes:
Frutificai-vos e multiplicai-vos, e enchei a terra e sujeitai-a. […] E viu Elohim tudo
quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi tarde e foi manhã, o dia sexto.
Os judeus acreditavam ter uma ‘aliança’ com o seu Deus, que os deveria
proteger e suprir suas necessidades, em troca de uma devoção absoluta a Ele. Só
Ele deveria ser adorado e obedecido, por isso havia um único templo, em
Jerusalém, onde Deus habitava e eram realizados os sacrifícios de animais e
oferendas de alimentos. O estudo das escrituras e as orações também podiam ser
realizadas nas sinagogas. Assim como os adeptos das outras religiões, os judeus
reconheciam a existência de um reino divino habitado por diversos seres sobre-
humanos, como anjos, arcanjos, principados e potestades.[3]
A Bíblia hebraica não ficou restrita aos judeus, algum tempo depois do
advento do cristianismo, livros hebraicos passaram a integrar o cânone sagrado
aceito pelos cristãos e foram chamados de Antigo Testamento. Ademais, é inegável
o impacto que a Bíblia teve sobre o islamismo, que chama judeus, cristãos e
sabianos de ‘povos do Livro’. O sabeísmo era uma religião do reino de Sabá, no
atual Yemen.[4]
Quando Deus começou a obra da criação, Ele não encontrou nada a não ser
Tohu e Bohu, o Caos e o Vazio. Tome a palavra tohu, acrescente o sufixo m e ela se
transforma em tehom, que vem a ser a personificação das águas do abismo; ambas
as palavras aparecem no segundo versículo de Gênesis 1. Tehom encontra paralelo
em Tiamat, a deusa babilônica das águas salgadas do Oceano, que personifica o
caos primordial na forma de uma serpente ou dragão marinho. Da mesma forma,
bohu se transforma em Beemote, criatura mítica que aparece no livro de Jó (40.15-
24), contraparte terrestre do monstro marinho Leviatã, ambos associados a
Tehom.[9]
Estas são as origens dos céus e da Terra, quando foram criados; no dia em que
o SENHOR [transliterado JHVH ou Jeová] Deus [Elohim] fez terra e céus. E
todo arbusto do campo ainda não estava na terra, e toda erva do campo ainda não
brotava; porque o SENHOR Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e
não havia homem para lavrar o solo. E um vapor subia do chão e regava toda a face
da terra.
E o SENHOR Deus fez brotar da terra toda árvore agradável à vista e boa para
se comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do
bem e do mal. E saía um rio do Éden para irrigar o jardim; e dali se dividia e se
tornava em quatro braços. O nome do primeiro é Pisom; ele é o que rodeia toda a
terra de Havilá, onde há ouro. E o ouro daquela terra é bom; lá há o bdélio e a
pedra sardônica. E o nome do segundo rio é Giom; ele é o que rodeia toda a terra
de Cuxe. E o nome do terceiro rio é Hidéquel; ele é o que vai para o oriente da
Assíria; e o quarto rio é o Eufrates.
E disse o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma
ajudadora adequada a ele. E formou o SENHOR Deus da terra todo animal do
campo e toda ave dos céus, os trouxe a Adão [adam] para ver como lhes chamaria;
e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome. E o homem
pôs nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e a todo animal do campo; mas para o
homem não se encontrou ajudadora adequada a ele.
Então o SENHOR Deus fez cair um sono profundo sobre o homem, e ele
adormeceu; e Ele tomou uma das suas costelas e fechou a carne em seu lugar. E fez
o SENHOR Deus, da costela que tomara do homem, uma mulher; e a trouxe para
o homem. E disse Adão: Esta é agora osso do meu osso e carne da minha carne; a
esta ele chamou mulher, porque do homem ela foi tomada.
Como vimos, o texto jeovista (ou javista) de Gênesis 2:4-23 é mais antigo do
que o texto elohímico de Gênesis 1:1-2:3, alguns o situam no século IX AC,
enquanto o segundo é, muito provavelmente, do século VIII AC, sendo
posteriormente adaptado por um editor jeovista no século VII AC.[3]
O declínio de Israel começou ainda com Salomão, tendo ele imposto tributos
pesados ao povo e empregado trabalho forçado na construção do templo, além de
ser condescendente com outros deuses, construindo para eles santuários e
assentando suas imagens. Os aposentos das prostitutas do culto ficavam nos
recintos do templo e o estábulo dos cavalos do deus Sol na entrada. O povo de
Israel, tendo deixado para trás os tempos longínquos do deserto, assumiu os
costumes da época e adorou os deuses locais.[5]
Esse é o contexto do autor jeovista (J). Não só os nomes de Deus são distintos
nos dois relatos da criação, eles trazem também outras diferenças fundamentais. O
autor identificado como J não menciona os dias nem períodos de tempo e faz uma
distinção clara da natureza do homem, aqui ele é formado da terra (adamah) e não
de alguma substância divina, ou à ‘imagem’ de Deus. O homem é feito alma
vivente (nefesh chayah) tal como as demais criaturas. Primeiro Deus criou a Terra e
os céus; depois Ele criou o homem; em seguida a vegetação cresceu; depois Deus
criou os animais; e por fim criou a mulher, da costela de Adão.[7]
Por meio da sua palavra, Deus criou os céus e todo o exército deles, o Sol, a
Lua e as estrelas. Vestido de um glorioso manto de luz, estendeu os céus como se
abre uma cortina e os desenrolou como a uma tenda, cobrindo assim as
profundezas do Abismo. Tendo amarrado as águas superiores com uma prega da
sua veste, estabeleceu sua morada oculta sobre os céus. O pavilhão que o cercava
era a escuridão das águas e as nuvens dos céus. Sobre as águas superiores fez
repousar as vigas das suas câmaras, ali Deus erigiu o Seu trono divino.1
Deus também fixou limites para a terra seca e permitiu às nascentes de Tehom
jorrar sua água por entre os montes e regar os topos dos outeiros desde as suas
câmaras. Assim fez crescer a erva para alimentar o gado, verduras e cereais para o
homem e cedros do Líbano para sombra. Designou a Lua para marcar as estações,
o Sol para luz do dia e as estrelas para luz da noite. Encheu os campos de animais,
nas árvores aninhou os pássaros e os mares povoou de seres sem número,
pequenos e grandes. Fez a noite para que todos os animais da selva saíssem para se
alimentar, mas ordenou que voltassem aos seus covis ao nascer do Sol.4
1. Salmos 18.10-12, 33.6, 93.1-2, 104.2-6, Isaías 40.22, 44.24 e 50.3, I Reis 8.12
2. Salmos 18.10, 65.7 e 104.3-5 Provérbios 30.4, Naum 1.4, Isaías 40.12
3. Salmos 18.15-16, 33.7, 74.13-14, 89.11, 93.3 e 104.6-8, Isaías 40.12 e 51.9,
Jeremias 5.22 e 31.35, Jó 9.13, 26.12-13 e 38.8-11, Naum 1.4
5. Jó 38.7
Alguns defendem que Leviatã teve a vida poupada, como o profeta Isaías
(27:1); no tempo de Deus haverá uma caçada ao Leviatã, os anjos mais poderosos
não serão capazes de vencê-lo, o arcanjo Gabriel será enviado para força-lo a sair do
Abismo, mas Leviatã engolirá anzol, linha e até mesmo pescadores, tudo junto,
então Deus virá pessoalmente para finalmente capturar e abater o monstro
aterrador.
PARTE II
às margens do índico
O hino da criação1
No princípio não havia nada, nem o não-existente, nem o existente. Não havia
o mundo, nem o firmamento, nem o que está além [do firmamento]. O que dava
abrigo, e onde? Havia água lá, profundidade insondável de água? Não havia morte
nem imortalidade, então. Nenhuma indicação havia do dia ou da noite.
Apenas o Uno [Único] respirava, sem respirar [sem exalar], por sua própria
força. Além dele, não havia nada mais. No começo havia escuridão coberta por
escuridão, tudo era caos indiscriminado, tudo o que existia era vazio e sem forma;
pelo grande poder do calor nasceu essa unidade [pensamento].
No começo surgiu o desejo [kāma: eros ou amor], que foi a primeira semente
da mente [do criador]; os sábios, tendo meditado em seus corações, descobriram a
conexão do existente com o inexistente. A linha de divisão foi estendida, o que
estava acima dela então, e o que estava abaixo dela? Havia progenitores, havia
forças poderosas, o alimento era inferior, o comedor era superior.
Quem realmente sabe? Quem neste mundo pode declarar isso? De onde veio a
criação, de onde foi gerada? Os deuses são posteriores à criação do mundo, então
quem sabe de onde ele surgiu? Aquele de quem esta criação surgiu, ele a formou
toda ou não a formou. Só aquele que tudo vê do mais alto Céu sabe, ou talvez não.
Para ele que, por sua grandeza se tornou o único rei de todo o mundo que
respira e vê [dos deuses e homens], que é senhor dos seres de dois pés e de quatro
patas. Por cuja grandeza essas montanhas vestidas de neve existem, o oceano e
Rasa [o rio mítico do firmamento] são posses dele, dele são as regiões celestes, dele
são esses dois braços [protetores]. Vamos oferecer culto com uma oblação ao
divino Ka.
Por quem o firmamento foi feito profundo e a terra sólida, por quem o Céu e
a esfera solar foram fixados, que era a medida da água no firmamento, em quem o
Sol surgido brilha. Quando as vastas águas vieram, contendo o germe universal
[Brahma, nascido do ovo do mundo] e dando à luz Agni [deus do fogo], então foi
produzido o sopro único dos deuses. Vamos oferecer culto com uma oblação ao
divino Ka.
Ele que por seu poder viu as águas por toda parte contendo o poder criador,
dando início ao sacrifício, ele que entre os deuses era o único deus supremo. Que
nunca nos prejudique aquele que é o pai da Terra, que gerou o Céu e as águas
vastas e encantadoras. Vamos oferecer culto com uma oblação ao divino Ka.
O hino do homem4
Purusa [o homem primordial] tem mil cabeças, mil olhos, mil pés, envolvendo
a Terra. Purusa é todo este mundo visível que existiu até agora e tudo que há de
ser. Ele é o senhor da imortalidade, que cresce pelo alimento. Todas as criaturas
são um quarto dele, três quartos permanecem no Céu, sendo imortais. Três
quartos de Purusa ascenderam, o outro quarto que ficou neste mundo se
diversificou em várias formas, em toda a criação animada e inanimada.
A Lua nasceu de sua mente, o Sol de seus olhos, Indra [deus do Céu] e Agni
[deus do fogo] nasceram de sua boca, Vayu [deus dos ventos] de sua respiração.
De seu umbigo veio a atmosfera, o Céu foi formado de sua cabeça, a Terra de seus
pés, e de seus ouvidos vieram os quadrantes do espaço. Assim eles constituíram o
mundo […]
Apesar de toda a importância que Vishnu tem na mitologia hindu, ele pouco
aparece no Rig Veda. Porém aparece tão poderoso, que o pó erguido da sua
passada envolveu o mundo inteiro; com um passo ele percorre a Terra, com o
segundo passo percorre a atmosfera e com o terceiro passo toda a extensão dos
céus. O Kurma Purana fala sobre as origens de Vishnu e Brahma e expressa bem a
circularidade que é característica marcante da tradição hindu.[11]
‘No princípio o Universo era feito de escuridão, sem nada que pudesse ser
discernido, sem marcas evidentes, impossível de se conhecer pelo raciocínio ou
entendimento. Parecia estar completamente adormecido. Então surge o criador e
se põe a trabalhar. Primeiro ele produziu as águas, e expeliu nelas o seu sêmen.
Aquele sêmen se tornou em um ovo de ouro, que ele dividiu em dois. Das duas
metades ele criou o Céu e a Terra, a atmosfera no meio e as oito direções cardinais.
