Professional Documents
Culture Documents
Hannah Whitten - O Rei de Foxglove (Oficial PT-PT) R&A
Hannah Whitten - O Rei de Foxglove (Oficial PT-PT) R&A
QUINTA ESSÊNCIA
uma chancela da empresa LeYa, S.A.
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
E-mail: quintaessencia@oficinadolivro.leya.com
E racidades
fácil alguém orientar-se em Dellaire. Lore ouvira falar de outras
– caóticas e serpenteantes, atalhos que se fechavam sobre si
mesmos – e o conceito parecia-lhe absolutamente alheio depois de meia
vida passada nas artérias bem organizadas de Dellaire. As Quatro Alas
orientadas para os pontos colaterais, as duas ocidentais correndo para o mar
enquanto as orientais davam para as ondulantes terras de cultivo de
Auverraine. A Igreja no centro da cidade, construída em círculo, guardava a
Cidadela no interior.
Mas, se Dellaire era uma grelha, já as catacumbas por baixo eram uma
rede emaranhada.
Um sol débil incidia sobre a parte de trás do pescoço de Lore enquanto
ela se encontrava parada à porta de um edifício dilapidado a uns quarteirões
da casa de Michal. Tinha o aspeto de uma construção que fora muitas coisas
a dada altura, tantas que se haviam anulado umas às outras, deixando-a
praticamente disforme. Um leve vento oriundo do mar agitava o pano
rasgado pendurado nas janelas.
Lore praguejou baixinho. Estar tão perto das catacumbas deixava-a
sempre inquieta.
Estavam vazias. Sentia-o, mesmo agora, parada a uns metros da entrada.
Não havia ninguém nos túneis, pelo menos ao longo de uns quilómetros.
Ainda assim, sentia arrepios.
Era aquele o dom que a tornava de um valor inestimável. Aquele com
que chocara Mari dez anos antes, quando era uma rapariga de treze anos a
deambular pelas ruas com um olhar vazio e uma cicatriz de queimadura
ainda fresca na palma da mão. A mulher de Val dirigia-se ao mercado e
cruzara-se com uma jovem Lore a olhar para um buraco irregular na lateral
de um prédio em ruínas, uma abertura que facultava acesso às catacumbas.
Lore ainda se recordava. Bloqueara praticamente tudo o que acontecera
antes desse momento, treze anos da sua vida passados quase por completo
debaixo do solo, mas a sua recordação de encontrar Mari era cristalina,
conservada na perfeição, como se a sua mente pudesse varrer tudo o que
ocorrera antes guardando aquela recordação com um detalhe minucioso.
– Sentes-te bem? – A voz de Mari soara calma e grave, com as suas
longas tranças negras enroscadas no topo da cabeça. Um momento de
hesitação antes de pôr no ombro de Lore a mão de um castanho-dourado. –
Há algum problema?
Lore tinha fitado o buraco e concentrara-se na picada da queimadura
ainda por curar na palma da mão, na escuridão mais atrás e como se
estendia até ao que tinha sido a sua eternidade. Pestanejou e o traçado dos
túneis cobriu-lhe o interior das pálpebras.
– Não vem ninguém – dissera. – Agora não.
No presente, Lore abanou a cabeça. Tornara-se melhor a conseguir só
ceder à consciência das catacumbas quando necessário – mesmo agora,
quando o estranho talento parecia desenvolver força a par da sua perceção
da Mortem –, mas estar tão perto tornava-o quase impossível de ignorar,
fazia com que se imiscuísse entre os pensamentos como tinta em água.
Sentia os túneis como membros fantasmas, como se as catacumbas e a
Mortem no seu seio fizessem parte de si. Por vezes, achava que, se lhe
arrancasse a pele e a virassem do avesso, haveria um mapa na parte interior
escorregadia, gravado na sua carne.
Com um suspiro, encostou-se à lateral do edifício. Chegara um pouco
mais cedo do que a hora indicada por Val, a qual era extremamente pontual.
Um minuto mais tarde, Val percorria a rua em passada larga na direção
dela, com a mesma postura que servia tanto para um caminhar descontraído
como para investir numa luta com facas. Uma mulher de meia-idade mais
severa do que tradicionalmente bonita, com um rosto pálido como papel,
olhos verde-garrafa e um lenço que desbotara até quase ficar sem cor a
prender-lhe o cabelo dourado.
Lore ergueu uma mão num cumprimento. Val agarrou-lhe os dedos e
puxou-a antes para um abraço.
– Tens-te mantido longe dos problemas, ratinha?
– Só daqueles em que não me queres envolvida. – Lore correspondeu ao
abraço, o odor familiar a velas de cera de abelha e uísque a suavizar-lhe o
peso nos pulmões. Val e Mari tinham-na criado desde aquele dia em que
emergira da escuridão para um mundo que não conhecia. Tinham-na
protegido e dado um propósito na vida, mesmo sendo um risco. Mesmo
quando os efeitos da sua estranha infância se manifestaram de formas
aterradoras.
Mas nenhuma delas falava disso.
Val fungou e endireitou os braços, com as mãos ainda nos ombros de
Lore. O seu olhar sempre fora cortante como um bisturi e agora não era
diferente.
– Vou retirar-te – anunciou sem preâmbulos.
Lore franziu o sobrolho.
– O quê?
– Já temos todas as informações de que necessitamos sobre a operação
do Gilbert; se esta semana vai movimentar tanto contrabando quanto dizes,
não traficará veneno por muito mais tempo. Há sempre uma intensificação
de espírito religioso depois de uma Consagração real. Os Presque Mort
podem andar distraídos por agora, mas, depois da cerimónia, vão andar a
farejar de uma maneira incrível.
Por muito que adorasse as mães adotivas, era inegável que eram
implacáveis. Val e Mari ambicionavam tornar-se as únicas fornecedoras de
veneno de Dellaire – assim que isso acontecesse, seriam praticamente
intocáveis. Os casacas de sangue aceitavam qualquer suborno que lhes fosse
oferecido e até os Presque Mort e o resto da Igreja por vezes fechavam os
olhos. O submundo criminoso de Auverraine só o era até a quantidade de
ouro correta chegar à palma da mão correta.
Ainda assim, Lore abanou a cabeça, dizendo a si mesma que a sua
relutância em partir era uma decisão de negócios que nada tinha que ver
com Michal.
– Não me parece que seja boa ideia. Ainda posso vir a saber muito.
Ergueu-se uma sobrancelha clara. Val inclinou a cabeça, aquele ar de
bisturi ainda mais pronunciado.
– Gostas dele.
– Não. – Sim. – Não tem nada que ver com isso.
– Oh, ratinha. – Val suspirou. – Já te disse antes. Tens de manter a
distância.
Mas ela mantinha sempre a distância. O poder que lhe corria nas veias,
as coisas horríveis de que era capaz, mantinham-na sempre à distância,
sempre. E era agradável deixar que as partes de si que podiam ser
apreciadas – até amadas – desfrutassem por vezes de algum conforto.
Val voltou a dar-lhe uma palmadinha no ombro.
– É pelo melhor, Lore. Acredita em mim. – Uma pausa, os seus dentes
cravando-se no lábio inferior. – É tudo pelo melhor.
E ela tinha razão. Val tinha sempre razão. Lore suspirou, assentiu com a
cabeça.
Não seria difícil. Tinha guiões para aquilo, listas de desculpas que fora
dando a namorados ao longo dos anos, amantes para os quais também fora
alertada quando se infiltrava nas suas vidas para descobrir os segredos de
quem os contratava. Havia a tia doente de quem tinha de tratar, o marido
ciumento que finalmente dera com ela, o súbito desejo de mudar de repente
de cidade para começar uma nova vida. Por norma, as desculpas não eram
postas em causa e Dellaire era suficientemente grande para raramente voltar
a cruzar-se com essas pessoas. Nas raras ocasiões em que acontecia, não
reparavam nela. Os casos de Lore eram de curta duração e os traficantes de
veneno seguiam em frente ainda mais depressa.
– Fala-me desta entrega – pediu, ansiosa por mudar de assunto.
– É simples. – O olhar de Val desviou-se do de Lore. – Por norma, não te
incomodaria com isto. Mas o cliente exigiu que as caixas fossem deixadas
na entrada das catacumbas na Ala Noroeste da praça do mercado.
– Então, precisas que eu vigie e me assegure que ninguém se aproxima
até o cliente as recolher. – Os vagabundos recorriam com frequência aos
túneis periféricos das catacumbas para circularem por Dellaire. Deixar lá
algo era um risco.
– Não deve demorar – disse Val. – Se fores já e cortares pelas ruas das
docas deves chegar a tempo do render da guarda. Será o caos, dado que é a
véspera da Consagração real. O Jean-Paul traz o contrabando para a praça e,
se ele chegar durante a troca, é capaz de passar sem ser revistado. Assim,
podes ajudá-lo a descarregar.
Ir à praça, descarregar a entrega, vigiar o veneno até ser recolhido. Os
clientes não gostavam de deixar o contrabando pousado por muito tempo,
pelo que não deveria ter de estar lá por mais de uma hora. A seguir, poderia
regressar a casa de Michal, saltar para dentro da banheira enferrujada com
pés em forma de garras para se livrar da comichão de ter estado perto das
catacumbas e decidir a qual das suas mentiras iria recorrer para romper o
que quer que houvesse entre eles.
Assentiu com determinação a Val.
– Então, vou por aquele lado.
A velha traficante de veneno observou-a por momentos com uma
expressão inescrutável. A seguir, voltou a puxá-la para si, com um abraço
tão forte que Lore quase gritou de surpresa.
– Amamos-te como se fosses nossa filha – murmurou-lhe junto ao
cabelo. – Eu e a Mari. Sabes disso, certo?
Espantada, Lore assentiu com a cabeça, embora fosse incapaz de a
mover muito.
– Claro que sei.
– E independentemente do que façamos, fazemo-lo porque tem de ser. –
Val recuou, sem retirar as mãos dos ombros de Lore, com os olhos verdes
incaracteristicamente brandos. – Lamento obrigar-te a deixá-lo, ratinha.
Lore assentiu de novo de repente, tragando a curiosidade tensa na
garganta.
Mais um apertão nos ombros e então Val largou-a.
– Agora, põe-te a andar – disse. – Não queres chegar atrasada. – Virou-se
e regressou por onde viera.
Lore fechou os olhos. Suspirou, com o som a abalá-la ao de leve. A
seguir, virou-se e avançou na direção oposta, rumo às ruas das docas.
As ruas das docas revelaram-se um erro. Lore avançara cerca de
quilómetro e meio quando deu com um cintilar dourado no horizonte e, aos
dois quilómetros e meio, tornou-se evidente que os preparativos para a
Consagração do Príncipe Sol tinham ocupado quase todo o espaço na rua
entre o ponto onde se encontrava e a Ala Noroeste. Bancas coloridas
delimitavam os caminhos por norma desertos, vendendo-se na rua
estatuetas do Deus Sangrante e réplicas de cobre-esverdeado da coroa de
raios de sol do Rei Santo. Casacas de sangue com as suas jaquetas
carmesim deambulavam entre a multidão crescente com baionetas
reluzentes e Lore viu até um ou dois Presque Mort, vestindo da cabeça aos
pés um preto opressivo.
– Que estupidez – silvou entre dentes. – Que estupidez amaldiçoada
pelos deuses fazer uma entrega logo antes de uma consagração.
Provavelmente, conseguiria circular por entre a multidão, mas demoraria
a transpor todo aquele movimento e isso deixaria o contrabando
abandonado à sua sorte. Lançando um jorro de impropérios, Lore deu a
volta e desatou a correr para as traseiras do edifício onde se encontrara com
Val.
Se não dava para ir pela superfície, a única forma de chegar ao lugar da
entrega a tempo seria seguindo pelas catacumbas.
Merda.
A adaga que levava na anca representou um peso reconfortante enquanto
Lore se baixava cautelosamente sob o lintel da porta descaída, sempre de
olho em assombrações. As assombrações não eram uma verdadeira ameaça,
tornadas lentas pelos efeitos físicos de veneno em excesso e vidas
demasiado longas, mas nem por isso sentia vontade de encontrar alguma.
Tendiam a juntar-se em redor das entradas das catacumbas e o
inconveniente talento dela só a avisava se alguém estivesse efetivamente
dentro dos túneis.
Havia sempre o risco de encontrar uma fuga de Mortem em volta das
entradas das catacumbas, que tornava a aproximação às mesmas no mínimo
desagradável, no máximo perigoso. A Mortem por canalizar poderia
devorar um corpo e, ao ritmo que vazava do cadáver da Deusa Sepultada
sob a Cidadela, por vezes era demasiado para a Igreja, mesmo com os
Presque Mort.
Pensar nos Mort deixava-a com a boca tensa. O grupo de elite de monges
utilizadores de Mortem fora criado especificamente para canalizar toda a
Mortem derramada e impedir que inundasse Dellaire, mas por vezes era
simplesmente de mais. E depois havia o problema do que fazer com aquilo.
Normalmente, os Presque Mort encaminhavam-na de volta para a pedra,
dado que já era matéria morta, mas abria dolinas por todas as estradas. O
problema da deusa morta de Dellaire era um tormento para as
infraestruturas.
A outra opção passava por canalizar a Mortem para algo vivo, regra
geral para plantas – corria o rumor de que contavam com um jardim repleto
de flores de pedra e árvores talhadas em rocha. Quando as fugas se
revelavam particularmente más, por vezes os Presque Mort tinham de
recorrer aos terrenos de cultivo, arrasando campos inteiros, embora uma
fuga tão terrível já não acontecesse havia imenso tempo.
A entrada das catacumbas ficava nas traseiras do edifício, sobre uma
coleção de pedras grafitadas e soalho partido. Alguém fora prestável e
pintara na parede um rosto com um X sobre cada um dos olhos, com uma
seta a indicar o caminho.
Lore não precisava de indicações. Quanto mais avançava, mais a sua
pele zumbia, o seu conhecimento inato dos subterrâneos a ganhar vida com
um sacão doentio. Tão perto como estava, se fechasse os olhos poderia ver
os traços pretos das catacumbas na sua mente – um labirinto emaranhado de
túneis que se sobrepunha aos seus pensamentos, tingindo-os de preto.
O efeito sempre a perturbara, pelo que se esforçou por não pestanejar ao
abeirar-se da porta dilapidada, inspirando fundo pelo nariz e expirando pela
boca para manter a mente limpa. Empurrar um veio de veneno para as
catacumbas para ser recolhido era uma coisa; outra completamente
diferente era caminhar através delas, senti-las a pressionar de todos os
lados. Fazia-lhe doer a marca de queimadura em forma de lua que tinha na
mão e foi distração suficiente para não reparar na pessoa atrás dela até já
estar demasiado próxima para poder escapar.
Um braço rodeou o seu pescoço, com as unhas sujas que se cravaram na
sua pele carregadas com o odor doce e herbáceo de beladona. Sufocada e a
praguejar, Lore ergueu o cotovelo, espetando-o em algo que lhe pareceu
terrivelmente ossudo.
Aparição, só podia ser. Pareciam sempre cadáveres andantes.
A aparição riu-se, um som soprado e ofegante que trouxe mais um sopro
de odor a flor venenosa. O braço largou-a, o peso leve projetou-se para trás
– Lore girou sobre os calcanhares, adaga empunhada e encostada ao
pescoço encardido.
Sem dúvida uma aparição, e uma que já deveria estar morta há muito.
Magra como um esqueleto, sem muitos dentes que restassem, olhos
afundados num rosto da cor da barriga de um peixe e cruzados por veias da
cor de pedra cinzenta. Demasiado emaciada para se poder adivinhar o sexo.
A aparição arfou outra gargalhada e Lore viu os pulmões em esforço através
da pele, num corpo com mais de pedra do que de carne.
– Achavas que te escondias? – Os lábios da aparição abriram-se num
ricto. O lábio inferior rachou, mas não jorrou qualquer fluido. – Cheirava a
morte em ti a quilómetros de distância, meu docinho. Tanta. Como é que te
manténs tão sã, tão completa? Uma rapariga nascida para albergar
esquecimento não o deveria ser.
– Parece que a mente se vai depressa mesmo quando o corpo se demora
– silvou Lore.
A aparição riu-se, um som áspero, penoso.
– Aproximei-me, umas quantas vezes. Tão perto de ser capaz de tocar a
eternidade. – Um ombro erguido caiu. – Nunca lá cheguei. Mas tu… tu tens
esse poder sem sequer te esforçares. Que original. Que raro. – Dentes
amarelos lascados, num sorriso aberto. – Deveriam ter-te matado quando
tiveram a oportunidade.
Lore estabilizou os joelhos. A ponta da adaga vacilou.
– Fui lá abaixo, sabes? – A aparição voltou a sorrir. – Vagueei ao longo
de dias. Estão a aumentar, filas muito ordenadas, preparados para a guerra.
Palavreado disparatado, um sinal evidente de uma mente perdida havia
muito. Por instantes, Lore sentiu pena do cadáver incompleto e isso
destroçou-lhe a determinação assassina. Embainhou a adaga e regressou à
porta, com as pernas algo trementes. Podia fugir. Se fizesse todo o caminho
a correr, chegaria apenas uns minutos atrasada ao ponto de encontro.
Atrás dela, outra gargalhada, um rangido quando a aparição estendeu o
corpo esquelético no chão.
– Foge, foge, doçura – cantarolou suavemente. – Não podes fugir de ti
própria.
Percebeu que estava demasiado atrasada antes sequer de ver os guardas.
Era difícil não os ver. Os Protetores da Cidadela envergavam gibões em
vermelho-vivo e poliam as baionetas até cintilarem, suficientemente limpas
para muitos duvidarem da quantidade de pessoas que conheceram a ponta
afiada. Mas Lore conhecia a verdade – não era à toa que eram conhecidos
por casacas de sangue. Sabia também que, com o cabelo escondido debaixo
de um boné e as curvas generosas disfarçadas por roupas largas de rapaz
poderia passar despercebida, desde que fosse discreta. Visivelmente, já se
dera o render da guarda e só lhe restava ter a esperança de que Jean-Paul
tivesse passado pelo posto de controlo quando lá não se encontrava
ninguém.
A multidão ali era ainda mais compacta do que nas ruas das docas. Lore
pôs-se em bicos de pés para observar o portão, em busca do reconhecível
cabelo ruivo de Jean-Paul e do cavalo grande e plácido a que recorriam para
entregas dentro dos limites da Ala. Não o via e teve de suprimir o pânico
crescente dentro de si enquanto avançava até à velha fachada de loja onde
era suposto terem deixado o contrabando. Talvez ele já tivesse passado o
posto de controlo, talvez aguardasse lá por ela…
Lore dobrou a derradeira esquina antes de surgir à vista a velha fachada
da loja. Jaquetas escarlates, armas polidas. Uma carroça transportando
basicamente caixas vazias. O cabelo ruivo de Jean-Paul. Ele ergueu o olhar
para a ver, um homem branco e entroncado de meia-idade que já traficava
para Val antes sequer de Lore ter aparecido, e apesar de a expressão dele ser
cautelosamente neutra, o medo toldava-lhe os olhos e tornava-os quase
animalescos.
Demasiado tarde, demasiado tarde, demasiado tarde.
Por momentos, Lore nada pôde fazer que não fosse ficar ali parada.
Quando um dos guardas se virou na sua direção, ela enfiou-se numa viela,
encostando-se ao tijolo imundo, respirando a custo, a ponto de lhe arranhar
a garganta.
– Merda – disse, depressa e num tom rouco. – Merda.
Sustendo a respiração, espreitou para fora da viela. Aparentemente, Jean-
Paul lograra passar pelo posto de controlo sem que o revistassem, mas
depois os casacas de sangue teriam dado pelo erro, apanhando-o ao chegar
diante da fachada da loja. Não teria feito diferença se ela tivesse chegado a
tempo.
Jean-Paul, honra lhe fosse feita, conseguia manter a expressão calma
mesmo enquanto os casacas de sangue vasculhavam as caixas. O
grandalhão tinha as mãos nos bolsos e balançava para trás e para a frente,
como um simples comerciante à espera de que a busca terminasse.
Mantinha a cabeça baixa sob a aba do chapéu para esconder os seus olhos
aterrorizados.
Ela devia abandoná-lo. Sabia disso. Fora uma das primeiras lições de
Val. Se um trabalho corresse mal, era cada um por si.
Mas não conseguia obrigar-se a fugir. Jean-Paul tinha um marido e um
filho pequeno e, se fosse apanhado, seria enviado para as Ilhas Queimadas.
Lore não podia deixar ninguém entregue a tal destino.
– Merda. – Lore praguejou uma derradeira vez, carregando bem no a, e
saiu da viela para o meio da multidão.
Os casacas de sangue não lhe prestaram a mínima atenção quando se
infiltrou o mais discretamente possível. Um deles, um homem encorpado
com um bigode enrolado sob o pequeno e pálido nariz, pegou numa caixa
cheia de batatas greladas e arqueou uma sobrancelha.
– Se fizesses as minhas entregas, velhote – disse, com desdém –, ficaria
muito preocupado por poderes andar a surripiá-las.
As caixas com contrabando eram sempre as de cima. Como os casacas
de sangue nunca contavam com isso, verificavam sempre primeiro as caixas
no fundo, assumindo que o veneno estaria o mais escondido possível.
Assim, se alguém fosse apanhado a meio de um trabalho, havia a hipótese
de o filão já ter sido mudado para o ponto de entrega.
– O Alaric precisava de caixas – disse Jean-Paul, impassível. Alaric era o
nome a que recorriam sempre que eram parados e lhes perguntavam o que
andavam a fazer. – Queria guardar alguma coisa. As batatas eram só para
segurar as caixas na carroça.
As caixas já tinham sido todas descarregadas. Os companheiros do
Bigode Enrolado começaram a remexer nas outras. Abriram uma: cheia de
nada além de batatas farinhentas. Duas. Três.
– Estás a dizer-me que um mercador contratou uma carroça para
transportar caixas de batatas velhas da Ala Sudoeste para a Noroeste?
Restavam seis caixas. Três delas continham mandrágora. Lore sentia o
suor a escorrer-lhe pelas costas.
– No que ele gasta o dinheiro não é da minha conta – replicou Jean-Paul.
Foi aberta uma quinta caixa. Se Lore ia fazer algo, aquele era o
momento. Só não sabia o que poderia fazer. Eram demasiados para dominar
com uma adaga, em especial depois de ter perdido o elemento de surpresa,
para além de que nunca fora muito boa a lutar.
Uma sensação pérfida começou a surgir-lhe nas palmas das mãos, nas
pontas dos dedos. Picadas, uma consciência plena. A Mortem aguardava na
pedra sob os seus pés, no tijolo e na madeira morta da fachada da loja, na
carroça, no veneno à espera na mandrágora ainda escondida. Era um
zumbido grave, um fio que podia agarrar e puxar e teria sido tão fácil…
Um casaca de sangue deitou a mão a uma sexta caixa, abrindo a tampa
com a ponta da baioneta. Nas sombras por baixo, Lore viu verde.
Avançou a correr, livrando-se do chamamento da Mortem e falando
antes de saber sequer que palavras teria na língua.
– Descobriu-as!
Jean-Paul e o Bigode Enrolado viraram-se para ela, o casaca de sangue
que ela interrompera erguendo o olhar com a testa enrugada de curiosidade.
Ela pegou na caixa, a tampa aberta encostada ao peito.
– O meu pai mandou-me cá, desculpe o atraso.
O Bigode Enrolado inclinou a cabeça.
– O teu pai por acaso chama-se Alaric, rapariga?
Malditos seios. Tinha julgado que a camisa seria suficientemente
largueirona para os disfarçar, mas nunca tivera um peito fácil de esconder.
– Sim – respondeu, endireitando-se mais e abrindo mais o sorriso. – Está
tão chateado, parti tantos frascos ao tentar descarregá-los um a um que
precisamos já das caixas…
Ia recuando enquanto falava, palavras e sorrisos disparados rapidamente,
levando o contrabando para mais perto da frente da loja. O alçapão no
interior daria acesso às catacumbas e o misterioso mapa mental indicava-lhe
que os túneis ali próximos se encontravam vazios. Se conseguisse fazer
passar as caixas pela porta…
Bateu com o pé numa pedra e resvalou, desequilibrando-se. A caixa
caiu-lhe das mãos.
A mandrágora lançou um manto verde sobre as pedras da calçada.
Por momentos, ficaram todos parados, Jean-Paul e Lore e os casacas de
sangue e o grande e pacato cavalo que Val só usava para traficar veneno,
aquele a que Lore carinhosamente chamava Cavalo, pois ninguém lhe
atribuíra um nome.
Então, uma batida de coração, e, com um grito triunfal, o Bigode
Enrolado lançou-se em frente.
– Foge! – Lore lançou-se de lado para a entrada da viela onde se
escondera, sacando da adaga. Torceu o pé e caiu de joelhos, com o estalido
a turvar-lhe a visão. Umas mãos enluvadas agarraram-lhe os ombros e
içaram-na.
Os casacas de sangue estavam num caos e Cavalo reagiu, recuando e
sacudindo a carroça e enviando-a a adernar na direção dos curiosos.
Jean-Paul gritou algo que não eram palavras, tentando agarrar as rédeas
do cavalo. O relincho da criatura soou carregado de medo, os cascos a
rasgar no céu matinal enquanto os casacas de sangue os cercavam. Jean-
Paul lançou-se para as rédeas, mas não foi a tempo de rodar o cavalo para
fugir; uma baioneta rasgou o pescoço do animal e este colapsou num
aglomerado de carne trémula.
A visão de Lore ainda se encontrava turva enquanto tentava socar o
casaca de sangue que a agarrava, varrendo o ar com a lâmina da adaga entre
os dedos do punho cerrado. Outro casaca de sangue agarrou-lhe o braço e
torceu-o para trás com força suficiente para ela sentir os ossos a ranger, a
um fio de partirem. Um ruído áspero e sufocado emergiu-lhe da garganta,
um grito abortado pela ponta fria e afiada da baioneta que lhe roçava na
traqueia. Eram já três a agarrá-la – dois nos braços e um com uma arma.
Não eram lá muito boas perspetivas.
A sensação de formigueiro retornou-lhe às palmas das mãos, a
consciência fria percorreu-lhe os membros.
– Mexe-te e eu disparo – rosnou o casaca de sangue com a baioneta. – E
um tiro no pescoço não resulta num fim rápido.
Os dedos dela tremeram, a Mortem a escapar-se das catacumbas e o
corpo moribundo do cavalo a fazer-lhes comichão. Lore não a canalizava
havia treze anos, comprimira-a toda no fundo da mente e deixara-a lá a
apodrecer. Mas agora, a consciência da mesma quase a afogava.
Consciência e instinto. As suas mãos ardiam com o desejo de chamar a
Mortem de todos os lugares mortos onde aguardava, de a canalizar pelo
corpo e obrigá-la a fazer o que lhe ordenasse. Resistir deixou-a com a
cabeça à roda, com dificuldade em respirar.
Metade dos casacas de sangue avançaram para a mandrágora derramada,
mas o líder estava exclusivamente concentrado em Jean-Paul. Agarrou-o
pelo braço; Jean-Paul tentou pegar na adaga escondida no seu casaco, as
mãos manchadas com as vísceras de Cavalo – pobre Cavalo –, mas o casaca
de sangue encostou-lhe a ponta da baioneta ao pescoço antes que ele
conseguisse alcançá-la.
– Não me obrigues a disparar – rosnou o casaca de sangue por entre o
maldito bigode. – Um tipo como tu seria útil nas Ilhas Queimadas. – Uma
gargalhada gutural. – Tu também, rapariga. Ela parece ter força para pegar
numa pá.
Uma bala seria preferível às minas. Lore sabia que mais do que um
traficante de veneno preferira cortar o próprio pescoço a ser obrigado a
passar o resto da curta vida sob a escuridão e as poeiras das Ilhas
Queimadas.
Escuridão. Poeiras. Morte. Tudo aquilo redemoinhava à volta dela,
sangue acobreado e um vazio que lhe arranhava o interior do nariz. Uma
névoa negra ergueu-se do corpo de Cavalo, coalescendo em fios negros
visíveis apenas por um canalizador, vertendo dos olhos, da boca frouxa.
Chamando por ela.
Usa-a.
Lore não sabia se era mesmo uma voz aquilo que ouvira, ou apenas o seu
cérebro desesperado por fazer algo, por recorrer ao que fosse possível.
Uma distração, eis aquilo de que necessitavam. Algo que lhe permitisse
fugir, algo suficientemente horrível para chamar a atenção dos casacas de
sangue de modo a que Jean-Paul lograsse escapar. Era demasiado tarde para
si. Tinha sido apanhada, e o que fizesse naqueles momentos seguintes não
alteraria isso.
A escolha era entre as Ilhas Queimadas ou uma pira. Bem vistas as
coisas, pouca diferença faria, desde que Jean-Paul pudesse regressar para a
família.
Optou então pela distração. E assim que tomou tal decisão, o seu corpo
lançou-se ao trabalho.
Lore inspirou fundo e susteve o ar nos pulmões, deixando que o instinto
assumisse o comando, a conduzisse como já fizera antes. Nascera para
aquilo, para a magia e para as trevas, e tudo em si – exceto a mente –
ansiava por isso.
Num momento, tudo estava claro e vívido; no seguinte, via apenas uma
ligeira impressão do espaço à sua volta, o mundo a preto e branco enquanto
os seus pulmões começavam a arder, o corpo a inclinar-se para a morte. Os
casacas de sangue e Jean-Paul e os corpos vivos da multidão, todos estavam
rodeados de auras de luz branca. O contorno do cadáver de Cavalo passou
lentamente de branco a preto, a vida a escapar com a chegada da morte.
Fios de Mortem acenavam no ar como patas de aranha, a coroa negra de um
sol invertido.
Lore não olhou para si mesma enquanto expirava lentamente,
continuando a agarrar a Mortem com força, pois tinha-se deixado levar e a
corrente de instinto puxara-a para baixo. Sabia qual o seu aspeto – os dedos
frios e pálidos como os de um cadáver, os olhos a passar de castanho a um
branco opaco. Na palma da mão, a cicatriz em forma de lua gravada como
um raio de farol, um brilho negro que era a ausência de luz e ainda assim
tão fulgurante que até doía olhar para ele. Sobre o seu coração rodopiava
um nó de trevas, uma estrela negra de vazio escondida sob a blusa.
Sabia qual o seu aspeto, era o da morte andante.
Fechou as mãos, puxando para dentro a matéria negra que era a força da
morte, como se o seu coração tocado pela Mortem fosse um íman. Os fios
que se iam tecendo em redor do corpo de Cavalo estremeceram e a seguir
fluíram na direção dela. Entrançaram-se no ar e colaram-se aos dedos dela,
a magia a romper facilmente a barreira da pele.
A morte de Cavalo dançou-lhe pelas veias, rodopiou por ela como
sangue maculado. Lore canalizou rapidamente a Mortem pelo organismo,
forçou-a por cada veia como um ribeiro parcialmente gelado no inverno,
lutando contra a sua batida lânguida, a sua respiração superficial. A magia
da morte cercava-lhe cada órgão, detendo-os a todos, como geada num
rebento no limiar da primavera.
Aquela era a parte que se dizia ser capaz de prolongar a vida, paralisando
as vísceras para que avançassem mais devagar no tempo, para que os anos
nos tocassem de forma mais gentil. Os que tomavam o veneno não
conseguiam canalizar de novo para fora a morte que este lhes trazia, não
podiam fazer mais nada a não ser transformá-la numa imortalidade
retorcida enquanto despertavam a Mortem adormecida nos seus corpos.
Para canalizar a Mortem, era necessário abraçar a morte como a um amante
e esperar que esta nos largasse, e praticamente ninguém ia tão longe, pelo
menos de propósito.
Pelo menos, isso era o que Lore julgava. Ela nascera com aquilo.
Nascera com a morte a seu lado como uma sombra.
Lentamente, lentamente, empurrou a Mortem que canalizara através de
si de novo para as mãos, como se juntasse punhados de teia negra. Então,
lançou toda a morte que acumulara.
A Mortem jorrou-lhe dos dedos, morte ávida por um novo lar, e Lore
teve apenas a presença de espírito suficiente para a encaminhar para um
canteiro de flores no centro da rua, já acastanhado e frouxo devido à falta de
chuva descabida naquela estação. Os rebentos murcharam e caíram, as
raízes que os sustinham morreram e definharam, tudo assumindo uma
tonalidade parda. Mais Mortem penetrou a rocha, gerando fendas em forma
de teia de aranha sob pés apressados. Não se abriu numa dolina, graças a
todos os deuses, mortos ou vivos, mas, mesmo assim, os gritos ergueram-se
no ar.
Lore sentiu o coração a parar no peito, só por um instante, furtando uma
batida. O instinto que a apanhara esmoreceu, deixando ficar apenas medo,
pânico e repulsa.
E com um resmoneio, um som dorido, Cavalo pôs-se de pé.
Capítulo 3
C edric tinha mais um ano do que Lore – catorze anos e mundano como
um príncipe. Filho de um traficante da equipa de Val e Mari, fora a
única criança com quem Lore passara muito tempo, naqueles meses depois
de Mari a ter encontrado. Caloroso e bondoso, com grandes olhos castanhos
e cabelo desgrenhado sempre a cair-lhe no rosto. Ensinara-a a nadar nas
docas.
Depois, foi atropelado pelo cavalo de um casaca de sangue no decurso
de um ataque.
O corpo ficou num estado horroroso. Lore recordava-o com um
pormenor minucioso. Partes afundadas onde não deviam afundar, outras
coisas espetadas, criando tendas de carne rasgada e vales de ossos e órgãos
esmigalhados. Mas o rosto permanecera incólume, aqueles olhos castanhos
que fitavam o céu como que transfixos.
Ela nem pensara. Limitara-se a agir, a ceder ao instinto. Enredara a
morte de Cedric à volta dos dedos como num dos jogos de guitas que ele
lhe ensinara, puxara-a dele para si. Canalizara-a pelo seu próprio corpo e
enviara-a para a rocha, até onde se encontravam as raízes de erva esmagada
que lutavam por uma nesga de sol, plantando a morte dele na terra em vez
de lha deixar no corpo.
