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Ficha Técnica

Título: O Rei de Foxglove


Título original: The Foxglove King
Autor: Hannah Whitten
Tradução: Rui Azeredo
Revisão: Raquel Dutra Lopes e Graça Samagaio
ISBN: 9789896618803

QUINTA ESSÊNCIA
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© Hannah Whitten, 2023


Publicado por acordo com A.C.E.R
Agencia Literária.
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www.leya.com

Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.


Índice
Ficha Técnica
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Epílogo
Agradecimentos
A todos os que se escolheram a si próprios.
O mundo é demasiado para nós; tarde e cedo,
Recebendo e gastando, desperdiçamos os nossos poderes:
Pouco vemos na natureza que nos pertença;
Oferecemos os nossos corações, uma sórdida dádiva!
Este Mar que se exibe à lua;
Os Ventos que uivarão a todas as horas
E que agora estão recolhidos como flores adormecidas;
Por isto, por tudo, estamos desafinados;
Não nos comove.
– William Wordsworth
Capítulo 1

Ninguém é mais paciente do que os mortos.


– Provérbio auverrani

T odos os meses, Michal alegava ter estabelecido um acordo com o


senhorio e, ainda assim, todos os meses Nicolas enviava um dos filhos
para receber a renda. Os irmãos deviam tirar à sorte – o desafortunado
daquele mês fora Pierre, o mais jovem e imberbe do bando, que se arrastava
pela rua acima no Bairro Portuário de Dellaire com o ar de quem seguia a
caminho da guilhotina.
Lore não se incomodou com isso.
Um roupão que já vira melhores dias tombava-lhe de um ombro
enquanto se mantinha apoiada no caixilho da porta e o observava a
aproximar-se. O olhar de Pierre incidia constantemente no ponto onde o
tecido se abria e ela teve de morder a bochecha para não desatar a rir.
Aparentemente, um entrecruzado de cicatrizes prateadas de lutas de faca em
vielas não desencorajava o homem à frente dela de pele despida.
Ela tinha outras cicatrizes mais interessantes, mas manteve a palma da
mão fechada.
Soprava uma brisa fresca vinda do mar e Lore conteve um arrepio. Pierre
parecia não se dar ao trabalho de pensar no que a levara a sair de casa tão
parcamente vestida quando as manhãs junto ao porto eram sempre frias, até
no verão. Um alvo fácil, em mais do que um sentido.
– Pierre! – Lore mostrou-lhe um sorriso estonteante, aquele que levava
os olhos de Michal a aquecerem e estreitarem-se em simultâneo antes de lhe
perguntar o que queria. Outro ondular junto ao caixilho da porta, outra pose
aparentemente descontraída, outra rajada de vento que a levou a praguejar
entre dentes. – Já é fim do mês?
Devia ser Michal a tratar deste assunto. A maldita casa geminada era
dele. Mas a entrega que ele fizera na noite passada para Gilbert tinha sido
na Ala Noroeste, pelo que Lore o deixara dormir mais.
Além disso, acordar cedo dera-lhe tempo para lhe revistar os bolsos em
busca das coordenadas da entrega. Tinha-as levado à tasca na esquina e
deixara-as com Frederick, o empregado, que estava ao serviço de Val desde
que Lore tinha memória. Val enviaria alguém para as recolher antes que o
sol nascesse por completo e mandaria outra pessoa buscar a entrega de
veneno de Gilbert antes que o cliente dele pudesse chegar.
Lore era boa no que fazia.
Naquele preciso momento, a sua função passava por assegurar que o
homem com quem começara a viver um ano antes para poder espiar-lhe o
chefe não era despejado.
– Eu… hum… sim, sim é. – Pierre conseguiu fixar os olhos nos dela, por
via de um esforço absolutamente notório. – O meu pai… hum, ele disse que
desta vez está a falar a sério, e…
Lore fez com que a sua expressão se fosse abatendo gradualmente, com
cuidado, primeiro demonstrando confusão, depois espanto e por fim pena.
– Oh – murmurou ela, passando os braços à volta do corpo e virando o
rosto para mostrar um bom pedaço de pele branca do pescoço. – E logo
neste mês.
Não desenvolveu. Não era necessário. Se algo aprendera em vinte e três
anos de vida, dez deles passados nas ruas de Dellaire, era que os homens
por norma preferiam que se fosse uma peça imóvel na história que
inventavam, mais do que um elemento ativo.
Pelo canto do olho, viu as sobrancelhas claras de Pierre unirem-se, um
corar crescente a iluminar-lhe a pele sob as sardas. Todos eles eram pálidos,
os rapazes de Nicolas. Assim, ao corarem parecia tratar-se de algum vírus.
O olhar dele ultrapassou-a e fixou-se nas profundezas da casa geminada
dilapidada. Sombras do amanhecer escondiam tudo, exceto as partículas de
pó que bailavam em feixes de luz. Mas também não havia ali muito que ver.
Michal ainda dormia lá em cima e a irmã, Elle, estava estendida no sofá,
com uma garrafa de vinho numa mão e um ressonar vagamente musical nos
lábios. Era uma casa geminada igual a qualquer outra da rua, a rebentar
pelas costuras e cheia de gente que se ia desenrascando a viver nas margens
da lei.
Ou muito para lá dessas margens, como podia ser o caso.
– Está alguém doente? – Pierra mantinha um tom de voz sussurrado,
baixo. Tentava mostrar uma expressão compreensiva, mas mais parecia que
tinha posto leite estragado no café. – Uma criança, talvez? Sei que é o
Michal que aluga esta casa, e não tu. É dele?
As sobrancelhas de Lore arquearam-se subitamente. De todas as histórias
que havia deixado que os homens fantasiassem em redor dela, aquela era
uma estreia – Pierre devia ter sexo na mente para saltar de imediato para
uma gravidez. Mas a cavalo dado não se olha o dente. Pousou gentilmente
uma mão sobre a barriga e isso bastou como resposta. Tecnicamente, não
seria mentira se deixasse que fosse ele a chegar às suas conclusões.
Porém, ela já nem queria saber das mentiras. Que lhe importava se
mantinha imaculado o seu registo espiritual? Mais valia aproveitar a deixa.
– Oh, pobrezinha. – Pierre devia ser mais novo do que ela, mas ali estava
a comportar-se como uma mãe galinha. Lore conseguiu evitar um revirar de
olhos, mas foi por pouco. – E logo com um traficante de veneno? Sabes
bem que ele não conseguirá tomar conta de ti.
Lore voltou a morder a bochecha por dentro, com força.
A aparente perturbação dela estimulou Pierre ainda mais.
– Podias vir comigo – disse-lhe. – O meu pai podia ajudar-te a encontrar
trabalho, tenho a certeza. – Levantou uma mão e pousou-lha no ombro
exposto.
E Lore sentiu todos os nervos do corpo a retesarem-se.
Foi suficientemente abrupto e inesperado para ela se retrair, sacudir a
mão dele num gesto que não batia certo com a narrativa suave e vulnerável
que estava a apresentar. Habituara-se a sentir aquele tipo de reação com
coisas mortas – pedras, metais, tecidos. Cadáveres, quando não tinha como
evitá-los. Era natural sentir a Mortem em algo morto, por muito
desagradável que fosse, e já era capaz de disfarçar a sua reação, contê-la.
Tinha prática suficiente.
Mas não podia sentir a Mortem num homem vivo, não em alguém que
não estivesse às portas da morte. O choque foi rápido e intenso e
acompanhado por algo mais – o odor a dedaleira. Tão forte que ele devia ter
tomado uma dose poucos minutos antes de chegar.
E tinha-se posto a falar mal de traficantes de veneno. Hipócrita.
Cerrou os dedos sobre o pulso dele, torceu-o e obrigou-o a ajoelhar-se.
Foi rápido, suficientemente rápido para que ele escorregasse numa pedra
solta e projetasse uma perna num ângulo estranho, levando a que um
«Merda!» estrangulado ecoasse pelas ruas matinais do Bairro Portuário de
Dellaire.
Lore agachou-se para ficarem cara a cara. Agora que sabia o que
procurar, era evidente nos olhos dele, raiados de sangue e vidrados; na
batida lenta irregular do coração sob a palma da sua mão. Ele recorrera a
um dos traficantes de morte baratos, um daqueles que não sabiam
administrar a dose adequada aos seus clientes. As rugas nos cantos dos
olhos de Pierre apresentavam pouco cinzento, pelo que não lhe fora dado
veneno suficiente para algum tipo de extensão de vida e sem dúvida não o
suficiente para que deitasse mão ao poder que aguardava no limiar da
morte.
De qualquer forma, não deveria ser isso que ele buscava. A maioria das
pessoas da idade dele só queriam a pedrada.
As linhas sombrias da Mortem sob a pele de Pierre contorceram-se sob o
aperto de Lore, despertadas e agitadas pelo veneno no organismo dele. A
Mortem estava adormecida em todos – a essência da morte, a energia
nascida da entropia, à espera de inundar o corpo no dia em que este falhava
–, mas para a usar, para a vergar à nossa vontade, era preciso quase morrer.
Se não se procurasse o poder ou a sensação de euforia que o veneno
pode facultar, então procuravam-se os anos extras. Na devida dose, o
veneno podia equilibrar o corpo no limiar da vida e da morte e essa
concessão momentânea à Mortem era capaz, paradoxalmente, de estender a
vida. Não que a vida que se recebia em troca fosse de grande qualidade –
meio empedernida, com as veias revestidas a rocha, a fazer com que o
sangue roçasse nelas como uma pedra da calçada a arranhar um joelho.
Independentemente do que o tivesse levado a visitar um traficante de
morte naquela manhã, Pierre não pagara o suficiente para o obter. Se tivesse
apanhado uma verdadeira pedrada de veneno, encontrar-se-ia caído algures
numa viela, em vez de estar a pedir-lhe o dinheiro da renda. A renda era
mais alta do que ela se recordava, agora que pensava nisso.
– O que se vai passar é o seguinte – murmurou Lore. – Vais dizer ao
Nicolas que lhe pagámos os próximos seis meses ou vou contar-lhe que tens
andado a gastar as coroas dele em traficantes de morte.
Que se lixassem as negociatas ineficazes de Michal com o senhorio. Ela
acabara de fazer uma por sua conta.
Pierre arregalou os olhos, as pálpebras pesadas devido ao veneno.
– Como…
– Tresandas a dedaleira e os teus olhos mais parecem janelas. – Não era
propriamente verdade, dado que ela não reparara até ter sentido a Mortem,
mas, quando ele conseguisse examinar-se a si próprio, o efeito já teria
passado. – Basta olhar para ti para se perceber, Pierre, apesar de o teu
traficante de morte mal te ter dado o suficiente para sentires alguma coisa.
Surpreender-me-ia se obtivesses cinco minutos extras com isso, logo espero
que a moca tenha valido a pena.
O rapaz ficou abismado, de boca aberta sob os olhos vidrados a fazer
com que a sua cara fizesse lembrar um peixe. Tinha dado, sem dúvida, uma
boa quantia pela pitada de dedaleira que tomara. Se não fosse tão boa a
espiar para Val, a própria Lore poderia ter-se tornado traficante de morte.
Ganhavam uma pipa de massa sem fazerem praticamente porra nenhuma. O
triste enrubescimento de Pierre espalhou-se pelo seu pescoço.
– Não posso… Ele vai perguntar pelo dinheiro…
– Não duvido que um jovem astuto como tu há de desencantar algum
algures. – Com um agitar de dedos, Lore soltou-o.
Pierre endireitou-se sobre pernas bambas e alisou a camisa amarrotada.
As veias cinzentas nos cantos dos olhos já estavam a recuperar o azul-
esverdeado.
– Vou tentar – disse ele, a voz tão trémula como todo ele. – Não posso
prometer que ele acredite em mim.
Lore mostrou-lhe um sorriso confiante. Levantando-se, puxou o roupão
para tapar o ombro.
– É bom que acredite.
Pierre não correu rua fora, mas caminhou muito depressa.
Conforme o sol ia subindo, o Bairro Portuário começou lentamente a
despertar – molhos de trapos remexiam-se em recantos sombrios, bêbedos
eram acordados pela luz e pela brisa do mar. Nas casas geminadas do outro
lado da rua, Lore escutou os suspiros reveladores das raparigas de Madame
Brichfort a iniciarem as suas discussões diárias sobre quem usaria a
banheira primeiro e pelo menos dois clientes não tardariam a ser educada,
mas firmemente, acompanhados ao exterior.
– Pierre? – chamou ela quando ele ia já a meio da rua.
Ele virou-se, de lábios cingidos, visivelmente a ponderar com o que mais
poderia ela chantageá-lo.
– Um pequeno conselho. – Virou-se para a casa de Michal num esvoaçar
do roupão desbotado. – Os verdadeiros traficantes de morte têm morgues
nas traseiras. A balança da morte pende com facilidade para o lado errado.

Elle estava acordada, mas à justa. Espreitou sob um amontoado de


caracóis dourados por entre o pó pejado de luz, ainda com tinta espalhada
sobre os lábios.
– Qu’éisso?
– Como se não soubesses. – Lore sacudiu a mão que tocara no ombro de
Pierre, tentando libertar-se do formigueiro. Recentemente, tornara-se fácil
para si sentir a Mortem e não apreciava essa novidade. Sacudiu uma vez
mais a mão com firmeza antes de rumar à cozinha. – Fim do mês, Elle-Flor.
O café que restava no bule de cerâmica lascado mal dava para uma
chávena. Lore despejou tudo no trapo manchado que usava como filtro e
apertou-o entre os dedos para pousar a cafeteira no lume. Se só havia uma
chávena de café naquela casa, seria ela a bebê-la.
– Não me chames isso. – Elle resmoneou ao remexer-se para se sentar.
Adormecera com as meias-calças de bailarina e tinha uma malha solta a
subir-lhe em cada coxa. Isso irritara-a assim que o vira, mas os clientes do
Buzina e Violino ao fundo da rua não se importavam. Espreitando com os
olhos semicerrados para a garrafa de vinho para se assegurar de que se
encontrava vazia, Elle apoiou-se no sofá para se levantar.
– O Michal não está acordado, não temos de fingir que gostamos uma da
outra.
Lore resfolegou. Naquele ano que tinha passado a viver com Michal,
tornara-se bastante evidente que nunca se daria bem com a irmã dele. Isso
não a incomodava. O seu relacionamento com Michal assentava numa
mentira, fundações arenosas sem esperança de fixação, então, porquê tentar
travar amizades? Assim que Val ordenasse, ela partiria.
Elle passou por si ao rumar à cozinha, com as rachas tipo teia de aranha
nas janelas a deixarem entrar uma luz venosa nas pontas esfarrapadas da
sua saia de tule. Espreitou a cafeteira.
– Não há café?
Lore cerrou ainda mais a mão sobre o trapo preso no seu punho.
– Infelizmente, não.
– Valha-me Deus. – Elle abateu-se numa das cadeiras junto à mesa da
cozinha esburacada. Para bailarina, era surpreendentemente deselegante
quando estava sóbria. – Então aceito um chá.
– Não deves estar à espera de que eu to prepare.
Elle resmungou e revirou os olhos azuis brilhantes enquanto gingava
rumo ao armário. Aproveitando que ela estava de costas, Lore prendeu o
pano na beira da caneca e despejou água quente por cima, na esperança de
que Elle continuasse demasiado embriagada para reconhecer o aroma.
Ainda a resmungar, Elle serviu o chá, que era pouco mais do que pó,
noutra caneca.
– Então? – Tirou a chaleira a Lore sem olhar para ela e, aparentemente,
sem sentir o cheiro a café. – Como é que correu? O Michal vai finalmente
ter de gastar dinheiro em algo mais do que álcool e apostas no ringue de
boxe?
– Em renda não há de ser. – Lore manteve-se de costas voltadas
enquanto puxava o pano e o pequeno punhado de grãos de café da chávena,
tornando a enfiá-los no bolso. – Está paga por seis meses.
– É por isso que estás com um ar tão desgrenhado? – Ella repuxou os
lábios num sorriso presumido. – Ele podia ter arranjado mais barato do
outro lado da rua.
– O ar desgrenhado é, na verdade, culpa do teu irmão. – Lore virou-se e
apoiou-se no balcão. – E farpas sobre as meninas da Madame não te
assentam bem, Elle-Flor. É um trabalho como qualquer outro. Pensar o
contrário só prova que és tapada.
Mais um revirar de olhos. Elle fez uma careta ao bebericar o seu chá
fraco e uma satisfação mais intensa abriu ainda mais o sorriso de Lore.
Bebeu um longo e luxuriante gole de café e avançou vagarosamente para as
escadas. Chegara à taberna uma mensagem para si – Val necessitava da sua
ajuda para uma entrega naquele dia. Era arriscado trabalhar estando
profundamente infiltrada noutra operação, mas andavam com falta de
pessoal. Estavam sempre a contratar gente nas docas.
E Lore tinha talentos que mais ninguém tinha.
Arranjaria uma desculpa para a sua ausência ao longo de todo o dia, mas,
se acordasse Michal com uns beijos, ele não lhe faria mais perguntas. Deu
por si a sorrir com a ideia. Gostava de beijar Michal. Isso era perigoso.
O sorriso desvaneceu-se.
Os degraus da casa eram instáveis, como quase tudo naquela estrutura, e
o quarto rangeu horrivelmente. Lore retraiu-se quando o seu tacão ficou lá
preso e o safanão a fez derramar café e queimar os dedos.
Michal estava a sentar-se quando Lore afastou a cortina esfarrapada que
rodeava o quarto deles. Tinha o lençol emaranhado à volta da cintura e a
cair para o chão, onde se amontoara. Não se percebia se teria acordado com
o degrau rangente ou com o palavrão sonoro quando ela se queimara.
Ele afastou o cabelo negro dos olhos e semicerrou-os.
– Café?
– Última caneca, mas partilho, se a vieres buscar.
– Muito generoso, dado que assumo que estejas a precisar de o beber –
resmoneou Michal ao levantar-se do colchão pousado no chão, segurando o
lençol em volta das ancas despidas. – Tiveste outro pesadelo esta noite.
Estrebuchaste como se fosses perseguida pela própria Feiticeira da Noite.
Apesar de corar, Lore limitou-se a encolher os ombros. Os pesadelos
eram um desenvolvimento recente, e aleatório. Nunca se recordava muito
bem deles, apenas de umas impressões vagas que não batiam certo com a
sensação aterrorizadora que deixavam. Um céu limpo azul, um mar agitado.
Uma forma escura no ar, como fumo, mas mais denso.
Lore esticou o braço com o café.
– Desculpa se não te deixei dormir.
– Pelo menos, desta vez não gritaste. – Michal bebeu um longo gole da
caneca que ela lhe passou, mas fez uma careta ao engolir. – Sem leite?
– A Elle usou o que havia. – Lore encolheu os ombros e voltou a pegar
na caneca, sorvendo o resto.
Michal passou uma mão pelo cabelo para o tentar domar enquanto se
curvava para apanhar a roupa da pilha no chão. O lençol caiu e Lore
permitiu-se a um momento de apreciação.
– Tenho outra entrega hoje – informou ele enquanto se vestia. – Por isso,
é provável que só volte à noite.
Isso facilitava-lhe imenso a vida. Lore apoiou as ancas no parapeito da
janela e observou-o a vestir-se, esperando que o alívio não fosse notório na
sua expressão.
– O Gilbert não te dá descanso.
– A procura cresceu e a equipa é cada vez mais pequena. As pessoas
continuam a ser contratadas nas docas para transportar carga, pagam-lhes
mais do que o Gilbert consegue cobrir. – Michal observou o quarto com
atenção até dar com a bota por baixo de um monte de lençóis no canto. – Os
Presque Mort e os casacas de sangue têm andado ocupados a preparar-se
para a Consagração do Príncipe Sol amanhã e toda a gente se aproveita do
facto de, como se costuma dizer, eles estarem de costas voltadas.
Aparentemente, Gilbert fazia mais negócio do que seria aconselhável na
calmaria, mas isso não era problema dela. Pelo menos, foi isso o que disse a
si mesma quando sentiu nas entranhas uma tensa preocupação por Michal.
– Devem estar a planear uma Consagração profundamente sagrada, dado
o convite aos Presque Mort. Não são conhecidos por serem os convidados
mais animados para uma festa.
Michal conteve uma gargalhada enquanto calçava as botas.
– Em especial se a festa incluir veneno. – Rodou o pescoço, tentando
expulsar a rigidez de dormir num colchão duro como uma tábua, e
levantou-se.
– Tem cuidado logo à noite – recomendou Lore, cerrando de imediato os
dentes. Não era sua intenção dizer aquilo. Não era sua intenção dizê-lo com
sinceridade.
Um sorriso dengoso formou-se na boca dele. Michal aproximou-se e
envolveu-lhe o rosto com as mãos.
– Estás preocupada comigo, Lore?
Ela fez má cara, mas não o afastou.
– Não te habitues mal.
Troou uma gargalhada no peito dele, encostado ao dela, e depois os
lábios dele colaram-se aos dela. Lore suspirou e correspondeu ao beijo,
envolvendo-lhe os ombros com as mãos, puxando-o mais para si.
Acabaria em breve, por isso mais valia aproveitar enquanto durava.
Apesar do calor de Michal, Lore sentia-se como que a tremer. Sentia a
Mortem por todo o lado – no tecido da camisa de Michal, nas pedras na rua
lá fora, na cerâmica lascada da caneca pousada no parapeito. Apesar da
consciência de tudo isso se estar a desenvolver nela, uma ascensão firme ao
longo dos últimos meses, por norma ela era capaz de a ignorar, mas a
dedaleira inesperada de Pierre desequilibrara-a. A Mortem não era tão
densa ali nos arredores de Dellaire como mais perto da Cidadela – mais
perto do corpo da Deusa Sepultada lá em baixo, deixando escapar a magia
da morte –, mas ainda bastava para a deixar arrepiada.
O Bairro Portuário, na extremidade sul de Dellaire, era o mais longe que
a Mortem lhe permitia chegar. Podia tentar embarcar num navio, tentar
percorrer as estradas serpenteantes que levavam ao resto de Auverraine,
mas de nada valeria. Os tentáculos da Mortem iriam puxá-la de volta,
insinuando-se no âmago do seu ser. Era tão certo que estava presa àquela
maldita cidade quanto a morte estar presa à vida, tão certo quanto a lua
crescente gravada no fundo da palma da sua mão.
A boca de Michal encontrou o pescoço dela e ela arqueou-se contra ele,
cerrando os olhos com força. Enfiou-lhe os dedos no cabelo enquanto o
braço dele lhe envolvia a cintura como se pudesse erguê-la, levá-la para o
colchão deles no chão, para a fazer esquecer que isto era algo finito.
O facto de ela querer esquecer bastou para a fazer afastá-lo, fingindo que
brincava.
– Não vais querer chegar tarde.
Ele demorou-se nos lábios dela antes de recuar.
– Então, vemo-nos logo à noite.
Ela limitou-se a sorrir, embora o estender dos seus lábios não tenha
parecido natural.
Michal partiu, o mesmo degrau rangeu na sua descida, as janelas
chocalharam quando fechou a porta. Lore ouviu Elle a soltar um suspiro,
como se o trabalho do irmão fosse uma afronta pessoal; as paredes finas
faziam-no soar como se estivesse mesmo ao lado dela em vez de no piso
térreo.
Lore deixou-se ficar por uns momentos, com a luz do lento nascer do sol
a cintilar-lhe no cabelo, na seda gasta do roupão. A seguir, vestiu uma
camisa leve e umas bragas justas e desceu as escadas. Tinha de ir a um
encontro com Val.
Elle estava de novo enroscada no sofá, agarrando com uma mão um
romance esfarrapado e com a outra uma caneca de chá tépido. Fitou Lore
do modo que se poderia olhar para algo desagradável que se pisa na rua.
– E onde vais tu?
– Oh, não soubeste? Recebi um convite para a Consagração do Príncipe
Sol. Não era para ir, mas corre o rumor de que poderá haver uma orgia a
seguir e não podia recusar.
Elle revirou os olhos com tal vigor que Lore ficou surpreendida por não
ter magoado um músculo.
– Há em ti algo profundamente errado.
– Nem imaginas quanto. – Lore abriu a porta. – Até logo, Elle-Flor.
– Apodrece no inferno, Lore-Querida.
Lore agitou os dedos num aceno exagerado enquanto a porta se fechava.
Iria sentir uma certa falta de Elle quando a sua tarefa de espionagem
terminasse e Val tivesse um posto de tráfico diferente do de Gilbert a ser
observado.
Mas não tanto quanto a falta que sentiria de Michal.
Não haveria de sentir a falta nem de um nem de outro durante muito
tempo. As pessoas iam e vinham; as suas únicas constantes eram as mães –
Val e Mari – e as ruas de Dellaire que nunca poderia abandonar.
Isso, e as recordações de uma infância que estava sempre, mas sempre, a
tentar esquecer.
Com um último olhar para a casa geminada, Lore começou a descer a
rua.
Capítulo 2

Os nascidos nas trevas hão de tê-las na sua natureza;


transportarão o pecado nos seus próprios seres, no corpo, na
mente e na alma.
– O Livro da Lei da Morte, Opúsculo 7

E racidades
fácil alguém orientar-se em Dellaire. Lore ouvira falar de outras
– caóticas e serpenteantes, atalhos que se fechavam sobre si
mesmos – e o conceito parecia-lhe absolutamente alheio depois de meia
vida passada nas artérias bem organizadas de Dellaire. As Quatro Alas
orientadas para os pontos colaterais, as duas ocidentais correndo para o mar
enquanto as orientais davam para as ondulantes terras de cultivo de
Auverraine. A Igreja no centro da cidade, construída em círculo, guardava a
Cidadela no interior.
Mas, se Dellaire era uma grelha, já as catacumbas por baixo eram uma
rede emaranhada.
Um sol débil incidia sobre a parte de trás do pescoço de Lore enquanto
ela se encontrava parada à porta de um edifício dilapidado a uns quarteirões
da casa de Michal. Tinha o aspeto de uma construção que fora muitas coisas
a dada altura, tantas que se haviam anulado umas às outras, deixando-a
praticamente disforme. Um leve vento oriundo do mar agitava o pano
rasgado pendurado nas janelas.
Lore praguejou baixinho. Estar tão perto das catacumbas deixava-a
sempre inquieta.
Estavam vazias. Sentia-o, mesmo agora, parada a uns metros da entrada.
Não havia ninguém nos túneis, pelo menos ao longo de uns quilómetros.
Ainda assim, sentia arrepios.
Era aquele o dom que a tornava de um valor inestimável. Aquele com
que chocara Mari dez anos antes, quando era uma rapariga de treze anos a
deambular pelas ruas com um olhar vazio e uma cicatriz de queimadura
ainda fresca na palma da mão. A mulher de Val dirigia-se ao mercado e
cruzara-se com uma jovem Lore a olhar para um buraco irregular na lateral
de um prédio em ruínas, uma abertura que facultava acesso às catacumbas.
Lore ainda se recordava. Bloqueara praticamente tudo o que acontecera
antes desse momento, treze anos da sua vida passados quase por completo
debaixo do solo, mas a sua recordação de encontrar Mari era cristalina,
conservada na perfeição, como se a sua mente pudesse varrer tudo o que
ocorrera antes guardando aquela recordação com um detalhe minucioso.
– Sentes-te bem? – A voz de Mari soara calma e grave, com as suas
longas tranças negras enroscadas no topo da cabeça. Um momento de
hesitação antes de pôr no ombro de Lore a mão de um castanho-dourado. –
Há algum problema?
Lore tinha fitado o buraco e concentrara-se na picada da queimadura
ainda por curar na palma da mão, na escuridão mais atrás e como se
estendia até ao que tinha sido a sua eternidade. Pestanejou e o traçado dos
túneis cobriu-lhe o interior das pálpebras.
– Não vem ninguém – dissera. – Agora não.
No presente, Lore abanou a cabeça. Tornara-se melhor a conseguir só
ceder à consciência das catacumbas quando necessário – mesmo agora,
quando o estranho talento parecia desenvolver força a par da sua perceção
da Mortem –, mas estar tão perto tornava-o quase impossível de ignorar,
fazia com que se imiscuísse entre os pensamentos como tinta em água.
Sentia os túneis como membros fantasmas, como se as catacumbas e a
Mortem no seu seio fizessem parte de si. Por vezes, achava que, se lhe
arrancasse a pele e a virassem do avesso, haveria um mapa na parte interior
escorregadia, gravado na sua carne.
Com um suspiro, encostou-se à lateral do edifício. Chegara um pouco
mais cedo do que a hora indicada por Val, a qual era extremamente pontual.
Um minuto mais tarde, Val percorria a rua em passada larga na direção
dela, com a mesma postura que servia tanto para um caminhar descontraído
como para investir numa luta com facas. Uma mulher de meia-idade mais
severa do que tradicionalmente bonita, com um rosto pálido como papel,
olhos verde-garrafa e um lenço que desbotara até quase ficar sem cor a
prender-lhe o cabelo dourado.
Lore ergueu uma mão num cumprimento. Val agarrou-lhe os dedos e
puxou-a antes para um abraço.
– Tens-te mantido longe dos problemas, ratinha?
– Só daqueles em que não me queres envolvida. – Lore correspondeu ao
abraço, o odor familiar a velas de cera de abelha e uísque a suavizar-lhe o
peso nos pulmões. Val e Mari tinham-na criado desde aquele dia em que
emergira da escuridão para um mundo que não conhecia. Tinham-na
protegido e dado um propósito na vida, mesmo sendo um risco. Mesmo
quando os efeitos da sua estranha infância se manifestaram de formas
aterradoras.
Mas nenhuma delas falava disso.
Val fungou e endireitou os braços, com as mãos ainda nos ombros de
Lore. O seu olhar sempre fora cortante como um bisturi e agora não era
diferente.
– Vou retirar-te – anunciou sem preâmbulos.
Lore franziu o sobrolho.
– O quê?
– Já temos todas as informações de que necessitamos sobre a operação
do Gilbert; se esta semana vai movimentar tanto contrabando quanto dizes,
não traficará veneno por muito mais tempo. Há sempre uma intensificação
de espírito religioso depois de uma Consagração real. Os Presque Mort
podem andar distraídos por agora, mas, depois da cerimónia, vão andar a
farejar de uma maneira incrível.
Por muito que adorasse as mães adotivas, era inegável que eram
implacáveis. Val e Mari ambicionavam tornar-se as únicas fornecedoras de
veneno de Dellaire – assim que isso acontecesse, seriam praticamente
intocáveis. Os casacas de sangue aceitavam qualquer suborno que lhes fosse
oferecido e até os Presque Mort e o resto da Igreja por vezes fechavam os
olhos. O submundo criminoso de Auverraine só o era até a quantidade de
ouro correta chegar à palma da mão correta.
Ainda assim, Lore abanou a cabeça, dizendo a si mesma que a sua
relutância em partir era uma decisão de negócios que nada tinha que ver
com Michal.
– Não me parece que seja boa ideia. Ainda posso vir a saber muito.
Ergueu-se uma sobrancelha clara. Val inclinou a cabeça, aquele ar de
bisturi ainda mais pronunciado.
– Gostas dele.
– Não. – Sim. – Não tem nada que ver com isso.
– Oh, ratinha. – Val suspirou. – Já te disse antes. Tens de manter a
distância.
Mas ela mantinha sempre a distância. O poder que lhe corria nas veias,
as coisas horríveis de que era capaz, mantinham-na sempre à distância,
sempre. E era agradável deixar que as partes de si que podiam ser
apreciadas – até amadas – desfrutassem por vezes de algum conforto.
Val voltou a dar-lhe uma palmadinha no ombro.
– É pelo melhor, Lore. Acredita em mim. – Uma pausa, os seus dentes
cravando-se no lábio inferior. – É tudo pelo melhor.
E ela tinha razão. Val tinha sempre razão. Lore suspirou, assentiu com a
cabeça.
Não seria difícil. Tinha guiões para aquilo, listas de desculpas que fora
dando a namorados ao longo dos anos, amantes para os quais também fora
alertada quando se infiltrava nas suas vidas para descobrir os segredos de
quem os contratava. Havia a tia doente de quem tinha de tratar, o marido
ciumento que finalmente dera com ela, o súbito desejo de mudar de repente
de cidade para começar uma nova vida. Por norma, as desculpas não eram
postas em causa e Dellaire era suficientemente grande para raramente voltar
a cruzar-se com essas pessoas. Nas raras ocasiões em que acontecia, não
reparavam nela. Os casos de Lore eram de curta duração e os traficantes de
veneno seguiam em frente ainda mais depressa.
– Fala-me desta entrega – pediu, ansiosa por mudar de assunto.
– É simples. – O olhar de Val desviou-se do de Lore. – Por norma, não te
incomodaria com isto. Mas o cliente exigiu que as caixas fossem deixadas
na entrada das catacumbas na Ala Noroeste da praça do mercado.
– Então, precisas que eu vigie e me assegure que ninguém se aproxima
até o cliente as recolher. – Os vagabundos recorriam com frequência aos
túneis periféricos das catacumbas para circularem por Dellaire. Deixar lá
algo era um risco.
– Não deve demorar – disse Val. – Se fores já e cortares pelas ruas das
docas deves chegar a tempo do render da guarda. Será o caos, dado que é a
véspera da Consagração real. O Jean-Paul traz o contrabando para a praça e,
se ele chegar durante a troca, é capaz de passar sem ser revistado. Assim,
podes ajudá-lo a descarregar.
Ir à praça, descarregar a entrega, vigiar o veneno até ser recolhido. Os
clientes não gostavam de deixar o contrabando pousado por muito tempo,
pelo que não deveria ter de estar lá por mais de uma hora. A seguir, poderia
regressar a casa de Michal, saltar para dentro da banheira enferrujada com
pés em forma de garras para se livrar da comichão de ter estado perto das
catacumbas e decidir a qual das suas mentiras iria recorrer para romper o
que quer que houvesse entre eles.
Assentiu com determinação a Val.
– Então, vou por aquele lado.
A velha traficante de veneno observou-a por momentos com uma
expressão inescrutável. A seguir, voltou a puxá-la para si, com um abraço
tão forte que Lore quase gritou de surpresa.
– Amamos-te como se fosses nossa filha – murmurou-lhe junto ao
cabelo. – Eu e a Mari. Sabes disso, certo?
Espantada, Lore assentiu com a cabeça, embora fosse incapaz de a
mover muito.
– Claro que sei.
– E independentemente do que façamos, fazemo-lo porque tem de ser. –
Val recuou, sem retirar as mãos dos ombros de Lore, com os olhos verdes
incaracteristicamente brandos. – Lamento obrigar-te a deixá-lo, ratinha.
Lore assentiu de novo de repente, tragando a curiosidade tensa na
garganta.
Mais um apertão nos ombros e então Val largou-a.
– Agora, põe-te a andar – disse. – Não queres chegar atrasada. – Virou-se
e regressou por onde viera.
Lore fechou os olhos. Suspirou, com o som a abalá-la ao de leve. A
seguir, virou-se e avançou na direção oposta, rumo às ruas das docas.
As ruas das docas revelaram-se um erro. Lore avançara cerca de
quilómetro e meio quando deu com um cintilar dourado no horizonte e, aos
dois quilómetros e meio, tornou-se evidente que os preparativos para a
Consagração do Príncipe Sol tinham ocupado quase todo o espaço na rua
entre o ponto onde se encontrava e a Ala Noroeste. Bancas coloridas
delimitavam os caminhos por norma desertos, vendendo-se na rua
estatuetas do Deus Sangrante e réplicas de cobre-esverdeado da coroa de
raios de sol do Rei Santo. Casacas de sangue com as suas jaquetas
carmesim deambulavam entre a multidão crescente com baionetas
reluzentes e Lore viu até um ou dois Presque Mort, vestindo da cabeça aos
pés um preto opressivo.
– Que estupidez – silvou entre dentes. – Que estupidez amaldiçoada
pelos deuses fazer uma entrega logo antes de uma consagração.
Provavelmente, conseguiria circular por entre a multidão, mas demoraria
a transpor todo aquele movimento e isso deixaria o contrabando
abandonado à sua sorte. Lançando um jorro de impropérios, Lore deu a
volta e desatou a correr para as traseiras do edifício onde se encontrara com
Val.
Se não dava para ir pela superfície, a única forma de chegar ao lugar da
entrega a tempo seria seguindo pelas catacumbas.
Merda.
A adaga que levava na anca representou um peso reconfortante enquanto
Lore se baixava cautelosamente sob o lintel da porta descaída, sempre de
olho em assombrações. As assombrações não eram uma verdadeira ameaça,
tornadas lentas pelos efeitos físicos de veneno em excesso e vidas
demasiado longas, mas nem por isso sentia vontade de encontrar alguma.
Tendiam a juntar-se em redor das entradas das catacumbas e o
inconveniente talento dela só a avisava se alguém estivesse efetivamente
dentro dos túneis.
Havia sempre o risco de encontrar uma fuga de Mortem em volta das
entradas das catacumbas, que tornava a aproximação às mesmas no mínimo
desagradável, no máximo perigoso. A Mortem por canalizar poderia
devorar um corpo e, ao ritmo que vazava do cadáver da Deusa Sepultada
sob a Cidadela, por vezes era demasiado para a Igreja, mesmo com os
Presque Mort.
Pensar nos Mort deixava-a com a boca tensa. O grupo de elite de monges
utilizadores de Mortem fora criado especificamente para canalizar toda a
Mortem derramada e impedir que inundasse Dellaire, mas por vezes era
simplesmente de mais. E depois havia o problema do que fazer com aquilo.
Normalmente, os Presque Mort encaminhavam-na de volta para a pedra,
dado que já era matéria morta, mas abria dolinas por todas as estradas. O
problema da deusa morta de Dellaire era um tormento para as
infraestruturas.
A outra opção passava por canalizar a Mortem para algo vivo, regra
geral para plantas – corria o rumor de que contavam com um jardim repleto
de flores de pedra e árvores talhadas em rocha. Quando as fugas se
revelavam particularmente más, por vezes os Presque Mort tinham de
recorrer aos terrenos de cultivo, arrasando campos inteiros, embora uma
fuga tão terrível já não acontecesse havia imenso tempo.
A entrada das catacumbas ficava nas traseiras do edifício, sobre uma
coleção de pedras grafitadas e soalho partido. Alguém fora prestável e
pintara na parede um rosto com um X sobre cada um dos olhos, com uma
seta a indicar o caminho.
Lore não precisava de indicações. Quanto mais avançava, mais a sua
pele zumbia, o seu conhecimento inato dos subterrâneos a ganhar vida com
um sacão doentio. Tão perto como estava, se fechasse os olhos poderia ver
os traços pretos das catacumbas na sua mente – um labirinto emaranhado de
túneis que se sobrepunha aos seus pensamentos, tingindo-os de preto.
O efeito sempre a perturbara, pelo que se esforçou por não pestanejar ao
abeirar-se da porta dilapidada, inspirando fundo pelo nariz e expirando pela
boca para manter a mente limpa. Empurrar um veio de veneno para as
catacumbas para ser recolhido era uma coisa; outra completamente
diferente era caminhar através delas, senti-las a pressionar de todos os
lados. Fazia-lhe doer a marca de queimadura em forma de lua que tinha na
mão e foi distração suficiente para não reparar na pessoa atrás dela até já
estar demasiado próxima para poder escapar.
Um braço rodeou o seu pescoço, com as unhas sujas que se cravaram na
sua pele carregadas com o odor doce e herbáceo de beladona. Sufocada e a
praguejar, Lore ergueu o cotovelo, espetando-o em algo que lhe pareceu
terrivelmente ossudo.
Aparição, só podia ser. Pareciam sempre cadáveres andantes.
A aparição riu-se, um som soprado e ofegante que trouxe mais um sopro
de odor a flor venenosa. O braço largou-a, o peso leve projetou-se para trás
– Lore girou sobre os calcanhares, adaga empunhada e encostada ao
pescoço encardido.
Sem dúvida uma aparição, e uma que já deveria estar morta há muito.
Magra como um esqueleto, sem muitos dentes que restassem, olhos
afundados num rosto da cor da barriga de um peixe e cruzados por veias da
cor de pedra cinzenta. Demasiado emaciada para se poder adivinhar o sexo.
A aparição arfou outra gargalhada e Lore viu os pulmões em esforço através
da pele, num corpo com mais de pedra do que de carne.
– Achavas que te escondias? – Os lábios da aparição abriram-se num
ricto. O lábio inferior rachou, mas não jorrou qualquer fluido. – Cheirava a
morte em ti a quilómetros de distância, meu docinho. Tanta. Como é que te
manténs tão sã, tão completa? Uma rapariga nascida para albergar
esquecimento não o deveria ser.
– Parece que a mente se vai depressa mesmo quando o corpo se demora
– silvou Lore.
A aparição riu-se, um som áspero, penoso.
– Aproximei-me, umas quantas vezes. Tão perto de ser capaz de tocar a
eternidade. – Um ombro erguido caiu. – Nunca lá cheguei. Mas tu… tu tens
esse poder sem sequer te esforçares. Que original. Que raro. – Dentes
amarelos lascados, num sorriso aberto. – Deveriam ter-te matado quando
tiveram a oportunidade.
Lore estabilizou os joelhos. A ponta da adaga vacilou.
– Fui lá abaixo, sabes? – A aparição voltou a sorrir. – Vagueei ao longo
de dias. Estão a aumentar, filas muito ordenadas, preparados para a guerra.
Palavreado disparatado, um sinal evidente de uma mente perdida havia
muito. Por instantes, Lore sentiu pena do cadáver incompleto e isso
destroçou-lhe a determinação assassina. Embainhou a adaga e regressou à
porta, com as pernas algo trementes. Podia fugir. Se fizesse todo o caminho
a correr, chegaria apenas uns minutos atrasada ao ponto de encontro.
Atrás dela, outra gargalhada, um rangido quando a aparição estendeu o
corpo esquelético no chão.
– Foge, foge, doçura – cantarolou suavemente. – Não podes fugir de ti
própria.
Percebeu que estava demasiado atrasada antes sequer de ver os guardas.
Era difícil não os ver. Os Protetores da Cidadela envergavam gibões em
vermelho-vivo e poliam as baionetas até cintilarem, suficientemente limpas
para muitos duvidarem da quantidade de pessoas que conheceram a ponta
afiada. Mas Lore conhecia a verdade – não era à toa que eram conhecidos
por casacas de sangue. Sabia também que, com o cabelo escondido debaixo
de um boné e as curvas generosas disfarçadas por roupas largas de rapaz
poderia passar despercebida, desde que fosse discreta. Visivelmente, já se
dera o render da guarda e só lhe restava ter a esperança de que Jean-Paul
tivesse passado pelo posto de controlo quando lá não se encontrava
ninguém.
A multidão ali era ainda mais compacta do que nas ruas das docas. Lore
pôs-se em bicos de pés para observar o portão, em busca do reconhecível
cabelo ruivo de Jean-Paul e do cavalo grande e plácido a que recorriam para
entregas dentro dos limites da Ala. Não o via e teve de suprimir o pânico
crescente dentro de si enquanto avançava até à velha fachada de loja onde
era suposto terem deixado o contrabando. Talvez ele já tivesse passado o
posto de controlo, talvez aguardasse lá por ela…
Lore dobrou a derradeira esquina antes de surgir à vista a velha fachada
da loja. Jaquetas escarlates, armas polidas. Uma carroça transportando
basicamente caixas vazias. O cabelo ruivo de Jean-Paul. Ele ergueu o olhar
para a ver, um homem branco e entroncado de meia-idade que já traficava
para Val antes sequer de Lore ter aparecido, e apesar de a expressão dele ser
cautelosamente neutra, o medo toldava-lhe os olhos e tornava-os quase
animalescos.
Demasiado tarde, demasiado tarde, demasiado tarde.
Por momentos, Lore nada pôde fazer que não fosse ficar ali parada.
Quando um dos guardas se virou na sua direção, ela enfiou-se numa viela,
encostando-se ao tijolo imundo, respirando a custo, a ponto de lhe arranhar
a garganta.
– Merda – disse, depressa e num tom rouco. – Merda.
Sustendo a respiração, espreitou para fora da viela. Aparentemente, Jean-
Paul lograra passar pelo posto de controlo sem que o revistassem, mas
depois os casacas de sangue teriam dado pelo erro, apanhando-o ao chegar
diante da fachada da loja. Não teria feito diferença se ela tivesse chegado a
tempo.
Jean-Paul, honra lhe fosse feita, conseguia manter a expressão calma
mesmo enquanto os casacas de sangue vasculhavam as caixas. O
grandalhão tinha as mãos nos bolsos e balançava para trás e para a frente,
como um simples comerciante à espera de que a busca terminasse.
Mantinha a cabeça baixa sob a aba do chapéu para esconder os seus olhos
aterrorizados.
Ela devia abandoná-lo. Sabia disso. Fora uma das primeiras lições de
Val. Se um trabalho corresse mal, era cada um por si.
Mas não conseguia obrigar-se a fugir. Jean-Paul tinha um marido e um
filho pequeno e, se fosse apanhado, seria enviado para as Ilhas Queimadas.
Lore não podia deixar ninguém entregue a tal destino.
– Merda. – Lore praguejou uma derradeira vez, carregando bem no a, e
saiu da viela para o meio da multidão.
Os casacas de sangue não lhe prestaram a mínima atenção quando se
infiltrou o mais discretamente possível. Um deles, um homem encorpado
com um bigode enrolado sob o pequeno e pálido nariz, pegou numa caixa
cheia de batatas greladas e arqueou uma sobrancelha.
– Se fizesses as minhas entregas, velhote – disse, com desdém –, ficaria
muito preocupado por poderes andar a surripiá-las.
As caixas com contrabando eram sempre as de cima. Como os casacas
de sangue nunca contavam com isso, verificavam sempre primeiro as caixas
no fundo, assumindo que o veneno estaria o mais escondido possível.
Assim, se alguém fosse apanhado a meio de um trabalho, havia a hipótese
de o filão já ter sido mudado para o ponto de entrega.
– O Alaric precisava de caixas – disse Jean-Paul, impassível. Alaric era o
nome a que recorriam sempre que eram parados e lhes perguntavam o que
andavam a fazer. – Queria guardar alguma coisa. As batatas eram só para
segurar as caixas na carroça.
As caixas já tinham sido todas descarregadas. Os companheiros do
Bigode Enrolado começaram a remexer nas outras. Abriram uma: cheia de
nada além de batatas farinhentas. Duas. Três.
– Estás a dizer-me que um mercador contratou uma carroça para
transportar caixas de batatas velhas da Ala Sudoeste para a Noroeste?
Restavam seis caixas. Três delas continham mandrágora. Lore sentia o
suor a escorrer-lhe pelas costas.
– No que ele gasta o dinheiro não é da minha conta – replicou Jean-Paul.
Foi aberta uma quinta caixa. Se Lore ia fazer algo, aquele era o
momento. Só não sabia o que poderia fazer. Eram demasiados para dominar
com uma adaga, em especial depois de ter perdido o elemento de surpresa,
para além de que nunca fora muito boa a lutar.
Uma sensação pérfida começou a surgir-lhe nas palmas das mãos, nas
pontas dos dedos. Picadas, uma consciência plena. A Mortem aguardava na
pedra sob os seus pés, no tijolo e na madeira morta da fachada da loja, na
carroça, no veneno à espera na mandrágora ainda escondida. Era um
zumbido grave, um fio que podia agarrar e puxar e teria sido tão fácil…
Um casaca de sangue deitou a mão a uma sexta caixa, abrindo a tampa
com a ponta da baioneta. Nas sombras por baixo, Lore viu verde.
Avançou a correr, livrando-se do chamamento da Mortem e falando
antes de saber sequer que palavras teria na língua.
– Descobriu-as!
Jean-Paul e o Bigode Enrolado viraram-se para ela, o casaca de sangue
que ela interrompera erguendo o olhar com a testa enrugada de curiosidade.
Ela pegou na caixa, a tampa aberta encostada ao peito.
– O meu pai mandou-me cá, desculpe o atraso.
O Bigode Enrolado inclinou a cabeça.
– O teu pai por acaso chama-se Alaric, rapariga?
Malditos seios. Tinha julgado que a camisa seria suficientemente
largueirona para os disfarçar, mas nunca tivera um peito fácil de esconder.
– Sim – respondeu, endireitando-se mais e abrindo mais o sorriso. – Está
tão chateado, parti tantos frascos ao tentar descarregá-los um a um que
precisamos já das caixas…
Ia recuando enquanto falava, palavras e sorrisos disparados rapidamente,
levando o contrabando para mais perto da frente da loja. O alçapão no
interior daria acesso às catacumbas e o misterioso mapa mental indicava-lhe
que os túneis ali próximos se encontravam vazios. Se conseguisse fazer
passar as caixas pela porta…
Bateu com o pé numa pedra e resvalou, desequilibrando-se. A caixa
caiu-lhe das mãos.
A mandrágora lançou um manto verde sobre as pedras da calçada.
Por momentos, ficaram todos parados, Jean-Paul e Lore e os casacas de
sangue e o grande e pacato cavalo que Val só usava para traficar veneno,
aquele a que Lore carinhosamente chamava Cavalo, pois ninguém lhe
atribuíra um nome.
Então, uma batida de coração, e, com um grito triunfal, o Bigode
Enrolado lançou-se em frente.
– Foge! – Lore lançou-se de lado para a entrada da viela onde se
escondera, sacando da adaga. Torceu o pé e caiu de joelhos, com o estalido
a turvar-lhe a visão. Umas mãos enluvadas agarraram-lhe os ombros e
içaram-na.
Os casacas de sangue estavam num caos e Cavalo reagiu, recuando e
sacudindo a carroça e enviando-a a adernar na direção dos curiosos.
Jean-Paul gritou algo que não eram palavras, tentando agarrar as rédeas
do cavalo. O relincho da criatura soou carregado de medo, os cascos a
rasgar no céu matinal enquanto os casacas de sangue os cercavam. Jean-
Paul lançou-se para as rédeas, mas não foi a tempo de rodar o cavalo para
fugir; uma baioneta rasgou o pescoço do animal e este colapsou num
aglomerado de carne trémula.
A visão de Lore ainda se encontrava turva enquanto tentava socar o
casaca de sangue que a agarrava, varrendo o ar com a lâmina da adaga entre
os dedos do punho cerrado. Outro casaca de sangue agarrou-lhe o braço e
torceu-o para trás com força suficiente para ela sentir os ossos a ranger, a
um fio de partirem. Um ruído áspero e sufocado emergiu-lhe da garganta,
um grito abortado pela ponta fria e afiada da baioneta que lhe roçava na
traqueia. Eram já três a agarrá-la – dois nos braços e um com uma arma.
Não eram lá muito boas perspetivas.
A sensação de formigueiro retornou-lhe às palmas das mãos, a
consciência fria percorreu-lhe os membros.
– Mexe-te e eu disparo – rosnou o casaca de sangue com a baioneta. – E
um tiro no pescoço não resulta num fim rápido.
Os dedos dela tremeram, a Mortem a escapar-se das catacumbas e o
corpo moribundo do cavalo a fazer-lhes comichão. Lore não a canalizava
havia treze anos, comprimira-a toda no fundo da mente e deixara-a lá a
apodrecer. Mas agora, a consciência da mesma quase a afogava.
Consciência e instinto. As suas mãos ardiam com o desejo de chamar a
Mortem de todos os lugares mortos onde aguardava, de a canalizar pelo
corpo e obrigá-la a fazer o que lhe ordenasse. Resistir deixou-a com a
cabeça à roda, com dificuldade em respirar.
Metade dos casacas de sangue avançaram para a mandrágora derramada,
mas o líder estava exclusivamente concentrado em Jean-Paul. Agarrou-o
pelo braço; Jean-Paul tentou pegar na adaga escondida no seu casaco, as
mãos manchadas com as vísceras de Cavalo – pobre Cavalo –, mas o casaca
de sangue encostou-lhe a ponta da baioneta ao pescoço antes que ele
conseguisse alcançá-la.
– Não me obrigues a disparar – rosnou o casaca de sangue por entre o
maldito bigode. – Um tipo como tu seria útil nas Ilhas Queimadas. – Uma
gargalhada gutural. – Tu também, rapariga. Ela parece ter força para pegar
numa pá.
Uma bala seria preferível às minas. Lore sabia que mais do que um
traficante de veneno preferira cortar o próprio pescoço a ser obrigado a
passar o resto da curta vida sob a escuridão e as poeiras das Ilhas
Queimadas.
Escuridão. Poeiras. Morte. Tudo aquilo redemoinhava à volta dela,
sangue acobreado e um vazio que lhe arranhava o interior do nariz. Uma
névoa negra ergueu-se do corpo de Cavalo, coalescendo em fios negros
visíveis apenas por um canalizador, vertendo dos olhos, da boca frouxa.
Chamando por ela.
Usa-a.
Lore não sabia se era mesmo uma voz aquilo que ouvira, ou apenas o seu
cérebro desesperado por fazer algo, por recorrer ao que fosse possível.
Uma distração, eis aquilo de que necessitavam. Algo que lhe permitisse
fugir, algo suficientemente horrível para chamar a atenção dos casacas de
sangue de modo a que Jean-Paul lograsse escapar. Era demasiado tarde para
si. Tinha sido apanhada, e o que fizesse naqueles momentos seguintes não
alteraria isso.
A escolha era entre as Ilhas Queimadas ou uma pira. Bem vistas as
coisas, pouca diferença faria, desde que Jean-Paul pudesse regressar para a
família.
Optou então pela distração. E assim que tomou tal decisão, o seu corpo
lançou-se ao trabalho.
Lore inspirou fundo e susteve o ar nos pulmões, deixando que o instinto
assumisse o comando, a conduzisse como já fizera antes. Nascera para
aquilo, para a magia e para as trevas, e tudo em si – exceto a mente –
ansiava por isso.
Num momento, tudo estava claro e vívido; no seguinte, via apenas uma
ligeira impressão do espaço à sua volta, o mundo a preto e branco enquanto
os seus pulmões começavam a arder, o corpo a inclinar-se para a morte. Os
casacas de sangue e Jean-Paul e os corpos vivos da multidão, todos estavam
rodeados de auras de luz branca. O contorno do cadáver de Cavalo passou
lentamente de branco a preto, a vida a escapar com a chegada da morte.
Fios de Mortem acenavam no ar como patas de aranha, a coroa negra de um
sol invertido.
Lore não olhou para si mesma enquanto expirava lentamente,
continuando a agarrar a Mortem com força, pois tinha-se deixado levar e a
corrente de instinto puxara-a para baixo. Sabia qual o seu aspeto – os dedos
frios e pálidos como os de um cadáver, os olhos a passar de castanho a um
branco opaco. Na palma da mão, a cicatriz em forma de lua gravada como
um raio de farol, um brilho negro que era a ausência de luz e ainda assim
tão fulgurante que até doía olhar para ele. Sobre o seu coração rodopiava
um nó de trevas, uma estrela negra de vazio escondida sob a blusa.
Sabia qual o seu aspeto, era o da morte andante.
Fechou as mãos, puxando para dentro a matéria negra que era a força da
morte, como se o seu coração tocado pela Mortem fosse um íman. Os fios
que se iam tecendo em redor do corpo de Cavalo estremeceram e a seguir
fluíram na direção dela. Entrançaram-se no ar e colaram-se aos dedos dela,
a magia a romper facilmente a barreira da pele.
A morte de Cavalo dançou-lhe pelas veias, rodopiou por ela como
sangue maculado. Lore canalizou rapidamente a Mortem pelo organismo,
forçou-a por cada veia como um ribeiro parcialmente gelado no inverno,
lutando contra a sua batida lânguida, a sua respiração superficial. A magia
da morte cercava-lhe cada órgão, detendo-os a todos, como geada num
rebento no limiar da primavera.
Aquela era a parte que se dizia ser capaz de prolongar a vida, paralisando
as vísceras para que avançassem mais devagar no tempo, para que os anos
nos tocassem de forma mais gentil. Os que tomavam o veneno não
conseguiam canalizar de novo para fora a morte que este lhes trazia, não
podiam fazer mais nada a não ser transformá-la numa imortalidade
retorcida enquanto despertavam a Mortem adormecida nos seus corpos.
Para canalizar a Mortem, era necessário abraçar a morte como a um amante
e esperar que esta nos largasse, e praticamente ninguém ia tão longe, pelo
menos de propósito.
Pelo menos, isso era o que Lore julgava. Ela nascera com aquilo.
Nascera com a morte a seu lado como uma sombra.
Lentamente, lentamente, empurrou a Mortem que canalizara através de
si de novo para as mãos, como se juntasse punhados de teia negra. Então,
lançou toda a morte que acumulara.
A Mortem jorrou-lhe dos dedos, morte ávida por um novo lar, e Lore
teve apenas a presença de espírito suficiente para a encaminhar para um
canteiro de flores no centro da rua, já acastanhado e frouxo devido à falta de
chuva descabida naquela estação. Os rebentos murcharam e caíram, as
raízes que os sustinham morreram e definharam, tudo assumindo uma
tonalidade parda. Mais Mortem penetrou a rocha, gerando fendas em forma
de teia de aranha sob pés apressados. Não se abriu numa dolina, graças a
todos os deuses, mortos ou vivos, mas, mesmo assim, os gritos ergueram-se
no ar.
Lore sentiu o coração a parar no peito, só por um instante, furtando uma
batida. O instinto que a apanhara esmoreceu, deixando ficar apenas medo,
pânico e repulsa.
E com um resmoneio, um som dorido, Cavalo pôs-se de pé.
Capítulo 3

A morte, para os mortais, é inviolável: Alguém que desperte


um corpo dos mortos é culpado da pior heresia e deverá ser
executado, para que sofra eternamente no seu próprio
inferno.
– O Livro da Lei da Morte, Opúsculo 1

C edric tinha mais um ano do que Lore – catorze anos e mundano como
um príncipe. Filho de um traficante da equipa de Val e Mari, fora a
única criança com quem Lore passara muito tempo, naqueles meses depois
de Mari a ter encontrado. Caloroso e bondoso, com grandes olhos castanhos
e cabelo desgrenhado sempre a cair-lhe no rosto. Ensinara-a a nadar nas
docas.
Depois, foi atropelado pelo cavalo de um casaca de sangue no decurso
de um ataque.
O corpo ficou num estado horroroso. Lore recordava-o com um
pormenor minucioso. Partes afundadas onde não deviam afundar, outras
coisas espetadas, criando tendas de carne rasgada e vales de ossos e órgãos
esmigalhados. Mas o rosto permanecera incólume, aqueles olhos castanhos
que fitavam o céu como que transfixos.
Ela nem pensara. Limitara-se a agir, a ceder ao instinto. Enredara a
morte de Cedric à volta dos dedos como num dos jogos de guitas que ele
lhe ensinara, puxara-a dele para si. Canalizara-a pelo seu próprio corpo e
enviara-a para a rocha, até onde se encontravam as raízes de erva esmagada
que lutavam por uma nesga de sol, plantando a morte dele na terra em vez
de lha deixar no corpo.
E ele sentara-se. Ouviu-se um som terrível quando ele o fez – nada
dentro dele estava onde devia e tudo estava esmagado –, mas sentara-se, e
depois virara-se para ela. Os seus olhos já não eram castanhos. Eram pretos,
sem íris, nem pupila.
Era evidente que ele nada faria até ela lho indicar; era um autómato a
necessitar que lhe dessem corda, a necessitar de indicações. Então, ela
retirara do bolso o novelo de guita que usavam para as brincadeiras.
– Joga comigo.
Foi assim que Val deu com eles. Uma rapariga e um rapaz morto com fio
entretecido entre os dedos, comportando-se como se nada se passasse.
Foi genuinamente espantoso que Val não a tivesse matado naquele
momento. Depois de ver o que ela era. Do que era capaz.
E foi com essa memória a passar-lhe pela cabeça que Lore viu Cavalo
erguer-se do solo, nitidamente morto e, todavia, movendo-se.
Aparentemente, os animais eram diferentes das pessoas. Ela não teve de
dizer a Cavalo o que fazer.
– Merda. – Escapou-lhe num sussurro ofegante; Lore sentia as pernas
como pedaços de corda frouxos, a morte que ela canalizara a manifestar-se
em membros dormentes e numa garganta cingida. Deixou-se cair de
joelhos, a ponta fria da baioneta do casaca de sangue a deslizar para longe
do seu pescoço com um ligeiro arranhão, sem força suficiente para sangrar.
– Merda na Muralha da Cidadela.
Por uns segundos, Lore achou que a sua distração arrancada a ferros se
revelara inútil – os casacas de sangue ainda a detinham e a Jean-Paul, sem
sequer olharem para o cavalo que se erguia dos mortos no centro da praça
do mercado. Ela cedera, sucumbira à chamada da Mortem, e para quê?
Um som destroçado e irado jorrou da sua boca.
O casaca de sangue que lhe segurava os braços tentava levantá-la, mas
depois viu os olhos dela, ainda brancos e opacos da morte. Lore viu-o a
interiorizar as veias enegrecidas e os dedos cadavéricos, viu-o a ficar
progressivamente lívido ao racionalizar o significado de tudo aquilo. O
guarda recuou até bater com as costas na parede de tijolo, abrindo as mãos
para a libertar.
– Deus Sangrante nos salve – murmurou num tom de pânico crescente. –
Deus Sangrante nos salve!
Assim estava melhor.
Os outros casacas de sangue repararam na situação da montada morta-
viva. O Bigode Enrolado trespassou o cadáver completamente erguido, mas
Cavalo não quis saber, pois já se encontrava morto. Se tanto, pareceu
curioso, cheirando-lhe o ombro coberto de sangue com o focinho
ensanguentado, o pescoço aberto como uma segunda boca. As longas
pestanas em redor dos olhos opacos tremeluziram, espantando uma mosca
que lá pousara.
– Desculpa, Cavalo – murmurou Lore, após o que vomitou o seu café
sobre os paralelepípedos.
Quando levantou a cabeça, viu que o Bigode Enrolado a fitava, pasmado
com todas as formas que ao canalizar a Mortem a tinham tornado
monstruosa, o rosto dele quase tão pálido quanto o dela.
– Heresia – disse ele, a voz rouca de gritar. – O mal!
– Melodrama. – Lore sentiu os lábios entorpecidos, tal como o resto do
corpo.
Rebentou então o caos, como se o tempo tivesse estado suspenso por uns
segundos depois de Lore ter erguido Cavalo dos mortos e regressasse então
ao normal. O Bigode Enrolado brandiu a baioneta, urrando por apoio,
ordenando à sua companhia que cercasse o cavalo e detivesse a feiticeira da
morte.
Lore demorou um momento a perceber que era ela. Feiticeira da Morte
era o que chamavam às necromantes, nos tempos em que quem fosse capaz
de canalizar tanta Mortem fora executado ou enviado para as Ilhas
Queimadas. Agora, só restava ela. Uma única feiticeira da morte.
Canalizar Mortem deixara-lhe os dedos cerosos e pálidos, a pele quase
translúcida, o traçado das veias letárgicas a gerar um mapa rudimentar na
sua pele – parecia pior do que uma aparição, o que não era pouco. Fios de
morte atavam-na a Cavalo, uma trança negra visível apenas pelo canto do
olho, se não olhasse diretamente para ele.
Com um som brusco e resmoneador, cerrou os punhos. Os fios de
Mortem foram cortados e o cavalo tombou enquanto a força que o
reanimara serpenteava no ar como fumo até se dissipar. Era o que tinha
feito com Cedric, quando Val os vira, quando Val gritara. Na altura não fora
intencional. Lore ficara apenas espantada, espantada e assustada, e rasgara
os fios que os uniam.
Na altura, aquilo parecia mais complicado. Despertar e pôr fim a uma
vida. Desta vez, com Cavalo, mal precisara de se esforçar. Canalizar
Mortem para fora do corpo tinha-lhe surgido de forma tremendamente
natural: furtar a morte e afastá-la.
O pesado cadáver do animal, de novo carne morta, tombou sobre um
grupo de casacas de sangue. O esmagar de ossos e os gritos de dor ecoaram
pela Ala, subjugaram os gritos dos mirones. Os guardas já tinham esquecido
Lore e Jean-Paul; ela viu um vislumbre do cabelo ruivo enquanto ele
desaparecia para uma viela. O Bigode Enrolado tinha-se virado quando
Cavalo caíra e a onda de gente que o separava de Lore levara-o para longe,
fizera-o perdê-la na multidão. Lore ouvia-o gritar, mas já não o via.
Sem dúvida que obtivera a distração pretendida. Agora, só faltava
conseguir mover-se.
Ergueu-se do chão sobre pernas em formigueiro, praguejando enquanto
tentava afastar-se, vacilante. Memórias de Cedric forçavam as barreiras
mentais atrás das quais as guardara, faziam com que o passado e o presente
se misturassem, de forma horrível e infinita. Coxeou o mais depressa que
podia para o espaço estreito entre duas montras, escondendo-se nas
sombras. Num momento de lucidez, retirou o boné da cabeça e deixou o
cabelo tombar livre, torceu a bainha da camisa e enfiou-a nas calças para
que se moldasse às suas curvas. Não era bem um disfarce, mas dava-lhe um
aspeto diferente do que tivera no momento em que despertara o cavalo e
talvez lhe desse o anonimato suficiente para escapar.
Alguém a agarrou pelo braço.
Lore virou-se com os dentes cerrados, de mão já a postos para socar
quem lhe tivesse tocado.
Michal.
Nitidamente, ele não contava com o que viu quando ela se virou; tinha-a
visto correr para a viela, mas sem estabelecer a ligação com Cavalo. Então
Lore viu todas as peças do puzzle a encaixar-se, estampadas na expressão
dele: olhos azuis semicerrando-se antes de se arregalarem, horrorizados. Ele
espreitou para lá do ombro dela para a praça, boquiaberto, com um
estremeção na mão antes de a largar repentinamente, os dedos espraiados.
– Desculpa – murmurou Lore, com a língua subitamente presa. –
Desculpa.
Passou a correr por ele, de novo na direção da praça. Virou na primeira
viela com que deparou. Desatou a correr e não parou, de cabeça baixa e a
visão turva, tomando direções ao acaso, tendo em mente apenas a ideia de
longe.
Assim, quando um dos Presque Mort saiu de um nicho pejado de lixo
para se posicionar diante dela, Lore quase chocou com ele.
Ele impunha-se sobre ela, de mãos estendidas, a imagem de uma vela
acesa gravada na palma de cada mão. O vestuário preto justo num corpo
musculado, um olho azul a cintilar para ela, o outro coberto pelo couro
negro de uma pala.
Havia nele algo de quase familiar, uma sensação de que já se teria
cruzado com ele. Mas isso era absurdo. Lore não conhecia nenhum dos
Presque Mort ou, na verdade, qualquer membro do clero.
Já não.
– Claro que os Presque Mort tinham de aparecer – barafustou Lore ao
libertar-se das mãos pintadas, tentando sacar de novo a sua adaga. – Claro
que sim, porra.
O Presque Mort não reagiu, limitou-se a observá-la enquanto ela dava a
volta para fugir na direção oposta, tentando percorrer de novo o mesmo
caminho que a trouxera até ali para depois escolher uma nova rota. Ele
assobiou, uma nota longa a tornar-se cada vez mais aguda, e foi imitado por
outros, ecoando na pedra, com nitidez acima da crescente cacofonia da Ala.
Encurralaram-na.
O primeiro dos monges avançou lentamente, de mãos tatuadas
estendidas como se ela fosse um cão desconhecido que ele não quisesse
afugentar. Invulgarmente alto, com cabelo louro-arruivado rapado dos lados
e ombros largos, uma beleza desperdiçada em alguém que tomara votos de
celibato.
– Não queremos fazer-te mal. – Voz grave, tons bruscos, como se a viela
imunda fosse um salão de baile na Cidadela.
– Têm uma forma curiosa de o demonstrar. – Ao recuar, os pés de Lore
vacilaram nas pedras irregulares da calçada e quase a fizeram cair.
O Presque Mort não respondeu. Outros vestidos com as mesmas vestes
lisas e negras emergiram das duas bocas da viela, avançando de forma lenta
e implacável. Demasiados para lhes dar luta, e já não havia animais para
reanimar com que pudesse chamar-lhes a atenção.
As pernas de Lore cederam; apoiou a mão ainda entorpecida na parede.
Mesmo predisposta como era para a magia da morte, a recuperação era uma
merda.
Estava tão perturbada que, quando o Presque Mort alto retirou um pano
do bolso, nem sequer teve tempo para reagir antes de lhe ser pressionado
sobre as vias respiratórias. Clorofórmio. Aquilo quase tinha algo de
engraçado, químicos banais numa cidade famosa pelos venenos românticos
e floridos.
– Não queremos fazer-te mal – murmurou ele –, mas precisamos que nos
acompanhes e algo me diz que não o farás de livre vontade.
– Onde foram buscar essa ideia? – disse Lore, num tom arrastado, após o
que todo o mundo mergulhou nas sombras.