Ele produziu o tempo e as divisões do tempo, as constelações e os planetas, rios,
oceanos, montanhas, o chão áspero e o chão liso, o calor ascético, a linguagem, o
prazer sexual, o desejo e a raiva. Finalmente, ele dividiu seu próprio corpo em dois,
a metade se tornou um homem e a outra metade uma mulher’. O texto hindu se
refere à raça humana como manava, que significa ‘descendentes de Manu’.[15]
O séquito de deuses, semideuses, devas e asuras hindus é tão grande que se fala
em 33 milhões de deuses, alguns defendem que esse número seja puramente
figurativo, outros defendem que a tradução correta dos Vedas seriam 33 tipos
(koti) e não milhões (crore). Qualquer que seja o número, é certamente incontável,
cada um tem o poder e a habilidade necessários para governar uma área da criação
ou um propósito específico, por exemplo é Surya quem cuida do Sol e Saraswati,
da sabedoria, das artes e da música (além de ser a mãe de Manu, o primeiro
homem).[17]
‘Para mim, habitando em minha própria glória: Onde está o passado, onde o
futuro? Onde o presente? Onde o espaço? Ou onde está até mesmo a
eternidade?’[19]
Ahura Mazda (Senhor Sábio) representado com suas asas protetivas abertas,
relevo de Persépolis, no atual Irã, do século VI AC.
ASSIM FALOU ZARATHUSTRA
As 16 boas terras criadas por Ahura Mazda e as 16 pragas criadas por Angra
Mainyu
Eu tornei as terras propícias para os seus habitantes, mesmo que não houvesse
charme algum nelas. A primeira das boas terras e países que eu, Ahura Mazda,
criei foi Airyana Vaêgo [o Paraíso], às margens do Vanguhi Dâitya [um rio
mitológico]. Então veio Angra Mainyu, que é todo morte e, por sua feitiçaria,
contra criou a serpente do rio e o inverno, obra dos Daevas [os demônios]. Há dez
meses de inverno e dois meses de verão, o inverno traz o frio para as águas e para as
árvores, e as suas piores pragas.
A segunda das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foram as
planícies de Sughda [Samarcanda]; então veio Angra Mainyu e contra criou a
mosca Skaitya, que traz morte para o gado. A terceira das boas terras e países que
eu, Ahura Mazda criei, foi a santa e inabalável Môuru [Margiana]; então veio
Angra Mainyu, que é todo morte e contra criou a lascívia.
A quarta das boas terras que eu, Ahura Mazda, criei foi a linda Bâkhdi
[Bactria]; veio Angra Mainyu e contra criou a Bravara [formigas que comem
grãos]. A quinta das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi Nisâya;
veio Angra Mainyu e contra criou, pela sua feitiçaria, o pecado da descrença. A
sexta das boas terras que eu, Ahura Mazda, criei foi Harôyu [Aria], com o seu
lago; veio Angra Mainyu e contra criou o mosquito maculoso.
A sétima das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi Vaêkerta, das
sombras do mal [prov. vale de Cabul]; então veio Angra Mainyu, que é todo
morte e contra criou Pairika Knãthaiti. A oitava das boas terras que eu, Ahura
Mazda, criei foi Urva, de boas pastagens; e Angra Mainyu contra criou o pecado
da tirania. A nona das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi Khnenta
em Vehrkâna [Hircânia]; veio Angra Mainyu e contra criou o pecado antinatural
[sexual].
A décima das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi a linda
Harahvaiti [Aracósia]; veio Angra Mainyu, que é todo morte e, pela sua
feitiçaria, contra criou o pecado de enterrar os mortos. A décima primeira das boas
terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi a gloriosa Haêtumant; veio Angra
Mainyu e contra criou o feitiço do mal de Yâtus [os bruxos], ele mostra sua
natureza pelo mal olhado. A décima segunda das boas terras que eu, Ahura
Mazda, criei foi Ragha, das três corridas; veio Angra Mainyu e contra criou o
pecado da absoluta incredulidade.
A décima terceira das boas terras e países que eu, Ahura Mazda, criei foi a
santa e inabalável Kakhra; veio Angra Mainyu, que é todo morte e contra criou o
pecado de queimar os corpos. A décima quarta das boas terras que eu, Ahura
Mazda, criei foi Varena de quatro cantos, para a qual nasceu Thraêtaona, que
feriu Azis Dahâka; veio Angra Mainyu e contra criou as doenças femininas e a
opressão de governantes estrangeiros. A décima quinta das boas terras que eu,
Ahura Mazda, criei foram os Sete Rios [Punjab]; veio Angra Mainyu e contra
criou doenças femininas e o calor excessivo.
A décima sexta das boas terras que eu, Ahura Mazda, criei foi a terra das
enchentes do Rangha [um rio mitológico], onde as pessoas vivem sem cabeça; veio
Angra Mainyu, que é todo morte e, pela sua feitiçaria do inverno, contra criou
uma obra dos Daevas. Existem ainda outras terras e países lindos, desejáveis e
prósperos.
O justo Yima, o grande pastor, ó santo Zarathustra. Ele foi o primeiro mortal
antes de ti, Zarathustra, a quem ensinei a lei de Ahura.
A ele falei eu, Ahura Mazda, dizendo: ‘Justo Yima, filho de Vîvanghat, sejas
tu o pregador e o portador da minha lei!’ Ao que o justo Yima respondeu: ‘Não
sou nascido e não fui ensinado a ser pregador e portador da tua lei.’ Então eu
repliquei, ó Zarathustra: ‘Visto que não queres ser o pregador e portador da
minha lei, então fazes prosperar e crescer as minhas terras, te comprometas a
nutrir, zelar e governar o meu mundo.’ E o justo Yima assentiu: ‘Enquanto eu for
rei, não haverá vento frio nem vento quente, nem doença ou morte.’
Então eu, Ahura Mazda, lhe trouxe dois implementos: um anel de ouro e um
punhal incrustado de ouro, como sinal do domínio real. Trezentos invernos se
passaram sob o domínio de Yima e a Terra se encheu de rebanhos, manadas,
homens, cães, pássaros e fogueiras vermelhas e não havia mais espaço para
rebanhos, manadas e homens.
Então Yima deu um passo à frente, para encontrar o Sol, e depois pressionou a
Terra com o anel de ouro e a perfurou com seu punhal, falando assim: ‘Ó Spenta
Ârmaiti [o gênio da Terra] abra-se e estenda-se para abrigar os rebanhos, manadas
e homens.’ E Yima fez a Terra crescer um terço do seu tamanho e vieram
rebanhos, manadas e homens tantos quantos ele desejasse.
Então Yima disse consigo mesmo: ‘Como vou conseguir fazer essa Vara que
Ahura Mazda ordenou?’ Ao que Ahura Mazda respondeu: ‘Ó justo Yima,
esmaga a terra com teus pés e depois a amassa com tuas mãos, como o oleiro
amassa o barro.’ Assim Yima construiu a Vara, longa como um campo de cavalos
e trouxe as sementes de ovelhas, bois, homens, cães, pássaros e de fogueiras
vermelhas. Fez o curso d’água, colocou os pássaros à beira e fez moradas para os
homens.
Na parte mais larga ele fez nove ruas, seis na parte do meio e três na menor.
Para as ruas da parte mais larga ele trouxe mil sementes de homens e mulheres,
para a parte do meio seiscentas e para a parte menor trezentas. E selou a Vara com
seu anel de ouro, fez uma porta e uma janela que brilhava para dentro.
Zoroastro era um sacerdote masdaísta, que com 20 anos entrou para a vida
contemplativa e com 30 anos foi se purificar em um rio tendo a primeira visão de
Ahura Mazda, o deus supremo do masdaísmo. A partir de então ele assumiu a
condição de profeta e reformador.[5]
Zoroastro ensinava haver um deus, Ahura Mazda, o qual criou tudo o que
existe de bom no mundo. Assim ele deu a Ahura Mazda uma posição superior a
de qualquer outra divindade do mundo antigo, alguns consideram o zoroastrismo
como a primeira religião monoteísta, embora haja controvérsias a este respeito.[8]
Ele ensinou também que a perfeita ordem deve incluir a justiça final, onde os
defensores do asha (o bem) seriam recompensados e os defensores de druj (o mal)
seriam punidos. O mal é atribuído a Angra Mainyu, o espírito da destruição e
opositor de Ahura Mazda. Assim, nenhum mal poderia vir de Ahura Mazda,
como nada de bom poderia vir de Angra Mainyu. Essa concepção dualista
influenciou toda a ética e os fundamentos do zoroastrismo.[9]
Quando o mundo foi criado, Angra Mainyu apareceu para se opor a toda
criação de Ahura Mazda, com uma praga matou o primeiro touro, que foi a fonte
da vida na Terra, ele misturou veneno nas plantas, fumaça ao fogo, pecado com o
homem e morte com a vida.[10]
Embora seja o deus supremo, Ahura Mazda não está sozinho no panteão
parsi. Outros seres divinos habitam o mundo sobrenatural, como o Sol, o vento, o
raio, o trovão, a chuva, a oração e o sacrifício.[11]
O masdaísmo (ou zoroastrismo) se viu ameaçado diversas vezes, uma delas por
Mani, profeta que criou uma religião gnóstica que veio a ser conhecida como
maniqueísmo, hoje considerada extinta, mas que chegou a ter um rei entre seus
seguidores (Shapûr I, 240-270). Zarathustra profetizou que a religião santa (o
masdaísmo) cairia três vezes, mas três vezes se levantaria. A última queda teria sido
diante dos árabes, que conquistaram a Pérsia no século VII, a restauração é
esperada para o final dos tempos com Soshyos (o último e maior salvador), que virá
libertar o mundo da morte e da decadência, então os mortos se levantarão e a
imortalidade começará.[14]
O profeta Maomé, retratado com o rosto coberto e montado em um animal
com cabeça humana em sua ascensão ao Paraíso, conforme manuscrito
iraniano do século XVI.
O GÊNESIS ISLÂMICO
A luz e as almas
Antes que houvesse o tempo, havia Deus. Ele não nasceu nem jamais morrerá.
Se Ele deseja alguma coisa, simplesmente ordena.
Deus disse: ‘Haja luz!’ E a luz se fez. Então Deus tomou um punhado de luz
em Suas mãos e disse: ‘Estou satisfeito contigo, minha luz, de ti farei o meu
profeta, irei moldá-la na alma de Maomé.’
Tendo Deus criado a alma do profeta Maomé (que Deus ore por ele e lhe dê a
paz), Ele decidiu criar a humanidade, para que pudesse lhe enviar Maomé como
seu mensageiro e trazer Sua palavra para a Terra. Ela ensinaria a diferença entre o
Bem e o Mal, e no final Deus julgaria todas as pessoas e recompensaria aqueles que
tivessem escolhido o Bem.
Com seu conhecimento infinito, Deus previu tudo o que aconteceria nos
séculos vindouros, até o último dia. Com seu poder ilimitado, Deus começou a
criar todas as coisas.
A terceira coisa que Deus criou foi uma Tábua, tão grande que contém a
descrição completa e detalhada de todos os eventos que já aconteceram ou que
acontecerão. A Tábua tem sua própria alma e é um dos servos mais fiéis de Deus.
É chamada a Mãe dos Livros, porque reúne toda a Sua sabedoria e Seus
mandamentos. Os segredos do Universo estão todos inscritos nela, mas só Deus é
capaz de ler.
Com a Tábua Ele criou a Caneta para escrever Seus mandamentos. Uma
Caneta tão longa quanto a distância da Terra ao Céu. Ela pensa e tem
personalidade. Tão logo veio a existir Deus ordenou: ‘Escreva!’ A Caneta
perguntou: ‘Senhor, o que devo escrever?’ Ao que Deus respondeu: ‘Destino.’
Desde então a Caneta não parou de escrever os feitos do homem. Se Deus muda
de ideia e projeta um futuro diferente daquele que estava previsto, os escritos
desaparecem e a Caneta escreve de novo.
A quinta coisa que Deus criou foi a Trombeta e com ela o arcanjo Serafili
[Asrafel]. O arcanjo segura a Trombeta pacientemente junto à boca, enquanto
espera, século após século, até que Deus decida terminar a história. Então Ele dará
o sinal e Serafili soprará seu primeiro sopro. Tamanho é o poder da Trombeta que
as montanhas desabarão, as estrelas cairão e o Dia da Tormenta começará.