E ele sentara-se. Ouviu-se um som terrível quando ele o fez – nada
dentro dele estava onde devia e tudo estava esmagado –, mas sentara-se, e
depois virara-se para ela. Os seus olhos já não eram castanhos. Eram pretos,
sem íris, nem pupila.
Era evidente que ele nada faria até ela lho indicar; era um autómato a
necessitar que lhe dessem corda, a necessitar de indicações. Então, ela
retirara do bolso o novelo de guita que usavam para as brincadeiras.
– Joga comigo.
Foi assim que Val deu com eles. Uma rapariga e um rapaz morto com fio
entretecido entre os dedos, comportando-se como se nada se passasse.
Foi genuinamente espantoso que Val não a tivesse matado naquele
momento. Depois de ver o que ela era. Do que era capaz.
E foi com essa memória a passar-lhe pela cabeça que Lore viu Cavalo
erguer-se do solo, nitidamente morto e, todavia, movendo-se.
Aparentemente, os animais eram diferentes das pessoas. Ela não teve de
dizer a Cavalo o que fazer.
– Merda. – Escapou-lhe num sussurro ofegante; Lore sentia as pernas
como pedaços de corda frouxos, a morte que ela canalizara a manifestar-se
em membros dormentes e numa garganta cingida. Deixou-se cair de
joelhos, a ponta fria da baioneta do casaca de sangue a deslizar para longe
do seu pescoço com um ligeiro arranhão, sem força suficiente para sangrar.
– Merda na Muralha da Cidadela.
Por uns segundos, Lore achou que a sua distração arrancada a ferros se
revelara inútil – os casacas de sangue ainda a detinham e a Jean-Paul, sem
sequer olharem para o cavalo que se erguia dos mortos no centro da praça
do mercado. Ela cedera, sucumbira à chamada da Mortem, e para quê?
Um som destroçado e irado jorrou da sua boca.
O casaca de sangue que lhe segurava os braços tentava levantá-la, mas
depois viu os olhos dela, ainda brancos e opacos da morte. Lore viu-o a
interiorizar as veias enegrecidas e os dedos cadavéricos, viu-o a ficar
progressivamente lívido ao racionalizar o significado de tudo aquilo. O
guarda recuou até bater com as costas na parede de tijolo, abrindo as mãos
para a libertar.
– Deus Sangrante nos salve – murmurou num tom de pânico crescente. –
Deus Sangrante nos salve!
Assim estava melhor.
Os outros casacas de sangue repararam na situação da montada morta-
viva. O Bigode Enrolado trespassou o cadáver completamente erguido, mas
Cavalo não quis saber, pois já se encontrava morto. Se tanto, pareceu
curioso, cheirando-lhe o ombro coberto de sangue com o focinho
ensanguentado, o pescoço aberto como uma segunda boca. As longas
pestanas em redor dos olhos opacos tremeluziram, espantando uma mosca
que lá pousara.
– Desculpa, Cavalo – murmurou Lore, após o que vomitou o seu café
sobre os paralelepípedos.
Quando levantou a cabeça, viu que o Bigode Enrolado a fitava, pasmado
com todas as formas que ao canalizar a Mortem a tinham tornado
monstruosa, o rosto dele quase tão pálido quanto o dela.
– Heresia – disse ele, a voz rouca de gritar. – O mal!
– Melodrama. – Lore sentiu os lábios entorpecidos, tal como o resto do
corpo.
Rebentou então o caos, como se o tempo tivesse estado suspenso por uns
segundos depois de Lore ter erguido Cavalo dos mortos e regressasse então
ao normal. O Bigode Enrolado brandiu a baioneta, urrando por apoio,
ordenando à sua companhia que cercasse o cavalo e detivesse a feiticeira da
morte.
Lore demorou um momento a perceber que era ela. Feiticeira da Morte
era o que chamavam às necromantes, nos tempos em que quem fosse capaz
de canalizar tanta Mortem fora executado ou enviado para as Ilhas
Queimadas. Agora, só restava ela. Uma única feiticeira da morte.
Canalizar Mortem deixara-lhe os dedos cerosos e pálidos, a pele quase
translúcida, o traçado das veias letárgicas a gerar um mapa rudimentar na
sua pele – parecia pior do que uma aparição, o que não era pouco. Fios de
morte atavam-na a Cavalo, uma trança negra visível apenas pelo canto do
olho, se não olhasse diretamente para ele.
Com um som brusco e resmoneador, cerrou os punhos. Os fios de
Mortem foram cortados e o cavalo tombou enquanto a força que o
reanimara serpenteava no ar como fumo até se dissipar. Era o que tinha
feito com Cedric, quando Val os vira, quando Val gritara. Na altura não fora
intencional. Lore ficara apenas espantada, espantada e assustada, e rasgara
os fios que os uniam.
Na altura, aquilo parecia mais complicado. Despertar e pôr fim a uma
vida. Desta vez, com Cavalo, mal precisara de se esforçar. Canalizar
Mortem para fora do corpo tinha-lhe surgido de forma tremendamente
natural: furtar a morte e afastá-la.
O pesado cadáver do animal, de novo carne morta, tombou sobre um
grupo de casacas de sangue. O esmagar de ossos e os gritos de dor ecoaram
pela Ala, subjugaram os gritos dos mirones. Os guardas já tinham esquecido
Lore e Jean-Paul; ela viu um vislumbre do cabelo ruivo enquanto ele
desaparecia para uma viela. O Bigode Enrolado tinha-se virado quando
Cavalo caíra e a onda de gente que o separava de Lore levara-o para longe,
fizera-o perdê-la na multidão. Lore ouvia-o gritar, mas já não o via.
Sem dúvida que obtivera a distração pretendida. Agora, só faltava
conseguir mover-se.
Ergueu-se do chão sobre pernas em formigueiro, praguejando enquanto
tentava afastar-se, vacilante. Memórias de Cedric forçavam as barreiras
mentais atrás das quais as guardara, faziam com que o passado e o presente
se misturassem, de forma horrível e infinita. Coxeou o mais depressa que
podia para o espaço estreito entre duas montras, escondendo-se nas
sombras. Num momento de lucidez, retirou o boné da cabeça e deixou o
cabelo tombar livre, torceu a bainha da camisa e enfiou-a nas calças para
que se moldasse às suas curvas. Não era bem um disfarce, mas dava-lhe um
aspeto diferente do que tivera no momento em que despertara o cavalo e
talvez lhe desse o anonimato suficiente para escapar.
Alguém a agarrou pelo braço.
Lore virou-se com os dentes cerrados, de mão já a postos para socar
quem lhe tivesse tocado.
Michal.
Nitidamente, ele não contava com o que viu quando ela se virou; tinha-a
visto correr para a viela, mas sem estabelecer a ligação com Cavalo. Então
Lore viu todas as peças do puzzle a encaixar-se, estampadas na expressão
dele: olhos azuis semicerrando-se antes de se arregalarem, horrorizados. Ele
espreitou para lá do ombro dela para a praça, boquiaberto, com um
estremeção na mão antes de a largar repentinamente, os dedos espraiados.
– Desculpa – murmurou Lore, com a língua subitamente presa. –
Desculpa.
Passou a correr por ele, de novo na direção da praça. Virou na primeira
viela com que deparou. Desatou a correr e não parou, de cabeça baixa e a
visão turva, tomando direções ao acaso, tendo em mente apenas a ideia de
longe.
Assim, quando um dos Presque Mort saiu de um nicho pejado de lixo
para se posicionar diante dela, Lore quase chocou com ele.
Ele impunha-se sobre ela, de mãos estendidas, a imagem de uma vela
acesa gravada na palma de cada mão. O vestuário preto justo num corpo
musculado, um olho azul a cintilar para ela, o outro coberto pelo couro
negro de uma pala.
Havia nele algo de quase familiar, uma sensação de que já se teria
cruzado com ele. Mas isso era absurdo. Lore não conhecia nenhum dos
Presque Mort ou, na verdade, qualquer membro do clero.
Já não.
– Claro que os Presque Mort tinham de aparecer – barafustou Lore ao
libertar-se das mãos pintadas, tentando sacar de novo a sua adaga. – Claro
que sim, porra.
O Presque Mort não reagiu, limitou-se a observá-la enquanto ela dava a
volta para fugir na direção oposta, tentando percorrer de novo o mesmo
caminho que a trouxera até ali para depois escolher uma nova rota. Ele
assobiou, uma nota longa a tornar-se cada vez mais aguda, e foi imitado por
outros, ecoando na pedra, com nitidez acima da crescente cacofonia da Ala.
Encurralaram-na.
O primeiro dos monges avançou lentamente, de mãos tatuadas
estendidas como se ela fosse um cão desconhecido que ele não quisesse
afugentar. Invulgarmente alto, com cabelo louro-arruivado rapado dos lados
e ombros largos, uma beleza desperdiçada em alguém que tomara votos de
celibato.
– Não queremos fazer-te mal. – Voz grave, tons bruscos, como se a viela
imunda fosse um salão de baile na Cidadela.
– Têm uma forma curiosa de o demonstrar. – Ao recuar, os pés de Lore
vacilaram nas pedras irregulares da calçada e quase a fizeram cair.
O Presque Mort não respondeu. Outros vestidos com as mesmas vestes
lisas e negras emergiram das duas bocas da viela, avançando de forma lenta
e implacável. Demasiados para lhes dar luta, e já não havia animais para
reanimar com que pudesse chamar-lhes a atenção.
As pernas de Lore cederam; apoiou a mão ainda entorpecida na parede.
Mesmo predisposta como era para a magia da morte, a recuperação era uma
merda.
Estava tão perturbada que, quando o Presque Mort alto retirou um pano
do bolso, nem sequer teve tempo para reagir antes de lhe ser pressionado
sobre as vias respiratórias. Clorofórmio. Aquilo quase tinha algo de
engraçado, químicos banais numa cidade famosa pelos venenos românticos
e floridos.
– Não queremos fazer-te mal – murmurou ele –, mas precisamos que nos
acompanhes e algo me diz que não o farás de livre vontade.
– Onde foram buscar essa ideia? – disse Lore, num tom arrastado, após o
que todo o mundo mergulhou nas sombras.
L oreTratou-se
calou-se. E então desatou a rir.
de um som irritante e áspero, a boca ainda seca por causa
da mordaça de algodão. Deixou descair a cabeça e riu até correr o risco de
se tornar um soluçar.
– A minha ajuda? – Ela abanou a cabeça, apesar de lhe fazer latejar as
têmporas. O clorofórmio provocara-lhe uma dor de cabeça brutal, pior do
que uma ressaca. – Estou certa de que não terei de lhe dizer, sacerdote, mas
querer a ajuda de uma controladora não autorizada de Mortem é mais do
que um pouco de heresia.
A expressão de Anton era quase de diversão, pelo menos no lado da cara
capaz de mostrar expressão.
– A heresia pode ser perdoada, quando é pelo bem maior.
Atrás de Anton, Malcolm permanecia imóvel, de braços com cicatrizes
cruzados, expressão inescrutável. Mas, perante a palavra heresia, Gabriel
cerrou a boca.
– O Deus Sangrante está a par das nossas dificuldades e dá-nos a Sua
bênção para fazermos o necessário para O servir. – Tudo isto foi proferido
num tom grave e agradável de barítono, como se Anton recitasse uma
oração. Talvez assim fosse; o Livro das Orações era grosso como tudo e
parecia ter uma entrada para todas as situações. – Efetivamente, é uma parte
essencial do trabalho dos Presque Mort, a essência do nosso ser.
Submetemo-nos às trevas, sabendo que no final todas as sombras serão
diluídas em luz, tal como a Deusa Sepultada foi eclipsada pela glória do
Deus Sangrante.
Isso não parecia ter resultado lá muito bem, com a Mortem ainda a
escapar-se do cadáver da deusa, e tudo isso.
– Se estão a pedir-me que me junte ao vosso culto – disse Lore –, a
minha resposta é um rotundo não.
Foi a vez de Anton se rir, um som tão típico da corte como a sua maneira
de falar.
– Oh, não – disse entre risinhos o Supremo Sacerdote. – Não queremos
nada disso. Só uma pessoa com um temperamento… muito… específico
pode tornar-se Presque Mort.
Ela brindou-o com um sorriso beatífico.
– E sou demasiado bonita.
Malcolm desviou a cara, contendo um sorriso trocista. Gabriel nem
sequer reagiu, com aquele único olho azul a fulminá-la.
Anton arqueou uma sobrancelha sarcástica.
– Sim, não tens cicatrizes. Nitidamente, as tuas capacidades com a
Mortem não te surgiram por acidente, ao contrário das nossas.
Aquilo roçou um pouco perto de mais a verdade para o gosto dela –
podiam estar dispostos a fazer vista grossa ao seu poder caso necessitassem
dela para algo, mas gostaria de evitar revelar de onde viera esse poder.
Remexeu-se na sua cadeira.
– Então, para que precisam de mim?
Agora, todo o riso desapareceu do rosto estoico de Anton, tanto do lado
atraente como do cicatrizado.
– Calculo que já tenhas ouvido falar da aldeia.
Naquela altura, já toda a gente ouvira falar da aldeia. Lore assentiu com
a cabeça.
– E ouviste o quê, exatamente?
– Pouca coisa. – Ergueu as mãos atrás de si até onde as cordas permitiam
e rodou os dedos. – Poderia recordar-me de mais, se me desamarrassem.
A expressão plácida de Anton não se alterou. Acenou uma mão e Gabriel
avançou, agachando-se atrás da cadeira de Lore para cortar os nós que a
cingiam. O Presque Mort movia-se em silêncio, rigidamente. Ela voltou a
sentir o cheiro a incenso.
Quando se libertou, Lore inclinou-se para a frente, remexendo os pulsos.
Malcolm fitou-a cautelosamente e ela ergueu as mãos como que em
rendição.
– Nada de armas, relaxe.
Ele não relaxou.
– Não são as armas que me preocupam.
– Já canalizou Mortem – ripostou Lore, abrindo e fechando os punhos. –
Sabe que não é pera doce. Não estou com pressa de voltar a fazê-lo.
Malcolm fitou-a por mais um momento e depois assentiu a contragosto.
Um pouco menos dorida, Lore recostou-se na cadeira.
– Ouvi dizer que toda uma aldeia morreu da noite para o dia.
Montessombra, a sudeste. – Montessombra era uma das aldeias mais
pequenas de Auverraine, mais um posto avançado do que uma genuína
povoação. Era o último povoamento auverrani antes do que antes se
conhecia por Balgia, um pequeno ducado que agora integrava o Império
Kirytheano: Lore nunca lá estivera, naturalmente, mas já provara cerveja
produzida em Montessombra. Era muito boa. Calculava que nunca mais
viesse a ser produzida. – As pessoas não tinham marcas, nenhum sinal de
envenenamento ou doença. Era como se estivessem a dormir. Há quem
pense que se trata de um sinal de desaprovação por parte de Apollius.
– E tu, o que achas que foi? – Anton encaixou os dedos em frente ao
corpo, como um professor a inquirir um aluno.
– Essencialmente, acho que tudo não passa de rumores. Talvez um ou
dois tenham adoecido durante a noite, talvez toda uma quinta, mas a aldeia
inteira? Tretas de merda.
– Não são tretas de merda – disse Anton, num tom calmo. Podia ser
sacerdote, mas palavrões não o faziam hesitar. – É verdade. Tudo. – Uma
pausa. – Só que agora já vai em duas aldeias. Voltou a acontecer há duas
noites. Orlimar. Ligeiramente maior do que Montessombra, mais perto de
Erocca do que de Balgia.
Outra aldeia na fronteira a sudeste, perto de outro país conquistado pelo
Império. Lore engoliu em seco.
O olho de Anton cintilou quando ele apontou um olhar inescrutável na
direção dela, com algo vagamente sinistro na curva da boca dele. Mas
depressa se foi, coberto por uma máscara de cortesia discreta.
Atrás do sacerdote, Malcolm e Gabriel permaneciam basicamente
inexpressivos. Mas Gabriel levava constantemente a mão à pala, como se
tivesse comichão.
– Isso é interessante – comentou por fim Lore. – Mas não estou a ver
como posso ajudar-vos.
– Tal como ajudaste o teu pobre amigo equino esta manhã na Ala
Noroeste – explicou Anton. – Reanimação.
A palavra caiu como um pedregulho numa sala silenciosa. Lore
arquejou, esquecida a sensação desconfortável da circulação a regressar.
– Eu… – Parou, abanou a cabeça, libertando mais daquela dor de cabeça
provocada pelo clorofórmio. – Ouçam, não é algo que eu faça com
frequência e a ressaca é muito desagradável, por isso preferia não…
– Já o fizeste mais do que uma vez. – Anton assentiu com a cabeça e
acenou majestosamente com a mão como se quisesse apresentar-lhe o seu
próprio sucesso. – Não se trata de uma capacidade que possas simplesmente
fazer desaparecer. Não preferirias fazê-lo ao serviço da Igreja e da Coroa,
onde uma pira não está iminente?
Aquilo era uma ameaça, apesar do tom cordial. Ela recostou-se na
cadeira, afastando-se instintivamente dele.
A pele cicatrizada do lado esquerdo do rosto do Supremo Sacerdote
moveu-se conforme a sua boca se abria num sorriso cruel.
– Quando se tem talentos profanos – declarou –, mais vale pô-los ao
serviço de algo sagrado.
– Não têm talentos profanos vossos? Por certo um de vocês poderia
fazê-lo? – Um riso de incredulidade manifestou-se ao fundo da garganta de
Lore. – Conseguem canalizar a Mortem, certo? Todos vocês, é esse o vosso
propósito. – A sua mão recentemente libertada cortou o ar, apontando a
Gabriel. – Ele sente! Tem de haver alguém no vosso maldito culto capaz de
despertar os mortos; não me metam nisso!
O olho visível de Gabriel semicerrou-se.
– A necromancia não está ao nosso alcance.
– E está aí o cerne da questão. – A granada no pingente de Anton
cintilou sob a luz das velas quando ele se remexeu na cadeira. – Apesar de a
nossa ordem ser capaz de canalizar Mortem, nenhum de nós tem o talento
da ressurreição. Ao contrário de ti.
As perguntas lógicas ficaram a pairar no ar, o porquê e o como. Mas
permaneceram por proferir, os rostos de Anton e Malcolm implacáveis, o de
Gabriel levemente contraído.
Quando se tornou evidente que o silêncio só seria quebrado se ela
falasse, Lore suspirou.
– Ainda não compreendo como é que eu fazendo… fazendo isso… vos
ajudo a descobrir o que se passa nas aldeias.
Anton encolheu os ombros.
– Despertas uma das vítimas – disse ele, como se a resposta fosse óbvia
–, e perguntas-lhe o que se passou.
A ideia levou Lore a encolher-se. Despertar Cavalo fora uma coisa – e
ainda lhe doía a garganta do café que vomitara ao ver os olhos do pobre
animal morto a pestanejar –, mas não poderia voltar a reanimar uma pessoa.
Nunca mais.
– Eu não…
– Não será por muito tempo, claro. – O Supremo Sacerdote sacudiu a
mão e a cabeça, negação dupla, os movimentos exagerados pela sua sombra
no chão. – Nem sequer precisam de caminhar.
Ela nada mais tinha no estômago para vomitar, mas, ainda assim, sentiu-
o às voltas.
– Tudo aquilo de que precisamos – prosseguiu Anton –, é que tragas as
vítimas de volta à vida por tempo suficiente para que revelem as suas
memórias. Que nos contem o que aconteceu antes de terem morrido, para
vermos como foi feito.
– E se não o fizer? – Queria parecer desafiante, mas saiu-lhe num tom
débil.
– Nesse caso, podes escolher: forca, pira ou Ilhas Queimadas. – O
Supremo Sacerdote voltou a encolher os ombros, como se para ele tanto
fizesse. – Ultimamente, andam a extrair cada vez mais carvão das Ilhas,
ouvi dizer. A ir cada vez mais fundo, na hipótese pouco provável de
perdermos o nosso bastião para salteadores kirytheanos. Estão sempre a
precisar de mais gente.
Disse-o num tom tão brando, sereno, com aquelas vogais reais bem
torneadas. Lore cerrou os dentes com força e voltou a engolir em seco,
tentando estabilizar o estômago.
– Pensa em todas as pessoas que estarás a ajudar. – Gabriel avançou,
desde detrás de Anton, olho azul cravado em Lore, maxilares cerrados. Até
parecia que o Mort se sentia ressentido pelo facto de tentar convencê-la, por
ter sido reduzido a persuadir uma traficante de veneno, resgatada da sarjeta
e levada para a sua Igreja. – Já aconteceu duas vezes e temos todos os
motivos para crer que vai voltar a acontecer – prosseguiu. – As duas aldeias
ficavam junto à fronteira que partilhamos com o Império Kirytheano. Não
preciso de te explicar tintim por tintim o que significa isso.
Não o fez. As relações com Kirythea sempre tinham sido tensas. Antes
de morrer, o antigo imperador, Ouran, conquistara tudo até ao limite sudeste
de Auverraine – mais de metade do continente Eneano. Agora, o filho de
Ouran, Jax, assumira o trono e ninguém sabia se daria continuidade à trégua
instável do seu pai. Os ataques às Ilhas Queimadas – território altamente
contestado que Auverraine mantivera ao longo de todo o reinado de Ouran
– levaram a que parecesse improvável a manutenção da paz.
Anton assentiu com a cabeça, lançando a Gabriel um olhar de agrado
pelo canto do olho.
– O Gabriel tem razão. Não se trará apenas de uma questão de
acontecimentos estranhos ou curiosidade mórbida. É um caso relacionado
com a manutenção da segurança do nosso país.
– Acho que estão a sobrestimar o meu patriotismo – frisou Lore.
– Não é uma questão de patriotismo. É uma questão de manter a guerra
longe das nossas terras. – As cicatrizes de Anton foram repuxadas quando
ele semicerrou o seu olho são, num movimento que parecia doloroso. –
Sabes quem carrega o peso da guerra. Não serão os nobres da Cidadela.
Serão os camponeses nas suas aldeias, os traficantes de veneno nas ruas.
Pessoas como tu.
Dizia-o como se aquilo o incomodasse. Ela esperava que assim fosse.
Gabriel apelava à sua noção de bem comum – ela teria isso, sequer?
Desejava que sim – e Anton apelava ao seu sentido de sobrevivência. Morte
num lado da balança, chantagem no outro.
– Isto é uma boa passagem para a segunda parte da nossa tarefa – referiu
Anton, como quem segue um guião minuciosamente elaborado. – A
necromancia não é o teu único talento que nos pode ser útil. Também és
uma espia talentosa.
– Talentosa é capaz de ser algo exagerado – murmurou Lore.
Anton prosseguiu como se não tivesse ouvido.
– Temos razões para crer que alguém na Corte da Cidadela anda a passar
informações a Kirythea. Possivelmente, o próprio Príncipe Sol.
Lore arregalou os olhos até lhe doerem.
– Querem que espie o raio do Príncipe Sol ?
– Só queremos que andes perto dele – explicou Anton. Apontou para ela.
– És uma mulher bastante bonita e o Bastian gosta de gente bonita. Não
deverá ser um problema insinuares-te nas boas graças dele depois de estares
estabelecida na corte.
Ela conhecia o significado de cada uma daquelas palavras, mas, unidas
daquela forma, tinha dificuldade em perceber o que quereriam dizer.
– Eu não… como assim, estabelecida na corte…
– Tudo se tornará mais claro assim que falarmos com o meu irmão. –
Anton espreitou para cima, como se lograsse ver através do teto o sol a
brilhar no exterior, conseguindo ver que horas eram. – O que deveremos
fazer o mais depressa possível. A cerimónia de Consagração começa daqui
a umas horas. – O olho dele voltou a fixar-se nela, a face atraente do seu
rosto numa paz absoluta. – Então, em que ficamos, Lore? As Ilhas ou a
corte?
Posto daquela maneira, não havia grande escolha.
– Muito bem. Eu alinho.
Gabriel quase pareceu aliviado.
Anton inclinou a cabeça, como se a resposta dela fosse exatamente o que
ele esperava.
– Então, vamos – disse ele, avançando para a porta. – O Rei Santo não
gosta de esperar.
Capítulo 5
L ore não sabia bem o que deveria vestir para uma Consagração, pois
nunca fora convidada para uma. Ocorriam ao vigésimo quarto
aniversário, mas somente a nobreza dava importância ao festejo – todos os
outros limitavam-se a serem abençoados no Santuário Sul por um sacerdote
que estivesse disponível, e isso se se dessem sequer ao trabalho de
comemorar a data.
O aglomerado de roupa que lhe fora facultado seria avassalador mesmo
que não estivesse a tentar vestir-se para uma festa santa. Nenhum dos
vestidos era tão ridículo como as coisas que vira nos armários das doações,
felizmente, mas eram bem mais requintados do que algo que alguma vez
tivesse usado. Acabou por optar por um que parecia ser mais fácil de vestir
sozinha. Se pedisse ajuda a algum dos Presque Mort, provavelmente
cairiam para o lado.
O vestido cinza-esverdeado assentava-lhe tão bem que não podia ser
coincidência. Lore observou-se com atenção ao espelho de corpo inteiro
pendurado na parede junto à porta do armário. Gola alta, mangas curtas
plissadas e uma saia até ao chão que roçava no cimo dos sapatos a combinar
que encontrara alinhados sob a cama de dossel. Ou a costureira que o
confecionara tinha um manequim exatamente com o tamanho dela –
improvável, dado que era bastante mais curvilínea do que a maioria dos
manequins que alguma vez vira – ou fora feito à medida dela.
Sentiu um arrepio na nuca. Os Presque Mort já sabiam dela desde que
reanimara Cedric anos antes – Val contara-lhe isso. Ainda assim, custava-
lhe interiorizar ter sido observada.
Também lhe custava interiorizar o que Val fizera. Engoliu em seco, com
força, contendo o aperto que lhe tomava a garganta, o calor líquido a
acumular-se nos cantos dos olhos. Não havia tempo para isso. Seguir em
frente e esquecer era um talento que dominava. Val e Mari já não faziam
parte da sua vida. Esta passava agora por vestidos de seda e sapatinhos a
combinar e uma trela dourada nas mãos do Rei Santo e do Supremo
Sacerdote.
Inclinou a cabeça para cima e pestanejou até aquela impressão nos olhos
desaparecer. Tudo o que sempre fizera na vida fora adaptar-se; aquilo era
apenas algo mais a que teria de se adaptar. Sobreviveria. Como sempre.
Lore entrançou rapidamente o cabelo numa coroa em volta da testa, o
penteado mais elegante que sabia fazer, e abriu a porta com um floreado
sarcástico.
– Contemplai, uma dama.
– Pelo menos, está lá perto – comentou secamente Anton.
Atrás dele, Malcolm deu um toquezinho no lado da cabeça.
– Tem um problema na trança, minha senhora.
– Merda. – Lore virou-se para um espelho manchado pela passagem do
tempo pendurado na parede atrás do sofá. Uma madeixa de cabelo tinha-se
soltado da trança rápida, fazendo parecer que tinha um corno. Com uma
careta, soltou o cabelo e voltou a entrançá-lo.
Abriu-se a porta do outro quarto e saiu de lá Gabriel, com um ar que
decididamente não era o de um monge. Calças azul-escuras enfiadas em
botas pretas reluzentes e um tronco esbelto revestido por uma camisa de
linho branco justa com um colete azul-escuro a combinar. A roupa era
quase suficientemente agradável para se esquecer a carranca mal-humorada,
realçada pelo couro áspero da pala.
Malcolm fez um ruído que poderia ter sido uma gargalhada, mas travou-
o quando Anton lhe lançou um olhar fulminante.
– Arranjaste-te bem, Gabe – optou antes por dizer.
Gabriel remexeu-se inquieto, com o couro novo das botas a chiar.
– Pai, tem a certeza…
– Tenho a certeza. Mais importante, também Apollius tem. – Anton
semicerrou os olhos. – Não insistas em questioná-Lo, Gabriel.
O Presque Mort assentiu com a cabeça. A sua expressão denotava
distanciamento, como se tentasse fingir que estava noutro lugar.
Aquela corda no peito de Lore retesou-se, aquela que parecia ligada a
Gabriel. Ela pressionou uma mão sobre as clavículas, massajando. Era
difícil ver a dor do Mort.
Malcolm também não queria assistir.
– Vou voltar para a biblioteca. – Deu uma palmada no ombro de Gabriel.
– Vai correr bem – disse, num tom baixo, e depois escapuliu-se pela porta,
em passadas lestas no corredor alcatifado. Aparentemente, o outro Presque
Mort não era grande adepto de passar tempo na Cidadela. Lore questionou-
se se todos seriam assim, com a separação entre corte e Igreja bem traçada e
evidente.
Acenando com a cabeça aos dois, Anton virou-se para abandonar os
espaçosos aposentos. Lore seguiu-o e Gabriel fechou a fila.
– Preferia caminhar sobre brasas a marcar presença nisto – ouviu-o ela a
murmurar, nitidamente falando para ninguém ouvir.
– Já somos dois – murmurou Lore em resposta.
O Mort não reagiu, mas a sua boca suavizou-se, apenas um pouco.
–A chaOsqueaposentos
deixaram ficar aqui algum vinho?
deles pareciam cavernosos apenas com eles os dois
lá. Lore descalçou-se junto à porta – apertavam-lhe horrivelmente os pés, o
que significava que, apesar de os Presque Mort terem passado tantos anos a
vigiá-la, nem assim tinham conseguido acertar no número que calçava – e
sentou-se pesadamente no sofá.
– Bem que preciso, depois de tudo aquilo.
– Se deixaram, há de estar no aparador. – Gabriel acenou na direção de
uma mesinha ao lado da lareira vazia. Apoiou-se na parede junto à porta,
erguendo uma mão para ajustar a pala de couro sobre o olho. – Espero que o
August diga a alguém para nos trazer comida.
– Não pode esperar que eu espie de barriga vazia. – Lore vasculhou o
balcão lateral até dar com dois cálices de vinho empoeirados e uma pequena
garrafa de tinto. – Aquilo foi estranho, não? Quero dizer, não é que tenha
assistido a muitas consagrações… a nenhuma, na verdade… mas pareceu-
me estranho.
– E foi – reconheceu Gabriel. – O Malcolm disse-me que o Anton
andava a planear mais leituras de Opúsculos do que numa cerimónia típica,
mas eu não contava…
– Com derramamento de sangue?
Ele remexeu a boca, algures entre um sorriso malicioso e um esgar.
– Precisamente. – Coçou o queixo. Já se viam pelos arruivados a crescer-
lhe ali, indicativo de que o dia ia longo. – Mas algum propósito há de ter
tido, estou certo. O Anton nada faz por acaso. E uma Consagração de um
Arceneaux é uma ocasião especial; não deveria ter esperado que fosse igual
a outras a que assisti.
Parecia que se tornara muito bom a racionalizar o que quer que fosse que
Anton fizesse. O homem provavelmente poderia despir-se e dançar a valsa à
volta do santuário Sul e Gabriel acharia que isso continha algum propósito
espiritual elevado.
Lore arrancou a rolha da garrafa de vinho com os dentes. Tinha um
cheiro avinagrado e ela franziu o nariz quando o serviu.
– É uma merda – avisou, entregando um copo a Gabriel –, mas bate certo
com o dia.
Ela até estava à espera de que ele recusasse – não sabia ao certo qual a
relação dos Presque Mort com o álcool – e por momentos pareceu que o
faria, olhando funestamente para o copo.
– Se não me ajudar a beber isto, deito a garrafa abaixo sozinha – avisou
Lore. – Garanto-lhe que não há de querer ver isso. Canto quando me
embebedo e sou péssima cantora.
Gabriel observou o copo por mais uns momentos antes de lho arrancar
dos dedos.
– Muito bem. – Bebeu uma golada e fez uma careta. – Pelas feridas de
Apollius, isto é horrível.
– Mas é melhor do que pensarmos na situação em que estamos metidos.
– Lore sentou-se no tapete com o seu copo, cruzando as pernas sob a saia
emprestada. – Ainda não sei como hei de aproximar-me do Bastian. Ou
porque tivemos de ir à sua Consagração… extremamente… excêntrica.
– Não será complicado – comentou Gabriel sombriamente, bebericando
mais um pouco de vinho. Evitou por completo o assunto da Consagração. –
Tal como disse August, o Bastian aprecia gente bonita. Deixa que ele vá até
ti.
– Isso poderia ser um elogio, se não dissesse bonita com o mesmo tom
com que a maioria das pessoas diz pus. – Lore deitou abaixo o resto do
vinho avinagrado e serviu-se de mais. – Mas, desde ontem, nunca me tinha
dito tantas palavras, por isso calculo que deva sentir-me grata.
Gabriel nada disse, olhando para as profundezas carmesins do seu copo.
– Estar aqui é… complicado – disse por fim.
Permaneceram ali quietos em silêncio por uns momentos.
– Lamento – murmurou Lore.
Ele olhou para ela, com as sobrancelhas franzidas.
– Lamentas o quê?
– Que tenha de estar aqui. Comigo.
Ele fungou.
– Não és a pior companhia da Cidadela.
– Tem mesmo de melhorar os seus elogios.
Gabriel ergueu o vinho na direção dela, numa imitação de um brinde. Ela
ergueu de igual modo o seu copo, e ambos beberam.
Era estranhamente fácil, estar na companhia do Mort. Ele não era de
muitas falas, mas o silêncio dele era apaziguador, como estar na companhia
de um velho amigo, alguém que conhecesse há imenso tempo.
Lore fez uma careta ao vinho. Conhecia Gabriel nem há dois dias; o
relacionamento deles começara com uma briga numa viela. E não havia
dúvida de que ele era profundamente leal a Anton, ao passo que Lore não
confiava propriamente no Supremo Sacerdote nem no irmão deste. Sentir-se
confortável com o Mort de um só olho não era seguramente boa ideia – e,
além disso, ela era mais esperta do que isso. O que teria ele para a fazer
querer esquecer anos de experiência, os quais lhe tinham ensinado que a
confiança não era algo que devesse ser desbaratado?