As amarras pareciam-lhe familiares; a corda a raspar na pele era como


um eco distante. Por momentos, sentiu o odor a pedra e pele queimada. Por
momentos, teve a certeza de que nada mais havia além de túneis e uma
débil luz de tochas para lá do véu das suas pálpebras, um túmulo de
obsidiana e olhos castanhos a combinar com os seus.
Assim, quando Lore abriu os olhos e viu uma cela, foi quase um alívio.
Alguém lhe enfiara uma mordaça na boca – tinha um sabor amargo,
como se tivesse sido usada para limpar vinho derramado. Uma corda atava-
lhe os tornozelos às pernas da cadeira onde se encontrava sentada, outra
unia-lhe os pulsos atrás das costas e uma terceira ligava as duas primeiras.
Quem quer que a tivesse amarrado deixara folga suficiente para que não
ficasse contorcida de forma penosa, mas não havia hipótese alguma, na
miríade de infernos existentes, de que ela se libertasse da cadeira sem ajuda.
E tudo aquilo – cadeira, amarras, paredes de pedra –, tudo aquilo sabia a
morte.
Lore arquejou contra a mordaça, o que puxou o tecido ainda mais para o
fundo da sua garganta, sufocando-a enquanto cerrava os olhos. Por norma,
conseguia lidar com a sua consciência da Mortem em matéria morta. Tinha
de ser; não havia alternativa. Mas algo mudara quando despertara Cavalo, e
agora essa consciência pressionava-a por todos os lados, pesada e densa,
abatendo-se com um peso sufocante.
Pior do que a pedra e a corda, coisas que nunca tinham vivido, eram as
coisas que viviam. Os fios minúsculos de erva a forçar as fendas no chão, as
pessoas suficientemente perto para serem detetadas pelos sentidos dela, o
seu próprio corpo – vivo, por ora, embora ela sentisse cada célula a
colapsar, uma eternidade no microcosm…
Teria aquilo acontecido depois de Cedric? Se assim fora, não o
recordava. Aparentemente, envelhecer tornara mais fácil a reanimação e
piores os efeitos colaterais.
Engolindo em seco com força, Lore voltou a abrir os olhos, obrigando-se
a observar as imediações.
Não era uma cela propriamente dita. Apenas uma divisão em pedra,
tendo por único mobiliário a cadeira a que estava atada e uma mesa de
madeira. Na parede encontrava-se pendurada uma tapeçaria, o seu
esplendor mais espalhafatoso por ser a única presença de cor. Representava
um homem de cabelo castanho luzidio e pele pálida como leite, mãos
ensanguentadas estendidas, sangue a verter de uma ferida aberta no Seu
peito e a pingar na massa escura por baixo. Ao fundo, via-se algo que
parecia uma fonte, delimitada a ouro, e por cima da cabeça do homem havia
uma mensagem realçada em linhas prateadas douradas.
Apollius, que possamos manter segura a Vossa Cidadela, protegendo o
mundo da Morte e os vivos em pureza até ao Vosso retorno, quando o
mundo se erguerá na Luz de uma Nova Era.
À primeira vista, a forma nebulosa abaixo dos pés de Apollius parecia
ser uma sombra. Mas, olhando com atenção, quase dava para distinguir a
forma de uma mulher, perceber onde o tecelão usara linhas de vários tons
de negritude para sugerir uma cabeça coroada pela lua, curvas femininas.
Os pés do Deus Sangrante encontravam-se diretamente acima dos pontos da
vaga coroa crescente em forma de mulher, virados para a Sua testa para que
as pontas se abrissem como chifres. Dava a ideia de que o deus a
espezinhava, enterrando-a.
A Deusa Sepultada, Nyxara.
A Igreja, portanto. É claro que os Presque Mort a tinham levado para a
Igreja.
Só de pensar nisso entrou de novo em pânico. Aquele que a drogara
tinha dito que não queriam fazer-lhe mal, mas isso podia não passar de
semântica, uma brincadeira cruel. Talvez os Presque Mort não estivessem
autorizados a executá-la, mas o Supremo Sacerdote decerto estaria. Ou
talvez o Rei desejasse ter essa honra. Já se tinham passado imensos anos
desde que haviam tido uma necromante para lançar à fogueira. Todas
tinham sido mortas no ano da Queda dos Deuses e na década posterior,
quando a Mortem vazara do corpo da Deusa Sepultada como sangue de um
ferimento numa artéria.
Inspirou fundo, uma tentativa de controlar o pânico. Pensou como
poderiam reagir os seus captores se voltasse a pedir clorofórmio. Um sono
forçado era melhor do que aquele turbilhão de ansiedade, em especial
estando o seu destino já selado.
Sentiu o estômago a gorgolejar, a fome fazia-o revolver-se. Quanto
tempo teria passado ali em baixo? Não havia janelas, nada que a ajudasse a
assinalar a passagem do tempo, mas a rigidez dos membros e o estômago
vazio levaram-na a pensar que já lá iam horas.
Lore quase não reagiu quando entraram os Presque Mort, apenas dois: o
que a drogara e um que ela não reconheceu, com o cabelo rapado e braços
cor de nogueira marcados por cicatrizes profundas e prateadas.
O dos braços com cicatrizes olhou para ela e arqueou uma sobrancelha.
– És capaz de ter exagerado com o clorofórmio, Gabriel. Ela parece estar
à beira de deitar cá para fora o almoço.
– Não usei assim tanto. – O Presque Mort alto, Gabriel, pelos vistos,
fitou-a com curiosidade do seu único olho são e depois fez uma careta
devido ao ar. – Está um ar tão denso aqui, mesmo depois de passado um
dia.
Um dia? Pelos deuses mortos e moribundos, passara todo um dia sem
sentidos?
– Ela canalizou tanto… – Gabriel virou-se para o seu companheiro. –
Sentes?
A expressão do outro ensombreceu.
– Um pouco – disse ele, quase a contragosto. – Não tanto como tu.
Alguns de nós têm de penar em Dellaire, em vez de num dos mosteiros no
campo. Estamos habituados a que aqui a Mortem seja densa.
O seu tom de certa forma era defensivo, apesar de ter soado como se
dissesse uma piada. Gabriel ergueu uma mão com uma vela tatuada.
– Não queria ofender, Malcolm.
– Não me ofendeste – reagiu Malcolm. Massajou os seus braços com
cicatrizes e troçou amavelmente, como quem tenta desanuviar o ambiente. –
Se tivesse tido de passar todo o meu período de treino num desses mosteiros
rurais, teria enlouquecido com o tédio. Quase enlouqueci com apenas os
dois meses por ano que tive de passar lá.
– Não é propriamente divertido – reconheceu Gabriel. – Mas os dois dias
que passei na cidade deixaram-me com vontade de regressar.
– Lá, estás abandonado às traças. A biblioteca de Dellaire é muito
superior.
– E todos sabemos que é isso que te interessa – resfolegou Gabriel. –
Não te apoquentes, despachamos isto depressa e podes voltar para o teu
verdadeiro amor.
– Perfeito. Só acedi a vir porque estamos com falta de pessoal. Andar a
correr pelas Alas não se coaduna com a minha constituição física.
Gabriel voltou a incidir a sua atenção em Lore, enrugando
pensativamente a testa.
– Acho que aqui o problema é esse – disse ele, suavemente, com um ar
que, se Lore fosse ingénua, poderia julgar ser de compaixão. – Se nós
sentimos tanta Mortem, imagina o que ela consegue sentir.
– Demasiado – tentou dizer Lore, só que soou truncado por detrás da
mordaça.
Espantou-os a ambos, levou-os a retraírem-se, como se ela fosse uma
peça de mobiliário que de repente tivesse despertado para a vida. Quanto a
si, mal tinha noção de ter conseguido gerar um som. A sua cabeça estava
recheada de morte, os nervos a vibrar face a tanta entropia.
Gabriel assentiu com a cabeça, como se algo tivesse sido decidido.
Malcolm pareceu apenas mais baralhado.
– Não entendo – disse ele vagarosamente. – Isso… magoa-te? Alguns
dos outros relatam desconforto, mas eu só fico algo dormente…
– Magoa – disse Gabriel, num tom quase rude. – Magoa mesmo muito.
Algo perpassou pela expressão de Malcolm, algo entre receio e inveja.
Voltou a massajar os braços pejados de cicatrizes.
Gabriel cruzou a divisão e ajoelhou-se junto à cadeira de Lore. Mesmo
de joelhos, o cimo da sua cabeça ficava praticamente ao nível do nariz dela
e do seu cabelo curto flutuava um aroma a incenso da Igreja. Aquela
sensação tensa a meio do corpo dela voltou a retesar-se, aquela sensação de
que ela, de algum modo, o conhecia.
Com gentileza, ele levou a mão à parte de trás da cabeça dela e desatou-
lhe a mordaça, que lhe caiu da boca.
– Ouve-me – disse ele, em voz baixa: uma ordem. – A sensação de morte
está toda na tua cabeça. Podes bloquear isso.
– Como? – Ainda sentia na boca o sabor azedo do algodão. Atrás de
Gabriel, Malcolm permanecia de braços cruzados, com uma expressão com
tanto de curiosidade como de inquietação.
– A cabeça é tua. – O seu olhar com um único olho era firme. – Nada
pode lá permanecer a não ser que permitas. Expulsa isso. – As palavras
saíram-lhe como uma lição muitas vezes repetida.
Lore tentou rir, mas o pânico continuava cravado nela, e soou mais como
um arranque de choro.
– Vai ter de me dar instruções passo a passo, Mort.
Ele assentiu ao de leve, como se fosse um pedido absolutamente normal.
– Imagina uma parede. Que seja grossa, à prova de som. Imagina uma
barreira em redor da tua mente até se tornar tão sólida que aches que lhe
podes tocar. E depois não deixes entrar a sensação de morte. É impossível
não teres consciência disso, não quando consegues canalizar tanta Mortem.
Mas a sensação não tem de te subjugar. Não tem de mandar em ti.
Parecia demasiado simples, mas tempos desesperados… Fechando os
olhos com força, Lore imaginou uma parede. De início, era em pedra e de
pronto a descartou… já tivera paredes de pedra para a vida inteira, e a pedra
estava morta, e também já tivera disso que bastasse. Portanto, antes árvores,
troncos grossos crescendo perto uns dos outros.
Lore nunca vira uma floresta de tão perto. O seu poder não lhe permitiria
afastar-se demasiado das catacumbas e sem dúvida que não havia florestas
em Dellaire, apenas bosques ornamentais de árvores podadas em alguns dos
bairros mais ricos. Mas era capaz de imaginar uma floresta, uma floresta
verdadeira, plena de verde e vegetação.
Portanto, a sua barreira mental não era propriamente uma parede. Era
apenas ela, no meio da floresta. Sossegada, com um céu azul por detrás das
folhas e o odor bizarramente reconfortante de uma fogueira. Pareceu-lhe
natural que a sua mente se instalasse ali, como se a floresta tivesse estado à
sua espera.
Lentamente, a sensação de morte iminente que a rodeava dissipou-se,
tornou-se o zumbido de fundo a que estava habituada.
Lore abriu os olhos. O Presque Mort fitou-os com um olhar ainda mais
penetrante por ser apenas um. O olho direito dele era muito, muito azul.
– Obrigada. – Ela queria dizer algo cortante. Devia tê-lo feito… ajudá-la
antes de a levarem para uma pira era uma crueldade especial. Mas aquele
obrigada foi tudo o que conseguiu proferir.
Gabriel assentiu uma vez com a cabeça.
– Será uma ferramenta útil para ti.
Ela voltou a soprar uma espécie de gargalhada.
– Acho que não vou ter outra oportunidade para canalizar muita Mortem
antes de ser executada por necromancia.
A testa dele franziu-se sobre a pala do olho, uma expressão que ela não
identificou de imediato, mas ele não comentou o destino dela. Em vez
disso, pegou na mordaça.
– São ordens do Supremo Sacerdote. – Notava-se no seu tom um forte
pedido de desculpas. – Vou ter de voltar a pôr-ta.
Ela ainda pensou debater-se, mas sentia-se demasiado cansada. Assentiu.
Com cuidado, Gabriel voltou a apertar a mordaça, mas desta vez mais
frouxa, reparou ela. A seguir, levantou-se, impondo-se diante dela, e recuou
até junto de Malcolm. A expressão do outro monge permanecia
inescrutável.
– Tens de fazer isso? – murmurou para Gabriel. – Para… para
bloqueares a consciência? – O olhar de Malcolm incidiu na pala do olho de
Gabriel, para depois se desviar, como que embaraçado.
– Às vezes. O Anton ensinou-me o truque com a parede. Logo depois da
minha iniciação. – Gabriel fez uma pausa, coçando a pala do olho. – Como
o meu ferimento foi quase tão grave quanto o dele, ele sabia que o meu
potencial para canalizar grandes quantidades de Mortem era elevado.
Malcolm abanou a cabeça e coçou o seu próprio olho, quase que
distraidamente.
– Caramba.
Gabriel nada disse.
Lore encolheu-se. Os Presque Mort alcançavam o seu poder para
canalizar a Mortem da mesma forma que toda a gente: morrendo, por uns
momentos, e depois regressando. Por norma, era por acidente, ferimento ou
doença. Dado que canalizar Mortem era contra a lei sagrada, alguém que
sobrevivesse a tal experiência tinha duas opções – evitar a Mortem o
melhor possível ou juntar-se aos Presque Mort. Mas o modo de experiência
de quase-morte era importante. Os que procuravam a morte – que recorriam
a traficantes de morte – não eram elegíveis, dado que os Presque Mort
eram, para todos os feitos, parte do clero.
Nos primeiros anos após a Queda dos Deuses, tinha havido outra opção.
Continuava a haver, bem debaixo da terra, nos túneis mais profundos das
catacumbas. Mas já ninguém falava da Guarda Sepultada, pelo menos desde
que a última Sacerdotisa da Noite reconhecida pela Igreja enlouquecera.
Malcolm apontou com o polegar para a porta.
– Quando é que devemos contar com ele?
– A qualquer momento. – Gabriel cruzou os braços. – Primeiro, teve de
ir buscar a informadora. Para confirmar que temos a pessoa certa.
– Sem dúvida que é a pessoa certa – troçou Malcolm.
Lore franziu o sobrolho, a expressão contorcida grotescamente pela
mordaça. Uma informadora?
A porta abriu-se. Um homem mais velho com cabelo cinzento como
ferro e uma túnica branca e comprida entrou primeiro, com um pingente
dourado em forma de coração e raios de sol pendurado ao pescoço, e uma
granada grande em forma de lágrima no topo do coração. Virou-se para ela
e Lore mordeu a mordaça, com força.
Um dos lados da cara do homem era atraente, quase angelical. Mas o
outro lado era uma confusão de cicatrizes de queimaduras, roxo-escuro
devido à passagem dos anos, traçando regatos do queixo à linha do cabelo e
transformando aquele lado da boca num sorriso malicioso permanente.
Ela já ouvira falar do rosto deste homem, mas nunca o vira de perto. O
Supremo Sacerdote, Anton Arceneaux, líder da Igreja e dos Presque Mort.
O irmão gémeo do Rei August.
E, atrás dele, uma mulher com cabelo louro a ficar grisalho sob um lenço
desbotado conhecido. Uma mulher que se recusava a olhar para Lore, nem
quando ela soltou um som intenso de incredulidade.
Val.
Só podia estar a sonhar. Com todas as drogas e a Mortem ainda no seu
organismo, o próprio Deus Sangrante devia ter-se imiscuído no seu cérebro
para criar um pesadelo.
Val retesou-se.
– Não precisavam de a amordaçar – disse ela de pronto, lançando um
olhar cortante ao Supremo Sacerdote. – Teme que troce da sua cara?
O Supremo Sacerdote limitou-se a arquear a sua sobrancelha desprovida
de cicatrizes.
– Os devotos estão a orar lá em cima no Santuário Sul. – A sua voz era
suave como seda, tons cultos que faziam sentido para o santificado irmão
do rei. – E a Igreja está mais cheia do que o habitual enquanto preparamos a
Consagração do meu sobrinho, que terá lugar logo à noite. Preferia que não
fossem incomodados.
– Então, diga-lhe que a empala se fizer barulho. – Val pôs-se diretamente
entre as mãos do Deus Sangrante na tapeçaria, pendurada na parede, como
se Ele lhe desse as boas-vindas a casa, recompensa por um trabalho bem
executado. – Não a amordace.
Uma pausa, e então o Supremo Sacerdote – Anton – anuiu com a cabeça.
Gabriel posicionou-se atrás de Lore, desatando o nó que prendia a mordaça.
– Lamento – disse ele, baixinho, antes de se afastar.
Mesmo sem mordaça, Lore nada tinha a dizer. Ficara sem palavras.
Limitou-se a permanecer ali sentada, com a boca dorida e aberta, a olhar
fixamente para Val.
Val, que continuava a não olhar para ela.
– É ela – suspirou, fatigada. – Tal como eu disse. – O seu olhar
penetrante deslizou do chão para Anton. – Não precisa de mais nada?
O Supremo Sacerdote assentiu uma vez com a cabeça.
– O teu inventário ser-te-á devolvido – declarou –, e o certificado de
perdão pode ser recolhido no tribunal de justiça na Ala Noroeste quando te
aprouver. – O lado da sua boca que era capaz de se mover ergueu-se. – A
primeira traficante de veneno sancionada pela coroa. Quanta honra.
– Vá à merda – murmurou Val.
– Tu também – cuspiu Lore. Sabia como enterrar a tristeza, mas a raiva
era uma ferramenta fresca que tinha à mão. – Então, vais ser uma corsária,
Val? Entregaste-me a troco de um contrato?
Ela contava com uma resposta cáustica, mas Val deixou abater os
ombros.
– Não tive escolha. Sabiam do Cedric.
Já tinha os dedos dormentes, por estarem atados atrás das costas. Mas as
palavras de Val bastaram para que esse entorpecimento se espalhasse pela
sua coluna, até ao peito.
Por fim, Val olhou para ela. Lágrimas marejavam-lhe os olhos.
– Ratinha, eu…
– Não me chames isso. – Ratinha de túnel, chamava-lhe Val quando ela
era nova, por o seu cabelo não se decidir se era castanho ou louro e ficar
entre uma coisa e outra, e pelo lugar onde Mari a encontrara, à entrada das
catacumbas. Mesmo depois de Lore ter crescido, continuara a ser ratinha. –
A Mari sabe? Ela também entendeu que por um contrato valia a pena matar-
me?
Os lábios gretados de Val comprimiram-se, os seus olhos fecharam-se
por um instante antes de voltarem a abrir-se.
– Eu explico à Mari – disse baixinho. – Ela vai compreender.
– Que bom para ela. – O soçobrar na voz de Lore era demasiado forte
para disfarçar. – Porque eu de certeza que não entendo, porra.
Val suspirou. Uma pausa, após o que se aproximou, agachando-se junto à
cadeira. Ergueu uma mão como se fosse afastar o cabelo de Lore, mas esta
lançou a cabeça para trás.
– Sei o que isto parece – disse-lhe num tom calmo. – Mas, Lore, pode ser
uma oportunidade. Vai manter-te mais segura do que alguma vez ficarias
comigo e com a Mari.
Lore nada disse. Manteve o olhar fixo em frente, até as cores da
tapeçaria se misturarem nos seus olhos molhados. Val acabou por se afastar.
A porta fechou-se suavemente à sua saída.
– Vale o que vale – disse o Supremo Sacerdote, sentando-se diante dela
na cadeira que Gabriel rapidamente providenciou –, mas nenhum de nós te
mentiu. Não queremos fazer-te mal, Lore.
– Então, querem o quê? – A voz dela ainda soava arranhada, como se a
sua garganta fosse em pedra. Engoliu em seco.
Abriu-se um sorriso enrugado no lado atraente de Anton.
– Precisamos de apoio – disse ele. – E, ao que parece, tu és a única capaz
de o providenciar.
Capítulo 4

Aquele que mais depressa te apunhalará será aquele a quem


deres uma faca.
– Provérbio kirytheano

L oreTratou-se
calou-se. E então desatou a rir.
de um som irritante e áspero, a boca ainda seca por causa
da mordaça de algodão. Deixou descair a cabeça e riu até correr o risco de
se tornar um soluçar.
– A minha ajuda? – Ela abanou a cabeça, apesar de lhe fazer latejar as
têmporas. O clorofórmio provocara-lhe uma dor de cabeça brutal, pior do
que uma ressaca. – Estou certa de que não terei de lhe dizer, sacerdote, mas
querer a ajuda de uma controladora não autorizada de Mortem é mais do
que um pouco de heresia.
A expressão de Anton era quase de diversão, pelo menos no lado da cara
capaz de mostrar expressão.
– A heresia pode ser perdoada, quando é pelo bem maior.
Atrás de Anton, Malcolm permanecia imóvel, de braços com cicatrizes
cruzados, expressão inescrutável. Mas, perante a palavra heresia, Gabriel
cerrou a boca.
– O Deus Sangrante está a par das nossas dificuldades e dá-nos a Sua
bênção para fazermos o necessário para O servir. – Tudo isto foi proferido
num tom grave e agradável de barítono, como se Anton recitasse uma
oração. Talvez assim fosse; o Livro das Orações era grosso como tudo e
parecia ter uma entrada para todas as situações. – Efetivamente, é uma parte
essencial do trabalho dos Presque Mort, a essência do nosso ser.
Submetemo-nos às trevas, sabendo que no final todas as sombras serão
diluídas em luz, tal como a Deusa Sepultada foi eclipsada pela glória do
Deus Sangrante.
Isso não parecia ter resultado lá muito bem, com a Mortem ainda a
escapar-se do cadáver da deusa, e tudo isso.
– Se estão a pedir-me que me junte ao vosso culto – disse Lore –, a
minha resposta é um rotundo não.
Foi a vez de Anton se rir, um som tão típico da corte como a sua maneira
de falar.
– Oh, não – disse entre risinhos o Supremo Sacerdote. – Não queremos
nada disso. Só uma pessoa com um temperamento… muito… específico
pode tornar-se Presque Mort.
Ela brindou-o com um sorriso beatífico.
– E sou demasiado bonita.
Malcolm desviou a cara, contendo um sorriso trocista. Gabriel nem
sequer reagiu, com aquele único olho azul a fulminá-la.
Anton arqueou uma sobrancelha sarcástica.
– Sim, não tens cicatrizes. Nitidamente, as tuas capacidades com a
Mortem não te surgiram por acidente, ao contrário das nossas.
Aquilo roçou um pouco perto de mais a verdade para o gosto dela –
podiam estar dispostos a fazer vista grossa ao seu poder caso necessitassem
dela para algo, mas gostaria de evitar revelar de onde viera esse poder.
Remexeu-se na sua cadeira.
– Então, para que precisam de mim?
Agora, todo o riso desapareceu do rosto estoico de Anton, tanto do lado
atraente como do cicatrizado.
– Calculo que já tenhas ouvido falar da aldeia.
Naquela altura, já toda a gente ouvira falar da aldeia. Lore assentiu com
a cabeça.
– E ouviste o quê, exatamente?
– Pouca coisa. – Ergueu as mãos atrás de si até onde as cordas permitiam
e rodou os dedos. – Poderia recordar-me de mais, se me desamarrassem.
A expressão plácida de Anton não se alterou. Acenou uma mão e Gabriel
avançou, agachando-se atrás da cadeira de Lore para cortar os nós que a
cingiam. O Presque Mort movia-se em silêncio, rigidamente. Ela voltou a
sentir o cheiro a incenso.
Quando se libertou, Lore inclinou-se para a frente, remexendo os pulsos.
Malcolm fitou-a cautelosamente e ela ergueu as mãos como que em
rendição.
– Nada de armas, relaxe.
Ele não relaxou.
– Não são as armas que me preocupam.
– Já canalizou Mortem – ripostou Lore, abrindo e fechando os punhos. –
Sabe que não é pera doce. Não estou com pressa de voltar a fazê-lo.
Malcolm fitou-a por mais um momento e depois assentiu a contragosto.
Um pouco menos dorida, Lore recostou-se na cadeira.
– Ouvi dizer que toda uma aldeia morreu da noite para o dia.
Montessombra, a sudeste. – Montessombra era uma das aldeias mais
pequenas de Auverraine, mais um posto avançado do que uma genuína
povoação. Era o último povoamento auverrani antes do que antes se
conhecia por Balgia, um pequeno ducado que agora integrava o Império
Kirytheano: Lore nunca lá estivera, naturalmente, mas já provara cerveja
produzida em Montessombra. Era muito boa. Calculava que nunca mais
viesse a ser produzida. – As pessoas não tinham marcas, nenhum sinal de
envenenamento ou doença. Era como se estivessem a dormir. Há quem
pense que se trata de um sinal de desaprovação por parte de Apollius.
– E tu, o que achas que foi? – Anton encaixou os dedos em frente ao
corpo, como um professor a inquirir um aluno.
– Essencialmente, acho que tudo não passa de rumores. Talvez um ou
dois tenham adoecido durante a noite, talvez toda uma quinta, mas a aldeia
inteira? Tretas de merda.
– Não são tretas de merda – disse Anton, num tom calmo. Podia ser
sacerdote, mas palavrões não o faziam hesitar. – É verdade. Tudo. – Uma
pausa. – Só que agora já vai em duas aldeias. Voltou a acontecer há duas
noites. Orlimar. Ligeiramente maior do que Montessombra, mais perto de
Erocca do que de Balgia.
Outra aldeia na fronteira a sudeste, perto de outro país conquistado pelo
Império. Lore engoliu em seco.
O olho de Anton cintilou quando ele apontou um olhar inescrutável na
direção dela, com algo vagamente sinistro na curva da boca dele. Mas
depressa se foi, coberto por uma máscara de cortesia discreta.
Atrás do sacerdote, Malcolm e Gabriel permaneciam basicamente
inexpressivos. Mas Gabriel levava constantemente a mão à pala, como se
tivesse comichão.
– Isso é interessante – comentou por fim Lore. – Mas não estou a ver
como posso ajudar-vos.
– Tal como ajudaste o teu pobre amigo equino esta manhã na Ala
Noroeste – explicou Anton. – Reanimação.
A palavra caiu como um pedregulho numa sala silenciosa. Lore
arquejou, esquecida a sensação desconfortável da circulação a regressar.
– Eu… – Parou, abanou a cabeça, libertando mais daquela dor de cabeça
provocada pelo clorofórmio. – Ouçam, não é algo que eu faça com
frequência e a ressaca é muito desagradável, por isso preferia não…
– Já o fizeste mais do que uma vez. – Anton assentiu com a cabeça e
acenou majestosamente com a mão como se quisesse apresentar-lhe o seu
próprio sucesso. – Não se trata de uma capacidade que possas simplesmente
fazer desaparecer. Não preferirias fazê-lo ao serviço da Igreja e da Coroa,
onde uma pira não está iminente?
Aquilo era uma ameaça, apesar do tom cordial. Ela recostou-se na
cadeira, afastando-se instintivamente dele.
A pele cicatrizada do lado esquerdo do rosto do Supremo Sacerdote
moveu-se conforme a sua boca se abria num sorriso cruel.
– Quando se tem talentos profanos – declarou –, mais vale pô-los ao
serviço de algo sagrado.
– Não têm talentos profanos vossos? Por certo um de vocês poderia
fazê-lo? – Um riso de incredulidade manifestou-se ao fundo da garganta de
Lore. – Conseguem canalizar a Mortem, certo? Todos vocês, é esse o vosso
propósito. – A sua mão recentemente libertada cortou o ar, apontando a
Gabriel. – Ele sente! Tem de haver alguém no vosso maldito culto capaz de
despertar os mortos; não me metam nisso!
O olho visível de Gabriel semicerrou-se.
– A necromancia não está ao nosso alcance.
– E está aí o cerne da questão. – A granada no pingente de Anton
cintilou sob a luz das velas quando ele se remexeu na cadeira. – Apesar de a
nossa ordem ser capaz de canalizar Mortem, nenhum de nós tem o talento
da ressurreição. Ao contrário de ti.
As perguntas lógicas ficaram a pairar no ar, o porquê e o como. Mas
permaneceram por proferir, os rostos de Anton e Malcolm implacáveis, o de
Gabriel levemente contraído.
Quando se tornou evidente que o silêncio só seria quebrado se ela
falasse, Lore suspirou.
– Ainda não compreendo como é que eu fazendo… fazendo isso… vos
ajudo a descobrir o que se passa nas aldeias.
Anton encolheu os ombros.
– Despertas uma das vítimas – disse ele, como se a resposta fosse óbvia
–, e perguntas-lhe o que se passou.
A ideia levou Lore a encolher-se. Despertar Cavalo fora uma coisa – e
ainda lhe doía a garganta do café que vomitara ao ver os olhos do pobre
animal morto a pestanejar –, mas não poderia voltar a reanimar uma pessoa.
Nunca mais.
– Eu não…
– Não será por muito tempo, claro. – O Supremo Sacerdote sacudiu a
mão e a cabeça, negação dupla, os movimentos exagerados pela sua sombra
no chão. – Nem sequer precisam de caminhar.
Ela nada mais tinha no estômago para vomitar, mas, ainda assim, sentiu-
o às voltas.
– Tudo aquilo de que precisamos – prosseguiu Anton –, é que tragas as
vítimas de volta à vida por tempo suficiente para que revelem as suas
memórias. Que nos contem o que aconteceu antes de terem morrido, para
vermos como foi feito.
– E se não o fizer? – Queria parecer desafiante, mas saiu-lhe num tom
débil.
– Nesse caso, podes escolher: forca, pira ou Ilhas Queimadas. – O
Supremo Sacerdote voltou a encolher os ombros, como se para ele tanto
fizesse. – Ultimamente, andam a extrair cada vez mais carvão das Ilhas,
ouvi dizer. A ir cada vez mais fundo, na hipótese pouco provável de
perdermos o nosso bastião para salteadores kirytheanos. Estão sempre a
precisar de mais gente.
Disse-o num tom tão brando, sereno, com aquelas vogais reais bem
torneadas. Lore cerrou os dentes com força e voltou a engolir em seco,
tentando estabilizar o estômago.
– Pensa em todas as pessoas que estarás a ajudar. – Gabriel avançou,
desde detrás de Anton, olho azul cravado em Lore, maxilares cerrados. Até
parecia que o Mort se sentia ressentido pelo facto de tentar convencê-la, por
ter sido reduzido a persuadir uma traficante de veneno, resgatada da sarjeta
e levada para a sua Igreja. – Já aconteceu duas vezes e temos todos os
motivos para crer que vai voltar a acontecer – prosseguiu. – As duas aldeias
ficavam junto à fronteira que partilhamos com o Império Kirytheano. Não
preciso de te explicar tintim por tintim o que significa isso.
Não o fez. As relações com Kirythea sempre tinham sido tensas. Antes
de morrer, o antigo imperador, Ouran, conquistara tudo até ao limite sudeste
de Auverraine – mais de metade do continente Eneano. Agora, o filho de
Ouran, Jax, assumira o trono e ninguém sabia se daria continuidade à trégua
instável do seu pai. Os ataques às Ilhas Queimadas – território altamente
contestado que Auverraine mantivera ao longo de todo o reinado de Ouran
– levaram a que parecesse improvável a manutenção da paz.
Anton assentiu com a cabeça, lançando a Gabriel um olhar de agrado
pelo canto do olho.
– O Gabriel tem razão. Não se trará apenas de uma questão de
acontecimentos estranhos ou curiosidade mórbida. É um caso relacionado
com a manutenção da segurança do nosso país.
– Acho que estão a sobrestimar o meu patriotismo – frisou Lore.
– Não é uma questão de patriotismo. É uma questão de manter a guerra
longe das nossas terras. – As cicatrizes de Anton foram repuxadas quando
ele semicerrou o seu olho são, num movimento que parecia doloroso. –
Sabes quem carrega o peso da guerra. Não serão os nobres da Cidadela.
Serão os camponeses nas suas aldeias, os traficantes de veneno nas ruas.
Pessoas como tu.
Dizia-o como se aquilo o incomodasse. Ela esperava que assim fosse.
Gabriel apelava à sua noção de bem comum – ela teria isso, sequer?
Desejava que sim – e Anton apelava ao seu sentido de sobrevivência. Morte
num lado da balança, chantagem no outro.
– Isto é uma boa passagem para a segunda parte da nossa tarefa – referiu
Anton, como quem segue um guião minuciosamente elaborado. – A
necromancia não é o teu único talento que nos pode ser útil. Também és
uma espia talentosa.
– Talentosa é capaz de ser algo exagerado – murmurou Lore.
Anton prosseguiu como se não tivesse ouvido.
– Temos razões para crer que alguém na Corte da Cidadela anda a passar
informações a Kirythea. Possivelmente, o próprio Príncipe Sol.
Lore arregalou os olhos até lhe doerem.
– Querem que espie o raio do Príncipe Sol ?
– Só queremos que andes perto dele – explicou Anton. Apontou para ela.
– És uma mulher bastante bonita e o Bastian gosta de gente bonita. Não
deverá ser um problema insinuares-te nas boas graças dele depois de estares
estabelecida na corte.
Ela conhecia o significado de cada uma daquelas palavras, mas, unidas
daquela forma, tinha dificuldade em perceber o que quereriam dizer.
– Eu não… como assim, estabelecida na corte…
– Tudo se tornará mais claro assim que falarmos com o meu irmão. –
Anton espreitou para cima, como se lograsse ver através do teto o sol a
brilhar no exterior, conseguindo ver que horas eram. – O que deveremos
fazer o mais depressa possível. A cerimónia de Consagração começa daqui
a umas horas. – O olho dele voltou a fixar-se nela, a face atraente do seu
rosto numa paz absoluta. – Então, em que ficamos, Lore? As Ilhas ou a
corte?
Posto daquela maneira, não havia grande escolha.
– Muito bem. Eu alinho.
Gabriel quase pareceu aliviado.
Anton inclinou a cabeça, como se a resposta dela fosse exatamente o que
ele esperava.
– Então, vamos – disse ele, avançando para a porta. – O Rei Santo não
gosta de esperar.
Capítulo 5

E Nyxara, ávida de poder, tentou apoderar-se do lugar de


direito de Apollius – por isso, Ele lançou-A sobre o mar e
sobre o Monte Dourado onde Eles residiam, e sobre a Fonte
que os tornara deuses. Onde Ela aterrou, a terra tornou-se
carvão negro e onde Ele sangrou, do solo brotaram joias
como fruta. E desse momento em diante passaram a ser
conhecidos por Deusa Sepultada e Deus Sangrante.
– O Livro da Lei Sagrada, Opúsculo 3

A parentemente, a camisa de homem largueirona e as calças enlameadas


de Lore não eram traje adequado para uma audiência com Sua
Majestade Real, August Arceneaux, o Rei Santo e Abençoado de Apollius.
Fora da sala de interrogatórios, Anton encaminhara-a por um pequeno
corredor.
– Doações – limitou-se a dizer, indicando a Gabriel que os seguisse. –
Encontra algo que sirva. De preferência, do tipo recatado.
Agora, Lore encontrava-se num quartinho de vestir a abarrotar de roupa
sumptuosa que ninguém fora da Cidadela poderia usar. Recatado deveria ter
um significado completamente diferente para Anton do que para ela.
Um vestido de tule violeta-claro frondoso pareceu-lhe promissor, com
parte da peça escondida na cascata de ridícula riqueza. Mas quando Lore
lhe pegou, o corpete parecia imitar uma pluma de pavão, completo com
penas.
Lore olhou incrédula para o vestido e depois virou-se para a porta,
brandindo a saia como um punhal.
– Isto foi doado?
Gabriel assentiu com a cabeça. Estava de costas para ela à porta do
quartinho. Os ombros largos dele quase ocupavam toda a largura, com o
topo da sua cabeça ruiva dourada tapado pelo lintel.
– A Corte da Cidadela sabe que as coisas são… menos do que seria
ideal, fora das muralhas. Tentam ajudar.
Menos do que seria ideal era uma maneira de falar. Os impostos sobre os
cidadãos comuns de Auverraine subiam todos os anos, para pagar a
segurança face ao Império Kirytheano e sabia-se lá o que mais, enquanto os
da Cidadela praticamente nada pagavam.
Lore pegou noutro vestido, justo nas ancas antes de se abrir em folhos
em forma de escamas de peixe iridescentes.
– A não ser que algum destes seja feito de algo comestível, para nós não
valem uma merda. Alguém considerou doar dinheiro em vez de provas dos
seus crimes de bem-vestir?
Gabriel resfolegou.
– Os nobres gostam de fazer apenas o suficiente para acharem que
ajudam sem ser inconveniente para eles. O que está na moda passa depressa
e é mais fácil doar roupa com a qual nem morta uma pessoa se quer ver ao
fim de uma estação do que mantê-la guardada.
Ela arqueou as sobrancelhas. O tom de voz de Gabriel denotava um certo
veneno, tornado mais forte pela forma como tentava ocultá-lo.
– Parece conhecer bem a corte.
Uma pausa longa. Gabriel remexeu-se desconfortavelmente, com os
ombros impressionantes a aproximar-se das orelhas.
– Melhor do que gostaria – acabou por dizer.
Lore pegou no vestido menos ofensivo que encontrou no cabide, uma
peça de veludo verde-escuro que parecia ter espaço suficiente para os seus
seios e ancas. A camisa dela fez um ligeiro som a atingir o solo e Gabriel
retesou-se.
Ela esboçou um sorriso trocista.
Apesar de tudo, o vestido era demasiado justo, mas Lore estava
convencida de que não arranjaria melhor. Depois de se vestir, deu um
toquezinho no ombro de Gabriel para sair do quartinho.
– Que cavalheiro – vincou ela, começando a percorrer o vestíbulo até
junto de Anton e Malcolm, com o veludo a que estava pouco habituada a
balançar-lhe em redor das pernas. – O celibato só pode ser uma seca, mas
nem sequer tentou espreitar.
O Mort deixou escapar um som abafado.

A Cidadela era tão brilhante que lhe feria a vista.


Ela já vira o alto dos quatro torreões dos cantos – entreviam-se sobre a
muralha da Igreja, erigida num círculo em redor da própria Cidadela –, mas
observá-los de perto era algo completamente diferente. Cintilavam ao sol,
setas apontadas ao céu, pintalgadas com prata nas laterais das torres como a
cobertura de um bolo. Nas paredes que ligavam os torreões, janelas
brilhavam como joias em pontos equidistantes, algumas em vitral, outras
em vidro cristalino como diamante. Um teto de vidro abobadado no centro
da praça formada pelos torreões, projetava prismas das cores do arco-íris. O
edifício era um colosso de mármore e metais preciosos, madeira polida e
pedra preciosa, suficientemente grande para albergar toda a corte nos meses
de verão. Lore achou que poderia deambular por ali ao longo de um ano
sem encontrar a saída.
O terreno em redor da Cidadela era um jardim, pelo menos ali, entre a
muralha sul da Igreja e a entrada principal. Do outro lado da Cidadela,
havia campos, estábulos, todo um mundo com o tamanho de pelo menos
duas alas da cidade. E a toda a volta, a Igreja, construída mais ao estilo de
uma fortaleza. Tanto uma estrutura para afastar a ralé, como para veneração.
Anton encaminhou-os da entrada em arco da Igreja para o jardim. Lore
espreitou para trás, protegendo os olhos – vinham do Santuário Sul, aquele
destinado aos veneradores comuns. A quilómetros dali, no lado oposto da
Cidadela, ficava o Santuário Norte, destinado à corte. As grandes paredes
de pedra que apartavam os terrenos em dois eram preenchidas por armazéns
e claustros, encimados por ameias preparadas para a eventualidade de um
cerco.
Uma estátua em mármore branco impunha-se de entre um emaranhado
de roseiras cor-de-rosa ao lado do carreiro. O Rei Sangrante, uma vez mais,
a usar uma coroa como raios de sol – um remanescente de quando o
panteão estava intacto e Ele era apenas o deus da luz, da vida e do dia, em
vez de tudo. Havia plintos em redor da estátua, agora vazios, mas Lore
contou cinco. Um para cada deus elementar do antigo panteão, que tinham
morrido um a um, os Seus corpos encontrados em lugares estranhos por
todo o mundo. E um ao lado de Apollius, ligeiramente mais alto do que os
restantes, destinado a Nyxara.
Anton e Malcolm seguiam à frente dela e Gabriel atrás, embora nenhum
deles parecesse estar necessariamente de guarda. Ela não ia propriamente
fugir e, fosse como fosse, não havia sequer para onde ir que não para o
interior da Igreja.
– Se vires alguém, sê discreta. – A voz de Gabriel era suficientemente
grave para lhe causar uma vibração nas omoplatas. – A não ser que desejes
ser alvo de rumores nos anos vindouros. É raro ver-se caras novas na corte.
Lore também falou em voz baixa.
– Talvez lhes ocorra algo interessante.
– Mais interessante do que a verdade?
– Tem razão. – Ela espreitou por cima do ombro. – Mas se o vosso chefe
quer que eu seja amiga do Príncipe Sol, acho que os mexericos serão
inevitáveis.
Gabriel não respondeu, mas semicerrou o olho.
Havia árvores plantadas por todo o jardim com uma aleatoriedade apenas
suficiente para parecer que tal não fora planeado, e pequenas pérgulas
densamente floridas cobriam os bancos por baixo, ocultando-os quase
completamente.
Um movimento sob uma das pérgulas chamou-lhe a atenção. Lore
apontou os olhos para um aglomerado de rosas amarelas, com a curiosidade
de imediato a impor-se às indicações de Gabriel.
Um homem de cabelo escuro tinha a cabeça baixada, sussurrando a uma
senhora cujas costas estavam voltadas. Lore pouco logrou discernir do rosto
dele por entre as flores, mas o que conseguiu ver era quase estupidamente
atraente – maxilar forte, pele branca bronzeada pelo sol, olhos escuros.
Da senhora, ela viu ainda menos, apenas o suficiente para perceber que o
seu cabelo era castanho-claro e as roupas elegantes. O homem parecia estar
a tentar livrar-se delas, a julgar pela mão atrevida na coxa e o roçar dos
lábios no ombro da mulher.
Como que sentindo o olhar de Lore, o homem ergueu os olhos, fitando-a
por entre a treliça de rosas. Os lábios dele prosseguiram o avanço suave
pela omoplata da companheira enquanto, lenta e deliberadamente, lhe
piscava o olho.
Lore rodou rapidamente a cabeça para olhar em frente.
Os guardas não fizeram perguntas quando os Presque Mort se
aproximaram da entrada da Cidadela, umas grandes portas duplas com
amplos corações de ouro embutidos, como aquele que Anton usava como
pingente. Os guardas inclinaram as cabeças a Anton quando as portas se
abriram, o sol a refletir nas minúsculas granadas na madeira, quase da
mesma cor dos casacos.
Até então, Lore dominara bem os nervos. A necessidade dava-lhe
astúcia, e precisava de se manter concentrada. Mas quando as portas da
Cidadela se fecharam atrás dela, o coração saltou-lhe na direção da
garganta, batendo tão intensamente que quase lhe sentia o sabor.
O interior da Cidadela era ainda mais sumptuoso do que o exterior.
Recantos embutidos em paredes guardavam pequenos ícones de Apollius,
raios de sol sob os seus topos arqueados que cintilavam a dourado sobre o
mogno rico. Os tetos apresentavam pinturas com luxuriantes cenas de
jardins, nus estendidos entre árvores verdes e ao lado de agitados regatos
azuis, interrompidos ocasionalmente por correntes de ouro de candelabros
pesados, a luz refletida nas pedras preciosas suspensas e a espalhar arco-íris
pelas paredes.
As traves de ferro que dividiam o chão pareciam brutalmente deslocadas.
As barras destacavam-se face ao mármore, mas nem assim Lore quis
pisá-las. Alongou os passos tanto quanto pôde com o seu vestido cingido.
– Que opção decorativa curiosa. – Algo naquela opulência levava-a a
querer manter a voz baixa.
– São simbólicas – murmurou Gabriel em resposta. – É suposto
recordarem a todos que a Cidadela existe para conter a Mortem e que a
linhagem de Arceneaux governa por direito divino.
– Piroso.
– Bastante.
Havia uma enorme tapeçaria pendurada na parede à esquerda dela, com
largura quase suficiente para abarcar o corredor. No canto superior, pairava
a figura pálida com cabelo castanho de Apollius, asas de luz abertas nas
Suas costas, uma mão para a frente sobre o peito de uma forma escura a
adernar para o chão. Tal como a tapeçaria na Igreja, a figura era vaga, mais
fumo e sombra do que traços concretos, mas a coroa crescente sobre a testa
d’Ela era nítida. Abaixo, um traço azul-celeste era interrompido por
círculos de castanho e verde, sete ilhas estilizadas num mar tempestuoso. A
situada na ponta do arquipélago, mais distante do observador, era de longe a
maior. O Monte Dourado. Onde Apollius e Nyxara tinham vivido antes.
Era a Queda dos Deuses, como as Ilhas Queimadas tinham passado a ter
tal designação. Apollius derrubou Nyxara quando Ela tentou matá-Lo e
ocupar o Seu lugar, criando uma cratera profunda na segunda ilha e
rompendo as outras. Segundo o Livro da Lei Sagrada, era por isso que
tantas pedras e metais preciosos podiam ser extraídos de lá. Os deuses
sangravam riquezas, pelos vistos. Conveniente.
Lore deteve-se por uns momentos a observar a tapeçaria. Era estranho
ver as sete ilhas representadas. O fumo da queda dos Deuses obscurecia
todas menos as duas primeiras e o Monte Dourado era funcionalmente um
mito, com inúmeros viajantes perdidos ao procurarem-na na neblina.
Quinhentos anos, e as cinzas ainda por clarear.
Um leve toque no cotovelo. Gabriel apontou com a cabeça para a frente,
onde Malcolm e Anton iam a dobrar uma esquina. Lore acelerou para os
seguir, apartando-se de Apollius e Nyxara.
Depois da esquina, surgiu um enorme conjunto de portas duplas, ainda
mais incrustado com ouro e pedras preciosas do que a entrada principal da
Cidadela. Guardas casacas de sangue delimitavam o vestíbulo e todos
curvaram a cabeça à passagem de Anton. O Supremo Sacerdote não lhes
prestou a menor atenção, olhando em frente quando os casacas de sangue
no fim da fila empurraram as duas portas.
A sala do trono do outro lado era ainda mais impressionante do que o
resto da Cidadela, suficientemente grande para albergar um baile. As
paredes encontravam-se recobertas de frisos de ouro, curvando em arcos
graciosos sob uma janela abobadada. As barras de ferro ainda revestiam o
chão, mas ali pareciam mais polidas, com um brilho quase prateado.
Aglutinavam-se em redor da base do trono numa onda afiada e alta, as
pontas aguçadas a imitar os raios do coração dourado instalado no topo do
trono, logo acima da cabeça do homem sentado na beira, mergulhado em
pensamentos.
– Anton – disse o Rei August, erguendo o olhar das suas mãos de dedos
unidos. – Demoraste mais do que esperava.
– Tive de pôr a senhora a par das nossas expectativas. Foi difícil
convencê-la. – Apesar da rudeza do irmão, Anton não parecia incomodado,
embora voltasse a remexer no pingente, com uma unha a cravar-se na
granada. – A não ser que prefiras que deixe isso para ti. És um excelente
negociador.
O seu tom deixava claro que não se tratava de um elogio.
– Não é necessário. – August levantou-se, avançando sobre as barras de
ferro que revestiam a base do trono com uma destreza que denotava muita
prática.
Ele e Anton eram gémeos, mas August não era tão bem-parecido – pelo
menos, não seria se Anton não estivesse horrivelmente marcado por
cicatrizes. O cabelo deles era do mesmo tipo de ferro acinzentado, os olhos
do mesmo castanho-escuro.
August usava uma barba curta, bem aparada, no seu maxilar afiado,
enquanto Anton a rapava por completo.
Tendo em conta toda a extravagância do palácio, o rei vestia-se de modo
bastante simples. Calças pretas, gibão igualmente escuro sobre uma camisa
de um branco cremoso, botas de couro maleáveis, tudo obviamente do
melhor que Auverraine tinha para oferecer. A roupa discreta tornava a coroa
de August ainda mais ostentosa, o mesmo design que Lore vira a ser
vendido nas bancas nas ruas das docas na véspera – uma faixa na testa,
cravada com tubos cintilantes, e outra sobre o cimo da cabeça com grossos
raios de sol dourados, fazendo com que se assemelhasse ao próprio
Apollius.
Lore calculou que fosse essa a ideia.
Talvez ela devesse ter sentido algum assombro por se ver na presença do
Rei Santo. Mas o dia já lhe parecia suficientemente surreal, tão difícil de
encaixar no tipo de vida que conhecia, que apenas sentia irritação, para
além da batida distante do medo.
– Então – disse o Rei Santo. – É esta a nossa feiticeira da morte.
Lore remexeu-se, inquieta, sem saber se deveria fazer uma vénia, mas
concluindo de imediato que serviria apenas para cair de rabo no chão.
Assim, optou antes por erguer o queixo e cerrar as mãos sobre a saia.
– Em carne e osso.
O canto da boca do rei subiu e desceu de repente, um sorriso apenas na
sua forma.
– Dizem-me que estás ligada a traficantes de veneno. Como é que isso
aconteceu com uma mulher com o teu talento prodigioso?
– Sou demasiado malvada para cobrar pela minha companhia, demasiado
desajeitada para servir ao balcão e péssima cozinheira. Isso exclui a maior
parte dos trabalhos remunerados. – Respondeu num tom agradável, uma
resposta que não revelava nada de importante. – O meu talento prodigioso,
para ser sincera, de pouco serve.
O rei fungou.
– A tua antiga patroa diz-nos que és uma espia de categoria, além das
tuas… características menos comuns. Isso certamente será um talento capaz
de valer bom dinheiro.
A menção a Val gerou-lhe uma impressão no peito.
– Ser bom a espiar resume-se por norma a saber quando mentir e quando
permanecer calado – respondeu. – E não há muito dinheiro a circular lá
fora, por muito bom que se seja no que se faz.
– Uma infelicidade – reconheceu August com um aceno de cabeça. –
Agravada pela ameaça do Império Kirytheano às nossas portas. Há escassez
por todo o reino.
Dentro das muralhas da Cidadela, não parecia haver qualquer tipo de
escassez. Lore mordeu a língua para travar esse comentário em particular.
Ela era um bem insubstituível, tanto quanto sabia, mas mais valia não
abusar da sorte.
– Dado que o Anton já te traçou o panorama geral do que necessitamos
da tua parte – disse August –, eu dou-te os pormenores. – Virou-se para o
trono e sentou-se com mais graciosidade do que deveria ser possível com
aqueles picos de ferro em redor. – Cremos que Kirythea ataca aldeias ao
longo da nossa fronteira, recorrendo a algum tipo de magia inferior para
matar os nossos cidadãos à noite. Algo deixado por um dos deuses menores.
Ela franziu a testa.
– Ainda há magia inferior a circular?
Quando os deuses elementares menores morreram, os Seus corpos
deixaram escapar poder, tal como Nyxara ainda deixava escapar Mortem.
Mas todo esse poder tinha-se dissipado havia muito. Pelo menos, era o que
toda a gente julgava.
Os lábios de August formaram uma linha reta.
– Jax é sagaz.
O que não era propriamente uma resposta.
– Até ao momento, aconteceu apenas em duas pequenas aldeias e em
momentos aleatórios… a segunda foi eliminada há duas noites. – August
cruzou uma perna sobre a outra, despreocupado ao falar de tanta morte.
Havia um cálice pousado sobre o braço do trono; ele tomou um longo gole.
– Precisamos de neutralizar a ameaça antes que Kirythea avance para alvos
mais lucrativos.
Alvos mais lucrativos. Como se as vidas das aldeias periféricas valessem
menos do que gado. Lore semicerrou os olhos.
– Então, quer descobrir o que se passa antes que mate alguém que
interesse.
O tom venenoso dela terá passado despercebido ao rei.
– Precisamente.
Gabriel mantinha-se atrás dela, mas perto o suficiente para ela lhe ver o
rosto pelo canto do olho. Parecia esforçar-se por não franzir o sobrolho,
como se o comentário o tivesse enfurecido tanto quanto a ela. Lore ficou a
pensar até que ponto os Presque Mort poderiam manifestar as suas
discordâncias. A Igreja e a Coroa eram dois membros de um único governo,
mas, do pouco que Lore sabia de políticas da corte, aparentemente nem
sempre caminhavam na mesma direção.
– Se Kirythea é responsável – prosseguiu August –, precisamos de
identificar de imediato a ameaça e agir em consonância.
Tal só poderia significar guerra. Lore espreitou para os Presque Mort ali
à espera. Gabriel semicerrou o olho; Malcolm tinha a boca tensa numa
linha. Mas se Anton estava perturbado com uma eventual guerra iminente,
não o demonstrou, mantendo serena a cara cruzada por cicatrizes.
O Rei Santo uniu as mãos e os seus olhos cintilaram sob a coroa pesada.
– Vais permanecer na Cidadela – disse a Lore. – E, além de usares os
teus… talentos… para nos ajudares a descobrir o que se passa nas aldeias
periféricas, serás os meus olhos e ouvidos.
– Ou melhor, vou vigiar o seu filho.
August sorriu, mostrando uma expressão predatória, e bebeu mais um
longo trago do que quer que estivesse naquele cálice.
– Parece que o meu irmão te facultou pormenores relevantes. Sim,
ficarás aqui com o objetivo declarado de te aproximares do Bastian. Temos
motivos para acreditar que ele pode andar a informar o Imperador Jax das
nossas fraquezas, agindo como espião a partir de dentro.
– Porquê? – Lore cruzou os braços, como se fossem um escudo. –
Porque é que o herdeiro da coroa haveria de querer entregar o seu país ao
Império Kirytheano?
– Porque a coroa é pesada – respondeu tranquilamente August –, e o meu
filho nunca se mostrou suficientemente forte para arcar com esse peso.
A mão de Anton contraiu-se em volta do pingente, mas, quando Lore
olhou para ele, o seu rosto com cicatrizes permanecia inexpressivo.
– Apesar de o Bastian ser a nossa principal preocupação – prosseguiu
August –, também desejamos que te insinues na corte. Os meus cortesãos
vão ficar loucos por mexericar sobre ti, mas também contigo.
– Tudo isso me parece o máximo, mas como é que hei de entrar na corte
sem levantar suspeitas? – Lore apontou para o seu vestido de tamanho
desadequado. – Não sei se reparou, mas é tremendamente óbvio que não
sou nobre.
– Pelo contrário. – O sorriso de August alargou. – Vamos dizer-lhes que
és prima do Duque de Balgia.
Atrás dela, o rosto de Gabriel praticamente ficou branco. Junto dele,
Anton suspirou, como se tivesse chegado à sua parte menos preferida de
uma tarefa.
– Balgia? – Lore arqueou as sobrancelhas. O pequeno ducado do sudeste
caíra nas mãos do Império Kirytheano catorze anos antes, conquistado por
Jax enquanto o seu pai ainda era imperador.
August assentiu com a cabeça.
– Balgia. – Apontou para Gabriel. – Parece que está na altura de voltares
a assumir o teu título, Gabriel Remaut.
Capítulo 6

Os pecados do pai recaem sobre os herdeiros.


Os filhos herdam tanto a vergonha como a glória.
– O Livro da Lei da Morte, Opúsculo 24

O rosto de Gabriel estava pálido como o de um cadáver, os maxilares


cerrados com força, como se o som do seu apelido lhe tivesse dado a
volta ao estômago. As cicatrizes em redor da pala do olho destacavam-se
como relâmpagos.
Um duque. Gabriel era um duque? Por que raio, em todas as miríades de
infernos, haveria um duque de se juntar aos Presque Mort, mesmo sendo o
duque de um lugar que tecnicamente já não existia?
E como teria um duque perdido um olho?
O Rei Santo não se apercebeu da inquietação de Gabriel ou não se
importava com isso.
– Parece que a tua linhagem finalmente vai revelar-se útil, Gabriel –
disse, com indiferença, os anéis de rubi a cintilar-lhe na mão enquanto bebia
uma vez mais do cálice. – Quando o Anton te perseguiu com tanto afinco
depois… do incidente… fiquei hesitante, mas ao que parece o meu irmão
sabia o que fazia, recrutando-te para os Presque Mort.
Todos os traços do corpo de Gabriel estavam tensos como uma corda de
violino, os seus músculos tão imóveis que Lore até contou que vibrassem.
– Vossa Majestade, não posso… Não sei…
Apesar de todos os seus tons equilibrados, Gabriel nitidamente não tinha
palavras para explicar o que pretendia. No entanto, a sua expressão dizia
tudo. Estava furioso. Aterrorizado.
– Meu filho. – Anton avançou, a sua mão pousando levemente no ombro
de Gabriel. – Sei que isto é um choque.
Então, o Supremo Sacerdote já sabia. Já sabia que isto ia acontecer e
ainda assim deixara Gabriel às escuras. Lore sentiu algum desprezo pelo
velho de rosto marcado.
– Mas esta é a vontade de Apollius – prosseguiu Anton. – Mantiveste-te
escondido da corte durante anos, a sarar. Agora, está na altura do regresso.
Está na hora de desempenhares o papel que Apollius reservou para ti.
Ao escutar o nome do seu deus, Gabriel fechou o seu olho.
– Vais acompanhar a Lore – disse Anton, toda a sua atenção focada no
tenso, imóvel e silencioso Presque Mort diante de si. – Vais ajudá-la nas
tarefas que lhe foram atribuídas. E serás recompensado, Gabriel. As funções
que nos são entregues nem sempre são as que escolheríamos, mas Apollius,
deus de tudo, sabe o que é melhor e Ele honra aqueles que O escolhem,
mesmo que para isso tenhamos de ir contra a nossa natureza. – Fez uma
pausa, apertando-lhe o ombro. – É assim que expias os teus pecados.
– Pensei que isso acontecia ao tornar-me Presque Mort – sussurrou
Gabriel num tom áspero. – Não foi isso que me disse? O que lhe indicou a
sua visão?
A visão que dera a Anton a sua cicatriz. Até Lore ouvira a história.
Anton Arceneaux estava de tal modo tomado por um fervor sacro ao rezar
que Apollius lhe facultou uma visão, uma visão tão sagrada que foi mantida
bem no seio da Igreja, o seu conteúdo um segredo. No êxtase de falar com o
seu deus, Anton caíra no braseiro e, depois de quase ter morrido dos
ferimentos, despertou com a capacidade de canalizar Mortem. August,
recém-coroado, tornou-o Supremo Sacerdote, obrigando o antigo detentor
do título a reformar-se. Desde então, não se voltara a saber dele.
– Meu filho – murmurou Anton –, não podia contar-te tudo.
A dor era patente no maxilar de Gabriel e na forma como se libertou da
mão do Supremo Sacerdote. Mas não recusou, não reclamou contra a
injustiça. Não disse absolutamente nada.
Então, August sorriu e incidiu todo o seu fulgor em Lore, prosseguindo
como se Anton e Gabriel não o tivessem interrompido com aquela conversa
murmurada.
– Além disso, a rapariga veio das ruas, Remaut. Não a prives do seu
conto de fadas. Provavelmente, sonhou com esta oportunidade desde
menina.
– Para ser sincera, não sei se alguma vez me ocorreu a oportunidade de
andar a espiar pela Cidadela à espera de que alguém me dissesse algo útil –
atalhou Lore.
– Vais fazer mais do que andar a espiar. Vais travar amizades. Insinuar-te
na sociedade. – August saudou-a ociosamente com o cálice. – E, acima de
tudo, vais manter-te o mais perto possível do meu filho. Se isto se revelar
excessivo para ti… bem. Arranja-se sempre espaço nas celas.
Lore sentiu os nervos a darem-lhe a volta às entranhas e esforçou-se ao
máximo por não o revelar.
O Rei Santo bebeu demoradamente, esvaziando o cálice, pousando-o
então no braço do trono.
– O tempo escasseia. A Consagração do Bastian começa em breve e
todos devemos marcar presença.
August agitou os dedos na direção de Gabriel como poderia fazer-se a
um cão bem treinado.
– Gabriel! Avança, por favor.
A expressão do duque tornado Mort denotava cansaço e tensão enquanto
olhava para August. Mas obedeceu, avançando até onde se encontrava o Rei
Santo. Manteve a cabeça baixa, os olhos apontados ao chão.
A submissão de Gabriel irritava-a, por motivos que não lograva
identificar. A estranha sensação de familiaridade que sentia pelo Mort
indicou-lhe que ele não devia ser assim, plácido e fácil de vergar, abafando
as chamas da sua ira. Ele era alguém que deveria deixá-la arder.
August levantou-se e desceu do trono de picos de ferro. O trono
assentava num estrado ligeiramente elevado e ele deixou-se ficar no degrau
mais baixo, pondo-se ao nível dos olhos de Gabriel – nitidamente de forma
deliberada; o rei não queria olhar de baixo para alguém que considerava
inferior.
O Rei Santo estendeu a mão coberta de joias e pousou-a no ombro do
Mort.
– Sei do teu desejo de te livrares do teu título – disse-lhe em voz afável.
– Sei que só te trouxe problemas e vergonha.
Lore semicerrou os olhos. Estava bastante habituada à forma como as
pessoas brandiam pena como se fosse uma baioneta, escondendo por detrás
da falsa preocupação o desejo de que soubéssemos o nosso lugar.
August não pretendia reconfortar Gabriel; tentava intimidá-lo.
– Mas sempre soube que um dia se esperaria que regressasses à corte –
prosseguiu August. – Esta é a tua oportunidade de redenção. De mostrar à
Cidadela que a família Remaut não é composta apenas por traidores que
desistem ao mais leve sinal de conflito. Conheces os Opúsculos tão bem
como eu: Os pecados dos pais passam para os filhos. A traição do teu pai
vive no teu sangue.
– Eu tinha dez anos. – A voz de Gabriel não vacilou, não demonstrou
qualquer emoção, com a exceção da pequena ênfase no algarismo. O olhar
no seu único olho estava distante, desfocado. – Eu tinha dez anos e Jax
acabara de matar o meu pai e de me arrancar o olho. Não sabia o que mais
fazer.
Então, fora assim que ele perdera o olho. Jax arrancara-lho. Anton
recorrera à mutilação para trazer Gabriel para debaixo das asas dos Presque
Mort e agora August usava-o como prova de que Gabriel transportava
segredos que não eram seus.
Lore percebeu então que odiava os dois irmãos Arceneaux.
– É assim que se recordam de ti. – August mudou suavemente o curso da
conversa; pelos vistos, tinha prática, apercebia-se das fissuras em alguém
para as abrir mais. – Como alguém que se esconde.
Quase alheadamente, Gabriel ergueu a mão para tocar na pala do olho.
– O Anton deu-me um lugar – afirmou em voz baixa. – Disse-me que
poderia trabalhar para limpar a minha linhagem, se me juntasse aos Presque
Mort.
– Reentrar na corte não te torna menos Presque Mort. Encara isto como
uma forma de redimir os erros do teu pai. De devolver a honra ao nome
dele. – August largou o ombro de Gabriel após uma derradeira palmadinha.
Um leve sorriso, que nada tinha de amável. – Tantos vão adorar voltar a
ver-te, Gabriel. Em particular, Alienor Bellegarde.
A menção do nome deixou Gabriel ainda mais tenso. Recuou, com
aquele olhar inexpressivo ainda estampado, fitando cuidadosamente o
vazio.
– Amanhã, trato das apresentações oficiais, quando a corte se reunir para
as orações matinais no Santuário Norte. Serão providenciados guarda-
roupas com vestuário adequado, mas por uma questão de discrição não
serão destacados criados para tratar da manutenção dos vossos aposentos.
Os olhos negros do rei voltaram-se para Lore.
– Tenta mantê-los arrumados.
Ela resolveu que à primeira oportunidade despejaria uma garrafa de
vinho na carpete.
August olhou para o irmão.
– Mostra-lhes os aposentos, mas despachem-se. Não queremos deixar
ninguém à espera.
Com um leve inclinar de cabeça – não uma vénia completa, reparou Lore
–, Anton saiu com leveza pelas portas duplas agora abertas. Gabriel e
Malcolm seguiram-no, Gabriel ainda com um olhar alheado.
Lore espreitou para trás para August antes de os seguir. O Rei Santo
resplandecia no seu trono, com a luz do sol a reluzir nele como se fosse
uma estátua.
– Bem-vinda à Corte da Cidadela, Lore. Vemo-nos daqui a uma hora na
Consagração do meu filho.