A sexta coisa que Deus criou foi o Jardim das Delícias, que foi destinado às
almas boas. Lá elas habitarão para toda a eternidade e esquecerão os sofrimentos
da Terra. Ele tem rios de leite e mel, flores perfumadas e árvores que se dobram
com o peso dos frutos suculentos; assim que um deles cai, outro nasce
imediatamente no mesmo lugar. Quem não daria todas as suas posses para estar
num lugar como esse?
A sétima coisa que Deus criou, prevendo que muitas pessoas não seguiriam
Sua mensagem, foi o Fogo. Ele brotou crepitando da escuridão do abismo. O
cheiro do Mal é sua essência, e sua voz de trovão. ‘Senhor’, disse o Fogo, ‘onde
estão as almas dos pecadores, quero vê-las sofrer’. Quem não rezaria noite e dia
para escapar da tortura eterna?
Deus continuou Sua criação, Ele não precisa de descanso. Criou uma miríade
de anjos para proclamar Sua glória. De pura luz ele os criou, suas asas brilham com
uma luz branca e suave. São servos devotos e tremem diante de Deus.
Muitos outros anjos vivem no Céu, mais do que podemos saber. Um deles
tem mil cabeças, cada uma com mil bocas e cada uma proclama a glória de Deus
em uma língua diferente. Há um anjo cuja metade esquerda é fogo e a metade
direita é neve, à ordem de Deus dois elementos opostos podem coexistir.
Há também um galo no Céu, seus pés estão no nível mais baixo do Paraíso e
sua cabeça além do sétimo Céu. Sua função é cacarejar no momento preciso do
salât-asubuhi, a prece do amanhecer. Seu jubilante Kuku-likuu pode ser ouvido
por todos os galos da Terra, nas fazendas e nos campos, todos repetem
encorajando uns aos outros. É o sinal para que os homens se preparem para a
primeira prece do dia.
O Céu e a Terra
Ele fez o Universo dividido em sete céus, no sétimo fica o Paraíso. Cada nível
tem seu próprio planeta, o primeiro é a Lua, o segundo é governado por Mercúrio,
o terceiro por Vênus, o quarto por Marte, Júpiter governa o quinto, Saturno o
sexto e o Sol o sétimo. Os guardiões de cada nível do Céu são as almas de oito
profetas de Deus, Adão é o primeiro, Isa [Jesus] o segundo com seu primo Yahya
[João Batista], Yusufu [José] o terceiro, Idrisi [Enoque] o quarto, Haruni [Arão]
o quinto e Musa [Moisés] o sexto. Abraão é o guardião do sétimo Céu, ele fica
perto da Mesquita Celestial onde 70 mil anjos oram todos os dias, nunca os
mesmos anjos.
Do lado oposto aos sete céus estão os infernos profundos, também divididos
em sete níveis, cada um mais terrível que o outro acima dele, cada um destinado a
um tipo de pecador. Os incrédulos ficarão para sempre no mais profundo, o mais
longe possível do criador.
Então Ele disse à Terra para pulular de insetos e imediatamente cem mil tipos
passaram a rastejar pela areia e voar pelo ar. Borboletas e besouros têm o símbolo
do criador inscrito em suas costas. Então Ele soltou uma multidão de pássaros que
louvavam o criador em suas próprias línguas. Encheu o oceano de peixes de
diferentes tamanhos e cores. Ele mandou que os lagartos viessem a existir e eles
obedeceram, assim como os sapos coaxantes que louvam o Senhor na sua língua.
Deus fez a noite suceder o dia e marcar o avanço do tempo. Um dia, Ele
chamou Seus anjos e disse: ‘Decidi criar um ser com inteligência como vocês, mas
ele será feito de barro. Vou moldá-lo de terra e na Terra ele viverá. Ele vai tomar
posse das minhas criaturas sobre a Terra e governá-las de acordo com as minhas
leis. Seus filhos se espalharão como formigas pela Terra, eles vão me adorar e me
servir.’
Os anjos ficaram apreensivos, com sua mente lúcida eles previram o que
aconteceria. Os anjos são feitos da substância da pura luz, por isso são
transparentes, não têm uma face sólida onde o mal pode se esconder. São puros e
sem pecado. Sua inteligência privilegiada os faz perceber o sofrimento das outras
criaturas e a vontade do seu Mestre.
Mas como seria o homem? Seu corpo seria robusto e cheio de luxúria como os
cachorros e porcos; sua vontade seria de procriar e se multiplicar, guerrear e matar.
Não será transparente como os raios de Sol, mas nebuloso como as nuvens.
Cérebros de barro serão lentos e túrgidos, os homens serão estúpidos e desonestos,
seu pensamento será sensual em vez de sensível, relutante em aceitar a necessidade,
preguiçoso e tendencioso a se vangloriar. O pior de tudo, ele irá satisfazer seus
sentidos em vez de louvar o criador.
Sua cobiça o levará a roubar frutas e fêmeas dos seus vizinhos e os ciúmes vão
inflamar sua mente. Ele buscará a glória conquistando as terras de Deus, ele terá
prazer em matar. Os anjos inteligentes viam nuvens negras de fumaça sobre a
Terra: o fogo feroz da guerra.
Mas Deus lhes disse que não temessem: ‘Eu farei o homem, eu tudo conheço.
Eu tenho um propósito que se cumprirá depois de milhares de anos, então vocês
saberão a razão para ter criado o homem.’ Os anjos nada mais falaram, mas
cantaram hinos em louvor à sua sabedoria.
Durante os 22 anos que Maomé viveu depois da revelação, ele lançou as bases
do que seria uma das maiores religiões e de um império que se estenderia da Ásia
Central até a Espanha. Exércitos recrutados entre os habitantes da Arábia
conquistaram os países vizinhos em nome do Islã e fundaram o califado, às
margens dos impérios Bizantino e Sassânida. A língua árabe se difundiu e se
tornou o veículo de uma cultura que incorporava elementos das tradições dos
povos absorvidos.[2]
Sob o domínio dos califas o Islã experimentou uma rápida expansão para
muito além da península, na forma de um vasto império Árabe muçulmano. A
expansão muçulmana no norte da África teve início no século VII com o Califado
Omíada, e a partir daí para a costa leste subsaariana onde vivem os bantus, grupo
etnolinguístico que tem o swahili como a língua banta mais falada. O swahili é
uma das línguas oficiais do Quênia, Ruanda, Tanzânia e Uganda. Outros povos
afluíram para a África subsaariana, vindos da Pérsia, Índia e Madagascar, eram
principalmente mercadores e marinheiros muçulmanos. Os sultões de Omã
governaram Zanzibar por mais de 200 anos, entre os séculos XVIII e XIX. Desde
então, os povos suaílis vivem entre dois mundos, as tradições africanas e o Islã.[3]
As primeiras coisas que Alá criou foram um Trono, da sua própria Luz, e um
Tapete. Quando Alá criou a Caneta e a Tábua, passou 50 mil anos redigindo seu
Plano da Criação, e outros 180 mil anos executando o Plano. Da Luz do seu
Trono, Alá criou o Paraíso, o Inferno, os planetas e os anjos. A Terra, o Céu e os
mares foram criados de uma gema verde (uma pedra preciosa). Os sete céus são
separados por uma distância de 500 anos entre cada nível, assim como os sete
infernos.[8]
As primeiras gerações que habitaram a Terra foram destruídas por Alá por
causa da desobediência. Depois Alá moldou o homem de terra embebida da água
de fontes paradisíacas, então o homem tomou um banho prolongado de tristeza e
um banho breve de alegria. Todos os anjos se prostraram diante da ‘Estátua do
Homem’, exceto Azaazeel, que protestou, pois não quis se prostrar diante de um
ser inferior. Então Alá o baniu do paraíso e trocou seu nome para Iblis (Satã). Alá
então ordenou que a alma, que ele havia criado 4 mil anos antes, entrasse na
Estátua do Homem, e ela ganhou vida e se chamou Adão.[9]
Alá revelou parte da sua infinita sabedoria aos seus profetas, sendo Adão o
primeiro deles. A história de Adão é bem conhecida, ele acorda no paraíso, mas
não está satisfeito, pois queria uma companheira. Adão pega no sono e quando
acorda se depara com a mulher, de extrema beleza, brilhando como o Sol, ali
mesmo no jardim das delícias. Ele a chamou de Hawaa (Eva) ou Vida. Deus
instruiu Adão e Eva a comerem de tudo, exceto da Árvore do Conhecimento da
Procriação da Vida. Eles viviam castamente no paraíso.[10]
Mas Iblis veio para testar o homem. Ele tomou a forma da serpente e primeiro
foi ter com a mulher, alegando que Adão só estava interessado em seu ofício de
profeta e no estudo da língua e da natureza, assim despertou ciúmes em Eva,
insinuando também que ela ficaria sem filhos e que Adão poderia tomar outras
esposas entre as ninfas do paraíso. Foi um golpe baixo, já que a mulher fora feita
para ter filhos e era propensa ao ciúme.[11]
A Terra era fria e não tinha nada. Não havia grama, nem arbustos, nem
árvores. Não havia animais. Muuetsi chorou e perguntou a Maori: ‘Como é que
vou viver aqui?’ Ao que Maori respondeu: ‘Eu bem que avisei. Você entrou num
caminho no fim do qual morrerá. Mas vou lhe dar alguém como você.’
À noite, Muuetsi entrou numa caverna com Massassi, que disse: ‘Ajude-me.
Vamos acender o fogo. Vou catar chimandra [gravetos] e você vai fazer a rusica [a
parte móvel do instrumento de fazer fogo] girar.’ Massassi catou chimandra e
Muuetsi fez a rusica girar. Depois que acenderam o fogo, Muuetsi se deitou de um
lado e Massassi do outro. O fogo queimava entre eles.
Muuetsi pensou consigo mesmo: ‘Por que Maori me deu essa moça? O que
devo fazer com essa moça chamada Massassi?’
Quando era noite fechada, Muuetsi pegou seu chifre de ngona. Umedeceu o
dedo indicador com uma gota de óleo de ngona. Muuetsi disse: ‘Ndini chaabuca
mhiri ne mhiri (Vou pular por cima do fogo).’ Muuetsi pulou sobre o fogo.
Muuetsi aproximou-se da moça, Massassi. Muuetsi tocou o corpo de Massassi
com o óleo que estava em seu dedo. Depois voltou para sua cama e dormiu.
E as árvores cresceram. Cresceram até que o alto de sua copa alcançou o Céu.
Quando o topo das árvores chegou ao Céu, começou a chover. Muuetsi e
Massassi viviam em meio à abundância, tinham frutas e cereais. Muuetsi
construiu uma casa, fez uma pá de ferro, fabricou uma enxada e cultivou
plantações. Massassi fez armadilhas para os peixes e os pegava com elas. Massassi
pegava lenha e água. Massassi cozinhava. E assim viveram durante dois anos.
Depois de dois anos Maori disse a Massassi: ‘O tempo acabou.’ Maori tirou
Massassi da Terra e a devolveu ao dsivoa. Muuetsi chorou e se lamentou. Chorou
e se lamentou, e disse a Maori: ‘Como vou viver sem Massassi? Quem vai pegar
lenha e água para mim? Quem vai cozinhar para mim?’
E Muuetsi chorou e se lamentou durante oito dias. Então Maori disse: ‘Eu
bem que avisei que você estava indo para a morte. Mas vou lhe dar outra mulher.
Vou lhe dar Morongo, a estrela da tarde. Morongo vai ficar com você durante dois
anos. Depois a levarei de volta.’
Muuetsi copulou com Morongo. Depois Muuetsi foi dormir. Pouco antes do
amanhecer, Muuetsi acordou. Olhou para Morongo para ver se o corpo dela tinha
inchado. Quando o dia nasceu, Morongo começou a parir. No primeiro dia,
Morongo pariu galinhas e galos, ovelhas e carneiros, cabras e bodes.