Devia ser dos nervos, provavelmente. Nervos e desespero, levando-a a
agarrar-se ao que quer que parecesse sólido. Quando andava à deriva, Lore
não era do tipo de deixar-se levar pela corrente. Era do tipo de tentar a todo
o custo agarrar-se a uma âncora, por muito desaconselhável que fosse.
Acenou com uma mão para o seu próprio rosto, ansiosa por algo
diferente em que pensar. O vinho levou-a a assentar num assunto tudo
menos delicado.
– Então, só tem um olho.
– Observação astuta.
– Doeu muito?
Os dedos dele voltam a tocar ao de leve na pala.
– Doeu – respondeu, ao fim de um momento de silêncio. A seguir, num
tom grave e veemente. – Doeu como o raio.
– Bebe e pragueja. – Lore arqueou a sobrancelha. – Aparentemente, os
Presque Mort só são picuinhas em relação ao celibato.
– Oh, nada disso, são mesmo picuinhas. Mas catorze anos de vida santa
ainda não me livrou de toda a mundanidade. É um defeito pessoal. – Sorveu
o resto do vinho e avançou em passada larga até à lareira. Havia lenha
cortada empilhada num suporte dourado ao lado e atirou uns pedaços para
os tijolos, para depois procurar um fósforo. – Pelos vistos, a santidade leva
o seu tempo a impor-se.
– Se é que alguma vez se impõe. – Lore observou por mais uns
momentos a busca infrutífera de Gabriel por um fósforo, e depois pousou o
seu copo já vazio e rumou à porta que dava para o vestíbulo. – Espere, há
uma maneira mais fácil.
No vestíbulo, Lore retirou uma das velas acesas do candelabro do
Coração do Deus Sangrante.
– Ponha isto na lareira, e depois vá-lhe dando lenha para arder – instruiu
ao regressar à divisão, entregando a vela antes de se sentar no sofá. – Não
está habituado a acender lareiras?
– Não propriamente. – Gabriel retirou a lenha que já lá dispusera e a
seguir escolheu uns pedaços mais pequenos, segurando um sobre a chama
da vela. – Mas a que não estou habituado é a a roubar velas de
representações do Coração do Deus Sangrante. Consta que é pecado.
– Cinco minutos e já destruí todas as suas sensibilidades divinas. E, de
qualquer modo, a maioria das velas já se extinguiu, pelo que nitidamente
não há gente pia neste torreão.
– Para que saibas como é a Corte da Cidadela. Se a piedade não pode ser
vista, não interessa. – Gabriel apoiou o peso nos calcanhares, observando as
chamas a lamber os gravetos e a colar-se aos troncos. – Então, qual é a tua
história, se é para alinhar nesse jogo? Calculo que não seja nada tão
dramático como ter um olho arrancado pelo herdeiro do Império
Kirytheano. Foi uma experiência de quase-morte mais mundana? Um
acidente que te deixou com poderes e a tua família com medo?
E, que Deus Sangrante a ajudasse, por momentos Lore ponderou contar a
verdade. A sua boca abriu-se para despejar tudo – bem, está a ver, nasci nas
catacumbas e tenho conseguido canalizar Mortem desde que me lembro – e
conteve as palavras mesmo a tempo.
Caramba. Aquela sensação de familiaridade que a atormentava no que
dizia respeito àquele homem era mais do que irritante. Era perigosa.
Recuperou com um gole de vinho.
– Caí de uma ponte, afoguei-me por um minuto. Voltei. A família não
estava para aí virada, por isso puseram-me fora de casa quando eu tinha
treze anos.
Pormenores vagos. Mentiras fáceis.
– Que rica família – murmurou Gabriel para as chamas. Levantou-se
para se ir sentar no sofá. – Mas a verdade é que nesse aspeto não tenho
grandes bases para julgar.
– E consigo? – perguntou Lore, ansiosa por desviar de si o rumo da
conversa. – Como é que foi parar aos Presque Mort, depois…
– Depois de o meu pai ter traído August a favor do Império Kirytheano
entregando-lhes uma fortaleza logo em frente à fronteira de Auverraine? –
A voz de Gabriel soou fraca e monocórdica. – O Anton encontrou-me.
Disse-me que era meu destino juntar-me aos Presque Mort, para fazer algo
sagrado a partir de algo terrível.
Ele tinha dez anos. Ela recordava-se de ele o ter dito na sala do trono.
Dez anos, órfão e horrivelmente ferido e Anton transformara isso em
lealdade. Cada vez odiava mais aquele homem.
Não lhe perguntou como sucedeu, mas Gabriel prosseguiu como se ela o
tivesse feito. Por vezes, basta um sinal de que alguém nos ouve.
– O meu pai jurou lealdade a Kirythea quando se aproximaram da
fronteira com a Balgia. August tinha negado ajuda militar; todas as suas
tropas extra guardavam as Ilhas Queimadas. – Uma pausa. – Mas mesmo
assim mataram o meu pai. Os kirytheanos. Jax disse que um homem que
trai um país facilmente trairia outro, e depois decapitou-o. – Fez um som
pesaroso. – Jax tinha dezasseis anos. Ainda uma criança e já cruel.
– Estava lá? – murmurou Lore. E depois abanou a cabeça. – Quer dizer,
claro que estava, dado que depois ele…
Não concluiu e engoliu em seco para travar a secura na garganta. Gabriel
Remaut vira o seu pai a ser decapitado e depois a pessoa que o fizera
arrancara-lhe um olho.
Gabriel assentiu com a cabeça. Na luz ténue, ela quase conseguia ver os
vestígios daquele rapaz assustado naquele homem com cicatrizes.
– Para ser sincero, não sei ao certo por que razão Jax me deixou viver.
Ele ainda não era imperador e matar-nos a todos por certo serviria para
marcar a sua posição face a traidores. Mas enviou-me de volta a
Auverraine… em mau estado, é certo, mas vivo. – Um encolher de ombros.
– O Anton deu comigo pouco depois. Fui recrutado como Presque Mort, e
depois fiquei no mosteiro da Ponta Norte… era capaz de sentir demasiada
Mortem para que pudesse permanecer em Dellaire. O Anton viajava para a
frente e para trás tanto quanto podia, para me ajudar a bloqueá-la da minha
mente. O plano sempre passou por eu vir para cá, quando estivesse pronto.
– Fez um ruído pesaroso. – Foi preciso esperar até depois da minha
Consagração.
Ela recordou-o na divisão sob a Igreja, a dizer-lhe para formar uma
barreira em volta da mente. Está na tua cabeça. Soara como algo que ele
repetira vezes sem conta a si mesmo, uma lição entranhada havia muito.
Lore inclinou-se para a frente, com os dedos entrelaçados.
– Então, Jax poupou-o depois de matar o seu pai – comentou ela. – E,
sabendo que esta corte está cheia de imbecis, calculo que isso só os tenha
deixado ainda mais desconfiados de si.
Gabriel manteve-se em silêncio o tempo necessário para Lore começar a
pensar se teria decidido que dissecar-lhe a sua história afinal era algo que
não desejava.
– Às vezes – murmurou ele por fim –, gostava apenas que ele tivesse
terminado o que começou.
Um restolhar no exterior, no vestíbulo. Algo deslizou no chão pela
ranhura debaixo da porta… um envelope branco-creme.
Lore levantou-se, com as pernas ligeiramente bambas devido ao vinho, e
pegou-lhe. Remaut, via-se escrito na frente em letra dourada rebuscada.
Abriu o envelope, leu a carta que estava no interior e depois mostrou-a a
Gabriel.
– É um convite.
Ele levantou-se a avançou até se pôr em frente a ela, de sobrolho
franzido.
– Para quê?
– Um baile de máscaras. Organizado pelo Bastian, na sala do trono, ao
pôr do sol.
Entreolharam-se com expressões reservadas similares.
– Bem – disse Lore por fim. – É suposto que eu me aproxime dele.
Gabriel resmoneou e depois pegou no convite, lendo-o só para si.
– August ainda não te apresentou à corte. Como é que ele sabe que aqui
estás?
– Pode ter-me visto a chegar à Cidadela – disse Lore, contando
rapidamente a Gabriel que vira Bastian no jardim. Passou por cima do que
ele fazia lá, em respeito pelas sensibilidades de monge dele, mas o modo
como ele revirou os olhos indicou que já sabia.
– Maravilhoso – murmurou. – Então, o teu disfarce pode ter ido à vida
antes de sequer teres começado.
– Não necessariamente. – O fantasma de uma cela onde esperar entre
cada reanimação de cadáveres de aldeãos ainda pairava de forma bem
vincada na mente dela, uma realidade que se tornaria a sua caso não
conseguisse espiar Bastian. – Sou boa a mentir. Se ele me perguntar o que
fazíamos esta manhã, direi que passei a noite na vila e que você teve de me
escoltar no regresso.
– Ainda assim, não me agrada que saiba da tua presença aqui. Significa
que está mais atento do que o August acha. Eu sabia que era má ideia irmos
à Consagração.
Lore nunca o sentira tão perto de discordar de Anton e calculou que
nunca o tivesse feito antes.
Gabriel olhou de novo para o convite e depois largou-o no sofá.
– E o que é suposto usarmos num baile de máscaras?
Uma leve batida na porta.
– Vossa Senhoria? Tenho uma entrega a fazer. Da parte de Sua
Majestade.
– Céus, espero que seja o jantar – disse Lore, abrindo a porta.
Não era. Em vez disso, um carrinho com dois sacos de roupa,
rapidamente levados para dentro por uma criada pequena que fitou Lore
com olhos arregalados e curiosos. Fez uma pequena vénia e saiu antes que
tivessem sequer tempo de lhe perguntar o que quer que fosse.
Lore abriu um dos sacos e espreitou para o interior.
– Parece que a roupa não será problema.
Gabriel gemeu.
Capítulo 9
L ore sentou-se junto ao mar e sentiu-se, pela primeira vez desde que tinha
memória, absolutamente bem.
A água estava morna; batia contra a orla branca da costa, salpicando-lhe
as barrigas das pernas e levando a areia sobre a qual se sentara. Não se
tratava da praia junto às docas do porto, fria e rochosa – não, esta era mais
parecida com as praias que ouvira dizer que havia nas cidades mais a sul de
Auverraine, onde os ricos por vezes iam quando o inverno era demasiado
rigoroso. Não havia odor a sal no ar. Cheirava a nada.
A nada.
Alguém se sentou junto dela. Lore não conseguiu ver quem era. Quando
rodou a cabeça, havia apenas um vazio sombrio, uma brecha no mundo em
forma de pessoa.
Um vazio, mas se olhasse por demasiado tempo, encontraria imagens
súbitas de coisas na escuridão. Um bloco de obsidiana que era um túmulo.
Uma marca de ferro, em forma de crescente, cor de laranja brilhante. Uma
mulher com olhos cor de mel, como os seus.
Lore não tentou voltar a olhar.
No céu sobre o mar tépido, serpenteava fumo sinuosamente, cinzento
sobre o azul. Lore levou algum tempo a reparar que o fumo saía de si
mesma, que lhe escapava do peito, estendendo-se em gavinhas escuras
sobre a água. Enquanto observava, o fumo alastrava-se cada vez mais,
arqueando-se pelo céu.
Perfeito, comentou a figura a seu lado, aquela que não lograva ver. Desta
vez, foi muito mais fácil.
G abe olhou para trás assim que August agarrou o ombro de Lore, como
se um sentido extra lhe tivesse indicado que prestasse atenção. Ao ver o
rei, estacou, uma rocha no mar agitado de cortesãos, de testa franzida.
August fez-lhe sinal com a mão para que seguisse caminho, falando
apenas suficientemente alto para que Gabe o ouvisse entre o crescente ruído
das conversas.
– Os seus serviços não são necessários, Duque Remaut. Vamos apenas às
câmaras mortuárias.
Lore remexeu-se sob a mão de August.
– Ele não pode vir, ainda assim? Eu…
– Acho que fui bem claro. – Apesar da intensidade das palavras, a forma
como August lhe agarrava o braço era delicada. Para quem olhasse, seria a
imagem de um rei benevolente, dando as boas-vindas mesmo à nobre de
mais baixo nível na corte cintilante. – Tu acompanhas-me. O duque não. –
Enfiou um dedo sob o queixo dela como se ela fosse uma criança teimosa. –
Quanto mais depressa fizermos progressos, mais depressa se reunirão.
Os seus lábios cingiram-se num traço branco, mas Lore conteve a
necessidade de se libertar com um safanão. Em vez disso, baixou a cabeça,
o mais graciosamente que pôde.
– Abra caminho, Vossa Majestade.
August resfolegou de surpresa.
– Muito bem – murmurou –, parece que uma erva daninha pode tornar-se
uma rosa, se a retirarmos da sarjeta.
Ela moeria por completo os dentes se continuasse a rangê-los com tanto
vigor.
Gabriel ficou a ver August levá-la pelo corredor, visivelmente
preocupado. Lore esforçou-se ao máximo por parecer confiante e calma.
Aquele era o preço a pagar para se manter ao largo das Ilhas Queimadas, e
dispensava a preocupação dele.
Quando desviou o olhar de Gabe, deu com Bastian.
O Príncipe Sol encontrava-se junto às portas, brincando com um grupo
de pessoas que ela recordava vagamente do baile de máscaras – sendo uma
delas Cecelia, a mulher que lhes oferecera beladona. Naquela manhã, tinha
os olhos dela vidrados, mas, fora isso parecia bem. Os médicos da corte
deviam mesmo merecer bem o que ganhavam.
O sol já bem alto dourava a pele de Bastian, realçando uma cicatriz sobre
uma sobrancelha e fazendo com que os seus olhos parecessem mais
dourados do que pretos. Havia neles algo de solene ao observar o seu pai a
levar Lore dali.
Ela não fazia ideia onde seriam as câmaras mortuárias. Eram outro sinal
de privilégio. Era exorbitantemente caro ser sepultado dentro da Cidadela,
em vez de numa das criptas menores nos limites de Dellaire – pouco mais
do que caixas de pedra com corpos enfiados dentro. Ela sabia que havia
plebeus particularmente devotos que começavam a poupar para pagar um
lugar nas criptas citadinas desde que os filhos nasciam.
O Rei Santo caminhava suficientemente devagar para dar a ideia de
descontração, mas tinha o maxilar tenso sob a barba grisalha aparada.
– A maioria dos corpos do ataque mais recente foi examinada e
descartada – disse ele. – Mas os Presque Mort estiveram a trabalhar toda a
noite e cavalgaram arduamente para trazerem um dos cadáveres, para que
tu… experimentes.
Ela sentiu a palma da mão suada. Limpou-a à saia.
– Ataque mais recente?
August assentiu com a cabeça.
– Houve outro na noite passada.
Três aldeias, todos mortos. Lore engoliu o nó que lhe surgiu subitamente
na garganta.
Instalou-se um silêncio desconfortável enquanto August a levava pelo
carreiro de volta à Cidadela; as portas duplas fecharam-se depois de as
terem transposto. O interior parcamente iluminado era desorientador depois
do sol matinal de verão.
Uma vez lá dentro, August parou, respirando a custo como se a
caminhada pelo jardim o tivesse esgotado. Enfiou a mão no interior da capa
reluzente e retirou de lá um cantil, bebendo rapidamente um trago.
Um aroma a ervas infiltrou-se no nariz de Lore, que o reconheceu de
imediato. Aparentemente, bebericar veneno por diversão não se confinava
apenas aos nobres mais jovens.
– Espero que quem lho fornece saiba o que faz – comentou Lore, num
tom discreto.
Olhos negros incidiram nela, frios e avaliadores.
– Preocupa-te com os teus assuntos, feiticeira da morte – disse August,
guardando o cantil –, e eu preocupo-me com os meus.
O Rei Santo percorreu descontraidamente um corredor e depois guinou
de repente para uma pequena entrada entre duas enormes pinturas a óleo de
Apollius. As pinturas eram anteriores à Queda dos Deuses – o peito do deus
estava intacto. Ainda não lhe fora arrancado o coração pela Sua mulher
vingativa.
Com uma espreitadela rápida para o vestíbulo, August empurrou a porta
para a abrir e revelou um corredor estreito, ladeado por nichos em arco
encimados por raios de sol dourados. Havia estátuas de Apollius nas
alcovas, de puro mármore branco, cada uma numa pose diferente. Mãos
estendidas. Mãos no peito. Cabeça inclinada para cima, ou a olhar para
baixo com um sorriso benevolente.
Palavras numa caligrafia floreada estavam entalhadas sobre a porta
arqueada ao fundo do corredor, de tal forma ornamentadas que Lore mal as
distinguia. Semicerrou os olhos na escuridão.
– As nossas mortes permanecem nossas – entoou August, lendo em voz
alta.
A sensação entorpecedora e nervosa na base do pescoço dela estendeu-se
pelos ombros.
A porta ao fundo do corredor rodou em silêncio para dentro para uma
leve luz cinzenta e uma escadaria de pedra simples, descendo apenas uns
poucos degraus até dar para um túnel.
Cortês, o Rei Santo estendeu a mão.
– Vem.
Lore aceitou a mão do rei e permitiu que ele a conduzisse para a
escuridão. Ela odiava túneis. Felizmente, aquele era curto. À frente, um
casaca de sangue solitário encontrava-se de guarda no limite do ponto onde
o túnel se abria para o que parecia ser um espaço à luz do dia.
Não era um casaca de sangue como os outros, reparou Lore quando se
aproximaram. Lapelas douradas brilhavam na sua jaqueta vermelha, a
baioneta e espada no flanco imaculadamente polidas. Não deu qualquer
indicação de ter reparado sequer neles, mas quando August se aproximou,
curvou a cabeça e afastou-se para o lado.
– O Guarda Sagrado – informou August ao passarem. – Um posto
altamente cobiçado, entregue apenas àqueles que se mostram valorosos a
nível físico e espiritual e àqueles cuja lealdade eu possa assegurar. – Olhou-
a de esguelha. – Não têm muitas oportunidades de usar as armas, mas é
certo que sabem fazê-lo.
Se não estivesse tão perturbada com a visão das criptas, Lore poderia ter-
se questionado se aquilo seria uma ameaça. A divisão ao fundo do corredor
era ampla e circular, e o teto era altíssimo, encimado por uma claraboia de
vidro que filtrava o sol da manhã em faixas facetadas. Devia ser o que Lore
vira a brilhar na véspera, no centro da Cidadela.
A claraboia era impressionante, mas não tanto quanto as próprias
câmaras mortuárias. Ascendiam como torres de pedra, estendendo-se quase
até ao vidro no alto. Havia escadas entalhadas nas laterais das câmaras, em
caracol ascendente, interrompidas por plataformas que davam para
pequenas portas – a única forma de lá introduzir os cadáveres. No cimo de
cada câmara, roseiras muito grandes tentavam chegar ao sol. As rosas eram
as únicas coisas vivas no interior das câmaras, além de August, Lore e o
guarda no túnel.
Lore perdeu um momento a concentrar-se na sua parede mental, todas
aquelas árvores que travavam a sua consciência da Mortem. Troncos e
folhas e céu azul para lá disso.
Algumas das portas das câmaras imponentes encontravam-se encerradas,
mas a maioria permanecia aberta, pequenas janelas para a escuridão no
interior. Essas estavam vazias. Até entre os nobres havia quem não
conseguisse pagar uma câmara na Cidadela. A maioria das portas abertas
estava junto ao topo – destinavam-se apenas à família Arceneaux.
– Tentámos guardar um corpo de cada aldeia – informou August.
Avançou com determinação até à torre mais próxima e para a porta fechada
na sua base. Naturalmente, ninguém desperdiçaria uma câmara no topo com
um aldeão, por muito que a sua morte se tivesse revelado estranha. – Os
restantes foram destruídos.
– Quanto custa uma destas? – perguntou Lore, discretamente, ainda a
olhar para as câmaras.
O rei ergueu o olhar e resfolegou.
– Mais do que alguma vez viste ou hás de ver, rapariga. Mantém os
olhos postos num dos caixões do lado de fora da cidade. – Bateu na parede
de pedra. – Anton? Estamos aqui.
O Supremo Sacerdote abriu a porta, semicerrando os olhos face à luz.
Não disse nada, limitou-se a afastar-se para o lado para deixar entrar o
irmão. Assentiu educadamente com a cabeça a Lore, embora ao mesmo
tempo um músculo no seu queixo se retesasse.
O interior da câmara era escuro e fresco. Os olhos de Lore levaram um
momento a adaptar-se, mas, assim que isso aconteceu, ela recuou
involuntariamente um passo, chocando com a parede. Outro Apollius de
pedra olhava-a de cima. Os pés da estátua estavam apoiados na retaguarda
da câmara, as costas curvadas contra o teto, para que o seu peito se abrisse
sobre o plinto, os olhos ao nível da porta. O seu rosto estava
assustadoramente desprovido de expressão e tinha as palmas das mãos com
granadas cravadas, apontando para a laje ao centro com punhados de
sangue adornado com joias.
E na laje jazia o corpo de uma criança.
Lore sentiu a bílis a subir-lhe até à garganta e a visão a ficar turva. A
criança na laje não era nada parecida com Cedric – era um rapaz mais novo,
nove ou dez anos no máximo, e o seu corpo encontrava-se completo e
imaculado. Mas, ao olhar para ele, foi quem ela viu. O seu amigo, que ela
só tinha desejado que regressasse por uns momentos.
Céus, e ali estava ela na iminência de voltar a fazê-lo.
– Negócio horrível – murmurou August. Ela não conseguiu interpretar
bem a expressão dele sob a luz ténue, mas a voz soava toldada por genuíno
lamento. – As minhas desculpas por ser esta a nossa primeira experiência,
Lore. Achámos que talvez uma criança fosse… mais fácil… de reanimar.
Dado que já o fizeste antes.
Ela encolheu-se.
Anton abanou pesarosamente a cabeça.
– Tanto potencial desperdiçado.
Ao reanimar Cavalo, fizera-o por puro instinto, seguindo um padrão que
tinha parecido estar tão arreigado em si como o mapa das catacumbas que
sentia por detrás dos olhos. Tudo o que tinha a fazer era seguir de novo esse
padrão. Deixar o corpo tomar conta das operações, tentar não pensar.
Lore cerrou e descerrou os punhos, e pestanejou até ter a certeza de que
não ia chorar. Por regra, não se permitia chorar fosse pelo que fosse. Se
começasse, não sabia se conseguiria parar.
Anton saiu por uns momentos e regressou trazendo uma roseira num
grande vaso. Pousou-o – era pesado para ser transportado por alguém da sua
idade, mas não parecia custar-lhe – e recuou para entre as mãos de pedra de
Apollius.
– Ora bem, não te preocupes em fazer as perguntas – disse August. –
Indica-lhe apenas que siga as minhas ordens e depois se quiseres podes
esperar lá fora.
Lore não estava a ouvir, mas ainda assim assentiu com a cabeça.
O rei apontou com uma mão para o cadáver sobre a laje.
– E assim começamos.
A Mortem era densa ali, ela quase lhe sentia o cheiro – vazia, fresca e
pura. O cheiro a céu durante uma tempestade, era como sempre o tinha
encarado. O espaço entre trovão e relâmpago. Lore fechou os olhos com
força, imaginando de novo a floresta, um ponto de referência onde se
firmar.
O cadáver da criança fundiu-se com o de Cedric na mente dela e
restringiu-lhe os pensamentos, dificultou a concentração. Fora traída,
aprisionada e obrigada a usar um poder horrível que preferia esquecer para
ajudar um rei que parecia marimbar-se para quem quer que fosse que
estivesse do lado de fora dos seus muros reluzentes.
Mas Lore tinha nascido com a capacidade de canalizar Mortem. Com as
trevas a correrem-lhe congruentes nos ossos. Sempre fora apenas um
ferimento, uma falha, algo a temer e do qual fugir. Talvez agora pudesse
utilizá-lo para algo positivo.
Abriu os olhos, inspirou fundo e esvaziou os pulmões. Lentamente,
quase sem pensar, estendeu os braços, ficando pálida, fria, necrótica.
– Deus Sangrante segura-nos na Sua mão ferida – murmurou Anton. As
palavras eram feitas para o medo, mas o tom não. Era quase de ânsia.
Lore não dispunha de tempo para pensar nisso. A sua visão reduziu-se a
tons cinzentos, luz branca na forma do rei e do sacerdote, nada mais do que
um vazio escancarado onde o corpo da criança jazia sobre a laje. A enorme
estátua de Apollius parecia monstruosa em tons de cinzento e preto, a pedra
morta iluminada por um feixe de luz.
A queimadura em forma de lua na palma da sua mão brilhava no escuro
enquanto Lore mantinha as mãos sobre a laje. A morte da criança era
distante, o instante, o poder horrível da mesma há muito partido. Sentia-o,
mas não conseguia tocar-lhe; linhas negras vacilavam no ar sobre o corpo,
mas não eram suficientemente grossas para que as agarrasse.
A morte mergulhara mais fundo.
Lore aproximou-se até as suas mãos pairarem pouco acima do cadáver.
Na vida, havia um anel de energia em redor do corpo. Spiritum, que só
Apollius conseguia canalizar – o mesmo poder que Ele alegadamente
entregara à linhagem Arceneaux. Rodeava uma pessoa como a coroa de um
sol em miniatura e, no momento da morte, ardia, explodia, uma estrela
moribunda. Foi o que ela viu quando Cavalo morreu, aquilo a que se
agarrara. Spiritum transformado em Mortem, capturado no preciso
momento do processo de alquimia, o mesmo equilíbrio precário que podia
fazer o veneno levar a uma imortalidade horrível.
Mas essa explosão de energia dissipava-se logo a seguir à morte,
mergulhava bem fundo no corpo e acabava por definhar. Se Lore queria
reanimar este corpo, teria de procurar essa minúscula centelha de Mortem
que ainda continha. Agarrar a morte e extraí-la.
Levou-lhe um momento, os dentes cerrados com força, os dedos
necróticos baixando até assentarem sobre o peito imóvel. Por um momento,
Lore achou que não iria sequer encontrá-la.
Então… um leve vestígio de trevas, um fio fino da morte latente.
Lora agarrou-o como se fosse uma tábua de salvação e enroscou a linha
de Mortem na mão, puxando-a com a destreza de quem enfia uma linha no
buraco de uma agulha. Fluiu do cadáver para ela, rodopiando nas suas
veias, imiscuindo-se nela.
O seu coração parou. Falhou uma batida.
Desviou a mão para o lado, com a Mortem a fluir de si para a roseira que
Anton trouxera para a câmara. As flores murcharam de imediato, a terra
secou e empalideceu.
Lore abriu os olhos, banindo o mundo em tons cinza em favor do
verdadeiro. As suas veias estavam enegrecidas até ao cotovelo, as pontas
dos dedos brancas e frias como um cadáver. O corpo na laje encontrava-se
imóvel, sem alterações visíveis que assinalassem o que ela fizera.
Era um ser humano, não um animal. Ela tinha de lhe indicar uma
direção. E, apesar de August lhe ter dito o que fazer, não se recordava do
que isso fora, pelo que fez a pergunta para a qual todos queriam a resposta.
– Conta-nos o que aconteceu – sussurrou, um som rouco e destroçado a
sair-lhe da garganta ressequida pela morte.
August sobressaltou-se, contornando-a de sobrolho cerrado.
– Não serás tu a levar a cabo este interrogatório – disse ele, no tom mais
régio que conseguiu. – Dei-te instruções. Não queiras fazer mais do que o
que deves.
Mas isso era irrelevante. O corpo na laje permanecia imóvel e em
silêncio.
Ela fracassara. Era a única que podia ajudar e fracassara.
– Lamento – disse Lore, sentindo-se inútil diante do desagrado do rei. –
Fiz o mesmo que antes, penso eu, mas foi há muito tempo…
Foi interrompida por um ruído profundo e áspero de uma respiração a ser
arrancada de pulmões ressequidos.
O som era inconfundível. Lore, August e Anton entreolharam-se sobre o
cadáver, sob o rosto impassível de Apollius, a bocarra escancarada do seu
peito de pedra.
Um rumorejar quando o cadáver se moveu. Um estalido quando se
sentou.
O corpo morto abriu os olhos e Lore não conseguiu evitar olhar para
eles, por muito horríveis que fossem – o seu olhar era atraído para lá,
mesmo quando o terror se infiltrava nos seus ossos, mesmo quando o poder
que tornava aquilo possível mantinha os olhos dela opacos e as veias
negras, parecendo tão morta quanto ele.
Os olhos da criança estavam completamente negros – sem branco, sem
íris. Veias enegrecidas sobressaíam em redor deles, tal como as veias em
redor dos dela, tal como as cicatrizes em volta da pala do olho de Gabe. A
criança abriu uma boca vazia.
E apesar de os seus lábios não se mexerem, começou a murmurar.
Capítulo 13
O utroNãoladointeiramente
veio a ser um jardim de pedra.
de pedra – havia umas flores enroscadas entre as
suas equivalentes rochosas. Rosas num tom carmesim-sangue a florescer de
um canteiro de sósias graníticas; heras verdes a trepar por estátuas das suas
companheiras. Mas, essencialmente, tudo era em pedra.
Mas não morto.
Ao início, Lore não conseguia perceber. A rocha era algo em que sentia a
Mortem sempre de forma fiável: sem vida e sem esperança de ser diferente.
Mas as plantas de pedra tinham um murmúrio de vida em redor, muda e, no
entanto, presente, entretecida com o mais leve vestígio de Mortem.
Parecia… sereno. A aura do jardim era de repouso, de uma pessoa se
afundar numa cama macia ao fim de um longo dia.
Junto dela, os ombros de Gabe relaxaram, a tensão a libertar-se dele
como chuva numa sarjeta. Talvez também ela parecesse aliviada. Talvez
ambos andassem sempre como se tivessem pesos atados aos seus pés, sem
repararem sequer até alguém cortar as cordas.
O jardim a que ele a levara situava-se num pátio encostado à muralha da
Igreja, resguardado dos terrenos interiores da Cidadela por uma vedação
alta ornamentada com um portão alto ornamentado. Era suficientemente
pequeno para Lore abarcar todos os cantos desde o ponto onde se
encontravam junto à entrada, os caminhos entre os canteiros de flores
abrindo-se numa rede ordenada que lhe recordava as ruas de Dellaire. Ao
centro encontrava-se o que parecia ser um poço sob um telhado dourado em
bico. O poço estava fechado, tapado por um amplo círculo de madeira. Via-
se uma pequena estátua de Apollius sobre o tampo de madeira, como que a
segurá-lo.
Olhar para o poço interrompeu a sensação de paz do resto do jardim,
gerou-lhe um arrepio que lhe desceu pela coluna. Desviou o olhar.
Hesitante, Lore estendeu o braço e tocou numa das rosas de pedra. A
textura era surpreendentemente macia, como pétalas.
– Então, é para isto que canalizam toda aquela Mortem? – Ela ouvira
histórias, de como os Presque Mort dominavam a arte de canalizar Mortem
para plantas sem as matar. Mas ouvir falar de um jardim de pedra não a
preparara para o quanto seria estranho vê-lo. Aquilo com que contara era
duro e brutal; ao passo que o que via era maravilhoso.
Gabe assentiu com a cabeça. Junto dele, flores encavalitavam-se umas
em cima das outras, estriamentos de rocha e folhas, o novo jardim a crescer
continuamente sobre o antigo.
– Como? – Uma rajada de vento levou uma rosa viva a curvar-se na
direção dela, e espinhos minúsculos prenderam-se na sua manga. Lore
desprendeu-os com delicadeza, deixando a rosa voltar a endireitar-se. – Ora
bem, eu sei como, mas como é que as fazem… ou seja…
– Com cuidado. – Gabe resfolegou. – Canalizamos Mortem para a mais
ligeira superfície da coisa. Não esmaga o Spiritum, simplesmente…
reveste-o. Deixa-o inerte, algures entre a vida e a morte. – Apontou para o
jardim, quase com orgulho, avançando pelo carreiro fora. – Poderíamos
reverter isto, se necessário. Canalizar a Mortem de novo através de nós,
depositá-la de novo em algo morto, e libertar as flores para regressarem ao
que eram antes. É uma espécie de morte, mas não é permanente.
Lore olhou demoradamente para as rosas, vendo-as abanar sob a luz do
sol. A seguir, juntou-se a Gabe, que ainda deambulava animado pelos
carreiros de pedra. Ali, parecia uma pessoa diferente, como se carregasse
um fardo menor ao caminhar. Ela pensou se ele teria sempre aquele ar
quando era apenas um monge, quando podia existir sem ter de se recordar
de quem poderia ter sido aos olhos de todos os cortesãos.
– Parece batota. – Lore não conseguia acompanhar-lhe a passada, mas
esforçou-se ao máximo por permanecer junto dele, dando dois passos a
cada um dos de Gabe. – Andar para trás e para a frente entre a morte e a
vida sem consequências.
– Consequências como o que sucede quando ingeres veneno? – Gabe
abanou a cabeça. – Quem o faz merece o que lhe acontece. Os seres
humanos receberam o tempo que é suposto terem; tentar fazer batota não
faz parte do plano de Apollius.
Lore questionou-se se ele teria sentido o cheiro do cantil de August. O
que pensaria disso.
– Então, alguma vez tentaram isto com uma pessoa? – Acenou com uma
mão para o jardim.
Ele estacou, com uma centelha de horror no seu olho azul.
– Ninguém faria isto a uma pessoa.
Ela franziu a testa e recuou um passo, sentindo-se culpada face à
expressão abatida dele, mas também magoada.
– Não estou a querer insinuar que o fez. Estou só curiosa, Gabriel. –
Engoliu em seco. – Dispôs de anos para estudar este poder, com alguém
efetivamente a ensiná-lo. Eu só tenho tentado sobreviver-lhe.
O monge fitou-a por um momento demorado, de expressão inescrutável.
A seguir, virou-se e retomou a marcha, embora com uma postura mais
rígida.
– Ninguém sabe de que forma poderia ser afetado por canalizar Mortem
desta maneira para algo com alma – disse por fim, desviando-se por
completo da questão da ignorância dela. – A posição da Igreja é que se
enviaria a alma para o Reino Iluminado… ou para um da miríade de
infernos, calculo, em função da vida que tivesse levado. Quando se fosse
trazido de volta, sair-se-ia da vida no Além, com conhecimentos que
nenhum mortal deveria ter.
