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NIETZSCHE: O NIILISMO E O RISO DA TRANSVALORACAO Thiago Leite! Resumo: O presente artigo parte da relacdo do riso com 0 conceito do dionisiaco, no que conceme a ‘consolagto metafisica” em wma existéncia contraditéria e sem sentido, para dai conduzir 0 problema do nism (desvalotizacdo) e da tansvaloracao a tuma conexao com a alegria, Em O Nascimento da trageédia, Dioniso era o deus consolador, que redimia o softimento da existéncia no fendmeno estético; a partir de 1886, cle serd o deus cruel, que desejaré os seres humanos “mais fortes, mais malvades, mais profundos’ Este Dioniso crue! traré a consolagao “aqui em baixo”, ensinando a rire redimindo a existéncia nela mestna, sem deus e sem metafisica, Este riso, sintese da alearia trigica, supera toda metafisica de artista, afirma a ‘rueldade do acaso e da necessidade, eestabelece um principio avaliador imanente a0 corpo, E com relagao 4 alegria trigica que seré possivel compreender, assim. a gaia ciéncia e a relagdo que els estabelece com 0 pessimismo — ou melhor, com a superagio do pessimismo, O desenvolvimento do presente texto defende ‘due, sendo 0 riso o efeito de uma virada axiolégica na qual o sofrimento é transmutado em alegria © a cexistencia inteira & redimida nela mesma, sem qualquer referéncia exterior ou metafisica,entao ele se toma também um dispositive de transvaloragio, na medida em que mobiliza a avaliago na inverséo, ou seja, na medida em que dispée de inversbes perspectivistas dos valores que colocam em suspenso mito apenas as, veneragdes entusidsticas dogmticas da moral, mas sobretudo abala toda estinia e valotizagio de spiracio niilista que permeia o pensamento, Palavras-chave: Nietzsche, perspectivismo, humor, riso, gaia eiéneia NIETZSCHE: NIHILISM AND THE LAUGHTER OF TRANSVALUATION, Abstract: This paper intends to explore the relationship of laughter with the concept of the Dionysian, concerning the "metaphysical consolation" for a contradictory and meaningless existence, and from there to lead the question of laughter to the problem of nihilism (devatuation) and transvalvation. In The Birth of Tragedy, Dionysus was the consoling god, who redeemed the suffering of existence in the aesthetic phenomenon; fiom 1886 on, he will be the crue! god, who will desire buman beings "stronger, meanet, deeper.” This envel Dionysus wil bring consolation "down here," teaching to laugh and redeeming existence in itselg, without god and without metaphysics. This laughter, the synthesis of tragic jos. overcomes all, artist metaphysics, affirms the envelty of chance and necessity, and establishes a judging principle immanent to the body. It isin relation to tragic joy that we will also understand gaia scienza and the relationship it «establishes with pessimism - or rather, withthe overcoming of pessimism. Effect of an axiological tur, ia ‘which suffering is transmuted into joy and the whole existence is taken in itself, without any extemal or ‘metaphysical reference, laughter also becomes a device of transvaluation, insofar as it mobilizes evaluation in inversion, that is, insofar as it disposes of perspectvist inversions of values that putin suspension not only the enthusiastic and dogmatic venerations of morality, but above all, it shakes all esteem and commonplace valuation that permeate the most everyday judgments. Keywords: Nietzsche, perspectivism, humor, laughter, gay science. De quanto riso devemos cercar 0 que nos provoca ldgrimas! (Seneca, Sobre a Ira) 1 Psiedlogo (CRP 153536) formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008); mestre em Filosofia pela Universidade de Sio Paulo (2016) com pesquisa sobre o filésofo Friedrich Nietzsche; doutor em filosofia pela UNIFESP, com tese sobre o filésofo Henri Bergson. Realiza pesquisas em filosofia moderna ¢ contemporanea (alema e francesa): flosofia do riso e do humor; axiologia, filosofia dos valores; psicologia_empirica: psicologia corporal: anélise institucional. ORCID: https: /orcie,ore/0000-0003-1576-8840; E-mail: thiagoribeiro.tab@email.com 51 ILISMO E O RISO D. Thiago Leite Primeiras consideragdes A afirmagio de que 0 mundo ¢ tal como ele é, ou seja, sem sentido, sem finalidade e sem um transcendente que o justifique, soa para Nietzsche como uma boa nova. Mas 0 risco de uma tal posigdo levar ao desespero 0 assombra. Como celebrar a boa nova, desmistificar ainda mais o mundo revestido pelos valores morais decadentes e ainda assim manter o espirito jovial e a alegria triunfante? Como vencer a tendéncia ao niilismo negativo inerente a0 niilismo como um todo? Esta é a questio de muitos prefiicios do autor? Para Nietzsche, o niilismo é vencido por ele mesmo. Ele vencido pela radicalizagao da experiéneia do absurdo enquanto cognigio da vontade de poténcia (busca por estados elevados), cognigdo possibilitada pelo proprio niilismo como proceso historico da decadéncia. Nietzsche admite que o absurdo pode ser afirmado sem a nostalgia do sentido e a eriagdo (pelo uso parédico das categorias) pode constituir a nova consciéneia. Ora, o riso parece, em seu uso afirmativo, um dos mais ricos instrumentos para essa superagio O riso para Nietzsche, além de uma significagao propria, possui a virtude de explicitar outros conceitos. A transvaloragao é um deles. E por trés razBes: 1) 0 riso de Nietzsche ¢ efeito de incorporacdes criticas. 2) a inversio valorativa passa sempre por um grau zero que o riso experimenta de forma afirmativa e que resgata do risco de niilismo [0 palhago]. 