Na quarta noite, Muuetsi queria dormir com Morongo outra vez. Mas houve
uma tempestade e Maori disse: ‘Pare com isso. Assim você vai morrer logo.’
Na quinta noite, Muuesti queria dormir com Morongo outra vez. Mas
Morongo disse: ‘Olha, suas filhas já estão adultas. Copule com suas filhas.’
Muuesti viu que eram belas e que estavam adultas, e copulou com elas. Elas
tiveram filhos. Os filhos que nasceram de manhã já estavam adultos à noite. E
assim Muuetsi se tornou o mambo [rei] de um povo numeroso.
Mas Morongo dormia com a serpente. Não paria mais. Vivia com a serpente.
Certo dia, Muuetsi voltou a procurar Morongo e queria copular com ela. Morongo
disse: ‘Não quero.’ ‘Mas eu quero’, respondeu Muuetsi. E se deitou com
Morongo. A serpente estava embaixo da cama de Morongo e mordeu Muuesti.
Muuetsi adoeceu.
Depois que a serpente mordeu Muuetsi, ele adoeceu. No dia seguinte não
choveu. As plantas murcharam. Os rios e lagos secaram. Os animais morreram. As
pessoas começaram a morrer. Muita gente morreu. Os filhos de Muuetsi
perguntaram: ‘O que fazer?’ ‘Vamos consultar o hacata [dado sagrado]’, disseram
os filhos de Muuetsi.
Diz a lenda que o óleo de ngona era usado para fazer os relâmpagos. Seus
poderes eram tais que uma única gota foi suficiente para fazer a primeira mulher
gerar todo o reino vegetal.
Voltando a nossa história, Massassi, a estrela da manhã, foi criada por Maori
para ser companheira de Muuetsi, a personificação da Lua. Massassi se tornou
progenitora das árvores, gramas e arbustos, depois de dois anos Maori lhe deu
outra mulher, Morongo, a estrela da tarde. Morongo deu à luz primeiro aos animais
domésticos, depois pariu meninos e meninas. As crianças que nasciam pela manhã
já eram adultas ao anoitecer. Depois, por causa da desobediência de Muuetsi e
Morongo, ela deu à luz aos animais selvagens: leões, leopardos, serpentes e
escorpiões. Muuetsi passou a copular com suas filhas e se tornou o mambo (rei) de
um povo numeroso. Morongo já não paria e dormia com uma serpente, que
acabou mordendo seu marido enquanto ele tentava força-la. Assim Muuetsi
adoeceu e terminou sendo estrangulado por seus filhos. Outro mambo foi
escolhido para seu sucedê-lo.
europa, o berço da
cultura ocidental
Os deuses primordiais
Gaia, por si mesma, deu à luz Urano [o Céu], para que pudesse envolvê-la e
cobri-la completamente e ser um lar seguro para os deuses para todo o sempre.
Então ela pariu altas montanhas e belos abrigos das deusas ninfas que moram nas
montanhas frondosas. E também pariu o abismo infrutífero com sua onda furiosa,
Póntos [o mar], sem desejo nem amor.
Assim que nasciam, Urano escondia de Gaia seus filhos em um lugar secreto
não permitindo que vissem a luz e se alegrava com sua obra maligna. Gaia sentia-
se atulhada e gemia, ela então urdiu um plano, moldou uma grande foice de sílex e
disse aos filhos: ‘Meus filhos, e de um pai insensato, se me obedeceres devemos
punir o vil ultraje de vosso pai.’ Ousado, o grande Cronos respondeu: ‘Mãe, eu
prometo que cumprirei esta obra, não tenho por ele reverência pelas coisas
vergonhosas que fez.’ E Gaia se alegrou em espírito, o escondeu e pôs nas suas
mãos a foice.
Téia gerou Helios [o Sol], Selene [a Lua] e Eos [a aurora], que brilha a todos os
humanos e aos deuses imortais que vivem no Céu, de Hipérion ela os gerou em
amor. Aurora deu à luz o brilhante Zéfiro, os ventos de ânimo violento, enquanto
Eos deu à luz Eósforo, a estrela da manhã, e todas as estrelas brilhantes que coroam
o Céu. […]
O nascimento de Zeus
Rea se uniu a Cronos e lhe deu filhos gloriosos: Héstia, Deméter e Hera [a
deusa dos olhos bovinos], de sandálias douradas; o forte Hades [o deus do mundo
inferior], de coração impiedoso que sob o chão habita; o troante Treme-Terra; e o
sábio Zeus, pai dos deuses e dos homens, sob cujo trovão toda a Terra se abala. E
engolia-os o grande Cronos, tão logo cada um deles descia do ventre sagrado da
mãe até seus joelhos, tramando para que outro dos magníficos Uranidas não
tivesse entre os imortais a honra de ser rei. Ele sabia, graças a Gaia e Urano, que era
seu destino sucumbir um dia nas mãos de seu próprio filho. Por isso, vigilante, ele
montava guarda sem cessar, à espreita, para engolir todos os seus filhos, e uma dor
terrível invadia Rea.
Quando estava para nascer o filho mais jovem, Rea suplicou aos seus pais
queridos, a Terra e o Céu estrelado, a tecerem um ardil para que oculta pudesse
conceber e que o grande e ardiloso Cronos recebesse o justo castigo pelo mal que
fez engolindo os filhos. Eles escutaram e atenderam à filha querida, enviaram-na a
Licto, nas ricas terras de Creta, quando já estava pronta para conceber. Ali ela
tomou a criança em seus braços, a escondeu numa gruta íngreme sob o covil da
terra divina no monte das Cabras. Então ela encontrou uma pedra grande, a
envolveu em faixas de pano e entregou ao soberano Uranida. Cronos de pronto
tomou o embrulho em suas mãos e o engoliu, o desgraçado não imaginava que seu
filho estaria seguro, em breve iria vencê-lo e reinaria sobre os deuses imortais.
A história de Prometeu
Menécio era soberbo, então Zeus o atingiu com um raio lúgubre e o mandou
para o Érebos, por causa da sua estultícia. Quanto a Atlas, ele sustenta o vasto Céu
com a cabeça e braços incansáveis, de pé nos confins da Terra, ante as Hespérides
cantoras; este é o destino que o sábio Zeus lhe atribuiu. E ao astuto Prometeu ele
prendeu com laços fortes e cruéis e sobre ele incitou uma águia de longas asas; ela
devorava seu fígado imortal, mas esse crescia à noite, igual ao que fora comido de
dia. O valente Héracles [Hércules], filho de Alcmena de belos tornozelos, matou o
pássaro e libertou o filho de Jápeto do seu longo tormento, não sem o
consentimento de Zeus, o sublime soberano, para que a glória do tebano Héracles
fosse maior sobre a Terra. Assim ele honrou seu famoso filho e pôs fim ao rancor
que tinha, porque Prometeu ousou se igualar em sagacidade ao pujante Zeus.
Não se pode furtar nem superar o espírito de Zeus, pois nem o filho de Jápeto,
o benéfico Prometeu escapou-lhe à pesada cólera, mas sob coerção cadeias pesadas
o prenderam, apesar dos seus estratagemas.
Zeus também teve inúmeras consortes humanas, tais como Sêmele, Alcmena,
Europa, Leda, Io, Antíope e Dânae. Sêmela, filha de Cadmo, o fundador de Tebas,
unida a Zeus em amor gerou o esplêndido Dioniso, ‘multialegre’ e imortal.
Alcmena, rainha de Tirinto e mulher de Anfitrião, foi enganada por Zeus, que
atraído por sua beleza tomou a forma do marido dela enquanto ele estava longe na
guerra, ela então gerou a força de Héracles. Dânae é a mãe do herói Perseu e Leda,
princesa de Esparta, de Zeus gerou Pólux, Castor e a famosa Helena de Troia, que
tinha a reputação de ser a mulher mais bela do mundo, por quem se deu a guerra
de Troia, na qual morreram os heróis Heitor e Aquiles.
Vimos como Prometeu roubou o fogo em favor dos humanos e como ele foi
severamente punido por Zeus. Outras fontes contam que Prometeu moldou um
boneco de barro, procurando fazê-lo semelhante aos deuses em todos os seus
atributos. Ao ver o boneco, os deuses resolveram presenteá-lo, cada um com uma
dádiva, assim um lhe concedeu a vaidade do pavão, outro a timidez da lebre, outro
a ferocidade do tigre, outro a astúcia da raposa e assim por diante. Finalmente, o
grande Zeus decidiu animar aquele boneco e permitiu que Prometeu moldasse
muitos outros para que não ficassem sós. Assim nasceram os primeiros humanos,
que não eram nem homem nem mulher, pois eram imortais e não precisavam se
multiplicar.[4]
A primeira mulher foi Pandora, criada por Hefestos a pedido de Zeus (algumas
fontes afirmam que as mulheres já existiam antes disso). Ela ganhou de Atena
vestes de ouro, de Afrodite recebeu ‘a irresistível graça que seduz todo homem e
para seu leito o conduz’; já Apolo concedeu-lhe a voz do rouxinol ‘que adoça o
mais cruel coração’ e Hermes a ensinou como iludir. Em Os trabalhos e os dias,
Hesíodo relata o surgimento de Pandora: ‘Pandora! Tens todos os bens, mas és
um belo mal! Um mal amável, o reverso de um bem. És o contrário e a
companheira dos humanos; tu trazes a esperança no ventre, mas também o
amanhã incerto. Incitas ao trabalho, pois não suportas a miséria. Em teu ventre
armazenas o fruto do esforço e gastas a força do macho; consomes seu fogo num
dessecamento lento e implacável.’[6]
Zeus ao dar a famosa caixa a Pandora a alertou para que jamais fosse aberta,
pois nela residiam a esperança, mas também todos os males. Mas Pandora se casou
com Epimeteu, irmão de Prometeu; se Prometeu era prudente e pensava antes de
agir, Epimeteu era justo o contrário, ou seja, o pai dos tolos, daqueles que agem e
depois pensam. Foi Epimeteu quem, curioso, abriu a ‘caixa de Pandora’ e deixou
escapar dela os males que se espalharam sobre toda a humanidade. Só restou
dentro dela a esperança.[7]
Odin monta seu cavalo de oito patas chamado Sleipnir, ilustração de um
manuscrito islandês do século XVIII.
VÖLUSPÁ, O POEMA NÓRDICO DA
CRIAÇÃO
Foi no começo dos tempos, quando nasceu Ymir [o gigante cujo corpo deu
origem ao mundo], não havia areia, nem mar e nem ondas gélidas; não havia a
Terra e nem o Céu acima, apenas um vazio enorme, grama não havia em lugar
algum.
Do Sul se lançou Sól, a companheira de Máni [a Lua, irmão de Sól], sua mão
direita estendida até os limites do Céu; Sól não sabia onde estava a sua morada,
nem Máni sabia que poder ele tinha, nem as estrelas conheciam seu lugar no Céu.
No campo jogavam em tabuletas, eram felizes, não sentiam falta de ouro; até
chegarem três donzelas gigantes, muito poderosas, de Jotunheim [reino dos
gigantes].
A lista dos anões, da estirpe de Dvalin, aos descendentes dos homens contados
desde Lofar; eles que saíram dos salões de pedra de Aurvangar, para habitar em
Joruvellir. […] Esses são enaltecidos enquanto viverem os homens, os ditos da
parentela de Lofar.
Até que vieram três da morada dos deuses, poderosos e graciosos; Ӕsir [Odin,
Hænir e Lodurr] à casa, encontraram na Terra Askr e Embla [o primeiro casal
humano] desprovidos de força e de destino.
Eles não tinham respiração, nem tinham espírito, nem calor [sangue] ou
movimento, sequer boa cor; Odin concedeu a respiração, Hænir concedeu o
espírito e Lodurr concedeu o calor e a boa cor.
Eu conheço o freixo que se ergue chamado Yggdrasill, uma grande árvore,
respingando com água branca; de onde vem o orvalho, que cai sobre os vales
sempre verdes, sobre a fonte de Urd.