Casacas de sangue aguardavam à entrada da sala do trono. Sem abrirem


a boca, escoltaram os quatro pelos corredores reluzentes que Lore não teria
a oportunidade de percorrer sozinha, através de átrios amplos que teriam
tudo para ser museus, repletos de ícones, tapeçarias e frescos. Os vestíbulos
estavam vazios, os cortesãos aparentemente ainda deitados ou preparando-
se para a cerimónia.
A luz que entrava pelas janelas situava a hora por volta do meio-dia.
Anton seguia à frente, logo na esteira dos casacas de sangue, com
Malcolm nos seus calcanhares. Lore e Gabriel seguiam atrás, como se uma
divisória invisível os apartasse, separando-os em fações de corte e Igreja.
Os guardas encaminharam-nos por uma escadaria ampla alcatifada,
delimitada por estátuas de mármore de figuras robustas em diversos estados
de nudez. A escadaria terminava num corredor curto repleto de portas em
arco idênticas; os casacas de sangue avançaram até ao fundo, onde outra
porta se abriu para outra escada, mais pequena e desgastada, mas ainda
assim ornamentada.
– O torreão sudeste – murmurou Gabriel, como se percebesse que Lore
sentia dificuldade em se situar. – O menos elegante da Cidadela. Quem é
importante vive no torreão nordeste durante o verão.
A voz dele era ilusoriamente neutra, mas, quando Lore o fitou, o rosto
dele estava pálido, o olhar vago. A mão dela já ia a levantar-se, sem que
reparasse, pronta para a pousar no braço dele para o confortar.
Lore puxou-a para trás antes de lhe tocar, os dedos cerrados num punho.
Céus, aquela estranha familiaridade era inconveniente. Ternura
desadequada por um Mort triste era a última coisa de que necessitava
naquele momento.
As escadas desembocavam a cada passo em patamares, mas os casacas
de sangue levaram-nos cada vez mais para cima. Até que por fim pararam,
num patamar cujas carpetes pareciam bem mais gastas do que quaisquer
outras.
Os casacas de sangue empurraram a porta para a abrir. Outro corredor,
parcamente iluminado, com a única luz a vir de um candelabro dourado na
parede. Outro Coração do Rei Sangrante; o candelabro tinha a forma de um
coração dentro de um sol, com uma lanterna a óleo a tremeluzir ao centro.
Pequenas velas adornavam as pontas dos raios de sol, mas a maioria
extinguira-se.
Diante do artefacto de iluminação, uma pesada porta de madeira.
– As minhas desculpas, Duque Remaut. – O casaca de sangue inclinou a
cabeça para Anton, depois para Gabriel e Malcolm, ao inserir uma chave na
porta, e depois rodou a fechadura. Quanto a Lore, foi completamente
ignorada.
– O nosso Rei Santo insistiu para que ocupassem estes aposentos.
Pertenceram anteriormente ao Senhor e à Senhora Grosjean, mas ambos
faleceram no passado inverno.
É evidente que August os instalaria num corredor empoeirado, bem
longe dos restantes nobres. Seria mais fácil mantê-los debaixo de olho.
Gabriel empalideceu, como se o guarda tivesse acabado de lhe dar uma
ratazana viva.
– Quer dizer… quer dizer que vamos os dois ficar aqui?
Um aceno de cabeça da parte do guarda.
– Por ordem do rei, o senhor e a sua prima ficarão nestes aposentos
durante esta temporada.
Malcolm ergueu a sobrancelha escura. Gabriel engoliu em seco.
Lore revirou os olhos.
– Prometo que não impugnarei a sua virtude.
Malcolm fez um ruído que poderia ter sido o início de uma gargalhada
reprimida. Gabriel não emitiu qualquer som, mas o seu rosto já pálido ficou
ainda mais pálido.
Anton brindou-a com um olhar cortante a depois acenou majestosamente
com a mão aos casacas de sangue.
– Deixem-nos. – A sua voz não soou áspera, mas não deixava espaço a
discussões.
Obedeceram quase de pronto, como se a ordem fosse proveniente do rei.
Abanando a cabeça, Anton empurrou a porta para a abrir.
Os aposentos tinham quase o dobro do tamanho da casa geminada de
Michal. A primeira divisão apresentava-se equipada com um sofá baixo e
duas cadeiras diante de uma lareira apagada, os estofos de luxo, embora já
datados. Para lá da sala de estar, três portas abertas revelavam dois quartos
igualmente sumptuosamente mobilados, havendo entre ambos uma divisão
em azulejo a albergar uma reluzente banheira em cobre. Uma porta ao lado
da lareira dava para uma varanda fechada, repleta de mobiliário em vime, e
um pequeno estúdio abria-se para a sala de estar principal.
Podiam viver ali com conforto pelo menos quatro pessoas.
Anton suspirou, virando-se para Gabriel.
– Sei que isto é avassalador, em especial depois dos teus claustros no
mosteiro na Ponta Norte. Mas pedi especificamente que o August vos
pusesse nos apartamentos mais afastados do resto da corte, para terem o
espaço necessário para se sentirem confortáveis. – A face sem cicatrizes
suavizou-se, embora isso parecesse forçado. – A sério, fiz tudo o que era
possível para te tornar isto o mais fácil possível, Gabe.
Gabe. Deveria ter soado mais gentil, pensou Lore, para diminutivo. Mas,
vindo de Anton, havia ali algo de cortante. Recordou o que Malcolm dissera
antes, sobre Gabriel ser dos mosteiros do campo. Aparentemente, fora
trazido de volta a Dellaire para a Consagração, e em troca obtivera tudo
aquilo. Uma missão vaga e perigosa e a traição da parte do homem em
quem mais parecia confiar.
Ela olhou para Gabriel. O monge encontrava-se de braços cruzados, de
olhos fixos no chão. A ruga na testa sobre a pala do olho revelava que
refletia profundamente, os ombros tensos como à espera de um golpe.
– Bem, eu cá gosto destes aposentos – anunciou Lore, esparramando-se
no sofá. Levantou uma ligeira nuvem de pó, prova de que se passara algum
tempo desde que alguém se sentara ali… lá se ia o pedido de August para
que mantivesse o espaço aprumado; parece que os próprios Grosjeans não
tinham feito um bom trabalho em relação a isso. – A mim, parece-me
melhor do que um claustro, seja na Ponta Norte ou noutro sítio qualquer.
Malcolm observou a divisão, desconfiado.
– Acho que os claustros têm estofos mais recentes, mas este lugar tem
mais mobília.
Anton lançou-lhe um olhar sombrio.
– A Consagração começa daqui a menos de uma hora – comentou –, e
vocês os dois têm de marcar presença.
Gabriel retesou os braços sobre o peito. O seu único olho deslizou para
Lore e depois afastou-se, como alguém a tentar manter um olho num cavalo
com ar de poder dar um coice a qualquer momento.
– Não sabia que necessitavam da minha presença na Consagração.
– É claro que precisamos. – Algo na voz de Anton soava… não
estridente, mas algo assim, como se a ideia de Gabriel e Lore não marcarem
presença na Consagração fosse inconcebível. – Vocês os dois têm de se
tornar próximos do Bastian, por isso é evidente que têm de estar presentes.
– O Príncipe Sol não vai estranhar que de repente uma prima qualquer de
um duque não o largue? – quis saber Lore, instalada no sofá. – Se me
querem pela minha experiência como espia, assim como pela minha infeliz
relação com a Mortem, deixem-me dar-vos um conselho: ficar colado a
alguém como uma nódoa numa perna de umas calças nem sempre é a
melhor forma de descobrir a informação que se deseja. Por vezes, é melhor
recorrer a algo mais subtil.
Anton aproximou-se do sofá e lançou-lhe um olhar fulminante. Lore
queria sentar-se, mas isso daria a impressão de uma capitulação, pelo que
permaneceu estendida sobre as almofadas, mostrando-lhe um sorriso fútil.
– Vais obedecer às ordens que te foram dadas. – A voz de Anton soou
calma e branda. – À risca.
Lore não reagiu. Remexeu-se nas almofadas decorativas deformadas.
O Supremo Sacerdote afastou-se do sofá e virou-se para Gabriel.
– Há roupa adequada para a rapariga num dos quartos. Para ti também.
Vão mudar-se e nós acompanhamos-vos até à Consagração. Que Deus
Sangrante nos ajude a todos.
Capítulo 7

No seu vigésimo quarto ano de vida mortal, os deuses


ascenderam: Apollius à governação da vida e do dia, Nyxara
à governação da morte e da noite, Hestraon à governação do
fogo, Lereal à governação do ar, Braxtos à governação da
terra e Caeliar à governação do mar.
– O Livro da Lei Sagrada, Opúsculo 7

L ore não sabia bem o que deveria vestir para uma Consagração, pois
nunca fora convidada para uma. Ocorriam ao vigésimo quarto
aniversário, mas somente a nobreza dava importância ao festejo – todos os
outros limitavam-se a serem abençoados no Santuário Sul por um sacerdote
que estivesse disponível, e isso se se dessem sequer ao trabalho de
comemorar a data.
O aglomerado de roupa que lhe fora facultado seria avassalador mesmo
que não estivesse a tentar vestir-se para uma festa santa. Nenhum dos
vestidos era tão ridículo como as coisas que vira nos armários das doações,
felizmente, mas eram bem mais requintados do que algo que alguma vez
tivesse usado. Acabou por optar por um que parecia ser mais fácil de vestir
sozinha. Se pedisse ajuda a algum dos Presque Mort, provavelmente
cairiam para o lado.
O vestido cinza-esverdeado assentava-lhe tão bem que não podia ser
coincidência. Lore observou-se com atenção ao espelho de corpo inteiro
pendurado na parede junto à porta do armário. Gola alta, mangas curtas
plissadas e uma saia até ao chão que roçava no cimo dos sapatos a combinar
que encontrara alinhados sob a cama de dossel. Ou a costureira que o
confecionara tinha um manequim exatamente com o tamanho dela –
improvável, dado que era bastante mais curvilínea do que a maioria dos
manequins que alguma vez vira – ou fora feito à medida dela.
Sentiu um arrepio na nuca. Os Presque Mort já sabiam dela desde que
reanimara Cedric anos antes – Val contara-lhe isso. Ainda assim, custava-
lhe interiorizar ter sido observada.
Também lhe custava interiorizar o que Val fizera. Engoliu em seco, com
força, contendo o aperto que lhe tomava a garganta, o calor líquido a
acumular-se nos cantos dos olhos. Não havia tempo para isso. Seguir em
frente e esquecer era um talento que dominava. Val e Mari já não faziam
parte da sua vida. Esta passava agora por vestidos de seda e sapatinhos a
combinar e uma trela dourada nas mãos do Rei Santo e do Supremo
Sacerdote.
Inclinou a cabeça para cima e pestanejou até aquela impressão nos olhos
desaparecer. Tudo o que sempre fizera na vida fora adaptar-se; aquilo era
apenas algo mais a que teria de se adaptar. Sobreviveria. Como sempre.
Lore entrançou rapidamente o cabelo numa coroa em volta da testa, o
penteado mais elegante que sabia fazer, e abriu a porta com um floreado
sarcástico.
– Contemplai, uma dama.
– Pelo menos, está lá perto – comentou secamente Anton.
Atrás dele, Malcolm deu um toquezinho no lado da cabeça.
– Tem um problema na trança, minha senhora.
– Merda. – Lore virou-se para um espelho manchado pela passagem do
tempo pendurado na parede atrás do sofá. Uma madeixa de cabelo tinha-se
soltado da trança rápida, fazendo parecer que tinha um corno. Com uma
careta, soltou o cabelo e voltou a entrançá-lo.
Abriu-se a porta do outro quarto e saiu de lá Gabriel, com um ar que
decididamente não era o de um monge. Calças azul-escuras enfiadas em
botas pretas reluzentes e um tronco esbelto revestido por uma camisa de
linho branco justa com um colete azul-escuro a combinar. A roupa era
quase suficientemente agradável para se esquecer a carranca mal-humorada,
realçada pelo couro áspero da pala.
Malcolm fez um ruído que poderia ter sido uma gargalhada, mas travou-
o quando Anton lhe lançou um olhar fulminante.
– Arranjaste-te bem, Gabe – optou antes por dizer.
Gabriel remexeu-se inquieto, com o couro novo das botas a chiar.
– Pai, tem a certeza…
– Tenho a certeza. Mais importante, também Apollius tem. – Anton
semicerrou os olhos. – Não insistas em questioná-Lo, Gabriel.
O Presque Mort assentiu com a cabeça. A sua expressão denotava
distanciamento, como se tentasse fingir que estava noutro lugar.
Aquela corda no peito de Lore retesou-se, aquela que parecia ligada a
Gabriel. Ela pressionou uma mão sobre as clavículas, massajando. Era
difícil ver a dor do Mort.
Malcolm também não queria assistir.
– Vou voltar para a biblioteca. – Deu uma palmada no ombro de Gabriel.
– Vai correr bem – disse, num tom baixo, e depois escapuliu-se pela porta,
em passadas lestas no corredor alcatifado. Aparentemente, o outro Presque
Mort não era grande adepto de passar tempo na Cidadela. Lore questionou-
se se todos seriam assim, com a separação entre corte e Igreja bem traçada e
evidente.
Acenando com a cabeça aos dois, Anton virou-se para abandonar os
espaçosos aposentos. Lore seguiu-o e Gabriel fechou a fila.
– Preferia caminhar sobre brasas a marcar presença nisto – ouviu-o ela a
murmurar, nitidamente falando para ninguém ouvir.
– Já somos dois – murmurou Lore em resposta.
O Mort não reagiu, mas a sua boca suavizou-se, apenas um pouco.

A Consagração do Príncipe Sol teria lugar num dos campos ondulados


da Cidadela. Havia um estrado dourado no relvado, coberto com uma
esvoaçante escumilha branca que ondulava como o mar ao sabor da brisa.
No centro do estrado, um atril cravejado de granadas. Uma faca com
punho em ouro encontrava-se pousada sobre a sua superfície.
A faca fez Lore arregalar os olhos. Tanto quanto sabia, as consagrações
não envolviam derramamento de sangue, mas talvez a realeza fizesse as
coisas de maneira diferente.
O estrado estava totalmente cercado por bancos corridos de madeira
envernizada. Anton encaminhou-os até um dos bancos de trás, indicando-
lhes com a cabeça que se sentassem antes de avançar em passos leves até ao
estrado. Daquele ângulo, Lore via o interior oco do atril e o grande livro lá
pousado. Tratava-se do Compêndio, que incluía o Livro da Lei Sagrada, O
Livro da Lei da Morte e o Livro das Orações.
Lore esticou o pescoço para olhar em volta do estrado. Outros cortesãos
iam entrando lentamente, todos vestidos com elegância, alguns a segurar
leques de penas ou pastéis meio comidos. Mais parecia que iam a um
piquenique do que a uma cerimónia sagrada. Uns quantos lançaram-lhes
olhares curiosos, mas, em geral, tanto ela como Gabriel foram ignorados.
Lá se ia a fanfarronice de August sobre novos rostos. Mas talvez os
cortesãos da Cidadela não quisessem saber de uma pessoa até esta provar a
sua importância.
Felizmente, o banco dos fundos onde se tinham sentado não era popular.
O resto da Corte da Cidadela foi preenchendo lentamente os bancos
corridos diante do estrado, enquanto os sons suaves das vozes ia subindo e
descendo como o canto das aves. Lore vacilava entre olhar fixamente para
eles ou fitar o chão. O seu tipo de trabalho não lhe permitia ser tomada pela
ansiedade, mas ver tantos nobres num único lugar provocava-lhe um nó no
estômago. Toda a espionagem que fizera por Val fora de menor escala; os
grupos de traficantes de veneno não eram grandes, pelo que só tinha de
mentir a umas dez pessoas de cada vez. Mas toda uma maldita corte…
Um calor sobre as suas mãos imobilizou-as, impediu-a de torcer
alheadamente o tecido da saia. A palma da mão calejada de Gabriel tinha
pousado sobre os dedos dela. A pala do olho dele encontrava-se do seu
lado, pelo que ele não a fitava, mas ainda assim retirou a mão quando a
cabeça de Lore girou na direção dele.
– Vais rasgá-la – comentou ele. – E isso vai atrair mais atenções do que
se ficares apenas aí quieta.
Com esforço, Lore esticou os dedos e colocou as mãos transpiradas
sobre os joelhos.
Deixou-se assim ficar mesmo depois de terem chegado os últimos
cortesãos, preenchendo os espaços nos bancos em redor deles, pois os
melhores lugares já tinham sido ocupados. Sobre o estrado, Anton pegara
no Compêndio pousado sob o atril e folheava rapidamente as páginas,
aplicando fitas escarlate na lombada para assinalar passagens marcantes.
Outro clérigo, que envergava uma túnica branca em vez das vestes negras
dos Presque Mort – devia ser um simples acólito da Igreja – acendeu os
queimadores de incenso nos cantos do dossel. Fumo de ervas rodopiou até
ao céu, manchando-o de cinzento.
Junto dela, Gabriel resfolegou discretamente.
– Se todas as consagrações fossem assim, os sacerdotes não fariam outra
coisa na vida. Na minha, limitaram-se a recitar o Opúsculo Sete e a
polvilhar-me um pouco de cinza no cabelo.
Lore desconfiava de que o único motivo para o Mort lhe dirigir a palavra
seria a escassez de alternativas, mas apreciou a distração.
– Então, nada disto é normal? – Isso talvez explicasse a faca.
Ele moveu-se para a poder fitar com o seu olho são, com a sobrancelha
arqueada.
– Ainda não tiveste a tua?
Ela abanou a cabeça.
– Faço vinte e quatro anos a meio do verão.
– Hum. – Olhou de novo em frente, escondendo o olho, e a conversa
ficou por aí. O homem não era grande falador.
Inspirar, expirar. Olhar em frente. Tentar não reparar se alguém olhava
para si.
Mas a compostura cuidadosa de Lore foi estilhaçada pela sensação
avassaladora de que deveria virar-se, de imediato.
Foi quanto bastou para a fazer pressionar as clavículas com a mão. A
sensação não era física, mas a reação que inspirava sim – os pelos nos
braços a erguerem-se, a cabeça estranhamente leve.
Assim, virou-se.
Atrás dos bancos, a poucos metros, encontrava-se um jovem de cabelo
preto pelos ombros, afastado do rosto por um diadema dourado. As suas
roupas eram de um branco de ferir a vista, até ao couro das botas. Estava
demasiado longe para se poder ver com clareza, mas a sua figura parecia-
lhe familiar. Tal como sentira ao ver Gabriel, como se se tratasse de alguém
que deveria conhecer, embora por certo fosse alguém com quem nunca se
cruzara.
Um quarteto de cordas reunira-se ao lado dos bancos, todos os músicos
vestidos com cores berrantes, os instrumentos a reluzir como se polidos
para a ocasião. O maestro levantou-se e ergueu a batuta; iniciou-se um lento
e pomposo cântico processional. Atrás deles, a figura distante de branco
começou a avançar para o estrado como se tivesse todo o tempo do mundo.
Oh. Aquele era o Príncipe Sol.
Ao lado dela, Gabriel levantou-se e Lore apressou-se a imitá-lo. A batida
do coração dela acelerou, as veias praticamente a transbordar.
O Príncipe Sol aproximou-se. Gabriel retesou-se.
Quando ficou ao nível do banco deles, a cintilar como se ele próprio
fosse um deus, Bastian Arceneaux lançou-lhes um olhar de relance. Pele
branca dourada sob a luz do sol, maxilar vincado, olhos escuros. Ao piscar
um olho, despertou-lhe a recordação.
Tratava-se do homem que ela vira nos jardins. O homem que a vira
entrar na Cidadela ladeada por Gabriel, Anton e Malcolm, num vestido que
não lhe assentava bem que uma das suas amantes provavelmente doara.
Merda.
Bastian subiu ao estrado, caminhando com elegância através das cortinas
esvoaçantes e dos rastos sinuosos de fumo de incenso. Aplausos e brados
saudaram a sua entrada e ele fez uma vénia exagerada. Junto ao púlpito,
Anton encontrava-se rigidamente quieto, com o Compêndio aberto na
primeira das fitas escarlate. August sentara-se diretamente diante do
estrado, num trono dourado apenas ligeiramente menos ostentoso do que o
que tinha dentro da Cidadela. A sua mão com anéis de rubi agarrava outro
cálice e ele bebericou discretamente enquanto observava o filho, estoico e
praticamente imóvel.
– Não me parece de bom tom estar a beber na Consagração do herdeiro –
murmurou Lore.
– August está sempre a beber – replicou Gabriel.
A multidão aquietou e Anton começou a falar, começando por recitar o
Opúsculo Sete – uma lista dos deuses que tinham ascendido das formas
mortais às sagradas no vigésimo quarto aniversário: Caeliar, Braxtos,
Hestraon, Apollius, Nyxara, Lereal. Depois disso, uma entrada do Livro das
Orações, sobre aceder-se ao poder quando chega o momento e saber quando
cedê-lo. Bastian passou toda a recitação a passar o peso de um pé para o
outro, visivelmente entediado. A dada altura, lançou um sorriso malicioso a
alguém à esquerda do estrado e Lore perguntou-se se seria a mulher que ele
tinha estado a beijar no jardim.
A cerimónia parecia ter chegado naturalmente ao fim, com os cortesãos
reunidos cada vez mais inquietos nos assentos ao anteciparem a dispensa.
Mas Anton incidiu a atenção noutra fita escarlate no Compêndio, uma que
estava mais perto do final. O Livro da Lei Sagrada, agora.
Anton pegou na faca, cuja lâmina dourada cintilou ao sol. Lore estava
demasiado longe para ver a expressão de Bastian, mas o Príncipe Sol deu
um pequeno passo atrás.
Ela olhou para Gabriel. O Presque Mort franziu a boca.
– O Livro da Lei Sagrada, Opúsculo Catorze – entoou Anton. – Poderes
que se opõem uns aos outros acabam por se espicaçar mutuamente. A
presença das trevas incrementa a luz e a luz abafa as trevas. Mas, meus
filhos, tende cautela, pois nada pode ser completamente domado a não ser
pelo vosso deus. Não há vida sem morte e deter as duas é santidade.
Os lábios de Lore contorceram-se. O Livro da Lei Sagrada era um
enigma: Partes haviam sido escritas antes da Queda dos Deuses, mas a
maioria só fora registada no ano da própria Queda dos Deuses, no ano entre
a morte de Nyxara e o desaparecimento de Apollius. Esses Tratados
contradiziam os anteriores, declarando que Apollius era o único genuíno
deus. Pouco antes de Ele desaparecer, Apollius ditou o Livro da Lei
Sagrada a um homem chamado Gerard Arcenaux, que indicou então como
Rei Santo.
Desde então que a família Arceneaux governava, escolhida pelo próprio
Apollius.
A multidão manteve-se em silêncio. Cortesãos entreolharam-se, alguns a
tentar disfarçar sorrisos perplexos, outros mostrando-se apenas confusos.
– Isto não costuma fazer parte? – sussurrou Lore a Gabriel.
Ele abanou a cabeça, continuando de cenho franzido.
– Bastian Leander Arceneaux – declarou Anton, erguendo a faca
dourada. – Sois o descendente de uma casa sagrada. Sois o recipiente de um
poder sagrado. E hoje acedeis à vossa Consagração com um coração que
estará a postos para nos levar para uma nova era.
Os sorrisos de perplexidade esmoreceram e todos os cortesãos, incluindo
Bastian, exibiam um ar perplexo. Ele não falou – não o fizera ao longo de
toda a Consagração –, mas também não se acercou do tio.
Anton gesticulou.
– Aproximai-vos, sobrinho. – Lore nunca o ouvira falar num tom tão
gentil. – Hoje, tornais-vos o que é suposto serdes.
Na sua cadeira dourada, August debruçou-se para a frente, agarrando-se
ao cálice como se fosse uma boia de salvação.
O Príncipe Sol hesitou por momentos. A seguir, largou uma gargalhada
forçada, visivelmente a tentar quebrar a estranha tensão.
– Muito bem, tio – disse ele numa bela voz de barítono que ecoou sobre
os bancos. – Deste início a uma tendência. Estou certo de que daqui em
diante todas as Consagrações terão um momento de improviso.
Os nobres reunidos riram com alegria, o som de certa forma tenso, como
se o príncipe lhes tivesse dado autorização para não se sentirem
embaraçados com a invulgar cerimónia. Junto ao atril, Anton permanecia
inexpressivo, de faca estendida.
August nada fez, ainda a olhar para o filho.
Bastian aproximou-se do Supremo Sacerdote e estendeu a mão. Anton
agarrou-a e perfurou-lhe a pele com a ponta da faca. Aconteceu muito
depressa, demasiado depressa para alguém poder fazer algo que não fosse
arquejar educadamente.
Bastian fez uma careta, um espasmo percorreu-lhe os ombros, mas ele
não se afastou.
Quando terminou, Anton virou-se para a multidão, de costas para Lore e
Gabriel e outros desafortunados que se tinham sentado atrás do estrado,
erguendo a mão de Bastian. Mesmo onde se encontrava, Lore via o sangue
na palma da mão do Príncipe Sol, embora não desse para perceber o que
Anton lá entalhara.
Por momentos, o céu iluminou-se. Como se, por uma fração de segundo,
o sol tivesse decidido arder com mais intensidade. Ouviram-se murmúrios
de apreciação; talvez fosse apenas um pouco de encenação, algo para dar
mais dramatismo à Consagração do Príncipe Sol.
Mas, em frente ao estrado, August parecia abalado.
– Contemplai, Bastian Leander Arceneaux, herdeiro da Casa de
Arceneaux e futuro Rei Santo de Auverraine, que hoje foi consagrado
diante do nosso Deus Sangrante! – A voz de Anton quase parecia exultante.
Na sua mão, a faca dourada ainda gotejava escarlate.
– Ave! – saudou a multidão e a palavra dissolveu-se entre o estrondoso
aplauso. Bastian riu-se, fazendo mais uma vénia pronunciada, e depois
limpou intencionalmente a mão ensanguentada ao seu gibão branco.
– Anda – resmoneou Gabriel ao lado dela. – Vamos sair daqui.
Os cortesãos lançaram-se ao estrado, rindo e tentando aproximar-se o
mais possível de Bastian; ele permitiu. Alguém lhe passou um copo de
vinho e ele sorveu um longo e farto trago ao som de mais aplausos.
August dissera que desconfiava que Bastian traía os segredos de
Auverraine por não desejar o peso da governação. Mas parecia a Lore que
ele não tinha qualquer problema em ser o centro das atenções.
Colou-se a Gabriel enquanto ele abria caminho até às portas da Cidadela,
confiando que Bastian atrairia as atenções dos cortesãos. As outras únicas
pessoas que se afastavam do estrado eram Anton, os restantes clérigos e
August.
Pelo caminho, flanqueado por casacas de sangue, o Rei Santo continuava
a segurar o seu cálice com força. Levou-o à boca para mais um gole, com
um leve tremor na mão. Vinho escuro verteu do copo quando Lore e
Gabriel passaram por ele, caindo no chão e falhando por pouco a bainha de
Lore.
Esta espreitou por cima do ombro antes de seguir Gabriel para o interior.
Bastian permanecia no estrado, rodeado por gente bela com vestes coloridas
que se inclinava para ele para sussurrar ao ouvido de um jovem que parecia
entusiasmado por ser o centro das atenções. Contudo, ele seguia-a com o
olhar. Lore não sabia ao certo como poderia perceber isso, a tal distância,
mas teve a certeza, com um revirar do estômago e sem sombra de dúvida,
de que o Príncipe Sol olhava diretamente para si.
Capítulo 8

A Feiticeira da Noite disse que vigiaria o túmulo


Mas em vez disso ficou demente
Tentou deixar escapar a deusa
Mas a deusa meteu-se na sua mente
– Rima infantil auverrani

–A chaOsqueaposentos
deixaram ficar aqui algum vinho?
deles pareciam cavernosos apenas com eles os dois
lá. Lore descalçou-se junto à porta – apertavam-lhe horrivelmente os pés, o
que significava que, apesar de os Presque Mort terem passado tantos anos a
vigiá-la, nem assim tinham conseguido acertar no número que calçava – e
sentou-se pesadamente no sofá.
– Bem que preciso, depois de tudo aquilo.
– Se deixaram, há de estar no aparador. – Gabriel acenou na direção de
uma mesinha ao lado da lareira vazia. Apoiou-se na parede junto à porta,
erguendo uma mão para ajustar a pala de couro sobre o olho. – Espero que o
August diga a alguém para nos trazer comida.
– Não pode esperar que eu espie de barriga vazia. – Lore vasculhou o
balcão lateral até dar com dois cálices de vinho empoeirados e uma pequena
garrafa de tinto. – Aquilo foi estranho, não? Quero dizer, não é que tenha
assistido a muitas consagrações… a nenhuma, na verdade… mas pareceu-
me estranho.
– E foi – reconheceu Gabriel. – O Malcolm disse-me que o Anton
andava a planear mais leituras de Opúsculos do que numa cerimónia típica,
mas eu não contava…
– Com derramamento de sangue?
Ele remexeu a boca, algures entre um sorriso malicioso e um esgar.
– Precisamente. – Coçou o queixo. Já se viam pelos arruivados a crescer-
lhe ali, indicativo de que o dia ia longo. – Mas algum propósito há de ter
tido, estou certo. O Anton nada faz por acaso. E uma Consagração de um
Arceneaux é uma ocasião especial; não deveria ter esperado que fosse igual
a outras a que assisti.
Parecia que se tornara muito bom a racionalizar o que quer que fosse que
Anton fizesse. O homem provavelmente poderia despir-se e dançar a valsa à
volta do santuário Sul e Gabriel acharia que isso continha algum propósito
espiritual elevado.
Lore arrancou a rolha da garrafa de vinho com os dentes. Tinha um
cheiro avinagrado e ela franziu o nariz quando o serviu.
– É uma merda – avisou, entregando um copo a Gabriel –, mas bate certo
com o dia.
Ela até estava à espera de que ele recusasse – não sabia ao certo qual a
relação dos Presque Mort com o álcool – e por momentos pareceu que o
faria, olhando funestamente para o copo.
– Se não me ajudar a beber isto, deito a garrafa abaixo sozinha – avisou
Lore. – Garanto-lhe que não há de querer ver isso. Canto quando me
embebedo e sou péssima cantora.
Gabriel observou o copo por mais uns momentos antes de lho arrancar
dos dedos.
– Muito bem. – Bebeu uma golada e fez uma careta. – Pelas feridas de
Apollius, isto é horrível.
– Mas é melhor do que pensarmos na situação em que estamos metidos.
– Lore sentou-se no tapete com o seu copo, cruzando as pernas sob a saia
emprestada. – Ainda não sei como hei de aproximar-me do Bastian. Ou
porque tivemos de ir à sua Consagração… extremamente… excêntrica.
– Não será complicado – comentou Gabriel sombriamente, bebericando
mais um pouco de vinho. Evitou por completo o assunto da Consagração. –
Tal como disse August, o Bastian aprecia gente bonita. Deixa que ele vá até
ti.
– Isso poderia ser um elogio, se não dissesse bonita com o mesmo tom
com que a maioria das pessoas diz pus. – Lore deitou abaixo o resto do
vinho avinagrado e serviu-se de mais. – Mas, desde ontem, nunca me tinha
dito tantas palavras, por isso calculo que deva sentir-me grata.
Gabriel nada disse, olhando para as profundezas carmesins do seu copo.
– Estar aqui é… complicado – disse por fim.
Permaneceram ali quietos em silêncio por uns momentos.
– Lamento – murmurou Lore.
Ele olhou para ela, com as sobrancelhas franzidas.
– Lamentas o quê?
– Que tenha de estar aqui. Comigo.
Ele fungou.
– Não és a pior companhia da Cidadela.
– Tem mesmo de melhorar os seus elogios.
Gabriel ergueu o vinho na direção dela, numa imitação de um brinde. Ela
ergueu de igual modo o seu copo, e ambos beberam.
Era estranhamente fácil, estar na companhia do Mort. Ele não era de
muitas falas, mas o silêncio dele era apaziguador, como estar na companhia
de um velho amigo, alguém que conhecesse há imenso tempo.
Lore fez uma careta ao vinho. Conhecia Gabriel nem há dois dias; o
relacionamento deles começara com uma briga numa viela. E não havia
dúvida de que ele era profundamente leal a Anton, ao passo que Lore não
confiava propriamente no Supremo Sacerdote nem no irmão deste. Sentir-se
confortável com o Mort de um só olho não era seguramente boa ideia – e,
além disso, ela era mais esperta do que isso. O que teria ele para a fazer
querer esquecer anos de experiência, os quais lhe tinham ensinado que a
confiança não era algo que devesse ser desbaratado?
Devia ser dos nervos, provavelmente. Nervos e desespero, levando-a a
agarrar-se ao que quer que parecesse sólido. Quando andava à deriva, Lore
não era do tipo de deixar-se levar pela corrente. Era do tipo de tentar a todo
o custo agarrar-se a uma âncora, por muito desaconselhável que fosse.
Acenou com uma mão para o seu próprio rosto, ansiosa por algo
diferente em que pensar. O vinho levou-a a assentar num assunto tudo
menos delicado.
– Então, só tem um olho.
– Observação astuta.
– Doeu muito?
Os dedos dele voltam a tocar ao de leve na pala.
– Doeu – respondeu, ao fim de um momento de silêncio. A seguir, num
tom grave e veemente. – Doeu como o raio.
– Bebe e pragueja. – Lore arqueou a sobrancelha. – Aparentemente, os
Presque Mort só são picuinhas em relação ao celibato.
– Oh, nada disso, são mesmo picuinhas. Mas catorze anos de vida santa
ainda não me livrou de toda a mundanidade. É um defeito pessoal. – Sorveu
o resto do vinho e avançou em passada larga até à lareira. Havia lenha
cortada empilhada num suporte dourado ao lado e atirou uns pedaços para
os tijolos, para depois procurar um fósforo. – Pelos vistos, a santidade leva
o seu tempo a impor-se.
– Se é que alguma vez se impõe. – Lore observou por mais uns
momentos a busca infrutífera de Gabriel por um fósforo, e depois pousou o
seu copo já vazio e rumou à porta que dava para o vestíbulo. – Espere, há
uma maneira mais fácil.
No vestíbulo, Lore retirou uma das velas acesas do candelabro do
Coração do Deus Sangrante.
– Ponha isto na lareira, e depois vá-lhe dando lenha para arder – instruiu
ao regressar à divisão, entregando a vela antes de se sentar no sofá. – Não
está habituado a acender lareiras?
– Não propriamente. – Gabriel retirou a lenha que já lá dispusera e a
seguir escolheu uns pedaços mais pequenos, segurando um sobre a chama
da vela. – Mas a que não estou habituado é a a roubar velas de
representações do Coração do Deus Sangrante. Consta que é pecado.
– Cinco minutos e já destruí todas as suas sensibilidades divinas. E, de
qualquer modo, a maioria das velas já se extinguiu, pelo que nitidamente
não há gente pia neste torreão.
– Para que saibas como é a Corte da Cidadela. Se a piedade não pode ser
vista, não interessa. – Gabriel apoiou o peso nos calcanhares, observando as
chamas a lamber os gravetos e a colar-se aos troncos. – Então, qual é a tua
história, se é para alinhar nesse jogo? Calculo que não seja nada tão
dramático como ter um olho arrancado pelo herdeiro do Império
Kirytheano. Foi uma experiência de quase-morte mais mundana? Um
acidente que te deixou com poderes e a tua família com medo?
E, que Deus Sangrante a ajudasse, por momentos Lore ponderou contar a
verdade. A sua boca abriu-se para despejar tudo – bem, está a ver, nasci nas
catacumbas e tenho conseguido canalizar Mortem desde que me lembro – e
conteve as palavras mesmo a tempo.
Caramba. Aquela sensação de familiaridade que a atormentava no que
dizia respeito àquele homem era mais do que irritante. Era perigosa.
Recuperou com um gole de vinho.
– Caí de uma ponte, afoguei-me por um minuto. Voltei. A família não
estava para aí virada, por isso puseram-me fora de casa quando eu tinha
treze anos.
Pormenores vagos. Mentiras fáceis.
– Que rica família – murmurou Gabriel para as chamas. Levantou-se
para se ir sentar no sofá. – Mas a verdade é que nesse aspeto não tenho
grandes bases para julgar.
– E consigo? – perguntou Lore, ansiosa por desviar de si o rumo da
conversa. – Como é que foi parar aos Presque Mort, depois…
– Depois de o meu pai ter traído August a favor do Império Kirytheano
entregando-lhes uma fortaleza logo em frente à fronteira de Auverraine? –
A voz de Gabriel soou fraca e monocórdica. – O Anton encontrou-me.
Disse-me que era meu destino juntar-me aos Presque Mort, para fazer algo
sagrado a partir de algo terrível.
Ele tinha dez anos. Ela recordava-se de ele o ter dito na sala do trono.
Dez anos, órfão e horrivelmente ferido e Anton transformara isso em
lealdade. Cada vez odiava mais aquele homem.
Não lhe perguntou como sucedeu, mas Gabriel prosseguiu como se ela o
tivesse feito. Por vezes, basta um sinal de que alguém nos ouve.
– O meu pai jurou lealdade a Kirythea quando se aproximaram da
fronteira com a Balgia. August tinha negado ajuda militar; todas as suas
tropas extra guardavam as Ilhas Queimadas. – Uma pausa. – Mas mesmo
assim mataram o meu pai. Os kirytheanos. Jax disse que um homem que
trai um país facilmente trairia outro, e depois decapitou-o. – Fez um som
pesaroso. – Jax tinha dezasseis anos. Ainda uma criança e já cruel.
– Estava lá? – murmurou Lore. E depois abanou a cabeça. – Quer dizer,
claro que estava, dado que depois ele…
Não concluiu e engoliu em seco para travar a secura na garganta. Gabriel
Remaut vira o seu pai a ser decapitado e depois a pessoa que o fizera
arrancara-lhe um olho.
Gabriel assentiu com a cabeça. Na luz ténue, ela quase conseguia ver os
vestígios daquele rapaz assustado naquele homem com cicatrizes.
– Para ser sincero, não sei ao certo por que razão Jax me deixou viver.
Ele ainda não era imperador e matar-nos a todos por certo serviria para
marcar a sua posição face a traidores. Mas enviou-me de volta a
Auverraine… em mau estado, é certo, mas vivo. – Um encolher de ombros.
– O Anton deu comigo pouco depois. Fui recrutado como Presque Mort, e
depois fiquei no mosteiro da Ponta Norte… era capaz de sentir demasiada
Mortem para que pudesse permanecer em Dellaire. O Anton viajava para a
frente e para trás tanto quanto podia, para me ajudar a bloqueá-la da minha
mente. O plano sempre passou por eu vir para cá, quando estivesse pronto.
– Fez um ruído pesaroso. – Foi preciso esperar até depois da minha
Consagração.
Ela recordou-o na divisão sob a Igreja, a dizer-lhe para formar uma
barreira em volta da mente. Está na tua cabeça. Soara como algo que ele
repetira vezes sem conta a si mesmo, uma lição entranhada havia muito.
Lore inclinou-se para a frente, com os dedos entrelaçados.
– Então, Jax poupou-o depois de matar o seu pai – comentou ela. – E,
sabendo que esta corte está cheia de imbecis, calculo que isso só os tenha
deixado ainda mais desconfiados de si.
Gabriel manteve-se em silêncio o tempo necessário para Lore começar a
pensar se teria decidido que dissecar-lhe a sua história afinal era algo que
não desejava.
– Às vezes – murmurou ele por fim –, gostava apenas que ele tivesse
terminado o que começou.
Um restolhar no exterior, no vestíbulo. Algo deslizou no chão pela
ranhura debaixo da porta… um envelope branco-creme.
Lore levantou-se, com as pernas ligeiramente bambas devido ao vinho, e
pegou-lhe. Remaut, via-se escrito na frente em letra dourada rebuscada.
Abriu o envelope, leu a carta que estava no interior e depois mostrou-a a
Gabriel.
– É um convite.
Ele levantou-se a avançou até se pôr em frente a ela, de sobrolho
franzido.
– Para quê?
– Um baile de máscaras. Organizado pelo Bastian, na sala do trono, ao
pôr do sol.
Entreolharam-se com expressões reservadas similares.
– Bem – disse Lore por fim. – É suposto que eu me aproxime dele.
Gabriel resmoneou e depois pegou no convite, lendo-o só para si.
– August ainda não te apresentou à corte. Como é que ele sabe que aqui
estás?
– Pode ter-me visto a chegar à Cidadela – disse Lore, contando
rapidamente a Gabriel que vira Bastian no jardim. Passou por cima do que
ele fazia lá, em respeito pelas sensibilidades de monge dele, mas o modo
como ele revirou os olhos indicou que já sabia.
– Maravilhoso – murmurou. – Então, o teu disfarce pode ter ido à vida
antes de sequer teres começado.
– Não necessariamente. – O fantasma de uma cela onde esperar entre
cada reanimação de cadáveres de aldeãos ainda pairava de forma bem
vincada na mente dela, uma realidade que se tornaria a sua caso não
conseguisse espiar Bastian. – Sou boa a mentir. Se ele me perguntar o que
fazíamos esta manhã, direi que passei a noite na vila e que você teve de me
escoltar no regresso.
– Ainda assim, não me agrada que saiba da tua presença aqui. Significa
que está mais atento do que o August acha. Eu sabia que era má ideia irmos
à Consagração.
Lore nunca o sentira tão perto de discordar de Anton e calculou que
nunca o tivesse feito antes.
Gabriel olhou de novo para o convite e depois largou-o no sofá.
– E o que é suposto usarmos num baile de máscaras?
Uma leve batida na porta.
– Vossa Senhoria? Tenho uma entrega a fazer. Da parte de Sua
Majestade.
– Céus, espero que seja o jantar – disse Lore, abrindo a porta.
Não era. Em vez disso, um carrinho com dois sacos de roupa,
rapidamente levados para dentro por uma criada pequena que fitou Lore
com olhos arregalados e curiosos. Fez uma pequena vénia e saiu antes que
tivessem sequer tempo de lhe perguntar o que quer que fosse.
Lore abriu um dos sacos e espreitou para o interior.
– Parece que a roupa não será problema.
Gabriel gemeu.
Capítulo 9

Não há transformação que magoe mais do que a de um


amigo em inimigo.
– Provérbio auverrani

–D etesto profundamente este vestido.


Gabriel lançou-lhe um olhar de esguelha. As suas novas roupas
consistiam num gibão verde-vivo bordado com videiras douradas e bragas a
combinar, tendo por cima uma camisa branca esvoaçante cujas mangas
provavelmente dariam para esconder um peru assado inteiro. As roupas
refinadas levaram a que o couro arranhado da sua pala se destacasse, cruel e
deslocado.
– Estás com bom aspeto – tentou ele, embora a forma como o seu olhar
se desviou imediatamente acabasse por desmentir a afirmação.
– Pareço um pudim de ameixa. – A saia comprida ficou presa debaixo de
um dos seus tacões; Lore praguejou e afastou-a com o pé. – Um pudim de
ameixa que aparentemente não deve mexer-se. – O corpete deslizou para
baixo e Lore puxou-o para cima. – Um pudim de ameixa destinado a não se
mexer e possivelmente ser comido.
– Comparado com algumas das coisas que os cortesãos usam, isto é
recatado.
Lore coçou-se sob a máscara de dominó que viera com o conjunto, um
pedaço de seda violeta salpicado com roxo mais escuro.
– Então, para si esta festa deve ser bastante educativa.
Gabriel resfolegou. O seu fato não viera com máscara, como se quem
quer que tivesse enviado as roupas quisesse o seu rosto à vista. Só lhes
restava calcular que seria obra do Príncipe Sol. Não só Bastian sabia da
presença de Gabriel, como queria que ele fosse visto. Visto e reconhecido
pela corte que o considerava traidor, o herdeiro dos pecados do pai.
A saia do vestido de Lore voltou a prender-se debaixo do seu pé.
– Deus Sangrante e as suas malditas feridas.
– Sim, isso mesmo, despeja tudo cá para fora. – Gabriel revirou os olhos.
– Os primos do duque por norma têm tento na língua. É preciso não sair do
papel.
– Então, não vou esquecer-me de começar a grasnar como um pavão. –
As estreitas escadas em caracol por onde os casacas de sangue os fizeram
subir seriam impraticáveis para aqueles sapatos violeta de tacão, pelo que
seguiram pelo caminho mais longo, percorrendo cada vestíbulo até aos
degraus amplos nas suas extremidades, dando a volta para descerem o
torreão. – É isso que devo ser, certo? Um pavão? E não mesmo um pudim
de ameixa?
– É suposto sermos algo?
– Mort, é um baile de máscaras, o que importa é de que estamos
mascarados.
Não obstante, ela não entendia o que seriam os fatos deles. O tule da sua
saia era composto por camadas em tons de roxo, cor de vinho escuro na
base e um violeta quase branco no cimo. Fios verdes bordados delineavam
o corpete violeta-escuro, terminando em folhas amplas em volta da gola
decotada. Algum tipo de flor? O fato de Gabriel não deixava entrever
quaisquer pistas – roupas normais de corte, destacando-se por serem em
todos os tons de verde.
– Quando chegarmos, se calhar é melhor deixares de me tratar por Mort
– frisou Gabriel. – Não é coisa que se diga em família.
– Então, só Gabriel?
Ele fez uma pausa.
– Gabe.
– Gabe – repetiu ela, sentindo a palavra na língua.
Ele assentiu com solenidade, um vestígio de um sorriso no canto da sua
boca austera. Lore correspondeu-lhe, retomando então a tarefa árdua de
caminhar com aquele vestido ridículo.
Mais cedo, parecera que os aposentos deles ficavam a milhas da
Cidadela, mas, assim que os candelabros se tornaram mais ornamentados e
o chão com barras de ferro mais polido a cada escadaria descida, Lore
achou que iam lá chegar demasiado depressa. O coração batia-lhe a um
ritmo nervoso e o suor humedecia-lhe a pele, tornando insuportável o
vestido de tule já de si irritante.
– Qual é o teu nome completo? – quis saber Gabriel (Gabe) passado um
momento. Tinham dobrado uma esquina, indo parar a um átrio amplo por
onde ela recordava vagamente ter passado antes. Cresciam roseiras profusas
em vasos de barro, ornamentados a dourado, ocultando mesas delicadas de
ferro forjado e estatuetas de ninfas a divertir-se. – Lore é diminutivo de
algo?
– Não. – Encolheu os ombros. – É o único nome que tenho.
– Então, vamos ter de inventar algo. Algo que soe a prima de duque. –
Olhou para baixo para ela, com um ar pensativo. A luz suave do pôr do sol
esmorecente que passava pelas enormes janelas do átrio incidiu sobre o
rosto dele, que tornou a mergulhar nas sombras quando viraram para outro
corredor. – Eldelore.
Ela franziu o nariz.
A sobrancelha sobre a pala do olho dele arqueou-se.
– Tens cerca de dois minutos para desencantar um nome melhor.
– Dois minutos?
Contornaram outra esquina e surgiram à frente as portas da sala do trono.
Gabe lançou-lhe um olhar agastado de esguelha.
– Eu disse cerca de dois minutos.
A entrada para a sala do trono parecia de alguma forma ainda mais
intimidante do que nessa manhã, com a luz do sol poente a lustrar os
Corações do Deus Sangrante na porta em tons de rosa, carmesim e laranja.
Cinco guardas dos casacas de sangue olhavam em frente, espadas
embainhadas de lado, nem uma baioneta à vista. Lore calculou que a arma
não fosse suficientemente elegante para o interior da Cidadela. Tal tipo de
matança era reservado para o lado de fora das muralhas.
No entanto, aqueles guardas não eram os que lá haviam estado antes.
– Novos casacas de sangue? – segredou Lore pelo canto da boca, de
maneira a que apenas Gabe ouvisse.
– Calculo que os que te viram esta manhã não voltem a aparecer –
murmurou Gabriel. – August é meticuloso. Os guardas que te apanharam na
Ala provavelmente também já se foram. Isso mantém o mais restrito
possível o círculo de pessoas que sabe quem realmente és.
– Então, os guardas foram destacados para outros postos?
– Se queres chamar destacados a serem enviados para as Ilhas
Queimadas.
Então, a Cidadela era tão violenta como as ruas de Dellaire, mesmo que
as lâminas fossem polidas e o sangue apanhado mais depressa.
– Nome? – perguntou o casaca de sangue à porta assim que se
aproximaram. Tratava-se claramente de uma formalidade. Os seus olhos
arregalaram-se ao ver Gabe, como alguém a olhar para um fantasma.
– Leif Gabriel Remaut, Duque de Balgia – anunciou Gabriel, com uma
voz forte e firme de quem já o fizera um milhar de vezes. – E a minha
prima, Eldelore Remaut.
Lore cravou-lhe as unhas no braço. Ele contorceu os lábios para conter
um sorriso trocista.
O casaca de sangue assentiu, após o que abriu a porta.
E revelou o tipo de caos sumptuoso que poderia pertencer ao Reino
Iluminado dos deuses mortos ou a qualquer um dos inumeráveis infernos.
Cortesãos opulentamente vestidos rodopiavam ao sabor de música
animada de uma pequena orquestra. Os penteados formavam espirais e
torres, polvilhados em cores impossíveis – verdes profundos e azuis
brilhantes como pedras preciosas e rosas avermelhadas leves. Alguns dos
que dançavam pareciam vestidos de animais, com meias máscaras a cobrir
os olhos e orelhas falsas nas cabeças, feitas em tecidos caros. Uma pessoa
minúscula envergava asas de borboleta cintilantes nas costas, com o mesmo
amarelo brilhante do cabelo. Alguém usava o que aparentavam ser genuínas
penas de cisne presas às costas do seu vestido diáfano e tudo o que a sua
parceira de dança envergava eram penas em volta da cintura e do peito.
Se as sobrancelhas de Lore pudessem subir ainda mais, desapareceriam
para lá da linha do cabelo.
– Você não estava a exagerar quando disse que o meu vestido era
recatado.
– Absolutamente casto. – Gabriel estava com o ar de quem preferiria
estar a caminho de uma cela a ir àquela festa. O seu maxilar formava uma
linha tensa e os músculos sob a mão frouxa de Lore estavam tensos como
um poste de uma vedação.
Um odor familiar fez impressão no nariz de Lore. Beladona.
Virou-se para trás de repente, perscrutando ansiosamente a multidão. Ali,
no canto… um grupo de cortesãos a beber à vez de uma pequena taça em
cerâmica, sem sequer tentar disfarçar. Estavam corados, as pernas instáveis,
os olhos vidrados com uma eufórica pedrada de veneno. Clarões de
cinzento manifestavam-se em pulsos e pescoços, a droga a seguir
silenciosamente pelas veias enquanto Mortem suficiente era empurrada para
abrandar a devastação do tempo. Anos penosos acrescentados a vidas mal-
acostumadas.
– Vão matar-se se beberem demasiado – murmurou ela. – O segredo é a
moderação e nada nesta festa me indica que estas pessoas tenham alguma
noção do que isso é.
– Os médicos da Cidadela são altamente dotados no tratamento de
sobredoses. – O olho azul de Gabriel cintilou ao desviar-se do grupo de
nobres envenenados. – Está sempre a acontecer. Há leis que obrigam um
nobre a resignar em favor do seu herdeiro se viver demasiado tempo.
– Não vi ninguém que se parecesse com uma aparição.
– Os médicos da Cidadela também são bons a tratar isso. Quando tiveres
a oportunidade, observa com atenção os nobres mais velhos. Cosméticos e
enchimentos esforçam-se imenso por esconder veias empedernidas e
emaciação.
Lore retesou os maxilares ao observar os cortesãos vestidos de forma
extravagante passarem o veneno, aos risinhos. Não se apercebera de que
dera um passo na direção do grupo até Gabe lhe pousar a mão no ombro.
Ele abanou a cabeça.
– Esquece, Lore.
E o que podia ela fazer, mesmo que lá fosse? Não faria qualquer
diferença.
Assim, suspirou e descerrou os punhos, virando-se para observar a Corte
da Cidadela em toda a sua devassidão.
Grupos de borguistas bebiam entre danças, reunidos em erupções de
cores garridas, tão ornamentadas como os frescos dourados diante dos quais
se encontravam. Os que não estavam aos beijos ou a beber, cochichavam…
cabeças curvadas tão próximas quanto o permitiam penteados elaborados,
segredando e depois irrompendo em gargalhadas. Olhos pintados
vasculhavam o salão, como que assegurando que a sua alegria era notada e,
com sorte, invejada.
Um homem de máscara verde-mar com escamas douradas olhou
alheadamente para Gabe, e depois desviou o rosto. Ao fim de um breve
momento o seu olhar voltou para trás, com o desinteresse a dar lugar a
espanto boquiaberto. Inclinou-se para ouvir a pessoa ao seu lado, de cabelo
enroscado em algo que se assemelhava a uma colmeia, sussurrando
energicamente.
– E assim os nossos novos rostos são vistos – comentou Lore.
Encontravam-se parados à porta, nenhum deles ansioso por se aventurar no
ambiente cintilante.
– O meu não é novo e parece ser precisamente esse o problema. –
Gabriel suspirou. – Esperava que dez anos e um olho a menos tornassem
mais difícil reconhecer-me.
– É difícil não reparar em si – murmurou Lore, cerrando de pronto os
lábios.
– E ainda dizes que eu devo melhorar os meus elogios. – Gabe agitou os
ombros. – Bem. Vamos lá.
E puxou-a para entrarem na festa.
Bailarinos passaram a rodopiar por eles, os seus fatos montras
envergáveis de riqueza. Corpetes com pedras preciosas incrustadas; nuvens
de tule com fio de ouro varriam o chão. Quem dançava não queria saber das
barras de ferro que cruzavam o chão, os lembretes da responsabilidade
sagrada cobertos de suor e champanhe derramado.
Lore sentiu o coração a bater intensamente e não era só devido aos
nervos. Aquilo recordava-lhe lugares mais violentos junto às docas, embora
parecesse mais perigoso do que esses alguma vez lhe tinham parecido.
Dinheiro e poder tornavam-no mais pesado, mais inebriante.
Tornavam-no excitante e, em parte, odiou-se por isso. A parte que não
parava de pensar naquelas pessoas a beberem beladona fermentada no
canto.
Nos odores dos bailarinos rodopiantes e dos perfumes, havia também o
aroma a comida. O estômago de Lore contorceu-se no seu corpete
demasiado justo.
– Alguma ideia de onde estará o bufete? – perguntou a Gabriel, falando
mais alto para se fazer ouvir sobre a música e risos.
– À direita, penso – respondeu ele, com o olhar a mover-se como o de
uma presa no antro de um predador. Outros cortesãos já tinham reparado, as
miradas desviavam-se na direção deles antes de se afastarem com um
desinteresse ensaiado.
Os movimentos da festa revelaram uma mesa posta diante de uma
representação dourada de uma caçada à raposa, cães uivantes e caçadores
urrantes perseguindo parede fora o animal cravejado de rubis. Duas fontes
no centro da mesa jorravam vinho, tinto e branco, com cálices de cristal
posicionados precariamente em pirâmides cintilantes. Taças de fruta
reluzente encontravam-se ao lado de pastelaria engenhosamente empilhada,
joias num colar caro.
A barriga dela fez barulho. Lore deu um passo em frente, a postos para
abrir caminho até à mesa, mas a multidão a apartar-se revelou o trono na
parte da frente da sala e, pela primeira vez, ela reparou que se encontrava lá
alguém. Uma perna assente sobre o braço do trono, a bota a balançar no ar,
e um cotovelo apoiado no lado oposto, cabeça inclinada sobre um punho
cerrado e cheio de anéis.
Mesmo no caos hedonista da sua festa, Bastian Arceneaux parecia sentir-
se entediado.
Aquela sensação de familiaridade regressou, ao olhar para ele. Quase
como um déjà vu. Como se Bastian encaixasse na perfeição num lugar da
sua cabeça, que ela nem sabia estar vazio.
– Gabriel? – A voz de mulher vinda desde trás deles era leve e musical.
E, pelo modo como o Presque Mort estacou ao lado de Lore, parecia que a
reconhecera. – Gabriel Remaut? – Uma cadência interrogativa, um toque de
nervosismo. – Desculpe, talvez esteja equivocada…
Lore puxou o braço de Gabriel e virou-o para que encarasse a pessoa que
falava.
Uma mulher pequena estava parada no limite da pista de dança, com
uma expressão de ansiedade e o cabelo de um branco mármore numa
nuvem de caracóis leves. Um pó perlado cintilava sobre as maçãs do rosto
acobreadas e pintalgadas por sardas, reluzindo como as asas presas ao seu
vestido branco de tule, e os seus olhos combinavam com os bordados
delicados verde-escuros sobre o decote simples. Parecia uma fada das
flores, saída de um livro infantil, e o sorriso em que irrompeu era quase tão
cintilante como tudo o resto nela.
Com o braço ainda mais tenso do que antes sob a mão de Lore, Gabriel
inclinou a cabeça.
– Alienor.
– És mesmo tu! – A mulher cintilante riu alto, batendo palmas. – O
Bastian disse-me que ias regressar por uns tempos do norte, para
apresentares a tua prima à sociedade, mas achei que só poderia estar a
gozar!
– É verdade que o Bastian na maioria das vezes não é de confiança.
– Catorze anos de serviço santo e ainda carregas o pecado do ciúme. –
Alienor abanou a cabeça na brincadeira, fazendo cair purpurinas das suas
asas falsas.
– Nunca senti ciúmes dele, Alie.
– Claro que sentiste; sempre que ele dizia que eu estava bonita dizias-lhe
para ter tento na língua junto da tua prometida. Ele só o fazia para te irritar,
sabes? – Alienor disse-o num tom ligeiro, como se fosse algo engraçado,
mas havia uma sombra nos olhos dela que empobrecia a ilusão.
Prometida. Isso explicava a postura tensa de Gabriel. Tinha apenas dez
anos quando a traição do pai e a visão de Anton o haviam empurrado para
os Presque Mort, mas as pessoas eram prometidas em tenra idade na Corte
da Cidadela, as suas vidas decididas praticamente à nascença.
Gabe levantou a mão e instintivamente tocou na pala do olho; o olhar de
Alienor acompanhou a mão dele, entreabrindo por um momento a boca.
– É um prazer ver-te, Gabe – murmurou ela, já num tom sério.
Gabriel baixou a mão.
– Igualmente.
Lore passou o peso de um pé para o outro, sentindo-se quase uma
intrusa.
Pela primeira vez, a pequena mulher pareceu reparar nela. O seu sorriso
tornou a animar-se.
– E esta é a tua prima, certo? Não sabia que tinhas uma prima.
– Prima em terceiro grau. – Lore estendeu a mão, recitando a história
que ela e Gabriel tinham inventado nos aposentos enquanto ele lhe abotoava
as costas do vestido e tentava não desmaiar por ver umas omoplatas
femininas. – Afastada e desconhecida, a querer subir na sociedade às custas
do meu querido familiar.
– Alie, apresento-te a Eldelore. – Gabe agitou a boca a pronunciar o
nome por inteiro, quase com um sorriso trocista.
– Apenas Lore, se não se importa. – A saia ampla do seu vestido
encobriu-a enquanto Lore punha o pé em cima do de Gabe e lhe pisava o
dedo grande com o tacão, o suficiente para o fazer retesar-se.
Alienor sorriu, aceitando a mão de Lore e fazendo uma pequena vénia.
– Muito prazer em conhecer-te, Apenas Lore. E trata-me por Alie, assim
me tratam os amigos.
A expressão de Alienor era franca e amável, sem indícios de artifícios.
Lore deu por si a desejar desesperadamente que assim fosse, embora tudo
na Cidadela exigisse cautelas.
– Alie – repetiu.
Os três caíram num silêncio desconfortável. A música parou e depois
recomeçou, passando de uma jiga animada para algo ainda mais ritmado.
Gabriel franziu o sobrolho.
– Esta música – disse ele, rodando a cabeça. – É kirytheana.
– É? – Alie pareceu espantada, mas não perturbada. – Bem, isso é
interessante.
– Se com interessante queres dizer traidor.
– Isso parece-me algo demasiado dramático. – Uma outra voz, vinda de
detrás de Lore… suave, cortês, com um toque arrebitado como que à beira
de uma piada. – Prefiro ousado a traidor – prosseguiu a voz.
O olho azul visível de Gabriel estava irrequieto, os dentes cerrados com
força. Mas Alie sorria de orelha a orelha, acenando com uma mão cheia de
brilhantes.
– Fala-se no mal e ele aparece.
Lore virou-se.
O Príncipe Sol de Auverraine encontrava-se atrás dela, uma sobrancelha
arqueada sobre a máscara dominó. Já se revelara atraente ao longe, vestido
de branco reluzente na sua Consagração e atrás das rosas no jardim. Mas ao
perto, todo de preto a condizer com os olhos e o cabelo, era quase arrasador.
E o sorriso com que a brindou revelava que bem o sabia.
– O regresso da família Remaut à Corte da Cidadela é sem dúvida uma
ocasião única – comentou Bastian Arceneaux, dando uma palmada nas
costas de Gabe; este retesou-se e não se mexeu, como uma árvore que se
recusasse a vergar-se face a um vendaval. – O meu pai está muito
entusiasmado por te ter cá e sugeriu veementemente que te desse as boas-
vindas, embora eu duvide que um baile de máscaras fosse aquilo que ele
tinha em mente. Tecnicamente, era suposto estarmos todos a dedicar-nos às
orações noturnas, mas, dado que acabei de ser consagrado, acho que Deus
Sangrante é capaz de me dar uma noite de folga da piedade.
– Como se alguma vez tivesses sido pio – troçou Alie.
– Magoas-me. – Bastian assentou uma mão sobre o peito, para depois
devolver o olhar a Gabe. – Devo dizer que estou entusiasmado por esta
noite ter batido Apollius no que toca a receber a tua atenção. Desculpa não
te ter enviado uma máscara, meu velho amigo. Não sabia ao certo como
interferiria com… – Acenou na direção dos olhos dele. – Tudo isso.
Lore percebera que houvera mão de Bastian na ausência de máscara para
Gabe, mas ouvi-lo deixou-a ainda mais incomodada. Uma crueldade
desnecessária, que tornara Gabe o alvo das atenções de gente que ele não
desejava ter por perto. Esforçou-se para não semicerrar os olhos.
Bastian curvou os lábios num sorriso travesso que não lhe revelava se
fora ou não bem-sucedida. Foi num tom de voz mais baixo que falou ao
curvar-se para lhe agarrar a mão.
– É um gosto desta vez conhecer-te de perto. Acredita, se não estivesse
ocupado, teria parado para falar contigo na Consagração. É raro ver por
aqui sangue novo.
Ela ficou grata pelas luvas de couro dele; disfarçaram a sua mão suada.
– Folgo em saber – disse ela, oferecendo-lhe o sorriso mais coquete que
conseguiu exibir.
Aparentemente, não lhe saiu bem; viu a boca de Gabe contorcer-se antes
de ele desviar o olhar para a mesa dos vinhos, como se tentasse conter uma
gargalhada. Lore lançou-lhe um olhar fulminante pelo canto do olho. Era
suposto aproximar-se do príncipe, ou não? Pela sua experiência, as regras
do jogo eram aquelas.
Porém havia algo de maquinador nos olhos de Bastian, uma centelha de
aço que o sorriso não ocultava. Algo que indiciava que era tão bom como
ela neste tipo de jogos.
Alie cruzou os braços, espalhando mais purpurinas do vestido.
– Disseste a toda a gente que seria um baile de máscaras, Bastian, mas tu
apenas te vestiste de preto.
– Eu sou a noite. – O Príncipe Sol endireitou-se, largando a mão de Lore
e apontando para a espada brilhante no seu flanco. Para ser parte de um
disfarce, a lâmina parecia afiada. – Percebes?
– Deus Sangrante. – Alie revirou os olhos, mas sorria. – Toda a gente vai
achar que exagerou nos fatos, mas o que se passa é que tu simplesmente
foste preguiçoso.
– Oh, não, todos sabem que sou preguiçoso. – Os olhos de Bastian não
se desviaram dos de Lore.
Por instinto, ela fez o mesmo, como se involuntariamente tivesse entrado
numa luta de vontades ao corresponder-lhe ao olhar. Uma batalha que agora
se recusava a perder.
Aproximou-se uma cortesã, vestida em camadas de tule de arco-íris
pastel, olhos torneados por pó brilhante. Vacilava, com um copo na mão.
Mais veneno, que incomodava Lore e a fazia franzir o nariz, sentindo as
pontas dos dedos dormentes. Recuou instintivamente, quase voltando a
pisar Gabe. A consciência da presença da Mortem era um mero
formigueiro, uma sensação de desconforto e uma leve náusea. Aquele
truque mental que Gabe lhe ensinara devia realmente ser qualquer coisa.
A cortesã sorriu e estendeu o copo.
– Queres, Bastian? – O olhar dela incidiu em Lore e Gabe, com um
sorriso subtilmente cruel. – Ou vocês os dois? Encarem-no como uma
iniciação.
– Vá lá, Cecelia. – O tom de Bastian era ligeiro, mas por baixo da
máscara notava-se um brilho sombrio nos olhos dele. – Isso são maus
modos.
Esvoaçou tule quando Cecelia tornou a vacilar.
– Como queiras – disse ela, bebericando mais um pouco antes de se
afastar.
Bastian riu-se num tom baixo sob o gemido de violinos.
– Perdoem-nos – disse, ainda com um olhar gélido. – Mãos ociosas
viram-se para o pecado tão naturalmente como uma flor se vira para o sol.
O Livro da Lei da Morte, Opúsculo Quarenta e Cinco.
Gabe nada disse, mas o seu maxilar contraiu-se.
O Príncipe Sol sorveu o seu vinho e entregou o copo a um cortesão de
passagem, que pareceu ficar simultaneamente confuso e encantado.
– Gabe, não me apresentas à tua encantadora prima?
– É preciso? – A voz de Gabriel soava como se quisesse abocanhar as
palavras. – Já pareces saber tudo sobre nós.
Tinha a mão cerrada ao lado do corpo. Lore roçou os dedos ao de leve no
punho dele. Não lhe parecia que nós dos dedos contra maçã do rosto fosse o
tipo de proximidade que August e Anton desejassem que ela e Gabriel
cultivassem com o Príncipe Sol.
A mão de Gabe estirou-se no oposto exagerado do punho cerrado de
antes.
– É tido por boa educação. – Bastian por fim desviou o olhar de Lore,
incidindo antes em Gabe. – Mas já há uns tempos que andas afastado da
corte, a labutar lá na Ponta Norte com o meu tio. Por isso, na ausência de
bons modos, penso que terei de me apresentar a mim mesmo.
A banda acelerou, violinos e violoncelos largando uma nota lamuriosa
antes de se lançarem num ritmo mais acelerado. Quem dançava aplaudiu
com alegria, gritando o seu encorajamento.
– Durante uma dança – prosseguiu Bastian, entrelaçando os dedos nos de
Lore para a puxar para o animado rodopio.
Capítulo 10

Aos meus escolhidos, lego o meu poder – Spiritum, a magia


da vida. Que seja usada para trazer à tona o mundo como ele
deve ser.
– O Livro da Lei Sagrada, Opúsculo 714 (texto verde;
proferido por Apollius a Gerard Arceneaux)

L ore, a traficante de veneno, sentia-se ligeiramente nauseada, entre a


fome, o cheiro a veneno e a ansiedade que lhe entorpeciam os membros.
Mas Eldelore Remaut teria ficado encantada ao ser levada por um príncipe
atraente para uma louca dança kirytheana, e era Eldelore Remaut quem
necessitava de marcar presença naquela noite, aproximando-se do Príncipe
Sol e descobrindo se este andava a cometer traição.
Se andasse, a opção por música kirytheana era arrojada.
O tule roxo-escuro da saia dela voltou a prender-se sob o tacão e Lore
praguejou audivelmente, afastando-o com o pé. Bastian arqueou uma
sobrancelha, com um sorriso divertido a repuxar-lhe o canto da boca.
Eldelore Remaut provavelmente não faria aquilo.
Da prima de um duque também se esperaria que dançasse bem, um
talento que escapava a Lore. Tentara, uma vez, num trabalho numa taberna
como o que Elle tinha, mantendo os clientes a dançar, a beber e a gastarem
o seu dinheiro. Derrubara duas empregadas de mesa e não aguentara uma
noite sequer. Traficar veneno era a única coisa em que alguma vez se
revelara boa.
Traficar veneno e espiar. Isso ela era capaz de fazer.
Lore recuou sob a mão condutora de Bastian. Reparou que ele tinha
calos nos nós dos dedos, o que parecia estranho para um príncipe, e o nariz
sob a sua máscara preta tinha um ar ligeiramente torto, como se já se tivesse
partido.
Ele espreitou-a por cima do ombro, de boca contorcida num sorriso
irónico.
– Não mordo. – E logo, com um sorriso ainda mais retorcido: – A não
ser que decidas que queres que o faça.
Ela imaginava que deveria corar, mas já ouvira e dissera bastante pior.
Tentou reagir com um sorriso que esperava que parecesse recatado.
– Infelizmente, não conheço esta dança. – A música kirytheana brotava
loucamente dos violinos, combinando bem com o ímpeto da multidão. A
dança parecia envolver saltos e palmas, nada que Lore pudesse fazer com
aquele vestido. – Não estou habituada aos costumes kirytheanos. Vossa
Alteza conhece-os?
Uma pergunta orientadora: Começa de forma simples e vê até que ponto
te vão complicar o trabalho.
– Não propriamente.
Pelos vistos, seria mais complicado do que aquilo.
Bastian puxou-a para o centro da pista de dança, entre cortesãos que se
afastaram como uma onda em tons reluzentes. Ele ergueu uma mão e
gesticulou para a banda no canto. Abruptamente, a música mudou, passando
para algo mais lento e contido.
– Mas decidi que já me chega de katairos. – Bastian sorriu, colocando
uma mão na cintura dela. Uma fração de segundo, e ele puxou-a para algo
que Lore achou tratar-se de uma valsa. Com sorte, o seu disfarce como
prima do campo seria cobertura suficiente para a sua falta de graciosidade.
– Então, a música kirytheana era só para benefício do Gabriel?
Lore inclinou a cabeça, ainda a sorrir, embora a pergunta denotasse uma
certa crueldade. O Mort era formal, achava-se importante e tinha a
constituição de alguém que saberia tomar conta de si próprio, mas as
estranhas circunstâncias em que se encontravam levavam a que se sentisse
protetora em relação a ele.
– Não foi de todo para benefício do Gabe. – Bastian fê-la girar,
afastando-a, para depois a puxar de novo para si, junto do seu peito trajado
de preto. Ele era mais baixo do que Gabriel, mas pouco, e a testa de Lore
teria chocado no queixo dele se Bastian não se tivesse inclinado
graciosamente para trás, fazendo com que isso parecesse parte da dança –
Só ouvimos música kirytheana porque a aprecio.
– Estou certa de que entusiasma o seu pai.
Os olhos dele cintilaram por detrás da máscara, o leve sorriso na boca a
tornar-se mais cortante.
– Nada do que eu faço entusiasma o meu pai. Está convencido de que
sou um inútil, e não me preocupo o suficiente para tentar levá-lo a mudar de
ideias.
Mais outro rodopio, desta vez sob o braço dele, a mão mantendo-se ao
fundo das costas dela para a conduzir.
– E para que não haja mal-entendidos – murmurou quando ela passava
de novo perto –, eu não provocaria o Gabe por causa da família dele. Sei
que ele acha que sou horrível, e terá as suas razões, mas nem eu sou assim
tão insensível.
Lore esperou que a sua gargalhada não soasse tão falsa como o era.
– Mas garantiu que ele não teria máscara, para que todos os presentes lhe
vissem a cara.
– Queria que a corte soubesse da presença dele aqui. Para lhe dar uma
oportunidade de ver o que tem andado a perder e talvez decidir-se a ficar
em vez de voltar a escapulir-se para os Presque Mort. – A voz de Bastian
soava agradável, mas o maxilar tenso seria capaz de escavar carvão. – O
meu tio tem andado meio tresloucado desde o acidente, mesmo que toda a
gente tente fingir que se trata de algo sagrado, e há catorze anos que
controla a vida do Gabe. Vi uma oportunidade para o libertar, pelo menos
por umas semanas, e aproveitei. Ele devia agradecer-me.
Lore questionou-se quanto ao que pensaria Bastian se soubesse que Gabe
só estava na corte por causa de Anton. Que o controlo do tio se mantinha
fortíssimo.
– Como é que o facto de a corte o ver aqui pode levá-lo a querer ficar? –
quis ela saber.
Bastian acenou com a mão na direção da festa.
– Enfia um homem num antro de imoralidade depois de mais de uma
década em reclusão e é provável que caia em pecado. E, se isso for
suficientemente público, talvez o Anton não lhe permita regressar para
junto dos monges. Pelo menos, a esperança era essa. – O Príncipe Sol
resfolegou. – Se bem que eu provavelmente subestimei a devoção do Gabe.
Sempre foi dado ao martírio.
Oscilaram em silêncio por uns momentos, com o ar entre eles preenchido
pelo som de violinos e pelo odor a champanhe derramado.
– Calculo que para ti tenha sido uma sorte o Gabe ter-se juntado aos
Presque Mort. – Os olhos de Bastian eram de um castanho tão escuro que
quase parecia preto e iluminados por uma curiosidade insaciável. – Pois foi
o teu bilhete para a Corte da Cidadela. Não imagino uma prima em terceiro
grau de um duque caído em desgraça a ser convidada para a temporada se o
dito duque não se tivesse tornado o projeto de estimação do Supremo
Sacerdote.
Disse-o com uma condescendência propositada, como se a desafiasse a
discordar e tal discordância pudesse revelar algo.
Ela sorriu com os lábios cingidos.
– Eu teria arranjado uma forma de entrar – ripostou.
Uma prima do campo ávida por poder e posição, ansiosa por ali estar.
Estava o mais longe possível do que Lore sentia, mas poderia desempenhar
esse papel.
Bastian mirou-a por momentos, inescrutável por detrás da máscara. A
seguir, desatou a rir e tornou a fazê-la rodopiar.
Gabriel mantinha-se imóvel junto de Alienor na extremidade do salão de
baile. Os dois conversavam com as cabeças curvadas um para o outro para
se escutarem, mas o olho dele, inquieto, não deixava de procurar Lore e
Bastian.
Quando Bastian voltou a fazê-la girar, ela estava mais preparada para
isso. E quando todos bateram com o pé direito ao ritmo da música, Lore
mostrou-se completamente sincronizada.
Bastian sorriu.
– Aprendes depressa, não é verdade?
– Não há dúvida de que tento.
Voltaram a aproximar-se; Bastian passou uma mão à volta da cintura
dela e ela fez o mesmo enquanto iam rodando à volta um do outro, um
movimento que teria parecido predatório sem a suavidade facultada pela
dança.
– O vestido assenta-te bem – comentou Bastian, sem tentar disfarçar
quando a olhou de alto a baixo. – Durante a Consagração, não te observei
devidamente, nem ontem de manhã nos jardins, ocupado como estava, mas
achei que era capaz de te servir.
Então, ele efetivamente tinha-a reconhecido depois de a ver nos jardins.
Lore sorriu inocentemente.
– Era Vossa Alteza? Que embaraçoso. Os meus pertences não chegaram
a tempo, por isso tive de pedir emprestado um vestido das doações da
Igreja.
Mãos deixaram as cinturas, subiram à altura do rosto e pairaram a um
par de centímetros de distância, com as palmas esticadas enquanto Lore
orbitava em redor dele.
– Que sorte – murmurou Bastian –, ter um contacto tão chegado com a
Igreja.
A dança terminou. À volta deles, outros casais faziam pose com as mãos
direitas unidas e as esquerdas curvadas sobre as cabeças, mas Bastian e
Lore permaneceram parados com as palmas viradas um para o outro, quase
a tocar-se, mas mantendo uma distância mínima.
– Vou adorar ter-te por perto, Lore. – A voz dele era grave, o hálito
roçava-lhe na têmpora enquanto se inclinava para a frente para lhe sussurrar
ao ouvido. – Isto sem dúvida tem potencial para ser interessante.
– Acha, Vossa Alteza?
Ele estava tão próximo que ela lhe sentiu os lábios a curvarem-se.
– Sei que sim.
Do outro lado do salão, Alie observava-os, rindo-se por detrás da mão.
Ao lado, Gabe captou o olhar dela e arqueou uma sobrancelha sardónica.
Ela tentou mostrar uma expressão que transmitisse o que mais haveria eu
de fazer?, mas basicamente só conseguiu mostrar um ar de enjoo.
Bastian recuou. Enfiou a mão no casaco e, por um momento louco, Lore
achou que ele ia sacar de um punhal ou de uma daquelas pistolas
minúsculas, provando ser o informador kirytheano que o seu pai achava que
era e tratando dela ali mesmo na sua própria festa. Os cortesãos
provavelmente iriam adorar. Todos trariam camponeses para assassinar nos
seus próprios bailes; seria a nova grande moda na organização de bailes de
máscaras.
Mas tudo aquilo que Bastian retirou do casaco foi uma flor prensada,
uma fileira de pétalas roxo-claras num caule verde.
– Uma dedaleira para uma dedaleira. – Bastian ofereceu-lha com uma
vénia e um floreado. – Bela e venenosa. Muito parecida contigo, se me
permites a ousadia de te avaliar após o nosso breve momento.
Cautelosamente, Lore aceitou a flor. As pétalas secas estalaram
levemente entre os seus dedos.
– Até à próxima, Lore. – Bastian deu meia-volta e afastou-se, um pingo
de tinta num mar de cor.