Despertar uma pessoa dos mortos não lhe trazia de volta a alma, apenas
o corpo – era por isso que era preciso dar-lhe indicações. Mas uma
curiosidade insaciável sobre o além fora o que suscitara uma vaga de
necromantes ativos depois da Queda dos Deuses. As pessoas capazes de
canalizar Mortem suficiente para despertar os mortos faziam-no para
descobrir o que acontecia a seguir. Para conhecer segredos sobre o destino
quando o corpo chegava ao seu fim.
Isso não agradara à Igreja, apesar de, na verdade, nunca ter resultado.
Nunca houvera quem obtivesse uma resposta clara da parte de um cadáver.
O olhar dela incidiu em Gabe.
– Acredita mesmo na existência do Reino Iluminado?
– Pertenço ao clero. Acreditar no Reino Iluminado é literalmente a
descrição do meu trabalho.
Lore encostou o ombro ao dele, num gesto de camaradagem. Pouco
depois, ele brindou-a com o vislumbre de um sorriso.
O carreiro levou-os até junto do poço. A estátua de Apollius era mais
austera do que a maioria, pedra lisa sem adornos de granadas. Lore olhou
cautelosamente para lá.
– O que é isso?
– A entrada das catacumbas. – Respondeu com tal desinteresse que Lore
se convenceu de que ele a entendera mal. Mas ele lançou-lhe um olhar
irónico e encolheu os ombros. – Abrimo-la a cada eclipse, deixamos sair a
Mortem e canalizamo-la para as flores. É eficiente e provavelmente a razão
para já não haver uma fuga significativa há tanto tempo.
A referência a um eclipse levou-a a pressionar a palma da mão contra a
coxa, escondendo a cicatriz.
– Quando é o próximo?
– Solstício de verão. Um eclipse solar, portanto a Mortem vai estar
particularmente forte. Nyxara a bloquear Apollius, e isso tudo. – Ele ergueu
uma sobrancelha. – Não é por altura do teu aniversário?
O seu vigésimo quarto aniversário. A sua Consagração. Lore disfarçou o
incómodo com um sorriso inocente.
– Está a planear encomendar-me um bolo?
– Talvez. Depende de te portares bem até lá.
Ela revirou os olhos e agarrou-lhe o braço, acompanhando de novo os
passos dele enquanto se afastavam do poço. Ainda assim, mordeu o lábio,
pensativa.
– Isso preocupa-o? Quando há um eclipse solar e a Mortem se torna mais
forte?
– Tento não me preocupar até o Anton mo dizer para o fazer.
Aquilo azedou-lhe o estômago. Mas manteve o tom leve.
– Parece bastante mais chegado ao Supremo Sacerdote do que a qualquer
outro Presque Mort.
– O Anton foi como um pai para mim. Sei que parte foi por causa da
visão que ele teve… de que eu precisava de estar nos Presque Mort, que era
essa a vontade de Apollius… mas ele também foi bondoso. Prestável.
Viajava constantemente para me visitar, para assegurar que eu estava tão
bem quanto possível. – Gabe encolheu os ombros. – Se não fosse por ele,
não estaria aqui.
Ela não percebeu se aqui se referia a ser membro da Igreja ou a
continuar no mundo dos vivos. E não queria saber.
– Porque é que perguntaste se eu acreditava no Reino Iluminado? –
questionou Gabe, após uns longos minutos de um silêncio não propriamente
confortável. – Tu não acreditas?
Lore encolheu os ombros.
– Não penso com frequência no que acontece depois de morrermos. Já
tenho muito com que me preocupar no presente.
Ele fez um som pesaroso de compreensão.
– Mas se pensar no assunto… – Lore pontapeou uma pedra solta. – Não.
Acho que não acredito no Reino Iluminado. Pelo menos, não da forma
como a Igreja o ensina.
Gabe ergueu uma sobrancelha, pedindo em silêncio mais explicações.
Mas não lhe chamou herege nem desatou a correr para Anton, o que parecia
prometedor.
Ela suspirou, erguendo a cabeça, como se o céu estival lhe desse as
palavras para se explicar.
– A Mortem, para mim, assemelha-se à ausência de tudo. Um fim. Por
isso, acho que não faz sentido acreditar numa vida depois da morte… mas
acredito, acho. Acredito em algo, seja como for. Mas, com toda a
sinceridade, a ideia da miríade de infernos faz mais sentido para mim do
que o Reino Iluminado. Penso que o que quer que venha depois disto é
criado por nós. O que quer que tenhamos semeado em vida é o que
colheremos na morte, seja bom ou mau.
– A pior parte da miríade de infernos será a solidão – disse calmamente
Gabe. – Ficarmos presos no mundo criado pelos nossos pecados e
completamente sós. Compreendo o teu ponto de vista, mas não posso
acreditar que alguém que viveu piamente fique sozinho na morte. E não
faria sentido para outra pessoa ficar presa no lugar criado pelos teus atos.
Ela deslizou a mão por um canteiro de gerânios de pedra.
– Não sei. Mas se a Mortem parece vazia… sozinha… não faz sentido
que a morte também o seja?
Mergulharam ambos no silêncio. Vozes chamaram ao longe, cortesãos a
divertirem-se nos muros internos da Cidadela, semeando coisas que a seu
tempo colheriam.
– Não me parece que a Mortem e a morte gerem a mesma sensação –
acabou por dizer Gabe, quase como se falasse para si. – Uma é magia
perversa a vazar do corpo de uma deusa morta e a outra é algo que nos
espera a todos. A primeira vem da segunda, mas não são o mesmo.
– Porque é que a magia d’Ela é considerada perversa? – Se não fosse por
estarem sozinhos, por o pacato jardim de pedra parecer um lugar removido
da realidade, Lore não teria falado. Mas, naquelas circunstâncias, as
palavras jorraram-lhe da boca quase a pingar veneno. – Ela e Apollius eram
iguais. A magia d’Ela podia ser sombria, noite e morte, mas não era
perversa, não mais do que a d’Ele era, ou a de algum dos deuses menores
que vocês gostam de esquecer que existiram. Era apenas diferente.
Gabe fez hum, as sobrancelhas franzidas em modo de reflexão.
– Conheces a Lei dos Opostos?
Um ensinamento de um Opúsculo, tão simples que era ensinado às
crianças assim que aprendiam a andar. Bem, a crianças que não fossem
Lore. Ainda assim, ela conhecia a lei e assentiu ao de leve com a cabeça.
– Se algo é bom, então o oposto deve ser mau. – Gabe abanou a cabeça.
– Não acredito nisso.
– Não acredita em algo dos Opúsculos? Está rapidamente a candidatar-se
a umas férias nas Ilhas Queimadas.
Foi a vez de ele lhe dar um toque no ombro.
– Acredito que os Opúsculos estão abertos a interpretações – frisou. – E
nisto, sinto que a nossa interpretação tem de estar errada. Os opostos nem
sempre estão em oposição; o dia e a noite são iguais. Não há um deles que
seja bom e outro mau. – Fez uma pausa, com a boca franzida. – Mas um
ilumina as coisas, enquanto a outra as escurece. E isso tem de significar
algo, também, acho eu.
Lore não reagiu. Cruzou os braços e fitou os pés ao pisarem o chão
empedrado.
– Não me parece que Nyxara seja má – prosseguiu Gabe. Era como se
tivesse de forçar as palavras, porém, como se tratar a Deusa Sepultada pelo
próprio nome fosse uma tarefa difícil. – Cometeu um erro ao tentar matar
Apollius, por razões que nenhum de nós conhece, e foi derrubada por isso.
Não me parece que esteja no Reino Iluminado com Ele, isso não faria
qualquer sentido, mas espero que, onde quer que tenha ido depois de finda a
Sua vida, não seja demasiado terrível. – Fez uma pausa. – E gostaria que
tivesse levado a Sua magia, em vez de a deixar vazar por toda a Dellaire.
Mas suponho que não tenha sido uma escolha que Lhe coubesse.
Lore virou os olhos na direção de Gabe.
– A sensação que tenho é que pode ser uma espécie de blasfémia esperar
que a vida de Nyxara no além não seja terrível.
– Se a piedade é blasfémia, monta-me uma pira.
Dizia-o em tom de piada, mas ambos sabiam que não era. Caminharam
em silêncio, ensimesmados nos seus pensamentos.
– Tens fome? – Tinham seguido pelo perímetro do jardim e agora Gabe
rumava de novo ao portão, aquele que os levaria de volta à Cidadela. – Se
os almoços ainda são como eram nos meus tempos de criança, deve haver
comida para levar no salão.
Gabe não se equivocara. Uma mesa comprida estendia-se a todo o
comprimento do hall quando entraram pelas portas da Cidadela, com mais
comida do que Lore alguma vez vira num único lugar. As fontes de vinho
do baile de máscaras de Bastian estavam de volta, assim como pilhas de
pequenas sanduíches, e o que parecia ser um javali inteiro assado, com uma
maçã na boca.
Ela ficou boquiaberta.
– Eles deixam isto aqui, sem mais nem menos?
– A maioria dos cortesãos envia os criados para virem buscar uma
bandeja – explicou Gabe, pegando num prato e cortando um naco do javali.
– Mas, dado que nós não temos criados, estamos por nossa conta.
– Que dureza – ceceou Lore em volta do macarrão que acabara de enfiar
na boca.
Nem todos os cortesãos delegavam os seus preparativos de almoço –
Alie estava na esquina do vestíbulo, envergando um vestido longo de
chiffon violeta, simples e elegante. Acenou-lhes quando os viu, afastando-se
graciosamente das outras senhoras com quem se encontrava para dar a Lore
um forte e inesperado abraço.
– Vocês os dois! Por onde têm andado? Acabámos de chegar de uma
partida de croquet no relvado das traseiras; tinha a certeza que vos
encontraria lá. – Agitou as suas sobrancelhas claras. – Têm de treinar se
querem jogar bem na próxima.
– Demos um passeio – respondeu Gabe, ao mesmo tempo que Lore
dizia:
– O Bastian levou-nos aos estábulos.
Gabe fulminou-a com o seu único olho. Lore lançou-lhe um olhar
contrito por cima do ombro de Alie. Sempre lhe tinham dito que as mentiras
eram mais credíveis quando misturadas com a verdade; não se daria o caso
de mentir o menos possível também lhes ser útil ali?
Alie arregalou os olhos.
– Muito bem. Não vos censuro por preferirem o Bastian ao croquet. –
Arqueou uma sobrancelha delicada dirigida a Gabe. – E calculo que tenhas
achado que devias acompanhá-los. Provavelmente, foi sensato.
– Oh, não, nada disso – disse Lore. – Ele estava só a ser cortês.
A outra mulher sorriu maliciosamente.
– O Bastian é tudo menos cortês. É mais do género de começar a fazer
propostas ilícitas levando a sua potencial amante aos estábulos.
Lore travou um risinho louco. Bastian podia ter o hábito de levar aos
estábulos quem quisesse, mas ela tinha a certeza absoluta de que a sua
sedução não costumaria incluir um cavalo morto-vivo.
Ainda assim, a mera insinuação bastou para deixar Gabe com uma
expressão sofrida como a do javali em cima da mesa.
– Obrigado pela informação, Alie.
– Sempre à disposição. Tenho anos de mexericos na corte para te pôr a
par. – Alie voltou o seu sorriso de Gabe para Lore. – Conto-te todas as
melhores partes no nosso jogo na próxima semana. Acho que os rumores
fluem melhor quando temos um taco para bater.
Lore, que na verdade ainda não se decidira em relação a qualquer dos
convites da pilha que estava nos aposentos, sorveu um bom gole de vinho e
assentiu com a cabeça.
– Lá estaremos.
– Excelente. – Alie acenou-lhe com a mão por cima do ombro ao voltar
de novo para junto das amigas, um grupo de mulheres maravilhosamente
vestidas com quem Lore se esforçava imenso por não manter contacto
visual. Cecelia não se encontrava entre elas e Lore não reconheceu ninguém
do grupo que ingeria veneno no baile de máscaras. – Então, vemo-nos lá!
O sorriso desapareceu do rosto de Lore ao virar-se para a comida.
– Pelo menos, sabemos que o Bastian não estava a levar-me para os
estábulos pelos seus habituais motivos.
Era uma piada e esperava que Gabe reagisse com o seu habitual revirar
de olhos, mas o Presque Mort limitou-se a espetar outro morango com a
faca e a colocá-lo no prato.
– Eu não teria tanta certeza – murmurou ele.
Capítulo 16
S ilêncio.
A seguir, uma gargalhada rouca. Os olhos de Bastian eram um brilho
sombrio na escuridão da viela, as suas mãos ensanguentadas cerradas em
punhos envolvidos em panos de linho.
– A Guarda Sepultada? Foram desmembradas depois de a Feiticeira da
Noite ter enlouquecido. Já não há ninguém lá em baixo.
– Há, sim. – Lore engoliu em seco. Sentia a garganta como se tivesse
comido carvão em brasa. – Não restam muitas; talvez umas vinte. Mas
ainda lá andam. Ainda vigiam o túmulo de Nyxara.
Continuavam à espera. Continuavam a enviar alguém ao túmulo de
obsidiana em cada eclipse para verificar se o corpo da deusa se mexia. Lore
recordava-se do aspeto dessas pessoas quando regressavam. Inexpressivas,
olhares vazios, como se a perceção de quem eram lhes tivesse sido extraída.
As cicatrizes em forma de lua nas mãos num ardente e irado vermelho.
– Isso não faz qualquer sentido. – Bastian falou vagarosamente, como se
não confiasse na capacidade dela de o compreender. – A Guarda Sepultada
já não existe há séculos. A Igreja nunca permitiria a continuidade de uma
fação, não depois de a Feiticeira da Noite ter decidido que era Nyxara
renascida.
Lore encolheu os ombros.
– Tal como disse, não restam muitas. A Igreja matou a maioria depois da
Feiticeira da Noite… acharam que as outras poderiam ser infetadas pela
mesma loucura. Mas algumas delas conseguiram esconder-se e manter a
ordem viva.
– Então, como raio é que arranjaram novos elementos? Ninguém vai às
catacumbas.
– Vai, se não tiver mais onde ir. – Como a filha de um mercador, grávida
de um bebé bastardo que estava desesperada por manter. A mãe de Lore
fugira para as catacumbas quando os pais lhe disseram que a iam enviar
para um sanatório. Foi uma questão de pânico; só fora para lá para se
esconder.
Mas encontrara muito mais do que um esconderijo.
Bastian arqueou uma sobrancelha, numa expressão de pura
incredulidade.
– Então, as restantes histórias são verdadeiras? – Bufou. – Saem às
escondidas à noite e causam pesadelos às crianças malcomportadas?
Enfeitiçam cavalos para fazerem cair os seus cavaleiros?
– Não. – Abanou a cabeça. – A genuína Guarda Sepultada, as Irmãs da
Noite que fizeram os votos, nunca abandonam o túmulo, exceto quando
alguma das mais jovens é enviada à superfície para arranjar mantimentos.
Roubávamos ou trocávamos material que encontrássemos nos túneis.
Moedas perdidas, pedras preciosas. Iria surpreender-se com o que se
encontra quando se está atento.
A voz dela soava descontraída ao descrever tais bizarrias. Lore só
contara aquelas coisas a Val e Mari, quando lhes revelou o que era depois
de despertar Cedric. Sempre achara que não conseguiria voltar a encontrar
tais palavras, mas saíam-lhe com uma facilidade tremenda.
O Príncipe Sol semicerrou os olhos, mas não voltou a acusá-la de mentir.
– E ainda fazem o que indicam os Opúsculos? – A pergunta saiu
cautelosa. – Vigiam para garantir que Nyxara não se ergue?
– Têm um Compêndio. Leem os mesmos Opúsculos que os Presque
Mort. Seguem as leis da Igreja. – Apesar de contrariada, começou a sentir a
raiva em combustão no fundo do estômago. – A Guarda Sepultada foi
incumbida da pior tarefa possível, ao ser enviada para viver na escuridão, e
quando a líder previsivelmente enlouqueceu por causa disso, por estar
encerrada no subsolo junto do túmulo de uma deusa, a Igreja entendeu que
interpretara incorretamente os Opúsculos, e matou-as.
O cabelo dela estava pegajoso e húmido, colava-se-lhe à testa. Lore
estendeu o braço para o afastar e só quando Bastian lhe agarrou a mão é que
percebeu que usara a da cicatriz.
Recuou instintivamente – a cicatriz era invulgar, mas não ao ponto de
achar que teria de a esconder. Pelo menos, até então. Mas Bastian apanhou-
a depressa, usando a outra mão para lhe abrir os dedos e poder ver com
atenção.
Lentamente, abriu também a sua mão junto à dela.
Um sol. Bem, meio sol – gravado na parte de cima da palma, com os
rebordos ainda frescos e rubros, apenas a começar a cicatrizar. Um
semicírculo arqueava desde a base do dedo mindinho até ao polegar, as
curtas linhas de raios traçadas até à primeira articulação. Se unissem as
palmas, o crescente da lua de pernas para o ar dela encaixaria na perfeição
completando a curva do sol dele.
Ela recordou a Consagração dele, quando Anton pegara na faca e gravara
aquilo no sobrinho, como todos os presentes tinham parecido chocados.
– Que bela coincidência, não é? – murmurou Bastian.
Lore puxou a mão para trás.
– Foi assim que te deram a capacidade de canalizar Mortem? – quis ele
saber. – Ou foi apenas um pouco de pompa exagerada, como a minha? O
Anton é grande adepto da teatralidade.
– As Irmãs não me deram a capacidade para canalizar – explicou Lore. –
Eu nasci com isso. Não sei como, e acho que elas também não sabem.
Pelo menos, nunca lhe tinham explicado nada. Tudo o que lhe ofereciam
era olhares de esguelha e sussurros.
Bastian mirava-a como se ela fosse um enigma particularmente
complexo. Como se as respostas que lhe dera servissem apenas para gerar
mais perguntas. E, pelo Deus Sangrante, ela dera-lhe todas as respostas. O
Príncipe Sol de Auverraine sabia a verdade em relação a ela, uma verdade
que nunca revelara a ninguém além de Val e Mari. E até lhe contara mais do
que a elas – nunca havia revelado às mães adotivas que nascera
canalizadora de Mortem, que não adquirira o seu poder da forma habitual.
– Vamos – disse por fim Bastian, pondo-se a caminho. – Está na hora de
regressarmos, em especial se queres ver as câmaras mortuárias antes que o
sol nasça.
Se ele não ia falar mais sobre a infância dela, também ela não o faria.
– Primeiro, temos de encontrar o Gabriel.
– O Remaut sabe tratar de si. – Bastian estava perto da entrada da viela;
com um resmungo de frustração, Lore despachou-se a acompanhar o passo
dele. – E se voltarmos ao ringue, é provável que voltes a cruzar-te com o
teu antigo amante. Penso que será uma conversa que quererás evitar, dado
que também andavas a espiá-lo. – Lançou-lhe um olhar de relance por cima
do ombro, como se já previsse o espanto dela. – O Michal é mais esperto do
que achas; ele estava a par do teu jogo desde muito cedo. Contou-me
quando aqui vim na outra noite, depois do baile de máscaras. Acho que ele
te teria perdoado, se além de espia não fosses também necromante.
Ela tentou que aquilo não a afetasse.
– Alguma vez dorme?
– Os malvados não descansam, minha querida.
Brilhavam candeeiros a gás nas esquinas das ruas, projetando coroas de
luz com tons do sol poente. Tendo passado a ameaça de morte iminente,
Lore voltou a deixar fluir os seus pensamentos, abarcando mais do que
apenas um instinto de sobrevivência. Franziu o sobrolho nas costas de
Bastian.
– Achou que eu era uma assassina.
– Pareceu-me um cenário provável.
– Mas sabia que eu trabalhava para o seu pai. Por isso acha…
– Sim, Lore, acho que o meu pai é capaz de andar a tentar matar-me.
– Porque pensa que o Bastian trabalha com Kirythea.
– Não, na verdade – disse, os ombros ainda despidos e a ficarem tensos.
– Na verdade, tenho quase a certeza de que o meu pai sabe que isso são
tretas.
Lore mordeu o lábio inferior, deixando que as peças assentassem nos
seus lugares, as coisas que ele não dizia.
– Então, August quer apenas matá-lo. Recorrendo a isto como pretexto.
– Muito bem.
– Mas porquê? É o seu único herdeiro. E, se efetivamente o quer morto
porque não contrata simplesmente um assassino? Porquê toda esta charada
para o tramar?
De início, Bastian não respondeu. Seguiram caminho, entrando e saindo
das sombras entre candeeiros de rua.
– Eu e o meu pai nunca concordamos em nada – acabou por responder,
calmamente. – Nem em termos de governação, nem em termos de religião.
Sinceramente, acho uma estupidez que a coroa de Auverraine seja definida
por bênção de Apollius. Um deus ausente não deveria ter a última palavra
na aplicação das leis.
– Isso é heresia.
– Sem dúvida. – Bastian coçou alheadamente o flanco. Formava-se lá
aos poucos uma pisadura, com o rebordo a assumir um roxo vívido. – Acho
que o meu pai assume que esses pensamentos se devem apenas a não querer
a coroa para mim. E tem razão. Não quero. Mas não a ponto de querer
entregar o país a Jax e ao Império Kirytheano.
– Então, porquê matá-lo?
– Eliminaria a possibilidade de eu mudar de ideias – respondeu,
secamente. – Quanto a não contratar simplesmente um assassino, August
conhece esta corte. Sabe que o desdém que sente por mim não é segredo
para ninguém. Se eu simplesmente aparecesse morto, ou tivesse uma morte
acidental, haveria sempre rumores. A linhagem Arceneaux é abençoada,
não te esqueças, somos avatares do nosso deus. Não nos cairia bem sermos
suspeitos de assassínio, em especial podendo ele acusar-me de ser um
espião kirytheano, com uma desculpa perfeita para me executar. – Lançou-
me um olhar irónico. – Disse-te para não me largares, não foi? Deve estar a
planear plantar provas para tu encontrares. Então, terá a palavra de um
homem pio e da prima de um duque – espetou um dedo no ombro dela –
para o apoiar. Ninguém questionará os seus motivos.
– Então, porque é que não foge? – questionou Lore. – Se acha que o seu
pai está quase a ter um pretexto para o mandar assassinar, se nem quer o
raio da coroa, porque é que permanece na Cidadela?
– Porque a Cidadela é minha. – A resposta dele foi dita com uma
veemência com que ela não contava. – Mesmo que não a queira, fugir não
resolve nada. Não quero ser o Príncipe Sol, mas sou, e isso acarreta
responsabilidades. Se quero ver mudanças, terei de ser eu mesmo a fazê-las.
– Lançou-lhe um olhar de esguelha. – E se o meu pai puder escolher o seu
próprio herdeiro entre os restantes familiares Arceneaux, o que poderá fazer
não estando cá eu, não será alguém que venha a ser bom para Auverraine.
Tenho poucos parentes e são todos horríveis.
Lore pensou no que ela e Gabe tinham conversado nos aposentos, sobre
tentar estancar um rio com um seixo. Mas Bastian não era um seixo, era um
rochedo.
– Surpreende-me sequer que ele se preocupe em ter um herdeiro, para
ser sincera. – Colocou-se ao lado do Príncipe Sol, acompanhando-o por ruas
que lhe eram familiares. – Toma veneno regularmente e assumo que tenha
um traficante de morte que conheça as quantidades certas. Parece que tenta
tornar cada vez mais irrelevante a questão de ter de passar a coroa.
Bastian nada disse, mas olhou repentinamente para ela, desviando depois
o olhar. Cerrou a boca, pensativo.
Contornaram uma esquina e Bastian agarrou-lhe o cotovelo,
encaminhando-a para a galeria talhada na Muralha da Cidadela – ela não a
vira, escondida nas sombras.
– Tu e o Remaut vão ter de se tornar melhores atores – disse ele,
mudando de assunto. – Toda a gente na Cidadela tem faro para detetar tretas
e ele não olha para ti como quem olha para uma prima.
– Então, olha para mim como? – Lore puxou o cotovelo da mão de
Bastian.
– Como se não estivesse particularmente agradado com aquele voto de
celibato.
Ela sentiu as faces a corar.
Com um sorriso, Bastian apontou para a galeria com a sua mão com o
sol marcado.
– Faça favor, minha senhora.
Lore baixou-se para o túnel, voltando a molhar a bainha. Bastian
chapinhou atrás dela e assumiu a liderança, segurando o seu isqueiro.
– O Gabriel sabe regressar à Cidadela, certo? – questionou Lore.
– Ele é um tipo despachado, há de encontrar o caminho. – A chama do
isqueiro tremeluziu nas paredes oleosas. Algo em forma de rato correu para
as sombras. – A tua preocupação é tocante.
O seu tom contradizia as palavras. Lore franziu o sobrolho nas costas
dele, levantando a bainha para evitar a água.
– Foi enredado nisto da mesma maneira que eu.
– Mas, por muito que assim seja, o Gabriel é leal a uma única pessoa. E
por muito interessante que sejas, Lore, não me parece que possas competir
com Apollius. Se surgir a oportunidade de te usar ao serviço do deus dele, o
Remaut vai aproveitá-la. – Virou-se para ela, a chama a dourar o cabelo
escuro dele com uma luz demoníaca, mantendo-lhe os olhos na sombra. –
Na realidade, parece que sou a única pessoa que sabe quem és e do que és
capaz e que não tenta tornar-te um instrumento.
Não era verdade, mas também não era reconfortante. Gabe não sabia o
que ela era, não mesmo. Não como Bastian sabia.
Deus Sangrante e Deusa Sepultada, esperava que aquilo não fosse um
erro.
– O Gabe não está a tentar usar-me – disse ela em voz baixa. – Está a
tentar manter-me em segurança.
O príncipe virou-se para trás com irritação, abanando a cabeça.
– Estás assim tão habituada a ser usada que nem percebes quando
acontece, desde que feito com gentileza?
Ela não tinha resposta para aquilo.
Capítulo 21
O percurso pelo túnel curto não demorou, mas Lore estava ensopada até à
cintura quando chapinharam ao subir para a derradeira saliência na
outra ponta e caminhar através de toda aquela água fora suficientemente
cansativo para a deixar a transpirar. Queria desesperadamente limpar a cara,
mas receava o que poderia ter nas mãos.
– Com que frequência é que faz isto? – questionou, virando-se para
Bastian. – E como é que na miríade de infernos disfarça tanta roupa para
lavar?
– Costumava ser mais ou menos uma vez por semana, mas acho que
agora vou ter de reduzir a frequência, dado que pelo menos dois dos
sicários de apostas sabem quem sou. – Bastian saltou para cima, para junto
dela, praticamente sem mostrar sinais de cansaço. – E por norma deixo
apenas as roupas na galeria e atravesso os jardins nu. É refrescante e quem
der com elas por certo que precisa mais do que eu.
– Por favor, diga-me que não está a contar livrar-se agora da roupa.
– Vou proteger a tua delicada sensibilidade, embora isso decerto vá
resultar numa agonizante assadura. – Bastian agarrou-a pela cintura e içou-a
do bueiro para os jardins da Cidadela.
Diretamente para diante de Gabriel.
O Presque Mort cambaleou para trás, abraçando Lore para a equilibrar.
– Estás bem? – perguntou, passando-lhe as mãos pelos ombros e até aos
pulsos. – Ele não te fez mal?
– Devo sentir-me ofendido? – Bastian trepou para fora do bueiro, com
um sorriso no rosto, mas um olhar fulminante. – Acho que me sinto
ofendido.
– Ele não me fez mal. – Lore não mencionou os momentos intermináveis
na viela em que lhe tinha parecido que talvez fizesse. Afastou-se do abraço
de Gabe e espreitou-lhe o rosto. Uma pisadura manchava-lhe o lado oposto
à pala e tinha sangue seco sob uma fenda no lábio. – O que lhe aconteceu?
– Deparei-me com uns sicários que achavam que eu tinha uma dívida por
pagar. – Gabe tirou uma crosta de sangue. Isso não melhorou o aspeto do
seu rosto. – Assim que me escapei, não vos encontrei, por isso vim aqui
pedir ajuda ao Anton.
Claro. Lore ficou a pensar se Gabe planeara contar tudo ao Supremo
Sacerdote, incluindo o cadáver possivelmente reanimado nas câmaras
mortuárias, ou se teria deixado isso de fora.
Não teve logo a certeza, o que fez com que desviasse o olhar dele e
cruzasse os braços como se pudessem servir de barreira.
Gabe não reparou. Virou-se para Bastian, os punhos cerrados nos
flancos, como se exigisse um esforço monumental não enfiar um deles na
cara do Príncipe Sol.
– Que raio, na miríade de infernos, foi aquilo, Bastian? Arrastaste-nos
até às docas para brincarmos aos plebeus, levaste uma sova…
– De propósito, acho que é melhor realçar.
– …e depois raptas a Lore e deixas-me lá? – Enquanto falava, Gabe foi
avançando até ficar mesmo diante de Bastian, cinco centímetros mais alto e
aproveitando isso para se impor. – Que merda foi essa?
– Tento na língua, Vossa Graça – admoestou-o, sem se deixar perturbar
pelo enorme monge irado que tinha diante de si. – Peço desculpa por te ter
deixado em apuros, mas parece que te desenrascaste bem.
Gabe ignorou-o, irritado.
– Podes ser o príncipe, mas não podes simplesmente…
– Ele sabe, Gabe.
A voz de Lore interrompeu-o a meio da frase. Gabriel estacou e depois
virou-se para olhar para ela, com os ombros rígidos.
– Tudo?
Ela assentiu, desalentada.
– Tudo.
Gabe imitou o aceno de cabeça dela. A seguir, virou-se para Bastian e
empurrou-o contra a parede.
– Gabriel! – gritou Lore, mas o Presque Mort não estava a ouvir. Tinha
as mãos a pressionar os ombros de Bastian, o nariz a meros centímetros do
do príncipe, os dentes arreganhados.
– Então, como é que vais matar-nos, Bastian? – resmoneou ele. – Sabes
o que fazemos aqui, que o teu pai sabe que estás a enviar informações para
Kirythea e esperas que acredite que vais simplesmente deixar a coisa
passar?
O pescoço de Bastian estava tenso, mas ele riu-se como se tudo não
passasse de uma brincadeira.
– Eles apanharam-te mesmo, não foi? Fizeram-te pensar que a única
maneira de te absolveres da traição do teu pai era vendo-a em todos os
outros.
Os braços de Gabe tremeram um pouco. Lore não percebeu se era da
força de pressionar Bastian contra a parede ou da contenção de não o socar.
– Para eles nunca há de bastar, Gabe. – Apesar do sorriso malévolo, o
tom de voz de Bastian era brando. – A Igreja e a Coroa não esquecem, não
perdoam, não mais do que os deuses fizeram antes deles. Mas hão de
continuar a acenar-te com isso, como uma miragem no raio de um deserto.
E tu vais andar sempre atrás, mesmo sabendo que é algo inalcançável.
Ficaram a olhar um para o outro. Então Gabe empurrou-o de novo contra
a parede.
– Parem os dois. – Lore agarrou o braço de Gabe e puxou-o para trás.
Por momentos, ela achou que ele a ia repelir, mas ele cedeu, embora com
relutância. – Bastian, cale-se.
Bastian agitou os ombros, retraindo-se. Mas calou-se.
Lore virou-se para Gabriel, respirando com dificuldade, como se tivesse
sido ela a ficar a segundos de uma briga.
– Isto pode ser-nos útil – disse ela calmamente, sem olhar para o
Príncipe Sol. Roçava bem de perto o que ele dissera no túnel, todas aquelas
questões sobre usar e ser usado. – Há uma boa hipótese de o August estar a
tramar o Bastian.
O Presque Mort lançou-lhe um olhar fulminante.
– Ele disse-te isso?
– Isso interessa? – Lore não sabia como explicar que sabia que Bastian
dizia a verdade, pelo menos em relação àquilo.
– Não o conheces. – Gabe abanou a cabeça. – Lore, o Bastian é…
– Já te ocorreu – interrompeu descontraidamente Bastian – que baseias
todas as tuas suposições relativas a mim no que achavas de mim quando eu
era uma criança? Para ser sincero, parece-me injusto. Em especial tendo em
conta como correu para o teu lado quando as pessoas te fizeram o mesmo.
Os dedos de Gabe cerraram-se lentamente junto ao seu corpo.
Ao fim de um momento, endireitou-se, com o seu único olho pétreo.
– Se queres acreditar nele – disse a Lore, ignorando por completo o
príncipe –, não vamos de imediato ter com August. Vamos contar primeiro
ao Anton e ver…
– Não – disseram Lore e Bastian em uníssono.
Gabe soergueu as sobrancelhas.
Bastian desencostou-se da parede.
– O meu pai quer que eu desapareça – disse ele, como quem comenta o
estado do tempo. – Não estou ansioso por ver o que fará ele se o plano para
se livrar legitimamente de mim… pelo menos aos olhos de Auverraine…
for perturbado. – Apanhou o cabelo comprido, húmido devido ao suor e à
água do escoadouro e prendeu-o num nó junto à nuca. – E há ainda a
questão de aldeias inteiras que morrem do dia para a noite. Pessoalmente,
gostava mesmo de perceber o que se passa.
– Ainda não me deste um motivo para confiar em ti – frisou Gabe, entre
dentes. – Podes ter iludido a Lore, mas vai ser mais difícil comigo.
Ele proferiu o nome dela como se fosse uma reprimenda. Como se
contasse com mais da parte dela. Lore retesou os braços sobre o peito, com
a vergonha e a raiva a gerar-lhe um sabor a cinza ao fundo da boca.
– Então, e que tal este motivo. – Bastian endireitou-se, de alguma forma
mostrando um ar régio apesar do peito despido e do cabelo desalinhado. –
Se envolverem o meu pai e o meu tio de uma forma que eu não deseje,
envio-vos a ambos para as Ilhas Queimadas.
Lore não conseguiu engolir a sua sôfrega inspiração de ar.