Dali provêm as damas de muita sabedoria, três do lago que está abaixo da
árvore; a primeira se chama Urd [deusa do passado], a segunda Verdandi
[presente] - em uma tábua escreviam - e Skuld [futuro] é a terceira; elas ditavam as
leis, escolhiam as vidas dos filhos, dos homens e definiam seus destinos.
No nível mais baixo do Universo ficava Nilheim, a casa dos mortos perversos,
lugar de escuridão extrema, onde a cidadela chamada Hel era dominada por uma
rainha monstruosa que também se chamava Hel. A árvore colossal chamada
Yggdrasil era o eixo desse universo mitológico, suas raízes chegavam a Hel, no
tronco ficava Migdard e no topo Asgard. Na base da árvore ficavam diversas
fontes e entre elas a fonte de Urd, onde as Nornas tecem o destino dos deuses e dos
homens, e a fonte de Mimir, deus da sabedoria.[6]
Pouco se sabe sobre Borr (Bur), o pai dos deuses Odin, Vili e Ve, apenas que
sua esposa era Bestla, filha de Bolthorn, como conta o Havamal, e só. Vili e Ve
também não são muito mencionados nas Eddas, é possível que sejam os mesmos
Honir e Lothur, que também aparecem ao lado de Odin. Lothur pode ser um
antigo nome de Loki, o filho traiçoeiro, mais engenhoso de Laufey, que foi
adotado por Odin, para arrependimento do grande deus.[8]
O Mar de Tiberíades
Quando não havia Céu nem Terra, apenas o Mar de Tiberíades existia, nem
praia ele tinha. Então o Senhor desceu do alto através do ar até o Mar de
Tiberíades e viu um pato nadando, envolto em espuma do mar, este pato era
Sotana-il [Satã]. E o Senhor disse a Sotana-il, como se não o conhecesse: ‘Quem é
você?’ E Sotana-il respondeu: ‘Eu sou Deus.’
No sexto dia fiz uso da minha sabedoria para criar o homem de sete
componentes: a sua carne da terra, seu sangue do orvalho, seus olhos do Sol, seus
ossos de pedra, sua inteligência da vivacidade dos anjos e das nuvens, seus tendões
e seus cabelos das plantas da terra e sua alma do meu espírito e do vento. E dei-lhe
sete atributos: a audição da carne, a visão dos olhos, o olfato da alma [o cheiro ou
sopro do espírito], o toque dos tendões, o paladar do sangue, a resistência dos
ossos, o prazer dos pensamentos.
Mandei-lhe um sono profundo, ele dormiu, tirei-lhe uma das costelas com a
qual criei uma mulher para que a morte lhe viesse por meio desta sua mulher,
tomei sua última letra [M; de adam] e a chamei de Mãe de todos os viventes, ou
seja, Eva.
Então eu criei um jardim no Éden, ao Leste, para que ele pudesse manter a
aliança e observar os meus mandamentos. Fiz com que os céus se abrissem diante
dele para que pudesse ver os anjos cantando o hino da vitória. Ele permaneceu na
luz eterna do paraíso, onde não havia escuridão, e o demônio entendeu que eu
queria criar outro mundo, onde Adão seria o senhor, para governar a Terra. O
demônio é o gênio do mal das regiões inferiores, como um fugitivo ele se tornou
Sotona, mas no Céu o seu nome era Sotana-il. Por isso ele é diferente dos anjos.
Sua natureza não mudou, mas os seus pensamentos mudaram quanto ao certo e
ao errado, […] de tal forma que ele entrou no paraíso como um ladrão e seduziu
Eva, mas não atingiu Adão. Amaldiçoei a ignorância, mas o que eu havia
abençoado anteriormente, isso eu não amaldiçoei, nem amaldiçoei o homem, nem
a Terra nem as outras criaturas, mas o fruto e as obras ruins do homem.
Disse-lhe: ‘Tu és terra e à terra da qual te tirei, tornarás, não te destruirei mas
devolver-te-ei de onde te tomei. Então, poderei tomar-te de volta na minha
segunda vinda.’ E abençoei todas as minhas criaturas, visíveis e invisíveis, no
sétimo dia, no qual descansei de todas as minhas obras.
Designei o oitavo dia como sendo o primeiro dia criado após a minha obra, os
sete primeiros como sendo ciclos de sete mil [anos] e no início dos oito mil
estipulei um tempo incontável, infinito, não medido por anos, meses, semanas,
dias ou horas.
Os polábios, eslavos que viviam entre o rio Elba e o Báltico, tinham em sua
mitologia a dualidade representada por Belobog (Deus Branco), deus da bondade,
da luz e da vida, e por sua contraparte Chernobog (Deus Negro), divindade do mal.
A história é mencionada por Helmond na Chronica Slavorum. Helmond foi um
monge alemão que testemunhou a cristianização dos eslavos, em seu relato ele
afirma que ‘eles têm uma crença estranha, mantida em suas festas, eles ao mesmo
tempo abençoam e amaldiçoam em nome dos seus deuses, em nome do Bem e do
Mal, dizendo que as coisas boas vem do deus bom e o mal vem do maligno; eles
chamam o deus mau de Chernobog, ou deus negro.’[5]
Os eslavos antigos acreditavam que o mundo era uma ilha flutuando na água e
que debaixo dela existia outro mundo, onde o Sol se escondia a noite. A jornada
do herói em busca do ‘Outro Mundo’ simbolizava um rito de iniciação, onde o
iniciado precisava morrer antes de renascer em um novo estágio da existência. O
Outro Mundo era objeto de desejo, podia estar além de uma floresta impenetrável,
debaixo do mar, ou além da terra, seja onde for, ele era intimamente ligado ao Sol.
[6]
A figura mítica mais conhecida da tradição eslava é a bruxa Baba Iaga. Ela tem
poder sobre pássaros e feras, viaja em um pilão apagando seus rastros com uma
vassoura, o dia e a noite a obedecem. Baba Iaga vive em uma tenda que fica na
perna de uma galinha, no meio de uma densa floresta. Acreditavam que Baba Iaga
seria a guardiã da porta de entrada para o Outro Mundo.[7]
Também são sagradas a nogueira-comum, cujo fruto é a noz inglesa, que foi a
primeira árvore criada por Deus antes de qualquer outra planta e o gerânio, que
foi a primeira flor. No noroeste da Bulgária, o entorno das nogueiras é
considerado lugar consagrado, onde são feitas cerimônias de cura. As abelhas
foram os primeiros insetos criados, acredita-se que elas ajudaram a Deus quando
Ele derrotou o diabo. Vários textos eslavos apontam as abelhas como um dos
principais aliados de Deus na criação do mundo.[11]
extremo oriente e
oceania
Questões do Céu
Antes que o Céu e a Terra existissem, havia apenas imagens, mas nenhuma
forma, tudo era uma vasta desolação, uma névoa escura e tenebrosa, e não eram
conhecidos os seus portais. Dois deuses nasceram do caos, eles teceram os céus e
formaram a Terra. Tão grandes eles eram que ninguém conhecia suas profundezas
e tão exaltados eram que ninguém sabia onde descansariam. Então eles se
dividiram em Yin e Yang, e se separaram nos Oito Polos. Formaram o duro e o
macio, e uma miríade de seres vivos tomou forma. O vapor denso e turvo se
transformou em insetos, e o vapor puro se transformou em humanos.2
O mito de P’an Ku
O mito de Nü Kua
Como foi feito o corpo de Nü Kua? Como ela ascendeu, quando subiu ao
alto e se tornou imperatriz?6
Quando o mundo começou havia duas pessoas, Nü Kua e seu irmão mais
velho. Eles viviam no monte K’un-lun. Não havia ainda nenhuma pessoa comum
no mundo. Eles conversaram sobre se tornarem marido e mulher, mas sentiram
vergonha. Assim, o irmão subiu rapidamente o monte K’un-lun com Nü Kua e
orou: ‘Ó Céus, se fizerdes de nós marido e mulher, fazei com que todo o vapor
enevoado se concentre, senão, fazei com que ele se disperse.’ Então todo o vapor
enevoado se concentrou imediatamente. Quando Nü Kua ficou íntima do seu
irmão, ambos entrelaçaram algumas folhas de grama para cobrir seus rostos. Até o
dia de hoje, quando um homem toma sua esposa, ambos seguram um leque,
símbolo do que aconteceu.7
Os Shang foram sucedidos pela dinastia Zhou, que governou até o ano 771
AC e estabeleceu o culto a Tian (Céu), porém as antigas divindades nunca
deixaram de ser cultuadas, especialmente os deuses ligados à Terra, à chuva e aos
rios, dos quais dependia diretamente a subsistência do povo. Na final da era Zhou
emergiram as grandes filosofias de Confúcio (ou Kong Fuzi, seu nome nativo) e de
Laozi (Lao Tzu, o velho mestre). O confucionismo foi proclamado religião do
Estado em 136 AC, durante a poderosa dinastia Han, e dominou a vida chinesa
até a Revolução Comunista de 1949, que marcou o início de uma nova era
comandada com mão de ferro pelo líder supremo Mao Tse-tung. O budismo foi
importado da Índia ainda na dinastia Han convivendo em harmonia com o
taoísmo e o confucionismo, num espirito de respeito mútuo.[5]
P’an Ku foi o primeiro a nascer, não era um deus, muito menos humano,
pode ser considerado um semideus, era uma criatura primordial gigantesca,
descrita como ‘a criança do Yin e Yang’. Foi também o primeiro a morrer, a
criação do mundo resulta do seu corpo moribundo desmembrado. O mito de
P’an Ku difere dos demais em vários aspectos, a começar que o mundo era um ovo
enorme recheado de caos, onde P’an Ku esteve adormecido por 18 mil anos.
Quando P’an Ku cresce o suficiente para rachar o ovo, seu fluido translúcido, a
matéria etérea do Yang, vaza e forma os céus. A gema, mais pesada, a matéria-
prima do Yin se torna a Terra. P’an Ku passa os próximos 18 mil anos
empurrando o Céu com a cabeça e a Terra com os pés. Quando se convence de
que o Céu e a Terra estão suficientemente separados, ele se deita exausto e morre
dormindo. Nenhuma parte do seu corpo deixa de ser utilizada na criação do
mundo. Até mesmo os parasitas do seu corpo se transformam em uma espécie
ancestral do homem.[12]
Não poderia faltar à mitologia chinesa uma boa batalha épica, ela aconteceu,
de acordo com Questões do Céu, entre o deus da água Kung Kung (Gong Gong) e
Zhu Rong, o deus do fogo, e se transformou numa peleja cósmica que acabou por
abalar a Terra, inclinando seus pilares e abrindo uma falha no Céu. Zhu Rong
governava o Universo com firmeza e sabedoria, ele garantia que o Sol aparecesse
regularmente no Céu, trazendo as condições favoráveis para as pessoas que Nü
Kua havia criado. Gong Gong, uma criatura deplorável, com cabeça humana em
corpo de serpente, coberta de assustadores cabelos vermelhos, invejava Zhu Rong e
planejava tomar o controle do Universo. A batalha entre os deuses foi feroz,
primeiro no Céu e depois na Terra. Gong Gong reuniu todas as criaturas dos mares
e dos rios contra as forças de Zhu Rong, mas eles não puderam vencê-lo, pois o
calor do Sol fez a água ferver em seus corpos e eles acabaram chamuscados e
indefesos. Irado, Gong Gong bateu com sua cabeça na Montanha Imperfeita,
fazendo com que ela colapsasse. Essa montanha era uma das que suportavam os
céus, no noroeste do mundo, assim os pilares do Céu se inclinaram abrindo um
buraco. O mundo perdeu o equilíbrio e as pessoas sofreram com os desastres que
sobrevieram, como fogo nas montanhas e enchentes nas planícies. É por isso que
se diz que os rios correm para o sudeste da China, onde as terras são mais baixas.