3) o riso denuncia o estatuto problemitico dos valores, promove a transvaloracdo, Em linhas gerais, trata-se de afirmar que o riso afirmativo de Nietzsche efeito da intemnalizagao dos efeitos criticos do pensamento, passando por um grau zero no qual 0 corpo e a vida encontram novos possiveis, ¢ que, enfim, se expressa como poténcia critico satirica. Veremos assim como o riso é um disparador da transmutagio, na medida em que coloca em jogo ¢ de um sé golpe os aspectos tragicos, estéticos e éticos que Nietzsche visa construir em sta filosofia. Riso e Transvaloragio A mim honra, porém, esse espirito de todos os espiritos livres, essa tempestade que dé risadas, aque danca por cima de marés e desgracas como por cima dos prados._ (NIETZSCHE, eKGWBINF-1884,31[64]) 2 Em O Creptisculo dos Idolos, por exemplo: “Manter a jovialidade em meio a um trabalho sombrio e sobremuneira responstivel no € facanha pequena: ¢, no entanto, o que seria mais uecessirio do que jovialidade?” (NIETZSCHE, 2006. p. 7). [ Renita Bias | 80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2023 | p.51-71 52 ILISMO E O RISO D. Thiago Leite Mathieu Kessler, em um capitulo intitulado Uma estética do riso e das lagrimas’, faz. uma interpretacdo do riso de Nietzsche que merece ser explorada: o riso é a atitude da “consolagao” na Terra, o pathos anti-metafisico. A partir das transformagdes de Dioniso na filosofia do autor, Kessler elabora um sentido para o riso na significagao positiva do filésofo criador que superou os impasses da metafisica. Nietzsche oporia a um primeiro coneeito de Dioniso (0 consolador) um segundo Dioniso, eruel ¢ mordaz, que nio visa mais consolar os homens no softimento da existéncia, mas tomné-los “[..] mais fortes, mais malvados, mais profundos” (NIETZSCHE, 2005, §295). Na leitura de Kessler, a apareate oposigdo pensada por Nietzsche entre Apolo e Dioniso, presente em O nascimento da tragédia, da lugar, posteriormente, 4 uma verdadeira oposigio mais profunda de uma “ .»] estética e de uma filosofia positiva ou negativa” (KESSLER, 1998, p. 55): Dioniso contra 0 crucificado. E é nesta oposi¢ao que o riso passa a desempenhar ‘um papel cada vez mais importante As palavras de Sileno, o companheiro de Dioniso, nao sao as mais adoraveis, Ge ouvir, embora seu riso ecoe profundamente perante a angistia do rei Midas: “O melhor de tudo para ti inteiramente inatingivel: nio ter nascido, no ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer” (NIETZSCHE, 2007, §3). Mas, como fenémeno estético, na arte, a existéncia parecia possivel. Nietzsche, em 1872, assumira, com seu conceito do dionisiaco, estratégias para consolar-se perante o aspecto trigico da existéncia: o espetaculo cruel do nnundo teria uma justificago como fendmeno estético. Como sabedoria trigica, este conhecimento Volta-se com olhar fixo para a imagem conjunta do mundo, ¢ com um sentimento simpatico de amor procura aprender nela 0 etemo sofrimento como sofrimenta préprio (NIETZSCHE, 2007, $18, p. 108) Dioniso, nesse sentido, era um deus que sorria um tanto nostalgicamente, mas nao ria. O fundamento, porém, para uma tal consolagio na arte, vinha de consideragdes metafisicas (tanto kantianas quanto schopenhaurianas) implicadas na dindmica entre individuagdo (apolinio) e vontade (dionisiaco) por um lado, enquanto formas fenoménicas, e por outro lado o Uno-primordial [Ur-Einen]. O retorno, por meio da arte, a0 Uno-primordial daria, assim, sentido para o sofrimento. 5 Cf. KESSLER, 1998. [ Revista Bias | A002 | v.31 | Setembro-Dezembro 2028 | p.51-71 53 NIETZSCHE: O NIILISMO E O RISO D. Thiago Leite Fundadores da “cultura tragica”, Kant e Schopenhauer, vitéria mais dificil, a vitoria sobre o otimismo oculto na esséncia da logica, que &, por sua vez, 0 substrato de nossa cultura” (NIETZSCHE, 2007, §18, p. 108). O mérito destes filGsofos foi o de mostrar que o espago, o tempo e a causalidade, “...] serviam apenas para elevar o mero fendmeno, obra de Maia, a realidade tinica e suprema, bem como para pe ainda mais profundamente o sonhador” (NIETZSCHE, 2007, § 18, p.108). Para Nietzsche, la no lugar da esséncia mais intima e verdadeira das coisas, [..] para fazer adormecer tanto Kant, quanto Schopenhauer, elaboraram um pensamento critico que, ao mostrar como as formas cognitivas constroem os fenémenos — fazendo de nossa realidade, uma realidade onirica - deixaram falar um fundo misterioso, algo para além das formas. A experigncia onirica que Nietzsche descreve, no inicio de O Nascimento da Tragédia, evoca justamente essa divisio, decerto mais Schopenhaueriana, entre vontade ¢ representagio. Ora, Nietzsche, a seu modo, faz uma identidade entre Apolo-fendmenos ¢ Dioniso-vontade, tendo ainda que evocar a unidade mistica que tudo absorve em intensa contradic, 0 Uno-primordial (sentimento mistico de unidade vivenciado na embriaguez). Com tal triade de impulsos, 0 autor procura explicar 0 acontecimento Gionisiaco que é a tragédia grega, realizando ao mesmo tempo um valioso trabalho de psicdlogo.* Para o jovem Nietzsche, a natureza possui “impulsos artisticos”. Trata-se de “estados imediatos da natureza” (NIETZSCHE. 2007, §5), que faz do artista um imitador. Destes impulsos, ele desenvolve a perspectiva de que a arte tem por fungao nos confortar e consolar perante 0 destino trégico do desvanecimento do sonho. Como escreve Marcio Lima, “toda a metafisica de artista ¢ a estética que dela emerge [...] decorrem dessa dinimica dos dois impulsos com esse cerne tiltimo das coisas que padece de dor e de contradigao” (LIMA, 2006, p. 41). O softimento de um ser, continua o comentador, “[..] fragil diante de suas proprias paixdes e desejos; condenado a viver diante dos mais diversos obsticulos” (Idem), seria consolado pelo sonho artistico, pela embriaguez, pela aute, convencendo o ser humano a vida. Este pessimismo, tal como em Schopenhauer, supe, todavia, uma esséncia contraditéria da existéncia. E que o problema do valor da existéncia aparece para Nietzsche primeiramente segundo a figura compassiva da consolagio frente a um softimento + Cf. NIETZSCHE, 2007, $2: “um livro [..] cheio de inovagdes psicoldgicas e de segredos de artistas”. [ Revista Bialaaus | 80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2023 | p.51-71 54 ILISMO E O RISO D. Thiago Leite irrevogavel. De fato, tal problema s6 Ihe aparece como problema, posteriormente, quando inicia, na segunda metade da década de 1870, sua critica 4 metafisica, marcada pelo rompimento com a filosofia de Schopenhauer e a misica de Wagner. Todo o fundamento a consolagao é demolido e 0 fildsofo precisard de novos meios para pensar o mundo ¢ 0 valor da existéncia, Nietzsche, entio, abandona momentaneamente 0 conceito do dionisiaco e do apolineo, para elaborar seu pensamento junto 4 ciéncia natural ¢ 0 positivismo cético, dando inicio 4 critica da moral de Humano, demasiado Inanano € Aurora. De todo modo, é possivel constatar desde esse primeiro momento do pensamento de Nietzsche o anseio em compreender 0 softimento, de dar sentido para o sofrimento da existéncia, mas de uma posigdo nova, onde Dioniso evoca um tipo de transformagio do softimento (embora ainda segundo a figura da consolacio), Apos tal periodo, em que Dioniso quase nao é meneionado por Nietzsche, ele ressurge no génio do coracdo’, em 1886, como elemento de uma interpretacao ligada a0 sentido da terra, onde “nés, homens, somos mais humanos”. A partir dai, nogdo de “consolagdo metafisica’ nfo tem ento nem sentido nem valor perante a afirmacto gloriosa de uma cutra esséncia do homem, que é liberado desta condigéo inferior de criatura para revestir os atributos © a pritica extremamente alegre do criador (KESSLER, 1988, p. 56) Nesse sentido, para Kessler, 0 riso apareceria como uma ‘compensagao” estética que possui um eardter realizdvel por sua auséneia de pretensio metafisica. Diz Kessler ‘A partir do momento onde nfo existe mais nenhuma instincia consoladora, porque a metafisica que a fundava é reputada iluséria, o ser humano deve procurar para si uma compensagio diferente a tragédia de seu destino” (KESSLER, 1998, p. 60). Aqui estaria implicada a qualidade profmda da filosofia ascendente, a alegria, que afirma a existéncia tal como ela é, “inica, singular e terrivel”, com um riso inumano. Cada instante, cada ser, cada acontecimento é tinico ¢ seré afirmado como tal pelo sim dionisiaco. A questo agora é a de tomar os homens mais humanos, mais autenticamente humanos, segundo um conceit nao moralizante ou exterior da vida, aceitando-a em toda sua natureza paradoxal e trgica. A empatia pelo sofrimento, na medida em que carece de fundamentos verdadeiros, dat lugar ao riso ervel, afirmador do 5 NIETZSCHE, 2005, $295. [ Revista Biaaaus | M0012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2023 | p.51-71 55 JETZSCHE: O NIILISMO E O RISO D. Thiago Leite mais terrivel. Mas a afirmagio, aqui, nfo expressa apenas uma concordincia ou uma aceitagio resignada, Trata-se de tornar o terrivel desejivel. Este Dioniso cruel, portanto, por ja ndo supor nenhuma transcendéncia, opde- se ao programa compassivo que justifica o softimento humano na arte. O riso dionisiaco € a “consolagao “deste lado”, ou “aqui embaixo”, na terra, ou seja, ele nfo garante nenhuma consolacao metafisica, nenhum outro mundo, ¢ justifica a vida humana vivendo-a ¢ afirmando-a. O riso, sintese da alegria tragica, superando toda metafisica de artista, afirma a crueldade do acaso e da necessidade, ele tem por objeto afirmar o lado terrivel da existéncia com coragem e alegria. De modo que, neste riso, “[...] se compreende que tudo sucede efetivamente como deveria suceder: como toda “imperfeigio’ ¢ o sofrimento por essa imperfeigdo pertencem & suprema desejabilidade [Winschbarkeit)” (NIETZSCHE, eKGWBINF, 1887-1888, 11[30]). Ele surge como resposta a auséneia de consolo, finalmente evidente apés a critica da moral. “Rir 6, entdo, a forma estética implicita do amor fati” (KESSLER, 1998, p. 63). Deste ponto de vista, riso torna-se 0 elemento que absorve a tragédia da existéncia em uma tinica sintese nao- metafisica que afirma o sentido da terra: ciéneia artistica da vida, ou “tiso racional da natureza”.® Nuno Nabais, nesse sentido, ressalta a coincidéneia entre aprovacio de si mesmo, avaliagao afirmativa e a expresstio do sim dionisiaco como “juizo” $6 aquele que se aprova a si mesmo como ser tinico, na sua singularidade absoluta, e que sente essa singularidade como boa, como valiosa, s6 esse pode pensar a totalidade da existéncia naquilo que ela também tem de fnico, de individual. E do seu juizo irromperd o sim dionisiaco a todas as coisas, a aprovagao triunfal de cada instante (NABAIS, 1997, p. 117). Ora, 0 riso exerce essa mesma coincidéncia, aliado, ainda, ao corpo, como espontaneidade mesma do corpo atrelado ao juizo. Nao seria este o sentido das afirmagdes de Zaratustra? Em Do homem superior, lemos: “Esta coroa do homem que ri, esta coroa de rosas: eu mesmo a pus em mim, eu mesmo declarei santa a minha risada, Nenhum ‘outro encontrei, hoje, forte o bastante para isso” (NIETZSCHE, 2011, p. 271). A coroa é © que Kessler designa por sintese do riso: a coroa de rosas, bela ¢ espinhosa, afirmagao do mais belo e mais doloroso dos pensamentos; afirmago plena da existéncia tal como ela é; riso redentor de tudo que € belo e cruel. 6 Ja no primeiro aforismo de 4 Gaia Ciéncia, Nietzsche escreve: “[...é inegivel que a longo prazo cada uum desses grandes mestres da finalidade foi até agora vencido pelo riso, a razdo e a natureza’ (NIETZSCHE, 2001. §1, p.53). Sublinhamos, assim, uma relag3o intima entre os t8s conceitos. [ Revista “Bias | 80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2023 | p.51-71 56 ILISMO E O RISO D. Thiago Leite O novo pensamento dionisiaco, mais eruel, mais malvado, ao rir de si mesmo como se deve rir, ao deslocar-se diante de si para si mesmo, distanciando-se e aprovando- se a todo instante, evoca 0 encontro do corpo (no riso) ¢ da terra (0 sentido ndo- metafisico). Diz Zaratustra: Qual foi até agora, © maior pecado aqui na terra? Nao foi a palavra daquele que disse: ‘ai daqueles que agora riem!"