Lore fechou a porta dos aposentos ao entrar e apoiou-se na mesma.


– Acho que correu tão bem quanto poderia correr.
– Desempenhaste admiravelmente a tua função – disse Gabriel,
sentando-se no sofá com um profundo suspiro.
– Parece que insinuar-me junto do Bastian não será a parte complicada. –
Lore retirou a máscara e deixou-a cair. – Difícil será sacar-lhe algum tipo de
informação. Não vai contar-me que é um traidor só por me achar bonita. É
mais esperto do que o pai e o tio acham.
Gabe resfolegou.
Lore descalçou os sapatos de tacão que vinham com o disfarce, roxo-
claros e bordados com folhas serrilhadas. Folhas de dedaleira. A flor seca
que Bastian lhe oferecera continuava na palma da sua mão. Se fosse
encontrada com algo como aquilo nas ruas de Dellaire, passaria pelo menos
três dias nos calabouços na Ala Noroeste, caso fosse o primeiro crime, ou
ganharia um bilhete para as Ilhas Queimadas se fosse reincidente. Mas ali,
neste palácio dourado cheio de dinheiro e excessos, não passava de um
presente frívolo de um príncipe.
Recordou os cortesãos ao canto com o seu chá de beladona, com
médicos à disposição e sem razões para preocupação. Cerrou o punho,
esmagando a flor, que se desfez num pó pastel. Sacudiu-o das mãos e
deixou-o cair ao chão juntamente com a máscara.
Recuperando a sensibilidade nos pés agora que se descalçara, Lore
avançou para junto de Gabe e parou diante dele, apontando para os botões
nas costas.
– Ajude-me aqui com os botões, não lhes chego.
Ele hesitou por momentos antes de deitar mãos à obra. Para monge, tinha
mãos destras a desapertar botões de mulher, um pensamento que lhe passou
inadvertidamente pela mente antes de ela o trancar num canto.
– Ele disse alguma coisa importante enquanto dançavam? – quis saber
Gabe.
As únicas coisas novas que ela ficara a saber enquanto dançavam eram
relativas a Gabe. Mas a intuição indicava-lhe que, se tentasse abordar o
assunto, ele haveria de se fechar em copas. Conhecia-o havia apenas dois
dias, mas isso bastara para saber que não aceitaria bem quem denegrisse
Anton ou os Presque Mort. As pessoas que achavam que tinham sido salvas
tendiam a endeusar o salvador.
– Nem por isso. E muito menos algo que desse a entender que seja um
espião kirytheano. – Com um suspiro, Lore deixou-se cair na ponta oposta
do sofá e pôs os pés em cima da banqueta. – Não compreendo o que leva
August a estar tão convencido de que o informador é o Bastian.
– Ele disse-te. É por Bastian não querer ser rei. – Gabriel olhou para as
brasas a esmorecer na lareira, a cabeça apoiada na mão. Desapertara o
plastrão, revelando um triângulo de pele clara sardenta. – Quando éramos
novos, ele costumava dizer-me que queria ser pirata.
Era estranho pensar no homem diante de si como o rapaz que fora,
passando os verões a brincar naqueles salões com o Príncipe Sol e a bela
Alie. Sem saber que a sua vida se iria despedaçar à sua volta, que teria de
reconstruí-la e torná-la algo sagrado para sobreviver.
– Na qualidade de alguém que talvez estivesse a um pequeno passo de
ser uma pirata – disse Lore –, vou ter de dececionar quem quer que ache
que é tempo bem passado.
– Deve ser mais interessante do que ser rei.
– Ainda assim, não me parece uma boa razão para desencadear uma
guerra.
– Até pode parecer, a quem tiver a pairar sobre a cabeça a
responsabilidade de ser um Rei Arceneaux – murmurou Gabe para o fogo.
Ela lançou-lhe um olhar incrédulo.
– Para quem nitidamente não gosta do homem, parece muito sintonizado
com o modo como a mente dele funciona.
Ele fez uma careta ao ouvir aquilo.
– Digo apenas que o conheço suficientemente bem para compreender
que ele encararia uma guerra, em especial uma guerra que parece vir a ser
inevitável, como um pequeno preço a pagar por deixar para trás a
responsabilidade que lhe acarreta a linhagem. Sagrada e a restante.
Lore riu, a pensar nas barras de ferro nos chãos de mármore, no que
simbolizavam. O direito divino da família Arceneaux à governação vinha
com a condição de terem de controlar a fuga de Mortem do corpo de
Nyxara. Estabelecer a Igreja e a Cidadela sobre o túmulo de Nyxara
mantinha a Mortem contida, em grande parte, mas segundo os Opúsculos, a
linhagem Arceneaux também poderia brandir o Spiritum, o poder de
Apollius – a magia da vida.
Porém nenhum Arceneaux alguma vez o conseguira fazer.
– Acredita nessa parte? – questionou ela. – Na parte do Spiritum?
Gabe permaneceu por momentos em silêncio, refletindo.
– Acredito que a presença da família Arceneaux na Cidadela é o que
impede a Mortem de avassalar o continente. – Expressava-se de forma
pausada, tecendo uma tapeçaria de crença e dúvida. – Isso é apenas história,
temos registos de como era antes de a Cidadela ser erigida, antes de Gerard
Arceneaux a tornar o centro do seu poder.
– Mas não há registos de ele efetivamente usar Spiritum, tal como diz
nos Opúsculos.
– É possível que se trate de um erro de interpretação. Já aconteceu antes.
– Olhou na direção dela. – Os teus pais alguma vez te assustaram com
histórias da Feiticeira da Noite?
A garganta dela ficou seca.
– A sacerdotisa louca?
Proferiu-o como uma pergunta, como se não soubesse ao certo se o
dissera bem. Como se essa lenda não fosse parte indelével da sua própria
história.
– Exatamente. – Gabe remexeu-se no sofá, coçando a pala do olho. – A
Feiticeira da Noite era apenas uma sacerdotisa, líder da Guarda Sepultada,
uma ordem sagrada incumbida de guardar o túmulo da Deusa Sepultada e
verificar quanta Mortem vertia. Era uma seita irmã dos Presque Mort, na
verdade, outro grupo canalizador sancionado pela Igreja, se bem que depois
da construção da Cidadela e da coroação de Gerard Arceneaux essa
exigência foi levantada. Quando a Feiticeira da Noite apareceu, era a única
canalizadora da Guarda.
Lore obrigou-se a assentir.
Gabe prosseguiu:
– Ao fim de algum tempo, enlouqueceu e tentou abrir o túmulo. Alegou
que era a deusa renascida, pois interpretara mal algum Opúsculo no Livro
da Lei Sagrada. Desde então, foi revogado do Compêndio. – Abanou a
cabeça, quase com pena. – É por isso que necessitamos de homens como o
Anton, que sabem interpretar os Opúsculos e ajudar-nos a saber o que
significam. As consequências podem ser horríveis.
Ela contorceu os dedos no colo, frios e dormentes.
Permaneceram sentados em silêncio, com a exceção do fogo crepitante.
Ao fim de um momento, Gabe levantou-se. Dirigiu-se ao quarto que lhe
fora atribuído e saiu de lá com cobertores e almofadas, que começou a
empilhar junto à porta.
– Sabe que tem ali uma cama perfeitamente adequada, certo? –
questionou Lore.
– Vou dormir em frente à porta da entrada. – Gabe espreitou para ela,
com um brilho calculista no seu olho visível, antes de despir o gibão e a
camisa. O seu tronco era bem musculado, coberto por pelos arruivados mais
escuros do que o tom dourado da sua cabeça e barba. – Não confio em
ninguém nesta Cidadela, nem por sombras.
– Sombras é o que não falta por aí – murmurou Lore.
– Esperemos que não venha a provar-se que tenho razão. – Gabe
acomodou-se na sua cama improvisada, encostado à porta. Se alguém
tentasse entrar, seria bloqueado pelo homem santo de um só olho. – Se
fosse a ti, ia dormir. As orações do Primeiro Dia são ao nascer do sol.
As orações do Primeiro Dia – esquecera que August iria então apresentá-
los oficialmente à corte. Com um gemido, Lore levantou-se e encaminhou-
se para o quarto que Gabe não saqueara.
– Boa noite, Mort.
– Boa noite, herege.
Quase não tinha forças para se rir. Lore despiu o vestido de dedaleira,
deixando-o num montinho violeta no chão, e deixou-se envolver pelo sono
e pela escuridão.
Capítulo 11

A deusa segredou ao ouvido da Feiticeira da Noite,


«Seria tão bom ver-te, querida,
Abre a porta e deixa-me sair
Há muitas histórias que tens de ouvir.»
– Rima infantil de saltar à corda

L ore sentou-se junto ao mar e sentiu-se, pela primeira vez desde que tinha
memória, absolutamente bem.
A água estava morna; batia contra a orla branca da costa, salpicando-lhe
as barrigas das pernas e levando a areia sobre a qual se sentara. Não se
tratava da praia junto às docas do porto, fria e rochosa – não, esta era mais
parecida com as praias que ouvira dizer que havia nas cidades mais a sul de
Auverraine, onde os ricos por vezes iam quando o inverno era demasiado
rigoroso. Não havia odor a sal no ar. Cheirava a nada.
A nada.
Alguém se sentou junto dela. Lore não conseguiu ver quem era. Quando
rodou a cabeça, havia apenas um vazio sombrio, uma brecha no mundo em
forma de pessoa.
Um vazio, mas se olhasse por demasiado tempo, encontraria imagens
súbitas de coisas na escuridão. Um bloco de obsidiana que era um túmulo.
Uma marca de ferro, em forma de crescente, cor de laranja brilhante. Uma
mulher com olhos cor de mel, como os seus.
Lore não tentou voltar a olhar.
No céu sobre o mar tépido, serpenteava fumo sinuosamente, cinzento
sobre o azul. Lore levou algum tempo a reparar que o fumo saía de si
mesma, que lhe escapava do peito, estendendo-se em gavinhas escuras
sobre a água. Enquanto observava, o fumo alastrava-se cada vez mais,
arqueando-se pelo céu.
Perfeito, comentou a figura a seu lado, aquela que não lograva ver. Desta
vez, foi muito mais fácil.

Lore levantou-se de repente da cama demasiado mole, pressionando os


nós dos dedos contra os olhos até ver estrelas a dançar por detrás. A barreira
mental que Gabriel a ajudara a formar finalmente cedera, como se o
estranho pesadelo que naquele preciso momento se evaporava da sua
memória lhe tivesse incendiado a floresta. Sentia a Mortem em tudo – nas
paredes, na roupa da cama, nos móveis. Isso fazia-a sentir um peso enorme
em cada membro, deixava-lhe a cabeça a latejar e provocava-lhe sintomas
de sufocação apesar de inspirar golfadas de ar. O momento da morte,
cristalizado e interminável, toda a dor sem nada da paz.
Lore ergueu-se sobre pernas vacilantes, silvando ao sentir o latejar na
cabeça. Entre a fuga louca da Ala Noroeste, ter passado uma noite inteira
atada a uma cadeira e outra quase a dançar, sentia o corpo como a ponta de
uma corda esfiapada.
Com um abanão, obrigou-se a avançar, transpondo a porta para a sala de
estar partilhada. Quase chocou na parede, recuou e rangeu os dentes. Tocar
no que quer que fosse era como um soco no cérebro e até tinha vontade de
desfazer a sua camisa de noite de corte perfeito. Deteve a mão, mas à justa.
Gabe teria de a ajudar com aquilo e não seria de grande apoio se o seu
coração celibatário não resistisse a vê-la nua.
O monge de um só olho ainda se encontrava encostado à soleira que
dava para o corredor, como um travão de porta humano. Ela deu-lhe um
toque com o pé no ombro; doía-lhe demasiado a cabeça para se agachar,
provavelmente vomitaria em cima dele se o tentasse.
– Gabe. Voltou.
Ele despertou num instante. Sentou-se, com o lençol a escorregar-lhe
pelo peito até à cintura e a preocupação a franzir-lhe a pele em volta da pala
do olho – pelos vistos ele dormia com a coisa posta, pelo menos quando
vigiava portas. O único olho azul percorreu-a, avaliou rapidamente a
situação, felizmente sabendo ao certo do que falava sem que Lore tivesse de
explicar.
– Assentaste os pés na terra antes de adormecer?
– Como?
– Vou entender isso como um não.
– Como raio é que eu haveria de saber fazer isso? – A dor deixava-a
irritada; quase tinha os dentes arreganhados.
Gabe não lhe levou a mal. Mudou de posição para se sentar de pernas
cruzadas sobre o chão, de palmas das mãos apoiadas nos joelhos. Com um
gesto, indicou-lhe que queria que ela o imitasse.
Lore assim fez, devagar, sibilando uma torrente de palavrões. Sentia um
formigueiro intenso nas pernas; tentar mexê-las era como içar sacos de
carne morta.
– Assentar os pés na terra – explicou Gabe quando ela se instalou –, é
visualizar a tua barreira, posicioná-la. Torná-la tão real quanto possível na
tua mente, para não teres de te concentrar ativamente em mantê-la.
– Não me concentrei nisso todo o dia e aguentou-se bem. – Só se tornara
um problema a partir do pesadelo. Lore ainda o sentia a puxar-lhe as pontas
da sua mente, o coração, como se não tivesse verdadeiramente despertado.
Como se o pesadelo fosse uma entidade viva, plena de malícia e a tentar
encurralá-la.
Mas não estava a ser capaz de a fixar na mente. Quando tentava recordar
exatamente o que se passara no sonho, tudo o que obtinha eram vislumbres
– areia branca, água azul.
Franziu as sobrancelhas, com uma expressão fugaz de assombro.
– Isso é estranho.
– Podemos discutir a estranheza mais tarde, por favor?
Ainda se notava um brilho perturbado no olho de Gabe, mas ele
concordou. As suas mãos relaxaram sobre os joelhos.
– Pensa na tua barreira – disse, num tom baixo e calmo. – Em todos os
pormenores, por menores que possam ser. Assenta nisso, para que pareça
tão real como tudo o resto.
A única coisa que Lore tinha vontade de assentar era o punho na sua
própria cara – qualquer coisa que servisse para lhe travar a dor de cabeça.
Mas aos poucos acalmou a respiração, relaxou os maxilares. Desemaranhou
os pensamentos das sensações desagradáveis da cabeça a latejar, da testa
transpirada e da morte por todo o lado, imaginando-se antes numa floresta.
Árvores. Montes de árvores. A crescer à sua volta como uma parede
verde impenetrável. Ouvia Gabe respirar numa cadência profunda e
equilibrada; a sua respiração tornou-se um contraponto, como se inspirasse
o que ele expirava.
Muito lentamente, a consciência da morte omnipresente esmoreceu,
dissipou-se. Não por completo, nunca por completo. Mas o suficiente para
não ter a impressão de que se afogava nela. No seu estado de profunda
concentração, onde a floresta na sua mente parecia tão real e presente como
a alcatifa empoeirada debaixo de si, quase conseguia ver algo mover-se para
lá da parede de árvores. Fumo a vaguear sinuosamente num céu azul.
A imagem despertou-lhe algo na mente, mas não conseguiu encaixá-la
numa memória.
Quando o latejar no crânio cedeu e a sua camisa de noite passou a fazer-
se sentir meramente como algodão em vez de um manto ctónico, Lore abriu
os olhos.
Gabe fitava-a. Nos dois dias desde que estavam juntos, tinha-se fartado
de olhar para ela, mas, sob a luz gerada apenas pelas brasas da lareira e com
tanta pele sardenta à vista, agora parecia mais intenso. Como se
efetivamente a visse, como uma pessoa e não uma canalizadora de Mortem,
uma fingidora num vestido de dedaleira ou uma pedra pendurada no
pescoço dele. Apenas como uma mulher.
– Sempre foi assim tão mau? – A voz dele era um sussurro. – A
consciência.
Lore engoliu em seco.
– Não.
Ele manteve-se calado, à espera que ela prosseguisse. Mas não a
pressionou, quando ela permaneceu em silêncio.
– As nossas mentes são mais vulneráveis durante o sono – explicou-lhe.
– Estão mais abertas, mais recetivas. – Fixou o olho nela, a cintilar de
compaixão sob o luar que entrava pela janela. – Não é motivo para sentir
vergonha.
Como se fosse disso que ela sentia vergonha, de entre tudo por onde
podia escolher.
Lore levantou-se abruptamente.
– Bem, obrigada pela ajuda. – Apressou-se na direção do quarto, pronta
para voltar a adormecer, para se deixar levar pelo esquecimento escudado
por árvores. Com os olhos bem cerrados, imaginou a sua floresta, encheu-a
com tanto pormenor quanto pôde.
Ramos a balançar. Troncos a engrossar. Por entre as folhas esmeralda,
fumo sinuoso a serpentear num céu azul.

A Igreja era tão impressionante quanto a Cidadela, embora de uma


maneira diferente. Enquanto a Cidadela era só opulência e dourados, a
Igreja era austera, com paredes caiadas que quase brilhavam, vigas de
carvalho reluzentes e bancos corridos impecavelmente envernizados.
Janelas cristalinas de vitrais projetavam feixes de luz colorida sobre os
congregados reunidos do Santuário Norte enquanto o sol ia subindo
lentamente pelo céu.
Não pela primeira vez desde que se levantara a uma hora que não
lembrava ao diabo – uma frase que Gabe encarara como uma piada quando
ao acordá-la, embora ela falasse com toda a sinceridade –, Lore agradeceu
em silêncio por se ter mostrado contida com a fonte de vinho no baile de
máscaras de Bastian. Ainda sentia os olhos secos por ter dormido pouco,
mas pelo menos não parecia tão extenuada como alguns dos cortesãos que
transpunham em silêncio as portas duplas de madeira. O desfile de olhos
raiados de sangue e riscas de purpurinas por limpar permitia elaborar uma
simples lista dos convidados que tinham passado a noite a dançar com o
Príncipe Sol e dos que não.
Parecia que a maioria estivera lá. Pelo menos entre os cortesãos mais
jovens, Bastian era popular. Ela equacionou se isso seria um dos motivos
para August estar tão certo de que ele era um espião. Homens em posições
de poder deixavam-se perturbar por herdeiros populares que aguardavam
por lhes tomar o lugar. Nessa matéria, a Corte da Cidadela não era assim tão
diferente de um grupo de traficantes de veneno. Ela vira mais do que um
arrivista ser assassinado pelo seu próprio capitão.
Deixou escapar um bocejo tão grande que o seu queixo até estalou. Mal
se apercebera da caminhada entre a entrada das traseiras da Cidadela e o
Santuário Norte, demasiado cansada para prestar muita atenção. Eram quase
dois quilómetros e meio, calculava, o caminho empedrado e liso delimitado
por roseiras – um contraste imenso com os caminhos de terra e pedregulhos
de Dellaire que davam para o Santuário Sul, destinado à plebe. Do outro
lado do carreiro, ondulavam os enormes espaços verdes da Cidadela,
campos tratados e falsas florestas, terra rica vedada pelos muros da
fortaleza da Igreja.
Algo lhe tocou no ombro. Gabe.
– Acorda, prima.
– Estou acordada, primo. – Mas, nesse mesmo momento, outro bocejo
tomou-lhe o maxilar. – Por que miríade de infernos é que as orações do
Primeiro Dia são logo na merda do alvorecer? Tenho a certeza de que
Apollius ainda as ouviria ao meio-dia.
Gabe indicou com a cabeça a janela de vitral na fachada do santuário. O
Coração do Deus Sangrante, disposto em painéis vermelhos, dourados e
ocres. Com o erguer do sol, o seu brilho subiu pela janela, iluminando
lentamente o vidro até tudo refulgir em cor.
– Eis a razão – respondeu ele. Lore não percebeu se o tom dele era
reverente ou ressentido. Talvez um pouco de ambos.
Apesar de ter dormido toda a noite encostado ao caixilho da porta,
Gabriel parecia positivamente refrescado. Envergando roupas mais simples
do que as que levara ao baile de máscaras – gibão escuro, calças escuras e
por baixo uma camisa de linho, desta feita com mangas sensatas –, nunca
tinha tido um ar tão atraente, durante o pouco tempo que passara desde que
se conheciam.
Já Lore evitara cuidadosamente o espelho naquela manhã, mesmo ao
escovar o cabelo. Os papos sob os seus olhos deviam estar tão grandes
como bolsas para contrabandear cicuta.
As portas duplas ao fundo do santuário permaneciam abertas, deixando
passar os últimos cortesãos dispersos. Alienor deslizou pela espessa carpete
de tapeçaria que se estendia pelo corredor central, com o sol que jorrava
pelas janelas a fazer os seus caracóis quase brancos brilharem com as
mesmas cores dos vitrais, como um halo em volta da cabeça. Tinha os olhos
límpidos e uma postura firme ao abeirar-se do altar na frente do santuário,
ajoelhando-se e beijando a sua madeira polida. Lore e Gabe haviam feito o
mesmo ao entrar. Lore esforçara-se por não pensar em todos os lábios que
já ali tinham tocado antes dos seus.
Ao endireitar-se e ir em busca do seu lugar, os olhos de Alie cruzaram-se
com os de Lore. Sorriu-lhe e fez-lhe um ligeiro aceno. Lore correspondeu
com um sorriso genuíno. Quanto a Gabriel, não olhou de todo para Alie.
Um homem mais velho seguia Alienor, perto o suficiente para só
poderem ter chegado juntos, embora não fossem nada parecidos. A pele
dele era clara como leite ao lado do tom acobreado dela, o cabelo castanho
como madeira e liso em vez de louro esbranquiçado e encaracolado. A
expressão dele era austera e os vincos em redor da boca indicavam que isso
raramente mudava. O olhar do homem incidiu em Lore, como se lhe tirasse
as medidas.
– Quem é aquele? – murmurou ela a Gabe pelo canto da boca.
– Severin Bellegarde. – Gabe não teve de se mexer para responder; já
estava a observar Alie. – O pai da Alie.
Lore arqueou uma sobrancelha. Nesse caso, Alie devia sair à mãe, em
todos os aspetos.
Desviou o olhar de Bellegarde e observou declaradamente as janelas.
Apollius, uma vez mais, em várias cenas, imaginadas ou retiradas dos
Opúsculos. A curar um ferimento mortal através do toque. A transpor uma
porta de nuvens para o que ela só poderia assumir tratar-se do Reino
Iluminado, deixando o mundo para trás.
Lore fez uma careta e concentrou-se de novo na multidão.
Apesar de todo o ressentimento por estar ali, o Santuário Norte a reluzir
com toda a elite da Corte da Cidadela era sem dúvida uma vista a admirar.
Todos sabiam exatamente o que fazer, onde ir, como sentar-se e esperar e
mostrar um ar sagrado, mesmo com os olhos raiados de sangue da bebida e
do veneno da noite anterior. Dado que não pertencia à nobreza, Lore nunca
tivera permissão para aceder ao Santuário Norte e apenas estivera um
punhado de vezes no Santuário Sul para orações comuns, em especial
quando apanhada na agitação ao fazer reconhecimentos para uma entrega lá
perto.
Entraram os últimos cortesãos. As portas duplas de acesso aos espaços
verdes e à Cidadela atrás foram fechadas, ribombando no silêncio.
Na frente do santuário, abriu-se atrás do altar uma pequena porta sobre a
plataforma elevada, de onde surgiu Anton, envergando uma túnica tão
branca que quase feria a vista a Lore, e o pingente do Coração do Deus
Sangrante a balançar-lhe no peito. Uma Presque Mort apareceu atrás dele,
trajando o preto habitual e segurando um incensário que espalhava um fumo
denso. Faltava-lhe uma mão e tinha o toco pejado de cicatrizes vividas. Era
raro ver mulheres nos Presque Mort – antes, quem não fosse homem e
conseguisse canalizar Mortem teria aderido à Guarda Sepultada, se não
optasse simplesmente por tentar ignorar a chamada da nova magia da morte
– mas acontecia. Qualquer pessoa de qualquer género podia tornar-se um
Mort.
E a Guarda Sepultada já não era uma opção. Pelo menos, oficialmente.
Lore incidiu o olhar em Gabriel, imóvel e estoico a seu lado. Ela
provavelmente teria tentado ignorar as suas capacidades, se as suas
circunstâncias fossem mais convencionais. Os Presque Mort não se
esforçavam propriamente para que fosse divertido ser monge.
Junto à Mort, um sacerdote que Lore não reconheceu avançou para os
braseiros alinhados diante do estrado e acendeu-os com a chama da sua vela
de cera de abelha. Vestia de branco e não tinha cicatrizes. Nesse caso, seria
apenas um clérigo comum.
Ela observou atentamente Anton enquanto iam acendendo os braseiros.
Achava que alguém que tivesse sido tão horrivelmente marcado por eles
pareceria pelo menos um pouco nervoso, mas o Supremo Sacerdote
avançou sem hesitação para as brasas fumegantes sem a mínima hesitação.
Abriu-se uma outra porta na ponta oposta do estrado, maior do que a
primeira, incrustada com uma coroa dourada do sol em volta do lintel.
August transpôs a porta, com a coroa de raios na cabeça, uma capa de um
laranja-escuro sobre os ombros. O forro da capa era dourado, cintilando
quando desceu os escassos degraus para o altar diante do estrado e se
ajoelhou diante da multidão reunida.
Os movimentos do Rei Santo pareciam algo instáveis. Um tremor no
joelho, um leve agitamento nos dedos. Coçou por uma vez o pescoço,
ocultado pelo colarinho alto da camisa, após o que uniu as mãos num gesto
de prece.
E atrás dele, numa passada suficientemente lenta para perturbar o ritmo
da cerimónia, vinha Bastian.
O Príncipe Sol parecia ter passado toda a noite acordado – os olhos
estavam ligeiramente avermelhados, com rugas de cansaço por baixo –,
mas, de algum modo, nele isso ficava bem. O cabelo caía-lhe num ondulado
reluzente sobre os ombros e o leve vestígio de barba no maxilar parecia
mais robusto do que desmazelado. Vestia-se de modo igual ao do pai, com
gibão preto, camisa preta e calças pretas, mas a sua coroa era uma simples
faixa dourada sobre a testa, cravejada com rubis, e a capa era carmesim e
bronze. Lançou um olhar ocioso à corte reunida enquanto seguia August até
ao altar e baixou-se numa postura semelhante.
O rei tinha a expressão ocultada, com a cara voltada para as mãos
unidas, mas Lore apercebeu-se dos ombros a retesarem-se.
Bastian remexeu-se e afastou o cabelo da cara, hábil ao fazer com que o
gesto calculado parecesse completamente indiferente. Demasiado atraente e
consciente disso mesmo.
Como se tivesse lido os pensamentos dela, o Príncipe Sol levantou a
cabeça e fixou o olhar no dela. Curvou os lábios num sorriso.
Lore retribuiu o sorriso. A seu lado, Gabe revirou os olhos.
Agora que a realeza se ajoelhava, os outros cortesãos imitaram-nos,
ajoelhando-se suavemente sobre almofadas fofas dispostas diante dos
bancos. Gabe baixou-se com graciosidade e inclinou a cabeça para a frente.
Não correu com a mesma subtileza para Lore, que teve de ajustar a
forma como dobrava as pernas pelo menos por duas vezes para que a saia
não lhe puxasse o decote para baixo. Mas não praguejou. Pequenas
melhorias.
Quando toda a gente se ajoelhara devidamente, Anton levantou as mãos
na frente do santuário. A luz que entrava pela janela fazia as cicatrizes no
seu rosto parecerem recentes.
– Apollius, Senhor da Luz e da Vida, saudamos-Vos com o alvorecer,
como fazemos no primeiro de cada sete dias.
– Saudamos-Vos e pedimos o Vosso favor nos dias que se seguem –
murmuraram os cortesãos ali reunidos.
Lore sentia dificuldade em acompanhar. Lançou um olhar incisivo a
Gabriel – ele poderia ter-lhe dito que a plateia também participava.
Ele encolheu os ombros ao de leve.
À frente, a Presque Mort com uma só mão balançava o incensário ao
ritmo da voz de Anton. Fumo cinzento rodopiava em volta dos pés dela,
pairava sobre o chão para se enroscar em redor da saia e das botas de tacão,
envolvendo-se nos raios da coroa de August. Os braseiros acrescentavam
mais fumo, fazendo com que o santuário parecesse envolvido numa névoa
densa.
– Peço o Vosso favor e imploro pela Vossa proteção face às trevas –
prosseguiu Anton. – Pedimos-Vos que brilhe sobre nós a luz do Vosso
Reino Iluminado, onde esperais em glória.
Lore contorceu os lábios. O Reino Iluminado era a concessão da Igreja à
morte, o lugar onde achavam que Apollius esperava, para onde Ele fora ao
desaparecer. Quem fosse pio e seguisse os Opúsculos encontrar-se-ia lá com
Ele após a morte. Ocorriam-lhe poucas coisas mais entediantes.
– Imploramos pela Vossa proteção e prometemos a nossa lealdade –
reagiram os nobres. – Procuramos a luz do lugar onde reside o Vosso corpo
imortal.
O fumo do incenso alcançou-os, inebriante e denso. Lore esforçou-se ao
máximo por conter um espirro.
Anton baixou as mãos e depois a cabeça, curvando o queixo na direção
do coração de raios dourados que tinha ao peito. Uma pequena ondulação
conforme os cortesãos ali reunidos fizeram o mesmo. August e Bastian
também se curvaram, mas as posições da corte diante deles e o Supremo
Sacerdote davam a impressão de que todos faziam uma vénia à família
Arceneaux.
Ela sentiu uns olhos fixos em si. Anton, a espreitar sobre as cabeças
curvadas até fitar a dela, com algo de inescrutável na expressão.
Lore baixou o queixo.
– Juramos a nossa lealdade – proferiu Anton – e nenhuma outra
soberania toleraremos além da Vossa. Nenhuns outros reconheceremos
como deuses e denunciaremos quem o defender.
– Nenhuma outra soberania toleraremos – murmuraram os cortesãos – e
não aceitaremos outro que não Apollius e aqueles que Ele abençoou.
Aqueles que Ele abençoou. A família Arceneaux. Realeza e religião
enlaçadas num nó inextricável.
Lore voltou a remexer-se, sentindo as pernas entorpecidas a
pressionarem o chão duro.
– Regozijamo-nos com a Vossa luz – disse Anton, baixando as mãos até
então estendidas para as assentar no peito. Parecia a estátua do Deus
Sangrante no jardim e Lore teve quase a certeza de que isso era intencional.
– E aguardamos fielmente pelo Vosso regresso, quando o nosso mundo
estiver limpo de trevas e a postos. Pedimos-Vos que façais um recetáculo
para a Vossa luz.
– Pedimos-Vos que regresseis e nos torneis sagrados – murmuraram os
nobres reunidos. – Regressai do Vosso Reino Iluminado e fazei-o aqui.
O incensário fez mais uma rotação, espalhando fumo numa espiral no ar.
A seguir, Anton, a Presque Mort e o sacerdote com a vela recuaram.
O Rei Santo ergueu-se. A luz da janela atrás dele lustrava-lhe o seu
cabelo grisalho, iluminava os raios da coroa. Anton inclinou a cabeça na
direção do irmão, transmitindo a condução da cerimónia.
Deu-se um pequeno tremor na mão de August quando a ergueu.
– Gabriel e Eldelore Remaut, avancem, por favor.
Pelos deuses mortos e moribundos, não tinha passado pela cabeça de
ninguém darem-lhes uma ideia de como aquilo era suposto decorrer? Gabe
dissera-lhe que tinham de ser apresentados oficialmente, que pareceria
estranho se não o fossem, mas não tinham recebido quaisquer instruções
sobre como se processaria essa apresentação.
August arqueou uma sobrancelha, como se estivesse irritado com a
aparente confusão deles. Lore ponderou por breves momentos arrancar-lhe
uma daquelas granadas da coroa e enfiar-lha numa narina.
Gabe parecia tão surpreendido quanto ela. Os dois hesitavam, olhavam
um para o outro em silêncio. A seguir, com a graciosidade de sempre, Gabe
ofereceu-lhe o braço e saiu para o corredor, conduzindo-a até ao altar e às
expressões arrogantes dos dois Arceneaux que os esperavam.
Olhares curiosos acompanharam-nos. Lore não percebia se algum seria
amistoso, mas apostaria num não.
August sorria-lhes conforme eles se aproximavam, um sorriso frio que
nem por sombras se manifestava no olhar. Nada disse, agitando antes os
dedos num movimento que lhes indicou que se virassem para a
congregação.
Gabe tinha as faces a arder, levando a que as sardas discretas sobre o
nariz se realçassem. Mas fez o que lhe foi indicado, levando Lore a fazer o
mesmo, e virou-se para a corte. A primeira fila de nobres provavelmente
ouvia os dentes dela a ranger.
– Finalmente – comentou August atrás deles, elevando a voz para cruzar
o Santuário Norte. – A família Remaut regressa à Cidadela.
Fez uma pausa e, após um momento de silêncio absoluto, os cortesãos
reunidos aplaudiram de forma polida. O braço de Gabe estava tão tenso sob
a mão de Lore que quase tremia.
Ela apertou-o, na esperança de o reconfortar de alguma forma. Mas a
expressão de Gabe manteve-se imutável, como se nem desse sequer pela
presença dela.
– O Gabriel encontra-se num breve… hiato… dos seus deveres sagrados
para com os Presque Mort – prosseguiu August –, e residirá connosco
durante esta estação para apresentar a sua prima Eldelore à sociedade. Por
favor, façam com que se sintam bem-vindos.
Todos os cortesãos inclinaram as cabeças, expressões inescrutáveis,
desfocadas pela luz solar cada vez mais intensa que passava pelas janelas
do santuário. Lore assentiu em resposta, essencialmente por não saber o que
mais fazer, dado que mostrar-lhes os dois dedos do meio não lhe parecia um
comportamento adequado à prima de um duque.
– Ide em paz – declarou August, e com isso foram dispensados os fiéis
do Primeiro Dia. Os cortesãos levantaram-se, regressando às portas duplas
que davam para o carreiro e para o relvado. Vozes murmuravam e riam,
com a solenidade do ritual religioso a sumir-se à medida que o sol ascendia
no céu.
Lore olhou para Gabe, mas ele ainda parecia longe, com uma expressão
distante. Ao fim de uns instantes, perambulou na direção das portas com os
restantes nobres. Com um suspiro exausto, Lore começou a segui-lo.
Gabe parecia-lhe tão perdido ali. Quase tão perdido quanto ela.
A mão de August abateu-se sobre o ombro dela antes de poder dar um
segundo passo.
– Receio que as diversões da corte tenham de esperar – disse-lhe em voz
baixa. – Tens uma tarefa pela frente, Lore. Acompanha-me.
Capítulo 12

Dizia-se que o imperador bebia uma chávena de chá de


cicuta todas as manhãs, para poder viver mais tempo. Ainda
assim, morreu durante a noite, embora a maioria pense que
foi às mãos do seu filho, mais do que da doença.
– Último relatório de Gaspard Beauchamp,
espião auverrani no Império Kirytheano,
executado pelo Imperador Jax dois dias
depois de recebida a mensagem

G abe olhou para trás assim que August agarrou o ombro de Lore, como
se um sentido extra lhe tivesse indicado que prestasse atenção. Ao ver o
rei, estacou, uma rocha no mar agitado de cortesãos, de testa franzida.
August fez-lhe sinal com a mão para que seguisse caminho, falando
apenas suficientemente alto para que Gabe o ouvisse entre o crescente ruído
das conversas.
– Os seus serviços não são necessários, Duque Remaut. Vamos apenas às
câmaras mortuárias.
Lore remexeu-se sob a mão de August.
– Ele não pode vir, ainda assim? Eu…
– Acho que fui bem claro. – Apesar da intensidade das palavras, a forma
como August lhe agarrava o braço era delicada. Para quem olhasse, seria a
imagem de um rei benevolente, dando as boas-vindas mesmo à nobre de
mais baixo nível na corte cintilante. – Tu acompanhas-me. O duque não. –
Enfiou um dedo sob o queixo dela como se ela fosse uma criança teimosa. –
Quanto mais depressa fizermos progressos, mais depressa se reunirão.
Os seus lábios cingiram-se num traço branco, mas Lore conteve a
necessidade de se libertar com um safanão. Em vez disso, baixou a cabeça,
o mais graciosamente que pôde.
– Abra caminho, Vossa Majestade.
August resfolegou de surpresa.
– Muito bem – murmurou –, parece que uma erva daninha pode tornar-se
uma rosa, se a retirarmos da sarjeta.
Ela moeria por completo os dentes se continuasse a rangê-los com tanto
vigor.
Gabriel ficou a ver August levá-la pelo corredor, visivelmente
preocupado. Lore esforçou-se ao máximo por parecer confiante e calma.
Aquele era o preço a pagar para se manter ao largo das Ilhas Queimadas, e
dispensava a preocupação dele.
Quando desviou o olhar de Gabe, deu com Bastian.
O Príncipe Sol encontrava-se junto às portas, brincando com um grupo
de pessoas que ela recordava vagamente do baile de máscaras – sendo uma
delas Cecelia, a mulher que lhes oferecera beladona. Naquela manhã, tinha
os olhos dela vidrados, mas, fora isso parecia bem. Os médicos da corte
deviam mesmo merecer bem o que ganhavam.
O sol já bem alto dourava a pele de Bastian, realçando uma cicatriz sobre
uma sobrancelha e fazendo com que os seus olhos parecessem mais
dourados do que pretos. Havia neles algo de solene ao observar o seu pai a
levar Lore dali.
Ela não fazia ideia onde seriam as câmaras mortuárias. Eram outro sinal
de privilégio. Era exorbitantemente caro ser sepultado dentro da Cidadela,
em vez de numa das criptas menores nos limites de Dellaire – pouco mais
do que caixas de pedra com corpos enfiados dentro. Ela sabia que havia
plebeus particularmente devotos que começavam a poupar para pagar um
lugar nas criptas citadinas desde que os filhos nasciam.
O Rei Santo caminhava suficientemente devagar para dar a ideia de
descontração, mas tinha o maxilar tenso sob a barba grisalha aparada.
– A maioria dos corpos do ataque mais recente foi examinada e
descartada – disse ele. – Mas os Presque Mort estiveram a trabalhar toda a
noite e cavalgaram arduamente para trazerem um dos cadáveres, para que
tu… experimentes.
Ela sentiu a palma da mão suada. Limpou-a à saia.
– Ataque mais recente?
August assentiu com a cabeça.
– Houve outro na noite passada.
Três aldeias, todos mortos. Lore engoliu o nó que lhe surgiu subitamente
na garganta.
Instalou-se um silêncio desconfortável enquanto August a levava pelo
carreiro de volta à Cidadela; as portas duplas fecharam-se depois de as
terem transposto. O interior parcamente iluminado era desorientador depois
do sol matinal de verão.
Uma vez lá dentro, August parou, respirando a custo como se a
caminhada pelo jardim o tivesse esgotado. Enfiou a mão no interior da capa
reluzente e retirou de lá um cantil, bebendo rapidamente um trago.
Um aroma a ervas infiltrou-se no nariz de Lore, que o reconheceu de
imediato. Aparentemente, bebericar veneno por diversão não se confinava
apenas aos nobres mais jovens.
– Espero que quem lho fornece saiba o que faz – comentou Lore, num
tom discreto.
Olhos negros incidiram nela, frios e avaliadores.
– Preocupa-te com os teus assuntos, feiticeira da morte – disse August,
guardando o cantil –, e eu preocupo-me com os meus.
O Rei Santo percorreu descontraidamente um corredor e depois guinou
de repente para uma pequena entrada entre duas enormes pinturas a óleo de
Apollius. As pinturas eram anteriores à Queda dos Deuses – o peito do deus
estava intacto. Ainda não lhe fora arrancado o coração pela Sua mulher
vingativa.
Com uma espreitadela rápida para o vestíbulo, August empurrou a porta
para a abrir e revelou um corredor estreito, ladeado por nichos em arco
encimados por raios de sol dourados. Havia estátuas de Apollius nas
alcovas, de puro mármore branco, cada uma numa pose diferente. Mãos
estendidas. Mãos no peito. Cabeça inclinada para cima, ou a olhar para
baixo com um sorriso benevolente.
Palavras numa caligrafia floreada estavam entalhadas sobre a porta
arqueada ao fundo do corredor, de tal forma ornamentadas que Lore mal as
distinguia. Semicerrou os olhos na escuridão.
– As nossas mortes permanecem nossas – entoou August, lendo em voz
alta.
A sensação entorpecedora e nervosa na base do pescoço dela estendeu-se
pelos ombros.
A porta ao fundo do corredor rodou em silêncio para dentro para uma
leve luz cinzenta e uma escadaria de pedra simples, descendo apenas uns
poucos degraus até dar para um túnel.
Cortês, o Rei Santo estendeu a mão.
– Vem.
Lore aceitou a mão do rei e permitiu que ele a conduzisse para a
escuridão. Ela odiava túneis. Felizmente, aquele era curto. À frente, um
casaca de sangue solitário encontrava-se de guarda no limite do ponto onde
o túnel se abria para o que parecia ser um espaço à luz do dia.
Não era um casaca de sangue como os outros, reparou Lore quando se
aproximaram. Lapelas douradas brilhavam na sua jaqueta vermelha, a
baioneta e espada no flanco imaculadamente polidas. Não deu qualquer
indicação de ter reparado sequer neles, mas quando August se aproximou,
curvou a cabeça e afastou-se para o lado.
– O Guarda Sagrado – informou August ao passarem. – Um posto
altamente cobiçado, entregue apenas àqueles que se mostram valorosos a
nível físico e espiritual e àqueles cuja lealdade eu possa assegurar. – Olhou-
a de esguelha. – Não têm muitas oportunidades de usar as armas, mas é
certo que sabem fazê-lo.
Se não estivesse tão perturbada com a visão das criptas, Lore poderia ter-
se questionado se aquilo seria uma ameaça. A divisão ao fundo do corredor
era ampla e circular, e o teto era altíssimo, encimado por uma claraboia de
vidro que filtrava o sol da manhã em faixas facetadas. Devia ser o que Lore
vira a brilhar na véspera, no centro da Cidadela.
A claraboia era impressionante, mas não tanto quanto as próprias
câmaras mortuárias. Ascendiam como torres de pedra, estendendo-se quase
até ao vidro no alto. Havia escadas entalhadas nas laterais das câmaras, em
caracol ascendente, interrompidas por plataformas que davam para
pequenas portas – a única forma de lá introduzir os cadáveres. No cimo de
cada câmara, roseiras muito grandes tentavam chegar ao sol. As rosas eram
as únicas coisas vivas no interior das câmaras, além de August, Lore e o
guarda no túnel.
Lore perdeu um momento a concentrar-se na sua parede mental, todas
aquelas árvores que travavam a sua consciência da Mortem. Troncos e
folhas e céu azul para lá disso.
Algumas das portas das câmaras imponentes encontravam-se encerradas,
mas a maioria permanecia aberta, pequenas janelas para a escuridão no
interior. Essas estavam vazias. Até entre os nobres havia quem não
conseguisse pagar uma câmara na Cidadela. A maioria das portas abertas
estava junto ao topo – destinavam-se apenas à família Arceneaux.
– Tentámos guardar um corpo de cada aldeia – informou August.
Avançou com determinação até à torre mais próxima e para a porta fechada
na sua base. Naturalmente, ninguém desperdiçaria uma câmara no topo com
um aldeão, por muito que a sua morte se tivesse revelado estranha. – Os
restantes foram destruídos.
– Quanto custa uma destas? – perguntou Lore, discretamente, ainda a
olhar para as câmaras.
O rei ergueu o olhar e resfolegou.
– Mais do que alguma vez viste ou hás de ver, rapariga. Mantém os
olhos postos num dos caixões do lado de fora da cidade. – Bateu na parede
de pedra. – Anton? Estamos aqui.
O Supremo Sacerdote abriu a porta, semicerrando os olhos face à luz.
Não disse nada, limitou-se a afastar-se para o lado para deixar entrar o
irmão. Assentiu educadamente com a cabeça a Lore, embora ao mesmo
tempo um músculo no seu queixo se retesasse.
O interior da câmara era escuro e fresco. Os olhos de Lore levaram um
momento a adaptar-se, mas, assim que isso aconteceu, ela recuou
involuntariamente um passo, chocando com a parede. Outro Apollius de
pedra olhava-a de cima. Os pés da estátua estavam apoiados na retaguarda
da câmara, as costas curvadas contra o teto, para que o seu peito se abrisse
sobre o plinto, os olhos ao nível da porta. O seu rosto estava
assustadoramente desprovido de expressão e tinha as palmas das mãos com
granadas cravadas, apontando para a laje ao centro com punhados de
sangue adornado com joias.
E na laje jazia o corpo de uma criança.
Lore sentiu a bílis a subir-lhe até à garganta e a visão a ficar turva. A
criança na laje não era nada parecida com Cedric – era um rapaz mais novo,
nove ou dez anos no máximo, e o seu corpo encontrava-se completo e
imaculado. Mas, ao olhar para ele, foi quem ela viu. O seu amigo, que ela
só tinha desejado que regressasse por uns momentos.
Céus, e ali estava ela na iminência de voltar a fazê-lo.
– Negócio horrível – murmurou August. Ela não conseguiu interpretar
bem a expressão dele sob a luz ténue, mas a voz soava toldada por genuíno
lamento. – As minhas desculpas por ser esta a nossa primeira experiência,
Lore. Achámos que talvez uma criança fosse… mais fácil… de reanimar.
Dado que já o fizeste antes.
Ela encolheu-se.
Anton abanou pesarosamente a cabeça.
– Tanto potencial desperdiçado.
Ao reanimar Cavalo, fizera-o por puro instinto, seguindo um padrão que
tinha parecido estar tão arreigado em si como o mapa das catacumbas que
sentia por detrás dos olhos. Tudo o que tinha a fazer era seguir de novo esse
padrão. Deixar o corpo tomar conta das operações, tentar não pensar.
Lore cerrou e descerrou os punhos, e pestanejou até ter a certeza de que
não ia chorar. Por regra, não se permitia chorar fosse pelo que fosse. Se
começasse, não sabia se conseguiria parar.
Anton saiu por uns momentos e regressou trazendo uma roseira num
grande vaso. Pousou-o – era pesado para ser transportado por alguém da sua
idade, mas não parecia custar-lhe – e recuou para entre as mãos de pedra de
Apollius.
– Ora bem, não te preocupes em fazer as perguntas – disse August. –
Indica-lhe apenas que siga as minhas ordens e depois se quiseres podes
esperar lá fora.
Lore não estava a ouvir, mas ainda assim assentiu com a cabeça.
O rei apontou com uma mão para o cadáver sobre a laje.
– E assim começamos.
A Mortem era densa ali, ela quase lhe sentia o cheiro – vazia, fresca e
pura. O cheiro a céu durante uma tempestade, era como sempre o tinha
encarado. O espaço entre trovão e relâmpago. Lore fechou os olhos com
força, imaginando de novo a floresta, um ponto de referência onde se
firmar.
O cadáver da criança fundiu-se com o de Cedric na mente dela e
restringiu-lhe os pensamentos, dificultou a concentração. Fora traída,
aprisionada e obrigada a usar um poder horrível que preferia esquecer para
ajudar um rei que parecia marimbar-se para quem quer que fosse que
estivesse do lado de fora dos seus muros reluzentes.
Mas Lore tinha nascido com a capacidade de canalizar Mortem. Com as
trevas a correrem-lhe congruentes nos ossos. Sempre fora apenas um
ferimento, uma falha, algo a temer e do qual fugir. Talvez agora pudesse
utilizá-lo para algo positivo.
Abriu os olhos, inspirou fundo e esvaziou os pulmões. Lentamente,
quase sem pensar, estendeu os braços, ficando pálida, fria, necrótica.
– Deus Sangrante segura-nos na Sua mão ferida – murmurou Anton. As
palavras eram feitas para o medo, mas o tom não. Era quase de ânsia.
Lore não dispunha de tempo para pensar nisso. A sua visão reduziu-se a
tons cinzentos, luz branca na forma do rei e do sacerdote, nada mais do que
um vazio escancarado onde o corpo da criança jazia sobre a laje. A enorme
estátua de Apollius parecia monstruosa em tons de cinzento e preto, a pedra
morta iluminada por um feixe de luz.
A queimadura em forma de lua na palma da sua mão brilhava no escuro
enquanto Lore mantinha as mãos sobre a laje. A morte da criança era
distante, o instante, o poder horrível da mesma há muito partido. Sentia-o,
mas não conseguia tocar-lhe; linhas negras vacilavam no ar sobre o corpo,
mas não eram suficientemente grossas para que as agarrasse.
A morte mergulhara mais fundo.
Lore aproximou-se até as suas mãos pairarem pouco acima do cadáver.
Na vida, havia um anel de energia em redor do corpo. Spiritum, que só
Apollius conseguia canalizar – o mesmo poder que Ele alegadamente
entregara à linhagem Arceneaux. Rodeava uma pessoa como a coroa de um
sol em miniatura e, no momento da morte, ardia, explodia, uma estrela
moribunda. Foi o que ela viu quando Cavalo morreu, aquilo a que se
agarrara. Spiritum transformado em Mortem, capturado no preciso
momento do processo de alquimia, o mesmo equilíbrio precário que podia
fazer o veneno levar a uma imortalidade horrível.
Mas essa explosão de energia dissipava-se logo a seguir à morte,
mergulhava bem fundo no corpo e acabava por definhar. Se Lore queria
reanimar este corpo, teria de procurar essa minúscula centelha de Mortem
que ainda continha. Agarrar a morte e extraí-la.
Levou-lhe um momento, os dentes cerrados com força, os dedos
necróticos baixando até assentarem sobre o peito imóvel. Por um momento,
Lore achou que não iria sequer encontrá-la.
Então… um leve vestígio de trevas, um fio fino da morte latente.
Lora agarrou-o como se fosse uma tábua de salvação e enroscou a linha
de Mortem na mão, puxando-a com a destreza de quem enfia uma linha no
buraco de uma agulha. Fluiu do cadáver para ela, rodopiando nas suas
veias, imiscuindo-se nela.
O seu coração parou. Falhou uma batida.
Desviou a mão para o lado, com a Mortem a fluir de si para a roseira que
Anton trouxera para a câmara. As flores murcharam de imediato, a terra
secou e empalideceu.
Lore abriu os olhos, banindo o mundo em tons cinza em favor do
verdadeiro. As suas veias estavam enegrecidas até ao cotovelo, as pontas
dos dedos brancas e frias como um cadáver. O corpo na laje encontrava-se
imóvel, sem alterações visíveis que assinalassem o que ela fizera.
Era um ser humano, não um animal. Ela tinha de lhe indicar uma
direção. E, apesar de August lhe ter dito o que fazer, não se recordava do
que isso fora, pelo que fez a pergunta para a qual todos queriam a resposta.
– Conta-nos o que aconteceu – sussurrou, um som rouco e destroçado a
sair-lhe da garganta ressequida pela morte.
August sobressaltou-se, contornando-a de sobrolho cerrado.
– Não serás tu a levar a cabo este interrogatório – disse ele, no tom mais
régio que conseguiu. – Dei-te instruções. Não queiras fazer mais do que o
que deves.
Mas isso era irrelevante. O corpo na laje permanecia imóvel e em
silêncio.
Ela fracassara. Era a única que podia ajudar e fracassara.
– Lamento – disse Lore, sentindo-se inútil diante do desagrado do rei. –
Fiz o mesmo que antes, penso eu, mas foi há muito tempo…
Foi interrompida por um ruído profundo e áspero de uma respiração a ser
arrancada de pulmões ressequidos.
O som era inconfundível. Lore, August e Anton entreolharam-se sobre o
cadáver, sob o rosto impassível de Apollius, a bocarra escancarada do seu
peito de pedra.
Um rumorejar quando o cadáver se moveu. Um estalido quando se
sentou.
O corpo morto abriu os olhos e Lore não conseguiu evitar olhar para
eles, por muito horríveis que fossem – o seu olhar era atraído para lá,
mesmo quando o terror se infiltrava nos seus ossos, mesmo quando o poder
que tornava aquilo possível mantinha os olhos dela opacos e as veias
negras, parecendo tão morta quanto ele.
Os olhos da criança estavam completamente negros – sem branco, sem
íris. Veias enegrecidas sobressaíam em redor deles, tal como as veias em
redor dos dela, tal como as cicatrizes em volta da pala do olho de Gabe. A
criança abriu uma boca vazia.
E apesar de os seus lábios não se mexerem, começou a murmurar.
Capítulo 13