[14]
Depois, cinco pares de deuses, formados por uma divindade masculina e outra
feminina, originaram as cinco gerações seguintes: Uhijini, Deus-do-Barro, e sua
irmã mais nova Suijini, Deusa-da-Areia; depois vieram Tsunogu’i e sua irmã
Ikugu’i, Deus e Deusa-da-Germinação; depois Ôtonoji e sua irmã Ôtonobe, Deus
e Deusa-da-Fertilização; depois Omodaru e sua irmã Ayakashikone, Deus e Deusa-
da-Plenitude; e por fim Izanagui e sua irmã mais nova Izanami, Deus e Deusa-da-
União. Essas são as Sete Gerações Divinas.
A ilha de Onogoro
A criança que eles geraram se chamava Hiruko, nasceu deformado, como uma
sanguessuga, aos três anos de idade ainda não conseguia ficar de pé. Então eles o
colocaram num barco de junco e deixaram que fosse levado pelas águas. Pouco
tempo depois, os deuses geraram a ilha de Awashima, que também nasceu
deformada e foi abandonada.
Então Izanagui disse: ‘Oh! Minha adorável e augusta irmã! Se pudesse trocar
um único filho por você!’ Izanagui realizou os rituais póstumos, engatinhou em
volta do corpo de Izanami e chorou copiosamente. De suas lágrimas nasceu a
Deusa-do-Pântano-Murmurante. Izanami foi enterrada no monte Hibanoyama,
no limite entre as províncias de Izumo e Hanaki.
O Japão é um arquipélago constituído de mais de seis mil ilhas, sendo que 97%
do seu território se concentra nas ilhas de Honshu, Hokkaido, Kyushu e Shikoku.
O país se encontra na confluência de quatro placas tectônicas, sobre o Anel de
Fogo do Pacífico; possui 265 vulcões classificados como potencialmente ativos, o
que representa cerca de 10% da atividade vulcânica do planeta. A movimentação
constante das placas tectônicas causa milhares de terremotos todos os anos (de 2 a
5 mil, segundo fontes diferentes), a maioria é imperceptível, mas pelo menos uma
centena deles tem magnitude suficiente para chacoalhar a superfície.[5]
Daí estes ditos antigos, que fazem parte das nossas orações: ‘Trevas, trevas, luz,
luz, a busca, no caos, no caos;’ significa como os filhos do Céu e da Terra lidaram
com seus pais, para que os seres humanos pudessem viver e se multiplicar. […]
Finalmente os planos foram acordados, então Rongo-ma-tane, o deus e pai do
alimento cultivado pelo homem, ergueu-se para separar o Céu e a Terra, ele lutou,
mas não conseguiu separá-los. Eis que Tangaroa, o deus e pai dos peixes e répteis,
ergueu-se para os separar, mas também não foi capaz. Veio a seguir Haumia-
tikitiki, o deus e pai do alimento que brota sem cultivo, levantou-se e lutou
inutilmente. Então, Tu-matauenga, o deus e pai dos ferozes seres humanos,
levantou-se e lutou, mas também falhou em seus esforços. Por fim Tane-mahuta,
o deus e pai das florestas, dos pássaros e dos insetos, ergueu-se lentamente e lutou.
Em vão ele tentou separar seus pais apenas com suas mãos e braços. Então ele
parou, colocou sua cabeça firmemente sobre sua mãe, a Terra, e seus pés contra
seu pai, o Céu, e esticou suas costas e membros com grande esforço até separar
Rangi e Papa. Com gritos e gemidos de dor eles disseram em voz alta: ‘Por que
matar assim seus pais? Por que cometer um crime tão terrível como nos separar?’
Mas Tane-mahuta não levou em conta os gritos e prantos e continuou
pressionando a Terra para baixo e o Céu para longe, bem longe acima.
Daí estes ditos antigos: ‘Foi a força de Tane que rasgou o Céu da Terra, de
modo que eles foram separados e as trevas se manifestaram, assim como a luz’.
Assim que o Céu e a Terra foram separados, uma multidão de seres humanos que
eles haviam gerado foi descoberta, pois eles permaneciam escondidos entre os
corpos de Rangi e Papa.
Tendo vencido seus irmãos, Tu’ assumiu vários nomes, a saber, Tu-ka-riri,
Tu-ka-nguha, Tu-ka-taua, Tu-whaka-heke-tan-gata, Tu-mata-wha-iti e Tu-
matauenga; um nome para cada um de seus atributos exibidos nas vitórias sobre
seus irmãos. Quatro de seus irmãos se tornaram sua comida, mas um deles,
Tawhiri-ma-tea, permance como inimigo do homem, e sempre o ataca com
tempestades e furacões tentando destruí-lo tanto por mar como por terra. […]
Desde então a luz brilha sobre a Terra e todos os seres que antes estavam
escondidos entre Rangi e Papa, quando ainda estavam unidos, agora se
multiplicam na Terra. Os filhos de Tu-matauenga foram gerados nesta terra,
cresceram e se multiplicaram até que chegaram à geração de Maui-taha e de seus
irmãos Maui-roto, Maui-waho, Maui-pae e Maui-tikitiki-o-Taranga.
Até hoje, o vasto Céu tem estado separado de sua esposa, a Terra, embora o
amor mútuo continue. Os suspiros quentes e suaves do seio amoroso da Terra
ainda se erguem até ele [o Céu], subindo pelos vales e montanhas, e os homens
podem sentir esse vapor. O vasto Céu pranteia a separação de sua amada, durante
as noites longas, derramando lágrimas frequentes em seu peito, que os homens
chamam de gotas de orvalho.
Os mitos floresceram em toda a Oceania por meio dos rituais que celebravam
os feitos dos deuses. Entre tantos mitos relacionados à origem do mundo, o mais
conhecido é a história dos polinésios sobre a separação forçada do Céu e da Terra,
para libertar os seus filhos. Este tema também é encontrado na Micronésia, nas
ilhas Gilbert e Kiribati, onde se conta que a divindade primordial Nareau
persuadiu uma enguia a separar o Céu e a Terra.[3]
A criação da Terra
Então disseram: ‘Que assim seja! Que se preencha o vazio do Céu! Que as
águas se retirem e que surja a terra! Que amanheça e que haja claridade no Céu e
sobre a Terra! Nossa criação não estará completa enquanto não existir a criatura
humana sobre a Terra.’
Dessa forma foram criados os montes e os vales, as águas foram separadas para
formar os mares e os lagos e os rios buscaram seu caminho nas ravinas. Assim foi a
criação da Terra, quando Coração do Céu, Coração da Terra, reuniu seus
pensamentos para que sua obra fosse perfeita.
Assim disseram aos cervos: ‘Vocês, cervos, viverão nas pastagens, nas ravinas e
nos vales dos rios, andarão nas quatro patas e se multiplicarão.’ Disseram aos
pássaros: ‘Vocês, pássaros, viverão nas árvores e vinhedos, neles farão os seus
ninhos e se multiplicarão.’ Assim falaram a todos os animais.
Então pediram ajuda aos anciãos, ao primeiro avô, Ixpiyakok, e à primeira avó,
Ixmukane. ‘Vamos retomar a criação’, disseram os Criadores e Formadores a
Ixpiyakok, o avô do dia, e Ixmukane, a avó do amanhecer. ‘Façamos o homem que
nos sustente, que nos invoque e recorde. Consultem um ao outro, avô e avó,
façam sua adivinhação com grãos de milho e tz’ite’ e decidam como deve ser o
corpo do homem que vamos criar.’
Até os cães se voltaram contra eles: ‘Vocês nos causaram muito dano e nos
comeram a carne. Agora vamos morder seus corpos.’ As pedras de moer também
vindicaram: ‘Vocês nos atormentaram de dia e de noite, moendo milho sobre
nossas caras, agora sentirão a dor de serem moídos.’ […]
Os homens de madeira fugiam por toda parte, subiam nos telhados, mas as
casas desmoronavam, trepavam nas árvores, mas elas sacudiam suas ramas e os
lançavam longe. Quiseram se esconder nas cavernas, mas elas se fechavam para que
eles não entrassem. Dessa forma foram destruídos os homens de madeira. Diz-se
que os macacos são seus descendentes. Por isso os macacos se parecem com os
homens, porque são os sobreviventes da geração de homens feitos de madeira
pelos Criadores e Formadores.
Terceira criação: gente de milho
Pensaram a respeito e chegaram a uma decisão sobre do que seria feita a carne
do homem. Nos lugares chamados Paxil e K’ayala’ encontraram o milho que seria
usado. Foram os animais que primeiro encontraram o milho e ensinaram o
caminho aos Criadores e Formadores, o gato da montanha, o coiote, o papagaio e
o corvo. Assim eles puderam encontrar a terra formosa de Paxil, que tinha
suprimento abundante de milho branco e milho amarelo.
O presente do fogo
Nenhum povo tinha fogo e muita gente morria de frio. Então B’alam Ki’tze’ e
B’alam Aq’ab’ pediram a seus ídolos Tojil e Awilix que lhes trouxesse o fogo, ao
que foram prontamente atendidos; mas veio um grande aguaceiro e o apagou.
Então todos os povos reunidos pediram: ‘Tenham compaixão, nos deem um
pouco do seu fogo pois morreremos de frio.’
Então Tojil disse que lhes daria o fogo, com a condição de que aceitassem
servi-lo e serem sacrificados por ele, Tojil, ídolo dos k’iche’s. Como estivessem
todos morrendo de frio, aceitaram. Logo receberam o fogo e se aqueceram. Só um
povo não aceitou as condições e roubou o fogo, eles são os kaqchikeles.
Então surgiu a aurora e apareceu a luz do Sol, da Lua e das estrelas. Primeiro
saiu Vênus, a estrela brilhante, e eles começaram a queimar incenso, cheios de
alegria. Depois saiu o Sol, e os animais se alegraram junto aos homens. O pássaro
K’eletzu cantou primeiro, o jaguar e o puma rugiram alegres. A águia e o urubu-rei
abriram suas asas para aquecê-las.
Antes de sair o Sol a terra estava úmida e lamacenta, mas logo começou a secar
porque o calor se tornou insuportável. De pronto os ídolos Tojil, Awilix, Jakawitz
e Nikatakaj, assim como os animais ferozes se converteram em pedras, pelo calor
do Sol. Quando B’alam Ki’tze’, B’alam Aq’ab’, Majukutaj e Iq’ B’alam foram ver
seus ídolos, eles milagrosamente se converteram em ‘muchachos’ e foram
alimentados com oferendas de incenso, aves e cervos.
Texto extraído de Popol Vuj: libro sagrado de los mayas, de Víctor Montejo.
Também conhecido como a Bíblia Maia, o Popol Vuh é um documento de
inestimável importância dos povos indígenas da Guatemala. Estudiosos acreditam
que tenha sido escrito em hieróglifos maias em tempos pré-hispânicos, porém os
originais se perderam com a conquista espanhola, que dizimou os maias, assim
como os seus códices. O Popol Vuh sobreviveu como tradição oral, em 1558 foi
escrito em maia por um indígena, que havia aprendido o alfabeto latino, por isso
se admite uma possível influência do cristianismo.[1]
Hoje só conhecemos quatro livros maias, três deles foram levados pelos
espanhóis para a Europa e redescobertos nos séculos XVIII e XIX em diferentes
bibliotecas e arquivos, assim são chamados códices de Dresden, Madrid e Paris.
Eles remontam aos últimos anos da história maia antiga, depois do chamado
período Clássico. O quarto é conhecido como Códice Grolier, foi descoberto em
uma caverna de Chiapas na década de 1960, é o único que permanece na Cidade
do México. O mais antigo de todos é o Códice Dresden, que reúne um verdadeiro
tesouro em 74 páginas de cenas perfeitamente desenhadas e textos em hieróglifos,
que versam sobre a religião e astrologia dos antigos maias.[3]
Viracocha surgiu das profundezas do lago Titicaca, da escuridão das águas ele
se ergueu e começou a criar o mundo ao redor. Mas era um mundo sem luz, pois
Viracocha ainda não havia criado o Sol, a Lua, e as estrelas. Nesse mundo sem luz,
Viracocha esculpiu uma raça de gigantes, homens e mulheres enormes, para
povoar a Terra, e os pintou com cores de todos os tipos. E disse Viracocha aos
gigantes: ‘Vivam! Caminhem, respirem e falem. Vivam sem pelejar entre vocês.