? Ele proprio nao achow na terra motivos para rit? Entio procurou mal até mesmo uma crianga encontra mativos. “Aquele — no amou o suficiente: senio teria amado a n6s, 0s risonhos! [1 Evitai os incondicionais como esse! E uma espécie doente e pobre, uma espécie plebeia: eles veem a vida com maus olhos, langam o mau-olhado a essa terra (NIETZSCHE, 2011, p. 278). Ora, historicamente a cultura ocidental ¢ atravessada pela desconfianea do riso e da alegria. A proibigio do riso, sua condenagdo, delega-o as formas ilegitimas do pensamento, de modo a desprezar o corpo e exclui-lo do caminho da verdade. Assim, 0 ressentimento faz avangar seu projeto de apequenamento do homem. Difamando 0 riso e com maus olhos para a terra, © pensamento metafisico reforgou as sérias ¢ imaculadas oposigdes que cindem o mundo e © homem de sua poténcia. Por isso, inversamente, 0 investimento afirmativo do riso seré uma forma de recuperagao da terra, 0 retomno dos deuses (pluralidade) e a afirmagio plena da existéncia. Nesse sentido, cabe insistir na mudanga qualitativa da vontade de poténcia. Cumpre observar que esta mudanga conceitual do Dionisiaco que Kessler apresenta como compensagao 4 critica dos fundamentos morais implica em transvaloragdo, uma inversio valorativa, Ao afirmar a auséneia de consolagio, a impossibilidade de qualquer consolagao, abre-se uma nova condicao para “erguer a cabeca” (NIETZSCHE, 2004. §380). Mais que uma compensagio, portanto, Nietzsche vislumbra no riso uma transvaloracgdo, um riso que é efeito de uma mudanga na qualidade da vontade de poténcia. Seo riso “[...] resulta da alegria experimentada ao sentir seu destino como tinico, singular e terrivel, portanto como um desafio que vale a pena de ser relevado pois ¢ ctiador de novas condicées de vida” (KESSLER, 1998, p, 60), cabe entao consideri-lo como diretamente ligado a mudanga do modo de valoragao. Assim, o termo compensacdo [ Revista Bialamus [80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2028 | p.51-71 57 JETZSCHE: O NIILISMO E O RISO DA. Thiago Leite se toma tio inexato quanto inadequado.’ Transvalorar & criar novos modos de valoragio, € mudar qualitativamente a vontade de poténcia e, portanto, a avaliago. Nesse sentido, em O Crepiisculo dos Idolos, Nietzsche retoma a questio tragica, para além do pessimismo, como uma questio afirmativa que transvalora 0 valor do sofrimento.* O autor de Zaratustra, entio, reencontra-se com suas primeiras investidas filoséficas, donde se afirma o encontro entre o dionisiaco, a ideia da transvaloragao e o eterno retorno, O dizer sim a vida, mesmo nos seus problemas mais dros ¢ estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da propria inesgotabilidade no sacrificio de seus, inais elevados tipos - [...] nao para librar-se do pavar e da compaixao, no para purificar-se de um perigaso afeto mediante sua veemente descarga (..]: mas para, além do pavor e da compaixto, ser em si mesmo o eterno prazer do vir- a-set [..] E com isso toco novamente no ponto do qual uma vez parti - 0 Nascimento da tragédtia foi minha primeira transvaloragao de todos os valores, [Umvertiung aller Werthe}; com isso estou de volta ao terreno em que medra meu querer, meu saber ~ eu, 0 tltimo discipulo do filésofo Dionisio ~ eu, 0 mestre do eterno retomno... (NIETZSCHE, 2006, X, §5, p. 106). Em que sentido, portanto, o riso participa na transvaloragdo dos valores? iilismo e valor Rima Final, ‘Uma arte séria & 0 riso Devo fazer melhor amanha, Diga-me: fiz bem hoje? ‘Veto a fagulha dizeto do coragao? Pouco vale a cabega para brincar 7 Encontramos o desenvolvimento desta definig@o em um fragmento postumo que liga 0 iso ao problema da existéncia com mais clareza: “o animal mais sofredor da terra inveaton para si - 0 riso, (NIETZSCHE, eKGWBINF. 1885,37[3]). Ambas definicdes elaboram um processo transvalorativo, no qual o softimento impele a uma mudanga qualitativa da vontade e no uma compensacio, "Em O Crepiisculo dos idofos, Nietzsche desenvolve o que chama de “primeiro exemplo de minha transvaloracde de todas os valores”. Neste exemplo, “a seguranea de inslinto” ou “certeza instintiva’ [nstinkt-Sichecheit] € que diferencia © bom do ruim, ¢ faz da virtude o eftito da felicidade, ou seja, uo sentido de a virtude se dar por consequéncia desta certeza na ago, Trata-se do agir que honesta e abertamente expde suas avaliagdes como sendo a totalidade de sua razao e de seu ser. Portanto, 0 agir desimpedido do instinto, como indice de uma vida forte, no soffe com as resisténcias, e no cai em etro ou doenca. Assim, nosso autor avalia: “[..] se um povo se arruina, se degenera fisiologicamente, seguem-se dai 0 vicio ¢ o luxo, [..] Um jovem fica prematuramente pilido ¢ nnurcho. Seus amigos dizem: tal ov tal doenca é responsivel por isso, Eu digo: 0 fato de adoever, de nit resistir& doenga, j4 foi consequéncia de uma vida debilitada” (NIETZSCHE, 2006, VI, §2, p. 40). Ora, a questao da transvaloragdo se apresenta precisamente na chave da “certeza instintiva", onde a hierarquia das forcas «© valoragdes honestas ¢ desimpedidas, marcando a reversto de avaliagdes degeneradas em avaliagdes afirmativas. [ Revista Balas | A00 12 | v.31 | Setembro-Dezembro 2028 | p.51-71 58 NIETZSCHE: O NIILISMO E O RISO D. Thiago Leite Se no coragto nto arde 0 ardor (NIETZSCHE, eKGWB/NF-1882, 197) A expresstio Transvaloragao de todos os valores [Umwerthung aller Werthe] surge pela primeira vez em 1884°, seguida do titulo Filosofia do eterno retorna. Depois, aparecerd em 1886%°, enquanto subtitulo do projeto Yonrade de