Tentar alcançar mais poder do que nos foi oferecido é o


maior pecado.
– O Livro da Lei da Morte, Opúsculo 78

D edeinício, o murmúrio não passava de um sussurro, uma simples sugestão


linguagem sem qualquer detalhe incluído. O som recordava a Lore
moscas a zumbir, poeiras sufocantes, a suave queda da carne apodrecida a
soltar-se do osso. Mas, ao fim de um momento, formaram-se palavras a
partir do ruído disforme.
Apenas uma frase, repetida vezes sem conta, e parando de repente, presa
numa replicação constante. As palavras começaram por soar arrastadas e
depois ganharam contornos mais definidos, tornaram-se firmes como um
exercício de elocução apesar da imobilidade da língua morta, dos lábios
mortos.
– Eles despertaram – sussurrava o cadáver imóvel. – Eles despertaram
eles despertaram eles despertaram…
O rei empalideceu. Parecia quase surpreendido, surpreendido e nervoso,
quase como se não esperasse realmente que aquilo fosse resultar.
Rodou na direção do seu gémeo.
– Isto quer dizer…
Anton ergueu uma mão e o seu irmão cerrou a boca, travando o resto da
frase. O olhar do Supremo Sacerdote desviou-se do cadáver para o rosto de
Lore, avaliando.
Lore fitava os olhos negros da criança morta-viva, a abertura daquela
boca imóvel e sussurrante.
– Para – arquejou. – Por favor, para.
O corpo caiu para trás, de olhos ainda abertos, membros frouxos.
Ela cerrara as mãos de repente, tal como fizera com Cavalo, tal como
fizera com Cedric, quebrando as linhas de Mortem que a uniam ao cadáver.
E, em seguida, fugiu.
A voz de August perseguiu-a porta fora, ecoando em toda aquela pedra,
mas Lore não quis saber do rei. Tropeçou na bainha e caiu de joelhos, que
ficaram esfolados por baixo da saia. Inspirou e expirou com dificuldade,
esforçando-se ao máximo por aguentar a bílis na garganta. A pele branca e
necrótica nos seus dedos ia recuperando lentamente o calor da vida, o
cinzento das veias esmorecia a cada respiração. O coração saltava-lhe no
peito, batendo com tal força que quase doía.
– Levanta-te, rapariga.
A voz de Anton estava tão fria como a pedra que sentia contra as palmas
das mãos. Lore passou a parte de trás do pulso sobre a boca, demorando-se
deliberadamente antes de se endireitar e lançar um olhar fulminante ao
Supremo Sacerdote. O sol que entrava pela claraboia iluminava-lhe o
cabelo grisalho como um halo e obscurecia-lhe as feições.
– A postos para a segunda etapa? – Lore quase cuspiu a pergunta. Com a
humanidade de novo a tomá-la, expulsando a morte, o mesmo se passava
com uma raiva virtuosa que não sabia explicar: pensar naquela criança,
como perturbara o seu pacífico repouso depois de lhe ter ocorrido algo
terrível, levava a vergonha a percorrer-lhe a espinha. – Há mais cadáveres
que queiram incomodar enquanto temos tempo? Se calhar dá para
escalarmos até ao topo e ver se consigo convencer algum marquês morto a
cantar o hino nacional…
– Basta – murmurou Anton, cuja expressão continuava oculta na sombra.
– Foi exatamente para isto que te trouxemos aqui. Não é altura para
começares a ter consciência.
– Que lindo, vindo de um sacerdote.
– Já te disse. O Deus Sangrante compreende que por vezes as regras
devem ser contornadas em prol do bem maior. Pela glória do cumprimento
das Suas promessas. – Anton ergueu a mão, com um dedo a traçar um dos
raios de sol do seu pingente. – Ele perdoa sempre os Seus fiéis, sempre. Por
tudo.
Lore engoliu em seco. Cerrou os punhos sobre a saia. A vergonha não se
dissipou, mas conseguiu empurrá-la para baixo, para um lugar onde ficaria
até mais tarde, até que pudesse lidar com ela.
– Falhei – disse ela, abanando a cabeça, regressando ao assunto em mãos
em vez de se focar num tema existencial que ainda não conseguia analisar.
– Não ficámos a saber absolutamente nada sobre o que se passa nas aldeias.
Eles despertaram. Ainda reverberava na sua cabeça, aquele sussurro
horrível vindo de uma boca morta. Eles despertaram.
Ela perguntara ao rapaz morto o que lhe acontecera, e não achava que os
mortos conseguissem mentir. Aquilo seria algum tipo de resposta, mas sem
fazer qualquer sentido.
– Não interessa, nesta primeira tentativa. – August acenou com uma mão
ao transpor a pequena porta da câmara, baixando-se para que a sua coroa
não batesse no lintel. Apesar do ar confuso e quase apavorado que se
apoderara dele ao ouvir o cadáver falar, agora parecia animado, quase
excitado. – Fizeste-o falar. Era o que queríamos.
Ela franziu o sobrolho.
– Mas eu não…
– A seu tempo – disse August. Vindo de outra pessoa, poderia parecer
reconfortante, mas, da parte dele, parecia apenas o prolongamento de uma
sentença. – Vamos tentar de novo.
– O corpo não vai aguentar – disse Anton, serenamente. – Terá de ser
levado.
– Queima-o. – Outro aceno de mão de August, negligente. – Haverá
outro. Sim. – O olhar de August incidiu em Lore, e depois desviou-se. –
Agora que Kirythea começou, não conto que pare.
– Então, continua convencido de que é Kirythea? – questionou Lore.
– Quem mais poderia ser? – August sacou do seu cantil do interior da
capa e bebeu mais um gole. Anton enrugou o nariz, mas o Supremo
Sacerdote não comentou as indiscrições do irmão. – E por falar em
Kirythea… foste à soirée do Bastian na noite passada?
– Claro que sim. – Lore olhou para a porta da câmara atrás dele. Estava
suficientemente aberta para que visse o corpo prostrado no plinto. – Mas
não descobri nada de importante, portanto não foi exatamente um sucesso.
– A seu tempo – repetiu August. – A seu tempo hás de descortinar algo.
O pingente de Anton balançou, a granada pingo de sangue a cintilar.
– Bem – disse ele, reorientando a conversa para longe de Bastian –, não
há motivo para preocupações. Tentaremos de novo. Talvez um cadáver
diferente tenha mais a dizer. Afinal, este era apenas uma criança.
August assentiu uma vez com a cabeça.
Lore voltou a sentir náuseas.
– Então, eu… o que querem que faça enquanto…
– Desfruta da Cidadela, Lore. – August virou-se, regressando por onde
tinham vindo, pelo túnel estreito e pelo corredor atrás ladeado por alcovas.
– És um elemento da corte devidamente apresentado. Faz amigos, arranja
amantes, diverte-te enquanto te enquadras. Trata é de fazer isso mantendo-
te sempre perto do meu filho.
Atrás de August, os músculos da face de Anton que não tinha cicatrizes
retesaram-se.
– E aviso-te quando tivermos outro cadáver para despertares –
prosseguiu August. – Estou certo de que não demorará.
Lore seguiu o rei de volta para o túnel, sem saber ao certo o que mais
fazer. O Guarda Sagrado, reparou ela, uma vez mais nem deu ar de
reconhecer a presença deles. A ponta da baioneta cintilava, terrivelmente
afiada, sob o sol que passava pela claraboia.
Ela começou a puxar fios do seu vestido feito à medida.
– Vossa Majestade, sei que é suposto aproximar-me do Bastian, mas, se
eu tivesse uma diretiva, alguma pista que fosse sobre o tipo de informação
que julga que ele anda a passar…
– Já recebeste as tuas diretivas. – O Rei Santo subiu as curtas escadas ao
fundo do túnel, com os nichos que continham todos aqueles Deuses
Sangrantes a reluzir como pequenos sóis. – Estás a querer dizer que não te
achas à altura da tarefa?
As implicações disso não precisavam de ser proferidas. Ilhas Queimadas
se tivesse sorte, a pira se tivesse azar.
– Não. – Lore abanou a cabeça. – Não, eu estou à altura.
– Ótimo. – August virou-lhe as costas e percorreu o corredor em
passadas largas, com a capa cor de laranja e dourada que envergava nas
orações matinais a esvoaçar atrás de si. Não lhe tinha dado um prazo para
um relatório, reparou Lore. Aparentemente, não se importava de esperar até
ela ter algo em concreto para lhe contar.
As portas das criptas fecharam-se suavemente atrás dela. Quando Lore
se virou, Anton espreitava-a com o seu olho cintilante. Então, com um
inclinar do queixo, perguntou-lhe:
– Que idade tens, Lore?
Ela franziu as sobrancelhas, com a confusão a gerar uma resposta rápida.
– Vinte e três.
– E o teu aniversário é perto do solstício de verão, correto? Estamos no
ano da tua Consagração.
O facto de ele saber tanto sobre si deixava-a desconfortável. Assentiu
uma vez mais com a cabeça e começou a caminhar até ao final do vestíbulo
dourado, rumo ao resto da Cidadela.
Anton caminhou calmamente ao lado dela.
– Temos de assegurar que terás uma cerimónia adequada, dado que agora
fazes parte da corte. Mesmo que, presentemente, isso aconteça sob falsos
pretextos.
– Não é necessário, de todo.
– Oh, eu acho que é. – Ele passou por ela num farfalhar de túnicas claras,
abrindo a porta antes de Lore a alcançar. – O Bastian deve andar por aí pelo
relvado. Vai procurá-lo.
Dada a ordem, Anton deslizou para as profundezas da Cidadela,
dirigindo-se a quaisquer deveres sagrados que o ocupassem durante o dia,
deixando-a sozinha no corredor das criptas.
Por momentos, ficou simplesmente ali parada, entre todos aqueles
Apollius de pedra de peitos vazios e mãos plenas de sangue grená. A seguir,
vagueou até ao fundo do corredor, saindo para a vastidão da Cidadela.
Voltou pelo mesmo caminho, regressando à porta que dava para o espaço
verde e para o Santuário Norte. Não havia mais ninguém nos vestíbulos,
estando todos os cortesãos dispersos a fazer o que quer que fizessem nos
seus imensos tempos livres. Ainda bem. A sua mente estava demasiado
emaranhada para passar por uma prima de duque convincente.
Recebera uma ordem direta para procurar Bastian, mas levaria o seu
tempo. Pelos vistos, era coisa que não lhe faltava.
O sol ia alto no céu e apresentava-se suficientemente brilhante para a
obrigar a semicerrar os olhos. Desviou-se de imediato do caminho, com os
pés a apontar para a floresta bem cuidada à esquerda dos caminhos de
pedra. Não era uma floresta genuína – fora planeada até ao pormenor de
cada folha, desenhada com o maior dos cuidados, sem nada de selvagem.
Mas a parecença era suficiente.
Deteve-se assim que se viu debaixo das árvores, fechou os olhos e
inspirou fundo o verde e a terra. Dentro das muralhas da Cidadela o cheiro
era tão limpo, uma diferença na qual só agora reparava verdadeiramente.
Estava habituada aos odores de multidões de gente empilhada, de mar
salgado, de fuligem e de lixo. Mas, ali, o ar tinha um cheiro fresco e puro,
como se fosse esfregado todas as manhãs.
Com um suspiro, Lore sentou-se pesadamente sobre a relva. Manchas
verdes mancharam-lhe quase de imediato os joelhos e ela praguejou,
posicionando as pernas à sua frente apesar de o estrago já estar feito. Outro
suspiro e deixou-se cair de costas, a cabeça aconchegada pelo solo mole.
Fechou os olhos; a luz do sol estival filtrada pelos ramos iluminava-lhe a
rede de veias nas pálpebras, um mapa vívido de vasos sanguíneos.
Recordava-lhe as catacumbas. Aquela consciência no limite do seu
alcance, empurrada até à distância suficiente para a deixar funcionar. Era-
lhe difícil acreditar que vivera tanto tempo sem a barreira que Gabe a
ajudara a erigir. Era como se, ao canalizar Mortem quando reanimou
Cavalo, tivesse finalmente aberto uma comporta. Estar entre as muralhas da
Cidadela apaziguava isso um pouco, mas a sua sensação era ainda mais
intensa do que antes, desenvolvendo-se com a passagem dos dias.
A cada dia que a aproximava mais do seu vigésimo quarto aniversário.
Reanimar a criança morta chocara com o seu escudo mental e, apesar de
este continuar bem cingido, quase sentia o sabor da Mortem ao fundo da
garganta, vazia e como cinzas. Sentia comichão nos dedos, como se os fios
que enrolara em redor deles lhe tivessem deixado uma queimadura
indelével na pele, tão clara como a sua cicatriz em forma de lua.
Pressionava-a por todos os lados, um vazio invasor, uma tempestade vasta e
terrível de nada.
Era o que tinha de tão horrível, na verdade. A falta de tudo. A morte era
um precipício escancarado, um buraco sem fundo. Lore desejava ser capaz
de aceitar a fé simples que a Igreja ensinava, ser capaz de achar que havia
um Reino Iluminado quando aquela vida terminasse.
Não valia a pena. Mesmo que existisse, nunca o veria.
Estremeceu. Apesar do ar puro, das boas roupas e da comida abundante,
apesar da ilusão de segurança que lhe facultava estar sob a proteção do rei,
a perspetiva de despertar outro cadáver quase bastava para a levar a fugir
para as docas, até Val e Mari, e implorar-lhes que a aceitassem de volta.
Perdoar-lhes-ia tudo, se não tivesse de voltar a usar a Mortem.
– Fodam-me – praguejou baixinho.
– Vais ter de pedir com mais delicadeza.
Ela abriu os olhos de repente – uma forma humana escura debruçava-se
sobre si, com o sol por trás a ocultar-lhe as feições. Mas, então, a silhueta
sem nome endireitou-se e ela detetou um vestígio de um sorriso irreverente,
o movimento de um caracol escuro.
Os olhos de Bastian incidiram nas manchas de erva nos joelhos dela.
– Mas se calhar já alguém aceitou a proposta?
Bem, já não teria de ir procurar Bastian. O Príncipe Sol encontrara-a.
Lore levantou-se apressadamente, sacudindo relva do cabelo e tentando
em vão encontrar uma posição que escondesse as manchas verdes.
– As minhas sinceras desculpas, Vossa Alteza… ah… Santo…
– Só Bastian, por favor – avançou o Príncipe Sol, interrompendo a
atrapalhada busca dela pelo título adequado. – E não é preciso pedir
desculpa. A primeira estação de alguém na corte costuma estar pejada de
indiscrições.
– Temo que a minha única indiscrição aqui tenha sido… adormecer. –
Lore acenou com a mão na direção da cobertura facultada pelas árvores,
iluminada pela suave luz dourada do sol acima. – Está um dia tão agradável
e deitámo-nos tão tarde ontem, quando hoje tínhamos de acordar com o
nascer do sol…
– Hás de habituar-te. – O sorriso de Bastian enrugava-lhe os olhos. Não
eram pretos, como ela inicialmente pensara. Vistos de perto, eram talvez de
um tom mais claro do que o seu cabelo escuro, cor de uísque. – Consta-me
que o meu pai te levou às criptas. Surpreende-me que te tenha satisfeito a
curiosidade, para ser sincero… muitos cortesãos querem vê-las quando
chegam à Cidadela, mas August costuma negar os pedidos de visitas
guiadas.
Ele era bem mais observador do que era conveniente.
– Ele perguntou-me pela minha mãe – explicou Lore de pronto, mal
pensando nas palavras antes de lhe saírem pela boca. – A saúde dela está…
está fraca e anda a pensar na possibilidade de uma câmara na Cidadela
quando falecer.
Bastian arqueou uma sobrancelha.
– Lamento saber – disse ele. – Desculpa-me se falo de dinheiro de uma
forma tão direta, mas não sabia que a família Remaut tinha parentes com
posses suficientes para ponderar uma câmara na Cidadela. A maioria dos
nobres menores opta pelas criptas comuns logo às portas da Ala Nordeste…
são de longe as mais agradáveis dos cemitérios exteriores.
Lore brindou-o com o que esperava que fosse um sorriso confiante,
embora o interior da sua mente soasse como as buzinas que ecoavam nas
docas quando o estado do tempo se alterava.
– Temos andado a poupar.
Ele ainda sorria, mas havia algo de avaliador naqueles olhos castanho-
dourados.
– Vocês e toda a gente. Que mulher pia deve ser a tua mãe, para ser tão
boa cidadã mesmo na morte.
O tom cortante dele levou-a a sentir-se segura em responder à altura.
– É mesmo uma pena que alguém tenha de pagar um preço exorbitante
para ser bom cidadão.
O Príncipe Sol soltou uma risadinha, ainda cortante – mas já sem incidir
nela, antes uma espada que ambos brandiam.
– Uma pena, efetivamente. O suficiente para levar uma pessoa a pensar
que a Igreja não se importa muito em assegurar que todos os pios alcancem
o Reino Iluminado, com os corpos intactos.
– Só os pios que podem pagar.
– Precisamente. – Bastian ofereceu-lhe o braço. – Anda. Acompanha-me
até aos estábulos. Se alguém perguntar pelas manchas de relva, dizemos que
caíste de um cavalo.
Ela pensou na mulher que vira com ele nos jardins na véspera, os lábios
dele no ombro dela. Se alguém a visse com Bastian e as manchas verdes na
saia, a conclusão que retiraria não teria nada que ver com esse tipo de
cabriolas.
Quando aceitou o braço do príncipe, sentiu os músculos dele a moverem-
se sob a manga de seda. Mais definidos do que esperaria de um mimado
membro da realeza; uma rijeza incongruente, como a cicatriz que lhe
cruzava a sobrancelha e os calos nas mãos.
Lore e o Príncipe Sol caminharam descontraidamente pelos carreiros
abertos na floresta, trilhos serpenteantes cuidadosamente planeados para
parecerem naturais, embora não o fossem de todo. Uma leve brisa agitou o
cabelo descaído de Bastian, cujas ondas negras balançavam sobre os
ombros dele – um tudo-nada demasiado compridos para estarem na moda,
embora ela calculasse que como quer que Bastian usasse o cabelo, toda a
corte o imitaria em menos de um mês. Ele cheirava a vinho tinto e perfume
caro cujas notas o nariz destreinado de Lore não era capaz de detetar.
– Tenho insistido bastante com o meu pai para que elimine as taxas
associadas a um enterro na cripta – contou-lhe Bastian conforme
contornavam outra curva, com o limite da floresta a aparecer mais adiante
–, mas ele revela-se intransigente na justificação de que necessitamos do
dinheiro para a guerra iminente com o Império Kirytheano.
Lore sentiu os ombros tensos, mas manteve uma expressão impassível.
– Oh? – murmurou. – Ele acha que a guerra é iminente?
– Desde que me lembro que ele acha que a guerra é iminente.
– O Império tem-se aproximado com firmeza. – Suficientemente perto
para ela já há anos ouvir rumores nas docas sobre uma possível guerra,
receios de recrutamento obrigatório e de comércio impedido.
– E, no entanto – frisou Bastian –, nunca houve uma invasão.
– Talvez aguardem por algo. – Lore manteve o olhar apontado para a
frente e um tom de voz ligeiro. – Informações, quiçá. Um momento
oportuno.
– Informação seria algo difícil de adquirir. – Os olhos dele incidiram
nela. – August confia apenas a poucos os segredos militares. Nem sequer eu
conheço a maioria deles.
Ela forçou uma gargalhada.
– Por certo que isso não será verdade. É o herdeiro.
– E como ele odeia isso.
Passearam em silêncio por mais uns momentos, a palma da mão de Lore
suada na manga de Bastian. O tecido era macio e ondulante e
provavelmente revelaria manchas de suor quando ela afastasse a mão.
– Havendo ou não uma guerra iminente, considero deplorável cobrar aos
cidadãos por um enterro decente. Deveria pelo menos haver exceções para
circunstâncias atenuantes. – Bastian espreitou para ela pelo canto do olho. –
Por exemplo, toda esta confusão com as aldeias.
Ela cravou os dentes nas bochechas, dando voltas à cabeça em busca de
uma forma de descobrir mais que não parecesse suspeita. August dissera
que a maioria dos corpos das aldeias tinha sido descartada – ou seja,
cremada, independentemente das suas escolhas pessoais em termos de
enterro. Montessombra e Orlimar eram aldeias pequenas onde, na maioria,
os habitantes eram lavradores que cultivavam o que comiam. Segundo os
Opúsculos, acedia-se ao Reino Iluminado no estado em que o corpo se
encontrasse, pelo que ser cremado levava a que nem sequer se entrasse. A
Igreja não iria preocupar-se em recolher a taxa de um enterro numa cripta
para aldeões pobres.
– Surpreende-me que a Igreja não defenda práticas fúnebres mais justas
– comentou Lore. – A entrada no Reino Iluminado deveria assentar na
devoção, não no dinheiro.
– Em especial tendo em conta que os nobres não verão sequer o lintel do
Reino, com o corpo inteiro ou não. – Bastian sorriu com malícia. – A Igreja
e os casacas de sangue podem fechar os olhos à quantidade de veneno que
entra na Cidadela, mas duvido que Apollius o faça.
Lore cerrou os dentes, pensando em Cecelia e na sua taça de beladona,
no cantil sempre junto de August.
– Ah, o sistema de justiça.
A fungadela de Bastian passou a uma genuína gargalhada.
– É sem dúvida um sistema. Só não sei se tem muito que ver com justiça.
A floresta dava para mais um jardim, mais pequeno e menos ordenado
do que o existente do outro lado da Cidadela. Tal como a floresta, era uma
pantomima cuidada da natureza, uma ilusão contraditória da natureza livre.
Aves coloridas faziam ninho em arbustos e uns quantos pavões
pavoneavam-se entre a folhagem.
Passearam diante de canteiros de flores coloridas brilhantes e pequenos
lagos reluzentes de peixes cintilantes. Uns quantos cortesãos andavam no
exterior a fazer caminhadas terapêuticas ou dedicando-se a jogos ociosos de
croquet, mas, para lá de inclinarem as cabeças, não interagiram com eles.
Lore concluiu que a maior parte da corte regressara à cama depois das
orações do alvorecer.
– Por falar em aldeias – disse ela, redirecionando a conversa para algo
que poderia efetivamente valer-lhe alguma informação em vez de
simplesmente a irritar –, ouvi dizer que têm morrido durante a noite, sem
sinais de doença ou envenenamento. Mas não pode ser assim, pois não?
– Tanto quanto sei, é mesmo verdade. Mas tenho as minhas teorias. –
Bastian estendeu a mão e afagou a cabeça violeta de um pavão de
passagem. A ave bicou-lhe e mão e ele deu-lhe uma palmada sem grande
convicção. – Acho que a culpa é do problema da Mortem.
Ela bateu com a ponta do pé numa das pedras; agarrou o braço de
Bastian com mais força para se reequilibrar e só por pouco não praguejou.
Sentia o antebraço dele rijo como uma rocha sob a palma da sua mão,
irritando-se por ter reparado nisso.
– Oh?
– Não foi veneno, nem doença, nem houve sinais de ataque? – Encolheu
os ombros, provocando um ondular perturbador no músculo sob a mão dela.
– A mim, parece-me Mortem. Ora essa, não concordas?
– Nem por isso, não. – Lore abanou a cabeça. – Os corpos não ficariam
inteiros, caso fosse Mortem não canalizada. Estariam em avançado estado
de decomposição, ou teriam desaparecido por completo. – As fugas de
Mortem foram um problema durante os primeiros tempos após a Queda dos
Deuses, embora isso já não fosse uma ameaça. Não desde que os Presque
Mort tinham sido criados e que a linhagem Arceneaux erigira a Cidadela
sobre o túmulo de Nyxara.
Bastian olhou-a atentamente.
– Sabes mais sobre a Mortem do que é comum entre os cortesãos, Lore.
Tão casual, tão normal. Mas ela sabia que não era assim. Maldição. Ele
passara-lhe uma pá e ela alegremente começara a escavar a própria cova.
– Acho que é um assunto interessante.
– E mórbido.
– Interessante e mórbido coincidem com frequência. – Ela encolheu os
ombros. – Além disso, quem prestar atenção à história chegará à mesma
conclusão. Os relatos da Queda dos Deuses e dos anos posteriores estão
bem documentados. Sabemos qual o aspeto de um corpo depois de entrar
em contacto com a Mortem pura por canalizar a partir de uma fonte
exterior.
– É justo. – Bastian arrancou uma pena de pavão que ficara presa num
arbusto, enfiando-a atrás da orelha num ângulo garboso. Outra moda em
formação, ficou ela certa. – Mas não poderia ser canalizada para algo que
causasse as mortes? Algo que se abatesse sobre uma aldeia e os matasse
sem deixar rasto?
– Não me parece. O Spiritum que há numa pessoa não o permitiria. –
Lore nunca ouvira falar de a Mortem canalizada ser utilizada para
simplesmente matar alguém. Canalizar Mortem para um corpo vivo era
difícil – a aura de Spiritum, de vitalidade, que rodeava cada coisa viva
tornava-o quase impossível. Auras mais fracas poderiam ser subjugadas,
como as das plantas ou humanos muito doentes, mas não as saudáveis.
Se alguém utilizara a Mortem para aniquilar aquelas aldeias, fora de uma
forma para a qual Lore desconhecia o contexto. E ela dispunha de uma boa
quantidade de contextos, tendo em conta as circunstâncias.
– Nitidamente, tenho sido desleixado ao não consultar outros peritos. –
Ao que parecia, a pena de pavão fazia comichão; Bastian arrancou-a da
orelha e rodou-a antes entre os dedos. – Ninguém com quem discuti este
assunto se mostrou tão versado quanto tu.
Lore sorriu-lhe discreta e timidamente, conjurando um ar de prima do
campo, nenhuma ameaça e não me leves demasiado a sério.
– Não há muito para fazer em casa. Entretenho-me como posso.
Ele arqueou uma sobrancelha e fitou de novo as manchas de relva. Lore
beliscou-lhe o braço, contendo uma gargalhada genuína.
– Lore!
Gabriel percorria velozmente o carreiro, como se tivesse estado a tentar
apanhá-los sem correr. Ainda assim, estava algo ofegante quando os
alcançou. O seu olhar incidiu em Bastian, e depois nela, erguendo a
sobrancelha como se o irritasse o facto de ela estar a cumprir tão à letra as
ordens recebidas.
– Remaut, que simpático que te juntes a nós. – Bastian retirou a pena de
pavão de detrás da orelha e rodou-a sedutoramente sob o queixo de Gabe. –
Ia agora mesmo levar a tua prima aos estábulos. Não te preocupes, ela já
tinha as manchas de relva quando a encontrei.
A sobrancelha de Gabe elevou-se ainda mais. Lore mostrou-lhe um
sorriso que mais parecia um esgar.
– Venham. – Bastian retesou a curva do braço, prendendo a mão de Lore.
– Tenho uma nova aquisição interessante. Vocês os dois serão os primeiros
a quem a mostro. – Sorriu animadamente a Lore. – Sinceramente, entre isto
e convidar-te para o baile de máscaras de ontem, tenho sido um belo
relações públicas. Deveria propor os meus serviços às mães das solteironas.
– Tenho a certeza de que August iria adorar. – Gabe colocou-se do outro
lado de Lore. Era quase como ser escoltado por dois gatos anormalmente
altos, crispados e ariscos.
– Provavelmente, tanto quanto o Anton adora o teu regresso à corte.
Estou certo de que não ficou nada contente por perder o seu canalizador
estrela durante toda uma temporada.
Gabe nada disse, de braços educadamente atrás das costas, embora
terminassem em punhos cerrados. Lore pensou na conversa que ela e
Bastian tinham tido enquanto dançavam, sobre como este tentara orquestrar
a liberdade de Gabe para o verão, sem saber que Anton já a planeara.
Porém, a embaraçosa transição facultou-lhe uma abertura, um espaço
para conversar sobre os dois irmãos soberanos de Auverraine com alguém
que saberia mais do que quaisquer outros sobre o relacionamento deles.
– August e Anton… – começou, tateando a melhor forma de o proferir. –
Parece que não se dão lá muito bem. Porquê?
– O Anton só se tornou Supremo Sacerdote depois da sua visão –
apressou-se Gabe a responder, embora decerto soubesse que ela dirigira a
pergunta a Bastian. Dava a impressão de que era incapaz de não sair logo
em defesa de Anton. – Mas August é herdeiro desde que nasceu, o
escolhido de Apollius. Naturalmente, isso gerou alguma tensão.
– Como crianças esforçando-se por serem os preferidos do pai – troçou
Bastian. – Não há dúvida de que a visão do Anton foi conveniente.
Gabe lançou-lhe um olhar sombrio.
– Estás a sugerir que não foi genuína?
– Remaut, eu nem sequer sei o que foi a visão… ninguém sabe. – Bastian
esticou o braço diante de Lore para dar uma palmada nas costas de Gabe. –
Só digo que teria de ser uma coisa do caraças para me fazer cair de cara
sobre um braseiro. Se bem que, em troca, o Anton recebeu a magia. Ganha-
se algo, perde-se algo.
Um músculo retesou-se no queixo de Gabe, mas este não teceu mais
comentários relativos à veracidade da visão de Anton.
– A linhagem Arceneaux já dispunha de magia, segundo os Opúsculos.
– Sendo essa uma das razões para eu não perder muito tempo com os
Opúsculos. – Bastian ergueu uma mão, fletindo exageradamente os dedos
com um brilho de malícia no olhar. – Já me têm dito que os meus dedos são
mágicos, mas o contexto não teve nada de sagrado.
Gabe revirou os olhos.
Aos poucos, os jardins deram lugar a um vasto campo verde. Cavalos
deambulavam placidamente, sem cercas que os detivessem, havendo apenas
a muralha da Igreja a cerca de quilómetro e meio, cortando o céu azul.
Parecia que até os animais de criação da Cidadela eram criaturas de luxo.
Os estábulos ficavam no cimo de uma pequena colina, uma estrutura em
madeira reluzente mais agradável do que qualquer lugar em que Lore
alguma vez tivesse vivido. Criados vestidos de roxo conduziam montadas
musculadas em exercícios em redor de um ringue cintilante. Outro lago
artificial brilhava no pasto como uma pedra preciosa.
– Pelos deuses mortos e moribundos – murmurou ela.
– Uma devota das artes equestres? – questionou Bastian, com um tom na
voz que indicava que estava a meter-se com ela.
– Não seria difícil converter-me.
O príncipe riu, puxando-a na direção dos estábulos.
– És a única, pois o Gabe odeia cavalos.
Lore espreitou para trás para o homem em causa. O olho dele
semicerrara-se ao olhar para o lado da cabeça de Bastian, dado que o
Príncipe Sol continuava sem o fitar de frente.
– Eu não odeio cavalos.
– Mas foi o que me disseste.
– Sim, quando tinha oito anos. Depois de cair de um garanhão
formidável que tu me desafiaste a montar. A maioria das pessoas amadurece
entre os oito e os vinte e quatro anos e os seus ódios de estimação alteram-
se.
– Eu detestava pavoa assada quando tinha oito anos e ainda detesto.
– Eu disse a maioria.
Bastian acenou uma mão displicente.
O interior dos estábulos estava tão bem feito quanto o exterior. Cavalos
relincharam à passagem de Bastian e ele afagou-lhes alheadamente os
focinhos enquanto rumava às traseiras da construção.
Um bando de crianças encontrava-se reunido em redor do último
estábulo da fila, alguns vestidos como descendentes de cortesãos, outros
como se trabalhassem nos estábulos. Nenhum deles falava, todos de olhos
arregalados a olhar para o que quer que estivesse ali guardado.
– Afastem-se – disse Bastian, mas num tom brando. Lore estava à espera
de que a criançada debandasse ao perceber quem ele era, mas os miúdos
limitaram-se a desviar-se, os olhos colados à criatura na baia.
Quando se aproximaram o suficiente para ver, Lore percebeu porquê.
Cavalo. Era Cavalo.
Mas não podia… não fazia sentido, não respeitava nenhuma das regras
da Mortem que ela conhecia. Morto era morto e desbobinar a magia de um
corpo não poderia alterá-lo, não havia maneira de a sacar toda. Uma coisa
morta não poderia reconquistar uma parecença de vida, não poderia existir
por si só. Ela vira o animal tombar depois de cortar os fios, vira a morte a
regressar ao cadáver.
Mas algo teria mudado desde então, pois ali estava Cavalo.
Lore paralisou. A sua mão ainda se encontrava apoiada no braço de
Bastian, mas não sentia nada. Os olhos de Cavalo estavam leitosos e
opacos, o pescoço ainda cortado. Ele afocinhou na mão estendida de
Bastian e fez um som que seria um relincho, se as suas cordas vocais
estivessem intactas.
– Belo espécime, não é? – O olhar de Bastian procurou o dela, escuro
nas sombras do estábulo. – Chamei-lhe Claude.
Capítulo 14

Os segredos reproduzem-se por si próprios.


– Provérbio caldienano

D urante a época das tempestades no Bairro Portuário, a maré sovava a


costa como um tambor. Batia na areia pedregosa num ritmo
interminável, cheirando a sal, a peixe e a chuva, incessante e inescapável e
quase o suficiente para enlouquecer uma pessoa naquelas primeiras
semanas, antes de se tornar parte do ruído de fundo.
Era assim que Lore sentia a sua pulsação. Uma batida incessante nos
ouvidos, forçando-lhe a garganta. Se olhasse para baixo, provavelmente
seria visível, latejando na pele delicada dos seus pulsos.
Cavalo – Claude – fitava-a com curiosidade. Quando a cabeça dele se
inclinou para o lado, o ferimento aberto no seu pescoço escancarou-se, as
beiras pegajosas com sangue e pus. Ela conseguia ver a obra da morte,
músculos cinzentos sob a pele cortada, as extremidades lascadas de osso de
marfim.
– Curioso, não é? – Bastian afagou o focinho do cavalo. O animal voltou
a relinchar e o som era horrível, esfarrapado e errado. – Ele deveria estar
morto. Mas é como se não o soubesse e se recusasse a reconhecê-lo. – O
Príncipe Sol soltou uma risadinha, embora cintilasse no seu olhar algo mais
penetrante do que diversão. – Talvez seja o verdadeiro segredo para a vida
eterna. Recusar-se a morrer. Muito mais fácil do que transformar-se aos
poucos em pedra.
Antes, Lore sempre se sentira algo magoada por Cavalo nunca a ter em
grande conta. Basicamente, ignorava-a, a não ser que ela lhe levasse maçãs.
Agora, sentiu-se grata por a criatura não dar sinais de a reconhecer. Cavalo
curvou a cabeça ensanguentada e sacudiu uma mosca do lombo. Os ossos
do pescoço rasparam uns nos outros.
Não era suposto a Mortem funcionar assim. Não para um canalizador
normal, nem mesmo para aqueles que tinha forças suficientes para
despertarem um corpo da morte antes de serem executados. As vidas
animais eram menos complicadas, pelo que não era necessário dar-lhes
instruções específicas para mostrarem alguma parecença de vida. Ainda
assim, os cadáveres eram marionetas, ativos apenas enquanto o canalizador
segurava os fios da sua morte. Um morto-vivo completamente independente
como aquele… não deveria ser possível.
Mas… ela não era uma canalizadora normal, pois não?
Lore arrasou o pensamento com força física, cravando os dentes na carne
da língua até sentir o sabor a cobre.
Bastian retirou uma maçã de um bolso do casaco e ofereceu-a a Cavalo.
Claude. O animal farejou-a e depois retraiu-se.
– Ele não come – comentou Bastian, atirando a maçã para um dos
rapazes das cavalariças, que a trincou com gosto. – Não bebe, não faz
necessidades. Não me parece que durma. Mas, fora isso, parece
completamente vivo.
Pestanas compridas tremelicaram sobre olhos turvos quando Claude
pestanejou.
Lore sentia um aperto no estômago. Olhou para Gabe, na esperança de
que ele não parecesse tão em pânico quanto ela se sentia. O Presque Mort
parecia manter o choque bem escondido, embora a pele em redor da boca
tivesse perdido a cor.
– Um espécime interessante – disse, e a sua voz soou quase descontraída.
– Onde o encontraste?
Uma fração de segundo de silêncio, com Bastian a contorcer os lábios
para o lado.
– Uns guardas de quem sou particularmente amigo deram com ele a
vaguear pela Ala Sudoeste – acabou por responder. – Trouxeram-no aqui
por não saberem o que mais fazer com ele. Deve ser algum tipo de magia
rebelde, não te parece? Escapada de um desses deuses menores, algo
elementar. Terra, talvez. Aquele poder perdurou mais do que os outros e o
corpo de Braxtos foi descoberto em Auverraine.
Assim fora, numa gruta na região das colinas a oriente. Partes de Braxtos
ainda lá se encontravam, transformadas em pedra, uma efígie rochosa na
vaga forma de um homem a quem ocasionalmente os lavradores dos
bosques remotos rezavam. Mas aquele pretexto era uma treta. Não restava
qualquer magia de deuses menores.
Não interessava; Bastian claramente mentia e ele sabia que ela o sabia.
Notava-se na forma como curvava a boca, no pestanejar lento dos seus
olhos cor de mel escuro. Na forma como ele estendera o braço e prendera
uma madeixa de cabelo atrás da orelha de Lore enquanto ela fitava o cavalo
morto que despertara, de rosto inexpressivo.
– Perdoem-me – murmurou Bastian. – Pensei que pudessem achar
Claude divertido, mas parece que não têm uma constituição tão resistente
como eu julgava.
Dentro da baia, Cavalo focinhou numa pilha de feno. Isso fez com que a
pele em redor do seu pescoço cortado se abrisse. Um mosquito pousou
numa artéria vazia. Lore arrepiou-se.
– As minhas desculpas se te assustaste, querida Eldelore. – Bastian
encolheu os ombros. – Simplesmente achei que talvez te parecesse
interessante.
Ela não respondeu. Era como se estivesse a anunciar que a apanhara,
uma armadilha montada logo no início do caminho, mas Lore não era capaz
de arrancar palavras à garganta latejante.
Se aquilo fosse um trabalho encomendado por Val, dali a uma hora ela já
estaria a milhas. Assim que alguém insinuasse sequer que sabia que ela era
uma infiltrada, Lore desaparecia, regressava ao armazém, regressava à
segurança das suas mães.
Segurança. Retraiu-se. Nunca mais veria o armazém. Mesmo que
conseguisse escapar da Cidadela, não regressaria para junto de Val e Mari.
Isso doía demasiado.
Uma suave agitação de vozes, as de Gabe e Bastian, esvoaçando em
redor dos seus ouvidos como traças em redor de uma vela. Desculpas gentis
que não enganavam ninguém, e cuja aceitação poderia ter sido esculpida em
gelo. A mão de Gabe no ombro dela, levando-a dali, Acho que a minha
prima precisa de descansar.
Ao aproximarem-se da entrada dos estábulos, Lore espreitou para trás
por cima do ombro. Cavalo fitava-a, o pescoço golpeado a roçar na madeira
da porta da sua baia, arranhando músculo e osso mortos. Bastian
permanecia junto ao animal morto.
Deu pelo olhar de Lore. Sorriu-lhe.

Gabe sentou-se no sofá, curvado sobre os braços cruzados.


– Ele sabe de algo.
– Pois sabe. – Lore andava de um lado para o outro diante do sofá, com
uma unha entre os dentes. Conseguira libertar-se do choque enquanto Gabe
a conduzia pela floresta, pelos jardins e pelos corredores labirínticos da
Cidadela até aos aposentos. O choque ainda lá estava, bem como o medo,
mas conseguira domá-lo sob uma camada eriçada de fúria. – Nada como
uma confirmação através de um cavalo morto.
O rosto de Gabe contorceu-se de repulsa enquanto abanava a cabeça.
– Como é que, na miríade de infernos, aquele cavalo ainda… ainda…
– Caminha? – Ela sentiu o frio a tomar-lhe a nuca, como se alguém
tivesse pousado uma mão gelada na sua pele. – Como é que se comporta
como se estivesse vivo?
– Não há outra pessoa a canalizar – frisou Gabe. – Eu teria dado por isso.
Nós teríamos dado por isso. Certo?
Lore encolheu nervosamente os ombros, ainda a andar de um lado para o
outro. Tanto quanto sabia, ele tinha razão – nas poucas ocasiões em que
estivera perto de um Presque Mort a canalizar Mortem, sentira um puxão
desconfortável nas veias, como se o seu sangue tivesse coagulado sem que
o coração se apercebesse. Era difícil não reparar nisso.
Os dentes partiram a unha, gerando uma onda de dor que lhe subiu até às
gengivas. Praguejou baixinho e fez uma careta ao olhar para a unha
irregular.
– Sim, teríamos sentido.
O gibão de Gabe raspou no sofá brocado quando ele se virou para olhar
para ela.
– Se não é ninguém ativamente a canalizar – disse ele devagar –, então
tem de ser algo que tenha sobrado de quando o fizeste.
– Não. – A negação foi pronta. – A Mortem não funciona assim. Só…
– Sei muito bem como funciona a Mortem. – Ele ergueu-se do sofá,
impondo-se diante dela, mesmo ainda a um metro de distância. Havia algo
de diferente no tom dele, na postura. Parecia o Mort que a encurralara na
viela, preparado para a violência, caso fosse necessário, e não o homem que
ela tinha começado a considerar algo parecido com um amigo. – E estou
bem ciente de que a forma como a utilizas não tem precedentes, pelo menos
desde que mataram todos os necromantes. – O seu único olho semicerrou-se
e os dedos enroscaram-se num punho para esconder a vela pintada na palma
da mão. – Mesmo então, nada morto se aguentaria desperto por si só.
Lore semicerrou os olhos para imitar o dele. Endireitou-se e recuperou a
coluna vertebral que pertencia ao Bairro Portuário, não à Cidadela.
– Se me acusa de algo, Gabriel, seja direto. Não dance à volta do assunto
como se estivesse numa das festas do Bastian.
Algo no nome do outro homem pareceu agitá-lo. Despertá-lo de um
Presque Mort para voltar a ser um homem. A lembrança de um inimigo
comum, um objetivo comum; a lembrança de que ele e Lore não podiam
dar-se ao luxo de estar em barricadas distintas.
Gabe passou uma mão exausta sobre o rosto.
– Não acuso – disse por fim. Fungou. – Pareces tão surpreendida como
nós com o modo como a tua magia funciona.
– Agrada-me que isso para si seja reconfortante. – Lore apoiou-se na
parede e inclinou a cabeça para trás. – Para mim, é simplesmente aterrador.
Ele fez um som que Lore não soube interpretar. Quando ela desviou o
olhar do candelabro, Gabe voltava a sentar-se, cotovelos apoiados nos
joelhos.
– Então, pode ser essa a nossa explicação – disse ele. – Acho que isto é
apenas… parte. Parte do teu poder.
– Se serve de consolo – disse ela, sentando-se ao lado dele. – Se eu
soubesse como funciona, contava-lhe.
– Se em breve descobrires isso, será excelente.
– Anotado.
Deixaram-se ficar sentados às escuras por uns momentos antes de a
mente de Lore regressar ao outro problema deles, potencialmente maior.
– Se o Bastian sabe quem eu sou – disse Lore –, porque é que não se
limita a dizer-mo? Ou a matar-me? Não era isso que faria se fosse
efetivamente um informador kirytheano?
Gabe massajou a pala do olho.
– O Bastian é espiado muitas vezes. Saber que o espias não significa que
saiba porquê.
– O grande espetáculo do cavalo morto leva a pensar que terá alguma
ideia – comentou Lore. – Certamente terá astúcia suficiente para
compreender que o facto de o pai trazer uma necromante terá algo que ver
com as aldeias. E se é Kirythea o responsável, não é disparatado deduzir
que a dita necromante provavelmente virá a denunciá-lo.
– Talvez ele esteja simplesmente entusiasmado com o seu cavalo morto
de estimação e ainda não tenha estabelecido todas as ligações.
– Ou talvez não esteja a trabalhar para Kirythea, por muito que August e
Anton achem que sim. Não têm verdadeiros motivos para desconfiar dele;
pelo menos que nos tenham contado.
– O Anton não insistiria tanto para que investigasses o Bastian sem ter
bons motivos. – Gabe cravou o cotovelo no braço do sofá e pousou a testa
na mão. – E que outro motivo teria ele? Lá por não terem partilhado todas
as informações connosco, não significa que não as tenham.
Claramente, ela não chegaria a lado nenhum com Gabe. O homem fora
programado para marchar a qualquer ritmo que Anton impusesse. Os
pensamentos dela incidiram de novo em Bastian, naquilo que ele partilhara
enquanto dançavam. Há catorze anos que o meu tio tem controlado a vida
do Gabe.
Com um suspiro, Lore pressionou as bases das palmas das mãos sobre a
testa, apoiou os cotovelos nos joelhos e mudou de assunto para algo sem o
potencial de degenerar numa discussão.
– Como é que ele deitou a mão ao cavalo? Sei que a história que nos
contou era treta.
– Talvez não – disse Gabe. – O Bastian tem amigos na guarda da
Cidadela. E amantes, também. Levaram o corpo da Ala para ser cremado,
mas alguém pode ter-lhe dito, só por curiosidade. Deve ter ficado
suficientemente intrigado para mandar que lho levassem, ao que os outros
guardas terão fechado os olhos.
– Mentes verdadeiramente fantásticas naquela guarnição. A nata das
natas. – Baixou as mãos e olhou para ele. – Devemos contar-lhes?
Contar-lhes: a August e a Anton. Ela não tinha de o dizer. Estendeu-se
um silêncio tenso entre os dois, à espera de ver quem o interromperia.
Se ela fosse inútil para os irmãos Arceneaux enquanto espia, seria
enfiada numa cela até necessitarem dela para despertar um morto. E assim
que isso terminasse, receberia um bilhete só de ida para as minas da Ilha
Queimada.
– Não – respondeu Gabe em voz baixa, como se conseguisse ler os
pensamentos dela. – Não, não é preciso contar-lhes. Para já, não.
– Obrigada – murmurou ela.
Ele assentiu de forma rápida e firme.
Havia uma pilha de envelopes sobre a mesa em frente ao sofá, reluzentes
sob o brilho ténue do fogo. Tinham sido enfiados por baixo da porta e ele
juntara-os, largando-os ali. Lore pegou nuns quantos e folheou o papel
requintado alheadamente.
Convites. Lanches, jantares, bailes. Até uma noite de cartas – Bastian
declarara-os relevantes ao convidá-los para o baile de máscaras e a corte
não se fez rogada. Só de pensar em tantos compromissos sociais, Lore ficou
com a cabeça a latejar.
– Não estão à espera de que vamos a todos, pois não?
– A todos, não. A alguns, sim. – Gabe continuava a observar
melancolicamente o fogo, fazendo questão de não olhar para os envelopes.
– E nem todos são dirigidos a ambos, reparaste?
– É por isso que está tão cabisbaixo? Sente-se rejeitado?
Mais um resmungo.
– A corte está em pulgas por falar contigo. És um artigo novo. Não há
muitos que queiram socializar com um Presque Mort num hiato. – Sorriu
abertamente, fitando-a com um olhar sarcástico. – Algo pelo qual me sinto
grato, para ser sincero. Ao fim de dois lanches vais implorar por entrar para
uma ordem sagrada.
– Sim, porque vocês tornam as ordens sagradas muito apelativas.
Olhou para os envelopes, escolhendo um ao acaso. A letra era fina e
floreada, dirigida a ambos, mas apenas pelos nomes próprios. Lore e Gabe,
com uma flor minúscula desenhada a seguir ao último e. Franziu a testa ao
abrir a aba, esforçando-se ao máximo por não a rasgar. O papel parecia-lhe
mais caro do que algo que ela tivesse usado antes de ir para a Cidadela.
Um convite para um jogo de croquet. Da parte de Alienor.
– Provavelmente, é melhor aceitarmos este.
Gabe estendeu a mão para o convite; Lore entregou-lho. O maxilar dele
retesou-se, mas ele nada disse, devolvendo-o com a seriedade de um juiz a
decretar uma sentença.
Lore deu voltas e voltas ao papel sedoso e dividiu-se entre o tato e a
curiosidade. Venceu a curiosidade.
– Como é que vocês os dois… Quer dizer, o que…
– Os nossos pais acordaram a nossa união quando ainda mal sabíamos
andar. – A voz de Gabe soava grave e monótona, numa resposta que parecia
uma coisa ensaiada. Fitava a janela em frente ao sofá sem efetivamente a
ver. – Éramos amigos de infância, tanto quanto duas crianças podem ser
amigas com um eventual casamento a pairar sobre as suas cabeças.
Terminou quando eu tinha dez anos, por motivos óbvios. É tudo o que há
para contar.
Uma breve pontada de dor – ela cortara-se na ponta do convite.
– Ela agora está comprometida com alguém?
– Que eu saiba, não. Não que isso interesse.
Parecia interessar, a julgar pela posição dos ombros dele. E causava-lhe
uma sensação desagradável no meio do estômago que lhe interessasse a si
se a ele interessava.
A ligação que tinha sentido entre eles dissipara-se, já não sendo uma
constante sensação de déjà vu. Dissipara-se, mas sem desaparecer por
completo. Havia ainda a desconcertante sensação de que conhecia Gabe, de
que eram mais do que aliados hesitantes obrigados a ficar juntos havia
apenas uns dias.
Isso não queria dizer nada. Quando ela começara a espiar outros
traficantes de veneno, Mari alertara-a para não confiar em sensações de
proximidade rápida nascidas de situações estranhas. A mente procurava
ligações nesses casos, querendo algo a que se agarrar.
Lore pousou o envelope em cima da mesa junto dos outros por abrir.
– Bem, espero que saiba jogar croquet, porque eu cá não sei mesmo.
– Estou muito enferrujado. Na Ponta Norte não jogamos muito croquet.
– Pois, estão muito ocupados a olhar ternamente para pinturas de
Apollius e a ler Opúsculos até os saberem recitar a dormir.
– Exatamente. – Gabe levantou-se de repente, esticando os braços por
cima da cabeça. – Estás tão farta desta sala como eu? Sinto um desejo
profundo de estar noutro lado.
– Tem um outro lado onde não nos deparemos com cortesãos curiosos ou
ex-noivas ou príncipes idiotas com cavalos mortos?
– Por acaso – disse Gabe, avançando para a porta –, até tenho.
Capítulo 15

O poder de Nyxara era a morte, mas a morte concretizada – a


essência de não-viver, independente de um hospedeiro.
Apenas alguém que tocou a morte consegue canalizar a sua
forma pura, passando-a pelo seu ser e depois para algo mais,
deixando-a dormente. Canalizar esta morte pura – a que
escolhemos chamar Mortem – para matéria viva pode matar
hospedeiros fracos, como as plantas, mas não consegue
matar os fortes, como humanos e animais saudáveis. No
entanto, há uma forma de canalizar cuidadosamente Mortem
para um hospedeiro vivo que não o mata, mas lhe dá antes o
aspeto de pedra, contrabalançado entre a vida e a morte por
via de um equilíbrio de Mortem e Spiritum. Este método
parece resultar em toda a matéria viva, se o canalizador tiver
a capacidade para o fazer de forma correta.
– Das notas de Hakem Tabbal, naturalista
eroccano, datadas de dois anos DQD
(Depois da Queda dos Deuses)

O utroNãoladointeiramente
veio a ser um jardim de pedra.
de pedra – havia umas flores enroscadas entre as
suas equivalentes rochosas. Rosas num tom carmesim-sangue a florescer de
um canteiro de sósias graníticas; heras verdes a trepar por estátuas das suas
companheiras. Mas, essencialmente, tudo era em pedra.
Mas não morto.
Ao início, Lore não conseguia perceber. A rocha era algo em que sentia a
Mortem sempre de forma fiável: sem vida e sem esperança de ser diferente.
Mas as plantas de pedra tinham um murmúrio de vida em redor, muda e, no
entanto, presente, entretecida com o mais leve vestígio de Mortem.
Parecia… sereno. A aura do jardim era de repouso, de uma pessoa se
afundar numa cama macia ao fim de um longo dia.
Junto dela, os ombros de Gabe relaxaram, a tensão a libertar-se dele
como chuva numa sarjeta. Talvez também ela parecesse aliviada. Talvez
ambos andassem sempre como se tivessem pesos atados aos seus pés, sem
repararem sequer até alguém cortar as cordas.
O jardim a que ele a levara situava-se num pátio encostado à muralha da
Igreja, resguardado dos terrenos interiores da Cidadela por uma vedação
alta ornamentada com um portão alto ornamentado. Era suficientemente
pequeno para Lore abarcar todos os cantos desde o ponto onde se
encontravam junto à entrada, os caminhos entre os canteiros de flores
abrindo-se numa rede ordenada que lhe recordava as ruas de Dellaire. Ao
centro encontrava-se o que parecia ser um poço sob um telhado dourado em
bico. O poço estava fechado, tapado por um amplo círculo de madeira. Via-
se uma pequena estátua de Apollius sobre o tampo de madeira, como que a
segurá-lo.
Olhar para o poço interrompeu a sensação de paz do resto do jardim,
gerou-lhe um arrepio que lhe desceu pela coluna. Desviou o olhar.
Hesitante, Lore estendeu o braço e tocou numa das rosas de pedra. A
textura era surpreendentemente macia, como pétalas.
– Então, é para isto que canalizam toda aquela Mortem? – Ela ouvira
histórias, de como os Presque Mort dominavam a arte de canalizar Mortem
para plantas sem as matar. Mas ouvir falar de um jardim de pedra não a
preparara para o quanto seria estranho vê-lo. Aquilo com que contara era
duro e brutal; ao passo que o que via era maravilhoso.
Gabe assentiu com a cabeça. Junto dele, flores encavalitavam-se umas
em cima das outras, estriamentos de rocha e folhas, o novo jardim a crescer
continuamente sobre o antigo.
– Como? – Uma rajada de vento levou uma rosa viva a curvar-se na
direção dela, e espinhos minúsculos prenderam-se na sua manga. Lore
desprendeu-os com delicadeza, deixando a rosa voltar a endireitar-se. – Ora
bem, eu sei como, mas como é que as fazem… ou seja…
– Com cuidado. – Gabe resfolegou. – Canalizamos Mortem para a mais
ligeira superfície da coisa. Não esmaga o Spiritum, simplesmente…
reveste-o. Deixa-o inerte, algures entre a vida e a morte. – Apontou para o
jardim, quase com orgulho, avançando pelo carreiro fora. – Poderíamos
reverter isto, se necessário. Canalizar a Mortem de novo através de nós,
depositá-la de novo em algo morto, e libertar as flores para regressarem ao
que eram antes. É uma espécie de morte, mas não é permanente.
Lore olhou demoradamente para as rosas, vendo-as abanar sob a luz do
sol. A seguir, juntou-se a Gabe, que ainda deambulava animado pelos
carreiros de pedra. Ali, parecia uma pessoa diferente, como se carregasse
um fardo menor ao caminhar. Ela pensou se ele teria sempre aquele ar
quando era apenas um monge, quando podia existir sem ter de se recordar
de quem poderia ter sido aos olhos de todos os cortesãos.
– Parece batota. – Lore não conseguia acompanhar-lhe a passada, mas
esforçou-se ao máximo por permanecer junto dele, dando dois passos a
cada um dos de Gabe. – Andar para trás e para a frente entre a morte e a
vida sem consequências.
– Consequências como o que sucede quando ingeres veneno? – Gabe
abanou a cabeça. – Quem o faz merece o que lhe acontece. Os seres
humanos receberam o tempo que é suposto terem; tentar fazer batota não
faz parte do plano de Apollius.
Lore questionou-se se ele teria sentido o cheiro do cantil de August. O
que pensaria disso.
– Então, alguma vez tentaram isto com uma pessoa? – Acenou com uma
mão para o jardim.
Ele estacou, com uma centelha de horror no seu olho azul.
– Ninguém faria isto a uma pessoa.
Ela franziu a testa e recuou um passo, sentindo-se culpada face à
expressão abatida dele, mas também magoada.
– Não estou a querer insinuar que o fez. Estou só curiosa, Gabriel. –
Engoliu em seco. – Dispôs de anos para estudar este poder, com alguém
efetivamente a ensiná-lo. Eu só tenho tentado sobreviver-lhe.
O monge fitou-a por um momento demorado, de expressão inescrutável.
A seguir, virou-se e retomou a marcha, embora com uma postura mais
rígida.
– Ninguém sabe de que forma poderia ser afetado por canalizar Mortem
desta maneira para algo com alma – disse por fim, desviando-se por
completo da questão da ignorância dela. – A posição da Igreja é que se
enviaria a alma para o Reino Iluminado… ou para um da miríade de
infernos, calculo, em função da vida que tivesse levado. Quando se fosse
trazido de volta, sair-se-ia da vida no Além, com conhecimentos que
nenhum mortal deveria ter.
Despertar uma pessoa dos mortos não lhe trazia de volta a alma, apenas
o corpo – era por isso que era preciso dar-lhe indicações. Mas uma
curiosidade insaciável sobre o além fora o que suscitara uma vaga de
necromantes ativos depois da Queda dos Deuses. As pessoas capazes de
canalizar Mortem suficiente para despertar os mortos faziam-no para
descobrir o que acontecia a seguir. Para conhecer segredos sobre o destino
quando o corpo chegava ao seu fim.
Isso não agradara à Igreja, apesar de, na verdade, nunca ter resultado.
Nunca houvera quem obtivesse uma resposta clara da parte de um cadáver.
O olhar dela incidiu em Gabe.
– Acredita mesmo na existência do Reino Iluminado?
– Pertenço ao clero. Acreditar no Reino Iluminado é literalmente a
descrição do meu trabalho.
Lore encostou o ombro ao dele, num gesto de camaradagem. Pouco
depois, ele brindou-a com o vislumbre de um sorriso.
O carreiro levou-os até junto do poço. A estátua de Apollius era mais
austera do que a maioria, pedra lisa sem adornos de granadas. Lore olhou
cautelosamente para lá.
– O que é isso?
– A entrada das catacumbas. – Respondeu com tal desinteresse que Lore
se convenceu de que ele a entendera mal. Mas ele lançou-lhe um olhar
irónico e encolheu os ombros. – Abrimo-la a cada eclipse, deixamos sair a
Mortem e canalizamo-la para as flores. É eficiente e provavelmente a razão
para já não haver uma fuga significativa há tanto tempo.
A referência a um eclipse levou-a a pressionar a palma da mão contra a
coxa, escondendo a cicatriz.
– Quando é o próximo?
– Solstício de verão. Um eclipse solar, portanto a Mortem vai estar
particularmente forte. Nyxara a bloquear Apollius, e isso tudo. – Ele ergueu
uma sobrancelha. – Não é por altura do teu aniversário?
O seu vigésimo quarto aniversário. A sua Consagração. Lore disfarçou o
incómodo com um sorriso inocente.
– Está a planear encomendar-me um bolo?
– Talvez. Depende de te portares bem até lá.
Ela revirou os olhos e agarrou-lhe o braço, acompanhando de novo os
passos dele enquanto se afastavam do poço. Ainda assim, mordeu o lábio,
pensativa.
– Isso preocupa-o? Quando há um eclipse solar e a Mortem se torna mais
forte?
– Tento não me preocupar até o Anton mo dizer para o fazer.
Aquilo azedou-lhe o estômago. Mas manteve o tom leve.
– Parece bastante mais chegado ao Supremo Sacerdote do que a qualquer
outro Presque Mort.
– O Anton foi como um pai para mim. Sei que parte foi por causa da
visão que ele teve… de que eu precisava de estar nos Presque Mort, que era
essa a vontade de Apollius… mas ele também foi bondoso. Prestável.
Viajava constantemente para me visitar, para assegurar que eu estava tão
bem quanto possível. – Gabe encolheu os ombros. – Se não fosse por ele,
não estaria aqui.
Ela não percebeu se aqui se referia a ser membro da Igreja ou a
continuar no mundo dos vivos. E não queria saber.
– Porque é que perguntaste se eu acreditava no Reino Iluminado? –
questionou Gabe, após uns longos minutos de um silêncio não propriamente
confortável. – Tu não acreditas?
Lore encolheu os ombros.
– Não penso com frequência no que acontece depois de morrermos. Já
tenho muito com que me preocupar no presente.
Ele fez um som pesaroso de compreensão.
– Mas se pensar no assunto… – Lore pontapeou uma pedra solta. – Não.
Acho que não acredito no Reino Iluminado. Pelo menos, não da forma
como a Igreja o ensina.
Gabe ergueu uma sobrancelha, pedindo em silêncio mais explicações.
Mas não lhe chamou herege nem desatou a correr para Anton, o que parecia
prometedor.
Ela suspirou, erguendo a cabeça, como se o céu estival lhe desse as
palavras para se explicar.
– A Mortem, para mim, assemelha-se à ausência de tudo. Um fim. Por
isso, acho que não faz sentido acreditar numa vida depois da morte… mas
acredito, acho. Acredito em algo, seja como for. Mas, com toda a
sinceridade, a ideia da miríade de infernos faz mais sentido para mim do
que o Reino Iluminado. Penso que o que quer que venha depois disto é
criado por nós. O que quer que tenhamos semeado em vida é o que
colheremos na morte, seja bom ou mau.
– A pior parte da miríade de infernos será a solidão – disse calmamente
Gabe. – Ficarmos presos no mundo criado pelos nossos pecados e
completamente sós. Compreendo o teu ponto de vista, mas não posso
acreditar que alguém que viveu piamente fique sozinho na morte. E não
faria sentido para outra pessoa ficar presa no lugar criado pelos teus atos.
Ela deslizou a mão por um canteiro de gerânios de pedra.
– Não sei. Mas se a Mortem parece vazia… sozinha… não faz sentido
que a morte também o seja?
Mergulharam ambos no silêncio. Vozes chamaram ao longe, cortesãos a
divertirem-se nos muros internos da Cidadela, semeando coisas que a seu
tempo colheriam.
– Não me parece que a Mortem e a morte gerem a mesma sensação –
acabou por dizer Gabe, quase como se falasse para si. – Uma é magia
perversa a vazar do corpo de uma deusa morta e a outra é algo que nos
espera a todos. A primeira vem da segunda, mas não são o mesmo.
– Porque é que a magia d’Ela é considerada perversa? – Se não fosse por
estarem sozinhos, por o pacato jardim de pedra parecer um lugar removido
da realidade, Lore não teria falado. Mas, naquelas circunstâncias, as
palavras jorraram-lhe da boca quase a pingar veneno. – Ela e Apollius eram
iguais. A magia d’Ela podia ser sombria, noite e morte, mas não era
perversa, não mais do que a d’Ele era, ou a de algum dos deuses menores
que vocês gostam de esquecer que existiram. Era apenas diferente.
Gabe fez hum, as sobrancelhas franzidas em modo de reflexão.
– Conheces a Lei dos Opostos?
Um ensinamento de um Opúsculo, tão simples que era ensinado às
crianças assim que aprendiam a andar. Bem, a crianças que não fossem
Lore. Ainda assim, ela conhecia a lei e assentiu ao de leve com a cabeça.
– Se algo é bom, então o oposto deve ser mau. – Gabe abanou a cabeça.
– Não acredito nisso.
– Não acredita em algo dos Opúsculos? Está rapidamente a candidatar-se
a umas férias nas Ilhas Queimadas.
Foi a vez de ele lhe dar um toque no ombro.
– Acredito que os Opúsculos estão abertos a interpretações – frisou. – E
nisto, sinto que a nossa interpretação tem de estar errada. Os opostos nem
sempre estão em oposição; o dia e a noite são iguais. Não há um deles que
seja bom e outro mau. – Fez uma pausa, com a boca franzida. – Mas um
ilumina as coisas, enquanto a outra as escurece. E isso tem de significar
algo, também, acho eu.
Lore não reagiu. Cruzou os braços e fitou os pés ao pisarem o chão
empedrado.
– Não me parece que Nyxara seja má – prosseguiu Gabe. Era como se
tivesse de forçar as palavras, porém, como se tratar a Deusa Sepultada pelo
próprio nome fosse uma tarefa difícil. – Cometeu um erro ao tentar matar
Apollius, por razões que nenhum de nós conhece, e foi derrubada por isso.
Não me parece que esteja no Reino Iluminado com Ele, isso não faria
qualquer sentido, mas espero que, onde quer que tenha ido depois de finda a
Sua vida, não seja demasiado terrível. – Fez uma pausa. – E gostaria que
tivesse levado a Sua magia, em vez de a deixar vazar por toda a Dellaire.
Mas suponho que não tenha sido uma escolha que Lhe coubesse.
Lore virou os olhos na direção de Gabe.
– A sensação que tenho é que pode ser uma espécie de blasfémia esperar
que a vida de Nyxara no além não seja terrível.
– Se a piedade é blasfémia, monta-me uma pira.
Dizia-o em tom de piada, mas ambos sabiam que não era. Caminharam
em silêncio, ensimesmados nos seus pensamentos.
– Tens fome? – Tinham seguido pelo perímetro do jardim e agora Gabe
rumava de novo ao portão, aquele que os levaria de volta à Cidadela. – Se
os almoços ainda são como eram nos meus tempos de criança, deve haver
comida para levar no salão.
Gabe não se equivocara. Uma mesa comprida estendia-se a todo o
comprimento do hall quando entraram pelas portas da Cidadela, com mais
comida do que Lore alguma vez vira num único lugar. As fontes de vinho
do baile de máscaras de Bastian estavam de volta, assim como pilhas de
pequenas sanduíches, e o que parecia ser um javali inteiro assado, com uma
maçã na boca.
Ela ficou boquiaberta.
– Eles deixam isto aqui, sem mais nem menos?
– A maioria dos cortesãos envia os criados para virem buscar uma
bandeja – explicou Gabe, pegando num prato e cortando um naco do javali.
– Mas, dado que nós não temos criados, estamos por nossa conta.
– Que dureza – ceceou Lore em volta do macarrão que acabara de enfiar
na boca.
Nem todos os cortesãos delegavam os seus preparativos de almoço –
Alie estava na esquina do vestíbulo, envergando um vestido longo de
chiffon violeta, simples e elegante. Acenou-lhes quando os viu, afastando-se
graciosamente das outras senhoras com quem se encontrava para dar a Lore
um forte e inesperado abraço.
– Vocês os dois! Por onde têm andado? Acabámos de chegar de uma
partida de croquet no relvado das traseiras; tinha a certeza que vos
encontraria lá. – Agitou as suas sobrancelhas claras. – Têm de treinar se
querem jogar bem na próxima.
– Demos um passeio – respondeu Gabe, ao mesmo tempo que Lore
dizia:
– O Bastian levou-nos aos estábulos.
Gabe fulminou-a com o seu único olho. Lore lançou-lhe um olhar
contrito por cima do ombro de Alie. Sempre lhe tinham dito que as mentiras
eram mais credíveis quando misturadas com a verdade; não se daria o caso
de mentir o menos possível também lhes ser útil ali?
Alie arregalou os olhos.
– Muito bem. Não vos censuro por preferirem o Bastian ao croquet. –
Arqueou uma sobrancelha delicada dirigida a Gabe. – E calculo que tenhas
achado que devias acompanhá-los. Provavelmente, foi sensato.
– Oh, não, nada disso – disse Lore. – Ele estava só a ser cortês.
A outra mulher sorriu maliciosamente.
– O Bastian é tudo menos cortês. É mais do género de começar a fazer
propostas ilícitas levando a sua potencial amante aos estábulos.
Lore travou um risinho louco. Bastian podia ter o hábito de levar aos
estábulos quem quisesse, mas ela tinha a certeza absoluta de que a sua
sedução não costumaria incluir um cavalo morto-vivo.
Ainda assim, a mera insinuação bastou para deixar Gabe com uma
expressão sofrida como a do javali em cima da mesa.
– Obrigado pela informação, Alie.
– Sempre à disposição. Tenho anos de mexericos na corte para te pôr a
par. – Alie voltou o seu sorriso de Gabe para Lore. – Conto-te todas as
melhores partes no nosso jogo na próxima semana. Acho que os rumores
fluem melhor quando temos um taco para bater.
Lore, que na verdade ainda não se decidira em relação a qualquer dos
convites da pilha que estava nos aposentos, sorveu um bom gole de vinho e
assentiu com a cabeça.
– Lá estaremos.
– Excelente. – Alie acenou-lhe com a mão por cima do ombro ao voltar
de novo para junto das amigas, um grupo de mulheres maravilhosamente
vestidas com quem Lore se esforçava imenso por não manter contacto
visual. Cecelia não se encontrava entre elas e Lore não reconheceu ninguém
do grupo que ingeria veneno no baile de máscaras. – Então, vemo-nos lá!
O sorriso desapareceu do rosto de Lore ao virar-se para a comida.
– Pelo menos, sabemos que o Bastian não estava a levar-me para os
estábulos pelos seus habituais motivos.
Era uma piada e esperava que Gabe reagisse com o seu habitual revirar
de olhos, mas o Presque Mort limitou-se a espetar outro morango com a
faca e a colocá-lo no prato.
– Eu não teria tanta certeza – murmurou ele.
Capítulo 16

A cada pessoa é dado conhecimento de acordo com a sua


posição; não é piedoso tentar erguer-se acima da sorte que os
deuses atribuem.
– O Livro da Lei da Morte, Opúsculo 90

A tarde decorreu preguiçosamente sob uma névoa ensolarada. Depois de


comerem, Lore obrigou Gabriel a fazer-lhe uma visita guiada pela
Cidadela – o que era complicado, dado que havia anos que ele não passava
muito tempo ali, mas a falta de familiaridade partilhada quase tornava a
experiência ainda melhor. Dois intrusos num nevoeiro denso de luxo ao
qual não pertenciam. Quando começava a pensar no que Bastian poderia
saber ou não, Lore atirava tais pensamentos para trás daquela muralha de
árvores que Gabriel a ajudara a plantar. Ela necessitava de tempo para traçar
um plano, para enquadrar o possível compromisso com August de uma
forma que não a lançasse para uma cela.
Também necessitava de distração e Gabriel fez-lhe a vontade. As
deambulações levaram-nos por salões dourados com tetos altos pintados,
cenas celestiais entremeadas por candelabros cintilantes. Uma sala estava
repleta exclusivamente de estatuária, corpos reluzentes de mármore
captados em lutas de espadas e beijos e danças. Outra sala, circular e
composta quase por completo em vidro, continha uma piscina espelhada
com uma fonte no centro e pétalas de rosa a flutuar à superfície.
Não permaneceram ali muito tempo – uma mão-cheia de cortesãos
preguiçavam à volta da piscina e vários nadavam lá, nus como quando
tinham vindo ao mundo. As faces de Gabriel enrubesceram sob a pala do
olho ao rodar sobre os calcanhares e apressadamente voltar para o corredor.
Lore conseguiu travar a sua gargalhada até se afastar o suficiente da porta
para que nenhum dos cortesãos a ouvisse.
Depois disso, absolutamente por acaso, foram dar a uma biblioteca.
A Cidadela era um estudo de opulência, transbordando excesso em cada
canto, mas aquela foi a sala que efetivamente deixou Lore de queixo caído.
A biblioteca tinha três níveis, todos visíveis desde o piso térreo – havia
balcões ao longo das paredes, acessíveis através de escadas pequenas em
madeira envernizada encaixadas nas estantes. Os três níveis abarrotavam de
livros, reluzindo face à luz suave que jorrava através da janela solário no
alto. Pequenas cadeiras estofadas a brocado encontravam-se agrupadas em
diversas posições em todos os níveis, nichos de leitura prontos a usar, mas
sem leitores.
– Só pode haver ouro a rodos aqui – comentou Lore entre dentes. – Tem
noção de quanto custa um livro?
– Tenho. – Gabe fez uma careta sombria. – Tanto dinheiro e
praticamente ninguém lê aqui.
– A sério, ninguém? Que desperdício.
Gabe remexeu-se com desconforto.
– O Bastian lia. Quando eramos crianças. Era um leitor voraz.
– Isso é surpreendente. – Lore deslizou a mão pelo cimo da cadeira mais
próxima. O tecido era macio e sedoso, demasiado refinado para a mobília.
– Ele não é estúpido – vincou Gabe. Depois, inclinou a cabeça,
corrigindo. – Bem. É, mas não no que toca a livros. Apenas no geral, no que
toca ao senso comum.
Lore mordeu o canto do lábio enquanto avançava lentamente até uma
das estantes mais perto da porta. Ao verdadeiro estilo da Cidadela, parecia
repleta de poesia erótica.
– Vocês os dois parecem conhecer-se bem.
– Melhor do que eu gostaria.
– Eram chegados, quando… quando aqui estava?
Gabe fez uma pausa antes de responder. Quando o fez, falou em voz
baixa.
– Éramos. Eu, o Bastian e a Alie éramos unha com carne.
Éramos. O pretérito imperfeito soou com um certo peso. Ela e o monge
rabugento seriam provavelmente aquilo que um e outro teriam de mais
próximo de uma amizade. Dava que pensar.
Lore puxou descontraidamente um livro da estante, folheou as
ilustrações escandalosas.
– Os vossos pais também eram chegados? – O contexto dela para
amizades de infância podia ser enviesado, mas, pelo que vira noutras
infâncias mais normais, parecia que a maioria delas assentava inicialmente
no facto de os pais serem amigos.
Mais uma pausa, desta feita mais demorada. Provavelmente, não deveria
ter perguntado, tendo em conta o quão delicado era o tema dos pais para
Gabe, mas dava por si a sentir uma curiosidade quase insaciável por ele.
Gabriel Remaut era um poço de contradições e opostos emaranhados num
único homem e ela queria desemaranhar aqueles nós.
– Pelos vistos, os nossos pais andavam demasiado ocupados para formar
amizades – disse Gabe. – Mas as nossas mães eram. Amigas, quero eu
dizer. – Coçou distraidamente a pala do olho. – A mãe do Bastian, Ivanna,
ficou bastante doente depois de ele nascer e por norma não podia sair dos
aposentos. A mãe da Alie, Lise, e a minha levavam-nos lá para passarem
tempo com ela, deixavam-nos andar à vontade com o Bastian enquanto elas
conversavam e bebiam vinho.
– Parece agradável – murmurou Lore.
Ele encolheu os ombros.
– Elas as três eram… bem, não diria párias, mas não encaixavam
verdadeiramente na corte. A mãe da Alie era tão auverrani como qualquer
outra pessoa, mas tinha o ar do pai malfourano e isso levava a que alguns
cortesãos ignorantes a tratassem de modo diferente. A minha mãe não era
suficientemente rica para fazer parte da camada mais alta… Balgia era um
ducado muito pequeno, nunca muito lucrativo, quase insignificante, não
fosse pelo facto de ser um tampão entre Auverraine e o Império Kirytheano.
E Ivanna era muito recatada. As pessoas tentavam aproximar-se dela, dado
que era a rainha, mas ela não parecia interessada. – A boca dele cingiu-se. –
August não era amável com ela.
Gabe virou-se repentinamente, fingindo exageradamente que observava
com atenção os livros noutra estante. Dado que também era de poesia
erótica, Lore assumiu que seria mais para pôr fim à conversa do que por
genuíno interesse.
– Como se chamava a sua mãe? – perguntou após um longo momento de
silêncio.
– Claire – murmurou Gabe. – Chamava-se Claire. Morreu quando eu
tinha oito anos.
– Lamento.
– Também eu. – Uma pausa. Depois, num tom mais suave: – Mas ainda
bem que partiu antes de tudo o que se passou com o meu pai. Ainda bem
que ela não teve de assistir a isso.
Lore lançou-lhe um olhar rápido. Os ombros de Gabe apresentavam-se
tensos sob o seu gibão preto, as mãos unidas com força atrás das costas.
Uma mão com a palma para fora, a mostrar a vela pintada sobre as linhas da
vida e do coração. O pavio alcançava a base dos dedos, a carne antes dos
nós cobertos por um semicírculo de linhas a imitar a luz. A base da vela
começava logo no pulso, com o pormenor de ter montinhos de cera. Ela
pensou no quanto teria doído desenhar aquilo com uma agulha.
Provavelmente, não tanto como perder o olho.
Ele ergueu a mão, massajou a face que ela não via.
– Por todos os deuses sepultados ou sangrantes, estou exausto.
Disse-o tão discretamente que ela nem teria ouvido se não estivesse a
observá-lo. Gabe escondia bem o cansaço, a raiva e tudo o mais,
guardando-o só para si.
Lore virou-se, com o livro escolhido aleatoriamente ainda cingido na
mão.
– Encontrei algo para ler. Regressemos aos nossos aposentos. Acho que
ambos precisamos de uma sesta.
Não era mentira. Entre a festa de Bastian e acordar ao alvorecer, também
ela se sentia cansada.
Gabe voltou-se, de sobrancelha arqueada. O seu olho azul cravou-se no
livro que ela segurava, e arregalou-se.
– É esse que vais levar?
A capa dourada reluziu quando ela rodou o livro para o fitar pela
primeira vez. Mais poesia erótica. A ilustração na capa representava um
sátiro lascivo a perseguir uma ninfa coberta apenas por uma longa cabeleira
loura.
O sorriso dela cresceu com malícia.
– Qual mal tem o livro, Mort?
– Nenhum. – E avançou em passos largos para a porta, de pernas rígidas.
– Se calhar também o devia ler. Aprender algo. Dado que passou a vida
celibatário…
– Então, estás mesmo segura de que nunca quebrei os meus votos?
Ela inclinou a cabeça com curiosidade.
– Quebrou?
Gabe lançou-lhe um olhar frio sobre o ombro, de queixo erguido.
– Isso era o que querias saber.
A porta abriu-se quando Gabe ia a deitar-lhe a mão, deixando entrar um
Malcolm de ar atormentado vestido da cabeça aos pés no preto de um
Presque Mort. Endireitou-se, nitidamente a postos para exercer a força de
um olhar pio sobre nobres estouvados e depois espantou-se ao reconhecê-
los, com a expressão pétrea a diluir-se num sorriso.
– Boa tarde, Lore. E Vossa Graça.
– Poupa-me – murmurou Gabe, mas dando uma palmada amistosa nas
costas do outro homem.
– Não contava ver-vos aqui sem a vossa incumbência real. – Malcolm
segurava uma pilha de livros nas mãos; passou para lá deles para entrar na
biblioteca e dirigiu-se a uma das pequenas escadas de acesso aos pisos
superiores. – O Anton deixou claro que queria a Lore cosida ao rabo do
Príncipe Sol.
– Ia mesmo agora sair à procura dele – esclareceu Lore de pronto.
Gabe e Malcolm eram visivelmente amigos e ela gostava dele, pelo
pouco que pudera ver no tempo que tinha passado na sua presença, mas
calculava que estivesse tão condicionado quanto Gabe a reportar tudo a
Anton.
– O Gabe pensou que o Bastian podia estar aqui, mas deve estar a passar
o seu tempo livre noutro lugar. – Como nos estábulos, a tentar dar maçãs a
um cavalo morto.
Malcolm olhou desde o segundo piso, debruçando-se no corrimão
dourado o tempo suficiente para ver a capa do livro de Lore. Os seus olhos
escuros arregalaram-se ao mesmo tempo que ele resfolegava com o riso.
– Vejo que levas muito a sério isso de te aproximares do Bastian.
– Eu obedeço sempre às ordens – ripostou Lore.
Gabe fez um esgar, mas estava demasiado preocupado com o que fazia
Malcolm para proferir um comentário sarcástico.
– O Anton está a tirar mais livros da biblioteca da Igreja?
– Não propriamente. – Malcolm pousou a sua pilha de livros no chão e
depois pegou num para o enfiar num espaço vazio na estante. Era grosso e
os músculos de Malcolm retesaram-se enquanto o empurrava para o seu
lugar. Na verdade, era um desperdício o facto de todos os Presque Mort
serem tão bem-parecidos. – Ele pediu que lhe levasse estes para estudar.
Edições mais recentes do Compêndio, algumas traduzidas de outras línguas
e depois de novo para auverrani. – Outro livro excessivamente grosso foi
empurrado para o seu espaço. – Não imagino porquê, dado que há
literalmente centenas de Compêndios na biblioteca da Igreja, incluindo o
original. E sobretudo porque, pelo que tenho visto, ele só olha para o Livro
da Lei Sagrada. Mas que sei eu?! Sou apenas o bibliotecário. – Enfiou o
último livro na estante e virou-se para eles, agarrado ao corrimão. – Os
Compêndios, pelo menos, são fáceis de encontrar. Há uns meses, fez-me
procurar um livro sobre o modo de entrar nos sonhos dos outros. Tive de
escrever a uma universidade de Farramark e levou uma eternidade a chegar,
mesmo por via marítima. É claro que ele tinha de precisar dele quando o
Canal de Ourish gelou.
– Deve procurar algo específico nas traduções – murmurou Gabe. –
Algum Opúsculo em particular?
– Quando ontem os deixou abertos – disse Malcolm, descendo as
escadas –, estavam na Lei dos Opostos. – Encolheu os ombros. – Quem
sabe? Eu cá não daria pela diferença.
– As diferenças são comuns? – perguntou Lore.
– Nem por isso. – Malcolm abriu-lhes a porta para que passassem,
encaminhando-os com graciosidade para o vestíbulo. – Os Compêndios são
a coisa menos interessante no catálogo da Igreja, para ser sincero. Os
relatos em primeira mão da Queda dos Deuses e as notas sobre experiências
com magia elementar são muito mais cativantes.
– Não duvido – comentou Lore, baixinho.
Ele detetou uma centelha de interesse no olhar dela, e sorriu ao
aperceber-se disso.
– Quando quiseres aparece para os veres. Mas avisa-me antes para eu ter
a certeza de que o Anton não anda por lá. Ele é muito meticuloso quanto à
biblioteca da Igreja.
Notou-se um esgar passageiro no canto da boca de Gabe, mas ele nada
disse.
– Vou aceitar o seu convite. – Lore virou-se na direção que achou que os
levaria ao torreão sudeste. – Assumindo que arranje tempo para me
descoser do rabo do Bastian.
Malcolm resfolegou.
– Avisa-me se precisares de um desmanchador de costuras.