O olhar de Gabe incidiu nela, com a rigidez que tinha demonstrado até
então a esvair-se lentamente. Dedo a dedo, descerrou as mãos.
– Muito bem – rosnou.
– Perfeito. Está combinado. – Bastian sorriu. – Calculo que agora
trabalhem os dois para mim.
Mas lá por Gabe ter cedido, tal não implicava que o fizesse em silêncio.
– Então, desde quando é que te interessas pelas mortes dos teus
súbditos?
– Gabriel. – A voz de Lore soou cortante, mas a discussão recomeçou,
embora felizmente sem violência desta vez.
– Desde o início que me interesso, Remaut. – Bastian enfiou a mão no
bolso e sacou de outro cigarro. Lore não percebia como o mantivera
suficientemente seco para o acender, mas fê-lo sem problemas. Soprou uma
nuvem de fumo. – Pelo menos, desde que fui capaz, dado que tanto o Anton
como o August se esforçaram ao máximo por me manter às escuras quanto
aos pormenores.
– Precisas mesmo de pormenores quando provavelmente estás
envolvido?
– Há uma maneira simples de descobrires, Gabe. – Bastian enfiou as
mãos nos bolsos e sorriu. – Porque não se limitam a perguntar ao cadáver
quando formos às criptas? Afinal, é isso que a Lore é suposto fazer, não é?
Ela pensou no que acontecera naquela tarde, quando August a
repreendera por fazer perguntas ao cadáver que despertara em vez de lhe
dizer para obedecer a ordens. Na altura, não dera grande importância à
questão, mas agora questionava-se por que seria que August e Anton não a
queriam ter por perto quando o morto começasse a responder a perguntas.
– Eu volto a perguntar – disse ela. – Quando formos, volto a perguntar.
– Excelente. – Bastian avançou, caminhando descontraidamente de volta
ao bosque cuidado. O céu já se apresentava mais claro, com a iminência do
alvorecer a espreitar nas beiras. – Se houver mais traumas de infância a
resolver depois disso, podemos fazê-lo ao pequeno-almoço.
O sono pesava-lhe nos cantos dos olhos, mas Lore não permitia que se
cerrassem. Pelo menos, tentava não o permitir; volta e meia, a vista que
tinha da sala de estar dos aposentos turvava-se e tinha de se esforçar por se
manter desperta.
Separaram-se de Bastian depois de abandonarem as criptas; até ele já
bocejava. O Príncipe Sol nada lhes dissera, simplesmente partira na direção
oposta quando eles viraram para o torreão sudeste. Na altura, sentiam-se
ambos demasiado cansados para o comentar, mas aparentemente a subida
até ao apartamento revigorara Gabe.
– Não faz sentido. – Passou as mãos pelo seu cabelo rapado, de
cotovelos apoiados nos joelhos. Na realidade, ele era demasiado grande
para o sofá e o facto de se sentir confuso e irado só o fazia parecer maior. –
Não há motivo para o Anton e o August mentirem sobre o que fazem com
os corpos.
Lore encolheu os ombros. Sentada de pernas cruzadas diante do fogo,
debruçou-se para a frente e apoiou o queixo na mão.
– Então, acha que estou enganada?
– Eu não disse isso. – Gabe ergueu o olhar, as chamas a refletir no seu
único olho visível. Ela viu-o a redemoinhar palavras na mente, a tentar
formar uma combinação que não soasse a acusação. – Eu só… como é que
sabes?
Essa era a questão, certo? A única lógica a seguir e claro que ela não
tinha uma resposta. Podia tentar começar pelo início, explicando as suas
origens, a sua estranha ligação à Mortem e a Nyxara e ao que restava da
Guarda Sepultada. Podia contar a Gabe a mesma história que revelara a
Bastian, toda a verdade tão correta quanto se recordava, e esperar que isso o
levasse a confiar em si. Podia dizer-lhe como algo no seu âmago parecia
puxá-la para os dois, para ele e para Bastian, como se fossem pingos de
chuva a escorrer pela mesma calha, sempre destinados a encontrarem-se.
Mas, então, pensou no que Bastian disse. Não me parece que possas
competir com um deus.
Ela já estava a pedir a Gabe para guardar segredos face a Anton. Não
seria sensato abusar da sorte.
Assim, remexeu-se no chão, entrelaçou os dedos no colo e preparou-se
para mentir.
– Acho que tem que ver com a Mortem no interior do cadáver. Por ter
sido eu a necromante que o despertou.
Era uma explicação tão boa como qualquer outra.
Gabe abanou a cabeça.
– Digamos que tens razão e que os corpos das aldeias foram guardados.
Isso decerto significa que o August e o Anton terão um bom motivo…
– Eles mentiram-nos. – Ela virou-se por completo, ficando mesmo de
frente para ele. – Mentiram-nos sobre o que aconteceu aos cadáveres.
Disseram que foram eliminados depois de inspecionados em busca de
pistas. Entre isso e a insistência deles quanto ao Bastian ser um informador
quando sabemos que não é…
– E tudo volta à questão de confiarmos no Bastian – escarneceu Gabe
entre dentes.
– Não lhe peço que confie no Bastian. – Teve de se esforçar por não o
dizer entre dentes. – Peço-lhe que confie em mim.
– Não, tecnicamente, pedes-me que confie na Mortem. O poder da morte
que corrompeu a nossa cidade, com implicações em todo o continente. O
poder que levou as pessoas a terem medo de serem sepultadas debaixo da
terra, fluindo do cadáver de uma deusa manipuladora.
Ele então levantou-se, e a sua sombra eclipsou-a, estendendo-se ao longo
do chão.
– Perdoa-me, Lore, mas a Mortem disse-me não é o argumento mais
convincente.
Ela corou e levantou-se para o enfrentar, lançando um olhar fulminante
ao único olho azul dele.
– E que tal o Anton não quer saber de si para lá do que pode fazer por
ele ou o August é um mentiroso que quer matar o próprio filho? Isso já é
mais convincente?
Ele ergueu o lábio.
– E voltamos ao Bastian.
– Pelo menos, o Bastian não está tão cego por outra pessoa que só
consiga ver o que ela vê.
– Não, está só cego com ele próprio e não faz mais nada que não seja
tentar levar-te para a cama.
– Mesmo que fosse verdade, o que lhe interessa isso?
– Pensei que fosses demasiado inteligente para te deixares levar por uma
carinha bonita que te diz o que queres ouvir. Pensei que tomasses decisões
pela tua cabeça em vez de com a tua…
Ela rangeu os dentes, de forma quase audível, e as suas mãos moveram-
se antes sequer de o cérebro dar a indicação. Empurrou os ombros de Gabe,
obrigando-o a sentar-se de novo no sofá – os joelhos dele bateram na
almofada e dobraram-se, fazendo-o sentar-se abruptamente e interrompendo
o que certamente seria um comentário impróprio para um monge.
Lore cravou as mãos de ambos os lados da cabeça de Gabe, agarrando as
costas do sofá. Isso deixou-os praticamente cara a cara, mas o Mort não se
recostou. Manteve a cabeça direita, a boca dele quase a rosnar a centímetros
da dela.
– A cara dele não está em causa. – Foi um sussurro, silvando no escasso
ar entre os dois. – O que está em causa é ser usada pelo rei, pelo Supremo
Sacerdote, pelos Presque Mort. Vim para cá manipulada e desde então não
vi mais nada. É tudo o que o Bastian conheceu e é também tudo o que o
Gabe conheceu. Mas, pelo menos, o Príncipe Sol e eu somos
suficientemente inteligentes para o admitir.
Estás assim tão habituada a ser usada que nem percebes quando
acontece, desde que feito com gentileza? As palavras de Bastian ecoavam
no seu cérebro. Gabe não fora usado com gentileza, mas tampouco se
achava merecedor de gentilezas. Talvez estivesse aí a raiz do problema.
Tudo o que aceitava era penitência constante por um crime que nunca
cometera.
Quando Gabe respirou, ela sentiu. E ele estava tão perto. Tão perto e
todo ele tão quente, e havia um frio profundo em Lore que ela tentava
sempre derreter.
– É o que têm os manipulados – disse Gabe, baixinho. – Tornam-se os
melhores manipuladores. Não há professor como a experiência.
Permaneceram ali, demasiado perto e demasiado ardentes, raiva e algo
mais a estrepitar entre eles. E mesmo quando Lore quis inclinar-se para a
frente, beijá-lo, embrulhar tudo aquilo em algo que ela compreendesse, isso
deu mais força à sua determinação.
Gabe não podia conhecer a verdade em relação a ela.
Ele queria que ela o beijasse. Ela via isso refletido no seu único olho
visível, quase uma súplica. O desejo era uma coisa palpável, a vibrar no ar,
mas Gabriel era um Presque Mort de alma e coração e mesmo no
atordoamento não poderia ser ele a inclinar-se e a quebrar o seu voto.
Lenta e deliberadamente, Lore largou as costas do sofá. Lenta e
deliberadamente, levantou-se, olhando para o monge que a fitava como se
ele fosse o fogo e ela o combustível.
– Vou procurar os corpos – murmurou. – Quer venha comigo, quer não.
– Então, só tu e o Bastian? – Saiu como se ele pretendesse soar
impertinente; em vez disso soou meio ofegante. – Boa sorte com isso.
– Oh, não me parece que ter sorte venha a ser um problema.
Gabe suspirou e depois sentou-se mais inclinado para a frente, passando
a mão pelo rosto. Ao fim de uma fração de segundo, olhou para ela.
– Mesmo que os corpos estejam a ser escondidos algures, o que prova
isso?
A tensão dos momentos prévios dissipou-se; as palavras já não pareciam
ter duplos sentidos, ardentes.
– Muita coisa, provavelmente, que nem sequer saberemos até vermos os
corpos e percebermos o que lhes fizeram. Mas, por ora, significa apenas que
não podemos confiar nem no August, nem no Anton. Significa que tudo o
que nos disseram sobre os corpos, sobre Kirythea… não podemos confiar
em nada disso.
Ao ouvir o nome de Anton, Gabe fechou o olho e ela sentiu uma pontada
de pena. Era doloroso, extrair a confiança de lugares onde tanto tempo se
mantivera alojada. Mesmo tendo sido fruto de manipulação.
Gabe olhou fixamente para a alcatifa entre as suas botas.
– E o que aconteceu quando tentaste invocar a Mortem com o Bastian na
sala? – Espreitou para ela, a luz matinal a refletir o cabelo dourado-
arruivado dele. – Podemos conversar sobre isso, Lore?
Ele disse-o quase como uma acusação.
– Podemos, mas não sei o que significa. – Suspirou e esfregou os olhos
cansados. – Tentei invocar a Mortem quando ele me afastou do ringue. Foi
impossível. Quando estava a tocar-me, eu mal a sentia.
Ele franziu as sobrancelhas.
– Eu também não a senti na cripta. Talvez, de alguma maneira, seja
repelida devido ao facto de ele ser um Arceneaux.
– Mas eu nunca tive esse problema perto do August ou do Anton.
Apenas com Bastian, que não desejava nada ser um Arceneaux.
A expressão de Gabe ensombreceu.
– Ele podia estar a usar algum tipo de poder elementar roubado para…
Mas Lore já abanava a cabeça.
– Há várias gerações que ninguém detém esse tipo de poder. E se o
Bastian dispusesse de meios para repelir a Mortem, andaria a usá-los para
ajudar Auverraine.
Eis algo mais que ela simplesmente sabia, mais um lugar onde ela
necessitava da confiança dele, mas sem dispor de meios para explicar a
razão para o merecer. Gabe inclinou a cabeça, pelo que ela não lhe via o
olho, somente a pala, sobre a órbita vazia, o seu maxilar bem definido. A
barba começava a crescer.
– Podemos procurar na biblioteca da Igreja – disse ele por fim. – Deve
haver lá algo sobre a linhagem Arceneaux e o efeito deles sobre a Mortem.
E se não dermos com nada, saberemos que é algo que o Bastian anda a
fazer por sua conta.
Parecia reconfortá-lo, a ideia de que poderiam encontrar algum tipo de
culpa para atirar ao príncipe. Um plano concreto que lhe indicasse se
poderia confiar no seu amigo de infância.
Lore assentiu.
– Vamos procurar.
– E vamos também procurar os corpos. – Gabe disse-o como se fosse
uma concessão. – Mas vamos esperar uns dias. Fomos vistos por mais de
uma pessoa a sair com o Bastian na noite passada; sem dúvida que o August
nos vai convocar em breve.
Lore assentiu com a cabeça. Não apreciou a ideia de esperar, mas não
podia negar que era sensato, em especial havendo uma audiência com
August no futuro imediato.
Gabe levantou-se e espreguiçou-se.
– Vou ver se durmo um pouco. – Quando Lore olhou vincadamente para
a luz matinal a entrar pela janela, ele encolheu os ombros. – Toda a gente
nesta corte amaldiçoada pelos deuses está a dormir. Mais vale fazermos o
mesmo.
Ele avançou para a soleira, despiu a camisa e começou a preparar o seu
catre diante da porta. Lore deixou-se ficar à entrada do seu próprio quarto
com a cama demasiado mole, passando o peso de um pé para o outro.
Então, decidindo de repente, atravessou a divisão e lançou-se ao sofá.
– A cama é demasiado mole – murmurou, deixando de fora a parte de
querer confiar nele apesar das palavras que lhe dissera sobre manipulação,
de sentir-se à deriva, de não querer estar sozinha e tê-lo apenas a ele para o
evitar. No entanto, todos esses sentimentos ficaram encaixados naquelas
cinco palavras e o rápido olhar que ele lhe lançou indicou-lhe que as ouvira.
Lore pensou naquele momento em que ele quisera que ela o beijasse.
Quando ela pensara nisso, quando decidira não o fazer. Pensou na sua
decisão de lhe ocultar as suas verdadeiras origens e como nada em relação
ao desejo que a percorria a levou a questionar tal decisão.
Pensou nos votos.
Gabriel suspirou, e então ela ouviu os sinais que indicavam que estaria a
deitar-se no chão encostado à porta. Lore virou a cara para as almofadas do
sofá, inspirou o odor a pó e imaginou a sua floresta, agarrando-se à sua
própria mente para que a morte não conseguisse passar.
Ramos verdes e castanhos, céu azul-celeste. Fumo negro a espiralar
sobre o azul e, distraidamente, ela pensou que parecia mais denso do que
antes.
Lore levou todo um dia até sentir-se de novo humana. Gabe manteve-se
no estúdio em frente à sala principal, lendo manuscritos bolorentos e
fragmentos do Compêndio, descendo ocasionalmente ao salão para ir
buscar comida. Lore basicamente foi dormindo no sofá, dando ao seu corpo
o repouso que lhe fora negado ao perambular atrás do Príncipe Sol.
Gabe finalmente deitou-se junto à porta quando a noite caiu. Era
reconfortante saber que ele estava ali, suficientemente perto para ela lhe
chegar em dois passos se o desejasse. Se bem que não o faria.
No dia seguinte também dormiram até tarde, por isso, quando bateram à
porta, Lore levou algum tempo a despertar.
Ela sentou-se, a camisa de noite enrolada em volta da barriga, o cabelo
emaranhado.
– Gabe – murmurou com uma voz rouca de sono, não querendo que ele
levasse uma pancada se quem batia tivesse chave.
Não precisava de se ter preocupado. Gabe remexeu-se, esfregando as
costas, virando-se para ver o que tinha sido enfiado pela abertura entre a
porta e o chão, enquanto no exterior se ouviam passos a recuar pelo
vestíbulo. Pressionando a base da mão no olho são, Gabe sentou-se de
pernas cruzadas, com um envelope branco rígido no colo.
– Não recomendo a ninguém que acorde cortando-se com papel –
murmurou, enquanto Lore atravessava a sala para se sentar diante dele. Era
a mesma posição que tinham assumido na primeira noite, quando ele lhe
ensinara a bloquear a morte. Ela remexeu-se, desconfortável, e questionou-
se se ele teria reparado.
Via-se escrito Remaut em letra floreada nas costas em tom creme do
envelope pousado no colo de Gabe. Junto ao t fora desenhada uma pequena
flor.
– Alie – disse ele baixinho.
Lore arrancou-lhe o envelope das mãos e rasgou-o para o abrir. Uma
simples folha branca, com palavras escritas com a mesma letra floreada do
apelido de Gabe.
Lore sentiu uma gargalhada a formigar ao fundo da garganta.
– Um lembrete do jogo de croquet. É hoje, depois do almoço. –
Espreitou para a janela, iluminada pelo brilho do meio-dia. – O que deverá
ser agora mesmo.
Gabe já abanava a cabeça, mas Lore endireitou as costas com renovada
determinação.
– Nós vamos.
– Sabes sequer jogar croquet?
– Não, mas pode ensinar-me, ou não? – Ela sentia os olhos colados,
doía-lhe o estômago após dias sem descanso, seguido de demasiado
repouso. Precisava de sair daqueles aposentos.
Também lhe parecia bem fingir normalidade por uns momentos e uma
partida de croquet seria provavelmente o mais próximo disso que poderia
obter.
Com um esgar, Gabe massajou o olho.
– Em tempos, eu era bastante bom. – Levantou-se, estendendo a mão a
Lore.
Ela aceitou e deixou que ele a puxasse para cima. Largou-a assim que ela
se endireitou, demasiado depressa para ser casual. As coisas entre eles
pareciam essencialmente estáveis, agora que tinham combinado um rumo,
mas todo aquele calor ainda se manifestava fora do alcance, as brasas à
espera do sopro adequado.
Lore vestiu-se rapidamente, num vestido violeta de cintura subida e
mangas que lhe tapavam apenas os ombros. A saia era comprida e rodada,
mas não tanto como algumas que vira cortesãs a vestir – não corria perigo
de ocupar toda a largura do corredor. Não fazia ideia da roupa apropriada
para uma partida de croquet, mas aquilo teria de servir.
O cabelo deu-lhe algum trabalho até o conseguir entrançar parcialmente
numa coroa em redor da cabeça, deixando o resto caído. A cor vacilava
entre castanho e dourado, mas o tom suave do vestido tornava-o mais
escuro. Uma pausa e depois beliscou as bochechas, mordendo os lábios para
lhes dar alguma cor. Disse a si mesma que nada tinha que ver com Gabe e
absolutamente nada com a possibilidade de ver Bastian.
Gabe já se encontrava vestido quando ela saiu do quarto. Sem abrir a
boca, ofereceu-lhe o braço. Ela aceitou.
Percorreram o vestíbulo como quem se dirige para uma condenação.
Lore habituara-se às barras de ferro cruzadas em xadrez no chão do
vestíbulo, de tal forma que já mal reparava nelas. Mas depois da noite
anterior, voltavam a fazer-se notar, incongruentes e escuras. Uma
recordação de que coisas como ela não pertenciam àquele lugar.
O almoço estava disposto no mesmo lugar da véspera, numa mesa
enorme que gemia sob o peso de pastelaria e centenas de sanduíches
minúsculas. Alie encontrava-se na companhia de outros cortesãos, fácil de
detetar pelo cabelo louro-claro.
Igualmente fácil de detetar era Bastian de pé ao lado dela, a bebericar um
copo de vinho e a fitar Lore e Gabe como um caçador que espreitasse uma
armadilha instalada.
– Oh, excelente! – Alie bateu palmas, entusiasmada. Delicadas pulseiras
com pedras preciosas azul-claras refletiram a luz. – Agora teremos equipas
equilibradas!
– Esplêndido! – murmurou Bastian. – Alie, querida, acho que é de toda a
justiça que fiques na equipa do Gabe e da Lore. Tu e eu na mesma equipa
não ia ser muito competitivo.
A mulher ao lado de Alie – Cecelia, reconheceu-a então Lore, embora
agora parecesse ter o olhar límpido e estar livre de veneno – fez beicinho,
na brincadeira.
– Estás a insinuar que és melhor do que eu, Bastian? Tanto quanto me
lembro, ganhei-te da última vez que jogámos.
Ele acariciou-a debaixo do queixo.
– Sim, mas eu estava muito distraído.
Cecelia corou com encanto e desviou o olhar.
O homem junto a Cecelia fitou Lore com uma expressão pesarosa.
– Tu estás sempre distraído, Bastian.
– Ofendes-me, Olivier. – Bastian levou uma mão ao coração. – Não te
irrites, distrais-me tanto quanto a tua adorável irmã.
Olivier revirou os olhos, mas as suas faces ganharam rosetas fortes. O
enrubescimento evidenciava que ele e Cecelia eram obviamente familiares,
realçando-lhes os olhos azul-claros e o cabelo escuro.
– Guarda os namoricos para depois do jogo. – Alie avançou na direção
das portas que davam para o relvado. – Estou concentrada num tipo
diferente de conquista.
– Que os deuses nos poupem a todos – murmurou por entre dentes Gabe.
Capítulo 23
A obater
fim de uma hora de jogo, Gabe felizmente conseguira impedir-se de
com um taco em Bastian. O mesmo se aplicava a Lore. No
entanto, ela também não conseguira fazer a bola passar pelo aro.
– Acho que é o teu braço direito – disse Alie. Tinha obrigado Lore a
ficar quieta, inclinada e pronta para aplicar uma pancada na bola preta
pousada na relva, de forma a poder inspecionar-lhe a postura. – Estás a
mantê-lo muito tenso, por isso, quando balanças, atinges a bola com a
lateral do taco e não com a frente.
– Então, devo dobrá-lo? – Na última hora, Lore descobrira que, apesar
de não nutrir qualquer apreço pelo croquet, ainda menos apreço sentia por
perder. Espetou o cotovelo para fora, passando-o de estendido a um ângulo
quase reto.
– Não tanto. – Alie empurrou-lhe o braço ao de leve. – Pronto. Agora
experimenta.
Lore assim fez. A bola falhou o arco mais próximo, mas curvou o
suficiente para entrar noutro.
– Finalmente! – Endireitou-se, radiante, e resistiu a brandir o taco por
cima da cabeça para festejar.
Bastian, apoiado no seu taco no limite do terreno de jogo, mostrou-lhe
um sorriso radiante.
– Aro errado, minha querida.
Bem, merda.
– Isso põe o marcador em dez para nós e quatro para vocês. – Quando
Cecelia começou a anotar no marcador, parecia entusiasmada por ela,
Bastian e Olivier estarem a ganhar tão facilmente. Agora, quase parecia
envergonhada.
Olivier, por seu lado, conseguiu disfarçar uma gargalhada com a palma
da mão. Cecelia deu uma palmada no ombro do irmão. Não era assim tão
má, quando não bebia chá de beladona.
Junto a Lore, Gabe suspirou e levantou o seu taco. Parecia detestar
perder tanto quanto ela.
A morder o lábio, Alie observou-o a alinhar a sua tacada. Lore pegou no
seu taco e pôs-se ao lado dela.
– Desculpa estar a levar-te a perder.
– Oh, não sejas tola. – Alie acenou com uma mão. – Na semana passada,
bati o Olivier nas três rondas que jogámos só um contra o outro, por isso ele
agora está apenas a tentar salvar a face e exibir-se diante do Bastian.
As suas palavras soavam ligeiras, mas ela não desviava os olhos de
Gabe. Lore não conseguia interpretar a expressão da outra mulher. Era
demasiado complexa para ser desejo, e demasiado branda para ser remorso.
Gabe, por seu lado, mal falara com a antiga prometida para além das
habituais cortesias. Lore vira Alie a tentar por mais de uma vez encetar uma
conversa, mas Gabe, apesar de não se mostrar rude, pouco mais fazia do
que acenar com a cabeça. Quando Alie se encontrava junto dele, Gabe
coçava a pala, como se a presença dela lhe recordasse que a tinha ali.
– Bem – disse Lore –, talvez tu, eu e o Gabe possamos ter umas sessões
de treino antes da próxima partida.
Um sorriso caloroso manifestou-se no rosto da outra mulher.
– É uma ideia maravilhosa. E recorda-me: enviei-te aquele convite para
um lanche nesta semana, mas queria que soubesses que se trata de um
convite permanente… eu e as minhas amigas encontramo-nos sempre ao
Sexto Dia e adoraríamos que te juntasses a nós sempre que possível.
Um calor desconhecido inundou o peito de Lore. Aquela oferta de
amizade teria mais que ver com Gabe do que consigo – a forma como Alie
o observava deixava claro que queria conhecer o homem em que se
transformara o seu antigo noivo –, mas iria aceitá-la. Havia tempos que não
tinha amigos.
E ser amiga de Alie poderia ajudá-la a descobrir mais informações sobre
quem na corte poderia estar a trabalhar com Kirythea.
– Obrigada – disse Lore.
Alie agarrou-lhe a mão e apertou-a.
No campo, foi a vez de Cecelia – ponto fácil –, que depois deambulou
até junto de Alie e Lore. Enquanto caminhava, retirou um pequeno cantil de
um bolso dentro da saia e bebericou um pouco. O aroma herbáceo a
beladona penetrou o nariz de Lore.
– Onde arranjas isso? – perguntou.
Esperava que Cecelia arregalasse os olhos, que se comportasse como a
criminosa apanhada em flagrante que, para todos os efeitos, era. Mas ela
limitou-se a mostrar-lhe um sorriso coquete e a bebericar mais um pouco.
– Onde toda a gente aqui arranja veneno – respondeu, fechando
afetadamente a tampa e guardando-o. – Nos armazéns onde os casacas de
sangue o guardam depois de ser confiscado.
Todos os músculos do corpo de Lore se retesaram. Junto dela, Alie
mordeu o lábio inferior com um ar preocupado.
Aparentemente Cecelia não reparou.
– Posso mostrar-te onde é, se quiseres – disse descontraidamente. – Não
é difícil de encontrar.
– Cecelia. – Apesar de a amiga não ter reparado no desconforto de Lore,
Alie dera por isso. Abanou levemente a cabeça, agitando os caracóis quase
brancos.
A outra mulher encolheu exageradamente os ombros.
– Como queiras. – Vagueou na direção do resto da sua equipa,
oferecendo a Bastian e a Olivier um gole do seu cantil. Olivier aceitou, mas
Bastian rejeitou, o brilho escuro dos seus olhos arqueando na direção de
Lore no outro lado do relvado.
O jogo terminou rapidamente, com Bastian a ser o último a fazer a bola
passar pelo aro. Cecelia e Olivier rapidamente se despediram, informando
que tinham de marcar presença num jantar. Quando se afastavam, Cecelia
espreitou para Lore por cima do ombro.
– Se mudares de ideias – disse ela com um aceno –, avisa-me! Fazemos
uma festança!
Lore cingiu a mão num punho no flanco, escondida na esvoaçante saia
violeta do seu vestido.
Bastian aproximou-se com o seu taco assente nos ombros, franzindo o
sobrolho à partida de Cecelia e do irmão.
– Sobre o que é que haverias de mudar de ideias, Lore?
– Não interessa. – Concentrou-se em descerrar os punhos. Em inspirar
fundo e largar o ar. – Não vou mudar de ideias.
Ele arqueou uma sobrancelha escura.
– Não estamos a falar de veneno, pois não?
Lore nada disse.
– Quem me dera que não – comentou Alie, discretamente. Cruzara os
braços sobre o peito, os dedos remexendo ansiosamente nas mangas. – Sei
que ela tem um bom motivo, tanto quanto alguém pode ter, mas ainda assim
gostaria que não fosse isso.
– Nenhum motivo é bom para alguém se envenenar. – Gabe mantinha-se
imponente no limite do grupo, com um ar amargurado, de taco na mão
como quem segura um cassetete. – Alterar intencionalmente o equilíbrio do
Spiritum e da Mortem num corpo humano desrespeita os Opúsculos.
– Gabe, há mais sobre o certo e o errado do que aquilo que consta dos
Opúsculos. – Alie não se mostrava irritada, mas Lore sentiu na voz dela um
tom até aí ausente.
Gabe reparou nisso. Viu-se a surpresa na sua expressão.
– Até ao baile de máscaras, não me apercebera que a Cecelia era adepta
do envenenamento – disse Bastian, assumindo o controlo da conversa e
dando-lhe o rumo que desejava.
– Começou agora – suspirou Alie. – E tem os seus motivos.
– Sendo a pedrada o principal deles, calculo – comentou Bastian
secamente.
– Não é isso. Ou não é só isso, de qualquer modo. – Alie abanou a
cabeça. – Está doente. Não é extremamente agressivo, dizem os médicos,
mas o suficiente para a sua esperança de vida ser… menor. Começou a
ingerir beladona na esperança de que isso lhe acrescentasse uns anos. –
Massajou a testa. – Ora bem, é evidente que não devia tomar tanto quanto
tomou na noite do teu baile de máscaras, Bastian, mas está assustada.
O calor da ira tomou as faces de Lore; desviou o olhar para que nenhum
deles reparasse. Independentemente das razões de Cecelia, não deixava de
ser verdade que os seus privilégios de nobre a impediam de enfrentar as
mesmas consequências de alguém que vivesse no exterior da Cidadela. Lore
conhecera várias pessoas que ingeriram veneno devido a doença,
necessitando disso para prolongar a vida de forma a poderem tratar de entes
queridos. Havia traficantes de morte que serviam apenas esse tipo de
clientes – Val e Mari traficavam de graça para esses, cobrando mais aos
outros traficantes de morte para compensar.
Mas quando tais clientes eram apanhados, ninguém queria saber dos seus
motivos. Ilhas Queimadas para todos.
E, aparentemente, o veneno que pagavam a tanto custo ia antes parar às
taças da nobreza.
O brilho intenso no olhar de Gabe indicava que estava a seguir a linha de
raciocínio de Lore. Largou o taco e cruzou os braços.
– Há imensa gente fora da Cidadela assustada por razões semelhantes –
disse ele. – Mas não podem andar por aí com um cantil de chá de beladona.
– Não defendo que seja correto – disse suavemente Alie. – O modo
como ela o obtém é tudo menos correto. Mas entendo porque o consome.
Entendo que se tema a morte, desejando fazer tudo o que for possível para
garantir que não nos apanha antes de estarmos preparados.
Bastian nada disse, apoiando-se no seu taco, com um franzir de testa
pensativo.
– É melhor também ir andado – disse Alie ao fim de um momento.
Apontou para Lore enquanto voltava para trás na direção da Cidadela. –
Prometeste treinar, não te esqueças! Vemo-nos no lanche, se não for antes!
– Vemo-nos lá, então. – Lore acenou e conseguiu sorrir.
Depois ficaram, ela, Gabe e Bastian, sozinhos no relvado tranquilo. O
silêncio abateu-se sobre eles como argamassa entre tijolos, cada vez mais
impossível de quebrar conforme o tempo passava.
Não tiveram de quebrar o silêncio. Um criado abeirou-se timidamente
deles, segurando um envelope entre finos dedos brancos. O seu olhar
incidiu nervosamente em Bastian, para depois se desviar, como se tentasse
perceber se seria capaz de concluir a sua tarefa com o Príncipe Sol por
perto. Decidiu que sim e entregou o envelope a Lore, aparentemente a
menos intimidante do trio, e afastou-se de pronto.
Remaut, lia-se no envelope. Numa caligrafia grossa, desta vez, não na
letra sinuosa de Alie.
Ela ergueu o olhar para Gabe e sacudiu o envelope entre dois dedos.
– Três hipóteses.
– Preciso apenas de uma – disse Bastian, animado.
Gabe ignorou-o ao pegar no envelope, que rasgou para abrir. Passou
rapidamente o único olho pela folha antes de olhar para Lore.
– August. Na sala do trono, mal nos seja possível.
– Alguma hipótese de esse mal nos seja possível ser depois de uma
sesta?
– Pela minha experiência com o meu pai, mal seja possível significa
«mexam-me esse cu e venham de imediato». – Bastian apoiou o taco no
ombro e afastou-se descontraidamente. – Divirtam-se. Estou mortinho por
saber as novidades.
E laacordada,
sentia a mente lenta, a boca amarga, os membros pesados. Nem
nem verdadeiramente a dormir, mas algures entre uma coisa e
outra, onde o ar sabia a ranço e a minerais, onde nada era suave.
Lore sabia que estava a sonhar – ou algo do género –, mas isso não lhe
travou a pontada de medo no peito ao ver o túmulo. Parecia maior do que se
recordava, um bloco de obsidiana a reluzir num preto tipo céu noturno. A
pairar como uma fatia da própria terra, preparado para a sepultar por baixo,
esmagá-la sobre si mesma e torná-la parte integrante do que quer que
estivesse no interior.
Ela moveu-se com a lentidão densa dos sonhos, o flutuar que não
reconhecia a existência de braços ou pernas, transformou-a numa massa de
pensamento e matéria sem peso. Lore tentou recuar face ao túmulo de
Nyxara, achando que rastejava ao estilo de um caranguejo, mas não sentiu
nenhuma bicada de xisto nas mãos, nenhum roçagar de tecido sobre o chão.
Contudo, por muito que se afastasse, o túmulo permanecia à mesma
distância em relação a ela, como se fosse um cão e ela a trela. Como se
estivessem agrilhoadas, ela e a deusa lá sepultada.
Vindo por momentos à superfície, a boca dela transpôs a água negra
tempo suficiente para respirar.
– Está viva. – Uma voz que ela conhecia profundamente bem, que a
levava inexplicavelmente a pensar em fogo, incenso, raiva tensa e árvores a
arder. – Está viva, mas não desperta.
– Há de despertar. – A outra voz era-lhe desconhecida, em nada
semelhante à que reconhecera primeiro. Baixa, abafada, falando de longe
enquanto a primeira soava clara a cristalina. – Precisa de tempo.
– Já lá vão três dias…
– Viste o que ela fez. – O tom não era verdadeiramente acusatório, mas
as palavras não deixavam de ser cortantes. – Uma coisa assim tem uma
recuperação demorada.
Silêncio da parte da outra voz, aquela que ela conhecia.
Lore regressou ao fundo.
S ilêncio, de tal modo absoluto que parecia ecoar nos ouvidos de Lore.
August estava a morrer. Isso explicava o facto de andar a tomar veneno,
bem como o desejo de se ver livre de Bastian para poder nomear um
herdeiro diferente caso o veneno não surtisse efeito. Não lhes revelava nada
sobre o que realmente se passava nas aldeias, pelo menos não diretamente,
mas ela não se livrava da sensação de que tudo estava ligado.