Poder, para finalmente substituir 0 titulo do referido projeto em 1887" sendo mencionado por Nietzsche jé no prologo de O Crepiisculo dos Idolos. Que se pense que Nietzsche tenha abandonado o projeto, ou que ficara satisfeito com o que foi aleangado em O Anticristo, ou que se considere ainda o fato de sua produgdo ter sido brutalmente paralisada pela derrocada mental; em todo caso, a compreensio da tarefa da transvaloragdo permanece obscura, Este “[...] ponto de interrogagao tio negro, tao imenso, que arroja sombras sobre quem 0 coloca” (NIETZSCHE, 2007, Prélogo, p. 7) parece duplicar-se, quando nao encontramos maiores desenvolvimentos da questo. Sabemos, entretanto, que tal projeto prescinde de um diagnéstico complexo: © niilismo, O problema comporta mviltiplos sentidos. Conforme afirma Clademir Araldi, a partir de 1880, “[...]o niilismo passa a ocupar cada vez mais um lugar central, enquanto questio para a qual convergem todos os temas referentes crise dos valores e dos ideais do homem modemo” (ARALDI, 2012, p.42). Nietzsche explora cada vez com mais nitidez e profundidade as razdes que condicionam a derrocada do homem, mobilizando todas as suas forgas para compreender este fenémeno. E isto, todavia, em vista de uma conversto: afirmara existéneia, inocenté-la, redimi-la nela mesma, Com efeito, Nietzsche no deixou textos suficientemente sistematicos para uma compreensio ampla do niilismo, Sio varias as passagens nos seus escritos péstumos. Concordamos, porém, que “[...] 0 fato de ndo haver em Nietzsche uma obra organizada em tomo da compreensio e caracterizagao do niilismo no significa que essa questo fique em segundo plano no seu pensamento” (ARALDI, 2012, p. 47). Ou seja. é preciso notar que, no processo de seu pensamento, Nietzsche péde pensar o conceito de niilismo segundo figuras de outra ordem, tais como o “[...] pessimismo, o nirvana, 0 ndo-ser e o nada” (Idem, p. 48). O pessimismo na arte e na filosofia, o ceticismo na ciéncia, o nirvana budista e 0 além * Cf. NIETZSCHE, eKGWBINF-1884, 26{259] Cf. NIETZSCHE, eKGWB NF-1886, 5[75]. Nuno Nabais toma esta como a primeira ocorréncia. CE NABAIS, 1997, p. 133 4 Cf. NIETZSCHE, eKGWBINF-1887, 9[164]. [ Revista Biaaaus | 80012 | n.31 | Setembro-Dezembro 2028 | p.51-71 59 ILISMO E O RISO D. Thiago Leite cristo, ete., reportados a qualidade da vontade de poténcia, sio todas manifestagdes niilistas. Mas entre elas diferengas sutis indicam uma incompletude, um inacabamento, bem como um quadro evolutivo. Estas formas como que precedem o niilismo que se apresenta forma acabada do proceso. Diz Nietzsehe: [...]o pessimismo nao é um problema, mas um sintoma, que € preciso substituir esta palavra por ‘nillismo’, que o simples fato de se perguntar se 0 ndo-ser no vale mais que o ser é em si mesmo uma docaga, umm signo de decadéncia, uma idiossinerasia (NIETZSCHE, eKGWBANF-1888, 1718). Se o pessimismo procura dar valor ao nio-ser, nao encontrando raz6es para investir na existéncia, Nietzsche compreendera que isto nfo é causa da negagio da existéncia, mas sim efeito. Efeito, portanto, de anarquia dos instintos, eaos, falta de hierarquia, ineapacidade de criar, de forgas desarranjadas, enfraquecidas, onde se processa uma dissolugao. Para Nietzsche, so as mesmas condigdes que definirio 0 niilismo. Assim, ha um “desenvolvimento do pessimismo em uiilismo” (NIETZSCHE, eKGWBI NF-1887, 9[107]): “Uma espécie humana improdutiva, sofiedora, cansada de viver [...] no possuindo mais forga de interpretar, de criar fiegdes, produz o niilista” (NIETZSCHE apud KOSSOVICHT, 2004, p. 113). O cansago expressa a condigao da forga e & da forga enfraquecida que a vontade de nada se torna um impulso dominante. A produgio do niilista deve-se, portanto, a dissolugdo das forgas, 4 mistura de muitos instintos intermalizados sem um comando, um caos erescente de perspectivas em luta e em desarranjo. As causas para tal dissolugao, porém, devem ser procuradas no campo dos valores. Para Nietzsche, ..] € un erro assinalar as ‘situagdes de miséria social’ ou as “degeneragdes fisioldgicas’ ou mesmo a corrupgae, como causas do niilismo” (NIETZSCHE, eKGWB/NF-1885, 2[1 7). De modo que “...] 0 niilismo esta, pelo contrario, em uma interpretacdo completamente determinada, ua interpretagio moral crista” (Idem), Portanto, o niilismo liga-se a exterioridade entre valor e vida (veneragio do mundo e mundo real), que de certo modo caracteriza a moral cristi e a cultura ocidental em geral. Frente a impossibilidade de um mundo sem softimento, o niilista opta pela autodestruigdo. Ele nega a si e 0 mundo exterior, julga que este mundo nao deveria ser como é ¢ que nio hi nenhum mundo que deveria ser por jé no possuir forga de resisténcia, [ Revista Bialamus [80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2028 | p.51-71 ILISMO E O RISO D. Thiago Leite Oniilista surge como efeito de um desarranjo profundo por sua vez provocado pela ordem valorativa, ele ¢ consequéncia necessaria de determinados valores e modos de valoragao. Isto é essencial para compreender em que sentido Nietzsche emprega 0 coneeito de niilismo. Assim, 0 niilismo, pode ser considerado como uma necessidade superficial, e isso precisamente porque se segue “légica” e necessariamente da negacao patolégica implicada na decadéncia valorativa: “{...] 