O sol ia baixo no céu quando encetaram o circuito de regresso através


dos salões reluzentes da Cidadela até aos aposentos. Gabe manteve-se todo
o tempo em silêncio, com uma expressão pensativa. Todas as tentativas de
humor de Lore foram rechaçadas com silêncio.
O silêncio manteve-se quando chegaram. Gabe suspirou ao entrar na sala
de estar, as mãos apoiadas nas ancas, antes de virar à direita e entrar no
pequeno estúdio em frente à zona de refeições. Ela ouviu uma cadeira
ranger quando ele se sentou.
Lore dirigiu-se ao bar, procurou uma garrafa de vinho e serviu-se de um
copo. Ainda avinagrado, mas tolerável. Não havia outro copo, pelo que
serviu a dose de Gabriel numa pequena caneca que nitidamente não fora
destinada àquele fim.
Uma grande escrivaninha de carvalho dominava o estúdio, vazio com a
exceção de um pisa-papéis em cristal que alojava no centro uma rosa
vermelho-sangue. Estantes de livros delimitavam as paredes, mas também
se encontravam maioritariamente vazias, contendo apenas um exemplar
empoeirado do Compêndio e um feto envasado a necessitar
desesperadamente de ser regado.
O estúdio era suficientemente pequeno para Lore não ter de entrar para
lhe entregar a caneca. Por momentos, ele limitou-se a olhar, mas depois
aceitou-a.
Ela apoiou o ombro na ombreira.
– O seu estado de espírito guinou drasticamente para sombrio.
Ele bufou e bebericou o vinho.
– Ser recordado dos excessos deste lugar dá nisso.
Compreensível. Também a tinha perturbado, vaguear pelos salões tipo
museu e ver toda a riqueza acumulada ao mesmo tempo que sentira na pele
as carências do exterior da Cidadela. Lore nunca se preocupara com a
possibilidade de passar fome – Mari e Val encarregavam-se disso –, mas a
fome era um lobo adormecido agachado à porta, uma ameaça contínua com
a qual se aprendia a viver, fazendo os possíveis por não o despertar.
Lore olhou fixamente para as profundezas do seu copo.
– A nossa culpa não ajuda ninguém, Gabe.
Ele retesou-se.
O pé dela bateu no chão, um ritmo nervoso para ordenar os pensamentos.
– Quer dizer, em parte sinto-me culpada por também desfrutar. Por
desejar tudo isto para mim, quando sei quão pouco a maioria das pessoas
tem. Mas não temos tempo para o luxo da culpa. Sobretudo se vier
realmente aí uma guerra, e estando nós aqui enfiados sem podermos ir onde
quer que seja.
Gabe continuava a não a encarar. Recostou-se na sua cadeira, um monge
abatido nada elegante.
– Não pensei que tivesse sentido a falta. Mas aqui, num lugar onde fui…
fui feliz, em tempos… – Interrompeu-se. Suspirou. – Recordo-me de
quando era como um lar, antes de saber que estava podre. Na altura, era
fácil amar a Cidadela. E odiá-la foi igualmente fácil, assim que soube o
quanto era corrupta. Mas odiá-la só é fácil à distância.
Ele queria essa facilidade de volta. Queria respostas simples, delineações
claras. E, se não fosse Lore, tê-las-ia.
– É vergonhoso – murmurou. – É vergonhoso, o quanto têm, o quanto
roubam.
– Pois é – concordou ela. – Quero fazer algo em relação a isso. Resolvê-
lo, de alguma maneira. Mas… – Interrompeu-se, encolhendo os ombros.
Era algo em que pensava de vez em quando, mas que nunca conseguira pôr
por palavras. – Não sei como, acho? Sou só uma pessoa. Uma pessoa
bastante insignificante e contra tantos anos de tanto poder, sinto-me
completamente inútil. Como… como conter um rio com um seixo.
– Seria necessária uma data de seixos – concordou Gabe. Pegou no pisa-
papéis de cristal e rodou-o nas mãos, fazendo a rosa no interior esticar-se e
refratar-se em formas estranhas.
Lore avançou até junto dele. Pegou no pisa-papéis e voltou a pousá-lo
com delicadeza na escrivaninha.
– Dê a si mesmo alguma daquela piedade sobre a qual falava, Mort –
disse ela, brandamente.
E, sem mais, Lore foi para o seu quarto, ainda com o seu livro de poesia
erótica, e deixou o monge de um só olho a olhar para a escuridão.
Tentou ler durante cerca de uma hora, acendendo a vela na mesa de
cabeceira quando o sol transpôs por completo a linha do horizonte. Mas a
poesia era demasiado rebuscada para ser excitante e ela deu por si a fitar
antes para a cobertura bordada sobre a cama e a pensar nas câmaras
mortuárias.
A recordação do pequeno corpo na laje ainda lhe apertava o peito. A
boca aberta, os sussurros, os olhos pretos – ao mesmo tempo, era e não era
como Cedric, e não conseguia organizar as ideias em relação a isso. Talvez
a sua magia tivesse mudado, tornando-se mais escura, de alguma maneira
pior.
E eles queriam que ela voltasse a fazê-lo.
Bastian dizia que achava que as tragédias nas aldeias se deviam à
Mortem. Ela dissera-lhe que isso era impossível, mas, depois de ver Cavalo
– Claude, recordou a si mesma, enrugando o nariz –, começava a pensar
que talvez não soubesse assim tanto sobre a Mortem. Talvez, na verdade,
não soubesse nada.
Por muito que odiasse a ideia de tentar despertar de novo alguém dos
mortos, a perspetiva de simplesmente afastar-se e assumir o fracasso não
era uma opção. Não o seria mesmo que a alternativa não fossem as Ilhas
Queimadas. Aldeias inteiras, famílias inteiras, tinha sido dizimadas. Ela já o
sabia antes, em abstrato. Mas saber e ver eram duas coisas completamente
diferentes; e saber que, ao que tudo indicava, ela seria a única capaz de
descobrir o que se passava, era também outra coisa diferente.
O seu fracasso era tão condenável como ter sangue nas mãos.
E foi só então – ao pensar no seu fracasso, em Claude/Cavalo, em como
colidiam – que percebeu como as duas coisas encaixavam.
Lore sentou-se na cama com um movimento abrupto.
– Merda.
Capítulo 17

Nada une mais as pessoas do que o desespero.


– Provérbio eroccano

G abe permanecia acordado quando Lore irrompeu pela porta do quarto,


embora já tivesse saído do estúdio empoeirado e olhasse fixamente para
a lareira com a sua habitual expressão pensativa. Despira a camisa e
empilhara a roupa da cama diante da porta e a luz das chamas dançava
sobre a superfície musculada do seu peito.
De sobrancelhas franzidas, virou-se de repente quando a porta dela bateu
na parede ao abrir-se.
– Lore?
Ela lançou um olhar rápido ao relógio na parede – era quase meia-noite.
Com sorte, toda a gente estaria a dormir ou entretida com outras atividades.
– Tenho de regressar às criptas.
– Como?
Lore enfiou os pés nas botas e deu rapidamente um nó no cinto do robe
que encontrara no armário da roupa. De belo corte, uma vez mais, e de um
tom de rosa-claro que ela nunca teria escolhido.
– O cadáver que despertei hoje… eu canalizei Mortem com ele tal como
fiz com o cavalo.
Não parou enquanto falava, movendo-se o mais depressa possível. Atrás
dela, Gabe levantou-se lentamente do sofá.
– Não estou a ver qual é o problema.
– O problema – disse Lore, sentando-se no chão para atar os atacadores
–, é que ele pode acordar, tal como aconteceu com o cavalo.
Cedric. Céus, teria acontecido também com Cedric? Tinham-no cremado
depois de Lore cortar os fios de Mortem que lhe davam vida ao corpo; teria
estado acordado nesse momento, a boca escancarada como a criança nas
criptas, num grito sem som?
Lore não reparou que estava a hiperventilar até Gabe lhe pousar a mão
no ombro, um peso tranquilizador. Esforçou-se por controlar a respiração
enquanto o Mort em tronco nu se ajoelhava diante dela, com a testa franzida
de preocupação.
– Mas tu tens de dizer a um cadáver humano o que fazer, certo? –
murmurou ele. – Não é como um animal; não vai levantar-se e andar por aí
às voltas. Podemos ir de manhã.
– Não. – Ela abanou a cabeça. Ao fechar os olhos, viu Cedric, o corpo
um horror, os olhos abertos. – Não, tenho de tentar resolver isto, não posso
deixá-lo assim. Não posso.
Gabe fitou-a, com o seu único olho a procurar os dela. A seguir, assentiu,
uma única vez.
Lore avançou para a porta, sem lhe dar tempo para mudar de ideias.
Gabe amaldiçoou a rapidez dela, pegando numa camisa e enfiando-a pela
cabeça, saltitando sobre um pé enquanto laçava os cordões das botas.
– Calma, Lore, não é…
– Tenho de resolver isto antes que o August ou o Anton vejam. – Não
sabia ao certo porquê. Mas sabia, com aquela sensação profunda e
primordial que lhe dizia como despertar os mortos, que nem o rei, nem o
sacerdote deveriam ver aquilo que a sua magia era efetivamente capaz de
fazer. Um cavalo era uma coisa, seres humanos outra.
E, apesar de o corpo na laje não poder voltar a ter verdadeira vida –
nunca mais voltaria a ter uma verdadeira consciência – a ideia de o deixar
sozinho na escuridão dava-lhe a volta ao estômago.
– Ninguém deve ter ido às câmaras mortuárias desde que tu e o August
de lá saíram, além do elemento da Guarda Sagrada – referiu Gabe, quase
tropeçando ao atar a segunda bota. Ainda não conseguira puxar a camisa
totalmente para baixo na sua tentativa de a acompanhar e tinha a bainha
presa na parte superior das costelas, exibindo uma perturbadora quantidade
de abdómen. – Não é um lugar que se visite sem mais nem menos. Se ele
despertou, ninguém terá visto.
Ela sentiu um profundo alívio, alívio e reconforto. Não havia garantia
que Gabe não viesse a dada altura a contar a Anton, mas por ora ele
escolhia-a a ela. Era suficiente.
Seguiram pelas escadas minúsculas na parte de trás do torreão, em
detrimento dos degraus existentes na frente. A curvatura da escada era tão
apertada que impossibilitava que se visse mais do que um pé à frente e Lore
seguiu constantemente de pescoço esticado para olhar para Gabe, mãos nos
corrimãos para prevenir uma queda.
– Será que o guarda nos deixa passar?
– O render é à meia-noite, por isso, se nos apressarmos, conseguimos
chegar lá sem que esteja alguém à porta.
– Ótimo. Então, vamos…
Lore foi interrompida quando o seu ombro embateu em algo que, por
mais desconcertante que isso fosse, parecia pertencer a outro ser humano.
– Pfff – disse o outro ser humano.
Lentamente, ela virou-se.
O pai de Alienor fitava-a de sobrolho franzido.
Estando uns degraus mais abaixo, ficava ao nível dos olhos de Lore, mas
ainda assim Lorde Bellegarde conseguia parecer impor-se diante dela,
mirando-a do alto de um nariz reto com uns olhos verdes de um tom quase
ácido, o cabelo escuro ordeiramente apanhado atrás do pescoço. Sorriu, mas
foi algo tão cingido como o resto dele e isso em nada tornou os seus olhos
mais calorosos.
Lore recompôs-se, e apresentou a vénia mais aceitável possível com um
robe. Atrás dela, Gabe ficou rígido como uma tábua.
– Perdoe-me, não vi por onde ia.
– Não tem mal. – Bellegarde inclinou a cabeça diante dela, lançando
depois um olhar a Gabe. Se o desconcertou vê-los desalinhados como
estavam e a descer apressadamente as escadas das traseiras, disfarçou muito
bem. – Gabriel Remaut. Pensei que nunca mais o veria na corte.
A sua voz soou fria o suficiente para fazer pele de galinha. Lore franziu
a testa e esforçou-se imenso para não roer uma unha.
O rápido espasmo de um esgar no rosto de Gabe revelava que ele tinha
dado pela frieza, mas não reagiu da mesma forma. Assentiu ao de leve com
a cabeça, como se estivesse num salão de baile e não parcialmente despido
à meia-noite numas escadas de serviço.
– Lorde Bellegarde, também tenho de admitir que nunca me tinha
ocorrido regressar.
– Catorze anos, na passada primavera. – O pai de Alienor uniu as mãos
atrás das costas. Apesar da hora tardia e do sítio bizarro, ainda vestia com o
requinte da Cidadela – camisa branca com mangas esvoaçantes sob um
gibão de seda creme com fio dourado, e calças a condizer. Mas enquanto
Gabe e Bastian por norma usavam botas, Bellegarde calçava uns pequenos
sapatos de tacão de um branco idêntico à sua camisa. Não lhe ficavam bem,
mas nem o calçado ridículo diminuía o peso da sua presença.
– Catorze anos – prosseguiu o lorde – e apenas agora corrigimos o mal
causado pela sua família. A reputação dos Bellegarde foi denegrida a par da
sua, apesar de você e a Alienor não terem proferido votos de casamento.
Lore olhou de Bellegarde para Gabriel, dedos bem cingidos sobre o
comprido laço do robe. Algo de bom, pois a sua vontade era dar um murro
na boca de Bellegarde.
Contudo, Gabriel aguentou o golpe baixo com um simples voltear de
olhos para o chão.
– Eu sei – limitou-se a dizer, num tom baixo e sincero. – Por favor, creia
em mim, Severin, nunca por vontade minha teria envolvido a Alie nos
problemas da minha família. Nada sabia dos planos do meu pai com
Kirythea.
Usar os nomes próprios de Bellegarde e da filha foi uma aposta perdida
– os olhos de Bellegarde petrificaram-se.
– E, todavia, estava presente na Balgia quando se deu a traição, e não
havia razões para ter deixado a corte. Percebe como isso leva a pensar em
conluio.
O maxilar de Gabe era uma linha reta de contenção arrancada a ferros.
– Havia circunstâncias atenuantes – disse ele num tom rígido. – Fui
enviado para a Balgia, não se tratou de escolha minha.
Tal não parecia convencer Bellegarde.
– E quando o Anton o trouxe de volta, nem assim fez algo para pôr fim
ao noivado, deixando para a nossa casa o trabalho de corrigir a
burocracia…
– Ele tinha dez anos. – Lore endireitou o corpo, encurralada entre os dois
nas escadas, lançando um olhar fulminante a Bellegarde, a transbordar de
desprezo. – Era uma criança.
Ela estava suficientemente perto para lhe sentir o cheiro da loção da
barba, mas Bellegarde olhou para ela como se tivesse esquecido a sua
presença.
– E agora isto – comentou ele, com uma risada desprovida de humor,
devolvendo todo aquele desprezo. – Deixar a defesa da sua honra a uma
prima do campo cuja existência me era desconhecida. A sério, Gabriel,
bravo.
Os dedos de Lore cingiram-se num punho. A mão de Gabe agarrou-a
como um grilhão.
– Desejava algo, Severin? – Devia soar zangado, mas Gabe parecia
apenas fatigado. – É tarde e calculo que, se subia ao torreão sudeste, teria
algum assunto em particular para discutir comigo. Os seus aposentos para a
estação serão sem dúvida mais elegantes e duvido que se rebaixasse a falar
com outra pessoa relegada para os recantos mais afastados da Cidadela.
Lore espreitou para Gabe pelo canto do olho, mas o monge não tinha um
ar desconfiado. Era como se achasse perfeitamente natural que Severin
Bellegarde aparecesse no quarto de alguém quase à meia-noite com o único
propósito de passar uma reprimenda.
Quase meia-noite. Deus Sangrante servido numa bandeja, eles tinham de
ir.
A expressão de Bellegarde nada revelou, mas a mão que tinha junto ao
flanco agitou-se. Lore olhou para baixo quando ele amarfanhou na palma da
mão o que parecia ser um pedaço de papel.
– Queria simplesmente dar-lhe as boas-vindas à corte, Gabriel. – O tom
de Bellegarde era tudo menos de boas-vindas. – A si e à sua… prima.
– Um pouco tarde para uma visita social.
Mas Bellegarde limitou-se a encolher os ombros.
– As horas por que se rege a Corte da Cidadela não são as mesmas que
se seguem lá fora. E, apesar de desejar ser educado, admito que visitá-lo
não fosse uma das minhas prioridades.
Gabe largou um suspiro pesaroso.
– Obrigado pelas boas-vindas, meu lorde. Lamento ter de dizer-lhe que a
minha prima e eu estamos a atrasar-nos…
– Sim, eu percebi quando interrompi a vossa correria pelas escadas
abaixo. – Bellegarde semicerrou os olhos ao mirar o robe de Lore. – Onde
poderá estar a ir com a sua prima assim meio despida?
– A uma festa, naturalmente – respondeu Lore antes de Gabe conseguir
sequer tentar, essencialmente por se ter apercebido do olhar de pânico dele
que revelava não fazer ideia do que dizer. – Uma festa da qual não pretendo
regressar antes de amanhecer. Mais vale ir confortável.
Bellegarde ergueu uma sobrancelha.
– Parece que se adaptou muito bem à corte.
Aquilo, aparentemente, seria a despedida dele. Ao fim de um momento
de certo embaraço ao terem de passar uns pelos outros, Bellegarde deixou-
os para trás, continuando a subir enquanto Lore e Gabe desciam. Lore ficou
a mirá-lo de sobrolho franzido. Então, ia fazer algo mais além de tentar
encontrar Gabe. Ou isso, ou a ideia de percorrer todo o caminho até ao piso
principal na companhia deles não lhe agradava de todo.
O sentimento era mútuo.
Imediatamente antes de Bellegarde apanhar um lanço de escadas que o
levaria para longe da vista, ele voltou a olhar para ela. Retesou a boca e
cerrou mais o punho junto ao flanco. A mão que segurava o tal pedaço de
papel.
Nem ela, nem Gabe abriram a boca até chegarem ao fundo das escadas
de serviço, saindo para o corredor com alcatifas escarlates que assinalava o
piso térreo do torreão, que saía do átrio de entrada da Cidadela.
– Que homem horrível – murmurou Lore, começando a percorrer o
corredor com mais ímpeto do que antes. – Que homenzinho desalmado.
– Não o tenhas em tão má conta.
As sobrancelhas de Lore arquearam-se de súbito perante tal comentário.
– O Bellegarde não tem o mínimo apreço pelos Presque Mort. Acha que
canalizar Mortem é um pecado imperdoável, que terá de haver outra
solução para o problema e que devemos esperar que Apollius nos mostre
qual. – Gabe encolheu os ombros, seguindo-a até ao vestíbulo num passo
rápido com significativamente menos ímpeto do que ela. – Se eu tivesse
sido condenado à prisão em vez de tomar os votos dos Presque Mort, ele
não teria qualquer problema comigo. Ou pelo menos, não teria um
problema tão grande. Sinceramente, o mais provável é que preferisse que eu
tivesse morrido dos ferimentos. Assim, dissolver o noivado teria implicado
menos papelada.
Lore fez uma careta ainda mais pronunciada.
– E, ainda assim, vi-o esta manhã no Santuário Norte. O que não só o
torna mesquinho e desalmado, mas também um hipócrita. Obrigada, mas
vou continuar a tê-lo em muito má conta.
– Apesar de todos os males que vê na Igreja, nunca falta às orações –
revelou Gabe. – Isso seria um insulto a Apollius. – Alcançaram a escadaria
ampla e de degraus suaves ao fundo do vestíbulo e desceram-na
rapidamente, pés calçados com botas gerando pouco ruído na alcatifa
grossa, as vozes pouco mais do que um sussurro. – O Bellegarde não
aprecia que a Igreja seja separada da Coroa, não aprecia que sejam duas
entidades diferentes em vez de um único corpo governativo. Acha que a
Igreja deveria estar sob o jugo do rei, dado que ele é o escolhido de
Apollius.
– Um teocrata. Encantador. – Lore revirou os olhos. – Imagino que isso
não o torne o melhor amigo do Anton.
– Praticamente, evitam-se um ao outro. – Nitidamente, a mera referência
a alguém que discordasse de Anton deixava Gabe desconfortável; não olhou
para ela e remexeu os ombros. – O Bellegarde e os da laia dele são escassos
e estão mais interessados em mostrar um ar repugnado, do que em tentar
mudar algo na verdade. A identidade deles passa por se mostrarem
incomodados; se realmente alcançassem o que alegam desejar, acho que não
saberiam o que fazer.
– A Alie partilha das ideias dele? – Lore esperava fervorosamente que
não.
– De maneira nenhuma. – Gabe abanou a cabeça. – Verdade seja dita,
não me parece que a Alie perca muito tempo a ponderar em assuntos
religiosos ou políticos.
– Que bela vida – suspirou Lore.
Pararam num átrio que se abria para vários corredores, com candelabros
a cintilar no alto, pontos de luz em contraste com as sombras projetadas
pela única lumieira acesa. Gabriel olhou para os corredores, parecendo
perdido.
– Sabes como chegar às câmaras mortuárias, certo?
– Está a querer dizer que não sabe?
– Nem toda a gente vai às câmaras, Lore. – O leve tom de irritação na
voz dele denotava uma certa raiva. – Apenas os mais ricos, os mais
privilegiados.
– Ou aqueles de nós recrutados para a necromancia. – Não apreciava
quando ele falava consigo como se ela integrasse as coisas que ele odiava.
Quando Gabe parecia esquecer que, tal como ele, ela não se encontrava ali
de livre vontade.
Ele olhou-a de relance e suspirou.
– Felizmente, para o seu pobre e pouco privilegiado couro – disse Lore,
posicionando-se diante dele –, tenho uma excelente memória.
Lore levou-o por corredores que mais pareciam um labirinto, o dourado
e a opulência que os iluminavam à luz do dia transformados em presenças
ominosas nas sombras. Não se cruzaram com vivalma, apesar de
ocasionalmente ouvirem vozes, com risos e gritos tornados trémulos e
espectrais.
Pelo menos, não encontraram vivalma até contornarem a derradeira
esquina. Ali, bem em frente à porta de acesso ao pequeno corredor com as
câmaras ao fundo, encontrava-se um casaca de sangue apoiado na parede,
baioneta afiada e reluzente. Ele bocejou, o som a ecoar em tanto espaço
vazio.
Praguejando em silêncio, Lore recuou, encostando-se a um quadro a óleo
de uns pastores com um ar muito embriagado.
– Pensei que havia apenas o Guarda Sagrado no túnel, não um cá fora.
– Uma mente tática para a posterioridade – murmurou Gabe.
– Goze comigo depois de tratar dele.
– Porquê eu?
– Porque você é o músculo e eu o cérebro.
Gabe lançou-lhe um olhar que indicou que poderia contestar aquele
conceito, mas depois desencostou-se da parede e avançou em silêncio. Para
um homem tão grande, movia-se como uma névoa, mantendo-se nas
sombras.
Ela não podia negar que ele era agradável à vista. Lore inclinou a cabeça
para obter um ângulo melhor quando Gabe se posicionou atrás do casaca de
sangue. Se ensinavam aquele género de furtividade no mosteiro da Ponta
Norte, ela conhecia uns quantos tipos na equipa de Val que bem precisavam
de passar lá uma temporada.
Céus, tinha de deixar de pensar em Val.
O casaca de sangue só reparou em Gabe quando o tinha já em cima.
Uma mão sobre a boca do guarda, outra a pressionar um ponto específico
na parte de trás do pescoço. Gabe baixou lentamente o guarda até ao chão,
encostando-o à parede, com o cuidado de nada prender na ponta afiada da
baioneta.
– Ele vai achar que adormeceu – murmurou Gabe. – Temos aí uma meia
hora. Chega?
– Esperemos que sim. – Lore seguiu em bicos de pés até junto do guarda
adormecido e abriu a porta para o corredor estreito, com Gabe a segui-la
rápida e silenciosamente.
O vestíbulo era iluminado apenas por velas; os cantos estavam
mergulhados numa profunda escuridão. Ardia uma vela em cada nicho,
projetando uma luz intensa sobre o rosto de Apollius, fazendo as pedras de
granada cintilar-lhe nas mãos.
Por momentos, Lore preocupou-se com a eventualidade de a porta do
túnel se encontrar trancada, mas esta abriu-se sem ruído quando a empurrou
– achou que seria irrelevante uma fechadura quando se dispunha de
guardas. E se Gabe servia de exemplo, apenas um punhado de pessoas
conhecia o caminho até às câmaras mortuárias.
O curto lanço de escadas de acesso ao túnel apresentava-se
completamente às escuras. Lore hesitou no umbral, recordando o corredor,
o Guarda Sagrado de vigia à porta. Olhou para trás por cima do ombro para
Gabe.
– O guarda… com a disposição deste espaço, não me parece que haja
forma de o contornarmos.
– Estás a subestimar as minhas capacidades de passar despercebido.
– A sério, Gabe, se calhar era melhor eu tentar regressar aqui de manhã.
Não quero que se magoe…
– Oh, sim, poupa-nos a isso – disse uma voz atrás deles.
Lore e Gabe estacaram, de olhos arregalados. O momento imediatamente
antes de a mola da armadilha a cerrar-se à volta da perna do coelho.
– Graças aos deuses que aqui estou. – Bastian saiu das sombras com um
sorriso ocioso nos lábios. – De contrário, iam estar com um azar do caraças.
Capítulo 18

Meus filhos, esforcem-se por não merecerem repreensão,


pois o perdão não é fácil de conquistar.
– O Livro da Lei da Morte, Opúsculo 403

L ore sentia a língua espessa e incómoda na boca, os pensamentos


ensarilhados. Não lhe ocorria qualquer justificação para estarem ali.
Junto dela, quase invisível na escuridão, Gabriel nem tentava justificar-
se. Segurava um punhal – onde fora ele buscar um punhal? – que refletiu a
luz da vela quando o encostou ao pescoço de Bastian.
Aquilo despertou Lore da sua apatia.
– Deus Sangrante, Gabe, quer ir parar à forca?
– Sabes, acho que é capaz de até querer. – Para alguém com uma lâmina
encostada ao pescoço, Bastian parecia incrivelmente descontraído. – O
derradeiro ato no seu interminável drama pessoal.
Os dentes de Gabe brilhavam com o fulgor do punhal.
– Palavras ousadas para alguém que está a ser ameaçado com uma
lâmina afiada.
– A sério, sinto-me magoado. – Bastian tentou esticar o pescoço para
espreitar por cima do ombro para a porta estreita. – Mas não ao ponto de
despertar o guarda do lado de fora. Pelo menos, para já.
Os seus olhos quase dourados cintilaram na escuridão.
– Já subornei o Sagrado do corredor, por isso já deve estar na pândega
numa tasca qualquer. Mas tenho a certeza de que consigo encontrá-lo, se me
apetecer.
As ameaças não eram exatamente subtis. Os três entreolharam-se, Gabe
ainda com o punhal encostado ao pescoço de Bastian e este com um ar nada
incomodado.
Coube a Lore quebrar o silêncio, dado que Gabe e Bastian pareciam
capazes de ficar ali horas. Ela contornou o Príncipe Sol.
– Tem alguém a seguir-nos?
– Claro que não. Eu é que vos segui. – Relanceando para Gabe, Bastian
ergueu a mão e desviou o punhal com um dedo. Os nós dos dedos de Gabe
embranqueceram, mas ele baixou a lâmina. – Ao contrário do meu pai –
prosseguiu Bastian –, prefiro encarregar-me da minha própria espionagem.
Um pingo de suor escorreu pelas costas de Lore. Ela fora uma tola em
achar que poderia ludibriar aquele homem, em pensar que havia uma forma
de permanecer incólume sabendo Bastian que ela era uma espia. O facto de
August subestimar o filho iria ser a morte dela, e também de Gabe…
Mas Bastian não sacou de repente de uma espada, nem de algemas, não
chamou guardas que a enviariam para as Ilhas Queimadas antes do nascer
do sol. Em vez disso, virou costas à entrada que dava para a própria
Cidadela, extinguindo pelo caminho as chamas nos nichos com as pontas
dos dedos. Espreitou para eles por cima do ombro, com um caracol negro a
tombar-lhe sobre o olho.
– Vêm ou não?
– De maneira nenhuma. – Gabe falou por entre dentes cerrados. A
deferência cuidadosamente contida que demonstrara pelo príncipe naquela
tarde já desaparecera por completo, restando apenas fúria.
– Que pena. – Bastian encolheu os ombros. – E eu que ia levar-vos às
criptas. Pelo menos depois de fazermos um desvio. – Apoiou um ombro na
parede e empurrou para trás o cabelo desalinhado. O príncipe não estava
vestido para se deitar, nem para a farra; em vez disso, vestia uma camisa
branca larga e calças pretas, com botas até aos joelhos. Roupa similar à que
vestiam nas Alas. – Pensem só em todas as coisas excitantes que terão para
reportar ao meu pai e ao meu tio.
Lore engoliu em seco. Gabe cerrou as mãos em punhos.
Bastian sorriu.
– Por isso, volto a perguntar. Vêm ou não?
Uma pausa. Então, Gabe assentiu a custo.
– Ótimo. – Bastian virou-se para percorrer o vestíbulo escuro, apagando
a última das velas ao passar por ela.
Acompanharam o Príncipe Sol, Gabe enfurecido, a ansiedade a irritar o
estômago de Lore. Tinham sido apanhados, sem ponta de dúvida, e ela não
fazia ideia do que Bastian faria com eles agora. Iria entregá-los a Kirythea,
se fossem genuínas as desconfianças de August? Chantageá-los para que
lhes dessem informações sobre August e Anton, enganando uns e outros?
Ela lançou uma olhadela a Gabe. Cair em desgraça sozinha já era mau;
pior ainda se o arrastasse consigo.
Uns dedos quentes agarraram os seus. Ele apertou-lhe a mão, olhou-a
intensamente pelo canto do olho. Isso aplacou-lhe os nervos e ela endireitou
os ombros.
Mesmo que o cadáver que ela reanimou tivesse despertado, como
Cavalo, não havia lá quem lhe desse ordens. A criança poderia estar
consciente, tanto quanto era possível a algo morto, mas seria como se
dormisse, em segurança no interior do túmulo. Por muito que detestasse
deixar assim o rapaz, as coisas poderiam esperar o tempo que durasse
aquele desvio com Bastian.
Assumindo que ele cumpria a sua palavra.
Bastian abriu a porta, cujo canto tocou no ainda adormecido casaca de
sangue do outro lado. O guarda ajustou a posição, mas não despertou,
acomodando a cabeça nos braços cruzados, quase a ressonar.
– Adormeceste-o bem. – Bastian espreitou para Gabe. – Vais ter de me
ensinar esse truque.
– É uma ordem? – resmoneou Gabe.
– Veremos. – Passando por cima do casaca de sangue, Bastian conduziu-
os de volta pelos corredores sinuosos. Tomou um caminho diferente
daquele pelo qual tinham vindo e passaram por uns quantos cortesãos aos
risinhos em cantos, pele a reluzir a dourado à luz da vela. Um homem
atraente com uma mulher de cabelo carmesim nos braços fez sinal a
Bastian, questionando-o em silêncio se queria juntar-se a eles, mas o
Príncipe Sol recusou a proposta com um aceno displicente. Nenhum dos
cortesãos pareceu abalado com a rejeição.
Lore ficou tensa quando alcançaram as portas de acesso aos jardins das
traseiras – aquelas que tinham transposto de manhã para acederem ao
Santuário Norte –, mas os guardas mal reagiram à presença de Bastian e
nada disseram quando este abriu as portas para o frio da meia-noite.
Aparentemente, os guardas da Cidadela estariam habituados às idas e
vindas do Príncipe Sol a horas improváveis. Isso em nada serviu para
apaziguar os nervos de Lore.
Bastian conduziu-os em silêncio pelos jardins, caminhando sobre relva
em vez de pelos caminhos empedrados. Seguiram na direção oposta daquela
por onde Lore deambulara mais cedo, mas ainda assim desembocaram
noutra floresta falsa com caminhos bem cuidados. Uma brisa soprava por
entre as árvores, fazendo rodopiar agulhas verdes e o aroma a pinheiro. Um
verão auverrani era abrasador durante o dia, mas surpreendentemente fresco
à noite.
Gabe estacou.
– Onde vamos?
– A um sítio interessante – respondeu Bastian. De mãos nos bolsos, a sua
passada era quase garbosa. – Dará uma bela história para August, dado que
aparentemente ele se mostra tão interessado com o que faço no meu tempo
livre. E vocês estão a precisar de um pouco de diversão.
– E se não quisermos? – questionou Lore.
O príncipe sorriu. Deu um passo na direção dela com uma graciosidade
fluída, o ar noturno a erguer os cabelos escuros dele, soprando o odor a
vinho tinto e perfume caro.
– Eu acho – disse ele tranquilamente – que é exatamente o que queres,
Lore. E a ideia que tenho de ti é que és o tipo de mulher que não perde
tempo a negar o que quer.
Ela passara uma vida a negar o que queria, a negar quem era e o que era.
– Não me conhece de todo.
Ele estava demasiado perto. Tal como Gabe, com um olhar fulminante
atrás dela. Sentiu-se encurralada entre os dois, demasiado quente,
demasiado tensa, demasiado tudo.
O sorriso selvagem de Bastian ampliou-se.
– Olha que conheço.
E aquilo de algum modo parecia tão genuíno, genuíno de uma forma que
não fazia sentido algum. Alcançava o interior do peito de Lore e fazia soar
cordas de harpa nas suas costelas. Por um momento, o ar em redor dos três
ficou mais denso, como se tivessem criado uma atmosfera só deles.
Gabe afastou-se, saindo do alcance da gravidade coletiva do trio, com o
vento a agitar-lhe o cabelo curto. Cruzou os braços sobre o peito e inclinou
o queixo, aproveitando ao máximo os poucos centímetros que o separavam
do príncipe.
– Se te acompanharmos, levas-nos às criptas?
– Claro, meu velho amigo. – Bastian virou-se e retomou a marcha. A
muralha da Igreja que apartava a Cidadela do resto de Dellaire impôs-se na
escuridão, projetando sombras profundas. – Levo-vos às criptas e vocês
dizem-me exatamente o que anda a tramar o meu pai. Toda a gente ganha.
Outra troca fugaz de olhares entre Gabe e Lore, outra tentativa de
comunicação sem palavras. Não eram muito bons nisso. O olhar de Gabe
não lhe revelou nada mais além de que se sentia suficientemente zangado
para abrir um buraco a pontapé numa daquelas árvores meticulosamente
podadas, e o encolher de ombros de Lore, que queria transmitir aceitação,
só lhe retesou ainda mais o maxilar.
Havia uma pequena galeria tapada por uma grelha de ferro na base da
muralha, quase impossível de ver até estarem praticamente em cima dela,
mas suficientemente grande para um adulto trepar por lá. Bastian curvou-se,
retirando da bota um ferro afiado que enfiou na fechadura. Esta cedeu
facilmente, caindo com um suave baque na relva.
– Mas, antes de tudo isso – anunciou Bastian, levantando a grelha de
ferro e encostando-a com cuidado à parede –, vocês estão a precisar de uma
aventura. – Baixou-se para entrar no pequeno túnel, fazendo-lhes sinal para
que o seguissem, e desapareceu com um som chapinhado que arrepiou
Lore.
Mais uma merda de um túnel. E aquele tinha água.
– Ele está a brincar connosco – murmurou Gabe num tom que pouco
mais era do que um sussurro.
O calor que emanava dele era um farol no ar noturno.
– Isto provavelmente vai acabar connosco esvaídos em sangue num beco
depois de lhe revelarmos os planos de August.
– Acho que dá conta dele, se chegar a esse ponto.
– Agradeço a confiança, mas não estou a ver que nos ajude.
– E eu não vejo outra saída. – Lore baixou-se na direção da grelha, mas a
mão de Gabe agarrou-lhe o braço com força.
Ela olhou para cima, fazendo má cara.
– O que acha exatamente que se vai passar se não obedecermos às
ordens dele, Gabriel? Ele encolhe os ombros e deixa-nos ir à nossa vidinha?
A não ser que queira um bilhete de ida para as Ilhas em menos de uma hora,
vamos seguir o maldito Príncipe Sol para dentro do esgoto.
Entreolharam-se intensamente por um momento até Gabe a largar,
fletindo a mão exageradamente para fora. Isso esticou a vela pintada na sua
palma numa proporção bizarra.
– Muito bem.
Ele passou primeiro pela grelha, seguido de Lore. Um chapinhar, com a
bainha do robe dela a ficar ensopada de imediato. O túnel era tão escuro que
os olhos dela levaram um minuto a habituar-se, e, quando isso aconteceu,
ela fez questão de não olhar para baixo. Não queria mesmo ver em que tipo
de lixo poderia estar a marinar.
– Mas há uma coisa que me intriga. – A voz de Bastian flutuou vinda da
escuridão mesmo diante dela, como se não tivesse havido uma pausa na
conversa, o que a sobressaltou. Uma luz tremeluziu, madrepérola e
cintilante, iluminando o rosto de Bastian quando ele levou o lume a um fino
cigarro que tinha na boca. – O que têm propriamente as criptas que ver com
o que quer que seja?
– Vai descobrir depois de nos levar lá – respondeu Lore, mostrando uma
bravata que em nada sentia. – Podemos dar a volta e ir já lá, se está assim
tão interessado.
– Uma negociadora – refletiu Bastian. Aproximou-se da grelha na parede
em frente, o brilho cor de laranja jorrando através da treliça metálica.
Içando-se para a saliência, voltou a retirar o ferro da bota e deitou mãos à
obra. – Por muito interessado que esteja no que possam andar a fazer nas
criptas, acho prudente satisfazer antes as minhas outras perguntas.
– Não vais chantagear-nos de qualquer maneira para te darmos as
respostas? – rosnou-lhe Gabe.
Bastian espreitou por cima do ombro, um sorriso cortante a tomar-lhe a
boca, que não alterava de todo o brilho sombrio dos seus olhos.
– Não te subestimes, Gabriel. Estou certo de que arranjas uma forma de
me passares apenas meias-verdades. Afinal de contas, aprendeste com o
melhor.
Gabe cerrou ainda mais o sobrolho.
O Príncipe Sol fez sinal a Lore com um gesto cortês da mão.
– Primeiro as senhoras.
Agarrou-a com força pela cintura antes de ela ter oportunidade de
avançar por si, puxando-a para tão perto que lhe agitou o cabelo com a
respiração.
– Isto dá para uma rua com acesso direto às docas – disse-lhe num
sussurro, como quem conta um segredo. – Não te afastes, junta-se aqui todo
o tipo de gente pouco recomendável. Mas isso tu já sabes.
Não lhe deu oportunidade de reagir, levantando-a para a saliência da
grelha. A pedra era escorregadia o suficiente para ela ter de se agarrar ao
ferro e içar-se de imediato, se não queria cair de novo na água de
composição duvidosa.
O bueiro abria-se para uma rua secundária praticamente abandonada. O
vento com cheiro a mar colou-lhe a bainha molhada do robe às pernas,
arrepiando-a. Ela voltou a cingir o robe, refez o nó do cinto. Rosa não era
decididamente a cor ideal para sair discretamente da Cidadela por um
escoadouro de águas pluviais.
Reconheceu a rua. Traficara ali beladona em certa ocasião, cosida aos
bolsos de um velho casaco de Mari, uma das primeiras vezes em que lhe
fora confiada uma missão a solo.
Mas isso tu já sabes.
Sentia o estômago às voltas como uma corrente submarina.
Atrás de si, Bastian emergiu do bueiro, parecendo em nada afetado por
isso. Sacou do bolso três máscaras dominó e um pano de linho branco.
– Tomem, vão precisar disto.
– Outro baile de máscaras? – Gabe falou como se tal perspetiva fosse tão
interessante como arrancar um dedo à dentada.
– Nada disso – troçou Bastian. – Todos o usam no ringue. As lutas são
ilegais, tecnicamente, e ninguém quer ver a sua identidade revelada. –
Exibiu um sorriso. – Mas, felizmente, não vos vou obrigar a enfiar um saco
na cabeça. É o que faz metade dos nobres.
Lançando um olhar carrancudo a Bastian, Lore atou a máscara sobre os
olhos ao mesmo tempo que o Príncipe Sol. A seguir, ele pegou no pano de
linho branco em que pegara juntamente com as máscaras e começou a
envolvê-lo em redor das mãos.
Como um pugilista.
Deus Sangrante com ligaduras.
A expressão de Gabe quando Bastian lhe entregou a máscara era
tremendamente sombria, mas ele nada disse. Limitou-se a atá-la,
endireitando-se com um olhar zangado. A máscara dava-lhe um ar mais
brando, quase, escondendo da vista a pala do olho. Fazia com que parecesse
menos alguém cuja vida fora indelevelmente marcada pela violência.
Bastian uniu as mãos com força.
– Muito bem. Nada como um revigorante passeio por um escoadouro de
águas pluviais. Em frente.
Começou a percorrer a viela. Entreolhando-se através das máscaras,
Lore e Gabe acompanharam-no.
– Reparou nas mãos dele, certo? – Lore baixou a voz para que Bastian
não ouvisse. – Ligadas. Vai levar-nos aos ringues de lutas e parece que ele
participa.
– Esplêndido. A última coisa que quero fazer esta noite é salvar o couro
ao Príncipe Sol.
– Parece estar certo de que ele vai perder. – Lore encolheu os ombros. –
Tem ar de poder ser um bom pugilista.
– Oh, ai tem? – A voz de Gabe soou grave e cortante.
Lore fez-lhe má cara.
– Esperemos que estejas errada – murmurou Gabe. – Se for derrubado
num combate de boxe, talvez esqueça a última hora.
– E também não conseguiria regressar às criptas.
– Podíamos perguntar ao Anton…
– Não. – Só de pensar nisso cerrou os punhos, algum instinto bem
enterrado a retrair-se. – Se algo correu mal com aquele cadáver, não quero
que eles saibam.
Se algo tivesse corrido mal, Anton e August poderiam deixar de encarar
o poder dela como um bem valioso. Poderiam começar a achar que se
tratava de algo demasiado perigoso para andar fora de uma cela.
Talvez até demasiado perigoso para se manter vivo.
Gabe cingiu os lábios, o seu olho azul avaliando a situação. A seguir,
assentiu.
Bastian percorreu descontraidamente a rua que se abria diante deles, sem
quaisquer sinais de preocupação. Nitidamente, tratava-se de uma atividade
regular para ele. Lore questionou-se se ele seria efetivamente um bom
lutador – por norma, quem perdia combates de boxe nas docas não ficava
ávido por regressar, para além de tender a ostentar provas físicas do
fracasso.
E se ela visse alguém conhecido? E se o seu robe tão fino, embora fora
de moda, a cara limpa e o cabelo limpo e escovado não bastassem para
esconder quem era? Não estava assim tão diferente, mesmo em roupas
noturnas de aristocrata, e não seriam poucos os seus conhecidos a
frequentar ringues de combate.
Teria simplesmente de se manter discreta. Não sair de junto de Gabriel e
Bastian, não estabelecer contacto visual, esperar não atrair demasiadas
atenções.
Saíram da viela como um desfile relutante, Bastian animado à frente,
Gabe irritado atrás, Lore apática no meio. A viela despejou-os entre dois
edifícios abandonados junto à entrada do porto, candeeiros a gás projetando
luz alaranjada na água escura. Um conjunto de candeeiros iluminava uma
doca desprovida de barcos, a multidão reunida já a tresandar a cerveja e a
suor. Todos usavam máscaras, umas mais abrangentes do que outras. Lore
deu por si a fitá-los com atenção, pensando se se cruzara com eles no
Santuário Norte.
– Não te afastes – murmurou Gabe, aproximando-se dela por trás
conforme Bastian seguia em frente.
Ela assim fez. A corpulência do Mort junto de si era reconfortante.
A multidão afastou-se para deixar passar Bastian conforme ele se
aproximava do ringue delimitado por fardos de feno, mas sem qualquer
reverência que indicasse que sabiam quem era. Não o fariam – para lá das
muralhas, a família real era uma abstração, algo que existia, mas com pouca
relevância no dia a dia, encarada com uma ambivalência a roçar uma
hostilidade preguiçosa. Não havia motivo para conhecerem o aspeto de
Bastian e este, nas suas roupas simples e punhos envolvidos em panos,
barba por fazer e máscara preta simples, parecia um deles.
No entanto, se houvesse nobres entre a multidão, lograriam identificar o
seu príncipe. Porém ninguém abriu a boca e Bastian avançou com a firmeza
de alguém que já fizera aquilo muitas vezes. O Príncipe Sol fazia o que lhe
apetecia e, se o que queria era ser sovado por plebeus, ninguém iria travá-lo
ou desmascará-lo.
Bastian despiu a camisa em andamento e, com um piscar de olho,
entregou-a a um homem de ar bastante impaciente na beira do ringue. O
príncipe era tão musculado quanto Gabriel, cicatrizes discretas a descolorar-
lhe a pele, ferimentos parcialmente curados amarelecidos e em tons de roxo
esmaecido.
Gabe e Lore deixaram-se ficar no fundo da multidão, que lhes prestou
pouca atenção. Felizmente, ela não reconheceu ninguém e suspirou de
alívio.
Até ver o adversário de Bastian.
Estava do outro lado do ringue, agitando punhos atados. Já em tronco nu,
um conjunto de músculos familiares, cabelo desgrenhado familiar.
Michal.
Lore fez um som estrangulado ao esconder-se atrás das costas de Gabe.
– O que se passa? – Ele olhou em volta, como se houvesse alguma
ameaça em que não reparara. – Lore, o que se passa?
Quando Gabe rodou para olhar para trás dela, criando uma abertura entre
tronco e braço por onde Lore conseguiu espreitar, Bastian fitava-a de olhos
semicerrados. Como se tivesse estado à espera de que Michal se virasse.
Como se tivesse estado à espera para ver se ela o reconhecia.
Claro que o Príncipe Sol não esperaria que uma espia lhe contasse a
verdade, mesmo sob ameaça. Claro que teria traçado um plano, um plano
que lhe mostrasse quem ela realmente era.
Não meramente uma espia. A rapariga da praça do mercado. A
necromante que despertara Cavalo. Michal sabia o que ela era – a forma
como ela reagisse perante Michal revelaria a Bastian tudo o que ele
necessitava de saber.
O Príncipe Sol fitava-a como um falcão mira uma ratazana, à espera.
Lore mordeu o lábio e obrigou-se a endireitar-se. Obrigou-se a olhar
diretamente para o príncipe como se tudo estivesse bem.
– Nada – disse ela a Gabe, que ainda olhava em volta em busca de uma
ameaça desconhecida. – Não se passa nada.
Bastian manteve aqueles olhos castanho-dourados a incidir nela,
inescrutáveis. A seguir, sorriu, mas não no jeito brincalhão e irreverente que
lhe era habitual. Aquele sorriso era cortante. Aquele sorriso era uma faca
que encontrara o seu alvo, mesmo que ela fingisse que não sangrava.
– Voltas sempre para apanhar mais. – Michal já erguera os punhos,
saltitando para a frente e para trás. Não havia violência nas suas palavras;
sorria a Bastian com camaradagem. – Ainda não te cansaste?
– Falas como se não te tivesse dado uma coça nos últimos dois
combates. – Bastian traçou um círculo predatório, sem recorrer aos socos no
ar de Michal. Nada de teatros, apenas a rondar.
– Mera sorte, meu caro. – O punho de Michal saiu disparado na direção
do rosto de Bastian. Este esquivou-se, rindo.
Michal e Bastian saltitaram e rodaram em redor um do outro, com
movimentos ferozes, mas treinados. Não havia malícia na forma como
combatiam, apenas uma precisão de profissional. Bastian evitou mais um
avanço da mão de Michal, baixando-se sob o braço para se erguer atrás do
adversário e atingir-lhe as costas com um golpe brusco. Michal agachou-se,
mas recompôs-se depressa, aproveitando estar em baixo para socar o joelho
de Bastian. A multidão urrou quando Bastian quase caiu, mas este depois
reequilibrou-se. Piscou o olho a Michal, desafiando-o a avançar com as suas
mãos ligadas e ensanguentadas.
– Vamos passar aqui a noite – murmurou sombriamente Gabe, braços
cruzados sobre o peito. – Ou mais, se nenhum deles se empenhar e derrubar
o outro.
Michal contornou Bastian, ainda a saltitar, mas os seus movimentos
tornaram-se mais irregulares. Toda a sua pose lhe era prejudicial, gastos de
energia inúteis. Também o fizera na cama, recordou Lore. Às vezes, as
acrobacias eram simplesmente desnecessárias.
Bastian, pelo seu lado, quase parecia descontraído, esquivando-se
facilmente a socos, apesar de ele próprio quase não os aplicar. Ainda assim,
brilhava-lhe suor no peito e sangrava no canto de um lábio onde Michal lhe
acertara com um dos seus golpes.
O príncipe espreitou por cima do ombro, fitando-a de novo. Diante dele,
ela viu vagamente a silhueta de Michal a preparar-se, engatilhando um
murro. A multidão gritou, com o jovem que ainda segurava a camisa de
Bastian praticamente aos saltos, mas Bastian não prestou atenção aos
avisos. O seu olhar manteve-se focado no de Lore ao erguer a mão para
lentamente limpar o sangue do lábio rachado.
Apanhei-te, disse ele com os lábios.
E, então, o punho de Michal chocou com o lado da cabeça de Bastian. O
Príncipe Sol foi ao chão.
Silêncio. Michal quase pareceu surpreendido, olhando primeiro para o
seu punho e depois para a multidão, como se procurasse a razão da
distração do adversário.
E descobriu-a. Aqueles familiares olhos azuis arregalaram-se.
– Lore?
A boca de Michal continuou a laborar, disparando perguntas, mas estas
foram abafadas pelo rugido da multidão. O ringue delimitado por fardos de
feno cedeu quando as pessoas correram para a frente para lhe dar os
parabéns e Michal foi levado pelos apoiantes, ainda com uma expressão de
puro choque.
Junto dela, Gabe ostentava praticamente a mesma expressão.
– Deus Sangrante e Deusa Sepultada – vociferou ele, virando-se
rapidamente para Lore. – Quem era…
– Um velho amigo. – Bastian estava junto dele, tendo-se aproximado
silencioso como um gato. Uma das suas faces sangrava, mas ele sorria,
aquele sorriso cortante que gelara as entranhas de Lore. Tinha a camisa na
mão, mas, em vez de a vestir, usou-a para limpar o sangue. – Se me dão
licença.
Agarrou o braço de Lore com força e fê-la avançar e ela não teve opção
que não fosse segui-lo enquanto o Príncipe Sol a levava para o escuro,
deixando Gabriel para trás, a gritar e bloqueado pela multidão.
Capítulo 19

Um segredo é uma chama, e não pode arder eternamente.


– Provérbio auverrani

L ore não tardou a começar a debater-se, lutando contra o inexorável


aperto de Bastian com palavrões que uma prima de um duque não
poderia conhecer. Mas isso já não interessava. Michal reconhecera-a e
agora Bastian sabia quem ela era.
O que ela era.
Lore contorceu-se, tentando libertar-se, mas Bastian continuou a puxá-la,
na direção da entrada de outra viela estreita enquanto os gritos da multidão
esmoreciam atrás deles.
Sem punhal, e em termos de força, não era adversária à altura do
Príncipe Sol. A Mortem era tudo o que ela tinha. E, apesar de não saber ao
certo o que poderia fazer com ela, na ausência de um cadáver para
despertar, teria de haver algo.
Susteve a respiração e esperou que a sua visão começasse a assumir tons
cinzentos, que os seus dedos se tornassem necróticos e frios. Mas isso não
aconteceu.
No seu lugar surgiu uma faísca. Um clarão atrás dos olhos. O odor
aquecido do ar no pico de verão, tão perto que ela esperou ficar
chamuscada. Colidia com a perceção de Mortem, familiar e vazio, um nada
tão compacto que tinha presença e massa. Por momentos, teve a sensação
de que as duas energias conflituantes poderiam despedaçá-la.
Bastian parou. O aperto sobre o braço dela não afrouxou, mas ela sentia-
lhe os dedos com espasmos.
Depois aquilo desapareceu, tão depressa que poderia ter sido o arranque
de um ataque de pânico abortado.
Ainda sentia a Mortem em redor deles, mas não a via, não conseguia
canalizá-la. A sua visão não se alteraria para o monótono que lhe mostrava
vida e morte; os fios não se uniriam a ela. Algo… repelia a Mortem, como
se tivesse sido erigida uma parede invisível em redor dela, interrompendo-a.
E por muito que Lore odiasse a sua capacidade, era como perder um
membro. O que quer que tivesse acontecido parecia não ter afetado o
Príncipe Sol. Ele puxou-a para um beco, tijolo enegrecido com lixo
amontoado. A seguir, Bastian largou o braço e virou-se para ela, avançando
até a deixar encurralada entre a parede e o seu peito ainda despido, mas sem
lhe tocar.
Ela tentou alcançar a Mortem, mas Bastian cerrou a mão com força no
braço dela e a sua sensação de morte voltou a desaparecer.
O que estava ele a fazer-lhe?
– Despeja tudo – rosnou Bastian, atirando para o lado a camisa
ensanguentada que segurava na outra mão. Desaparecera a arrogância
descontraída e quase preguiçosa que exibia na corte; os olhos de Bastian
refulgiam como pontas de baionetas, igualmente afiadas. – Ia esperar até
chegarmos às criptas para exigir as minhas respostas, mas agora que tenho a
certeza de que és a rapariga que despertou o Claude, constato que já percebi
tudo.
– Cavalo – corrigiu-o ela, pois o seu cérebro estava encurralado num
furacão e foi a única coisa que lhe fez sentido.
– Sim, Lore, eu sei que é um cavalo.
– Não, ele chama-se Cavalo, e não Claude.
Bastian voltou a abanar a cabeça, endireitando-se; o movimento uniu-
lhes os peitos. A mão esquerda dele ergueu-lhe o braço e assentou-a na
parede ao lado da cabeça dela.
– Chama o que quiseres ao raio do cavalo – disse Bastian –, mas diz-me
para quem trabalhas.
– August. – A ansiedade deixava-a com a voz fina, como se a garganta
não abrisse o suficiente para que saísse em pleno. – Já sabia isso.
– Só? – questionou ele. – Ou também estás na lista de pagamentos de
Kirythea? Parecias muito interessada no que eu sabia sobre eles.
– Não, não trabalho para Kirythea. Apenas para o seu pai. – Aos poucos,
Lore conseguiu controlar os nervos. Não dava a ideia de Bastian ter
planeado matá-la. Pelo menos, para já. – August acha que o Bastian
trabalha para Kirythea. Daí eu tentar descobrir o que sabia.
Ele fitou-a com um olhar tenso, um caracol de cabelo preto transpirado a
tombar-lhe sobre o olho.
– Bem – disse ele, ao fim de um momento. – Eis uma ironia com muita
piada.
Lore cerrou os maxilares, ainda encurralada entre o príncipe e o tijolo.
Não sabia o que esperar daquele outro Bastian, mais genuíno. Todos os
traços dele fervilhavam de raiva, daquela que tantas vezes se oculta. Agora,
sem amarras, era tão evidente que até lhe custava acreditar que nunca a vira
antes, distraída pelo Bastian divertido, pelo Bastian esperto, pelo Bastian
brincalhão, com quem parecia ser muito fácil lidar.
Aquele era o Bastian furioso e ela não fazia ideia do que fazer com ele.
A estranha gravidade regressara, tal como ela sentira quando ela, Bastian
e Gabe se encontravam na entrada da galeria. A cair na direção de algo
inevitável.
O Príncipe Sol recuou, mas não tanto que ela pudesse correr para a saída
do beco. As mãos dele permaneciam de ambos os lados da cabeça dela.
– É assim que vai ser. Vais contar-me exatamente o que levou o meu pai
a trazer-te para aqui. E a seguir vais dizer-me como é que conseguiste
canalizar mais Mortem do que todos os merdosos dos Presque Mort juntos.
– Acidente – respondeu Lore, agarrando-se à mesma desculpa que dera a
Gabe. – Quando era criança.
Bastian inclinou a cabeça, com um sorriso de predador a brilhar no
escuro.
– Oh, não, Lore – murmurou Bastian –, acho que começámos com o pé
esquerdo. Sabes, eu sei quem és. Sei que és uma traficante de veneno que
trabalha com o Michal. Sei que eras a guardiã deles, devido a uma estranha
afinidade que tinhas com as catacumbas. É notável, a sério, as coisas que as
pessoas te contam se as ouvires. Eu gosto de ouvir.
– É por isso que vem aqui levar uma coça? – despejou Lore. – Para
ouvir?
– Eu venho aqui porque, às vezes, estar dentro da Cidadela dá-me
vontade de arrancar os olhos – respondeu Bastian. – O ouvir é apenas um
bónus. Serviu-me para saber das aldeias, para saber como os nobres pagam
tão poucos impostos em comparação com toda a gente. Para saber que a
necromante que despertou um cavalo na praça do mercado era apenas uma
rapariga. Levar uma coça, como disseste, é na verdade a única maneira de
saber algo. Os deuses sabem bem que o meu pai nada me conta.
Lore não percebeu se o arrepio nos seus membros se deveu ao medo ou à
bainha ainda húmida do robe.
– Ora bem, eu não sei tudo. – Uma das mãos de Bastian largou a parede
para ir à bota. Retirou algo de lá. – Mas sei o suficiente para ter alguma
certeza de que a tua ligação à Mortem não surgiu da forma normal. Sei o
suficiente para saber que a verdade é bem mais interessante do que um
acidente na infância. Por isso, quando te faço uma pergunta, Lore, conto
com uma resposta sincera.
O que quer que tivesse retirado da bota cintilou na ténue luz do beco,
mais brilhante do que os seus dentes expostos. Um punhal,
descontraidamente seguro na mão, mas inclinado para que ela o visse
reluzir.
– Vamos tentar outra vez. Desta vez, podemos começar com as perguntas
sobre o meu pai, dado que és capaz de responder mais facilmente a essas. –
Bastian inclinou-se para a frente, perto o suficiente para a beijar. A lâmina
do punhal raspou ao de leve na seda do robe. – Para que te trouxe ele aqui,
além de para me espiar?
– As aldeias. – Ela podia tentar voltar a mentir, mas que interesse havia
nisso? Bastian continuava a não parecer prestes a matá-la, mas em qualquer
conversa que envolvesse uma lâmina seria de todo o interesse avançar com
a verdade. Gabe tentara avisá-la.
Gabe. Esperou que ele tivesse a sensatez de não ir atrás dela, mas não era
algo com que contasse.
Lore engoliu em seco, prosseguindo.
– O August e o Anton tentam descobrir o que aconteceu nas aldeias.
Querem que desperte os cadáveres e lhes pergunte.
– E desconfiam de algo? – Se Bastian se espantou com a tarefa que o pai
dele atribuíra a Lore, não o demonstrou. – Calculo que sim.
– Acham que se trata de Kirythea, usando algum tipo de magia
elementar que tenha sobrado dos deuses menores. E acham que o Bastian,
de alguma maneira, trabalha com eles.
Algo pareceu tomar a expressão de Bastian. Não era culpa, nada tão
simples. Quase como… dor. Isso suavizava os traços do ser predatório em
que se tornara.
– É claro que acham – comentou Bastian, discretamente. Resfolegou, um
som demasiado desgastado para ser o arranque de uma gargalhada. A
cabeça dele mergulhou apenas o suficiente para as sombras lhe ocultarem
os olhos. – Então, é por isso que é suposto ficares junto de mim, calculo?
Ela assentiu, depressa e abruptamente. Bastian segurava o punhal
frouxamente, quase como se tivesse esquecido que lá se encontrava, mas
ela decerto não se esquecera.
– Vejam só o que temos aqui.
Uma nova voz, oriunda da entrada do beco, aguda e arranhada.
Bastian revirou os olhos.
– Fantástico – murmurou.
Lore desviou o olhar do punhal cintilante do Príncipe Sol, focando-o
antes no vulto. Um pequeno homem branco envergando roupas andrajosas,
pisaduras nos braços e crostas numa face. Não parecia muito intimidante.
Mas o homem enorme atrás dele sim. Intimidante e de olhar vidrado, o
rosto pálido enrubescido. Ingerira recentemente uma dose de veneno.
– Cavalheiros. – Bastian virou-se, a mão que segurava a faca
gesticulando educadamente enquanto a outra permanecia apoiada na parede
junto à cabeça de Lore. – Apesar de admirar o vosso sentido empreendedor,
posso garantir-vos que nem eu nem a minha amiga temos algo de valor para
vos oferecer.
– Pelo vosso bem, espero bem que isso não seja verdade. – O homem
mais pequeno abriu as mãos com ar pesaroso. – Ou o nosso patrão vai ficar
ainda mais irritado do que já está.
– Perdeste. – O homem maior avançou, tornando mais fácil ver-lhe a
cara. Com cicatrizes e agreste, as orelhas dilatadas de anos de combates a
soco. Lore e Bastian ainda traziam as suas máscaras dominó pretas, mas
aqueles dois não, e isso em nada lhes melhorava o aspeto. – Perdeste e
saíste sem pagar.
– Um erro. – A voz de Bastian não soava preocupado, mas os seus dedos
remexeram-se em redor do punho do punhal e ele mostrava a mesma
imobilidade expectante que apresentara no ringue. – Tive de aproveitar uma
oportunidade de negócio, mas asseguro-vos que estou a caminho para pagar
o que devo. – O seu lábio curvou-se. – Assumo que tenham apostado contra
mim?
Pôs-se à frente de Lore enquanto falava, devagar e suficientemente
calmo para parecer descontraído, posicionando o corpo entre ela e os dois
homens. Agora, quase protetor.
Pelos deuses mortos e moribundos, ela não conseguia perceber Bastian
Arceneaux.
– Não te preocupes com isso – disse o homem das cicatrizes com um
sorriso perturbador. – Vamos fazer agora a recolha.
– Nunca pode ser simples – murmurou Bastian quando o punho do
homem das cicatrizes disparou na direção da cabeça dele.
Desviou-se, rodando sobre um joelho curvado para dar com a base da
mão nas costas do homem. Um grunhido, mas o homem das cicatrizes mal
pareceu afetado, girando para enfrentar Bastian a partir de um novo ângulo.
Aparentemente, o seu recente envenenamento não o tornara lento. O joelho
do homem subiu e Lore encolheu-se, mas passou junto ao queixo de Bastian
sem lhe tocar. A faca mantinha-se na mão dele sem ser usada, como se não
desejasse recorrer a uma lâmina a não ser que fosse necessário.
Porém algo mais reluzia em volta das mãos dele. Talvez fosse só um
efeito da luz ténue e de uma mente aterrorizada, mas o ar em volta dos
punhos de Bastian em movimento parecia-lhe imerso em ouro, com rastos
de brilho solar a seguir a sua pele.
Outro punhal prateado cintilou quando o homem das cicatrizes o sacou
do cinto, interrompendo a concentração dela em todo aquele estranho
dourado. Bastian não dava mostras de ter reparado e ela abriu a boca para o
avisar, mas foi travada por um choque de estrelas que explodiu na sua
têmpora. O homem das cicatrizes dera-lhe com o punho da sua adaga na
cabeça.
Lore caiu de joelhos, mangoando os ossos contra as pedras da calçada.
Então… algo frio e afiado no seu pescoço e uma bota entre as omoplatas,
mantendo-a de bruços.
O tempo abrandou. Os ouvidos dela retiniam, tornavam tudo cristalino e
abafado ao mesmo tempo. Lore já se encontrara em bastantes situações
onde perder a vida ou um membro era uma possibilidade, mas nunca tivera
a ponta de uma lâmina encostada a si, nunca estivera num local onde a
possibilidade de ajuda fosse praticamente nula. A ponta afiada da faca
quase vibrava com Mortem, os dedos dela tremendo ao mesmo ritmo.
Mas ela ainda não conseguia agarrá-la.
O olhar de Lore encontrou o de Bastian. Não sabia que olhar lhe lançara,
se implorante ou desafiante. Ele tinha-lhe perguntado o que fazia ela ali, o
que desejava o pai dele; essas eram as respostas que interessavam, e ele
tinha-as. As perguntas sobre ela, sobre a magia dela… isso era mera
curiosidade e a curiosidade não era motivo suficiente para a salvar, não
quando havia uma desculpa perfeitamente plausível para a morte dela com
uma adaga encostada ao pescoço.
Bastian podia deixá-la morrer e abandoná-la ali. Podia matá-la sem
sequer lhe tocar.
– Mais caro do que apenas as tuas perdas – rugiu o homem das
cicatrizes, cravando o joelho com mais força ainda sobre as costas de Lore.
– Vais pagar o dobro por teres armado um rebuliço. Imagina só quanta
beladona vou poder comprar com isso, hein?
Lore viu os cálculos mentais que Bastian ia fazendo. Viu-o a pesar e a
medir tudo.
A seguir, o príncipe enfiou a mão no bolso.
O gesto desconcentrou-o e o homem mais pequeno aplicou-lhe um soco
no estômago. Assim que Bastian se curvou para a frente, curvado sobre a
barriga, retirou a mão, com um grosso anel de sinete em ouro a cintilar na
escuridão.
– Se não se importam – disse Bastian, de alguma maneira conseguindo
falar sem grande dificuldade. – Libertem a minha amiga.
O homem mais pequeno olhou para o anel. Empalideceu.
– Milo. Larga a senhora.
Mas o homem das cicatrizes – Milo – não quis saber.
– Não me interessa quem ele seja. Ele deve e o meu fornecimento está
quase a acabar. – O punhal espetou mais um pouco, o suficiente para picar,
e Lore respirou a custo.
Bastian endireitou-se e cruzou o beco. A sua mão agarrou o cabelo de
Milo e puxou o pescoço do homem para trás, apontando a sua lâmina à
artéria vulnerável. Compunham uma cadeia demente de ameaças, a faca de
Bastian no pescoço de Milo, a de Milo no de Lore.
– Sou o Príncipe Sol de Auverraine, o herdeiro escolhido por Apollius –
silvou Bastian. – E tu vais soltar a senhora.
Uma pausa. E depois o corpo enorme de Milo desapareceu; Bastian
forçou-lhe o ombro, obrigando-o a ajoelhar-se ao lado do amigo mais
pequeno.
Lore inspirou a custo e fez força com os braços para se sentar; sentia as
pernas ainda demasiado trementes para se levantar. Um leve corte cruzava-
lhe o pescoço, um fino filamento de dor.
– Eu não queria ter recorrido àquilo – murmurou Bastian, enfiando o
anel de novo no bolso. Não olhou para Lore.
Já não se via dourado em redor das mãos dele. Uma ilusão criada pela
luz, então, o medo dela a afetar-lhe a visão. Provavelmente.
– As nossas desculpas, Vossa Majestade. – O homem mais pequeno
parecia aterrorizado. Milo curvou a cabeça demasiado longe para se ver a
expressão, mas Lore apostaria que seria de fúria. – Não sabíamos, não
fazíamos ideia…
– E gostaria muito que assim continuasse. – Bastian suspirou. – Eu
planeava regressar para pagar o que devia, após um… interlúdio.
Inclinou a cabeça na direção de Lore. Ela ainda se encontrava demasiado
abalada para fazer algo que não fosse olhar especada para ele. Salvara-a.
Tivera a oportunidade de se descartar dela, uma solução limpa para o seu
problema, e em vez disso salvara-a.
O que raio em toda a miríade de infernos haveria ela de retirar disso?
O príncipe virou-se para os meliantes.
– Provavelmente, não regressarei, para pena minha, mas apreciaria
imenso que mantivessem segredo em relação a isto. – Bastian sorriu-lhes; o
sorriso cortante, predatório. – E se eu souber que a notícia corre, saberei de
quem é a culpa, não é assim?
Assentiram. E quando Bastian ergueu de repente o queixo, dispensando-
os, quase tropeçaram um no outro ao tentarem fugir.
Na entrada do beco, Milo olhou para trás, as sombras obscurecendo-lhe
o rosto. E então partiu.
– Aquele teve muita sorte, depois do que fez. – A voz de Lore era rouca.
Massajou o pescoço.
– Podes dizer que foi magnanimidade. – A luz dos candeeiros a gás para
lá do beco iluminou Bastian em tons vermelhos e alaranjados quando se
virou para Lore. Estendeu-lhe a mão. – Ainda falta responderes a uma
pergunta.
Lore não planeara perguntar-lhe porque dera cabo do seu disfarce para a
manter viva. Mas pensou que se o tivesse feito, aquela seria a razão.
Perguntas sem resposta, curiosidade por satisfazer.
Não sabia se acreditava ou não naquilo. Havia mais uma coisa a
considerar, a par da luz que ela poderia, ou não, ter efetivamente visto em
torno das mãos dele, a par de ele a ter salvado – aquela sensação de
gravidade, de coisas a encaixar. De saber, o mesmo conhecimento que
sentia com Gabe, como se as partes mais profundas de si reconhecessem os
dois homens, mesmo que a sua mente e coração não conseguissem
acompanhar.
Ela aceitou a mão dele.
Bastian ajudou-a a levantar-se e depois soltou-a. Não voltou a encostá-la
à parede, confiando que ela não fugiria a correr. Tinham gerado algum tipo
de entendimento entre eles e nenhum queria ser aquele que o quebrava.
– E agora – disse o Príncipe Sol –, conta-me como é que conseguiste
tornar-te uma canalizadora de Mortem tão dotada. E desta vez não me
mintas, por favor. Tal como eu disse, vou perceber.
E perceberia. Ela estava tão ciente disso como do seu próprio nome, tal
como dos rebordos salientes da cicatriz da lua na palma da sua mão. Gabe
engolira a mentira dela, mesmo com aquela perceção de conhecimento, mas
a linha que a ligava ao Príncipe Sol, fosse qual fosse, era diferente – mais
espessa, mais forte.
Ele salvara-a uma vez. Nada garantia que o fizesse de novo, caso ela
fosse contra as ordens dele. Assim, Lore inspirou fundo e contou a verdade.
– Eu nasci nas catacumbas – murmurou. – De uma das Irmãs da Noite,
no que resta da Guarda Sepultada.
Capítulo 20