– Espera. – Gabe levantou a mão como que a solicitar mais silêncio,
embora fosse nisso que já todos tivessem caído há uns minutos. – Há
quanto tempo está ele doente? E porque não nos contaste antes?
– A verdade é que só soube hoje. – Bastian apoiou uma anca na mesa e
brindou Gabe com um olhar exausto. – Andava a vê-lo beber daquele cantil
mais do que o habitual e, pelo cheiro, percebi que não eram apenas bebidas
alcoólicas. Quando a Alie nos falou do problema da Cecelia, ocorreu-me
perguntar aos médicos do August. Um suborno chorudo levou o médico
assistente a entregar animadamente os registos. Recebi-os há cerca de duas
horas, depois de muito bem compilados para me facilitar a leitura. – Apoiou
um cotovelo no vidro. Malcolm fez um som abafado e, com um olhar quase
arrependido lançado ao bibliotecário, Bastian recuou de novo. – Entrei às
escondidas no escritório do August para ver se descobria algo relacionado
com as aldeias, mas tudo o que encontrei foi esse livro sobre
transubstanciação.
O facto de ele ter ido espreitar – de também sentir que tinha de haver
uma ligação entre tudo aquilo –, solidificou a ideia na mente de Lore. Esta
mordeu o interior da bochecha, a ponderar a sua pergunta seguinte. Não
havia forma de lhe dar voz sem soar a traição e, apesar de já estarem
comprometidos, ainda assim sentiu-se nervosa.
– Bastian, acha… será possível que o August ande a chacinar as aldeias?
Nenhum som de surpresa, nenhuma sobrancelha erguida. Todos tinham
chegado à mesma horrível conclusão.
– Eu acho que ele está envolvido – respondeu Bastian. – Mas isso não
nos revela nada sobre o como. É muita coincidência que tudo isto comece a
acontecer precisamente quando ele adoece e quer escolher um novo
herdeiro. Mas não me ocorre nenhuma teoria plausível para o modo como
conseguiu matar tanta gente de tão longe, sem deixar quaisquer vestígios.
Nem sobre o que ganha com isso. Deve haver uma forma mais fácil de
incriminar alguém.
Malcolm estendeu o braço e tocou ao de leve no livro.
– Isto poderá ter algo que ver com isso. Utilizar transubstanciação
para… sei lá, passar a doença dele a outras pessoas?
– Pensava que tinha dito que isso não funcionava – frisou Lore.
O bibliotecário ergueu as mãos.
– Eu não sei. É tudo teoria. A Mortem e o Spiritum são ambos poderes
divinos; não foram concebidos para serem utilizados por parte de humanos.
É por isso que todos os deuses tiveram de ascender de formas humanas,
tornar-se algo diferente. É completamente possível, provável, até, que haja
aspetos de ambos para os quais não temos contexto, que basicamente somos
incapazes de compreender.
– Temos de contar ao Anton.
A voz de Gabe soou baixa, mas trespassou a sala como uma faca. Ele
olhava em frente, para o vidro e para o livro por baixo.
– Não podemos, Gabe. – Lore tentou falar num tom brando, mas não
conseguiu amaciar a pontada de irritação. – Foi o próprio Anton que veio
buscar o livro.
– Isso não significa que esteja envolvido. – O Presque Mort levantou-se
da mesa, lançando um olhar fulminante a Lore. – Podia estar a tentar
investigar o que andava o August a fazer, ou a tentar resolvê-lo, de alguma
maneira.
– Mas não podemos arriscar…
– Porque haveria ele de trazer-te aqui se não quisesse que descobrisses o
que se passa? Se não queria pará-lo? Pensa, Lore. Porque é que o Anton, ou
até o August, traria uma necromante para perguntar aos corpos como
morreram se eles já o soubessem? Se estivessem envolvidos, merda!
– Tento na língua, Vossa Graça – disse Bastian em voz baixa.
Um olho azul ardeu de raiva quando Gabe o fez incidir no príncipe,
regressando depois a Lore.
– Não faz sentido – disse ele por fim. – A resposta mais simples costuma
ser a correta e a resposta mais simples é que, de alguma maneira, é Kirythea
quem está por detrás disto. A tentar iniciar uma guerra para finalmente
também se apoderar de Auverraine.
– Para ti, vai sempre dar tudo a Kirythea. – Bastian deu uns toquezinhos
no vidro. – Talvez não sejas a pessoa mais imparcial para avaliar isto,
Remaut.
As mãos do Presque Mort cerraram-se em punhos. Deu mais um passo
para a mesa.
– Gabe – avisou Malcolm.
O som do seu nome proferido pelo velho amigo bastou para fazer relaxar
um pouco os ombros de Gabe. Desviou o olhar de Bastian e, desgastado,
passou uma mão pelo rosto.
– Eu não pude despertar outro corpo que não fosse o que o Anton e o
August escolheram – disse Lore, calmamente. – E não me quiseram
presente quando começaram a fazer perguntas. Talvez a ideia não fossem as
perguntas, mas o despertar. Talvez de alguma forma o tenham disfarçado
com isso. Como, não sei. – Apontou a mão para o livro sob o vidro. – Mas
parece haver muito que não sabemos.
– Então, a solução passa por descobrir um corpo que não tenham
escolhido para ti. – Bastian olhou para o chão, os lábios contorcidos ao
refletir. – Um daqueles que esconderam algures.
– Exato. – Lore espreitou para Gabe, ainda calado, ainda ameaçador. –
Então, basicamente regressámos ao ponto de partida.
– Com o bónus de um rei a morrer lentamente, pelos vistos – acrescentou
Malcolm. Com um suspiro, sentou-se na mesa. – Ao que parece, agora
estou envolvido nisto e, dado que não anseio por uma estadia prolongada
nas Ilhas, vou tornar-me útil e ler este maldito livro. – Ergueu uma
sobrancelha a Gabe. – Coteja os Compêndios ali na mesa. Isso vai manter-te
ocupado e pode vir a revelar algo novo. Eu já olhei para eles até ficar vesgo.
– E eu, o que faço? – perguntou Bastian, animado.
– Não me atreveria a dar ordens a um príncipe.
– Vá lá, Malcolm, estás chateado por causa da ameaça das Ilhas
Queimadas? Compreendo, mas estou de mãos atadas. Desculpa a pobre
escolha de palavras.
Os olhos negros de Malcolm reviraram na direção do teto, como se
implorasse a Apollius por um momento de paz.
– Procure nas notas dos sermões. Veja se descobre algo.
Todos se lançaram às suas tarefas numa concentração silenciosa. Não
fora atribuída uma tarefa a Lore e ela não tinha propriamente vontade de
pedir que o fizessem, pelo que se aproximou de Gabe, sentando-se junto
dele na outra mesa comprida.
– Lamento – disse ela, pois nada mais lhe ocorria.
– O quê? – Ele não olhou para ela, o olho fixo numa página protegida
por vidro, mas não estava efetivamente a ler, apenas a olhar.
– Não sei. – Com um suspiro, entrelaçou as mãos sobre a mesa,
assentando lá a cabeça. – Tem razão ao dizer que o August e o Anton não
me trariam até cá para descobrir a verdade se já a conhecessem e não me
ocorre outra razão para me quererem na Cidadela… Como o Bastian disse,
haveria por certo formas mais fáceis de incriminar alguém. Isto tanto pode
ser uma enorme conspiração como apenas uma série de mal-entendidos.
Mas temos de saber.
Gabe permaneceu por uns momentos em silêncio. A seguir, disse:
– Há outra possibilidade.
– Qual?
– Talvez eles não te queiram aqui para saber das aldeias. – Remexeu-se
na cadeira. – Talvez o Anton planeie algo que nos salve a todos… que nos
salve de Kirythea, que salve as aldeias, que salve até o Bastian do August. E
talvez tu faças parte desse plano.
– Isso parece-me muito rebuscado.
Ele encolheu os ombros com desconforto.
– Eu só quero… – Interrompeu-se com um suspiro. – Eu só quero que
isto termine de uma forma com a qual eu possa viver.
E Anton no papel de vilão não era algo com que ele conseguisse viver.
Lore não sabia o que dizer. Assim, manteve-se em silêncio, com a
cabeça apoiada nas mãos, embalada pelo folhear das páginas e pelas luzes
ténues da biblioteca, os olhos a fecharem-se aos poucos.
Areia branca. Água azul. Céu azul.
Lore sentia, como sempre, a mesma figura insubstancial junto dela. Mas
algo parecia agora mais sólido, como se ela se tivesse aproximado, embora
a distância parecesse ser a mesma.
Rodou os olhos, o movimento a requerer muito mais esforço do que era
suposto. Mas apesar de ter havido um breve momento de corporalidade,
quando o vulto quase assumiu uma forma que ela reconheceria, desapareceu
num ápice.
– Ora bem – murmurou a voz desprovida de textura, imiscuindo-se no
seu sonho. – Vamos lá tentar outra vez, dado que já tiveste tempo.
Um puxão no coração, desta vez doloroso, como se uma mão lho
arrancasse do peito como um fruto. Um grito mudo contraiu-lhe a boca
enquanto lhe saía fumo do peito, enrolando-se até ao céu, contorcendo-se
sobre o azul.
– Lore.
Algo no ombro dela. Uma mão, a sacudi-la.
– Lore.
Com um esforço consciente, ela abriu os olhos.
Gabe franziu a cara ao olhar para ela desde o seu lugar no banco, mas a
mão no seu ombro era de Bastian. Ele tocou-lhe na testa, e depois
endireitou-se, olhando ostensivamente para o relógio na parede.
– Se nos despacharmos, ainda chegamos a tempo.
A tempo? Ela contou os dias para trás, tentando perceber ao que se
referiria ele…
– Merda. – Levantou-se de repente da mesa, passando uma mão pelo
cabelo desalinhado. – Tenho de ir a um lanche.
[2] Retirado do Compêndio depois de Margot D’Laney, Segunda Sacerdotisa da Noite da Guarda
Sepultada, tentar abrir o túmulo de Nyxara em 200 DQD.
Capítulo 29
D ezPresque
minutos e um punhado de ouro de Bastian mais tarde, Lore, o
Mort e o Príncipe Sol estavam no limite exterior do ringue de
fardos de feno à espera da chegada da adversária dela.
– Sei que o objetivo é perder – disse Bastian, envolvendo os nós dos
dedos dela em pano de linho branco –, mas pelo menos tenta oferecer-lhes
um espetáculo. Duvido que alguém te aborde para transportares carga se
fores ao tapete ao primeiro soco.
– Vou dar o meu melhor. – Sentia-se demasiado nervosa para pensar em
condições.
Junto dela, Gabe tinha um ar zangado, o maxilar tenso o suficiente para
eriçar os pelos curtos e ruivos da sua barba.
– Não gosto nada disto.
– Também não estou propriamente entusiasmada. – Lore agitou os
joelhos, a energia nervosa a implorar-lhe que se movesse. –
Espantosamente, não sou muito boa a lutar com os punhos.
Bastian parou de enrolar o pano e arqueou uma sobrancelha.
– Eras traficante de veneno e não eras boa a andar ao soco? Eras boa em
quê?
Ela mostrou os dentes.
– A traficar.
– Não é preciso muita habilidade para lutar – frisou Gabe. – O instinto
de sobrevivência impõe-se. E isso não te falta.
– Discutível – murmurou Bastian. Gabe e Lore fingiram que não
ouviram.
Após um momento, Gabe suspirou, como se por fim se resignasse face
ao que estava prestes a acontecer.
– Aponta às rótulas.
– Ah, sim. – Bastian atou os panos das mãos. – As rótulas são os olhos
das pernas.
Ambos olharam para ele. Então, Gabe encolheu os ombros.
– É efetivamente um excelente conselho.
– Excelente ajuda, de ambos. – Lore movimentou os dedos, lutando
contra a ansiedade entorpecedora que lhe corria pela espinha.
Do outro lado do ringue, a multidão apartou-se. Uma rapariga com
cabelo acobreado em longas tranças e uma expressão de quem cheirou leite
estragado saltou sobre os fardos de feno e parou, anca empinada, braços
cruzados. Seria uns cinco centímetros mais baixa do que Lore, mas tinha
uma constituição redonda e musculada.
– Bem, que forma horrível – murmurou Bastian. – Nem sequer tem os
nós dos dedos ligados.
– Acho que ela não precisa. – Lore mirou as mãos da outra rapariga, uma
confusão de pisaduras e articulações inchadas, sinais de uma lutadora
veterana.
Cerrou os punhos. Sentiu a pulsação nos dedos, como se fossem
corações externos.
O juiz barbudo avançou para o centro do ringue.
– Última chamada para apostas.
– Se descobrem que perdi de propósito, serei perseguida pela cidade com
forquilhas – disse Lore.
– Então, é bom que faças com que não pareça que perdes de propósito –
replicou Gabe.
Quando o homem barbudo lhe fez sinal com o dedo, Lore avançou, com
as últimas palavras de encorajamento hesitante de Gabe e Bastian a serem
abafadas pela torrente de sangue a pulsar-lhe nos ouvidos. A sua adversária
aproximou-se, fitando-a de alto a baixo e terminando num sorriso
desdenhoso.
Lore sentiu-se muito irritada por ter de perder.
– As apostas estão feitas – avisou o juiz. – Vamos lá ver qual de vocês
envia a outra primeiro para o seu inferno pessoal, minhas senhoras!
Vaias e apupos ecoaram pela rua do porto. Lore deteve-se à espera do
sinal oficial a anunciar o início do combate. Surgiu com um soco na barriga.
A rapariga ruiva tentou pontapeá-la enquanto Lore se encontrava ainda
curvada sobre o estômago dorido, mas ela apercebeu-se e desviou-se com
um salto. A sua adversária, assustadoramente imperturbada, deu-lhe com a
palma aberta da outra mão na orelha e Lore ajoelhou-se, com os ouvidos a
zumbir.
– Acerta-lhe pelo menos uma vez! – A voz de Bastian, a gritar do
exterior do ringue.
– Estou a tentar – disse Lore, com os dentes cerrados.
Olhou para cima – a outra rapariga caminhava lentamente em redor do
círculo, um sorriso feroz no rosto, os aplausos do público a encorajá-la a
levar o seu tempo contra uma oponente visivelmente mais fraca. Lore foi
respirando fundo conforme a outra se aproximava, desejando que o seu
estômago se expandisse, empurrando mentalmente a dor para a periferia.
Remexeu o corpo dorido – rabo no chão, pernas dobradas diante dela, mãos
unidas atrás. Um esforço frouxo deu a impressão de que estava a tentar
levantar-se, sem o conseguir, o que serviu apenas para espicaçar o sorriso
da ruiva.
A rapariga aproximou-se por fim o suficiente, mas Lore não atacou,
ainda não. A outra inclinou a cabeça e fitou-a como alguém poderia olhar
para uma criança mimada.
– Até te dava a oportunidade de desistires, mas preciso de treinar. –
Fechou o punho e puxou o braço atrás.
A posição sentada de Lore deixava-a com os olhos ao nível do estômago
da outra rapariga. Perfeito.
Perna a levantar, apoiando-se nas mãos atrás, uma olhadela rápida para
se assegurar de que apontava bem, tudo num segundo. Lore pontapeou a
rótula da outra rapariga e esta caiu estendida para trás com um urro rouco
de dor.
– Os olhos das pernas – murmurou Lore, levantando-se do chão.
A multidão aplaudiu, as lealdades mudando como o estado do tempo.
Bastian festejou, mas Gabe pareceu preocupado. Queria que ela desistisse,
ela via-o no seu olhar, mas não lhe parecia que a adversária lhe desse tal
oportunidade, em especial agora.
Então, seria para perder em grande. Lore encolheu-se por antecipação.
– Vais pagar por isso. – A outra rapariga sacudiu a perna, mal coxeando,
embora a agonia estivesse patente no ricto da sua boca ao correr para a
frente.
– Sim, calculo que vá. – Lore suspirou.
– Parem com a luta!
Os gritos vieram das ruas atrás na direção da cidade, acompanhadas
pelos sons de botas no empedrado. Os aplausos da multidão transformaram-
se em gritos de surpresa.
– Casacas de sangue! Dispersem!
O ringue de feno foi abandonado; espectadores e lutadores em espera
deram à sola, desaparecendo em vielas quando um grupo de casacas de
sangue irrompeu na rua, as baionetas a refletir o brilho cor de laranja dos
candeeiros de rua. Pareciam lanças de chamas.
A rapariga com quem Lore estivera a lutar praguejou e deu a volta para
fugir com a sua perna magoada. Nem sequer olhou de novo para Lore. A
vingança passa para o fundo da lista de prioridades quando escapar às Ilhas
Queimadas figura no topo.
Uma mão no braço dela, empurrando-a em frente. Gabe.
– Vamos. Isto era um beco sem saída.
Correram com a multidão pelas ruas fora, os sons de capturas e disparos
ocasionais espicaçando-os a seguir em frente, até Bastian sair de repente de
uma viela estreita.
– Por aqui!
Gabe não amainou a passada ao virar, impulsionando ambos para a
segurança relativa da escuridão. Lore encostou-se à parede, braços cruzados
sobre o estômago. Ainda lhe doía do soco, e a corrida inesperada em nada
ajudara.
– Temos de regressar à Cidadela antes que isto se descontrole. – Bastian
parou mesmo na esquina da viela, a sombra numa parte do seu rosto ao
espreitar para a rua. Um grupo de casacas de sangue passou a correr e ele
encostou-se à parede, desaparecendo na escuridão. – Regressamos
amanhã…
– De maneira nenhuma. – Gabriel impôs-se no centro da viela húmida,
uma voz empedernida, a expressão ainda mais pétrea. – Este plano era
estúpido desde o início.
Bastian olhou para trás por cima do ombro, os candeeiros de rua a
revelar o brilho dos seus dentes. Lore recordou a última vez que estivera
numa viela com o Príncipe Sol, como ele mudara tão depressa de membro
da realeza ocioso para algo sarcástico e irado.
– Tens um plano melhor? – perguntou ele, a voz ao nível do tom afiado
de Gabriel.
– Tem de haver – reagiu Gabe. – Podemos falar com…
– Isso não vai resultar – disse Lore, calmamente. – Sabe bem que não,
Gabe. A única forma de descobrir quem trata da contratação será tratando
nós disso. – Apontou para a entrada da viela. – Uma rusga a ter lugar esta
noite é um sinal. Estamos no caminho certo e alguém sabia que vínhamos.
Gabe virou-se para ela, o olho azul ardente através da máscara de
dominó.
– Não imaginas o quanto é perigoso continuar a fazer isto. Continuar a
vir aqui…
– Eu sou daqui. – Conseguiu endireitar-se, apesar da dor no estômago, e
lançar-lhe um olhar fulminante. – Já lhe ocorreu que pode estar a levar
longe de mais o seu papel protetor?
Não planeara dizê-lo, não sabia que forma assumiria a sua ira, medo e
irritação até as palavras serem forjadas e lançadas. Os três paralisaram,
sabendo que aquela era uma porta que se abria para algo muito maior do
que aquilo para que de momento tinham tempo para lidar.
Gabe avançou um passo, olho azul a cintilar.
– Preferias que te lançasse aos lobos vezes sem conta para servir os meus
planos? – Não olhou para Bastian, mas não era necessário. A acusação saiu
como uma flecha e o alvo era óbvio.
O olhar de Bastian teve um forte impacto em Lore. Ele sabia o que ela
era, de onde viera, que seria capaz de sobreviver a uns lobos. Sabia que, se
fosse feita de vidro, havia muito que se teria estilhaçado.
Gabe não conhecia esses pormenores tão bem como Bastian.
Talvez estivesse na altura de tratar disso.
Lore inspirou fundo.
– Gabe, há algo…
Mas foi interrompida por uma forma vinda das sombras que lhe embateu
nas costas.
O seu estômago já dorido pareceu prestes a pegar fogo, enquanto o
crânio chocava contra a parede suja. Através do retinido agudo nos ouvidos,
ouviu Gabe gritar, ouviu sons de punhos a atingir carne, um rosnido que só
poderia ser de Bastian.
A pancada na cabeça deixou-lhe a visão turva, mas, a custo, Lore
conseguiu abrir os olhos.
– Não aprendeste a lição, pois não? – Havia algo de familiar naquela
voz; já a ouvira antes. Mas parecia-lhe mais ressequida, como se a garganta
onde a ouvira antes tivesse sido arranhada. – Quero lá saber que sejas
príncipe. Quero lá saber que sejas uma dama. Preciso de mais dinheiro e sei
que vocês, seus merdosos, o têm.
A visão de Lore começou a estabilizar aos poucos, apercebendo-se
melhor do vulto que tapava a luz do candeeiro a gás. Ele parecia bastante
pior do que da última vez – a sua constituição robusta vergara-se, como se
lhe faltasse a força para se aguentar direito, e traços de pedra cinzenta
entrecruzavam-se onde deveria haver veias –, mas ela reconheceu-o. Milo,
o brutamontes que tentara sacar a Bastian mais do que ele devia da aposta
da última vez que tinham ido ao ringue.
Gabe estava encolhido contra o tijolo sujo, consciente, mas atordoado,
roxo-escuro a espalhar-se pela têmpora. Via-se o punho do punhal de
Bastian cravado no ombro de Milo, mas o homem não parecia sequer senti-
lo. As suas veias estavam tão cheias de pedra que era um milagre a lâmina
ter sequer perfurado a pele. O homem tomara uma dose que o tinha deixado
na iminência de se tornar uma aparição.
Bastian estava dobrado sobre si mesmo no centro da viela, de braços
cruzados sobre a barriga. Milo também lhe acertara com um golpe de
punhal. Carmesim perpassava a camisa de Bastian, negro como a noite sob
a luz débil, pingando suavemente sobre o chão pejado de lixo.
Milo rodou a faca ensanguentada.
– Quero lá saber quem és – murmurou naquela voz empedernida e
arranhada. Um sorriso mudo ergueu-lhe os lábios, os olhos desfocados e
vidrados com uma pedrada eufórica de veneno. – Desta vez morres.
O tempo abrandou. Algo cristalizou na mente de Lore, completamente
formado, um instinto que ela sabia que deveria seguir.
– Ponha-se a andar – disse ela a Bastian, a sua voz de alguma maneira
forte apesar das dores no estômago e da cabeça a retinir.
Fosse qual fosse o conhecimento profundo que ela seguia, pareceu que
também ele o conhecia. Bastian pressionou a sua mão com mais força sobre
a barriga e cambaleou pela viela na direção oposta, o mais possível para
longe de Lore e Milo, mais depressa do que deveria ser capaz de correr com
o ferimento que tinha.
Milo moveu-se para o seguir, mas Lore foi mais rápida. Com Bastian
mais longe, foi simples chamar a Mortem, fluindo de paredes de pedra, do
lixo amontoado nos cantos, do aço frio do punhal que naquele preciso
momento cortava o ar na direção dela.
Revelou-se mais forte do que nunca, uma onda que deveria ter-lhe
subjugado os sentidos. Mas Lore agarrou o poder, e agarrou-o facilmente.
De mãos estendidas e com a visão a assumir tons cinzentos enquanto ela
sustinha a respiração e pousava no lugar onde a morte era visível, a morte
era uma ferramenta. Lore canalizou Mortem através do seu corpo, as veias a
enegrecer e os olhos a ficarem opacos, o coração a imobilizar-se no seu
peito por um instante.
Quase sem pensar, pegou em toda aquela morte e lançou-a contra Milo.
Tecer morte era como inspirar ar, como uma parte intrínseca de si que
estava apenas à espera de florescer. Antes, fizera-o sem pensar, a sua
capacidade nata a tornar simples algo a exercer com tanto cuidado. Mas
agora prestava atenção e regozijava-se com aquilo que conseguia fazer.
Lore girou a Mortem como uma linha, enrolando-a em redor do homem
como uma mortalha. Tal como as rosas no jardim, simplesmente envolvidas
em pedra, simplesmente congeladas. Apenas o suficiente para a inércia,
apenas o suficiente para o deter, pois não tinha outra hipótese.
Vês como o fazes facilmente, filha da escuridão?
A voz era débil, mas bastou para lhe quebrar a concentração. Sacudiu a
cabeça e abriu os olhos.
Milo era uma pedra. A ponta da faca cintilava a meros centímetros do
pescoço dela. Esperava que o rosto dele tivesse paralisado num grunhido,
mas, em vez disso, a expressão que ostentava era de terror.
– Tu… – Gabe estava pasmado, livre do seu atordoamento, abrindo e
fechando as mãos no ar enquanto se levantava. – Tu não devias…
– O que é que achas que ela deveria ter feito, Remaut? – Bastian vinha
em passada larga do fundo da viela. Tinha a camisa manchada com sangue,
mas já não a agarrava, não caminhava como um homem ferido. – Valsar
com ele?
Gabe não respondeu. Encostou-se à parede e fitou a estátua que Lore
criara a partir de um ser humano vivo.
Milo. Ele fora uma pessoa, com um nome e um trabalho, mesmo que
esse trabalho passasse por extorquir apostas de partidas ilegais de boxe.
Uma pessoa que ela transformara em pedra. Estaria ainda consciente,
algures no meio de tudo aquilo? Teria dores?
Ela abanou a cabeça. Não queria saber.
Lore não olhou para Gabe. Sabia que a sua expressão seria muito pior do
que fora no dia da fuga de Mortem e ela não aguentaria, não conseguiria
enfrentar aquilo, não, havendo tanto a fazer.
– Como está a sua barriga? – perguntou ela a Bastian, numa voz fina e
tremente.
Ele espreitou para baixo como se se tivesse esquecido, fazendo uma
careta ao olhar para a camisa ensanguentada.
– Bem – respondeu ele. – Deve ter sido um arranhão.
Fora mais do que isso. Pelo menos, Lore tinha achado que era. Mas,
quando ele levantou a camisa, a pele estava imaculada, marcada apenas por
uma mancha de sangue seco.
Sentiu uma mão no ombro dela – Bastian, gentilmente a afastá-la da faca
estendida na mão empedernida de Milo. Os dedos dele deslizaram-lhe para
a nuca, para o cabelo; o polegar roçou-lhe a face, e depois soltou-a e
afastou-se.
– Certo – disse ele, com um aceno de cabeça determinado. – Bem. Não
podemos deixá-lo aqui e calculo que ainda não estejas com vontade de
voltar a alterá-lo.
– Se isso for possível. – A voz de Gabe soou discreta e rouca. – Se
conseguirmos alterá-lo de novo.
– Seja como for, temos de o tirar daqui. – Havia uma carreta encostada à
parede na outra ponta da viela; Bastian foi lá e puxou uma das pegas.
Aquilo moveu-se, mas com um chiado horrível. – Para onde, é que não faço
ideia.
– Eu faço – disse Lore. Sentiu os lábios entorpecidos. – Sei para onde
podemos levá-lo.
Milo não deu sinais de despertar, nem sequer quando Gabe e Bastian lhe
pegaram nos braços e nas pernas e o levaram do armazém. Mari sugerira
que o deixassem ficar numa das camas, mas Val recusara.
– Ele tem a cabeça afetada por veneno e há aqui muito para roubar –
retorquiu ela, e indicou que havia um armazém ao fundo do beco onde as
pessoas iam dormir depois de beber de mais. – Se se recordar de algo, com
sorte acha que é uma alucinação. Os deuses sabem que está bem habituado
a elas.
A resmungar, Gabe e Bastian arrastaram o peso morto do homem sobre o
empedrado áspero, a respiração deles gerando nuvens no ar. As botas na rua
e o sopro harmonizavam-se com o som suave da maré a chegar, sinos
distantes em proas de navios.
Val encaminhou-os por vielas estreitas, aproximando-se de um armazém
escuro, onde empurrou gentilmente a porta. Rangeu, mas se o som
despertou alguém no interior, ninguém se queixou. Bastian e Gabe
pousaram Milo no chão e partiram rapidamente, em silêncio. Ele nem se
mexeu.
– Vocês são muito sorrateiros – comentou Val assim que chegaram todos
ao exterior. – Já pensaram dedicar-se ao tráfico de veneno?
Gabe pareceu chocado, mas Bastian encolheu os ombros.
– Na verdade, nem por isso, mas nunca digas nunca. Embora a minha
atual agenda não mo permita.
– É uma pena. – Mari abanou a cabeça. – A nossa equipa nestes últimos
dias anda a perder elementos a grande velocidade.
– Detenções? – perguntou Lore, baixinho. As operações de Val podiam
ter passado recentemente à legalidade, mas os casacas de sangue eram
conhecidos por deter qualquer pessoa de que não gostassem.
– Se fosse assim tão simples… – Um riso expeliu vapor da boca de Mari,
enovelando-se no ar como fumo. – Os nossos mais leais ainda andam por aí,
tudo gente que conheces, ratinha, não te preocupes, mas os tipos mais novos
estão sempre a ser levados. – Prendeu com mais força o nó do lenço,
retorcendo os lábios. – Acho que receber o suficiente para pagar a renda por
um ano com uma noite de trabalho é uma proposta difícil de suplantar.
Todos registaram as palavras em simultâneo. Bastian arregalou os olhos.
Os lábios de Gabe formaram uma linha tensa. Lore sentiu o coração
acelerado.
– Estás a par das movimentações de carga?
– Carga – disse Val, num tom trocista. – É contrabando, só pode ser.
Ninguém paga tanto dinheiro para transportar algo legal.
– Oh, não tem nada de legal. – Mari resfolegou. – O Phillip deixou
escapar uns pormenores quando veio cá despedir-se e ao aperceber-se disso
até parecia que tinha assinado a própria sentença de morte. Tive de lhe
prometer pelas alminhas durante quase uma hora que não contava a
ninguém.
– Tem alguma informação sobre para onde o transportam? – Gabe
parecia estar a levar a cabo um interrogatório. Lore franziu-lhe o sobrolho.
Ele não lhe ligou. – Ou algo sobre quem está realmente a contratar?
Val lançou-lhe um olhar gélido.
– Creio que a Mari acabou de dizer que prometeu a um amigo não
revelar nada.
Lore sentiu a pele dos ombros a arrepiar. A última coisa de que
necessitava era de que Gabe se envolvesse numa discussão com Val. Estava
certa de que Gabe perderia.
Bastian, pelos vistos, pensou o mesmo.
– É evidente que nunca quereríamos que alguém voltasse atrás numa
promessa – interrompeu ele com um sorriso. – Peço desculpa pela
impertinência do meu amigo.
Se um olhar conseguisse pegar fogo a alguém, o olhar fulminante que
Gabe lançou a Bastian tê-lo-ia reduzido a cinzas.
Mari cruzou os braços e pensativamente mordeu o lábio.
– Isto é uma informação de que precisas, não é? – perguntou ela
baixinho a Lore. – Lá para o que te puseram a fazer na Cidadela. O que
significa que é mais do que apenas transportar contrabando.
– Sim – respondeu Lore. Nunca fora capaz de mentir a Mari. Ela
conseguia perceber tudo, mesmo quando tentava disfarçar.
As mães dela entreolharam-se.
– Podes contar-nos algo, Lore? – perguntou suavemente Mari.
Ela queria contar. Queria despejar tudo – os corpos, as mentiras, os
mistérios esotéricos que sabia ter de encaixar algures e o espectro da guerra
a pairar sobre tudo –, mas saber poderia representar a forca.
Eles podiam travá-lo. Ela, Bastian e Gabe, se ele ainda cooperasse com
eles depois disto. Não valia a pena deixar Val e Mari em pânico. Não
precisava de as envolver mais do que já estavam, pelo menos até não haver
outra alternativa.
– Não – murmurou Lore. – Lamento, mas não.
Ao lado dela, a mão de Bastian ficou tensa, ergueu-se um pouco no ar.
Como se fosse pousá-la no braço dela. Mas não o fez.
– Não tem mal, ratinha – disse Val. – Nós compreendemos.
Mari assentiu com a cabeça, uma sacudidela determinada com o queixo.
– Não sei muito – disse ela. – Mas só o pouquinho que o Phillip me
contou bastou para ele quase se mijar nas calças, por isso preciso de saber
que terás cuidado. Todos vocês.
– Claro – murmurou Bastian. Gabe assentiu com a cabeça. Lore também.
– Tudo o que sei – disse Mari com um suspiro –, é que o que quer que
andem a movimentar, está a ser levado para as catacumbas. Bem no fundo
nas catacumbas. Bem debaixo da Cidadela.
Capítulo 32
O sono custou a vir, mas, quando veio, passou-lhe por cima como uma
onda negra. Nada de sonhos, felizmente. Apenas descanso, uma imensidão
vasta e vazia.
Ainda assim, quando a porta deu um estalido ao abrir, Lore despertou de
imediato.
Sentou-se na cama, o sono quebrado como uma tábua frágil,
completamente desperta durante o tempo que a cabeça levou a erguer-se da
almofada. Encontrava-se alguém na soleira da porta, a silhueta traçada pela
luz do fogo, alto, de ombros largos e cabelo curto.
Gabe.
Continuou sem falar. Tal como ela. Ele nem sequer se mexeu, mas Lore
rodou vagarosamente as pernas e pousou os pés no chão, caminhou na
direção dele até o peito dela e o dele ficarem separados apenas pela largura
de uma mão. Ele estava quente; o calor irradiava dele como se do fogo se
tratasse, chamando pelo frio dela.
Não parecia real. Não em plena noite, quando a luz sumiu e os
pensamentos se tornaram turvos, horas irreais destinadas ao sono. Não
parecia real e foi por isso que as mãos de ambos se ergueram praticamente
ao mesmo tempo. As dela pousaram no peito despido dele; as dele na nuca
dela, dedos a enredar-se no emaranhado do cabelo castanho-dourado dela.
Nada de palavras, nada de sons além da respiração deles. Então, ele
curvou-se para a frente e ela ergueu o queixo para ir ao encontro dele, bocas
colidindo em calor e necessidade.
Gabe não a beijou com sedução. Beijou-a esfaimado, uma fome nascida
de votos desadequados, de raiva e de desejo. Ela conseguia sentir os dentes
dele nos seus lábios, a língua a deslizar insistentemente contra a dela, e o
gemido que zumbiu na garganta dele não foi artificial. Ela sentia o calor a
acumular-se entre as suas pernas; a boca de Lore abriu-se, querendo mais,
saboreando a intensidade quase animalesca dele.