0 niilismo nao é uma causa, mas apenas a logica da decadéncia” (NIETZSCHE, eXKGWB/NF-1888, 14[86]) . Tratam-se de avaliagées probleméticas que nao so doravante nada mais que expressdes da qualidade negativa da vontade, separada do exercicio real de sua poténcia. O principio é a décadence, ou seja, a avaliagio dos escravos tomada dominaute, efeito de as forgas reativas atingirem por inteiro as forgas ativas, fazendo medida com seus valores. Ganha- se, com isso, a tibua de valores dos enfraquecidos. A decadéncia nada mais é que a generalizacio dos valores de escravos, dos valores reativos. Define-se assim que 0 niilismo ¢ apenas expresso de uma décadence fisiolégica, mas no sentido preciso em que fisiologia significa “[...] lutas por poténcia dos quanta de vontade. Fisiologia bem compreendida é, pois, doutrina da vontade de poténcia, assim como a psicologia bem compreendida, que com ela se funde numa “fisiopsicologia” (MULLER-LAUTER, 2009, p. 126) O desarranjo das forgas e, assim, a falta de sentido, de meta e de comando na existéncia, sio efeitos promovidos por um tipo de vida negativa e desta avaliagio se constituem as morais. A religido, por exemplo, compromete-se com a decadéneia em vista do poder, empregando artificios consoladores e metafisicos; ela ama a impoténcia, ela quer guié-la no processo de desvalorizacio do mundo, Suas “[...] exigéneias e fiegdes morais de uma outra efetividade tém a fungdo de retardlar a desagregagio” (Idem, p. 193). A religito é responsével por “[...] mascarar 0 movimento niilista em curso por meio de valores morais pretensamente salvadores e afirmativos” (ARALDI, 2004, p. 74), valores ligados qualidade negativa da forga que criam um “trasmundo” prometido, Do mesmo modo, a ciéncia continuard o processo, subvertendo os valores superiores a vida e abrindo para si o imenso reino do “tudo € vio”, do “nada tem sentido”, espécie de autoanestesia, esconderijo, “[...] deserenga, remorso, despectio sui [desprezo de si], ma consciéneia” (NIETZSCHE, 2009, III, §23, p. 126) Em geral, portanto, podemos constatar a maneira pela qual Nietzsche concebe 6 niilismo como um evento complexo, onde posturas filoséficas, estados fisioldgicos, [ Revista Bialamus [80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2028 | p.51-71 61 JETZSCHE: O NIILISMO E O RISO D. Thiago Leite aspectos comportamentais, psicoldgicos, formulagdes cientifieas, convergem para 0 mesmo diagnéstico valorativo: proceso geral de desvalorizagio da vida. De fato, Nietzsche explora, em um admirivel fragmento postumo, algumas causas de produgao do niilismo enguanto estado psicolégico [Nihilism als psychologischer Zustand]: Se produzird, em primeiro lugar, quando em todo acontever tivermos buscado um “sentido” que no se encontra uele: de manciza que © buscador acaba perdendo a coragem. Niilismo ¢ entdo o chegar a ser consciente do prolongado desperdicio de forea, 0 tormento do “em va0” [..] © niilismo como estado psicolégico se produz, em segundo ugar, quando se sup0s uma ‘otalidade, uma sistematizacéo, inclusive wma organtzacao, em todo acontecer ¢ sob todo acontecer: de maneira que @ alma sedente de admiracdo e veneracao se deleita com a representagao global de ‘uma forma suprema de dominio de administragao [...] mas eis que aqui nao existe semelhante entidade universal! E no fundo, 0 ser humano perdew a ‘renga em seu préprio valor [..] ele coneebeu uma tal totalidade para poder acreditar em seu préprio valor. (NIETZSCHE, eXGWBNF-1887. 11[99)). Entretanto, assim como a décadence nao é um estado, mas um processo, aqui no se trata de uma descrigio topolégica do niilismo enquanto estado psicologico, mas ‘um esquema sucessivo, uma espécie de quadro evolutivo da doenga: CO niillismo como estado psicolégico tem todavia uma rerceira e tiltima forma. Dadas estas duas visoes, que com 0 devir nio se deve conseguir nada e que sob todo o devir no impera nenhuma grande unidade na qual a0 individuo esta permitido submergir-se por completo como em um elemento de supremo valor: entdo nfo testa mais escapatoria sendo condenar todo este mundo do devir como engano e inventar um mundo, que se encontra para lé deste mesmo mundo, come mundo verdadeiro. Mas to logo o ser humane consegue averiguar que este mundo esti construido a partir, exclusivamente, de necessidades psicologicas que ele no tem, em absoluto, nenlnum direito de levar a cabo tais construedes, surge. entdo. a tiltima forma do niilismo, que emsiencesra a descrenar em um mundo metafisico, - pois essa forma se proibe a crenga em um mundo verdadeiro. Nesta posigio se admite a realidade do devir como rinica realidade e nos proibimos toda espéeie de subterfigios que conduzam a transmundos e falsas divindades - mas no se suporta este mundo ‘que jé ndo se quer negar.. (NIETZSCHE, eKGWB(NF-1887. 11[99]). A tltima forma do niilismo estabelece o fim da crenga em um mundo metafisico. Este processo leva Nietzsche a duas conelusdes: 1) o sentimento da auséneia do valor resulta do descrédito das categorias do entendimento, como o conceito de fim, unidade, verdade, que até entio logravam em atribuir um valor moral ao mundo. Ao descobrir a fatuidade de tais categorias, o mundo aparece carente de valor. Conclui-se entio que: 2) “[...] a fé nas categorias da razéo é a causa do niilismo, - temos medido o valor do mundo mediante categorias que se referem a wn mundo puramente fingido” [ Revista Bialamus [80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2028 | p.51-71 62 NIETZSCHE: O NIILISMO E O RISO D. Thiago Leite (Idem). Portanto, até aqui, vimos Nietzsche buscar as causas do niilismo nas categorias do entendimento, que em um primeiro momento garantiam um yalor 20 mundo concebendo-o como fim, uno, verdadeiro. No limite, com tais categorias, “[...] o que é forjado precisa aparecer como sendo 0 mundo verdadeiro” (MULLER-LAUTER, 2009, p. 137). Mas, curiosamente, a mesma vontade de verdade, seja na cigncia, seja na filosofia, mostrou que era ilicito interpretar o carter global da existéncia através de conceitos, ¢ na medida em que as categorias perdem credibilidade, 0 mundo, ou a existéncia, igualmente perde valor. Enve as forgas que criaram a moral esti a verde: esta se volta finalmente contra a moral, descobre sua teleologia, sua visio interessada ~ ¢ agora a compreensao