Haverá duas fações para controlar o poder da Deusa


Sepultada – os Presque Mort, os Quase Mortos, que
canalizarão a Mortem que chegue à superfície, e as
Veilleures Enterre, a Guarda Sepultada, que assegurará que o
que foi derrubado pelo vosso deus não se erguerá de novo.
– O Livro da Lei Sagrada, Opúsculo 35

S ilêncio.
A seguir, uma gargalhada rouca. Os olhos de Bastian eram um brilho
sombrio na escuridão da viela, as suas mãos ensanguentadas cerradas em
punhos envolvidos em panos de linho.
– A Guarda Sepultada? Foram desmembradas depois de a Feiticeira da
Noite ter enlouquecido. Já não há ninguém lá em baixo.
– Há, sim. – Lore engoliu em seco. Sentia a garganta como se tivesse
comido carvão em brasa. – Não restam muitas; talvez umas vinte. Mas
ainda lá andam. Ainda vigiam o túmulo de Nyxara.
Continuavam à espera. Continuavam a enviar alguém ao túmulo de
obsidiana em cada eclipse para verificar se o corpo da deusa se mexia. Lore
recordava-se do aspeto dessas pessoas quando regressavam. Inexpressivas,
olhares vazios, como se a perceção de quem eram lhes tivesse sido extraída.
As cicatrizes em forma de lua nas mãos num ardente e irado vermelho.
– Isso não faz qualquer sentido. – Bastian falou vagarosamente, como se
não confiasse na capacidade dela de o compreender. – A Guarda Sepultada
já não existe há séculos. A Igreja nunca permitiria a continuidade de uma
fação, não depois de a Feiticeira da Noite ter decidido que era Nyxara
renascida.
Lore encolheu os ombros.
– Tal como disse, não restam muitas. A Igreja matou a maioria depois da
Feiticeira da Noite… acharam que as outras poderiam ser infetadas pela
mesma loucura. Mas algumas delas conseguiram esconder-se e manter a
ordem viva.
– Então, como raio é que arranjaram novos elementos? Ninguém vai às
catacumbas.
– Vai, se não tiver mais onde ir. – Como a filha de um mercador, grávida
de um bebé bastardo que estava desesperada por manter. A mãe de Lore
fugira para as catacumbas quando os pais lhe disseram que a iam enviar
para um sanatório. Foi uma questão de pânico; só fora para lá para se
esconder.
Mas encontrara muito mais do que um esconderijo.
Bastian arqueou uma sobrancelha, numa expressão de pura
incredulidade.
– Então, as restantes histórias são verdadeiras? – Bufou. – Saem às
escondidas à noite e causam pesadelos às crianças malcomportadas?
Enfeitiçam cavalos para fazerem cair os seus cavaleiros?
– Não. – Abanou a cabeça. – A genuína Guarda Sepultada, as Irmãs da
Noite que fizeram os votos, nunca abandonam o túmulo, exceto quando
alguma das mais jovens é enviada à superfície para arranjar mantimentos.
Roubávamos ou trocávamos material que encontrássemos nos túneis.
Moedas perdidas, pedras preciosas. Iria surpreender-se com o que se
encontra quando se está atento.
A voz dela soava descontraída ao descrever tais bizarrias. Lore só
contara aquelas coisas a Val e Mari, quando lhes revelou o que era depois
de despertar Cedric. Sempre achara que não conseguiria voltar a encontrar
tais palavras, mas saíam-lhe com uma facilidade tremenda.
O Príncipe Sol semicerrou os olhos, mas não voltou a acusá-la de mentir.
– E ainda fazem o que indicam os Opúsculos? – A pergunta saiu
cautelosa. – Vigiam para garantir que Nyxara não se ergue?
– Têm um Compêndio. Leem os mesmos Opúsculos que os Presque
Mort. Seguem as leis da Igreja. – Apesar de contrariada, começou a sentir a
raiva em combustão no fundo do estômago. – A Guarda Sepultada foi
incumbida da pior tarefa possível, ao ser enviada para viver na escuridão, e
quando a líder previsivelmente enlouqueceu por causa disso, por estar
encerrada no subsolo junto do túmulo de uma deusa, a Igreja entendeu que
interpretara incorretamente os Opúsculos, e matou-as.
O cabelo dela estava pegajoso e húmido, colava-se-lhe à testa. Lore
estendeu o braço para o afastar e só quando Bastian lhe agarrou a mão é que
percebeu que usara a da cicatriz.
Recuou instintivamente – a cicatriz era invulgar, mas não ao ponto de
achar que teria de a esconder. Pelo menos, até então. Mas Bastian apanhou-
a depressa, usando a outra mão para lhe abrir os dedos e poder ver com
atenção.
Lentamente, abriu também a sua mão junto à dela.
Um sol. Bem, meio sol – gravado na parte de cima da palma, com os
rebordos ainda frescos e rubros, apenas a começar a cicatrizar. Um
semicírculo arqueava desde a base do dedo mindinho até ao polegar, as
curtas linhas de raios traçadas até à primeira articulação. Se unissem as
palmas, o crescente da lua de pernas para o ar dela encaixaria na perfeição
completando a curva do sol dele.
Ela recordou a Consagração dele, quando Anton pegara na faca e gravara
aquilo no sobrinho, como todos os presentes tinham parecido chocados.
– Que bela coincidência, não é? – murmurou Bastian.
Lore puxou a mão para trás.
– Foi assim que te deram a capacidade de canalizar Mortem? – quis ele
saber. – Ou foi apenas um pouco de pompa exagerada, como a minha? O
Anton é grande adepto da teatralidade.
– As Irmãs não me deram a capacidade para canalizar – explicou Lore. –
Eu nasci com isso. Não sei como, e acho que elas também não sabem.
Pelo menos, nunca lhe tinham explicado nada. Tudo o que lhe ofereciam
era olhares de esguelha e sussurros.
Bastian mirava-a como se ela fosse um enigma particularmente
complexo. Como se as respostas que lhe dera servissem apenas para gerar
mais perguntas. E, pelo Deus Sangrante, ela dera-lhe todas as respostas. O
Príncipe Sol de Auverraine sabia a verdade em relação a ela, uma verdade
que nunca revelara a ninguém além de Val e Mari. E até lhe contara mais do
que a elas – nunca havia revelado às mães adotivas que nascera
canalizadora de Mortem, que não adquirira o seu poder da forma habitual.
– Vamos – disse por fim Bastian, pondo-se a caminho. – Está na hora de
regressarmos, em especial se queres ver as câmaras mortuárias antes que o
sol nasça.
Se ele não ia falar mais sobre a infância dela, também ela não o faria.
– Primeiro, temos de encontrar o Gabriel.
– O Remaut sabe tratar de si. – Bastian estava perto da entrada da viela;
com um resmungo de frustração, Lore despachou-se a acompanhar o passo
dele. – E se voltarmos ao ringue, é provável que voltes a cruzar-te com o
teu antigo amante. Penso que será uma conversa que quererás evitar, dado
que também andavas a espiá-lo. – Lançou-lhe um olhar de relance por cima
do ombro, como se já previsse o espanto dela. – O Michal é mais esperto do
que achas; ele estava a par do teu jogo desde muito cedo. Contou-me
quando aqui vim na outra noite, depois do baile de máscaras. Acho que ele
te teria perdoado, se além de espia não fosses também necromante.
Ela tentou que aquilo não a afetasse.
– Alguma vez dorme?
– Os malvados não descansam, minha querida.
Brilhavam candeeiros a gás nas esquinas das ruas, projetando coroas de
luz com tons do sol poente. Tendo passado a ameaça de morte iminente,
Lore voltou a deixar fluir os seus pensamentos, abarcando mais do que
apenas um instinto de sobrevivência. Franziu o sobrolho nas costas de
Bastian.
– Achou que eu era uma assassina.
– Pareceu-me um cenário provável.
– Mas sabia que eu trabalhava para o seu pai. Por isso acha…
– Sim, Lore, acho que o meu pai é capaz de andar a tentar matar-me.
– Porque pensa que o Bastian trabalha com Kirythea.
– Não, na verdade – disse, os ombros ainda despidos e a ficarem tensos.
– Na verdade, tenho quase a certeza de que o meu pai sabe que isso são
tretas.
Lore mordeu o lábio inferior, deixando que as peças assentassem nos
seus lugares, as coisas que ele não dizia.
– Então, August quer apenas matá-lo. Recorrendo a isto como pretexto.
– Muito bem.
– Mas porquê? É o seu único herdeiro. E, se efetivamente o quer morto
porque não contrata simplesmente um assassino? Porquê toda esta charada
para o tramar?
De início, Bastian não respondeu. Seguiram caminho, entrando e saindo
das sombras entre candeeiros de rua.
– Eu e o meu pai nunca concordamos em nada – acabou por responder,
calmamente. – Nem em termos de governação, nem em termos de religião.
Sinceramente, acho uma estupidez que a coroa de Auverraine seja definida
por bênção de Apollius. Um deus ausente não deveria ter a última palavra
na aplicação das leis.
– Isso é heresia.
– Sem dúvida. – Bastian coçou alheadamente o flanco. Formava-se lá
aos poucos uma pisadura, com o rebordo a assumir um roxo vívido. – Acho
que o meu pai assume que esses pensamentos se devem apenas a não querer
a coroa para mim. E tem razão. Não quero. Mas não a ponto de querer
entregar o país a Jax e ao Império Kirytheano.
– Então, porquê matá-lo?
– Eliminaria a possibilidade de eu mudar de ideias – respondeu,
secamente. – Quanto a não contratar simplesmente um assassino, August
conhece esta corte. Sabe que o desdém que sente por mim não é segredo
para ninguém. Se eu simplesmente aparecesse morto, ou tivesse uma morte
acidental, haveria sempre rumores. A linhagem Arceneaux é abençoada,
não te esqueças, somos avatares do nosso deus. Não nos cairia bem sermos
suspeitos de assassínio, em especial podendo ele acusar-me de ser um
espião kirytheano, com uma desculpa perfeita para me executar. – Lançou-
me um olhar irónico. – Disse-te para não me largares, não foi? Deve estar a
planear plantar provas para tu encontrares. Então, terá a palavra de um
homem pio e da prima de um duque – espetou um dedo no ombro dela –
para o apoiar. Ninguém questionará os seus motivos.
– Então, porque é que não foge? – questionou Lore. – Se acha que o seu
pai está quase a ter um pretexto para o mandar assassinar, se nem quer o
raio da coroa, porque é que permanece na Cidadela?
– Porque a Cidadela é minha. – A resposta dele foi dita com uma
veemência com que ela não contava. – Mesmo que não a queira, fugir não
resolve nada. Não quero ser o Príncipe Sol, mas sou, e isso acarreta
responsabilidades. Se quero ver mudanças, terei de ser eu mesmo a fazê-las.
– Lançou-lhe um olhar de esguelha. – E se o meu pai puder escolher o seu
próprio herdeiro entre os restantes familiares Arceneaux, o que poderá fazer
não estando cá eu, não será alguém que venha a ser bom para Auverraine.
Tenho poucos parentes e são todos horríveis.
Lore pensou no que ela e Gabe tinham conversado nos aposentos, sobre
tentar estancar um rio com um seixo. Mas Bastian não era um seixo, era um
rochedo.
– Surpreende-me sequer que ele se preocupe em ter um herdeiro, para
ser sincera. – Colocou-se ao lado do Príncipe Sol, acompanhando-o por ruas
que lhe eram familiares. – Toma veneno regularmente e assumo que tenha
um traficante de morte que conheça as quantidades certas. Parece que tenta
tornar cada vez mais irrelevante a questão de ter de passar a coroa.
Bastian nada disse, mas olhou repentinamente para ela, desviando depois
o olhar. Cerrou a boca, pensativo.
Contornaram uma esquina e Bastian agarrou-lhe o cotovelo,
encaminhando-a para a galeria talhada na Muralha da Cidadela – ela não a
vira, escondida nas sombras.
– Tu e o Remaut vão ter de se tornar melhores atores – disse ele,
mudando de assunto. – Toda a gente na Cidadela tem faro para detetar tretas
e ele não olha para ti como quem olha para uma prima.
– Então, olha para mim como? – Lore puxou o cotovelo da mão de
Bastian.
– Como se não estivesse particularmente agradado com aquele voto de
celibato.
Ela sentiu as faces a corar.
Com um sorriso, Bastian apontou para a galeria com a sua mão com o
sol marcado.
– Faça favor, minha senhora.
Lore baixou-se para o túnel, voltando a molhar a bainha. Bastian
chapinhou atrás dela e assumiu a liderança, segurando o seu isqueiro.
– O Gabriel sabe regressar à Cidadela, certo? – questionou Lore.
– Ele é um tipo despachado, há de encontrar o caminho. – A chama do
isqueiro tremeluziu nas paredes oleosas. Algo em forma de rato correu para
as sombras. – A tua preocupação é tocante.
O seu tom contradizia as palavras. Lore franziu o sobrolho nas costas
dele, levantando a bainha para evitar a água.
– Foi enredado nisto da mesma maneira que eu.
– Mas, por muito que assim seja, o Gabriel é leal a uma única pessoa. E
por muito interessante que sejas, Lore, não me parece que possas competir
com Apollius. Se surgir a oportunidade de te usar ao serviço do deus dele, o
Remaut vai aproveitá-la. – Virou-se para ela, a chama a dourar o cabelo
escuro dele com uma luz demoníaca, mantendo-lhe os olhos na sombra. –
Na realidade, parece que sou a única pessoa que sabe quem és e do que és
capaz e que não tenta tornar-te um instrumento.
Não era verdade, mas também não era reconfortante. Gabe não sabia o
que ela era, não mesmo. Não como Bastian sabia.
Deus Sangrante e Deusa Sepultada, esperava que aquilo não fosse um
erro.
– O Gabe não está a tentar usar-me – disse ela em voz baixa. – Está a
tentar manter-me em segurança.
O príncipe virou-se para trás com irritação, abanando a cabeça.
– Estás assim tão habituada a ser usada que nem percebes quando
acontece, desde que feito com gentileza?
Ela não tinha resposta para aquilo.
Capítulo 21

A natureza curva-se para a maldade – atentem ao eclipse. O


céu escurece quando devia haver luz, com a lua a sobrepor-
se ao sol. É um momento em que as forças negras se
impõem. Mas não temam, pois até isso pode ser usado.
– O Livro da Lei Sagrada, Opúsculo 745[1]

O percurso pelo túnel curto não demorou, mas Lore estava ensopada até à
cintura quando chapinharam ao subir para a derradeira saliência na
outra ponta e caminhar através de toda aquela água fora suficientemente
cansativo para a deixar a transpirar. Queria desesperadamente limpar a cara,
mas receava o que poderia ter nas mãos.
– Com que frequência é que faz isto? – questionou, virando-se para
Bastian. – E como é que na miríade de infernos disfarça tanta roupa para
lavar?
– Costumava ser mais ou menos uma vez por semana, mas acho que
agora vou ter de reduzir a frequência, dado que pelo menos dois dos
sicários de apostas sabem quem sou. – Bastian saltou para cima, para junto
dela, praticamente sem mostrar sinais de cansaço. – E por norma deixo
apenas as roupas na galeria e atravesso os jardins nu. É refrescante e quem
der com elas por certo que precisa mais do que eu.
– Por favor, diga-me que não está a contar livrar-se agora da roupa.
– Vou proteger a tua delicada sensibilidade, embora isso decerto vá
resultar numa agonizante assadura. – Bastian agarrou-a pela cintura e içou-a
do bueiro para os jardins da Cidadela.
Diretamente para diante de Gabriel.
O Presque Mort cambaleou para trás, abraçando Lore para a equilibrar.
– Estás bem? – perguntou, passando-lhe as mãos pelos ombros e até aos
pulsos. – Ele não te fez mal?
– Devo sentir-me ofendido? – Bastian trepou para fora do bueiro, com
um sorriso no rosto, mas um olhar fulminante. – Acho que me sinto
ofendido.
– Ele não me fez mal. – Lore não mencionou os momentos intermináveis
na viela em que lhe tinha parecido que talvez fizesse. Afastou-se do abraço
de Gabe e espreitou-lhe o rosto. Uma pisadura manchava-lhe o lado oposto
à pala e tinha sangue seco sob uma fenda no lábio. – O que lhe aconteceu?
– Deparei-me com uns sicários que achavam que eu tinha uma dívida por
pagar. – Gabe tirou uma crosta de sangue. Isso não melhorou o aspeto do
seu rosto. – Assim que me escapei, não vos encontrei, por isso vim aqui
pedir ajuda ao Anton.
Claro. Lore ficou a pensar se Gabe planeara contar tudo ao Supremo
Sacerdote, incluindo o cadáver possivelmente reanimado nas câmaras
mortuárias, ou se teria deixado isso de fora.
Não teve logo a certeza, o que fez com que desviasse o olhar dele e
cruzasse os braços como se pudessem servir de barreira.
Gabe não reparou. Virou-se para Bastian, os punhos cerrados nos
flancos, como se exigisse um esforço monumental não enfiar um deles na
cara do Príncipe Sol.
– Que raio, na miríade de infernos, foi aquilo, Bastian? Arrastaste-nos
até às docas para brincarmos aos plebeus, levaste uma sova…
– De propósito, acho que é melhor realçar.
– …e depois raptas a Lore e deixas-me lá? – Enquanto falava, Gabe foi
avançando até ficar mesmo diante de Bastian, cinco centímetros mais alto e
aproveitando isso para se impor. – Que merda foi essa?
– Tento na língua, Vossa Graça – admoestou-o, sem se deixar perturbar
pelo enorme monge irado que tinha diante de si. – Peço desculpa por te ter
deixado em apuros, mas parece que te desenrascaste bem.
Gabe ignorou-o, irritado.
– Podes ser o príncipe, mas não podes simplesmente…
– Ele sabe, Gabe.
A voz de Lore interrompeu-o a meio da frase. Gabriel estacou e depois
virou-se para olhar para ela, com os ombros rígidos.
– Tudo?
Ela assentiu, desalentada.
– Tudo.
Gabe imitou o aceno de cabeça dela. A seguir, virou-se para Bastian e
empurrou-o contra a parede.
– Gabriel! – gritou Lore, mas o Presque Mort não estava a ouvir. Tinha
as mãos a pressionar os ombros de Bastian, o nariz a meros centímetros do
do príncipe, os dentes arreganhados.
– Então, como é que vais matar-nos, Bastian? – resmoneou ele. – Sabes
o que fazemos aqui, que o teu pai sabe que estás a enviar informações para
Kirythea e esperas que acredite que vais simplesmente deixar a coisa
passar?
O pescoço de Bastian estava tenso, mas ele riu-se como se tudo não
passasse de uma brincadeira.
– Eles apanharam-te mesmo, não foi? Fizeram-te pensar que a única
maneira de te absolveres da traição do teu pai era vendo-a em todos os
outros.
Os braços de Gabe tremeram um pouco. Lore não percebeu se era da
força de pressionar Bastian contra a parede ou da contenção de não o socar.
– Para eles nunca há de bastar, Gabe. – Apesar do sorriso malévolo, o
tom de voz de Bastian era brando. – A Igreja e a Coroa não esquecem, não
perdoam, não mais do que os deuses fizeram antes deles. Mas hão de
continuar a acenar-te com isso, como uma miragem no raio de um deserto.
E tu vais andar sempre atrás, mesmo sabendo que é algo inalcançável.
Ficaram a olhar um para o outro. Então Gabe empurrou-o de novo contra
a parede.
– Parem os dois. – Lore agarrou o braço de Gabe e puxou-o para trás.
Por momentos, ela achou que ele a ia repelir, mas ele cedeu, embora com
relutância. – Bastian, cale-se.
Bastian agitou os ombros, retraindo-se. Mas calou-se.
Lore virou-se para Gabriel, respirando com dificuldade, como se tivesse
sido ela a ficar a segundos de uma briga.
– Isto pode ser-nos útil – disse ela calmamente, sem olhar para o
Príncipe Sol. Roçava bem de perto o que ele dissera no túnel, todas aquelas
questões sobre usar e ser usado. – Há uma boa hipótese de o August estar a
tramar o Bastian.
O Presque Mort lançou-lhe um olhar fulminante.
– Ele disse-te isso?
– Isso interessa? – Lore não sabia como explicar que sabia que Bastian
dizia a verdade, pelo menos em relação àquilo.
– Não o conheces. – Gabe abanou a cabeça. – Lore, o Bastian é…
– Já te ocorreu – interrompeu descontraidamente Bastian – que baseias
todas as tuas suposições relativas a mim no que achavas de mim quando eu
era uma criança? Para ser sincero, parece-me injusto. Em especial tendo em
conta como correu para o teu lado quando as pessoas te fizeram o mesmo.
Os dedos de Gabe cerraram-se lentamente junto ao seu corpo.
Ao fim de um momento, endireitou-se, com o seu único olho pétreo.
– Se queres acreditar nele – disse a Lore, ignorando por completo o
príncipe –, não vamos de imediato ter com August. Vamos contar primeiro
ao Anton e ver…
– Não – disseram Lore e Bastian em uníssono.
Gabe soergueu as sobrancelhas.
Bastian desencostou-se da parede.
– O meu pai quer que eu desapareça – disse ele, como quem comenta o
estado do tempo. – Não estou ansioso por ver o que fará ele se o plano para
se livrar legitimamente de mim… pelo menos aos olhos de Auverraine…
for perturbado. – Apanhou o cabelo comprido, húmido devido ao suor e à
água do escoadouro e prendeu-o num nó junto à nuca. – E há ainda a
questão de aldeias inteiras que morrem do dia para a noite. Pessoalmente,
gostava mesmo de perceber o que se passa.
– Ainda não me deste um motivo para confiar em ti – frisou Gabe, entre
dentes. – Podes ter iludido a Lore, mas vai ser mais difícil comigo.
Ele proferiu o nome dela como se fosse uma reprimenda. Como se
contasse com mais da parte dela. Lore retesou os braços sobre o peito, com
a vergonha e a raiva a gerar-lhe um sabor a cinza ao fundo da boca.
– Então, e que tal este motivo. – Bastian endireitou-se, de alguma forma
mostrando um ar régio apesar do peito despido e do cabelo desalinhado. –
Se envolverem o meu pai e o meu tio de uma forma que eu não deseje,
envio-vos a ambos para as Ilhas Queimadas.
Lore não conseguiu engolir a sua sôfrega inspiração de ar.
O olhar de Gabe incidiu nela, com a rigidez que tinha demonstrado até
então a esvair-se lentamente. Dedo a dedo, descerrou as mãos.
– Muito bem – rosnou.
– Perfeito. Está combinado. – Bastian sorriu. – Calculo que agora
trabalhem os dois para mim.
Mas lá por Gabe ter cedido, tal não implicava que o fizesse em silêncio.
– Então, desde quando é que te interessas pelas mortes dos teus
súbditos?
– Gabriel. – A voz de Lore soou cortante, mas a discussão recomeçou,
embora felizmente sem violência desta vez.
– Desde o início que me interesso, Remaut. – Bastian enfiou a mão no
bolso e sacou de outro cigarro. Lore não percebia como o mantivera
suficientemente seco para o acender, mas fê-lo sem problemas. Soprou uma
nuvem de fumo. – Pelo menos, desde que fui capaz, dado que tanto o Anton
como o August se esforçaram ao máximo por me manter às escuras quanto
aos pormenores.
– Precisas mesmo de pormenores quando provavelmente estás
envolvido?
– Há uma maneira simples de descobrires, Gabe. – Bastian enfiou as
mãos nos bolsos e sorriu. – Porque não se limitam a perguntar ao cadáver
quando formos às criptas? Afinal, é isso que a Lore é suposto fazer, não é?
Ela pensou no que acontecera naquela tarde, quando August a
repreendera por fazer perguntas ao cadáver que despertara em vez de lhe
dizer para obedecer a ordens. Na altura, não dera grande importância à
questão, mas agora questionava-se por que seria que August e Anton não a
queriam ter por perto quando o morto começasse a responder a perguntas.
– Eu volto a perguntar – disse ela. – Quando formos, volto a perguntar.
– Excelente. – Bastian avançou, caminhando descontraidamente de volta
ao bosque cuidado. O céu já se apresentava mais claro, com a iminência do
alvorecer a espreitar nas beiras. – Se houver mais traumas de infância a
resolver depois disso, podemos fazê-lo ao pequeno-almoço.

No interior da Cidadela, os salões encontravam-se vazios. Até os mais


empenhados na farra já se tinham retirado para quartos privados. Os passos
deles ecoavam no chão de mármore enquanto Bastian os encaminhava uma
vez mais pelo labirinto de apliques de ouro, pinturas a óleo e estátuas
incrustadas com pedras preciosas até à porta estreita e discreta das criptas.
O guarda que Gabe incapacitara antes já despertara. Estava
sonolentamente de vigia, a ponta afiada da baioneta a tombar lentamente
para o chão antes de ele despertar a cada par de segundos para a endireitar.
A sua testa enrugou-se ao vê-los chegar, mas, ao reconhecer Bastian,
endireitou-se rigidamente e inclinou a cabeça, não parecendo minimamente
perturbado com o facto de o príncipe se apresentar em tronco nu.
– Majestade.
– Ave. – Era a palavra mais régia que Lore alguma vez ouvira Bastian
dizer, nada que fizesse pensar que passara as últimas horas a ser sovado nas
docas. – Eu e os meus amigos temos assuntos a tratar aqui. A mãe de Lady
Eldelore está mal de saúde e comprou recentemente uma câmara mortuária,
com instruções específicas para que a filha a inspecionasse em vários
momentos do dia e da noite.
Uma série de tretas, mas, naquela voz afetada e principesca, soava
convincente. A expressão do guarda não revelou se ele tinha engolido a
patranha ou não, mas assentiu e abriu a porta atrás de si.
– O Guarda Sagrado ainda se encontra no seu posto.
– Ele não está a contar connosco, mas eu explico-lhe. – Bastian agitou a
mão para o dispensar e o guarda afastou-se para o lado.
Os três percorreram em silêncio o corredor que havia atrás, ainda escuro
– ninguém reacendera as velas depois de Bastian as ter apagado. Tornava-o
uma forma vaga nas sombras, cabelo preto, pele despida e nós dos dedos
ensanguentados. Empurrou a porta de acesso ao túnel e, com uma vénia,
deu passagem a Lore.
Atrás dela, Gabriel bufou.
O Guarda Sagrado posicionado na extremidade do túnel curto nada disse
ao vê-los aproximarem-se, mas afrouxou o aperto na baioneta ao reconhecer
o Príncipe Sol. Bastian não esperou que ele falasse.
– Temos assuntos a tratar aqui – disse, secamente.
O Guarda Sagrado assentiu com a cabeça, embora o seu olhar repousasse
com curiosidade em Lore. Sem dúvida que a reconhecera da visita anterior.
Fantástico.
Porém, a mente dela não tinha muito espaço para se preocupar com os
irmãos Arceneaux e com o que pensariam de ela ir às criptas com Bastian
ou o que julgariam da reanimação de Cavalo quando inevitavelmente
viessem a saber. Inventaria algo, mentiria o suficiente para o explicar de
uma forma satisfatória.
Naquele momento, estava demasiado ocupada a conter as náuseas face à
perspetiva de voltar a ver o cadáver da criança. Face à perspetiva, também,
de o rapaz ter regressado numa qualquer parecença horrível de semivida.
– Lore? – Gabriel, brando e preocupado.
Ela abanou a cabeça, endireitando-se.
– Estou bem. – Partiu na direção da câmara onde August a levara,
esforçando-se ao máximo por não deixar tremer os dedos. Acima deles, as
estrelas circulavam pela cúpula de vidro do teto, o céu índigo raiado a tons
de violeta.
A abertura na lateral da torre de pedra escancarava-se como uma boca
desdentada. Bastian cruzou os braços, inclinou a cabeça.
– É esta?
Lore assentiu. Sentiu-se pateticamente grata por Bastian entrar primeiro,
baixando-se para passar na abertura circular e desaparecendo na escuridão.
Com mais uma espreitadela para ela e um suspiro intenso, Gabe
agachou-se para entrar. Lore inclinou a cabeça para ver o céu noturno
através do vidro, inspirou fundo e seguiu-os.
Os seus olhos adaptaram-se aos poucos à escuridão. Bastian mantinha-se
entre as mãos estendidas do Apollius de pedra, a cavidade do peito do deus
logo acima dele, como se ele fosse o coração em falta. Gabe posicionou-se
diante dele, encostado ao canto oposto.
O corpo da criança na laje estava imóvel. O alívio deixou-a com as
pernas trémulas. O que acontecera com Cavalo teria sido um erro, talvez ela
não tivesse cortado bem a ligação deles…
Mas, então, como se desse pelo seu cheiro no ar, o corpo sentou-se.
O movimento não foi natural. Os braços do cadáver balançaram
frouxamente quando se dobrou pela cintura, como se tivesse um fio atado à
cabeça, a puxá-lo para cima. Os olhos abriram-se lentamente, poços negros
no rosto pálido, enquanto o cadáver se virava lentamente para Lore. Como
se tivesse estado à espera dela, para receber ordens.
A fraqueza nos joelhos já não se devia ao alívio.
– Merda – suspirou Bastian. – Merda na Muralha da Cidadela.
Gabe nada disse, mas o próprio ar atrás dela era tenso e frio, como se o
choque tivesse escorrido dele para infetar a atmosfera.
Ela levou um momento a recordar o que fazia ali, confrontada com
aqueles olhos pretos. Precisava de perguntar ao cadáver o que acontecera.
Precisava de lhe pedir que dissesse a verdade.
– O que te matou? – sussurrou.
A boca pequena desengonçada, um círculo negro. Falou sem se mexer.
– A noite – disse a criança, numa voz que parecia uma derrocada de
pedras. – A noite matou-me.
Os quatro – Lore, Gabe, Bastian e o cadáver – mantiveram-se imóveis e
em silêncio. Então, Bastian apontou para a laje.
– Vês, Gabe, bem te disse que não fui eu.
Gabe remexeu-se e ignorou-o por completo.
– A noite não é de grande ajuda.
Lore uniu as sobrancelhas, a sua concentração completamente a incidir
na criança diante de si. A boca voltou a abrir-se, desta vez de forma ainda
mais ampla.
Ela contava com um eco da mesma mensagem. Mas pareceu-lhe
diferente. Os lábios continuavam a não se mexer, as cordas vocais mortas
sem funcionar. Mas, daquela vez, havia uma sensação de esforço. Antes, as
palavras do cadáver pareciam uma repetição, como uma ave treinada a
repetir o que lhe fora ensinado. Aquilo era… inteligente. Propositado.
Como se algo estivesse a usar a sua boca.
– Procurem os outros – disse o cadáver, as palavras ásperas e a arrastar-
se daquela garganta morta, daquela língua morta e imóvel. – Não estão
destruídos.
Ela quase esperava que o corpo caísse para trás, após transmitida a
mensagem, cumprida a missão. Em vez disso, os olhos pretos continuavam
a fitá-la, a boca ainda aberta, e Lore recordou o que a levara efetivamente
ali.
Tinha de desfazer o que quer que tivesse feito para reanimar aquele
cadáver.
Uma fração de segundo e estendeu as mãos, fechou os olhos. Só lhe
ocorria percorrer para trás os passos dados antes, tentar reverter o fluxo da
morte. Enviá-lo para dentro, em vez de o puxar para fora.
Em volta da laje, Gabe e Bastian não se mexiam.
Ela só podia seguir o instinto. Desbastou a floresta mental, libertando-se
da sua proteção. Inspirou e susteve a respiração até tudo começar a ficar
branco, até tudo se desfocar para o cinzento baço da matéria morta ou para
o branco abrasador de algo vivo. Gabe e Bastian eram manchas de luz, o
corpo na laje da cor do carvão – algo intermédio, algo que devia estar
morto, mas de onde a morte se esvaíra.
A Mortem era fácil de encontrar – vivia na rocha, no solário de vidro lá
no alto, lentamente a ficar rosado com o amanhecer a chegar. Mas era-lhe
difícil agarrá-la, deitar-lhe sequer a mão.
Bastian. Bastian estava ali.
Lore abriu os olhos e fixou-os nele.
– Bastian. Tem de ir.
Primeiro, ele mostrou incredulidade, e depois um assomo de fúria.
– De maneira nenhuma. Pensei que tinha ficado claro…
– Não consigo agarrar a Mortem na sua presença. – Sentia-se demasiado
cansada para argumentar. Céus, há quanto tempo não dormia? – Não sei
porquê, mas para fazer isto preciso que saia da câmara.
Gabe, honra lhe fosse feita, não se mostrou presunçoso. Nem sequer
olhou para Bastian, fitando apenas Lore com um ar sério. Os canalizadores
conseguiam ver a Mortem, mas os não-canalizadores não – viam apenas os
efeitos que deixava numa pessoa. Gabe vira-a tentar agarrar a Mortem, vira-
a a falhar.
Ela observou-o por uns momentos, viu-o a suster a respiração, os seus
dedos a ficarem esbranquiçados e gelados. Tentava ver se conseguiria
agarrar a Mortem quando ela não era capaz. Nada de fios escuros presos aos
dedos dele – também ele não era capaz de agarrar a magia da morte na
presença de Bastian.
Lore nem sabia dizer se isso era reconfortante ou assustador.
Bastian lançou-lhe um olhar que não chegava a ser zangado, de braços
cruzados sobre o seu peito ainda despido, a boca cingida numa linha branca.
Assentiu uma única vez com a cabeça e abandonou em passos largos a
cripta.
Gabe não fez perguntas. Nada fez além de esperar.
Ela sentiu-se grata. Fechou os olhos, susteve a respiração, baixou as
defesas mentais até voltar a sentir a Mortem. Tentou apanhá-la, enroscou
um fio nos dedos necróticos, as suas veias turvas e enegrecidas com o
sangue a mover-se a muito custo.
A Mortem abriu caminho ao longo dela, a morte a povoar-lhe as células,
mas sem se apoderar das mesmas. Lentamente, reuniu-se nas palmas das
suas mãos e, lentamente, Lore ergueu as mãos e arrancou-a.
Percorreu a cripta, uma linha viscosa e escura. Entrou na boca frouxa do
cadáver, nas narinas escancaradas, nos olhos pretos abertos. E ao mesmo
tempo o corpo voltou a descair devagar, com o curvar da cintura nada
natural a suavizar-se aos poucos.
Ela alimentou o cadáver com morte e estendeu-o para que voltasse a
repousar.
Lore deixou-se abater sobre o chão, com um formigueiro a percorrer-lhe
todo o corpo enquanto o sangue voltava a acelerar, causando-lhe comichão
e desconforto. Ficou ofegante, com o coração a bater com mais intensidade
depois de ter desacelerado.
Gabe abeirou-se dela. Ajoelhou-se diante dela, puxou-a pelos ombros,
olhou-a nos olhos.
– Eu estou bem – disse Lore numa voz arrastada, uma resposta à
pergunta que Gabe não fizera. Não era bem verdade, mas ele nada podia
fazer em relação a isso. – Resultou e estou bem.
A porta da cripta abriu-se, como se Bastian tivesse adivinhado que
terminara. Ele entrou, parou ao ver Lore e Gabe no chão. Não lhe perguntou
se estava bem. Não mostrou qualquer preocupação.
Porque sabe exatamente o que és. Ele sabia que canalizar Mortem lhe
era algo tão familiar como as linhas que lhe cruzavam as palmas da mão.
A luz imiscuía-se pela porta entretanto aberta, o alvorecer a corar o céu
para lá do teto abobadado de vidro. Tinham de sair dali. Ela fizera o que
tinha de fazer.
Porém, Gabe nem se mexia, ainda a agarrar-lhe os ombros, desviando os
olhos do rosto dela para o corpo na laje.
– O que queria ele dizer? – perguntou em voz baixa. – Quando disse
procurem os outros, que não foram destruídos?
– Só podia estar a referir-se aos outros corpos das aldeias – murmurou
ela, com uma voz rouca. Sabia que estava certa, sabia com a mesma
consciência profunda que a puxara para Gabe, que a puxara para Bastian. –
Não foram incinerados. O August e o Anton têm-nos algures.
[1] Tradução mais antiga do Compêndio. Os Compêndios modernos eliminaram os Opúsculos
690-821; estes Opúsculos só podem ser encontrados em Compêndios elaborados logo a seguir a
terem sido ditados por Apollius (1 DQD).
Capítulo 22

As catástrofes ocorrem em vagas.


– Provérbio auverrani

O sono pesava-lhe nos cantos dos olhos, mas Lore não permitia que se
cerrassem. Pelo menos, tentava não o permitir; volta e meia, a vista que
tinha da sala de estar dos aposentos turvava-se e tinha de se esforçar por se
manter desperta.
Separaram-se de Bastian depois de abandonarem as criptas; até ele já
bocejava. O Príncipe Sol nada lhes dissera, simplesmente partira na direção
oposta quando eles viraram para o torreão sudeste. Na altura, sentiam-se
ambos demasiado cansados para o comentar, mas aparentemente a subida
até ao apartamento revigorara Gabe.
– Não faz sentido. – Passou as mãos pelo seu cabelo rapado, de
cotovelos apoiados nos joelhos. Na realidade, ele era demasiado grande
para o sofá e o facto de se sentir confuso e irado só o fazia parecer maior. –
Não há motivo para o Anton e o August mentirem sobre o que fazem com
os corpos.
Lore encolheu os ombros. Sentada de pernas cruzadas diante do fogo,
debruçou-se para a frente e apoiou o queixo na mão.
– Então, acha que estou enganada?
– Eu não disse isso. – Gabe ergueu o olhar, as chamas a refletir no seu
único olho visível. Ela viu-o a redemoinhar palavras na mente, a tentar
formar uma combinação que não soasse a acusação. – Eu só… como é que
sabes?
Essa era a questão, certo? A única lógica a seguir e claro que ela não
tinha uma resposta. Podia tentar começar pelo início, explicando as suas
origens, a sua estranha ligação à Mortem e a Nyxara e ao que restava da
Guarda Sepultada. Podia contar a Gabe a mesma história que revelara a
Bastian, toda a verdade tão correta quanto se recordava, e esperar que isso o
levasse a confiar em si. Podia dizer-lhe como algo no seu âmago parecia
puxá-la para os dois, para ele e para Bastian, como se fossem pingos de
chuva a escorrer pela mesma calha, sempre destinados a encontrarem-se.
Mas, então, pensou no que Bastian disse. Não me parece que possas
competir com um deus.
Ela já estava a pedir a Gabe para guardar segredos face a Anton. Não
seria sensato abusar da sorte.
Assim, remexeu-se no chão, entrelaçou os dedos no colo e preparou-se
para mentir.
– Acho que tem que ver com a Mortem no interior do cadáver. Por ter
sido eu a necromante que o despertou.
Era uma explicação tão boa como qualquer outra.
Gabe abanou a cabeça.
– Digamos que tens razão e que os corpos das aldeias foram guardados.
Isso decerto significa que o August e o Anton terão um bom motivo…
– Eles mentiram-nos. – Ela virou-se por completo, ficando mesmo de
frente para ele. – Mentiram-nos sobre o que aconteceu aos cadáveres.
Disseram que foram eliminados depois de inspecionados em busca de
pistas. Entre isso e a insistência deles quanto ao Bastian ser um informador
quando sabemos que não é…
– E tudo volta à questão de confiarmos no Bastian – escarneceu Gabe
entre dentes.
– Não lhe peço que confie no Bastian. – Teve de se esforçar por não o
dizer entre dentes. – Peço-lhe que confie em mim.
– Não, tecnicamente, pedes-me que confie na Mortem. O poder da morte
que corrompeu a nossa cidade, com implicações em todo o continente. O
poder que levou as pessoas a terem medo de serem sepultadas debaixo da
terra, fluindo do cadáver de uma deusa manipuladora.
Ele então levantou-se, e a sua sombra eclipsou-a, estendendo-se ao longo
do chão.
– Perdoa-me, Lore, mas a Mortem disse-me não é o argumento mais
convincente.
Ela corou e levantou-se para o enfrentar, lançando um olhar fulminante
ao único olho azul dele.
– E que tal o Anton não quer saber de si para lá do que pode fazer por
ele ou o August é um mentiroso que quer matar o próprio filho? Isso já é
mais convincente?
Ele ergueu o lábio.
– E voltamos ao Bastian.
– Pelo menos, o Bastian não está tão cego por outra pessoa que só
consiga ver o que ela vê.
– Não, está só cego com ele próprio e não faz mais nada que não seja
tentar levar-te para a cama.
– Mesmo que fosse verdade, o que lhe interessa isso?
– Pensei que fosses demasiado inteligente para te deixares levar por uma
carinha bonita que te diz o que queres ouvir. Pensei que tomasses decisões
pela tua cabeça em vez de com a tua…
Ela rangeu os dentes, de forma quase audível, e as suas mãos moveram-
se antes sequer de o cérebro dar a indicação. Empurrou os ombros de Gabe,
obrigando-o a sentar-se de novo no sofá – os joelhos dele bateram na
almofada e dobraram-se, fazendo-o sentar-se abruptamente e interrompendo
o que certamente seria um comentário impróprio para um monge.
Lore cravou as mãos de ambos os lados da cabeça de Gabe, agarrando as
costas do sofá. Isso deixou-os praticamente cara a cara, mas o Mort não se
recostou. Manteve a cabeça direita, a boca dele quase a rosnar a centímetros
da dela.
– A cara dele não está em causa. – Foi um sussurro, silvando no escasso
ar entre os dois. – O que está em causa é ser usada pelo rei, pelo Supremo
Sacerdote, pelos Presque Mort. Vim para cá manipulada e desde então não
vi mais nada. É tudo o que o Bastian conheceu e é também tudo o que o
Gabe conheceu. Mas, pelo menos, o Príncipe Sol e eu somos
suficientemente inteligentes para o admitir.
Estás assim tão habituada a ser usada que nem percebes quando
acontece, desde que feito com gentileza? As palavras de Bastian ecoavam
no seu cérebro. Gabe não fora usado com gentileza, mas tampouco se
achava merecedor de gentilezas. Talvez estivesse aí a raiz do problema.
Tudo o que aceitava era penitência constante por um crime que nunca
cometera.
Quando Gabe respirou, ela sentiu. E ele estava tão perto. Tão perto e
todo ele tão quente, e havia um frio profundo em Lore que ela tentava
sempre derreter.
– É o que têm os manipulados – disse Gabe, baixinho. – Tornam-se os
melhores manipuladores. Não há professor como a experiência.
Permaneceram ali, demasiado perto e demasiado ardentes, raiva e algo
mais a estrepitar entre eles. E mesmo quando Lore quis inclinar-se para a
frente, beijá-lo, embrulhar tudo aquilo em algo que ela compreendesse, isso
deu mais força à sua determinação.
Gabe não podia conhecer a verdade em relação a ela.
Ele queria que ela o beijasse. Ela via isso refletido no seu único olho
visível, quase uma súplica. O desejo era uma coisa palpável, a vibrar no ar,
mas Gabriel era um Presque Mort de alma e coração e mesmo no
atordoamento não poderia ser ele a inclinar-se e a quebrar o seu voto.
Lenta e deliberadamente, Lore largou as costas do sofá. Lenta e
deliberadamente, levantou-se, olhando para o monge que a fitava como se
ele fosse o fogo e ela o combustível.
– Vou procurar os corpos – murmurou. – Quer venha comigo, quer não.
– Então, só tu e o Bastian? – Saiu como se ele pretendesse soar
impertinente; em vez disso soou meio ofegante. – Boa sorte com isso.
– Oh, não me parece que ter sorte venha a ser um problema.
Gabe suspirou e depois sentou-se mais inclinado para a frente, passando
a mão pelo rosto. Ao fim de uma fração de segundo, olhou para ela.
– Mesmo que os corpos estejam a ser escondidos algures, o que prova
isso?
A tensão dos momentos prévios dissipou-se; as palavras já não pareciam
ter duplos sentidos, ardentes.
– Muita coisa, provavelmente, que nem sequer saberemos até vermos os
corpos e percebermos o que lhes fizeram. Mas, por ora, significa apenas que
não podemos confiar nem no August, nem no Anton. Significa que tudo o
que nos disseram sobre os corpos, sobre Kirythea… não podemos confiar
em nada disso.
Ao ouvir o nome de Anton, Gabe fechou o olho e ela sentiu uma pontada
de pena. Era doloroso, extrair a confiança de lugares onde tanto tempo se
mantivera alojada. Mesmo tendo sido fruto de manipulação.
Gabe olhou fixamente para a alcatifa entre as suas botas.
– E o que aconteceu quando tentaste invocar a Mortem com o Bastian na
sala? – Espreitou para ela, a luz matinal a refletir o cabelo dourado-
arruivado dele. – Podemos conversar sobre isso, Lore?
Ele disse-o quase como uma acusação.
– Podemos, mas não sei o que significa. – Suspirou e esfregou os olhos
cansados. – Tentei invocar a Mortem quando ele me afastou do ringue. Foi
impossível. Quando estava a tocar-me, eu mal a sentia.
Ele franziu as sobrancelhas.
– Eu também não a senti na cripta. Talvez, de alguma maneira, seja
repelida devido ao facto de ele ser um Arceneaux.
– Mas eu nunca tive esse problema perto do August ou do Anton.
Apenas com Bastian, que não desejava nada ser um Arceneaux.
A expressão de Gabe ensombreceu.
– Ele podia estar a usar algum tipo de poder elementar roubado para…
Mas Lore já abanava a cabeça.
– Há várias gerações que ninguém detém esse tipo de poder. E se o
Bastian dispusesse de meios para repelir a Mortem, andaria a usá-los para
ajudar Auverraine.
Eis algo mais que ela simplesmente sabia, mais um lugar onde ela
necessitava da confiança dele, mas sem dispor de meios para explicar a
razão para o merecer. Gabe inclinou a cabeça, pelo que ela não lhe via o
olho, somente a pala, sobre a órbita vazia, o seu maxilar bem definido. A
barba começava a crescer.
– Podemos procurar na biblioteca da Igreja – disse ele por fim. – Deve
haver lá algo sobre a linhagem Arceneaux e o efeito deles sobre a Mortem.
E se não dermos com nada, saberemos que é algo que o Bastian anda a
fazer por sua conta.
Parecia reconfortá-lo, a ideia de que poderiam encontrar algum tipo de
culpa para atirar ao príncipe. Um plano concreto que lhe indicasse se
poderia confiar no seu amigo de infância.
Lore assentiu.
– Vamos procurar.
– E vamos também procurar os corpos. – Gabe disse-o como se fosse
uma concessão. – Mas vamos esperar uns dias. Fomos vistos por mais de
uma pessoa a sair com o Bastian na noite passada; sem dúvida que o August
nos vai convocar em breve.
Lore assentiu com a cabeça. Não apreciou a ideia de esperar, mas não
podia negar que era sensato, em especial havendo uma audiência com
August no futuro imediato.
Gabe levantou-se e espreguiçou-se.
– Vou ver se durmo um pouco. – Quando Lore olhou vincadamente para
a luz matinal a entrar pela janela, ele encolheu os ombros. – Toda a gente
nesta corte amaldiçoada pelos deuses está a dormir. Mais vale fazermos o
mesmo.
Ele avançou para a soleira, despiu a camisa e começou a preparar o seu
catre diante da porta. Lore deixou-se ficar à entrada do seu próprio quarto
com a cama demasiado mole, passando o peso de um pé para o outro.
Então, decidindo de repente, atravessou a divisão e lançou-se ao sofá.
– A cama é demasiado mole – murmurou, deixando de fora a parte de
querer confiar nele apesar das palavras que lhe dissera sobre manipulação,
de sentir-se à deriva, de não querer estar sozinha e tê-lo apenas a ele para o
evitar. No entanto, todos esses sentimentos ficaram encaixados naquelas
cinco palavras e o rápido olhar que ele lhe lançou indicou-lhe que as ouvira.
Lore pensou naquele momento em que ele quisera que ela o beijasse.
Quando ela pensara nisso, quando decidira não o fazer. Pensou na sua
decisão de lhe ocultar as suas verdadeiras origens e como nada em relação
ao desejo que a percorria a levou a questionar tal decisão.
Pensou nos votos.
Gabriel suspirou, e então ela ouviu os sinais que indicavam que estaria a
deitar-se no chão encostado à porta. Lore virou a cara para as almofadas do
sofá, inspirou o odor a pó e imaginou a sua floresta, agarrando-se à sua
própria mente para que a morte não conseguisse passar.
Ramos verdes e castanhos, céu azul-celeste. Fumo negro a espiralar
sobre o azul e, distraidamente, ela pensou que parecia mais denso do que
antes.
Lore levou todo um dia até sentir-se de novo humana. Gabe manteve-se
no estúdio em frente à sala principal, lendo manuscritos bolorentos e
fragmentos do Compêndio, descendo ocasionalmente ao salão para ir
buscar comida. Lore basicamente foi dormindo no sofá, dando ao seu corpo
o repouso que lhe fora negado ao perambular atrás do Príncipe Sol.
Gabe finalmente deitou-se junto à porta quando a noite caiu. Era
reconfortante saber que ele estava ali, suficientemente perto para ela lhe
chegar em dois passos se o desejasse. Se bem que não o faria.
No dia seguinte também dormiram até tarde, por isso, quando bateram à
porta, Lore levou algum tempo a despertar.
Ela sentou-se, a camisa de noite enrolada em volta da barriga, o cabelo
emaranhado.
– Gabe – murmurou com uma voz rouca de sono, não querendo que ele
levasse uma pancada se quem batia tivesse chave.
Não precisava de se ter preocupado. Gabe remexeu-se, esfregando as
costas, virando-se para ver o que tinha sido enfiado pela abertura entre a
porta e o chão, enquanto no exterior se ouviam passos a recuar pelo
vestíbulo. Pressionando a base da mão no olho são, Gabe sentou-se de
pernas cruzadas, com um envelope branco rígido no colo.
– Não recomendo a ninguém que acorde cortando-se com papel –
murmurou, enquanto Lore atravessava a sala para se sentar diante dele. Era
a mesma posição que tinham assumido na primeira noite, quando ele lhe
ensinara a bloquear a morte. Ela remexeu-se, desconfortável, e questionou-
se se ele teria reparado.
Via-se escrito Remaut em letra floreada nas costas em tom creme do
envelope pousado no colo de Gabe. Junto ao t fora desenhada uma pequena
flor.
– Alie – disse ele baixinho.
Lore arrancou-lhe o envelope das mãos e rasgou-o para o abrir. Uma
simples folha branca, com palavras escritas com a mesma letra floreada do
apelido de Gabe.
Lore sentiu uma gargalhada a formigar ao fundo da garganta.
– Um lembrete do jogo de croquet. É hoje, depois do almoço. –
Espreitou para a janela, iluminada pelo brilho do meio-dia. – O que deverá
ser agora mesmo.
Gabe já abanava a cabeça, mas Lore endireitou as costas com renovada
determinação.
– Nós vamos.
– Sabes sequer jogar croquet?
– Não, mas pode ensinar-me, ou não? – Ela sentia os olhos colados,
doía-lhe o estômago após dias sem descanso, seguido de demasiado
repouso. Precisava de sair daqueles aposentos.
Também lhe parecia bem fingir normalidade por uns momentos e uma
partida de croquet seria provavelmente o mais próximo disso que poderia
obter.
Com um esgar, Gabe massajou o olho.
– Em tempos, eu era bastante bom. – Levantou-se, estendendo a mão a
Lore.
Ela aceitou e deixou que ele a puxasse para cima. Largou-a assim que ela
se endireitou, demasiado depressa para ser casual. As coisas entre eles
pareciam essencialmente estáveis, agora que tinham combinado um rumo,
mas todo aquele calor ainda se manifestava fora do alcance, as brasas à
espera do sopro adequado.
Lore vestiu-se rapidamente, num vestido violeta de cintura subida e
mangas que lhe tapavam apenas os ombros. A saia era comprida e rodada,
mas não tanto como algumas que vira cortesãs a vestir – não corria perigo
de ocupar toda a largura do corredor. Não fazia ideia da roupa apropriada
para uma partida de croquet, mas aquilo teria de servir.
O cabelo deu-lhe algum trabalho até o conseguir entrançar parcialmente
numa coroa em redor da cabeça, deixando o resto caído. A cor vacilava
entre castanho e dourado, mas o tom suave do vestido tornava-o mais
escuro. Uma pausa e depois beliscou as bochechas, mordendo os lábios para
lhes dar alguma cor. Disse a si mesma que nada tinha que ver com Gabe e
absolutamente nada com a possibilidade de ver Bastian.
Gabe já se encontrava vestido quando ela saiu do quarto. Sem abrir a
boca, ofereceu-lhe o braço. Ela aceitou.
Percorreram o vestíbulo como quem se dirige para uma condenação.
Lore habituara-se às barras de ferro cruzadas em xadrez no chão do
vestíbulo, de tal forma que já mal reparava nelas. Mas depois da noite
anterior, voltavam a fazer-se notar, incongruentes e escuras. Uma
recordação de que coisas como ela não pertenciam àquele lugar.
O almoço estava disposto no mesmo lugar da véspera, numa mesa
enorme que gemia sob o peso de pastelaria e centenas de sanduíches
minúsculas. Alie encontrava-se na companhia de outros cortesãos, fácil de
detetar pelo cabelo louro-claro.
Igualmente fácil de detetar era Bastian de pé ao lado dela, a bebericar um
copo de vinho e a fitar Lore e Gabe como um caçador que espreitasse uma
armadilha instalada.
– Oh, excelente! – Alie bateu palmas, entusiasmada. Delicadas pulseiras
com pedras preciosas azul-claras refletiram a luz. – Agora teremos equipas
equilibradas!
– Esplêndido! – murmurou Bastian. – Alie, querida, acho que é de toda a
justiça que fiques na equipa do Gabe e da Lore. Tu e eu na mesma equipa
não ia ser muito competitivo.
A mulher ao lado de Alie – Cecelia, reconheceu-a então Lore, embora
agora parecesse ter o olhar límpido e estar livre de veneno – fez beicinho,
na brincadeira.
– Estás a insinuar que és melhor do que eu, Bastian? Tanto quanto me
lembro, ganhei-te da última vez que jogámos.
Ele acariciou-a debaixo do queixo.
– Sim, mas eu estava muito distraído.
Cecelia corou com encanto e desviou o olhar.
O homem junto a Cecelia fitou Lore com uma expressão pesarosa.
– Tu estás sempre distraído, Bastian.
– Ofendes-me, Olivier. – Bastian levou uma mão ao coração. – Não te
irrites, distrais-me tanto quanto a tua adorável irmã.
Olivier revirou os olhos, mas as suas faces ganharam rosetas fortes. O
enrubescimento evidenciava que ele e Cecelia eram obviamente familiares,
realçando-lhes os olhos azul-claros e o cabelo escuro.
– Guarda os namoricos para depois do jogo. – Alie avançou na direção
das portas que davam para o relvado. – Estou concentrada num tipo
diferente de conquista.
– Que os deuses nos poupem a todos – murmurou por entre dentes Gabe.
Capítulo 23

Qual é a diferença entre um traficante de veneno e um deus?


Se se rezar, é possível que o traficante de veneno nos ouça.
– Escutado numa taberna caldienana, 306 DQD

A obater
fim de uma hora de jogo, Gabe felizmente conseguira impedir-se de
com um taco em Bastian. O mesmo se aplicava a Lore. No
entanto, ela também não conseguira fazer a bola passar pelo aro.
– Acho que é o teu braço direito – disse Alie. Tinha obrigado Lore a
ficar quieta, inclinada e pronta para aplicar uma pancada na bola preta
pousada na relva, de forma a poder inspecionar-lhe a postura. – Estás a
mantê-lo muito tenso, por isso, quando balanças, atinges a bola com a
lateral do taco e não com a frente.
– Então, devo dobrá-lo? – Na última hora, Lore descobrira que, apesar
de não nutrir qualquer apreço pelo croquet, ainda menos apreço sentia por
perder. Espetou o cotovelo para fora, passando-o de estendido a um ângulo
quase reto.
– Não tanto. – Alie empurrou-lhe o braço ao de leve. – Pronto. Agora
experimenta.
Lore assim fez. A bola falhou o arco mais próximo, mas curvou o
suficiente para entrar noutro.
– Finalmente! – Endireitou-se, radiante, e resistiu a brandir o taco por
cima da cabeça para festejar.
Bastian, apoiado no seu taco no limite do terreno de jogo, mostrou-lhe
um sorriso radiante.
– Aro errado, minha querida.
Bem, merda.
– Isso põe o marcador em dez para nós e quatro para vocês. – Quando
Cecelia começou a anotar no marcador, parecia entusiasmada por ela,
Bastian e Olivier estarem a ganhar tão facilmente. Agora, quase parecia
envergonhada.
Olivier, por seu lado, conseguiu disfarçar uma gargalhada com a palma
da mão. Cecelia deu uma palmada no ombro do irmão. Não era assim tão
má, quando não bebia chá de beladona.
Junto a Lore, Gabe suspirou e levantou o seu taco. Parecia detestar
perder tanto quanto ela.
A morder o lábio, Alie observou-o a alinhar a sua tacada. Lore pegou no
seu taco e pôs-se ao lado dela.
– Desculpa estar a levar-te a perder.
– Oh, não sejas tola. – Alie acenou com uma mão. – Na semana passada,
bati o Olivier nas três rondas que jogámos só um contra o outro, por isso ele
agora está apenas a tentar salvar a face e exibir-se diante do Bastian.
As suas palavras soavam ligeiras, mas ela não desviava os olhos de
Gabe. Lore não conseguia interpretar a expressão da outra mulher. Era
demasiado complexa para ser desejo, e demasiado branda para ser remorso.
Gabe, por seu lado, mal falara com a antiga prometida para além das
habituais cortesias. Lore vira Alie a tentar por mais de uma vez encetar uma
conversa, mas Gabe, apesar de não se mostrar rude, pouco mais fazia do
que acenar com a cabeça. Quando Alie se encontrava junto dele, Gabe
coçava a pala, como se a presença dela lhe recordasse que a tinha ali.
– Bem – disse Lore –, talvez tu, eu e o Gabe possamos ter umas sessões
de treino antes da próxima partida.
Um sorriso caloroso manifestou-se no rosto da outra mulher.
– É uma ideia maravilhosa. E recorda-me: enviei-te aquele convite para
um lanche nesta semana, mas queria que soubesses que se trata de um
convite permanente… eu e as minhas amigas encontramo-nos sempre ao
Sexto Dia e adoraríamos que te juntasses a nós sempre que possível.
Um calor desconhecido inundou o peito de Lore. Aquela oferta de
amizade teria mais que ver com Gabe do que consigo – a forma como Alie
o observava deixava claro que queria conhecer o homem em que se
transformara o seu antigo noivo –, mas iria aceitá-la. Havia tempos que não
tinha amigos.
E ser amiga de Alie poderia ajudá-la a descobrir mais informações sobre
quem na corte poderia estar a trabalhar com Kirythea.
– Obrigada – disse Lore.
Alie agarrou-lhe a mão e apertou-a.
No campo, foi a vez de Cecelia – ponto fácil –, que depois deambulou
até junto de Alie e Lore. Enquanto caminhava, retirou um pequeno cantil de
um bolso dentro da saia e bebericou um pouco. O aroma herbáceo a
beladona penetrou o nariz de Lore.
– Onde arranjas isso? – perguntou.
Esperava que Cecelia arregalasse os olhos, que se comportasse como a
criminosa apanhada em flagrante que, para todos os efeitos, era. Mas ela
limitou-se a mostrar-lhe um sorriso coquete e a bebericar mais um pouco.
– Onde toda a gente aqui arranja veneno – respondeu, fechando
afetadamente a tampa e guardando-o. – Nos armazéns onde os casacas de
sangue o guardam depois de ser confiscado.
Todos os músculos do corpo de Lore se retesaram. Junto dela, Alie
mordeu o lábio inferior com um ar preocupado.
Aparentemente Cecelia não reparou.
– Posso mostrar-te onde é, se quiseres – disse descontraidamente. – Não
é difícil de encontrar.
– Cecelia. – Apesar de a amiga não ter reparado no desconforto de Lore,
Alie dera por isso. Abanou levemente a cabeça, agitando os caracóis quase
brancos.
A outra mulher encolheu exageradamente os ombros.
– Como queiras. – Vagueou na direção do resto da sua equipa,
oferecendo a Bastian e a Olivier um gole do seu cantil. Olivier aceitou, mas
Bastian rejeitou, o brilho escuro dos seus olhos arqueando na direção de
Lore no outro lado do relvado.
O jogo terminou rapidamente, com Bastian a ser o último a fazer a bola
passar pelo aro. Cecelia e Olivier rapidamente se despediram, informando
que tinham de marcar presença num jantar. Quando se afastavam, Cecelia
espreitou para Lore por cima do ombro.
– Se mudares de ideias – disse ela com um aceno –, avisa-me! Fazemos
uma festança!
Lore cingiu a mão num punho no flanco, escondida na esvoaçante saia
violeta do seu vestido.
Bastian aproximou-se com o seu taco assente nos ombros, franzindo o
sobrolho à partida de Cecelia e do irmão.
– Sobre o que é que haverias de mudar de ideias, Lore?
– Não interessa. – Concentrou-se em descerrar os punhos. Em inspirar
fundo e largar o ar. – Não vou mudar de ideias.
Ele arqueou uma sobrancelha escura.
– Não estamos a falar de veneno, pois não?
Lore nada disse.
– Quem me dera que não – comentou Alie, discretamente. Cruzara os
braços sobre o peito, os dedos remexendo ansiosamente nas mangas. – Sei
que ela tem um bom motivo, tanto quanto alguém pode ter, mas ainda assim
gostaria que não fosse isso.
– Nenhum motivo é bom para alguém se envenenar. – Gabe mantinha-se
imponente no limite do grupo, com um ar amargurado, de taco na mão
como quem segura um cassetete. – Alterar intencionalmente o equilíbrio do
Spiritum e da Mortem num corpo humano desrespeita os Opúsculos.
– Gabe, há mais sobre o certo e o errado do que aquilo que consta dos
Opúsculos. – Alie não se mostrava irritada, mas Lore sentiu na voz dela um
tom até aí ausente.
Gabe reparou nisso. Viu-se a surpresa na sua expressão.
– Até ao baile de máscaras, não me apercebera que a Cecelia era adepta
do envenenamento – disse Bastian, assumindo o controlo da conversa e
dando-lhe o rumo que desejava.
– Começou agora – suspirou Alie. – E tem os seus motivos.
– Sendo a pedrada o principal deles, calculo – comentou Bastian
secamente.
– Não é isso. Ou não é só isso, de qualquer modo. – Alie abanou a
cabeça. – Está doente. Não é extremamente agressivo, dizem os médicos,
mas o suficiente para a sua esperança de vida ser… menor. Começou a
ingerir beladona na esperança de que isso lhe acrescentasse uns anos. –
Massajou a testa. – Ora bem, é evidente que não devia tomar tanto quanto
tomou na noite do teu baile de máscaras, Bastian, mas está assustada.
O calor da ira tomou as faces de Lore; desviou o olhar para que nenhum
deles reparasse. Independentemente das razões de Cecelia, não deixava de
ser verdade que os seus privilégios de nobre a impediam de enfrentar as
mesmas consequências de alguém que vivesse no exterior da Cidadela. Lore
conhecera várias pessoas que ingeriram veneno devido a doença,
necessitando disso para prolongar a vida de forma a poderem tratar de entes
queridos. Havia traficantes de morte que serviam apenas esse tipo de
clientes – Val e Mari traficavam de graça para esses, cobrando mais aos
outros traficantes de morte para compensar.
Mas quando tais clientes eram apanhados, ninguém queria saber dos seus
motivos. Ilhas Queimadas para todos.
E, aparentemente, o veneno que pagavam a tanto custo ia antes parar às
taças da nobreza.
O brilho intenso no olhar de Gabe indicava que estava a seguir a linha de
raciocínio de Lore. Largou o taco e cruzou os braços.
– Há imensa gente fora da Cidadela assustada por razões semelhantes –
disse ele. – Mas não podem andar por aí com um cantil de chá de beladona.
– Não defendo que seja correto – disse suavemente Alie. – O modo
como ela o obtém é tudo menos correto. Mas entendo porque o consome.
Entendo que se tema a morte, desejando fazer tudo o que for possível para
garantir que não nos apanha antes de estarmos preparados.
Bastian nada disse, apoiando-se no seu taco, com um franzir de testa
pensativo.
– É melhor também ir andado – disse Alie ao fim de um momento.
Apontou para Lore enquanto voltava para trás na direção da Cidadela. –
Prometeste treinar, não te esqueças! Vemo-nos no lanche, se não for antes!
– Vemo-nos lá, então. – Lore acenou e conseguiu sorrir.
Depois ficaram, ela, Gabe e Bastian, sozinhos no relvado tranquilo. O
silêncio abateu-se sobre eles como argamassa entre tijolos, cada vez mais
impossível de quebrar conforme o tempo passava.
Não tiveram de quebrar o silêncio. Um criado abeirou-se timidamente
deles, segurando um envelope entre finos dedos brancos. O seu olhar
incidiu nervosamente em Bastian, para depois se desviar, como se tentasse
perceber se seria capaz de concluir a sua tarefa com o Príncipe Sol por
perto. Decidiu que sim e entregou o envelope a Lore, aparentemente a
menos intimidante do trio, e afastou-se de pronto.
Remaut, lia-se no envelope. Numa caligrafia grossa, desta vez, não na
letra sinuosa de Alie.
Ela ergueu o olhar para Gabe e sacudiu o envelope entre dois dedos.
– Três hipóteses.
– Preciso apenas de uma – disse Bastian, animado.
Gabe ignorou-o ao pegar no envelope, que rasgou para abrir. Passou
rapidamente o único olho pela folha antes de olhar para Lore.
– August. Na sala do trono, mal nos seja possível.
– Alguma hipótese de esse mal nos seja possível ser depois de uma
sesta?
– Pela minha experiência com o meu pai, mal seja possível significa
«mexam-me esse cu e venham de imediato». – Bastian apoiou o taco no
ombro e afastou-se descontraidamente. – Divirtam-se. Estou mortinho por
saber as novidades.