Ele empurrou-a mais para o interior do quarto; ela sentiu o parapeito da
janela a cravar-se ao fundo das costas, uma dor aguda que Gabe aliviou
erguendo-a para que se sentasse lá. Ela envolveu-lhe a cintura com as
pernas; ele percorreu-lhe o pescoço com sucessivos beijos.
– Deus Sangrante – blasfemou ele encostado à clavícula dela, com uma
voz rouca e áspera. – Pelos deuses mortos e moribundos.
Ela sentiu-o a pressionar-lhe o centro, o que a fez arquejar quando ele
puxou o ombro do roupão para o lado, beijando a pele despida enquanto a
mão lhe moldava o seio. O polegar dele deu com o pico do mesmo,
retesado; rodeou-o ao de leve e Lore arquejou de novo, chegando-se ainda
mais, o pensamento consciente a recair numa dor vaga e num fogo que com
as chamas afastava tudo o resto.
Quando a boca dele deu de novo com a dela, Lore deitou a mão ao cinto
de Gabe.
Ele estacou, uma mão no seio dela, a outra embrenhada no cabelo. Os
lábios dele descolaram-se dos dela e então as mãos dele baixaram,
agarrando ambos os lados das ancas dela sobre o parapeito.
Ficou tão frio, com ele afastado. O vidro fazia pressão nas costas dela,
gelando-lhe os pensamentos.
Gabe encostou a testa à dela. Nenhum deles falou, antes deixando-se
ficar parados por momentos, partilhando a respiração e o conhecimento de
que o que quer que tivesse estado prestes a acontecer já não ia acontecer.
E então ele afastou-se do quarto, desaparecendo na escuridão. A porta do
quarto abriu-se, o corpo dele tapando o feixe estreito de luz, e fechou-se de
novo.
Lore recostou-se contra a janela e deixou que o frio se lhe infiltrasse até
aos ossos.
Capítulo 33
E ladevido
acordou tarde na manhã seguinte, dorida e cansada, os olhos a colar
ao sono. A noite passada pareceu-lhe um sonho e poderia ter-se
convencido de que o era, não fora a leve pisadura no ombro. Um lugar onde
o controlo de Gabe falhara, prova violeta da iminência de um pecado.
Lore franziu a testa e subiu o roupão de repente. O controlo dele acabara
por levar a melhor. E por muito que, no momento, isso tivesse sido
frustrante, em parte sentia-se grata. A luz do dia a entrar pela janela afastou
fantasias vãs, tornando tudo claro, real e simples.
As coisas já eram suficientemente complicadas sem tudo isso.
A vergonha gerou-lhe um nó apertado na barriga, mas Lore manteve o
queixo numa postura altiva ao empurrar a porta para a abrir. Gabe
comportar-se-ia como se nada tivesse acontecido; ele iria permitir que assim
fosse. Era mais simples.
Porém, quando a sala de estar se abriu diante dela, encontrava-se vazia.
O ninho de Gabe fora reagrupado numa pilha de mantas cuidadosamente
dobradas deixada no canto do sofá.
Então, ele partira antes de ela se levantar. Ótimo. Simples, fácil.
Fácil como o raio dos deuses mortos e moribundos.
Uma bandeja com o pequeno-almoço cintilava sobre a mesa atrás do
sofá. Havia um bilhete enfiado sob a borda da bandeja, palavras curtas com
uma escrita elegante.
A noite passada deixou-me com fome. Calculo que tenha tido o mesmo
efeito em ti. Repousa. – Bastian.
Era certo que não fora ele a levar o pequeno-almoço, pelo que o duplo
sentido do bilhete teria sido para escapar a possíveis olhos curiosos. Lore
contorceu os lábios. Toda a Cidadela achava já que ela andava a dormir com
o Príncipe Sol; mais valia aproveitar isso.
Em especial se naquela noite iam sozinhos até ao jardim de pedra. Um
encontro amoroso seria uma desculpa conveniente se fossem apanhados.
Pensar em amantes e no jardim de pedra naturalmente levou a sua mente
até Gabe. Lore destapou a bandeja com um tinido e lançou-se à fruta e aos
pastéis, recusando-se estoicamente a pensar nele, a pensar na noite passada
e naquilo que quase tinham feito.
Nada, disse a si mesma, dando uma dentada numa tarte de cereja. Não
significa nada de nada.
Quando a bandeja ficou quase vazia e ela se serviu de uma chávena de
café para empurrar a comida, sentou-se no sofá com um suspiro.
Repousa, dizia o bilhete de Bastian, algo que ela entendeu como um
código para fica no teu quarto. Provavelmente, uma boa ideia. Se se
mantivesse longe dos cortesãos, haveria poucas hipóteses de ser
questionada por Bellegarde ou alguém mais que pudesse ter uma ligação
aos corpos nas catacumbas.
Teria de despertar um desses corpos esta noite. Sentiu um arrepio na
nuca só de pensar nisso.
Pelo menos, agora sabia com o que contar. A boca aberta, sem se mover,
os sussurros. Esperava apenas que desta vez o cadáver dissesse algo
prestável.
Lore deixou cair a cabeça nas mãos com um gemido de frustração.
Estava presa no quarto, onde nada havia para fazer. Nada, exceto aqueles
livros de poesia erótica que trouxera da biblioteca dourada. Explorar os
salões com Gabe, rindo do ridículo da Cidadela, parecia uma memória
longínqua.
Com outro longo suspiro, teatral como se alguém conseguisse ouvir,
Lore levantou-se e foi buscar os livros à mesa de cabeceira, levando-os
então para o minúsculo estúdio à direita da porta. Sentou-se na única
cadeira à escrivaninha, pousou uma perna sobre o braço da mesma e abriu o
livro numa página aleatória. O poema parecia ser sobre um sacerdote que
esquecia os seus votos a troco dos favores de uma amante de peitos
generosos.
– Que irónico – murmurou Lore.
Nada é novo.
– O Livro da Lei da Morte, Opúsculo 135
L ore percebeu que a primeira câmara a que chegaram não era aquela que
procuravam. O mapa mental indicava-lhe que seguisse caminho, que
continuasse a serpentear para a escuridão.
Mas Bastian deteve-se, erguendo a tocha flamejante na direção da porta
de madeira lascada.
– Será que devíamos verificar esta?
– Não é a correta – frisou Lore, seguindo em frente. Estava frio ali tão
fundo na terra e o entorpecimento causava-lhe dormência na ponta dos
dedos. – E temos de continuar se queremos regressar antes do nascer do sol.
– Como é que sabes? – Bastian espreitou uma vez mais para a porta,
antes de a seguir em passada lenta. – Acho que aqui em baixo não vamos
conseguir ver quando o sol nascer. Deus Sangrante, acho que nem vamos
conseguir sequer perceber se o mundo acabar.
Uma hipérbole, mas ainda assim Lore ergueu um pouco os ombros.
– Eu sei. – A sua intuição era uma centelha no peito, uma tocha que não
a deixava ficar mal. Uma parte dela sentia-se em casa nas catacumbas, de
uma forma como nunca se sentia noutros lugares.
Tudo o que alguma vez quis foi encontrar um lugar onde se encaixasse
que não ficasse nas trevas. Mas sombras e morte eram as únicas coisas que
lhe reservavam um espaço.
– Nunca me contaste como é que funciona essa coisa da navegação. –
Bastian estugou o passo para se pôr a par dela, adaptando a sua passada
mais ampla para se aguentar assim. – Calculo que tenha algo que ver com o
facto de teres nascido aqui?
Lore encolheu os ombros, observando a escuridão diante de si em vez de
o Príncipe Sol ao lado.
– Assumo que sim.
– Então, és a única a conhecer desta forma as catacumbas, porque foste a
única nascida nas catacumbas.
– Não fui a única.
Ele arqueou uma sobrancelha.
Lore suspirou, e esfregou os olhos. Sentiu-se grata por ter sido Bastian a
descer com ela; não tinha forças para esconder segredos.
– Houve outros bebés nascidos das Irmãs da Noite – revelou. – Mais de
uma grávida solteira achou que seria preferível esconder-se nas catacumbas
a ter de lidar com as famílias à superfície.
– Não abona muito em favor das famílias.
– Ou da sociedade em geral. É preciso mais do que uma pessoa para
gerar um bebé, mas o ónus recai sempre naquela que transporta a prova no
corpo.
– É verdade. – Bastian baixou o queixo, aquiescendo. – Mas calculo que
nem todas as crianças aqui nascidas sejam capazes de usar a Mortem.
– Pois não. – Lore tentou rir-se, sem grande sucesso. – Acho que tive
sorte.
Ele bufou e a seguir inclinou a cabeça para a mão dela com a lua
marcada, que balançava de lado enquanto a outra transportava a tocha.
– Todas as crianças nascidas das Irmãs da Noite foram marcadas?
Ela fechou a mão com força.
– Não. Apenas as escolhidas para irem para o túmulo durante o eclipse
para ver se o corpo de Nyxara se remexia.
O olhar dele ensombreceu ao ouvir a palavra eclipse, associando-a ao
baile planeado, sincronias que causavam impressão.
Uns quantos passos em silêncio. A seguir, Bastian engoliu em seco.
– Não devias ir ao baile do eclipse, Lore.
– Tenho de ir. Se não for, torna-se óbvio que nós…
– Porra, não tens nada. – As palavras estilhaçaram-se nos dentes dele,
veementes e cortantes. – Não tens de fazer tudo o que o August e o Anton
dizem, como um carneirinho. Se for preciso, eu e o Remaut podemos
arranjar uma desculpa. Fingir que estás doente, trancada no quarto,
infernos, que fugiste pela galeria pluvial para ir para um tasco
embebedares-te, mas acho que não deves ir.
Ela parou.
– Sabes de alguma coisa?
– É claro que não sei de alguma coisa. – Bastian pareceu irritado. – Mas
tenho um mau pressentimento em relação a isso e, no que te diz respeito, é
quanto basta.
– Porque tens tanto interesse em proteger-me? – Ela cravou os pés em
terra seca e pó de ossos, enfrentou-o como se fosse uma carga de cavalaria.
– Porque tenho eu tanto interesse em proteger-te?
– Não sei. – Tentavam tirar sentido do que haviam dito antes, a sensação
de já se conhecerem, de serem controlados por fios que não tinham sido
eles a atar. – Não sei.
Lore suspirou e desviou o olhar.
– Muito bem. Vou tentar arranjar maneira de não ir ao baile do eclipse.
Contudo, ao mesmo tempo que o prometia, as palavras fixaram-se com
força no fundo da garganta, com sabor a mentira. Os seus pensamentos
incidiram em Gabe, como reagiria se ela de repente decidisse fazer frente a
Anton. Até então, ele fora tão longe graças à ameaça das Ilhas Queimadas –
uma ameaça mais especificamente dirigida a ela, dado que as ligações e o
título dele provavelmente o livrariam desse destino. Mas, depois da noite
anterior, Lore não queria testar até onde ele iria por ela, se essa linha fosse
finalmente cruzada.
Bastian assentiu com a cabeça.
– Obrigado.
– Também não devias ir – disse Lore, desviando à força a sua mente de
Gabe. – Com o teu pai a tentar livrar-se de ti, e isso.
– Tenho comido apenas da minha comida – revelou Bastian. – E não vou
beber nem comer nada no baile, o que exclui a possibilidade de me dar uma
dose exagerada de um dos seus venenos. Se eu fosse de alinhar nessas
coisas, iria facilitar-lhe o trabalho, mas isso sempre me repugnou. – O canto
da sua boca ergueu-se, os seus dentes a brilhar à luz da tocha. – E se ele
tentar matar-me de uma forma menos subtil, quem poderá censurar-me se
lhe retribuir o favor?
Ela sentiu a inquietação a latejar nas têmporas.
– Então, esperemos que se comporte como deve ser.
O olhar de Bastian indicou que, de certa forma, não alimentava de
maneira nenhuma essa esperança. Em parte, ansiava por um banho de
sangue.
Mais à frente, as catacumbas voltavam a ramificar-se, um T de túneis
sem outras opções que não fosse esquerda ou direita. O trajeto que ela
traçara na sua mente indicava-lhe a direita, mas, ao virar a lanterna, a luz
incidiu sobre algo na parede. Palavras.
Parou, franzindo o sobrolho.
Bastian pôs-se ao seu lado, a luz da sua tocha a iluminar ainda melhor as
palavras. A escrita era tremida, vincada nuns pontos e mal se vendo
noutros.
– Parece algaravia – comentou ele. – Talvez uma aparição se tenha
tornado suficientemente loquaz pouco antes de ter morrido.
– Não me parece que uma aparição descesse até aqui. – Já decorrera pelo
menos uma meia hora desde que passaram por restos mortais. Lore
encostou a tocha ainda mais à parede.
Semicerrou os olhos, tentando decifrar a inscrição em voz alta. Pelo
menos estava escrito em auverrani.
– A divindade nunca é destruída – murmurou ela. – Apenas replicada.
– Ainda vou pela algaravia. – Mas notava-se uma certa inquietação na
voz de Bastian, reveladora de que as palavras também a ele lhe pareceram
pesar. – Aparição ou não, como é que alguém conseguiu escrever numa
parede de pedra?
Havia algo claro parcialmente escondido na terra. Lore deu-lhe um toque
com a ponta do pé – um osso, com a ponta afiada. A superfície estava
esburacada, como se já ali estivesse há muito.
– Talvez tivesses razão em relação à aparição.
Bastian franziu o nariz.
– Que bom para mim. – Apontou com a cabeça para a bifurcação no
túnel. – Por onde?
Ela indicou a direita com a cabeça e seguiu caminho, um pouco mais
depressa do que antes. Pontapeou o osso para a escuridão.
Mantiveram o ritmo acelerado, com as tochas a crepitar. Parecia a Lore
que teriam decorrido pouco mais de duas horas desde que desceram através
do poço – ainda faltava imenso tempo para o nascer do sol, mas Gabe
ficaria preocupado. Ela tinha praticamente a certeza de que ele já estaria a
andar de um lado para o outro. A andar de um lado para o outro e a puxar a
pala do olho.
– Achas que ele estará bem? – As palavras passaram-lhe pelos lábios
sem sequer se aperceber que as formara.
– O Remaut? – Ao lado dela, Bastian retesou-se, mas a sua voz soou
equilibrada. – Tenho a certeza de que está bem. Talvez esteja a aproveitar
para pôr o sono em dia. Nestes últimos dias tem andado com ar de quem
precisa de descanso.
– Ele dorme em frente à nossa porta – revelou Lore. – Para ficar de
guarda.
– Sempre foi dado a espetáculos dramáticos de cavalheirismo.
– Talvez devesses aprender algo com ele.
O silêncio prolongou-se, até que:
– Queres que o faça, Lore?
Poderia ter parecido galanteador, no seu tom habitualmente superficial.
Mas não. Soava sincero e Lore não respondeu.
O mapa mental dela orientou-os por um punhado de curvas, com tochas
a tremeluzir na pedra húmida. Na mente dela, as luzes brancas que lhes
correspondiam aproximavam-se do emaranhado de Mortem, até os dois
ficarem bem juntos. Tinham chegado ao destino. Que, aparentemente, seria
uma parede sólida.
– Raios. – Lore bateu com a mão na parede rugosa. – Merda!
– Tem de haver algures uma porta. – Bastian acenou com a tocha,
projetando uma luz tremente em ambas as direções. – Talvez haja um trinco
disfarçado, ou isso?
– Não há. – O átrio era estreito; Lore podia inclinar-se para trás e bater
na parede oposta. Desceu pela parede, pressionando a base da mão na testa.
– Não há aqui nada.
– Tem de haver. Orientaste-nos…
– Orientei-nos mal, Bastian. – Baixou a mão e olhou para cima para ele
com um olhar cortante. – Estava errada. Talvez estejamos errados em
relação a tudo isto. Talvez seja melhor esquecer o assunto.
– Esquecer – repetiu ele, frio. Olhou para baixo para ela, com a luz do
fogo a dar-lhe um ar tão régio e distante como uma estátua de Apollius. –
Vamos deixar o meu pai e o meu tio recolherem corpos sabe-se lá para quê
e levarem-nos à guerra?
Lore não desviou o olhar do dele, mas também não respondeu. Sentia-se
cansada. Cansada de tentar reparar algo que não compreendia na sua
totalidade. Cansada de ser levada à força para uma ou outra direção, usada a
partir de todos os ângulos. Talvez alguns desses ângulos se justificassem,
mas não deixavam de doer.
Bastian praguejou, encaixando a tocha num montinho de pedras para a
manter direita, passando depois a mão sobre a parede. Ainda à procura do
trinco escondido.
Ela ficou por momentos a observá-lo, incapaz de se obrigar a levantar-se.
A seguir, com um suspiro, ergueu-se e imitou-o.
Ele olhou-a de lado, mas manteve-se calado. Esperto.
Tal como seria de prever, não havia qualquer trinco. Mas assim que a
mão de Lore passou sobre uma secção de parede de pedra áspera, a sua
palma… parou.
Ela franziu o sobrolho. Podia mover a mão se tentasse, mas a sua pele
parecia atraída de volta para aquele ponto… mais macio do que o resto da
pedra, e também mais frio. De início, achou que essa fora a razão para a sua
mão se desviar até lá, uma mera questão de textura. Mas, ao pressionar a
mão na pedra, sentiu algo a latejar. Um redemoinho de sangue invernoso,
lento e coagulado.
Mortem. Mortem, a chamar por ela. Ali reunida e emaranhada.
– Acho que descobri – murmurou ela.
Bastian parou de passar as mãos pela parede, o seu cabelo escuro a
cintilar com poeiras douradas. Ele recuou, mãos abertas diante dele numa
espécie de sinal de rendição.
– O que temos de fazer?
– É uma fechadura – revelou ela, ainda a pressionar a pedra. – Mas sem
chave. Um mecanismo que tem de ser acionado por magia, e não por algo
físico.
– Magia é só contigo, infelizmente. – Ele engoliu em seco, semicerrando
os olhos ao fitar a parede. – É seguro?
– De maneira nenhuma.
– Então, está bem. – Bastian posicionou-se atrás dela, como se fosse
capaz de lhe dar algum apoio. – Estou aqui para o que for preciso. Tenta
não morrer.
Lore fechou os olhos e ergueu o queixo, projetando os sentidos para a
parede ao mesmo tempo que desmontava a sua barreira mental, a floresta
que sempre lhe evocava Gabe. Tentou reunir Mortem a partir da pedra em
volta, mas o modo como já fora trabalhada para aquela porta escondida
impediu-a de a puxar.
Inspirou fundo, susteve o ar até ver estrelas a rodar atrás dos olhos.
Quando os abriu, a sua visão assumira tons cinzentos – a parede diante de si
era um emaranhado preto em contorção, a mão dela apoiada num cinza de
brilho ténue de um canalizador a trabalhar. Mais Mortem oculta na parede
atrás dela, na terra; Lore puxou-a, finos fios de escuridão a enrolarem-se
nos seus dedos. Lore canalizou-a através de si, rápida devido ao treino.
Então, suavemente, pressionou-a para a parede.
A Mortem na parede fora moldada num quebra-cabeças, um nó ao
centro, outros filamentos a contornar a forma da porta. Para a abrir, teria de
resolver o enigma.
Só podia ser obra de Anton. Recordava-lhe demasiado o que ele fizera
com a fuga, torcendo filamentos de Mortem para um nó intrincado,
trabalhando-a de formas que ela nunca vira. Mas o que quer que Anton
tivesse feito na fuga era simples, comparado com aquilo. Ela nunca soubera
que a Mortem poderia ser usada daquela forma, torcida e moldada em vez
de passar rapidamente por um canalizador para matéria morta.
Transformada numa ferramenta. Devia ter sido necessária uma
concentração intensa para a canalizar e dar-lhe forma ao mesmo tempo.
Mas teria ele canalizado, na fuga? Agora que pensava no assunto, Lore
não sabia ao certo. Anton dera forma à Mortem, mas não se recordava de
lhe ver os olhos opacos e os dedos necróticos que significavam que
movimentava o poder da morte através do seu corpo.
Teria simplesmente dado forma à Mortem pura? Formara um entrançado,
enviando-o depois para que ela a canalizasse para dentro? Tal já havia sido
feito, mas isso fora séculos antes.
Não tinha tempo para pensar nisso. Lore sorveu ar por entre os lábios
enquanto sondava o quebra-cabeças, os filamentos de Mortem que
canalizara colhendo os do Supremo Sacerdote, dedos finos sobre cordas de
violino.
O objetivo do enigma era evidente – desemaranhar o nó no centro. A
partir daí seria simples seguir através do quebra-cabeças e em volta do
contorno da porta. Algo simples, seguir os seus próprios fios e abrir. O
desenredar levaria, provavelmente, uma eternidade. Uma série de
movimentos pequenos, um a seguir ao outro, executados exatamente da
forma correta e exatamente na ordem correta…
Um dos fios escapou-lhe, o efeito de empurrar através da parede fê-lo
fugir para o lado. Algo no quebra-cabeças encaixou no seu lugar.
O nó emaranhado suavizou-se.
Apenas por um momento, Lore manteve-se imóvel, sem conseguir
acreditar que resolvera o intricado enigma por acidente. Então, com mais
um empurrão, enviou a Mortem que gerara através da linha.
Um estalido. A parede diante de si rodou e abriu-se.
Lore recuou, com os filamentos de Mortem a cair enquanto ela
arquejava, a cor regressando à sua visão e o sangue a chegar-lhe aos dedos.
Emanava frio da porta já aberta e a escuridão do outro lado era densa como
alcatrão. Pegou na sua tocha com mãos trementes; nem a luz da chama
penetrava mais do que meio metro na câmara.
– Eu vou à frente. – Bastian rolou os ombros para trás e retesou o
maxilar. Transpôs a porta antes de ela o conseguir deter.
Um grito curto, assustado. Lore cruzou com ímpeto a entrada da câmara,
esquecendo a apreensão, e quase chocou com as costas de Bastian.
– Apanhei-te – riu-se ele.
Lore deu-lhe uma palmada nas costas.
– Vai-te lixar.
– Pensei que tínhamos combinado ser delicados.
Havia uma corrente de nervos sob o gracejo, algo que nenhuma piada
poderia disfarçar. A escuridão era densa, pressionando-os a toda a volta,
mas havia também uma perceção de espaço que ela não sentira nos túneis,
uma vastidão.
De certa forma, era pior.
– O que é isto?
Bastian afastou-se para o lado – mais passos do que Lore previra, pelo
que teve de se despachar para o acompanhar – até chegar à parede. Ele
tateou a pedra, retirando algo que parecia ser uma videira sem folhas. Um
pavio.
– Não acendas isso – disse Lore no preciso momento em que Bastian
levava a tocha à ponta do pavio.
A chama percorreu o fio, mas, em vez de conduzir a uma pilha de
explosivos, o pavio transportou o fogo até outra tocha instalada na parede.
E depois a mais outra, e outra, a luz a viajar em redor da divisão até toda a
caverna se iluminar num tom laranja tremeluzente.
Era enorme, do tamanho de três salas do trono. Havia plintos de pedra
instalados a igual distância entre si, recordando sinistramente a Lore as
hachuras de ferro sobre os pavimentos muito mais acima.
E, em cada laje de pedra, um cadáver.
Todos de tamanhos diferentes, de géneros diferentes, mas mortos de
forma idêntica. Todos tapados por um tecido escuro. Todos com um ar de
quem meramente dormia, desde que uma pessoa não se aproximasse o
suficiente para reparar na palidez, na textura cerosa da pele.
E todos pareciam ter aproximadamente a mesma idade. Não havia
crianças, nem idosos. Aqueles corpos estariam no auge da vida, se não
estivessem mortos.
Bastian foi o primeiro a avançar. Hesitante, ainda a segurar a tocha
acesa, embora já nem fosse precisa.
– Onde estão os restantes?
Nada de crianças. Nada de idosos. Ela sentiu uma impressão na nuca,
uma espécie de apreensão que não sabia como analisar.
– Podem estar noutra câmara, não podem? Separados?
– Talvez. – Bastian enrugou as sobrancelhas. – Mas porquê?
Lentamente, Lore abeirou-se da laje seguinte. Mulher, musculada, talvez
uns quantos anos mais velha do que ela. Cabelo ruivo, um rosto macio, sem
rugas. E nenhum sinal de decomposição.
O último ataque ocorrera dois dias antes. Dois dias, com setenta e cinco
vítimas. Mas havia bastante mais do que setenta e cinco corpos naquele
espaço, pelo que só poderiam ser cadáveres das quatro aldeias atacadas.
Mas porque teriam sido divididos por idades? E como se manteriam tão
bem preservados?
– Lore. – Bastian falou em voz baixa, como se temesse perturbar os
mortos. – As palmas das mãos deles.
A mão de um dos cadáveres descaíra do plinto. Lore não quis tocar-lhe;
em vez disso, agachou-se e inclinou o pescoço para espreitar.
Um eclipse fora gravado na palma da mão do cadáver. Um sol na parte
de cima, com a curva a passar na base dos dedos, os raios a estender-se até
às extremidades dos mesmos. Um crescente de lua sobre a base,
completando o arco do sol.
– Não compreendo – murmurou ela, endireitando-se, fechando a sua
própria mão marcada. – O que significa isso?
– Só há uma maneira de descobrir – disse Bastian.
Lore pousou os dedos ao de leve sobre o plinto de pedra diante dela.
Fechou os olhos e deu com a morte bem escondida nas profundezas do
corpo, puxando-a com delicadeza.
O ar que inspirou e susteve soube-lhe a vazio e frio mineral. As pontas
dos dedos ficaram frias e pálidas conforme filamentos de escuridão saíam
do corpo para ela, o mundo a perder de novo a cor.
Algo parecia errado. Ela via o seu próprio corpo, luz branca e cinzenta e
massa escura ao centro. Bastian junto dela, uma luz tão brilhante que
praticamente pulsava. Mas logo acima do coração de cada cadáver, havia
um nó de escuridão, densamente emaranhado, a cor do céu desprovido de
lua ou estrelas. Recordou-lhe a fuga, a porta. Anton, de novo.
O que fizera o Supremo Sacerdote?
A batida do seu coração abrandou, cada vez mais. Sentia os membros
pesados. Puxou para dentro de si tanta Mortem quanto era capaz e bateu
com as palmas das mãos no plinto, canalizando-a para a pedra, sentindo-a
ficar porosa e quebradiça.
A pulsação nas suas veias tornou-se lenta; os pulmões não recebiam ar
suficiente. Interiorizara mais morte do que deveria, no breve período em
que a canalizara. Era… era mais espessa do que deveria ser, mais densa.
Sentiu os joelhos a ceder e Bastian correu para junto dela, um braço
quente sobre os seus ombros e a mantê-la de pé e estável.
– O que é que te aconteceu? – murmurou Lore para o morto, a voz a soar
fina e aguda. – Quem fez isto, e porquê?
Mas o cadáver diante de si permanecia imóvel e silencioso.
– Não compreendo. – Bastian estreitou os olhos. – O que…
Um som rangente interrompeu-o quando todos os cadáveres na caverna
se sentaram. Quando todos os cadáveres na caverna rodaram para os fitar
com olhos mortos e inexpressivos.
A compreensão abateu-se sobre Lore como uma onda. Ao tirar a morte a
um deles, de algum modo tirara-a a todos. Aqueles nós retorcidos de
escuridão que ela vira sobre os corações deviam estar a uni-los, ainda que
ela não percebesse como.
Bastian, como que por instinto, pôs-se à frente dela. Baixou a mão na
direção de um punhal escondido nas suas roupas escuras. O que faria com
ele, Lore não sabia – não podia propriamente voltar a matá-los.
Contudo, nenhum dos mortos se posicionou para atacar. Em vez disso,
como um só, abriram as bocas, mais do que maxilares humanos deveriam
permitir.
– Eles despertam. – Veio do primeiro, o cadáver mais perto deles. Os
lábios azuis não se mexiam, tal como a criança nas criptas. – Eles
despertam, como os recipientes novos. – As palavras tornaram-se um
cântico, sonoro e ecoante. – Eles despertam. Eles despertam, como os
recipientes novos.
Lore sentia-se tão fria quanto os cadáveres, tão imóvel quanto a morte.
– Eles despertam. – Os cadáveres próximos da mulher juntaram-se ao
cântico. – Eles despertam, como os recipientes novos.
O cântico espalhou-se como uma gota de tinta numa poça de água,
ondulando para as bordas até atingir todos os cadáveres na caverna.
Falavam a diferentes velocidades, acompanhavam o cântico em momentos
diferentes, uma sinfonia de vozes que preencheu o espaço vasto da caverna
e se abateu sobre Lore como uma onda.
A seguir, as palavras foram interrompidas e os mortos desataram a gritar.
Capítulo 36
P elos deuses, que barulho faziam. Uma cacofonia guinchante que ecoava
pela câmara demasiado ampla, ressaltava nas paredes de pedra, numa
dissonância que perfurava os ouvidos de Lore. Ela cambaleou para trás,
afastando-se daquele plinto e do seu cadáver urrante, tropeçou numa pedra
solta e caiu de rabo no chão com as mãos a pressionar os ouvidos e os
dentes cerrados.
Ainda tinha filamentos finos de Mortem agarrados aos dedos, unindo-a
ao resíduo pedregoso de uma teia de aranha, um frio a roçar-lhe no rosto.
Uma anomalia, algo com que nunca se deparara antes… assim que se
deixava de canalizar, os filamentos deviam desaparecer. Mas algo naquele
lugar, bem nas profundezas da terra e inundado de morte, parecia levar a
Mortem a perdurar.
Junto dela, Bastian ajoelhou-se no chão, com as bases das palmas das
mãos a pressionar as orelhas com tanta força que talvez fosse ficar marcado.
Nenhum deles tentou chegar à porta. Era demasiado; concentraram-se
apenas em manter-se juntos durante o ruído horrível.
Pelo menos, até os corpos começarem a mover-se.
Espasmódicos de início, membros mortos a despertar, e tudo aquilo
sincronizado como se tivesse sido ensaiado. O braço direito erguia-se, os
dedos fletiam-se. A seguir, a perna esquerda, balançando sobre a lateral dos
plintos. Isto enquanto continuavam a gritar, as bocas ainda abertas.
– Merda – disse Lore entre dentes, levantando-se apressadamente. –
Merda, isto não deveria ser possível, merda…
Bastian mantinha os olhos fechados; não estava a ver, continuava
curvado sobre os joelhos. Lore agarrou-lhe o ombro e puxou-o para a porta.
Os olhos dele abriram-se então, arregalados, com um palavrão inaudível
sob o estrépito dos cadáveres gritadores.
A porta, felizmente, ainda se encontrava aberta. Lore arrastou-o atrás de
si no momento preciso em que os cadáveres na câmara se ergueram. Todos
os mortos se viraram para eles em simultâneo, olhos negros, bocas
escancaradas, escuras e mais abertas do que alguma vez deveriam estar.
Lentamente, começaram a avançar.
– Fecha-a! – gritou Bastian, esquecendo qualquer ideia de secretismo.
Era evidente que toda aquela gritaria se deveria ouvir a quilómetros.
– Não sei como! – Lore pressionou as mãos contra a parede, mas os
rastos de filamentos de Mortem roçavam lá passivamente, inúteis. – A
magia é… está a colar-se, não entendo…
Pelos deuses, havia tanto que ela não entendia. Aquele poder vivia em si
havia praticamente vinte e quatro anos e permanecia um mistério,
incognoscível, uma maldição com tantas facetas quanto um diamante.
Bastian não deveria conseguir ver os filamentos de Mortem nos dedos
dela – ela não era capaz de canalizar –, mas, de algum modo, via. O
arregalar dos olhos e a forma como abriu a boca revelava-o.
Mais um mistério.
Ele correu para a frente, afastou-lhe as mãos da porta. Lampejos de
dourado pairavam no ar em redor dos dedos dele, demasiados para serem
fruto da imaginação, demasiado corpóreos para serem uma alucinação. Ela
já os via com nitidez, envolvendo as palmas das mãos dele, fluindo dele
como a Mortem fluía dela.
O Príncipe Sol juntou os fios de morte no seu punho recoberto a dourado
e puxou-os com força.
A Mortem deixou-se levar, soltando-se de Lore como um fio a passar
pelo buraco de uma agulha. Lore arquejou, com a visão a brilhar
intensamente. A própria vida parecia jorrar do ponto onde Bastian tocara,
ruborizando-lhe a pele e acelerando-lhe a pulsação, todos os nervos vivos e
envolvidos por um formigueiro. A Mortem fugia dele, mas ela ainda a
sentia, ainda poderia agarrá-la se quisesse.
Havia também algo mais, uma sensação de dualidade: segurar uma corda
de sombra e outra de luz ao mesmo tempo, como se ela fosse duas coisas
pressionadas numa única forma. Apenas uma centelha de perceção, uma
resposta a uma pergunta que ela não sabia como fazer…
Os corpos na câmara colapsaram. A gritaria parou, deixando um silêncio
vibrante no seu lugar.
Mantiveram-se junto à entrada, a mão dela aconchegada na dele,
ofegantes. A testa dele inclinou-se e repousou na dela; ela permitiu-o. A
sensação inebriante que a percorrera quando ele puxara os filamentos –
vida, brilhante e vibrante, anátema da magia que ela transportava – esvaiu-
se lentamente. E com ela, aquele vislumbre de conhecimento, de algo a
encaixar no lugar. Pergunta e resposta a dissipar-se.
Lore retirou as suas mãos das de Bastian.
– Como é que… – Sentia a garganta como se tivesse engolido uma mão-
cheia de gravilha; pigarreou e tentou de novo. – Como é que fizeste aquilo,
Bastian?
Ele olhou para as suas mãos. O bruxulear no ar em volta dele
esmorecera, mas apenas um pouco, e voltou a cintilar quando ergueu a mão
na direção dela. Lore encolheu-se, por instinto, e ele deixou a sua mão cair.