desta longa e inveterada hipocrsia, que desesperadamente se oe atua como estimulante” (NIETZSCHE, eKGWB/NF-1886, Esta é a razo para Miiller-Lauter insistir na ideia de que ha uma vontade que se quer desagregada (MULLER-LAUTER, 2009, P. 128), reforgando um ponto que Nietzsche apontara em A Genealogia da Moral: “[...] uma desarmonia que se quer desarménica” (NIETZSCHE, 2009, § 11, p. 99). O niilismo, portanto, ¢ ambiguo ¢ em geral ndo deve induzir prontamente a um diagnéstico plenamente determinado, Em 1887, antes de escrever 0 fragmento sobre 0 niilismo enquanto estado psicoligico, Nietzsche descreve dois tipos de niilismo, um ativo e um passivo, caracterizados segundo as condicdes do poder: “A) niilismo como signo de acréscimo de poder do espirito: como niilismo ativo. [...] B) niilismo como deeréscimo e retrocesso de poder do espirito: niilismo passivo” (NIETZSCHE, eKGWB/NF-1887, 9[35]). Enquanto signo de aumento de poder, 0 niilismo ativo caracteriza o espirito para quem os valores de até entao sao inadequados por ja nao estarem a altura de suas forgas. Nao encontrando neles mais sentido, o niilista ativo se rebela, ¢ sua postura efetiva ele alcanga pela forga ietzsche, tais afetos levam para um periodo de catdstrofe, periodo de uma inversio valorativa surpreendente. Catistrofe: se a mentisa nto é algo divino. Sc o valor de todas as coisas reside em serem falsas? Se 0 desespero mio € somente 4 consequencia de una ina divindade da verdade ‘Se 0 mentir e falsificar (converter em falso) 0 introduzir sentido nao so precisamente um valor, um sentido, un objetivo ‘Se nio deveria crer em Dens, nao porque seja verdadeiro, senio porque é faiso - ? (NIETZSCHE, eKGWBINF-1888, 11[327)) Com tais palavras, Nietzsche apontaria para uma nova qualidade da avaliagaio que esconjura o niilismo, seja ele perfeito ou passive? O periodo dos grandes afetos, tomado ento como dindmica valorativa, leva a uma inverséo, encarada entio como catistrofe, por afirmar justamente o mais inesperado dos pensamentos, mas que, todavia nos da a resposta contra 0 niilismo, a auséneia de valor ea vontade de nada. Assim lemos as seguintes palavras de Nietzsche: “[...] o homem do grande amor e do grande desprezo, © espirito criador, [...] que nos salvaré nfo s6 do ideal vigente, como daquilo que dele forcosamente nasceria, do grande nojo, da vontade de nada” (NIETZSCHE, 2009, 11, §24, p. 78). Se ha um niilismo incompleto que esconde a vontade de nada em diversas ficgdes, com 0 objetivo de substituir os antigos valores por novos, vemos no niilismo perfeito a vontade de nada tomar-se manifesta, nele nao se esconde mais nada. Por isso, em Assim falou Zaratustra, 0 ‘iltimo homem pisca 0 olho, pestaneja, ele deixa ver sua [ Rewista Bialaaus | 80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2023 | p.51-71 67 JETZSCHE: O NIILISMO E O RISO D. Thiago Leite vontade de nada, sua felicidade apatica, sua maneira de descreditar suas proprias palavras, todo seu cinismo, dado que € 0 limite de um processo que se torna cada vez mais consciente, Neste ponto, a mesma desconfianga que deu luz ao ‘mundo verdadeiro’ volta- se contra suas fiegdes, Esta nova forma de afirmacao inelui, entdo, um ato de destruigao. “O martelo: uma doutrina que, ao desencadear o pessimismo mais avido de morte, provoca uma se/egdo dos mais capazes de viver” (NIETZSCHE, eXGWB/NF-1885, 2[100). Ora, a oposi¢io metafisica que outrora negou o mundo e condenou a vida é vista agora em desmantelamento, ela perde seu valor conforme o niilismo, nas suas formas variadas, tira 0 valor do mundo verdadeiro, Para superar o niilismo, onde observa- se, com a dissolucao das oposicdes, a ascenstio do nojo e autodesprezo, engendra-se uma atividade em destruir justamente tais oposigdes através da criagdo de novos valores. E em iltima instancia uma questao de forga: um artista extremamente rico e de vontade poderosa poderia dobrar, completamente, toda essa arte romantica em direco ao anti-somAntico ou — para empregar minha formula — em direcio 20 dionisiaco, do mesmo modo que todo tipo de pessimismo ¢ uiilismo se converte simplesmente em um instrumento na mio do mais forte, com o qual se adquire, finalmente, wm novo par de asas (NIETZSCHE, €KGWB/NF-1885, 2[101). Tal é a ambignidade do niilismo. A mesma forga que se reeonhece sem saida perante uma tal desvalorizagdo do mundo procura, por esta mesma via, um mais-poténeia destruindo justamente aqueles valores decadentes e depreciadores, Esperamos esclarecer, nesse sentido, porque Nietzsche tenha se autodenominado “...] o primeiro niilista perfeito da Europa, o qual, todavia, jé viveu o niilismo até o final — 0 qual o tem atris de si, abaixo de si, longe de si...” (NIETZSCHE, eXGWB/NF-1887, 11[411]). Conclusio A pergunta que nos cabe agora colocar é: de que modo o riso de Nietzsche participa do niilismo, dado que também atua no dominio dos valores? Seria o riso um instrumento daquele que dobra em diregao ao dionisiaco? Se admitirmos que um riso goneraliz ido, que toma tudo vio e desimportante, auxilia na desvalorizagao dos valores superiores, podemos tomé-lo participante no estado intermedidrio’’ ¢ na atividade de ‘ Cf. NIETZSCHE, eKGWBINF-1887, 1[100]. [ Revista Biaaaus | 80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2028 | p.51-71 68 ILISMO E O RISO D. Thiago Leite dobrar 0 niilismo em diregio ao dionisiaco. Podemos tomar 0 riso, justamente, como um martelo. Estas so apenas especulagdes a partir da ideia de que no riso ha uma indica valorativa decerto valiosa para Nietzsche. Entretanto, como interpretar 0 que nos € apresentado no preficio ao Nascimento da tragédia, ou seja, que & preciso aprender a rir para sermos absolutamente pessimistas? Pois, se a ideia de Nietzsche ¢ que o pess imismo é um dos tipos do niilismo enquanto processo e