Sirvam e obedeçam ao seu criador.’
Viracocha ficou desolado com o fracasso da sua criação, então fez chover por
sessenta dias e sessenta noites, logo os rios e lagos transbordaram, a água subiu e
toda a Terra ficou encoberta pelas águas do dilúvio. Tudo o que Viracocha havia
feito foi tragado pelas águas. Quando elas baixaram, Viracocha voltou ao lago
Titicaca, para a ilha do Sol, que se encontra no lago. Ele pensou que desta vez
começaria sua criação de um modo diferente. Então Viracocha criou luzeiros para
iluminar o Céu, criou o Sol [Inti], a Lua [Pajsi] e as estrelas.
O Sol apareceu e se agradou do seu brilho. ‘Sou a coisa mais brilhante dos
céus’, disse o Sol, ‘todos vão me olhar com espanto’. Então a Lua apareceu ainda
mais brilhante que o Sol. Isso deixou o Sol com ciúmes, assim ele se pôs, tomou
um punhado de cinzas e as jogou na Lua. A face da Lua ficou salpicada com as
cinzas e sua luz se tornou obscurecida.
Depois de criar as luzes dos céus, Viracocha deixou a ilha do Sol e foi para
Tiahuanaco, tomou as pedras que encontrou às margens do lago e começou a
molda-las semelhante as pessoas, mas não gigantes. Deu características diferentes a
cada um, deu-lhes roupas para se vestirem, línguas que pudessem falar e canções
para cantar, deu-lhes também sementes para que pudessem cultivar seus próprios
alimentos.
Quando o povo estava feito, Viracocha lhes deu vida. Em seguida os enviou
para uma jornada abaixo da terra, cada um pelo caminho que devia seguir,
conforme as vestes que usavam e as línguas que falavam. Eles saíam da terra à
medida que chegavam aos lugares que Viracocha lhes havia designado. Alguns
saíram das águas dos rios e nascentes, outros das cavernas e outros das montanhas.
Onde quer que surgissem, ali faziam suas casas.
Então Viracocha decidiu fazer uma viagem, vestiu sua capa, pegou seu bastão e
caminhou para o norte em direção à cidade de Cuzco. No caminho parou em um
povoado chamado Cacha, onde vivia o povo caná. Eles vieram ao mundo armados
para a guerra, era uma gente feroz e perigosa. Os canás viram Viracocha andando
pelo caminho, mas não o reconheceram. Se armaram e saíram da aldeia pensando
em matar aquele estranho. Viracocha viu os homens armados, sabia que suas
intenções não eram boas, então se enfureceu, ergueu as mãos e fez cair uma chuva
de fogo. O povo caná se deu conta do erro e caiu diante de Viracocha pedindo
perdão. Viracocha apagou as chamas, mas não fez a relva voltar a crescer naquele
lugar, que permaneceu queimado e seco para sempre, até as pedras foram
queimadas e tiveram seu peso alterado, assim podiam ser levadas por um só
homem.
Tendo Viracocha falado ao povo, ele e seus filhos foram para o oceano,
caminharam sem parar para o oeste até que desapareceram de vista, as pessoas
ficaram maravilhadas ao vê-los caminhando sobre a água, tão rápido como se fosse
sobre terra firme. Por isso as pessoas chamaram a seu criador Viracocha, que
significa ‘espuma do mar’.
Texto extraído de Mitologia Inca: mitos fascinantes incas sobre los dioses, diosas
y criaturas legendarias, de Matt Clayton.
Os incas não tinham uma linguagem escrita, como os maias e os astecas, além
do que muito da arte e cultura inca foi destruída pelos espanhóis. O que temos
hoje são as histórias contadas pelos indígenas e registradas por missionários
jesuítas.
A mitologia é parte inseparável da história inca, como ocorre com o deus Sol
Inti. Foi Inti quem apareceu a Pachacuti Inca Yupanqui e assegurou que lhe daria
a vitória sobre seus inimigos e que ele conquistaria inúmeras terras. Assim
Pachacuti liderou a grande expansão inca e transformou uma tribo local em um
império. O império Inca representou o apogeu de uma cultura que se desenvolveu
por milhares de anos nos Andes, chegando a um nível de desenvolvimento
inimaginável na arquitetura, engenharia, astronomia, medicina (incluindo cirurgia
do crânio), administração, cultivo em terraços e muitos outros campos do
conhecimento.[2]
A religião inca era centrada na adoração ao deus Sol Inti, mas haviam vários
deuses criadores, cada um com sua própria mitologia. Haviam também os huacas,
seres espirituais ou divindades menores, sejam animais, objetos ou lugares
venerados pelos povos andinos nativos. O mítico fundador da civilização inca,
Manco Capac, seria o iniciador do culto ao Sol, ele mesmo filho de Inti, conta a
lenda.[5]
Uma ideia comum aos vários mitos da criação dos povos andinos, era a crença
de que o mundo havia sido criado e destruído muitas vezes, e que depois de cada
destruição, ou cataclismo, um novo mundo nasce do caos. Na língua quéchua esse
conceito cíclico de destruição e criação é chamado de pachacuti, união das palavras
pacha, que significa espaço-tempo, era, mundo ou Terra, e cuti, que significa
inversão, revolução, algo como virar de ponta-cabeça.[6]
Se Viracocha era o deus criador para os incas das terras altas, os povos costeiros
adoravam a Pachacámac. Infelizmente a maior parte da mitologia desses povos se
perdeu, em parte porque deu lugar ao culto ao deus Sol inca, mas também pela
cristianização promovida pela coroa espanhola. Pachacámac também é o nome de
um importante sítio arqueológico, que contém as ruínas do templo do deus de
mesmo nome.[9]
Então estes dois tiveram um pensamento poderoso, eles criariam a Terra para
ser colocada entre o Alto e o Abaixo, onde ficavam as águas infinitas cintilantes.
Eles se sentaram lado a lado, balançando seus belos corpos de bronze ao som da
música pulsante de suas próprias vozes, assim criaram a primeira canção mágica,
uma canção de ventos impetuosos e águas correntes, uma canção de luz, som e
vida.
‘Eu sou Tawa,’ cantou o deus Sol, ‘eu sou luz. Eu sou vida. Eu sou o pai de
tudo que virá.’ ‘Eu sou Kokyanwuhti,’ replicou a Mulher Aranha em uma nota
mais suave, ‘eu recebo a luz e nutro a vida. Eu sou a mãe de tudo o que virá.’
‘Precisamos fazer algo a respeito,’ disse Tawa. ‘Não é bom que eles estejam
quietos e sem vida. Cada coisa que tem forma deve ter também espírito. Agora,
minha amada, devemos fazer uma magia poderosa.’ Então colocaram uma manta
branca felpuda sobre as muitas figuras, tão macia como se fora tecida de nuvens,
fizeram um encantamento poderoso e as figuras começaram a se mexer e respirar.
‘Agora, vamos fazer outros como você e eu, para que governem e desfrutem
destas criaturas inferiores,’ cantou Tawa. Assim a Mulher Aranha modelou os
pensamentos do seu senhor em figuras masculinas e femininas, como eles mesmos,
mas depois que a magia do cobertor foi feita, as figuras ainda permaneceram
inertes. Então a Mulher Aranha os reuniu em seus braços, junto aos seus seios
jovens e quentes, enquanto Tawa inclinava seus olhos brilhantes sobre eles.
Ambos os criadores entoaram a ‘canção da vida’ sobre os recém-modelados seres
humanos até que aos poucos eles começaram a se mexer.
‘Isso foi algo bom e poderoso,’ disse Tawa. ‘Agora tudo está terminado, que
essas criaturas que fizemos se multipliquem, cada uma conforme a sua espécie. Eu
farei a minha jornada pelo Alto a cada dia para verter minha luz sobre eles e
retornarei para Huzruiwuhti cada noite. Agora irei lançar meu escudo flamejante
sobre as águas sem fim, para que a terra seca apareça. E este dia será o primeiro dia
sobre a Terra.’ E a Mulher Aranha respondeu assim: ‘Guiarei todas essas criaturas
pela terra que farás surgir sobre as águas.’
Então a Mulher Aranha falou com eles assim: ‘A mulher do clã deve construir
a casa e o nome da família deve descender dela. Ela deve construir e cuidar da casa.
Ela deve modelar vasilhas para armazenar comida e água, deve moer o grão para
comida e cuidar das crianças. O homem do clã deve construir kivas de pedra sob o
chão, onde prestará tributo aos deuses. Nas kivas ele deve erigir altares e imagens
de areia colorida, elas se chamarão ponya. Deve fazer também pahos [bastões de
oração], para receber suas orações sobre o ponya. Wupo Paho, o grande paho, será
meu. Devem haver quatro pahos azuis, Cawka Paho, um para o grande Tawa,
outro para Muiyinwuh, outro para Huzruiwuhti e outro para Hicanavaiya. Cada
paho deve ser forjado secretamente com orações e canções. O homem deve tecer as
mantas do clã com símbolos próprios, deve confeccionar armas, caçar e proteger
sua família.’
Ela se abaixou e pegou um pouco de areia, depois deixou que escorresse pelos
seus dedos, então ela disse: ‘Vejam o movimento da areia. Assim será a vida, que
fará crescer todas as coisas. A Grande Serpente Emplumada, o relâmpago, atingirá
a terra para a fertilizar, nuvens de chuva derramarão água e Tawa irá sorrir fazendo
com que as plantas germinem para alimentar os meus filhos.’
Seus olhos buscavam Tawa no Alto, quando ele já se preparava para entrar em
sua kiva do ocidente, em toda a sua glória vermelha e dourada. ‘Eu vos deixarei
agora, meus filhos, mas não tenham medo, porque nós dois estaremos cuidando
de vocês’, disse ela. ‘Obedeçam às palavras que eu lhes dei, e tudo irá bem com
vocês, se necessitarem de ajuda me chamem e eu enviarei meus filhos para ajuda-
los.’
Ainda assim a tradição indígena sobreviveu, das 300 línguas que existiam antes
da chegada dos europeus, 200 ainda são faladas por cerca de um milhão de
indígenas ao todo, mas algumas têm pouco mais de 30 falantes, como é o caso do
chinookan. A enciclopédia das religiões nativas americanas, citada por Davis,
afirma que ‘A nação indígena da América do Norte ainda é o berço de centenas de
tradições religiosas, que vêm sobrevivendo à longa história de perseguição e
supressão por parte de governos e missionários.’ E continua: ‘As crenças sagradas
dos ameríndios são tão dignas, profundas, viáveis e multifacetadas quanto
qualquer outra religião praticada no mundo. A sabedoria sagrada dos nativos não
foi destruída nem perdida; pelo contrário, permanece viva como o coração da
cultura ameríndia hoje.’[5]
O advento de Ñamandu1
Do seu divino saber, fez com que surgisse Ñamandu de Coração Grande
[Ñamandu Py’a Guachu], para ser o pai verdadeiro das numerosas crianças que
estão por vir. Depois, do seu divino saber das coisas, ao verdadeiro pai dos futuros
karai, ao verdadeiro pai dos futuros jakairá e ao verdadeiro pai dos futuros tupã,
ele os fez conscientes da divindade. Ele fez com que se saibam divinos os pais
verdadeiros de seus numerosos filhos que estão por vir, verdadeiros pais da Palavra
que habitará os numerosos filhos que estão por vir.
Ñamandu Ru Ete [Pai verdadeiro], a fim de que tome lugar em face de seu
coração, fez com que se saiba divina a futura mãe dos ñamandu. Karai Ru Ete a
fim de que tome lugar em face de seu coração, fez com que se saiba divina a futura
mãe dos karai. Jakairá Ru Ete, a fim de que tome lugar em face de seu coração, fez
com que se saiba divina a futura mãe dos jakaira. Tupã Ru Ete, de igual modo, fez
com que se saiba divina a futura mãe dos tupã.
Criou uma palmeira eterna no futuro centro da Terra, criou outra na morada
de Karai, outra na morada de Tupã, criou outra na origem dos bons ventos e
ainda outra na origem do espaço-tempo primitivo. Criou cinco palmeiras eternas,
as palmeiras eternas sustentam a morada terrena.