– Não sei. – Abanou a cabeça. – Deve ser algo relacionado com estar nas
catacumbas…
Em breve iria amanhecer. Lore sabia-o, sentiu a certeza nos ossos, tal
como sentira tudo ali em baixo. Tinham de ir embora, não tinham tempo
para aquilo.
– E tu? – perguntou ele, a voz ainda aguda devido aos nervos. – A
Mortem alguma vez fez isso antes?
– Colar-se a mim daquela maneira, ou levar um monte de cadáveres a
perseguir-me? – A sua gargalhada pesarosa soou tremida. – A resposta é
não, às duas coisas.
– Que falta de educação não terem respondido às tuas perguntas antes de
desatarem aos gritos – comentou Bastian. – O que estavam eles a
murmurar? Algo sobre despertar?
– Eles despertam. Praticamente o mesmo que me disse o primeiro. –
Lore fez uma carranca. – Dava jeito eu fazer uma leve ideia de a quem se
referem quando dizem «eles».
– Achas que não são só palavras desconexas?
– Os mortos não mentem. É uma resposta à pergunta que fiz, ainda que
seja indireta. – Massajou a testa, deixando um rasto de pó e cinza da tocha.
– Mas não fazemos ideia do que raio significa.
Bastian virou-se para observar a porta. As lumieiras no interior da
câmara ainda ardiam, iluminando a confusão de corpos espalhados pelo
chão; nenhum deles tratou de apagar as chamas. A luz mais intensa revelou
aquilo que as tochas não tinham mostrado – um X na porta de pedra, mal
visível sobre o cinzento esburacado.
– Achas que quem fez isto também escreveu aquela passagem
encantadora naqueles tuneis lá atrás?
– É possível, mas duvido. – Lore passou os dedos sobre o X e a seguir
ergueu-os, pretos de carvão. – Isto era suposto ser uma marca temporária,
fácil de remover.
– Então, com sorte, não terá sido gravada com um osso.
– Mas estava trancado com Mortem. A Mortem usada de uma forma que
eu só vi uma vez. – Lore limpou o carvão na coxa. – Na fuga de há uns dias.
– O Anton. – O maxilar de Bastian formou uma linha tensa, os braços
cruzados enquanto olhava para a porta.
– O Anton – concordou ela.
Toda aquela expedição tinha por objetivo provar que Anton era um
mentiroso. Mas, depois de o terem conseguido, encontrado provas
irrefutáveis, o facto pesava sobre os ombros de Lore. A expressão ausente e
perdida de Bastian indicava que também ele sentia esse peso.
O meu pai é um homem mau, dissera ele no átrio, enquadrado pela luz do
luar e por flores de veneno. Devia doer, saber que todo o nosso legado
estava corrompido.
Ele suspirou, olhou para Lore.
– Então, o meu tio e o meu pai andam a matar os próprios cidadãos para
provocar uma guerra?
– Parece provável. – Lore enfiou o braço na câmara sem efetivamente
passar a soleira e pegou numa das tochas da parede para substituir a que
largara. – Mas não entendo porquê. Seja como for, temos Kirythea às
nossas portas. Uma eventual guerra é praticamente inevitável. Porquê
exacerbá-la?
– Tem de haver alguma vantagem que desconhecemos. – Bastian
caminhava ao lado dela, carrancudo, com o cabelo a cair-lhe sobre a testa. –
Algo que torne uma guerra lucrativa, em vez de esgotar os recursos.
– Se bem que essa falta de recursos nunca fosse sentida na Cidadela.
Ele inclinou a cabeça, em concordância.
A jornada de regresso ao poço decorreu em silêncio. Lore encaminhou-
os com recurso ao mapa mental, refazendo os passos por entre o entrançado
de túneis. Ao passarem pelas palavras gravadas na parede, ela olhou apenas
de relance.
A divindade nunca é destruída.
Mais à frente, um fino raio de luz cintilava, demasiado brilhante para ser
a lua. O amanhecer ultrapassara-os e a intensidade do seu brilho ao fim de
horas nas catacumbas deixava-a com dores de cabeça.
Bastian parou na base das escadas, franzindo os olhos ao fitar o feixe de
luz solar.
– Ele deixou a entrada aberta – murmurou. – Por pouco.
– Vai lá estar para o afastar.
– Depositas tanta fé no nosso monge. – Bastian subiu as escadas e
começou a trepar, com cuidado, os músculos dos ombros movendo-se sob a
sua camisa empoeirada enquanto se equilibrava com uma mão na parede. –
Ele é tão instável. Não me surpreenderia se tivesse dado à sola assim que
descemos.
– Tu devias depositar mais fé nele – disse Lore, virada para as amplas
costas de Bastian. Percebendo que o olhava fixamente, baixou os olhos para
os seus próprios pés e subiu com cuidado os degraus estreitos. – Ele
apareceu, certo?
A resposta que teve foi a abertura da tampa do poço, lançando para baixo
uma luz penetrante. Não era manhã plena, mas já suficientemente avançada
para que o brilho a levasse a desviar os olhos.
Quando se voltou de novo, Bastian desaparecera, com a abertura à frente
mostrando nada mais do que o céu pintado a rosa. Lore revirou os olhos.
Claro que ele simplesmente saltaria do poço assim que se provasse que ela
tinha razão. Já devia estar a trocar insultos com Gabe.
Porém, quando Lore chegou ao cimo das escadas, Bastian encontrava-se
ajoelhado entre dois dos Presque Mort, com a cabeça puxada à força para
trás, a ponta da baioneta cravada na pele do pescoço. Atrás dele encontrava-
se Malcolm, com uma expressão pensativa, mas com a linha da boca a
mostrar determinação.
Diante do poço, Anton, com o seu pingente do Coração do Deus
Sangrante a cintilar sob a luz ténue.
E, junto a Anton, Gabe.
Bastian riu-se, um som terrível e pesaroso, exibindo os dentes.
– O que dizias tu sobre depositar fé nele, Lore?
Mas Lore não respondeu. Sabia quando era apanhada.
Uma pausa, em que o único som era o da túnica de Anton a bater-lhe nas
pernas ao sabor da brisa matinal. A seguir, Gabe aproximou-se do poço,
estendendo uma mão para a ajudar a sair.
Ela não a aceitou. Não olhou para ele. Desceu sozinha para o
empedrado, apesar de ter as pernas a tremer.
Anton acenou com uma mão cansada.
– Levem-nos para a Igreja. Os nossos colegas aguardam.
– Os teus colegas? – repetiu Bastian com desdém. Os Presque Mort
içaram-no; ela reconheceu vagamente os dois guardas do dia da fuga de
Mortem, e ambos pareciam um pouco entusiasmados de mais por poderem
tratar o Príncipe Sol com brutidão. A ponta da baioneta nunca abandonou o
pescoço dele, mas Bastian não parou de resmonear. – Que forma
interessante de dizer cúmplices traidores.
Junto dela, Gabe retesou-se. Bastian reparou e incidiu nele o seu olhar
abrasador, a boca retorcida numa feia mistura de raiva e traição.
– Acho que é verdade o que se diz, certo, Remaut? Quando alguém
mostra quem é, mais vale acreditar. Pensei em dar-te o benefício da dúvida.
Que parvo que fui.
Gabe não estava ao alcance do toque, mas o próprio ar em volta dele
pareceu vibrar com o esforço por se manter imóvel. Tinha os punhos
cerrados nos flancos, com os nós dos dedos brancos.
– Ele tem razão. – Todos os olhares incidiram em Lore. Ela olhou em
frente, sem fitar qualquer um deles, mantendo o olhar preso na fina faixa de
sol que passava sobre o muro do jardim. – Parece que a traição lhe é inata,
Duque Remaut.
Ela tinha-o ferido. Era essa a sua intenção. Ainda assim, o subtil
abatimento dos ombros dele, a forma como o rosto dele se virou, deixando
visível a Lore apenas a pala infernal, provocou um nó em todos os órgãos
dela.
– Temo que isto seja um pouco mais complexo do que tu e o meu
sobrinho pensam. – Anton mirou-a, com o sol nascente por trás a tornar-lhe
o lado ferido do rosto uma confusão de riachos de sombra. – Questões de
traição por norma assim são. Mas estamos a pôr a carroça à frente dos bois.
– Virou-se de repente e rumou à porta embutida no muro do jardim que
dava acesso à Igreja. – Vamos. Temos muito a discutir.
–N ão –Atédisse Lore.
Gabe, ainda chocado com a revelação do passado dela e com a
visão de Anton, quase pareceu sentir orgulho nela por causa disso. Quase.
– Não? – disse Anton, num tom brando.
– Não o farei. Não os despertarei. – O olhar dela saltou de Anton para
Bellegarde e para Malcolm, em busca de um sinal de que aquilo resultaria,
que a sua recusa teria algum significado. – Não os despertarei, não os
controlarei. Não farei nada pelo August, nem por si.
Anton suspirou.
– Minha querida – murmurou. – Receio que seja demasiado tarde para
isso.
O sol a subir na janela projetou calor na nuca dela, uma queimadura
como a da cicatriz em forma de lua na sua mão.
– Como assim?
O Supremo Sacerdote voltou a suspirar, como se aquilo lhe fosse penoso.
Ergueu uma sobrancelha, um professor a incentivar um aluno
particularmente relutante.
Mas Lore não queria a persuasão gentil dele. O que queria era a merda
de respostas.
– Como assim, caramba, diga-me o que…
– Lore. – A voz de Gabe soou rouca. Mesmo assim, abafou a dela.
Bastian ergueu a cabeça, com um olhar fulminante para o outro homem.
Gabe não lhe prestou qualquer atenção. Só olhava para Lore.
– Lembras-te do que aconteceu ao Cavalo? Porque tivemos de ir
verificar o corpo nas criptas, naquela noite em que o Bastian nos encontrou?
Ela franziu as sobrancelhas, sem saber o que fazer da súbita mudança de
direção da conversa.
– Claro – disse ela vagarosamente. – Despertei-o e depois ele…
E depois ele permaneceu desperto. Ela despertara-o e ele permanecera
desperto, tal como o corpo da criança na câmara mortuária.
Anton disse que os cadáveres das aldeias estavam unidos – o que
acontecia a um, acontecia a todos.
Lore mexeu-se abruptamente na cadeira, com o peso das algemas de
ferro a exercerem uma dor penosa nos ombros.
– Eu posso reparar isso. Já o fiz antes.
– Desta vez, não podes – disse Anton com gentileza. – São centenas de
corpos. Lore… até para ti, canalizar tanta Mortem seria praticamente
impossível.
– Têm de me deixar tentar! – Não queria chorar ali, não na presença
deles, mas sentia-se tão zangada e esgotada e era sempre mais complicado
travar o choro quando se sentia exausta, a pensar nas catacumbas por baixo
deles, cheias de cadáveres aos gritos que tinham sido pessoas, apenas
pessoas…
– Então, foi por isso que nos conduziste lá abaixo. – A voz de Bastian,
calma e fria, atravessando o pânico dela. O olhar dele estava cravado em
Gabe. – Foi por isso que voltaste para nos ajudar. Para a Lore despertar os
mortos e não haver forma de voltar atrás.
Gabe nada disse. Não teve de o fazer. A sua expressão revelava que a
acusação era verdadeira.
Bastian recostou-se, descontraído como se a cadeira e as correntes
fossem um trono dourado.
– Porque é que não havemos de pensar que trabalhas de novo com o meu
pai? Depois de nos teres levado a acionar o seu exército de mortos-vivos?
– Porque o August não controla o exército – disse Anton. – E, se formos
bem-sucedidos, nunca há de controlar.
– O August nunca seria capaz de o controlar, seja como for – contrapôs
ela. – Ele não consegue canalizar Mortem.
– Para já – murmurou Anton.
Ao longe, os sinos começaram a repicar. Primeiro Dia. Algures, as
orações do nascer do sol estavam a começar.
Gabe mantinha-se imóvel como uma estátua no seu lugar junto à porta,
de expressão empedernida, nada revelando. Lore fechou os olhos e rodou a
cabeça. Não queria olhar para ele, mas os seus olhos deslizavam sempre
para lá, consistentemente atraídos para a gravidade dele.
– E o que foi exatamente que vos levou a decidir que não podiam
permitir que isto acontecesse? – questionou Bastian. – Há anos que o meu
pai é um tirano. Sugou este país até ao tutano, deixou que os nobres… tu…
enriquecessem enquanto toda a gente fora das muralhas da Cidadela tinha
cada vez menos a cada ano que passava. Então, só se importam quando ele
pensa em guerra? Quando se torna algo que pode afetar-vos?
– O August não quer saber de Apollius. – A expressão de Bellegarde não
era bem um sorriso de desdém, mas estava lá perto. – Para tentar evitar o
seu destino, ele tentaria alterar o seu papel na história, ocupar um lugar que
não é seu. A visão do Supremo Sacerdote foi clara. O August não pode ir
para a guerra com Kirythea. Isso minaria tudo.
Não foi uma resposta, não mesmo, mas ainda assim encerrou a conversa.
A questão não era proteger Auverraine. A questão era o poder e o recurso à
religião para o manter.
O sorriso de desdém de Bastian foi bem mais evidente do que o de
Bellegarde.
– Nada disto altera o facto de eu não dispor de magia. Eu não sou o
eleito.
– Agarra-se a ti como tinta em papel. – Havia um tom de reverência na
voz de Anton; olhou para o sobrinho com uma expressão serena, como se
olhar para ele aplacasse alguma dor no coração. – Acredites ou não,
Bastian, és aquele por quem temos aguardado. Aquele que Apollius
abençoou. Lamento não ter percebido desde o início.
Bastian contorceu-se na cadeira, como se tivesse tentado afastar-se do tio
se as correntes não o tivessem evitado.
Lore sentia a cabeça a doer. Pensou na noite anterior, quando estavam
naquele átrio cheio de flores de veneno, no ouro que envolvia as mãos dele.
O olhar de Bastian incidiu na direção dela, como se revivesse a mesma
recordação. Ele inspirou tremulamente, enrijeceu a linha do maxilar.
– Quem está a par disto?
– Todos, se acreditarem nos Opúsculos.
– Sabes ao que me refiro, velho. – Algo venenoso fervilhou na voz de
Bastian. Algo no limiar da violência.
Anton reparou, fitando pensativamente o sobrinho.
– Apenas o teu pai, e os presentes nesta sala. – A sua expressão serena
ensombreceu. – É outra razão para o August te querer morto. Acha que
poderá ser ele mesmo o eleito de Apollius quando se livrar de ti.
– Transubstanciação – murmurou discretamente Malcolm. – Superar o
físico com o espiritual.
O Supremo Sacerdote assentiu.
– E assim que ele detiver o Spiritum, pode deitar a mão ao poder da Lore
e canalizar ambos. Brandir vida e morte como uma espada em cada mão.
– Não se pode ter ambos. – Lore abanou a cabeça. – A Mortem e o
Spiritum anulam-se mutuamente.
– Antes pelo contrário – respondeu Anton. – Uma fortalece a presença
do outro. Apenas em determinadas circunstâncias podem ser detidos em
simultâneo. – O seu único olho saltitou entre Bastian e Lore, inescrutável. –
Mas pode ser feito. Num eclipse, por exemplo.
Bastian nas catacumbas, obrigando-a a prometer não ir ao baile do
eclipse, tudo por causa de um pressentimento. Todos sabendo coisas que
não deveriam saber, conhecimento a encaixar no lugar certo sem uma
explicação lógica.
– Então, tem sido você desde o início. – A visão de Lore ficou turva, a
argola de ferro que lhe prendia as correntes a tornar-se uma mancha
cinzenta em contraste com o chão. – A observar-me desde que saí das
catacumbas, a organizar a rusga para eu me expor. A trazer-me aqui e a
plantar pistas que me levariam a despertar o exército, tudo para pôr no
devido lugar as peças da sua visão. Ludibriando também o August, até ele
ter decidido que queria a guerra.
Anton assentiu, de forma tranquila e imperturbável.
Tão habituados a serem usados, todos.
– E você? – Lágrimas ainda lhe turvavam a visão; quando olhou para
Gabe, viu apenas uma sombra alta, um clarão de vermelho dourado. – Ficar
comigo, estar com… ser meu amigo? – Calou-se antes que dissesse outra
coisa, algo mais acalorado. – Foi tudo fingido?
– O Gabriel estava tão a leste como tu – disse Anton. – Quando ontem
me procurou e me contou o teu plano, esperava que eu te travasse. Estava
muito relutante em deixar-te deambular pelas catacumbas.
Lore baixou o olhar e concentrou-se intensamente no chão sob os seus
pés.
– Eu disse-lhe, então, o que precisávamos que acontecesse. O rumo que
seguíamos. A nossa necromante a erguer os mortos e os poderes do meu
sobrinho aperfeiçoados pelos teus, para ele poder aceder ao seu lugar de
pleno direito. Agora, infelizmente, há ainda a questão do eclipse. Da tua
Consagração, Lore.
– A minha Consagração?
– O teu poder sobre a Mortem atingirá o seu pico no teu vigésimo quarto
aniversário. Que coincidirá com o eclipse. – Anton cruzou os braços. – O
August planeia matar-vos a ambos e retirar-vos o poder no baile.
– Mas, como é que ele o faria? – Ela dirigiu a sua pergunta para o solo;
sentia a cabeça demasiado pesada para a erguer. – Roubar o nosso poder?
O rosto com cicatrizes do Supremo Sacerdote quase se revelou piedoso.
– Matando-te no momento em que o eclipse é total, quando a lua tapa
por completo o sol. Quando os poderes da vida e da morte podem ser
brandidos juntos. – O olho dele cintilou. – Quando os recipientes eleitos se
manifestam.
– Não – disseram Bastian e Gabe em uníssono, as suas vozes em
harmonia contra as paredes de mármore. Lore levantou a cabeça; os dois
homens entreolharam-se com puro ódio, todos aqueles sentimentos
complexos finalmente a cristalizar em algo afiado como uma lâmina.
– Ele não vai matar a Lore. – Gabe desviou o olhar de Bastian, para fitar
antes Anton. – Disse…
– Paz, meu filho. – Palavras calmas, mas a voz de Anton eriçou-se. Gabe
encolheu-se. – A Lore estará absolutamente segura.
– Parece-me que o melhor seria escondê-la até terminar o eclipse. –
Gabe avançou, espetando o queixo com determinação; contava com outra
razão para hesitar e quis evitar que tal acontecesse desta vez. Nada disse
sobre a segurança de Bastian. – Mantê-la aqui ou enviá-la para as mães
dela.
Mari e Val. Chamar-lhes mães, mesmo conhecendo já a sua verdadeira
origem, parecia uma espécie de absolvição.
Todavia, Anton abanou a cabeça antes que Gabe acabasse de falar.
– Não resultará. Necessitamos de que as coisas prossigam como se não
fizéssemos ideia do que o August planeia, para que ele não desconfie.
– Então, vamos a esse maldito baile como se nada se passasse – disse
Bastian, olhando para Lore –, e confiamos que tu impedes o meu pai de nos
matar e iniciar uma guerra.
As suas palavras estavas carregadas de ceticismo.
– Tu – murmurou Anton –, não fazes ideia das coisas que impedi que o
teu pai fizesse, Bastian. De todas as coisas de que te protegi.
Isso bastou para o fazer desviar o olhar do de Lore. Pela primeira vez
desde que ela o conhecia, o Príncipe Sol pareceu completamente perdido.
– Muito bem. – Anton virou-se para Gabe, como se o assunto estivesse
encerrado. – O baile é daqui a dois dias. Sugiro a todos que descansem
bastante até lá, pois é garantido que será uma longa noite. Lore, ficas nos
teus aposentos. O Gabriel leva-te lá e fica de guarda.
Mantém-na prisoneira. Garante que ela não foge. Lore desejou ter força
suficiente para ainda assim o tentar, mas não tinha. Os últimos dias tinham-
na esgotado.
– Bastian – disse Anton, virando-se para trás. – Acho que é melhor
ficares aqui.
Uma gargalhada que pareceu um latido rude.
– Cá está. – Bastian recostou-se na cadeira e agitou os pulsos para fazer
tinir as correntes. – Então, agora sou um prisioneiro?
– Pensa antes que és um convidado – replicou Anton.
Bastian não respondeu, mas os seus olhos cintilaram com uma promessa
fria de violência.
– Eu mantenho-te em segurança, sobrinho – murmurou Anton, quase
com reverência. – A seu tempo, tudo será revelado.
Lore não percebia o significado daquilo. Pelos vistos, Bastian também
não. Ela deixou que Gabe lhe desapertasse as correntes, deixou que a
encaminhasse em silêncio até à porta.
Quando olhou para trás, o dia já rompera por completo na janela atrás de
Bastian, deixando-lhe as feições na sombra, recortando-o a dourado.
Iluminava-o como raios em redor de um sol, como um halo.
Capítulo 38
V inte minutos mais tarde e faltando dez para as oito, Gabe abriu de novo
a porta, precisamente quando Lore passava um pente pelo cabelo.
– Dê-me um segundo – disse ela, torcendo-o numa trança desordenada e
espalhando-o em volta da cabeça. O saco também continha um conjunto de
ganchos de cabelo pretos; prendeu-os na trança para a segurar e só se picou
na cabeça uma vez.
Ele nada disse, manteve a postura tensa. Os seus ombros ocupavam
quase por completo a largura da porta, sólidos e direitos. Ele tinha
controlado a apreensão que antes os deixava curvados. Um som áspero; a
garganta dele a aclarar.
– Estás…
Estava bonita e tinha noção disso. O vestido servia-lhe na perfeição,
como se tivesse sido feito à medida para ela, e a falta de ornamentos ou
joias assentava bastante bem. Lore resistiu à tentação de rodopiar. Fizera-o
umas vezes antes de ele abrir a porta, mas, por muito gratificante que
tivesse sido o rodopiar de saias, parecia-lhe algo mórbido, tendo em conta o
iminente ritual da desgraça. Em vez disso, ignorou Gabe, apontou com a
cabeça para o reflexo no espelho manchado e abeirou-se da porta.
– Vamos lá despachar isto.
Porém, ele não se moveu. Bloqueou a porta, olhando de alto para ela
com uma expressão que parecia pairar algures entre a determinação e a dor.
Ela olhou-o nos olhos, tentando impedir que a sua expressão revelasse o
que quer que fosse.
– Vou manter-te em segurança – murmurou ele. – Podes confiar nisso.
– Eu não posso confiar em nada – disse ela com leveza, sem vacilar; não
iria vacilar diante dele. Indicou a porta com a cabeça. – Vamos atrasar-nos.
Ele demorou-se ali mais um pouco, procurando palavras, mas sem
sucesso. Por fim, virou-se e ofereceu-lhe o braço, tal como fizera quando
eram recém-chegados e estavam vestidos como dedaleiras, rumando ao
baile de máscaras de Bastian sem fazerem ideia do que esperar.
Encaminharam-se para o vestíbulo. Seguiram em silêncio.
L ore não sabia o que tinha esperado. Anton dissera que impediria August
de completar o ritual, e não havia dúvida de que matá-lo tratara da
questão. Ponderou nesse facto com um distanciamento alheado, mesmo
com a morte e a vida a percorrerem-na numa mistura inebriante, turvando-
lhe a vista da cor para uma escala de cinzentos e de novo para a cor.
Bastian estava com os olhos arregalados, e lívido. Tinha a boca aberta,
mas de lá não saiu qualquer som. A dada altura, vira-se forçado a ajoelhar-
se e agora estava de joelhos sobre o seu próprio sangue, como um
suplicante num altar.
Ninguém mais conseguia ver o que sucedera, ainda não. A forma como
os irmãos se encontravam posicionados bloqueava a vista a todos os que
estavam atrás. Anton largou a faca, a lâmina a manchar de carmesim o
tecido branco ao cair antes de aterrar nas dobras da túnica aos seus pés,
mantendo-a escondida. As suas mãos agarraram os ombros do seu gémeo,
aguentando-o de pé para se manterem com os olhos nivelados, mesmo
quando os joelhos do rei cediam.
Um fluido rosado borbulhou nos lábios de August. Ele fez um som
sufocado e arquejante.
Pelo canto do olho, Lore viu Bastian a encolher-se.
– Nunca percebeste – disse Anton, num tom baixo e apaziguador, como
alguém que tenta falar com um cavalo assustado. – Apollius nunca comete
erros. Nunca. Em relação a nada.
– Tens razão. Equivoquei-me. – As palavras de August eram coisas
destroçadas, caindo desajeitadamente de uma boca débil. Uma derradeira
tentativa para se salvar. – Não sabia quão sagrado…
– Não quiseste saber – resmoneou Anton. – Não quiseste compreender,
pois querias o poder para ti. Uma profecia para se cumprir e fechaste os
olhos. – Sacudiu o irmão, salpicos de sangue a voar da boca de August,
manchando-lhe a face. – Este é o preço da traição.
– Não – disse August baixinho, recorrendo ao que restava da sua força
para falar. – É o preço da inveja. Quem peca agora, irmão?
O rosto pintalgado de sangue de Anton petrificou-se. Num único gesto,
largou os ombros do seu gémeo e recuou. O Rei Santo desabou no chão.
August ainda sorvia ar inútil, ainda se contorcia enquanto Anton se
virava para a multidão. Nenhum dos cortesãos reunidos pareceu
surpreendido. Já contavam com aquilo. Toda a gente em que August
confiara devotara a sua lealdade a Anton, com a Igreja finalmente a
sobrepor-se à Coroa.
A única expressão de espanto era a de Alie, ainda agarrada por
Bellegarde, com uma mão a tapar a boca. Alie, e Bastian. Bastian estava
com um ar de quem poderia desmaiar a qualquer momento, ainda ajoelhado
sobre o seu próprio sangue. A sua cabeça deixara de sangrar, formando uma
crosta no lado do rosto, a cor lúrida a fazer com que o branco dos seus olhos
arregalados se destacasse.
Anton ergueu as mãos, exatamente com a mesma postura adotada por
August.
– Fiéis – entoou ele –, todos sabíamos que August não era aquele que
nos conduziria rumo à nossa nova…
Um grito interrompeu-o. Lore não percebeu que fora ela até sentir os
maxilares bem abertos.
A dor espalhou-se no seu abdómen, tremendamente quente e ardente. O
Presque Mort que a segurava largou-a, espantado; ela deixou-se cair de
joelhos.
A faca. A faca de August, prata e ouro e cravada no seu flanco.
Atrás de Anton, o amontoado sangrento do rei inclinou-se, com a mão
que atirara a faca estendida. A sua palma atingiu o estrado com um baque,
um sorriso a revelar dentes manchados de sangue.
– Não será ele – disse, as palavras tartamudeadas por entre sangue e
bílis, e todos os fluidos que um corpo moribundo liberta quando o equilíbrio
por fim vacila. – Não, se eu a matar.
A visão de Lore passou a um único tom, tudo a preto ou branco ou um
cinzento intermédio. O próprio corpo dela era um caos de brilho preto e
branco, Mortem e Spiritum entrelaçados, tanto devido ao ritual
protagonizado por August como ao ferimento nas entranhas dela.
Ao longe, ouviu alguém chamar pelo seu nome. Bastian.
Mas Anton não pareceu abalado. Ergueu os olhos para o céu, suspirando
como um pai face a uma criança desobediente, e depois virou-se para o rei
caído.
– Um ferimento nas entranhas demora a matar alguém – comentou –, um
facto que começo a lamentar.
Anton ergueu o pé, calçado com uma bota pesada, e abateu-o sobre a
cabeça de August. A luz branca em redor do rei espiralou para longe como
uma brisa, uma nuvem de escuridão a assumir o seu lugar.
Matéria encefálica manchou a sola da bota de Anton quando a ergueu
das ruínas do crânio de August.
Lore vomitou vinho. Acumulou-se pegajoso no seu colo, misturando-se
com o sangue do seu estômago.
Mais gritos, mas soavam como se viessem de debaixo de água. Ela não
conseguia organizar os seus pensamentos em linhas corretas. Tudo era dor e
tudo se desvanecia.
A voz de Bastian interrompeu o ruído, o timbre reconhecível mesmo não
o sendo as palavras. A de Gabe, o mesmo, rugidos sem som, rosnadelas,
choques de aço e o som de punhos a socar. Devia ter despertado. Isso era
bom. Talvez ambos vivessem. Dois em três não era mau.
– Levem-na para os jardins – disse Anton e, vagamente, Lore sentiu
mãos sob os joelhos, em volta dos ombros, erguendo-a como uma nobre
desmaiada. – Ela espera-nos lá.
Os olhos de Lore tremularam ao fechar.
Solo duro. Frio a imiscuir-se pelas roupas arruinadas, fazendo com que o
ferimento no seu corpo e a sua mão cortada doessem. Vento através da
pedra, fazendo rodopiar folhas transformadas em rocha, pétalas de granito.
Lore obrigou-se a abrir os olhos.
O jardim de pedra. Ardiam tochas em redor do poço, substitutas da luz
furtada pelo eclipse. Ainda tinha a visão turva, a dor e a perda de sangue
dificultavam-lhe focar o olhar, mas conseguia ver Anton parado diante do
poço aberto, a estátua de Apollius que o mantinha encerrado pacatamente
pousada ao lado. Outras formas indistintas em volta dele – os Presque Mort,
todos os que não foram enviados para a aldeia para lidar com os novos
cadáveres. Novos cadáveres, como o sonho dela…
Havia outra figura junto a Anton, parada do outro lado do poço. Esbelta,
vestida de preto, com um longo cabelo louro.
Anton virou-se antes que a mente dela lhe permitisse compreender o que
via. Uma pequena bênção.
– Ah. Lore.
Ao ouvir o nome dela, dois dos Presque Mort aproximaram-se,
erguendo-a com cuidado. Sangue empapado no lado do seu vestido; a
cabeça pesada como as rosas de pedra que delimitavam o carreiro.
– Estiveste tão bem – disse o Supremo Sacerdote enquanto ela
cambaleava na direção dele. – A sério, Lore, devias sentir-te orgulhosa de ti
mesma. Por fazeres parte disto, por ter Apollius a referir-se a ti pelo nome.
E por mais de uma vez! A visão que me deu a minha cicatriz foi quando
ouvi falar de ti pela primeira vez, mas Ele desde então falou comigo…
Disse-me para aprender a arte de aceder aos sonhos dos outros, como
extrair o teu poder para formar o nosso exército de mortos-vivos.
Falava demasiado depressa, com demasiado entusiasmo, como se tivesse
estado à espera da oportunidade de revelar todos aqueles segredos.
– Cale-se – disse Lore, mas saiu como um crocitar e Anton não ouviu.
– O facto de o Gabe te ter ensinado a proteger a mente foi um pouco
problemático – prosseguiu o Supremo Sacerdote. – Paguei bem caro por lhe
ensinar esse truque. – A sua mão afagou a outra, aquela com as cicatrizes
recentes.
A mão sem cicatrizes segurava um diadema dourado, com granadas
incrustadas. A coroa de August, aquela simples que ele usava quando o
irmão o golpeou. Lore não percebia por que razão ele ainda não a pusera.
– Mas tudo acabou por se desenrolar como era suposto – prosseguiu o
Supremo Sacerdote. – Quando por fim morreres, quando voltar a golpear-te
(as minhas desculpas por esse momento desagradável, mas será necessário),
o teu poder vai passar para o Bastian. Ele deterá a magia da vida e da morte,
o Spiritum e a Mortem. E então começará.
Contudo, Lore mal percebia, as palavras desviavam-se dela como o
azeite da água. Pois o seu olhar finalmente tinha-se focado na pessoa do
outro lado do poço.
Cabelo dourado e liso. Feições finas e pálidas. Um corpo alto e esguio,
tão diferente do de Lore. Mas os olhos luminosos cor de mel, esses eram
iguais.
Uma Irmã da Noite. Aquela que lhe fizera a cicatriz em forma de lua e
depois decidira salvá-la, enviando-a para a superfície em vez de para aquele
túmulo de obsidiana onde lhe seria extraída a mente e ficaria com um olhar
inexpressivo, algo vital arrancado.
A mulher sorriu e no seu sorriso havia genuíno pesar.
– Olá, filha.
Capítulo 41
Este livro, e todos os meus livros, não existiriam sem o incrível trabalho
da minha agente, Whitney Ross. Que haja muitas mais histórias no futuro e
que sejam cada vez mais loucas.
Sinto-me eternamente grata à minha editora, Brit Hvide, cuja orientação
é sempre inestimável e que, de facto, me obriga a clarificar as coisas.
(Obrigada, eu preciso.) Adoro criar livros contigo e espero criar muitos
mais.
Toda a equipa da Orbit é fantástica e sinto-me continuamente radiante
pela sorte que tenho por trabalhar com eles.
Ao meu Pod – sem o qual não estaria aqui.
A todas as minhas maravilhosas amigas que têm constado de todos os
meus agradecimentos e que continuarão a constar – Sarah, Liz, Nicole,
Ashley, Chelsea, Jensie, Steph, Leah – adoro-vos infinitamente.
E a Caleb – és um borracho e fico contente por seres meu. És um
achado.
Contents
1. Ficha Técnica
2. Capítulo 1
3. Capítulo 2
4. Capítulo 3
5. Capítulo 4
6. Capítulo 5
7. Capítulo 6
8. Capítulo 7
9. Capítulo 8
10. Capítulo 9
11. Capítulo 10
12. Capítulo 11
13. Capítulo 12
14. Capítulo 13
15. Capítulo 14
16. Capítulo 15
17. Capítulo 16
18. Capítulo 17
19. Capítulo 18
20. Capítulo 19
21. Capítulo 20
22. Capítulo 21
23. Capítulo 22
24. Capítulo 23
25. Capítulo 24
26. Capítulo 25
27. Capítulo 26
28. Capítulo 27
29. Capítulo 28
30. Capítulo 29
31. Capítulo 30
32. Capítulo 31
33. Capítulo 32
34. Capítulo 33
35. Capítulo 34
36. Capítulo 35
37. Capítulo 36
38. Capítulo 37
39. Capítulo 38
40. Capítulo 39
41. Capítulo 40
42. Capítulo 41
43. Epílogo
44. Agradecimentos
Landmarks
1. Cover
2. Title-Page
3. Table of Contents
4. Acknowledgments