que, em realidade, 0 proceso deve ser aprofundado, levado adiante ao ponto de uma transformagio, é ficil eonvencer- se de que o riso é um veiculo, ou instrumento, no apenas eficaz, mas até mesmo 0 mais, desejavel dos instrumentos. ‘Tomado do ponto de vista do valor, o riso generalizado é sintoma do niilismo. Mas tomado do ponto de vista da vontade de poténeia o riso é aquele que melhor assassina os valores superiores. Como afirma Zaratustra, com coragem, zombeteiro, “no com a ira, mas com o riso é que se mata” (NIETZSCHE, 2011, p. 40). Pois, além de destituir valores, 0 riso garante ao avaliador um aumento de poténcia. Também por ser efeito de uma percepgao renovada e de uma nova perspectiva diante dos valores decadentes, haverd neste riso alguma criagio de sentido, alguma criaglo que transforma em caricatura por forga da vontade de poténcia. O riso, portanto, em geral, fomece para a filosofia do valor o meio ideal para os deslocamentos entre extremos que esta mesma filosofia exige para a superagio da indiferenga e negagao avaliativa — 0 niilismo nas suas formas negativas. Ele dé forga 4 possibilidade de realizar as aspiragdes antimetafisicas e perspectivistas que a filosofia do valor visa construir, Nas palavras de Michel Haar, podemos inferir que hi no riso generalizado a passagem para a grande transigio: E neste tiltimo sentido, como anulagao de todas as diferengas metafisicas, © como supressio radical do mundo verdadeiro, ou seja, como negacio do deus iinico (representante cristao do mundo) que o niilismo pode ser uma mancira divina de pensar’: livre da paralisia do Unico, 0 instinto eriador de deuses imiltiplos serd reanimado. Ele anunciaré uma grande transi¢a0 (HAAR, 1993, p35). Somente do ponto de vista do valor é que aereditamos possivel explicar porque o niilismo é necessirio para a transvaloragio. Sendo assim, a destruigao que o riso generalizado provoca é aguela que, para Scarlett Marton, define uma das tarefas da [ Revista Bialamus [80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2028 | p.51-71 69 NIETZSCHE: O NIILISMO E O RISO DA... Thiago Leite transvaloragio: “Transvalorar é, antes de mais nada, suprimir 0 solo a partir do qual os valores até entio foram engendrados” (MARTON, 2009, p. 75).!7 E por esta razio que acreditamos haver, em Nietzsche, uma arte do riso, que se reflete a si mesma em seu exervicio, Um saber rir que se volta contra a seriedade para transgredi-la por excesso e que por consequéneia diz néio 4 negacio valorativa da existéncia que permeia a cigncia e a cultura. Nesse sentido, lembremos a ligdo de metodologia dionisiaca de Nietzsche: com iso maldoso, experimentar as coisas (os valores) reviradas. A arte do riso de Nietzsche deve entdo ser compreendida segundo seu poder valorativo atuante a0 nivel das forgas, tomando-se uma nova arma contra 0 niilismo. Nesta arte, se reencontram o combate, a resisténcia e a elevacio da poténcia, O perspectivismo, a transvaloracao, a filosofia experimental, a critica do valor, bem como © sim dionisiaco aparecem aqui condensados, em unissono nessa nova arte, nesse “(...] grande meio de educagio” (NIETZSCHE, 2001, §177, p. 167), que Nietzsche exige que se aprenda: “[...] 6 homens supetiores, aprendei a— rit” (NIETZSCHE, 2011, IV, §20, p. 281). Referéneias Bibliograficas Os fragmentos citados seguem a edigdo Colli/Montinari — tal como se encontra no site (Digital Kritische Gesamtausgabe) ~, ¢ sio referenciados pela notagio do ano, seguido pelo aimero do fragmento: por exemplo, KGWB/NE- 1887, 11[100] ARALDI, C. L. A vontade de poténcia e a naturalizagio da moral. In: Cadernos Nietzsche, n. 30, Sao Paulo: Discurso Editorial, 2012. ____. Niilismo, cria¢io, aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. So Paulo: Discurso Editorial; Ijui, RS: Editora Unijui, 2004. DELEUZE, G. Nietzsche et la Philosophie. Presses Universitaires de France. 6* Edition, « Quadtiege » : 2010. HAAR, M. Nietzsche et la métaphysique. Paris: Gallimard, 1993 KESSLER. M. L’esthétique de Nietzsche. Pais. Presses Universitaites de France.. Ine éd, 1998 KOSSOVITCH, L. Signos e poderes em Nietzsche. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004. LIMA, M. As masearas de Dioniso: filosofia e tragédia em Nietzsche. Si0 Paulo: Discurso Editorial: Ijui, RS: Editora UNIJUI, 2006. p. 41 MARTON, S. Extravagincias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 3. ed. Sao Paulo: Discurso editorial; Editora Barcarolla, 2009. MULLER-LAUTER, W. Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. Tradugio de Clademir Araldi. Sao Paulo: Editora Unifesp, 2009 © Para a autora, transvalorar seré, “[...] também, inverter valores” (MARTON, 2009. p. 77) [ Revista Biaaaus | 80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2023 | p.51-71 70 NIETZSCHE: O NIILISMO E O RISO DA... Thiago Leite NABAIS, N, Metafisica do tragico: estudos sobre Nietzsche, Relogio D'dgua Editores 1997 NIETZSCHE, F. W. Traduga 2005. ___.. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradugao, notas e posfiicio de Paulo César de Souza. — Sao Paulo: Companhia das Letras, 2011 ___. Aurora: reflexes sobre os preconceitos morals. Tradugio, notas e posficio de Paulo César de Souza, ~ Sao Paulo: Companhia das Letras, 2004 ___.. 0 Crepiisculos dos Idolos, ou, como se filosofa com o martelo. Tradugao, notas posfiicio de Paulo César de Souza, ~ Sao Paulo: Companhia das Letras, 2006. ___. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradugao, notas € posficio de Paulo César de Souza, — Sao Paulo: Companhia das Letras, 2007. Jém do bem e do mal: prelidio a uma filosofia do futuro. . notas ¢ posfacio de Paulo César de Souza. — Sao Paulo: Companhia das letras, [ Revista Bialamus [80012 | v.31 | Setembro-Dezembro 2028 | p.51-71 71

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