Existem sete paraísos, o firmamento descansa sobre quatro colunas, que são
varas-insígnias. Com os ventos, Nosso Pai empurrou o firmamento estendido,
colocando-o em seu lugar. Tendo colocado primeiramente apenas três colunas no
paraíso, este se movia, por isso colocou uma quarta coluna de varas-insígnia,
depois disso ele ficou em seu devido lugar e não mais se movia.
A primeira a sujar a morada terrena foi a serpente originária; agora só existe sua
imagem sobre a nossa Terra. A verdadeira serpente está nos arredores do paraíso
do Nosso Pai.
O primeiro ser que cantou na morada terrena de Nosso Primeiro Pai, o
primeiro que entonou sua lamentação, foi yrypa, a pequena cigarra vermelha. A
cigarra vermelha originária está nos arredores do paraíso de Nosso Pai, e esta que
está na morada terrena é apenas sua imagem.
Yamai, o girino, é o senhor das águas, aquele que faz as águas. O verdadeiro
yamai está nos arredores do paraíso de Nosso Pai, este que existe atualmente em
nossa Terra é apenas a sua imagem.
Quando Nosso Pai fez a Terra, dizem que ainda não haviam os bosques e os
campos. Por esse motivo e para que trabalhasse na formação das pradarias, criou o
tuku, o grilo verde. E onde o grilo fincou sua extremidade inferior se engendraram
as matas e pastos; somente então se formaram as pradarias. O grilo original está
nos arredores do paraíso de Nosso Pai, este que hoje está na Terra é apenas sua
imagem. E quando apareceram as pradarias, o primeiro a entonar seu canto e
manifestar seu regozijo foi inambu, a perdiz vermelha.
Nosso Primeiro Pai está em vias de se aprofundar em sua morada celeste, assim
ele falou a Karai Pai verdadeiro: ‘Só você, Karai de Coração Grande, quanto às
chamas inacessíveis, em que me inspiro, faça com que seu filho seja delas guardião
e seja chamado senhor das chamas.’
O dilúvio4
Nosso Pai, o grande, desceu sobre a Terra e falou a Guyraypoty: ‘Dancem, pois
tudo irá mal sobre a Terra!’ Eles dançaram durante três anos, antes de ouvir o
ruído das coisas más. A Terra estava prestes a cair e balançava do lado do Sol
poente. Então Guyraypoty disse a seus filhos: ‘Vamos! O ruído das coisas más nos
assombra’! E eles caminharam para o Leste, para a beira-mar. Os filhos de
Guyraypoty perguntaram: ‘A coisa má chegará até aqui?’ ‘Não’, respondeu
Guyraypoty, ‘somente no final de um inverno chegará a coisa má’. E seus filhos se
puseram a trabalhar.
Novamente caminharam e então ele falou a seus filhos: ‘Este lugar, dizem, é a
montanha que detém o mar. Ela é, dizem, destinada a subsistir. É chegado o
tempo de construir nossa morada, é preciso que a façam de madeira! Senão, dizem,
ela desaparecerá nas águas. Eis o que me disse Nosso Pai, o grande.’
Eles fizeram uma casa de tábuas, terminaram a casa e se puseram a dançar. […]
Então a água veio e se espalhou. E o jyparu gritou: ‘Tragam-me um machado de
pedra, vou talhar uma piroga’, mas a espuma da água já envolvia o alto da sua
cabeça. O pato quis voar, mas os habitantes da água o devoraram. O suruvá
também gritou: ‘A água veio mesmo!’ E, quando falava, a água encheu sua boca e
sua alma-palavra se transformou em pássaro.
Texto extraído das seguintes fontes, Ayvu Rapyta: Textos Míticos de los Mbyá-
Guaraní del Guairá, de León Cadogan; A fala sagrada: Mitos e cantos sagrados
dos índios Guarani, de Pierre Clastres e Mitologia Guarani: A criação e a
destruição da Terra, de Aldo Litaiff.
Os relatos de André Thevet, que viveu entre os tupinambás nos idos de 1575,
guardam semelhanças consideráveis com a gênese mbya-guarani relatada por
Cadogan quase quatro séculos depois, com a diferença de que o deus tupinamba é
Monan, sem começo nem fim, o criador do Céu e da Terra. Por causa da
ingratidão do homem Monan fez descer fogo do Céu que consumiu tudo que
existia na face da Terra, assim ela teve que ser refeita da maneira que é hoje.[2]
Poucos povos demonstraram tanto zelo em preservar sua história e sua religião
como os guaranis. Seu universo religioso é ao mesmo tempo fonte e fim da forma
de viver, mantido em segredo e transmitido de pai para filho. Nem mesmo os
obstinados missionários conseguiram penetrar nesse universo. Por isso o mundo
branco permaneceu por tanto tempo em total ignorância em relação ao mundo
guarani com toda a sua profundidade e beleza da linguagem. Era preciso merecer a
confiança, foi assim com Cadogan, que sendo aceito pelos mbya-guarani recebeu
um nome indígena e o direito de partilhar das suas histórias.[4]
Para os guaranis tudo tem um cunho religioso, exemplo disso são as grandes
migrações que ocorreram no início do século XX em direção ao litoral brasileiro,
por povos vindos de várias regiões do Mato Grosso, Paraguai e Argentina.
Forçados pela invasão de suas terras por colonizadores eles saíram em busca de Yvy
Mara Ey, a Terra sem Mal, ou Yvy Dju, a Terra Sagrada.[5]
Os guaranis atuais conhecem bem essa narrativa. Foi em Yvy Mara Ey que
Ñamandu descansou depois de criar Yvy Tenonde, a primeira Terra, mas só depois
de ter certeza que ela estava bem segura pelas cinco palmeiras eternas. Este nhande
rekoram idjipy (mito) é o início do sistema de vida e da história do povo guarani,
afirma o cacique Adolfo Vera, da terra indígena de Rio Silveira. Segundo ele, os
índios não matam os bichinhos que ajudaram na criação do mundo, o tatu’i, o
maino’i e o kururu (o tatu, o colibri e o sapinho).[6]
Segundo versões mbya, o fim de Yvy Tenonde, provocado pelo dilúvio, está
relacionado à união incestuosa de um homem karai com sua tia paterna. Esse mito
foi encontrado entre os mbya atuais e guarda semelhança com as versões
tupinambá e chiripa. Outros negam o incesto, mas sempre colocam o dilúvio
como fator de divisão, criando uma dicotomia entre a Segunda Terra, lugar da
descontinuidade e da morte, e Yvy Mara Ey, a distante terra da eternidade.
Aqueles que não procedem bem são condenados a habitar a terra de Anham (o
maligno).[8]
Não poderia deixar de abordar o mito dos Irmãos, também conhecido como
Ciclo dos Irmãos, ou dos Gêmeos, que está intimamente associado à criação da
Segunda Terra. Segundo uma das muitas versões os irmãos são os primeiros
habitantes da nova Terra, ambos são filhos de Ñandecy, a esposa de Ñanderusuvu
(Nosso Pai, o grande), mas só o mais velho é filho legítimo dele. Mais tarde os
meninos se transformarão, o primeiro, Kuaray, no Sol e o segundo, Jacy, na Lua.
É impróprio, portanto, chamá-los de gêmeos. Enquanto Kuaray é filho de
Ñanderuvusu, Jacy é filho de uma figura pouco conhecida, Ñanderu Mbaekuaa,
Nosso Pai que sabe das coisas. Ele aparece apenas para engravidar a mulher já
grávida do seu marido, que decide deixar a mulher infiel e abandonar a nova Terra
à sua própria sorte. O divino e o humano estão definitivamente separados.[9]
Quanto ao rio Doce, que os krenak chamam de Watu, ‘nosso avô’, é para eles
uma pessoa, não um recurso, que foi tremendamente afetado pela lama da
mineração em uma das maiores tragédias ambientais do mundo. Ailton critica a
ideia de humanidade como algo separado da natureza, uma ‘humanidade que não
reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô’.
Omama é a divindade criadora dos yanomami, que tirou das águas a filha do
monstro aquático Tëpërësiki, dono das plantas cultivadas, mas ela não tinha
genitália, apenas um diminuto buraco do tamanho do ânus de um beija-flor.
Omama tomou dentes de piranha para moldar a genitália da mulher e com ela
copulou, tornando-se pai de uma prole numerosa, ancestrais dos yanomamis.
Omama estabeleceu as regras da sociedade e da cultura yanomami e criou os
espíritos auxiliares dos pajés. O primeiro xamã era filho de Omama e seu irmão
ciumento e malvado Yoasi é a origem da morte e dos males do mundo.
AS MUITAS FACES DE RÁ
[1] Budge, p. 9
[3] Ibid., p. 25
[5] Hart, p. 18
[7] Willis, p. 39
[8] Hart, p. 11
[14] Davis, p. 96
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Suméria
[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Gilgamés
[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Enuma_Elis
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[1] https://www.imj.org.il/en/wings/shrine-book/dead-sea-scrolls
[2] Ehrman, p. 28
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[6] Ibid., p. 31
[7] Armstrong, p. 20
[10] Ibid.
[1] Graves, p. 24
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/YHWH
[4] Golberg, p. 48
[7] Armstrong, p. 21
[5] Ibid., Livro 1:24, Wilson, Nota 2; Livro 10:129, Griffith, Nota 19
[7] Armstrong, p. 40
[8] Ibid., p. 41
[12] Kurma Purana (Varanasi: All-India Kashiraj Trust, 1972), 1.9, In Doniger,
p. 95
[13] Doniger, p. 94
[14] Rg Veda, Livro 10:90, Wilson, Nota 18
[17] https://amrithallan.medium.com
[3] https://www.history.com/topics/ancient-middle-east/persian-empire
[4] Ibid.
[10] Darmesteter, p. 51
[11] Ibid., p. 42
[12] Ibid., p. 40
[13] https://en.wikipedia.org/wiki/Parsis
[14] Darmesteter, pp. 26 e 57
O GÊNESIS ISLÂMICO
[2] Hourani, p. 21
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Bantus
[5] Hourani, p. 33
[6] Knappert, p. 5
[9] Ibid.
[10] Knappert, p. 29
[11] Ibid.
[12] Ibid., p. 31
O CHIFRE DE NGONA
[2] Ibid., p. 35
[3] Ibid., p. 36
[5] https://www.cambridge.org/core/books/invention-of-god-in-indigenous-
societies
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Teogonia
[5] Ibid., p. 99
[6] Ibid., p. 99
[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Biblical_apocrypha
[3] Ibid.
[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Chernobog
[1] Birrell, p. 24
[2] Ibid., p. 26
[4] Willis, p. 88
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Ibid., p. 98
[8] Birrell p. 23
[9] Ibid.
[11] Ibid., p. 32
[13] Willis p. 91
[14] Ibid., p. 92
[15] Ibid.
O KOJIKI E A ORIGEM DO JAPÃO
[2] Ibid.
[3] Wilds, p. xi
[5] https://voyapon.com/earthquakes-japan
[10] Ibid.
A VOZ DOS MAORIS
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Polinésia
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Nova_Zelândia
[5] Grey, p. 14
[9] Ibid.
O POPOL VUH E A CRIAÇÃO DO MUNDO MAIA
[1] Montejo, p. 7
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Civilização_maia
[5] Montejo, p. 7
[6] Nicholson, p. 56
[8] Ibid., p. 39
VIRACOCHA, O CRIADOR INCA
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Império_Inca
[3] Clayton, p. 6
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Império_Inca
[5] Maín-Dale, p. 98
[6] Ibid., p. 91
[7] Ibid., p. 92
[9] Clayton, p. 13
[2] Ibid., p. 91
[10] Ibid., p. 89
[11] Ibid., p. 90
OS GUARANIS E A GÊNESE BRASILEIRA
[3] Ibid., p. 49
[4] Clastres, p. 10
[5] Litaiff, p. 16
[6] Ibid., p. 34
[7] Clastres, p. 46
[9] Clastres, p. 60
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