Os casacas de sangue junto às portas duplas da sala do trono


empurraram-nas para dentro – eram mais do que os elementos habituais,
para assegurar que ninguém interrompia a conversa. Lore e Gabriel
entraram em passada larga e pararam diante do Rei Santo na esperança de
que ele não fizesse muitas perguntas complicadas.
August parecia tão necessitado de repouso quanto eles. As suas habituais
roupas escuras, apesar de ainda refinadas, estavam amarrotadas, como se as
tivesse usado toda a noite. Os olhos escuros apresentavam-se vidrados, o
rosto extenuado e não tinha a coroa posta. Estava sentado no trono e
inclinado para a frente, as barras do chão a colidir com a base do trono
como ondas no casco de um navio, cotovelos sobre os joelhos e mãos
unidas diante da boca. Não ergueu o olhar quando entraram.
Anton encontrava-se de pé junto ao trono, túnica branca de igual modo
amarrotada. O Supremo Sacerdote inclinou a cabeça quando Gabe e Lore se
aproximaram do trono. Notavam-se rugas de cansaço em redor do seu olho
sem cicatrizes.
Nenhum dos irmãos Arceneaux parecia ter dormido muito. Lore tinha a
impressão de que uns dedos fantasmas lhe passavam desconfortavelmente
pela nuca.
– Há umas noites, acompanharam o meu filho ao exterior das muralhas.
– August ergueu o olhar. – Estou impressionado. Conseguiste cair
sorrateiramente nas boas graças do Bastian com uma eficácia brutal.
O lado da boca de Anton retorceu-se para cima, um sorriso rápido e
agradado que rapidamente esmoreceu.
Ao lado dela, Gabe manteve-se firme como uma pedra, a tensão a
transformá-lo num nó em forma de monge. Ela permanecia do lado do olho
em falta dele, pelo que não via para onde ele olhava, mas o queixo de Gabe
apontava levemente na direção de Anton.
Lore engoliu em seco.
Bastian percebera mal. A lealdade de Gabe não era devotada à Igreja, ou
a Apollius. Era a Anton, o homem que avançara quando o pai dele morrera,
o homem que lhe dera um propósito na vida e um meio de recuperar a sua
honra. Que pegara no pior momento da vida de Gabe e o fizera parecer uma
bênção.
E ela pedia-lhe que mentisse.
Pensou naquela ligação que sentia com ele, na familiaridade instantânea
que levara a que parecesse que se conheciam havia bastante mais tempo.
Ele não dera sinais de sentir o mesmo, mas, pelos deuses mortos e
moribundos, ela esperava que sentisse e que isso fosse o suficiente para que
a acompanhasse.
– Souberam alguma coisa? – questionou August, recostando-se no trono.
– Ele deixou escapar algo?
– Nada de importante – respondeu ela calmamente. – Levou-nos às
docas, a um ringue de boxe. Perdeu.
– É sempre uma desilusão – murmurou August.
– As pessoas chegam onde se espera que cheguem – comentou Anton. –
E nunca fizeste segredo do pouco que esperas do teu filho.
O rei olhou para o Supremo Sacerdote, ambos com expressões rígidas
muito semelhantes, a mesma postura altiva nos maxilares de ambos.
Nenhum deles se mexeu, mas a violência pairava por perto na sala ampla,
como se Lore e Gabe tivessem entrado a meio de uma discussão
interrompida apenas pela formalidade.
Lore estava irrequieta.
Anton virou-se para ela, ignorando o irmão.
– E o Bastian fez algo… estranho?
Lore conseguiu transformar a sua expressão de surpresa em algo que
poderia passar por confusão, mesmo tendo surgido na sua mente a
recordação de ter fracassado na tentativa de canalizar Mortem.
– Não percebo ao que se refere.
O Supremo Sacerdote suspirou.
– No ringue de boxe – disse ele vagarosamente –, fez algo que te tenha
parecido estranho?
– Não – disse Lore, abanando a cabeça. – Limitou-se a levar uma coça.
Passou uma sombra pelo rosto de August. Lançou um olhar de esguelha
ao irmão, mas o Supremo Sacerdote não lhe correspondeu. Limitou-se a
assentir reflexivamente.
Impôs-se o silêncio.
– Estás a desempenhar bem o teu papel – disse Anton, após um longo e
desconfortável momento de silêncio. – Conseguiste imiscuir-te no círculo
do Bastian, que é exatamente aquilo que te pedimos. – Olhou de relance
para o trono. – Estamos confiantes de que, a seu tempo, veremos os
resultados necessários.
Junto dela, Gabe permanecia imóvel e calado, pálido e com a boca tensa.
O único sinal de que o elogio o deixava desconcertado foi um leve tremor
na mão e ele conteve-o pressionando na perna a sua palma com a vela
pintada.
A cena foi interrompida com as portas da sala do trono a baterem ao
abrir. Malcolm entrou apressadamente, ofegante, de olhos arregalados e
com uma película de suor na testa.
– Fuga – arquejou, com as mãos nos joelhos. – Uma fuga de Mortem.
Ala sudeste. É das grandes.
Capítulo 24

A Mortem é invisível a todos, exceto a quem consegue


canalizá-la – aqueles que se acercaram o suficiente da morte
para dominarem o seu poder. Mais ninguém logra ver a sua
ameaça até que esta se encontre sobre si, e é por isso que não
podemos limitar-nos a rezar e esperar que desapareça.
– Phillipe Deschain, cientista auverrani,
apresentando notas à Igreja, 1 DQD (pouco
antes do desaparecimento de Apollius)

–V ou –lá.Não vais nada.


Gerara-se um momento de silêncio de enregelar depois de Malcolm ter
entrado a correr na sala do trono, mas apenas isso. Um momento, uma
batida de coração, uma fração de segundo de mudança quando o ambiente
passou de disputa familiar para ação clínica. Anton saíra apressadamente da
sala, movendo-se o mais depressa possível sem correr. Malcolm, ainda a
respirar sofregamente, seguiu-o de imediato. August levantou-se do trono e
gritou aos guardas, ordenando que encerrassem a Cidadela, para que
ninguém entrasse ou saísse das muralhas, trancando tudo o que pudesse ser
trancado. Lore pensou em dizer-lhe que uma porta trancada de nada servia
contra a Mortem pura – infiltrar-se-ia pelas fendas na rocha, na madeira e
no ferro, a morte não era algo de que uma pessoa pudesse esconder-se –,
mas, antes de poder fazer isso, viu Gabe a rodar sobre os calcanhares para
seguir Anton e Malcolm, e apressar-se na peugada dele pareceu-lhe mais
importante do que contradizer August.
Daí ir a percorrer apressadamente os salões, com a passada demasiado
larga dele a obrigá-la a correr.
– Eu posso ajudar.
– Ou morrer. – Gabe abanou uma vez a cabeça, com veemência. – Não é
risco que eu esteja disposto a correr.
– Esta é a primeira verdadeira fuga de Mortem em… em… sei lá bem,
mas desde há imenso tempo, e vocês precisam de mim, Gabe.
Ele cerrou os dentes. Nada disse, limitou-se a avançar naquele ritmo
castigador.
Anton e Malcolm seguiam uns passos à frente, completamente
concentrados em chegar à Igreja para ouvirem a acalorada discussão deles.
Ainda bem, dado que Lore não tinha a certeza se eles tomariam o seu lado –
o plano dela era simplesmente seguir os Presque Mort como uma sombra na
esperança de que só dessem por si quando já fosse tarde.
– E o risco de morrer não é apenas meu – sussurrou com irritação nas
costas de Gabe. Havia casacas de sangue a correr pelos salões; ao longe
ouviu gritos de surpresa dos cortesãos espantados com a debandada. – Os
Presque Mort podem não conseguir canalizá-la toda.
Verdadeiras fugas – não os meros tufos de Mortem que por vezes
escapavam para o jardim de pedra quando o poço era aberto, nas fugas,
vagas de poder a sair lentamente das catacumbas – eram tremendamente
raras. Não contando com os primeiros anos depois da Queda dos Deuses,
quando a magia fluiu do túmulo da Deusa Sepultada como se tivesse sido
aberta uma comporta, havia registo de apenas três fugas. Todas haviam
causado bastantes baixas. Todas tinham escapado para lá dos limites de
Dellaire antes de se extinguirem, tendo os Presque Mort sido incapazes de
canalizar tudo para flores e árvores de pedra.
Gabe ignorou-a. A porta que dava para os jardins da entrada e para o
edifício principal da Igreja e do Santuário Sul impunham-se adiante, em
dourado e grená na luz vespertina. Havia casacas de sangue de ambos os
lados, a postos para a fechar e trancar assim que os Presque Mort
abandonassem o edifício.
– Não quero que se magoe – disse Lore, numa voz rouca, sem fôlego. –
Está bem, Gabe? Não quero que se magoe, por isso deixe-me ir e ajudá-lo,
porque de contrário sem dúvida que vai magoar-se.
Ele parou. Virou-se. Fitou-a com aquele olho azul abrasador.
– Está bem – disse, e então seguiu para a porta aberta e ela correu atrás
dele, e a porta fechou-se e trancou-se assim que ela passou o pé pela soleira.
Não voltaria a ser aberta até a fuga de Mortem ser estancada.
Anton também haveria de a trancar na Igreja, ou então deixá-la-ia ir. E
Lore achou que ele não recusaria mais um par de mãos capazes de canalizar
Mortem.
Veio a provar-se que ela acertara quando todos correram para a porta da
Igreja do outro lado dos jardins. Anton olhou para trás e repetiu o
movimento ao ver Lore.
– O que…
– Sabe bem que não tem canalizadores suficientes para lidar com uma
fuga desta dimensão – disse ela, passando por ele na direção da segunda
porta interior que Malcolm mantinha aberta. – Também vou.
O Supremo Sacerdote nem tentou argumentar. Ficou a olhar para ela, a
sua face com cicatrizes nas sombras, olhos negros a cintilar.
– Sim – murmurou ao fim de um momento. – Acho que pode ser um
bom plano.
Lore não lhe prestou atenção. Passou por Malcolm e entrou na escuridão
fria da Igreja. Cheirava a madeira envernizada e a incenso, um odor que lhe
recordou o de Gabe.
– Tens a certeza de que queres fazer isto? – murmurou Malcolm, já ao
lado dela. Anton passou por ambos e abriu alas desde as portas duplas até
ao Santuário Sul, através de um átrio de pedra cinzenta rumo ao que
pareciam ser divisões em claustros. – Dizer que não é bonito é ser
simpático.
Lore assentiu com a cabeça, ignorando resolutamente a pontada de medo
que sentia.
– Vocês precisam de mim.
– Não vou discutir isso – reagiu Malcolm.
Anton guiou-os num passo apressado, serpenteando por corredores que
pareciam quase tão labirínticos como os da Cidadela, detendo-se por fim
diante de uma sala ampla sem portas pejada de outras pessoas marcadas por
cicatrizes – os Presque Mort. Não eram mais de uma dúzia, todos em
variados estados de troca de roupa, despindo as túnicas brancas como a de
Anton para vestirem camisas justas pretas e arneses de couro. Os arneses
sustinham punhais, mas apenas dois, na remota possibilidade de
necessitarem de se defender contra um elemento humano em vez de um
mágico. Os Presque Mort mantinham-se armados, mas esse não era o seu
propósito. Velas pintadas reluziam-lhes nas palmas das mãos.
Todos os olhos na sala incidiram em Lore, uns por curiosidade, outros
por pura desconfiança. Ela ergueu o queixo e devolveu-lhes o olhar.
Anton acenou com a mão enquanto descia o curto lanço de escadas.
– Outra canalizadora de Mortem – disse num tom despreocupado, como
se Lore não fosse importante. – Precisamos de toda a ajuda que pudermos
obter.

Não correram para a Ala Sudeste – cavalgaram. Uma falange de cavalos


negros, galopando sobre o empedrado, contornando rapidamente esquinas
tão à tangente que Lore receou raspar a cabeça. Toda gente se desviava
rapidamente, com a notícia da fuga de Mortem a espalhar-se pela cidade a
um ritmo abençoadamente mais rápido do que a própria magia. A maioria
das pessoas não seria capaz de ver a Mortem e isso só intensificava o
pânico. Quanto mais se aproximaram da Ala, mais vazias se revelavam as
ruas, pois todos os que podiam tinham fugido para o outro lado da cidade.
Lore encostou o peito às costas de Gabe e agarrou-se à cintura dele com
toda a força. Nunca se sentira muito confortável a montar cavalos. Andar a
pé ou de carroça era infinitamente preferível.
Mas a velocidade era inegável. Chegaram à Ala em menos de meia hora.
E o próprio ar apresentava um sabor estranho.
Gabe desmontou, estendeu o braço e agarrou-a pela cintura, pousando-a
atrás de si. Lore quase tropeçou. O chão parecia-lhe instável, uma
membrana fina sobre algo decadente, pronto a quebrar a qualquer momento.
Um cheiro azedo e fétido permeava o ar e dava-lhe a volta ao estômago.
– Está a sentir? – A sua voz soava tão trémula quanto as suas pernas. – O
cheiro?
– O que é? – Gabe semicerrou os olhos ao entregar as rédeas do cavalo a
um clérigo que ali estava à espera, não um dos Presque Mort, apenas um
mero acólito, que parecia preferir estar noutro lugar qualquer. – Não me
cheira a nada.
O rosto de Gabe parecia difuso. Os contornos não estavam definidos,
como se pudesse metamorfosear-se em algo a qualquer momento. As suas
mãos tatuadas estavam ligeiramente estendidas, como se ele achasse que
poderia ter de a agarrar, amparar.
– Nada. – Provavelmente, seriam nervos. Lore abanou a cabeça e
começou a caminhar, seguindo Anton.
Nada mais parecia desfocado, reparou ela ao caminhar, concentrando-se
em manter a postura. Apenas Gabe tinha o ar de algo em mutação,
apanhado num momento de transformação.
Apenas nervos.
A Ala Sudeste era a parte de Dellaire mais próxima das zonas rurais,
onde os agricultores iam vender as suas colheitas. Via-se terra de cultivo
para lá das casas que delimitavam a praça, verdes colinas ondulantes
ponteadas por pequenos celeiros e pequenas manchas distantes de cabeças
de gado. Era a Ala menos populosa da cidade, mas agora encontrava-se
completamente deserta, depois de todos terem fugido para alas ocidentais
ou de se terem trancado em casa.
O único som era o de botas nas ruas vazias conforme os Presque Mort
seguiam Anton na direção da fuga. Também ele trocara de roupa,
abandonando a túnica branca de Supremo Sacerdote em favor de vestes
negras e de um arnês de couro como os restantes. Parecia estranho em
Anton, como alguém a brincar ao faz-de-conta. Mas ainda usava o seu
enorme pingente com o Coração do Deus Sangrante, o ouro e a granada a
cintilar sob a luz do entardecer.
Lore sentiu a fuga antes de a ver. Sentiu o estômago às voltas, os passos
a falhar e quase tropeçou quando o cheiro a azedo no ar se intensificou.
Recompôs-se antes de cair, embora o olhar cortante de Gabe lhe indicasse
que ele reparara.
A consciência da presença da morte cercou-a, como fumo em busca de
uma fenda para se infiltrar. Ela tentou pensar em florestas, em árvores e no
céu azul. Manteve ao largo aquela sensação horrível, mas por pouco.
Mais adiante, Anton parou.
– Ali.
A fuga vinha da fachada de uma loja abandonada, similar ao edifício
decrépito junto ao porto onde Lore se deparara com a aparição cerca de uma
semana antes, quando tinha despertado Cavalo e acabado envolvida em
toda aquela confusão. Jorrava escuridão da entrada aberta e irregular,
escorrendo pelos degraus até à rua. De certa forma, assemelhava-se a fumo
e água em simultâneo – coesa e fluente, todavia com algo de insubstancial e
convulso que a tornava difícil de focar. Havia pequenos ossos nas beiras do
estranho rio negro, ratos e outras criaturas pequenas que a Mortem já
reduzira a nada.
Lore sentiu um aperto no estômago.
Todos os Presque Mort faziam o esforço notável de tentar disfarçar o
medo, mas este era palpável nas suas posturas nervosas, nos olhos
arregalados. Nenhum deles vira alguma vez uma fuga como aquela.
Malcolm foi o primeiro a avançar, pondo-se ao lado de Anton. Inspirou
fundo e estendeu as mãos, as velas pintadas nas palmas das suas mãos
apontadas ao rio de Mortem.
– Apontem tudo o que puderem para a rocha, primeiro, mas não
demasiado, para não a quebrarem. Se ainda sobrar, direcionem-na para ali. –
Malcolm inclinou a cabeça para o centro da praça, onde fora plantado um
jardim no meio do empedrado, à sombra de três grandes árvores e pejado de
flores silvestres estivais. – Assim que estiver cheio, passem às terras de
cultivo. Não usem os cavalos a não ser que seja mesmo necessário.
Lore olhou para trás, para onde se encontrava o jovem clérigo
aterrorizado com todos os cavalos plácidos. Porque acabaria aquilo sempre
nos cavalos?
Os restantes Presque Mort ordenaram-se, formando três filas no lado
esquerdo da fuga. Gabe pôs-se junto de Malcolm e Anton, seguindo-se
Lore, os quatro a formarem a dianteira enquanto os restantes monges se
alinhavam atrás. Todos ergueram as mãos para a poça de magia mortal,
mãos pintadas com símbolos da luz do Deus Sangrante.
E praticamente inúteis.
Lore levou algum tempo a perceber sequer que estavam a canalizar.
Pequenas porções de Mortem ergueram-se como fumo da corrente,
dissipando-se no ar, nunca ganhando força para se ligarem a alguém e
tornar-se os extensos fios com que Lore lidava. A massa maior não
encolheu nem um pouco, apesar de todos atrás de Lore terem dedos
necróticos e pálidos e olhos opacos. Um deles cambaleou, vacilando
fugazmente, mas isso não fez qualquer diferença. Nenhum deles era capaz
de canalizar tal volume de Mortem.
Algo lhe parecia errado de uma forma que Lore não conseguia
identificar. Os ossos espalhados pelo empedrado recordavam-lhe
armadilhas de ratos, pisar uma mola plena de morte sem se saber que o fim
estava à espreita.
Apenas Anton não apontava as mãos na direção da massa, nem sequer
olhava para o rio de Mortem. O seu olho negro estava fixado em Lore,
estreitado e inescrutável, olhando-a atentamente enquanto a morte fluía
diante deles.
Ele fitou-a por mais um momento. A seguir, virou-se para a fuga e
levantou as mãos.
A diferença foi como da noite para o dia. A Mortem ergueu-se do rio
escuro, aglutinou-se no ar. Parecia os filamentos que Lore conseguia extrair
da morte, mas, em vez de seguirem diretamente para as mãos de Anton,
uniam-se no ar, contorcendo-se num nó intrincado e espigado. Ela nunca
assistira a nada como aquilo. Por certo, atar a Mortem daquela forma
tornaria mais difícil canalizá-la para plantas ou pedra…
– Lore.
O nome dela soou como um arquejo de morte; ela rodou rapidamente a
cabeça na direção de Gabriel. Este fitava-a com um olho completamente
branco, sem qualquer cor onde antes estivera o azul. Tinha os lábios
repuxados para trás, as faces encovadas, a pele moldada ao crânio.
– Disseste que querias ajudar – disse-lhe numa voz arranhada –, então,
ajuda.
O ar continuava a cheirar a azedo. Ela ainda sentia os pés a vacilar.
Anton ainda tecia um entrançado incompreensível, moldando-o numa forma
que escapava ao conhecimento dela. Mas Gabe tinha razão e era evidente
pelos patéticos tufos de Mortem que se escapavam da fuga que os Presque
Mort não seriam capazes de canalizar tudo sozinhos.
Assim, Lore ergueu as mãos e fechou os olhos. Susteve a respiração,
deixou o mundo ficar a preto e branco e chamou a si a morte.
A sua visão assumiu tons cinzentos, mas havia algo diferente. Via o nó
formado por Anton, a pulsar no ar sobre a fuga. Tentou evitá-la enquanto
enrolava filamentos de morte, mas não era suficientemente capaz para isso,
não aprendera a ser cuidadosa.
Enquanto puxava a Mortem, o nó de Anton desemaranhou-se, os
filamentos negros libertaram-se no ar estagnado.
Calculou que ele fosse gritar-lhe, fazer algo para a deter, tentar voltar a
apanhar aquela magia no seu entrançado. Mas o Supremo Sacerdote
limitou-se a desviar-se, com a coroa de luz branca em redor dele a virar-se
de frente para ela.
Lore tentou parar, mas o instinto era já demasiado forte e foi apanhada
na corrente como a areia numa onda. Os filamentos de Mortem que Anton
alterara fluíram para as mãos dela, infiltraram-se-lhe na pele, deram com o
coração.
Parecia diferente. De certa forma mais forte, serpenteando através das
veias dela numa torrente. E não voltou a sair.
Em pânico, Lore cravou os pés no chão e fletiu os dedos, tentando
aguentar-se contra o ataque violento…
Foi então que começaram os gritos.
O corpo não lhe obedeceu quando Lore tentou fechar as mãos,
paralisadas como o cadáver com que sem dúvida se assemelhava. Tudo nela
estava frio, uma onda profunda e entorpecedora correndo desde os seus
dedos estendidos até à coluna, o seu coração parado e imobilizado como se
um punho gigante o tivesse cingido.
E ainda os gritos. Uma gritaria que, de alguma forma, era culpa dela.
Mas era difícil de ouvir acima da voz na cabeça dela.
Isto não é algo a que possas escapar. Ainda não percebeste isso?
Ecoava em todos os seus ossos, dançava em cada nervo gelado. A voz
era ao mesmo tempo estranha e familiar e soava de forma bizarra, como
duas gargantas entrelaçadas e falando como uma só, harmonizando-se.
Uma dessas vozes soava como a de Lore.
Todos os dias fica mais forte. Cresce em ti como podridão conforme te
abeiras da ascensão. A voz parecia óleo vertido sobre os sulcos do cérebro,
escorrendo para todas as superfícies vazias. Recordava-lhe a voz que lhe
dissera para usar o seu poder, naquele dia na praça com Cavalo, mas mais
forte, mais firme. Não podes fugir àquilo que és, filha das trevas. A morte é
a única coisa que há de encontrar-te sempre e tu és a sua herdeira. A
semente do apocalipse, a caminhada do fim dos tempos. És o incêndio
descontrolado necessário para que a floresta cresça, a destruição que traz
renascimento.
Lore sentia a morte a tomar-lhe os pulmões, o coração, todos os órgãos
robustos e vitais a murchar e secar. Não estava a conseguir canalizar
Mortem para o exterior, apenas para dentro. Aquilo não a matava – isso
seria demasiado simples –, mas fazia algo.
Alterava-a. Pegava no seu poder e mergulhava-a nele, aumentando-o,
como se a fosse engolir. Esvaziava-a para poder voltar a enchê-la com algo
vasto, sombrio.
Não conseguia abrir os olhos, como se as pálpebras tivessem sido
suturadas. Arreganhou os dentes, indo buscar forças que desconhecia
possuir. Com um rugido, expulsou a Mortem de si, através de veias que
sentia prestes a explodir, através de ossos que queriam partir-se sob aquela
pressão.
A rocha sob os seus pés estava já demasiado frágil, mas Lore sentia a
vida em redor de si tal como sentia a morte – as duas invertidas, correntes
diferentes com a mesma origem. Sentia os corpos agitados dos cavalos
aterrorizados, a batida tomada pelo medo do coração dos Presque Mort. A
vida plácida e alheada do jardim, ainda verde e florescente, e, para lá disso,
as terras de cultivo.
Havia demasiada Mortem para direcionar com alguma subtileza. Assim,
Lore largou-a para ambos, direcionando a morte para raízes vivas tanto
perto como longe, a morte nas suas veias a guiá-la para a vida.
A Lei dos Opostos, pensou alheadamente. Morte e vida fortalecendo-se
mutuamente, morte e vida entrelaçadas.
O Spiritum fugiu de cada rebento e folha do jardim, substituído não pela
morte, mas pela inércia, congelando-os no tempo. A Mortem imiscuiu-se na
aura de cada pedaço de vida visto e não visto – encasulando pequenos
insetos, larvas, os pulgões invisíveis a olho nu. E depois seguiu mais fundo,
cravando-se nas pedras da rua, transformando em rocha pequenos tufos de
erva que tentavam apanhar feixes de sol, as minhocas que aguardavam a
chuva, os bolbos de flores outonais que ainda não tinha ascendido à
superfície. Depois, as terras de cultivo: trigo transformando-se em hastes de
pedra fina, raízes tornando-se estátuas intrincadas sob a terra. Conseguiu
poupar o gado, mas por pouco; os mugidos de pânico soaram
suficientemente alto para se ouvirem, num profundo contraponto aos gritos
humanos.
Tudo pedra, as vidas congeladas enquanto Lore se permitia a ser a
estrada da morte, deixava que a Mortem fluísse por si como água numa
roda de um moinho. Gabe dissera-lhe que aquele tipo de canalização exigia
cautelas, mas atravessava-a como um caos.
Lore só percebeu que os seus próprios gritos se haviam juntado aos
restantes quando toda a magia desapareceu.
Eles querem o teu poder, disse discretamente a voz, dissipando-se a par
da Mortem enquanto o seu corpo aos poucos se agarrava de novo à vida,
declinando até nada mais do que um mero sussurro. Vão obrigar-te a seres
mais forte para depois te vergarem. Reduzir-te a nada mais do que um útero
para a magia que não conseguem produzir. Mas apenas se o permitires.
Mesmo ao ascenderes, não podes esquecer que estás completamente por
tua conta.
Lore abriu os olhos.
A fuga desaparecera. Isso era bom. Mas não desaparecera sem dar luta.
Um dos Presque Mort, um homem cujo nome ela desconhecia, estava agora
no chão, a olhar para o pé. O que fora o seu pé. Agora, era só osso, a carne
corroída, o músculo desaparecido, e até os ossos apresentavam formas
incorretas – apenas uma pilha, um amontoado descartado. Brilhavam como
marfim húmido à luz do sol, e ele fitava-os, e gritava, gritava e gritava.
Lore deu meia-volta, em busca de mais baixas, mas aparentemente só
aquele homem fora apanhado pela fuga de Mortem. Tão preocupada se
encontrava a procurar membros com ossos à vista que de início não reparou
que os outros Presque Mort olhavam para ela.
Chocados. Horrorizados. Repugnados.
Anton encontrava-se em frente ao grupo, ainda lívido. O nó de Mortem
que formara tinha desaparecido. Observava-a como alguém poderia olhar
para um animal que não reconhecesse, curioso e desconfiado, atento ao que
poderia fazer.
Junto dela, Gabe mantinha-se muito quieto, o seu único olho azul
arregalado e a fitar o Presque Mort tombado. Não se afastara dela, mas
quando Lore tentou tocar-lhe, desesperada por algo a que se agarrar, ele
retesou-se.
A mão dela enroscou-se como uma aranha moribunda.
– Fui eu que fiz aquilo? – A pergunta saiu-lhe num tom pequeno e frágil,
quase como se fosse a voz de uma criança. Quis de imediato retirar o que
dissera, mas necessitava de uma resposta.
Gabe não lha deu.
O Mort no chão parou de gritar, o que era ainda pior. Ele olhava apenas
para o lugar onde antes tivera o seu pé, agora uma mera confusão de ossos
mutilados.
Ela sentiu as pernas instáveis. A sua visão turvou-se – tudo estava
indistinto, não apenas Gabe. O cheiro vazio a azedo da Mortem ainda se
fazia sentir intensamente no ar, apesar de a fuga ter desaparecido, e fazia-a
sentir-se a afogar de cada vez que inspirava.
– Fui eu que o fiz, Gabe? – voltou a perguntar, mas as palavras saíram-
lhe arrastadas, e ela tombou nas trevas antes de o ouvir tentar responder.
Capítulo 25

O corpo sabe sempre.


– Provérbio eroccano

E laacordada,
sentia a mente lenta, a boca amarga, os membros pesados. Nem
nem verdadeiramente a dormir, mas algures entre uma coisa e
outra, onde o ar sabia a ranço e a minerais, onde nada era suave.
Lore sabia que estava a sonhar – ou algo do género –, mas isso não lhe
travou a pontada de medo no peito ao ver o túmulo. Parecia maior do que se
recordava, um bloco de obsidiana a reluzir num preto tipo céu noturno. A
pairar como uma fatia da própria terra, preparado para a sepultar por baixo,
esmagá-la sobre si mesma e torná-la parte integrante do que quer que
estivesse no interior.
Ela moveu-se com a lentidão densa dos sonhos, o flutuar que não
reconhecia a existência de braços ou pernas, transformou-a numa massa de
pensamento e matéria sem peso. Lore tentou recuar face ao túmulo de
Nyxara, achando que rastejava ao estilo de um caranguejo, mas não sentiu
nenhuma bicada de xisto nas mãos, nenhum roçagar de tecido sobre o chão.
Contudo, por muito que se afastasse, o túmulo permanecia à mesma
distância em relação a ela, como se fosse um cão e ela a trela. Como se
estivessem agrilhoadas, ela e a deusa lá sepultada.
Vindo por momentos à superfície, a boca dela transpôs a água negra
tempo suficiente para respirar.
– Está viva. – Uma voz que ela conhecia profundamente bem, que a
levava inexplicavelmente a pensar em fogo, incenso, raiva tensa e árvores a
arder. – Está viva, mas não desperta.
– Há de despertar. – A outra voz era-lhe desconhecida, em nada
semelhante à que reconhecera primeiro. Baixa, abafada, falando de longe
enquanto a primeira soava clara a cristalina. – Precisa de tempo.
– Já lá vão três dias…
– Viste o que ela fez. – O tom não era verdadeiramente acusatório, mas
as palavras não deixavam de ser cortantes. – Uma coisa assim tem uma
recuperação demorada.
Silêncio da parte da outra voz, aquela que ela conhecia.
Lore regressou ao fundo.

O tempo foi passando. Ela não sabia quanto. Estava suspensa na


escuridão profunda e nada via, nada sentia.
Depois, areia. Mar. Sol e céu azul.
Pelo menos, aquele sonho ela conhecia.
O mesmo vulto sentou-se como sempre junto dela. Lore rodou a cabeça,
questionando-se se dessa vez conseguiria vê-los claramente. Por um breve
momento, uma centelha de reconhecimento, a efluência fumosa a solidificar
numa forma que ela deveria conhecer. Mas logo desapareceu, restando
apenas sombras.
Sentiu um puxão no peito. Não gostou disso, pelo que cruzou os braços,
escondendo o coração. O puxão magoava-a, parecia querer arrancar-lho do
peito, mas Lore guardava-o todo só para si, algo que só a ela pertencia.
Não havia fumo espalhado pelo céu. Estava completamente limpo, azul
brilhante.
O vulto parecia espantado; pelo menos, tão espantado quanto era
possível a algo basicamente incorpóreo.
– Curioso – murmurou a voz vazia, desprovida de emoção ou textura. –
Parece que mais poder gera mais controlo. Mas temos tempo. Tentaremos
de novo.
Lore não escutava. Estava de novo à deriva.
Voltou à superfície. Um resplendor nos olhos, insuportavelmente
brilhante depois de tanta escuridão, a vaga impressão de uma divisão que
deveria ser familiar. A sensação dos membros, pesados e frouxos, mas
presentes. Era o mais perto de estar viva que se sentia no que lhe parecia
uma eternidade.
Devia-se à pessoa junto dela. A pessoa cuja mão ela sentia no braço, um
calor solar abrasador. A escuridão e a morte que se tinham instalado nela
fugiam dele, repelidas. A vasta caverna em que o seu núcleo se tornara, um
recipiente oco para algo preencher, pareceu agitar-se no interior e compor-
se.
– Há quanto tempo está ela assim? – Ela também conhecia esta voz,
proveniente de quem quer que lhe tivesse tocado. Calor e vida, mel com um
toque amargo. Revolveu-lhe as entranhas com uma mistura de amor e ódio
e de medo e esperança.
– Há quase uma semana. – A primeira voz que ela recordava, aquela
ardente e crepitante. – O Anton diz que é normal, mas…
– Que se lixe o Anton. – O aperto no braço dela intensificou-se. Lore
desejou poder dizer que aquilo magoava, mas não conseguia mexer a boca.
– Devias ter-me deixado entrar da primeira vez que aqui vim, em vez de me
obrigares a ir queixar-me de ti ao teu sacerdote como uma criança mimada.
– Disso percebes tu bem, não é? – Carvão e brasa, a arder em fogo lento.
Silêncio. Lore desejava poder abrir os olhos e ver se estavam prestes a
matar-se um ao outro. Parecia algo que já estivera perto de acontecer no
passado.
– Deixei-te entrar agora – disse por fim a voz de fogo. – Embora não se
dê o caso de poderes fazer nada para a ajudar.
Mas podia. Algo na mão pousada sobre o braço dela expulsava a
escuridão e a morte, repelindo ambas de uma forma que parecia ao mesmo
tempo maravilhosa e horrível, mas Lore não conseguia dizer-lhes, pois a
sua boca ainda não abria, porque aquele momento de lucidez estava a
desvanecer-se, porque ela estava a voltar a partir à deriva.

Desagradável não bastava para descrever o modo como Lore se sentiu


ao despertar.
A sua boca sabia a ranço, como se tivesse sorvido um copo de água da
chuva de uma caleira. Doíam-lhe os dedos como se os tivesse mantido
curvados ao longo de horas. Quando olhou para baixo para as mãos, viu
punhos cerrados, por isso se calhar era o que tinha feito.
Não horas, mas dias.
E todo aquele dissabor era apenas um precursor da recordação do
Presque Mort cujo pé se transformara em osso, todo o tecido vivo devorado
pela Mortem extraviada.
Lore concentrou-se a descerrar os punhos, um dedo de cada vez,
curvando-os para trás e para a frente, o suficiente para ter de conter na boca
um som animalesco.
As vozes que tinha ouvido – Gabe. Bastian. Não conseguira conjurar os
nomes deles, naquele estado intermédio em que flutuava com a mente e
corpo quase soltos, mas eles tinha estado ali. Agora, o seu quarto estava
vazio. Tigelas com restos de caldo que não se recordava de ter bebido
empilhavam-se no seu toucador e havia um copo de água meio vazio
pousado na mesa de cabeceira. Lore pegou nele e bebeu tudo. O sabor na
sua boca melhorou um pouco.
O olhar no rosto de Gabriel antes de ela desmaiar estava-lhe gravado na
mente quando se obrigou a levantar-se da cama, quase tropeçando nas
pernas dormentes, apoiando uma mão nos pés da cama para se equilibrar.
Ele parecera horrorizado. Horrorizado com ela, horrorizado com o que ela
fizera.
Mas ele estivera ali. Apesar do que ela fizera, ele estivera ali.
O que fizera ela? Não tinha recebido uma resposta direta, mas as
expressões dos outros Presque Mort, aquela mistura de medo e repulsa,
indicavam que a culpa era dela. Mas se o outro homem se atravessava no
caminho da Mortem, se, de alguma maneira, se embrulhara nos fios que a
uniam à fuga, ela não o poderia ter evitado. Essa parte não era culpa dela e
desse modo não queria saber do que pensavam os Presque Mort.
Mas se Gabe achava isso…
Era como uma espada cravada nas suas entranhas.
A sua mente continuou às voltas com aquela derradeira imagem de
Anton, que a mirava com uma curiosidade plácida. Anton, que moldara a
Mortem como ela nunca vira antes de os seus dedos sem treino a
canalizarem através das suas próprias veias. Teria feito algo àquilo? A ela?
Desejava acreditar nisso, mas parecia-lhe um pretexto. E sabia que Gabe
pensaria o mesmo.
O ardor no peito não era bem tristeza, e não era bem raiva, e continha
mais vergonha do que ela desejava admitir. Mas, pelo menos, dava-lhe algo
em que se concentrar enquanto cambaleava rumo à porta da casa de banho,
algo além da voz que ouvira quando toda aquela Mortem lhe correra desde
as mãos até ao coração.
Vão obrigar-te a seres mais forte para depois te vergarem.
Abanou a cabeça e empurrou a porta para a abrir.
Estava alguém sentado no sofá empoeirado, o fogo diante dele a arder
com vigor. Não era Gabe.
Bastian.
Ela ficou calada e confusa à porta enquanto o Príncipe Sol olhava por
cima do ombro, de olhos castanho-dourados a refletir as chamas. Levantou-
se, espreguiçou-se descontraidamente, com a bainha da camisa branca
pristina a subir, revelando um abdómen ainda pisado do boxe.
– Bom dia – disse ele. – Ou boa noite, na verdade. Dormiste ao longo do
jantar, o que não espanta, dado que também dormiste ao longo de toda a
semana. Trouxe-te algo para comeres.
A voz dele refulgiu nela, como se a ligação que sempre sentira na
presença dele se tivesse tornado mais profunda, insinuando-se em músculos
e medula. Surgiu-lhe repentinamente uma imagem pela mente, de rosas e
luz solar num jardim no topo de uma montanha, mas depois desapareceu.
Havia uma bandeja pousada numa mesinha atrás do sofá, tapada por uma
campânula brilhante de prata, que deixava escapar um aroma intenso que
Lore não reconheceu de imediato. Retirou a campânula, mal reparando no
que havia no prato antes de enfiar uma garfada na boca. Uma ave qualquer,
assada com legumes.
– Pavoa – esclareceu Bastian com um movimento da mão, apoiando-se
no braço do sofá para a ver comer. – Detesto, mas parece que tu gostas.
– Neste momento, estava capaz de comer qualquer coisa – disse Lore,
falando com a boca cheia.
– Vês, se não tivesses passado por uma experiência bastante traumática,
já estaria a fazer uma piada de mau gosto sobre isso. Assim, vou deixar
passar. Por favor, admira a minha contenção.
Experiência bastante traumática, sem dúvida. De repente, a pavoa assada
sabia a cinzas. Lore mastigou e engoliu o que ainda tinha na boca e depois
pousou o garfo, cruzando os braços e olhando para uma argola de cebola
queimada e não para Bastian.
– O Gabe contou-lhe o que aconteceu?
– É claro que o Gabe não contou – troçou Bastian. – Foi o Malcolm e só
por eu estar no Santuário Sul quando ele te levou para dentro. – Fez uma
pausa. – O Gabe não me deixava vir ver-te, mas quando eu falei com o
Anton, ele insistiu.
O facto de ele ter ido de livre vontade falar com o tio levou-a a
pestanejar.
– Porquê?
– Porque é que o Gabe não me deixava entrar? Ou porque é que eu quis
vir? – Mas a expressão dele revelava que sabia qual a pergunta dela. Cruzou
os braços, olhou para um ponto na alcatifa enquanto ponderava na resposta.
– Acreditarias se te dissesse que foi por me preocupar contigo?
Ficou a pairar no ar, uma linha bem vincada que Lore não soube como
cruzar. Permaneceu do lado seguro.
– Acho que faz sentido. Obrigou-me a trabalhar para si sob ameaça de
me mandar paras as Ilhas Queimadas; é natural que queria proteger o seu
investimento.
– Sabes bem que não era a isso que me referia.
Ela recusou-se a tratar já daquilo, dado que se sentia dorida e tremente
depois de passar uma semana na cama.
– Então, não me envia para as Ilhas Queimadas se eu contar ao seu pai
ou ao seu tio que está a par dos planos deles?
Bastian permaneceu em silêncio e o silêncio foi a resposta. Também
batia certo, parecia familiar e esperado. Ele preocupava-se. Mas não o
suficiente para afrouxar um pouco as rédeas.
Lore assentiu como se ele tivesse falado.
– Não te desejo mal – murmurou Bastian, esquivando-se a uma resposta
genuína. – Acredita no que quiseres em relação a mim, mas não te desejo
mal. E não é por trabalhares para mim. É apenas por seres tu.
– Não nos conhecemos há muito – disse ela por fim, pouco mais do que
um sussurro.
O príncipe expirou ruidosamente.
– Pois não, mas é como se conhecêssemos, Lore.
Ela não tinha argumentos contra aquilo, mas não era uma conversa que
quisesse desenvolver; não sabia como. Havia um copo de vinho ao lado da
bandeja; Lore deitou-lhe a mão e bebeu um gole antes de tentar voltar a
falar, mudando de assunto.
– Antes de mais, o que fazia no Santuário Sul?
Ele deixou que a conversa descaísse para o lado que ela queria, como se
também ansiasse por deixar para trás conversas sobre preocupação e
conhecimento mútuo.
– Algumas das pessoas que gosto de beijar vivem nos claustros.
– Deus Sangrante.
– Não é a Ele. – Mas o tom jocoso de Bastian depressa esmoreceu,
cruzando os braços sobre o peito. – Eu estava lá porque tentei seguir-vos até
à fuga – respondeu após um momento de silêncio. – Não consegui sair antes
de trancarem as portas da Igreja.
– Porque é que queria ir lá? Não podia ter feito nada.
Ele ergueu os olhos do chão, um caracol escuro a cair-lhe da testa,
roçando a maçã do rosto.
– Para estar de olho em ti. – Troçou. – E também no Remaut. Nenhum
de vocês é muito bom em termos de autopreservação.
Lore não dispunha de forças para se irritar com aquilo. Limitou-se a
suspirar e a comer outra garfada da odiada pavoa de Bastian.
– O Malcolm contou-lhe exatamente o que se passou? – questionou ela
depois de ter engolido. – Com o outro Presque Mort? Eu estava lá… foi
culpa minha, quer dizer, mas não sei…
– Não foi culpa tua. – Ela nunca o ouvira falar num tom tão eriçado,
exceto naquela noite na viela, e isso levou-a a levantar os olhos dos restos
do jantar. Bastian permaneceu sentado no braço do sofá, aparentemente
descontraído, mas com alguma tensão nele que desmentia tudo o que
pudesse ser casual. – Fizeste tudo o que podias.
Não podes fugir àquilo que és.
Ponderou contar-lhe da voz. Mas, assim que o pensamento surgiu, foi
descartado, com o instinto a indicar-lhe que o guardasse para si. Ela tinha
de ter alguns segredos.
Um momento de silêncio, durante o qual fitava a sua comida e o Príncipe
Sol a fitou, até que Bastian suspirou.
– Ele contou-me – revelou. – Mas antes de te contar, quero que saibas
que o Presque Mort cujo pé ficou… ferido… está a recuperar bem e a Igreja
vai pagar-lhe uma prótese. Vai ser bem tratado.
Lore assentiu apaticamente.
– Ao que parece – prosseguiu Bastian –, quando começaste a canalizar
Mortem, ela… eriçou-se. Como uma onda. Ignorou todos os outros Presque
Mort e lançou-se apenas a ti.
Como se estivesse à espera dela. Ou apontada a ela.
– Toda? – quis ela saber. – Ou apenas a Mortem que o Anton tinha
moldado?
Bastian arqueou a sobrancelha.
– Ninguém disse nada sobre o Anton.
Talvez ela tivesse imaginado, tanto o nó como a voz. Talvez a Mortem
que fluía através dela a tivesse levado a ver e a ouvir coisas que não
estavam lá.
– Seja como for, o Mort… ele chama-se Jean… avançou na tua direção,
presumivelmente para ajudar. – Bastian encolheu os ombros. – Mas
aproximou-se de mais. A Mortem ainda se espalhava pelo chão e o pé dele
foi apanhado. O Malcolm puxou-o antes que conseguisse devorar mais e
depois deixaram a coisa nas tuas mãos.
Eles tinham tentado ajudar. Um homem que não a conhecia de todo
avançara por ela e perdera um membro por causa disso.
– Sinceramente, é espantoso que te aguentes de pé – prosseguiu Bastian.
– Estiveste uma semana inconsciente. Em mais de uma ocasião
questionámo-nos se voltarias a despertar.
Ela também se questionara, flutuando naquele ponto intermédio, presa
em sonhos e recordações. Alheada, comeu mais um pouco.
– O Gabe também está a recuperar bem. – Bastian afastou um caracol de
cabelo dos olhos. – Se isso te preocupa.
Ela sentiu uma onda de pânico a varrer-lhe o estômago.
– A recuperar?
– Ele estendeu uma mão para ti e perdeu a ponta de um dedo. – Um
sorriso travesso retorceu-lhe a boca, mas o olhar de Bastian era quase de…
resignação. – Não que lhe desse grande uso, se é que me entendes. Por
causa daqueles votos.
Gabe estendera-lhe a mão. Isso não compensava o facto de não estar
presente, mas já era algo.
Deixaram-se ficar ali, sendo o único som o alegre estrepitar do fogo. Ao
fim de um momento, Bastian levantou-se, sacudindo pó da parte de trás das
calças e fazendo uma careta às roupas e mantas que Gabe deixara no chão.
– Ninguém teve autorização para vir aqui fazer limpeza desde que
adoeceste, mas vou cá mandar uma criada. Pelos vistos, o Remaut nem da
arrumação dele consegue tratar.
A vista das mantas foi um bálsamo, mais uma pequena prova de que
Gabriel se importara com ela mesmo depois de ter visto o que fizera.
– Obrigada, Bastian – murmurou Lore.
– De nada. – Bastian avançou para a porta. – Devias descansar. Neste
momento, mais valia voltares a dormir. Daqui a umas oito horas amanhece.
Lore assentiu com indiferença, mas não se levantou para regressar ao
quarto. Bastian estava quase junto à porta quando ela conseguiu voltar a
falar.
– Acha que o Gabe vai voltar?
As mantas dele estavam no chão, mas ela precisava de uma confirmação.
Precisava de que alguém dissesse que achava que ele ainda a escolheria,
alguém que sabia quem ela era.
Alguém que soubesse quem ela era e ainda assim se preocupasse com
ela.
A mão de Bastian deteve-se no ar um momento antes de assentar na
madeira da porta.
– Claro que sim. Estás aqui.
E saiu para o vestíbulo.
Lore comeu mais umas garfadas desinteressadas de pavoa antes de se
estender no sofá, onde os estofos guardavam o calor de Bastian.
Questionou-se há quanto tempo estaria ele ali antes de ela ter despertado.
Era difícil imaginar Bastian sentado quieto por muito tempo, mas o calor da
almofada sob a sua bochecha era prova de que estivera um bom bocado ali.
Fechou os olhos e suspirou. Mas a imagem que via era o rosto de
Gabriel, lívido e aterrorizado e a fitá-la como se ela fosse um monstro.
Assim, abriu os olhos e mirou antes o fogo, pensando no quão pouco
recordava dos seus sonhos. A única coisa concreta que recordava eram as
vozes. A de Gabe, a de Bastian. As vozes deles e o facto de a presença de
Bastian – e seu toque – ter expulsado a pesada Mortem que a mantinha
presa, ter trazido vida à morte. Isso recordou-lhe a viela, como não tinha
conseguido invocar a sua magia quando Bastian estava perto.
Teria algo que ver com ser um Arceneaux, com ser o escolhido de
Apollius? Ninguém da linhagem Arceneaux alguma vez utilizara o
Spiritum, tanto quanto se sabia, mas talvez estivessem a procurar da
maneira errada. Talvez o Spiritum fosse tão maleável e misterioso quanto a
Mortem e brandi-lo fosse algo subtil.
Isso eram perguntas para Gabe, quando ele voltasse a aparecer.
O fausto jantar que Bastian trouxera caiu-lhe pesadamente no estômago
enquanto mexia os dedos, dobrando-os para trás e para a frente, ainda
ligeiramente dormentes de toda a Mortem canalizada. Verificou as suas
barreiras mentais na possibilidade improvável de adormecer, fechando de
novo os olhos tempo suficiente para visualizar a floresta, os ramos
entrelaçados, o céu azul por trás. Mais uma coisa para a recordar de Gabe e
da teia emaranhada que entrançavam entre eles, calor e amizade e
desconfiança e lealdade divididas.
Não que ela pudesse efetivamente culpá-lo pelas lealdades divididas.
Não depois de ouvir aquela voz.
Não podes fugir àquilo que és.
– Vê só – rosnou ela para o brilho da chama da sua sala escura, feroz
apesar de sentir as pálpebras a pesar.

O chiar das dobradiças da porta despertou-a.


Sentou-se rapidamente, com um instinto de luta ou fuga a bater-lhe no
peito, o cabelo emaranhado e a camisa de noite torcida de modo
desconfortável.
Mas o desconforto pouca importância tinha, porque Gabe estava à porta.
Tinha a ponta do indicador ligada, o dedo mais curto do que devia ser.
Ele olhou para ela. Ela olhou para ele. Nenhum soube o que dizer.
Ao fim de um momento, o silêncio levou o olhar de Lore a baixar do
olho azul dele para o pacote que ele segurava na mão. Um saco de pano,
embrulhado. Reconheceu-o vagamente como sendo de um dos boticários
locais.
Gabe seguiu o olhar dela e estendeu a mão com o saco.
– Medicamentos. – Saiu-lhe num tom baixo e quase rouco, como se ele
não tivesse previsto usar a voz e ficasse surpreendido ao ouvi-la sair da sua
garganta. – Para as tuas mãos.
Lore levantou-se e atravessou a divisão. Pegou no saco sem tocar na pele
dele. Dentro, havia um frasquinho de bálsamo com um odor fortemente
medicinal que se escapava pela rolha. Ela reconheceu o aroma. Cravo e
canela, coisas que aqueciam.
– Usamos isso quando temos de canalizar – prosseguiu Gabe, já menos
rouco. Endireitou-se e ela sentiu como se uma máscara voltasse a ser
aplicada. – Arde como a merda, mas devolve-te mais depressa a sensação
aos dedos.
– Como a merda, hein? – Ela levantou a cabeça e mostrou-lhe um
vestígio de um sorriso, mas era demasiado difícil manter o contacto visual,
pelo que se concentrou antes nas leves sardas do nariz dele. – Duas semanas
longe das rédeas do Anton e já diz palavrões com naturalidade.
A menção a Anton fê-lo estremecer, apenas um pouco. Mas Gabe
limitou-se a encolher os ombros.
– A culpa é tua.
Dito com leveza, mas aquelas quatro palavras poderiam conter tantos
significados, ser o suporte de tantas fundações. Ambos pareceram perceber
isso mesmo em simultâneo e, apesar de nenhum se ter mexido, de repente
era como se houvesse mais espaço entre eles.
– Obrigada – disse ela, enfiando o saco com o frasquinho debaixo do
braço. Sentiu frio, depois de se afastar da lareira. Não se tinha apercebido
de quanto frio tinha até então e sentiu a pele de galinha a manifestar-se de
forma quase dolorosa, como se compensasse o tempo perdido. Estremeceu
e regressou ao seu quarto. – Acho que vou voltar para a cama. Sei que
dormi por uma semana, mas não foi um bom sono.
– Quem esteve aqui?
Lore franziu as sobrancelhas ao olhar para trás para Gabe. O olho dele
fitava a bandeja cheia de pavoa meio comida. O remexer dos dedos dele –
fechados em punhos e depois forçados a endireitar – indicava que já
conhecia a resposta.
– O Bastian – respondeu Lore, recusando-se a fazê-lo num tom
arrependido. – Estava aqui quando despertei.
Tampouco queria que parecesse uma reprimenda, mas o modo como
Gabe virou a cara para o fogo indicava que a tinha ouvido como tal. Foi
quase como se se encolhesse.
Chamas cor de laranja banhavam as feições dele, realçavam-lhe as
sombras. A visão despertou algo parecido com uma recordação na mente
ainda exausta de Lore. Afastou-a.
– Acha que o Malcolm nos deixaria entrar na biblioteca da Igreja? –
questionou ela.
– Se tivermos um bom motivo. Temos?
Lore mordeu a parte de dentro da bochecha, tentando descobrir a melhor
forma de o formular.
– Sabe que a presença do Bastian dificulta a invocação da Mortem –
disse ela por fim. – Como na noite no ringue de boxe e, mais tarde, nas
câmaras mortuárias. Também o sentiu. Mas enquanto eu estive…
inconsciente… senti o mesmo quando ele veio ao quarto. Senti a presença
dele, outra vez.
O rosto do Presque Mort mantinha-se inexpressivo sob a sua pala, os
ombros tensos.
Ela encolheu os ombros.
– Isso ajudou. – Palavras fracas para algo tão estranho. – E penso que
poderá ter algo que ver com o Spiritum. Com a linhagem Arceneaux.
– Eu não saltaria já para essa conclusão – disse Gabe, muito depressa. –
Compreendo que tenha sido estranho, e de certa forma assustador, nas
criptas, mas, apesar de os Opúsculos indicarem que Apollius lhes fez a
oferenda, há discordância quanto à interpretação literal…
– É por isso que quero ver o que há na biblioteca – interrompeu Lore. –
Só para verificar se há mais informação. E não só sobre o Spiritum e a
linhagem Arceneaux, mas em relação a tudo isto. – Fez um gesto com a
mão, abarcando-os a eles e a Bastian, às aldeias, a um derramamento de
Mortem depois de tanto tempo sem acontecer. – De alguma maneira, está
tudo ligado. Talvez haja algo na biblioteca da Igreja que nos ajude a
perceber.
Um momento de quietude, após o qual Gabe assentiu com a cabeça, de
um modo breve e profissional.
– Amanhã pedimos ao Malcolm. – O olho dele incidiu por fim nela. –
Falaste das tuas suspeitas ao Bastian?
Mantinha um tom equilibrado, mas com algo de sombrio por detrás.
Podiam estar atados pela ameaça de Bastian das Ilhas Queimadas – uma
ameaça que Lore sabia não ser vã –, mas Gabe era livre de oferecer a sua
lealdade a quem quisesse, e não a daria ao Príncipe Sol. Nunca.
– Não. – Lore abanou a cabeça. – Não contei.
Gabe relaxou os ombros, aliviado. Assentiu com a cabeça.
Por momentos, permaneceram ali e poderiam ter preenchido o silêncio
com muita coisa. Mas Lore deu meia-volta e deixou-o vazio.
Para lá da sua porta fechada, pousou o bálsamo no toucador, antes de
vestir uma camisa de noite de lã que encontrou no fundo do guarda-roupa.
Ainda a tremer, pegou num roupão grosso e envolveu-se nele. Sentia o
calafrio da morte a percorrer-lhe os ossos, como se de alguma forma ver
Gabe tivesse levado o seu corpo a recordar.
Sentiu os dedos dormentes ao tentar tirar a rolha do frasco de bálsamo e
verteu o medicamento para as mãos. Gabe estava certo; ardia como a
merda; praguejou entre dentes enquanto esfregava as mãos, espalhando-o
pelos dedos e até aos pulsos. Ao fim de um momento, a ardência deu lugar
ao calor e ela cruzou os braços, encolhendo-se ao enfiar-se sob os
cobertores.
Mas o sono não chegava. Sentia-se tão exausta, mas ao mesmo tempo
tão fria, e o descanso estava ali tão perto, mas inalcançável.
Levantar-se não foi verdadeiramente um pensamento consciente. Nem
sequer caminhar silenciosamente até à porta e abri-la, espreitando para o
brilho ténue do fogo da lareira, para onde Gabe se encontrava aconchegado
junto à porta, o peito despido iluminado pela luz das brasas, fitando o teto
com um olho azul e um ferimento envolvido em couro.
Ele virou-se para ela enquanto Lore percorria lentamente a carpete
empoeirada, de braços ainda cruzados, ainda encolhida como se estivesse
no meio de um nevão e não nos aposentos de cortesãos. Ele viu-a a
aproximar-se e não proferiu uma palavra.
– Tenho tanto frio – murmurou Lore.
E ele manteve-se silencioso ao pegar no seu cobertor e abri-lo, como um
convite.
Lore deitou-se junto a Gabe e ele deixou o cobertor cair sobre ela,
virando-se para ficar de costas para a porta e com o peito encostado às
costas dela. Ele estava quente e o calor foi passando para ela lentamente,
expulsando a dormência, recordações de vida num corpo que conhecia tanta
morte.
Gabe assentou o braço sobre a cintura dela, puxou-a mais para si. A
ligadura sobre a ponta do dedo em falta destacava-se sobre o cobertor
escuro. A respiração dele agitava-lhe o cabelo. E Lore fechou os olhos e
mergulhou num sono profundo, felizmente desprovido de sonhos.
Capítulo 26

O peso dos fenómenos naturais em flutuações de poder


divino não deve ser exagerado. Apollius era o deus do sol e
Nyxara a deusa da lua. A união deles revelou-se volátil e
ditou a destruição do mundo tal como o conhecíamos antes
da Queda dos Deuses; no entanto, quando os seus símbolos
se unem no céu, pode ser um tempo de grande poder para
quem souber utilizá-lo. Um eclipse representa mudança,
mudança na própria natureza da magia. É um tempo em que
os opostos podem unir-se.
– Solenne Bacque, professora de Teologia
Cosmológica na Faculdade de Ularha,
em Kadmar (pré-conquista kirytheana)

–A i. A voz de Gabe despertou Lore de repente, muito mais perto do seu


ouvido do que deveria. Abriu repentinamente os olhos, registando o mundo
num ângulo estranho – de lado e a partir de baixo. Todos os músculos do
corpo dela pareciam estar na iminência de serem afetados por cãibras e algo
atrás das costas dela pressionava-a incomodamente para a frente.
Era Gabe, a afastar-se da porta. Gabe, deitado junto dela com o peito
despido. Gabe, com quem ela dormira durante a noite, em busca de calor e
sem pensar em como se sentiriam pela manhã.
Lore levantou-se apressadamente, levando o cobertor com ela,
prendendo-o em redor dos ombros. Já dormira com imensa gente, em
ambos os sentidos da palavra, sem dar grande importância ao pudor. Mas
algo no facto de se tratar de Gabe, Gabe pio e preso pelos votos, levou-a a
corar intensamente, com uma vulnerabilidade desconfortável a invadir-lhe o
peito.
O rubor nas faces de Gabe revelou que também passava pelo seu
momento de vulnerabilidade desconfortável. Ela viu a decisão passar
repentinamente pelo rosto dele quando optou por não comentar o sucedido
durante a noite, algo pelo qual se sentiu tremendamente grata.
Gabe estendeu a mão para trás dele, pegando no que acabara de ser
passado por baixo da porta. Ela questionou-se há quanto tempo estaria ele
acordado, se teria ficado apenas deitado com o braço por cima dela
enquanto ela dormia.
Era outro envelope, enfiado por baixo da porta, uma vez mais com
Remaut escrito à frente com letra elegante. Um selo cobria a aba do
envelope, cera roxo-escura com uma imagem gravada do Coração do Deus
Sangrante. O selo dos Arceneaux.
– É uma convocatória? – questionou Lore enquanto Gabe se sentava e
rasgava o envelope para o abrir.
O olho dele percorreu o papel, para a seguir lhe entregar a missiva.
– Nem por isso.
Um convite para um jantar e um baile, para celebrar a chegada do
eclipse. O baile era um evento grandioso, mas o jantar formal que se seguia
era apenas para uns quantos eleitos, constando desse lista Lore e Gabe.
A data no papel olhava para ela. Solstício de verão. Ela não se
apercebera de quão próximo se encontrava o seu aniversário.
Um eclipse solar no seu aniversário e um baile para festejar.
Um tremor nos dedos de Lore fez o papel estremecer, apenas um pouco.
Só podia ser coincidência. Anton referira que planeariam uma Consagração
para ela, mas um baile não era uma Consagração…
– Lore? – Gabe olhou para ela desde o lugar onde se encontrava sentado
no chão, com uma expressão carregada de preocupação. A barba do queixo
começava a crescer, ela sentira-a durante a noite, áspera no seu cabelo. –
Está tudo bem?
Ela obrigou-se a sorrir. Agitou frouxamente o convite.
– É no meu aniversário. O meu vigésimo quarto.
As sobrancelhas dele ergueram-se.
– Mas aqui não refere nada sobre qualquer Consagração. Com sorte,
poderei evitar uma cerimónia. Calculo que não haja como escapar ao jantar.
– Sendo um convite direto do August, é impossível. – Com um gemido,
Gabe levantou-se, esticando as costas. Lore desviou o olhar. – Daria nas
vistas se não fôssemos.
Lore voltou a assentir, mordendo o lábio. Foi pousar o convite na mesa
junto dos outros – junto aos restos do jantar da noite anterior; teria de
arranjar alguém para tratar daquilo antes que se tornasse nojento – e
deparou-se com outro envelope onde se lia apenas Lore, sem o seu falso
apelido.
O convite de Alie para lanchar. No jogo de croquet ela dissera que era
recorrente, que ela e umas amigas se reuniam sempre ao Sexto Dia.
– Que dia é hoje?
– Sétimo – respondeu Gabe a caminho da porta do seu quarto por usar
em busca de roupas.
Ela faltara ao lanche. Provavelmente, deveria tentar ir ao seguinte. Seria
estranho não ir pelo menos uma vez e, para além disso, poderia ficar a saber
algo de valor.
E, mesmo que assim não fosse, seria agradável fingir por umas horas que
tinha amigos.
Lore trocou rapidamente de roupa, uma vez mais optando pelo vestido
mais fácil de vestir. Aquele era de um dourado intenso, com uma saia
flutuante em chiffon às camadas que farfalhava em volta das suas pernas.
As mangas eram também em chiffon, compridas e justas nos pulsos. Por um
lado, desejou mergulhar mais fundo no armário e dar com os vestidos de
inverno que estava certa de ali se encontrarem. Ainda sentia frio.
Ocorreu-lhe pedir a Gabe que a abraçasse de novo, mas abanou a cabeça,
afastando fisicamente tal ideia.
Quando ela saiu do quarto, Gabe estava vestido, enrolando morosamente
as suas mangas volumosas até aos cotovelos numa tentativa de as tornar
mais maleáveis. Lançou-lhe um olhar estranho.
– Calculo que queiras ir já para a biblioteca da Igreja?
Ela fez um gesto amplo.
– Indique o caminho, Mort.
Ao fim de um momento de reflexão, Lore pousou a bandeja do jantar
que Bastian lhe trouxera sob o candelabro do Coração do Deus Sangrante
do outro lado do vestíbulo. Ele dissera que enviaria uma criada – com sorte,
não se importaria de recolher também aquilo.
Fez uma careta ao olhar para os pratos sujos. Conseguira com sucesso
evitar pensar no Príncipe Sol durante pelo menos uma hora enquanto ela e
Gabe se preparavam, mas agora teria de pôr o seu contador interno a zero.
Era estranho pensar em Bastian quando ainda recordava a pressão do peito
de Gabe nas suas costas.
Nenhum deles tinha tempo para jogos românticos disparatados – se a
situação fosse diferente, ela iria para a cama com ambos e pronto, para se
poderem concentrar no que importava, como encontrar uma pilha de
cadáveres, descobrir por que razão August e Anton os tinham escondido e
perceber o que lhes causara a morte.
Mas um deles era o Príncipe Sol e outro um monge celibatário, e, como
tal, as circunstâncias eram um pouco mais complicadas.
Um deles expulsara a Mortem dela apenas através do simples toque da
sua mão e, como tal, as circunstâncias eram extremamente mais
complicadas.
Quando Gabe dirigiu um olhar vincado à loiça dela, Lore encolheu os
ombros.
– O Bastian disse que ia mandar uma criada cá em breve. Não ficou nada
impressionado com as suas capacidades domésticas.
Gabe revirou o olho e a seguir levantou a mão para coçar a pala. Ele
removera a ligadura da ponta do dedo e Lore sentiu-se aliviada ao verificar
que os danos não eram assim tão maus – parte da ponta simplesmente
desaparecera, como se alguém a tivesse amputado logo abaixo da unha.
Ainda se viam os pontos, mas parecia estar a sarar bem.
Ele seguiu o olhar dela, mas sem tecer comentários. Aparentemente, não
iam falar do ferimento, nem como ele o arranjara. Isso era perfeito para
Lore.
Seguiram pelas escadas das traseiras sem sequer terem de discutir o
assunto, ambos desejavam evitar dar de caras com alguém que lhes
perguntasse o que iam fazer. Em especial, Bastian.
Apesar da ligação que ela sentia – apesar de ele se preocupar consigo –,
Lore não desejava que Bastian soubesse das suas suspeitas quanto ao
Spiritum. Algo em relação a tal conhecimento parecia-lhe volátil, como se
pudesse desequilibrar uma balança perfeitamente equilibrada.
Não estava ninguém nas escadas estreitas e, além de dois casacas de
sangue, não havia vivalma nas portas duplas a sul que davam para a
Cidadela. Os guardas deixaram-nos passar sem tecerem quaisquer
comentários, mostrando expressões de tédio. Isso fez Lore pensar nos
guardas que a tinham visto entrar duas semanas antes, com um vestido
emprestado e flanqueada por dois Presque Mort, e no que Gabe dissera
sobre serem enviados para as Ilhas Queimadas.
– A biblioteca da Igreja fica na ala sul? – perguntou ao saírem para o
relvado. – Isso é inesperado. Pensei que ficasse junto ao Santuário Norte.
Gabe encolheu os ombros.
– Os nobres não dão muito uso a um monte de manuscritos e
Compêndios velhos.
– Mas são extremamente valiosos, certo? Parece o tipo de coisa que a
Igreja quereria manter longe da ralé.
– Na verdade, o Malcolm recebe mais requisições para os manuscritos da
parte dos plebeus do que dos nobres.
A surpresa quase a levou a tropeçar na saia.
– Isso é permitido?
– Sinceramente, não conheço bem o protocolo – respondeu Gabe. – Mas,
desde que foi promovido a bibliotecário-chefe, o Malcolm tem tentado
garantir que toda a gente que queira consultar um manuscrito disponha
dessa oportunidade. Pelo menos, os manuscritos que não necessitam de uma
autorização especial. Ninguém pode lá entrar e pedir para ver as profecias
sem a autorização do Anton.
Lore pensou em Anton, no seu rosto com cicatrizes e como as arranjara.
Franziu o sobrolho.
– Em tempos, o Malcolm contou-me uma história – prosseguiu Gabe,
pensativo. – De quando era criança, antes de ter o acidente que lhe marcou
os braços e o levou a juntar-se aos Presque Mort. Era fascinado por livros,
mas a família dele tinha poucos e ele soube que havia mais na Igreja. Foi
logo ter com um clérigo e pediu-lhe para ver os livros. Nem sequer lhe
ocorreu que poderia não ser possível. Os livros eram para todos, achava ele.
– O clérigo era da mesma opinião?
– Felizmente, era. Levou-o à biblioteca e o bibliotecário-chefe da altura
deixou-o consultar todos os livros que quisesse. – A voz de Gabe era suave,
contemplativa. – Depois, quando o Malcolm adquiriu a capacidade para
canalizar Mortem e se juntou aos Mort, fez questão de trabalhar na
biblioteca. Ao fim de algum tempo, assumiu o cargo do outro clérigo.
– Parece que anda bem ocupado.
Gabe soltou uma breve gargalhada.
Ela espreitou-o pelo canto do olho enquanto atravessavam o relvado,
com as paredes da Igreja impondo-se em frente bloqueando a leve luz
matinal. Gabe mantinha os lábios franzidos, contemplativo. Lore pensou se
ao falar da vida do amigo antes de se juntar aos Presque Mort Gabe
recordara a sua própria vida, a vida do rapaz que tinha um pai e um lar e
dois olhos funcionais.
A porta da Igreja abriu-se sobre dobradiças silenciosas e entraram para o
interior pacato. Gabe seguiu na direção oposta à que tomara no dia da fuga
de Mortem. As traves de madeira envernizada refletiam a luz das janelas de
vitral.
Havia seis dessas janelas ao longo do átrio que percorreram. A primeira
representava Apollius, em tons de branco e dourado, cabelo negro a
esvoaçar em volta dos ombros e com sangue nas mãos. A segunda era
relativa a Hestraon, o deus do fogo, representado curvado sobre uma forja e
envolvido em chamas cor de laranja. Lereal do ar era o terceiro, o rosto
virado para os rastos do vento iridescente entalhado no vidro sobre a sua
cabeça. A seguir, Caeliar do mar, com os braços estendidos numa onda azul
reluzente, seguida por Braxtos da terra, com flores a brotar das mãos. Ao
fundo do átrio havia uma janela composta apenas por painéis de vidro
escuro, azuis e roxos intensos, e um preto reluzente.
Lore franziu o sobrolho ao passarem, a luz a sarapintar-lhe a saia.
– É estranho que tenham representações dos outros deuses. Pensava que
Apollius era o único que podiam venerar?
– Representar não é venerar – respondeu calmamente Gabe. O seu olho
incidiu na janela escura e depois desviou-se.
O corredor dava para uma pequena escada em madeira; Gabe subiu em
passo acelerado e virou para uma porta em arco à direita, onde bateu com a
mão.
Lore subiu os degraus muito mais devagar. O percurso desde a Cidadela
tinha-a deixado sem fôlego; a semana de cama debilitara-a.
A porta entreabriu-se. Malcolm inclinou a cabeça, curioso.
– Gabe? Não contava ver-te aqui.
– Temos umas dúvidas – explicou Lore, tentando não soar tão ofegante
quanto se sentia.
– Dúvidas que provavelmente irão envolver muita teoria religiosa e
outras buscas tecnicamente heréticas – resmoneou Gabe.
O bibliotecário-chefe sorriu.
– Então, meus amigos, vieram ao lugar certo.
Abriu mais a porta e deu-lhes passagem.
A biblioteca da Igreja rivalizava com a da Cidadela, no que tocava à
quantidade de exemplares. E era igualmente bela, embora de uma forma
diferente. Enquanto a biblioteca da Cidadela era luminosa e arejada, a da
Igreja era austera, toda em madeira escura reluzente e iluminada pelo brilho
de candeeiros a gás. A sala tinha pelo menos quatro pisos, embora aos mais
altos se chegasse apenas através de um escadote deslizante em vez de por
escadas estrategicamente colocadas. Mesas compridas percorriam a
extensão da sala e no centro de cada uma havia uma cobertura de vidro
arredondada com pequenas dobradiças equidistantes. Sob o vidro,
repousavam uns quantos livros de aspeto antigo, onde podiam ser lidos sem
que lhes tocassem. Uma pequena porta embutida nas estantes dava para o
que parecia ser uma sala de leitura, com outra mesa coberta por vidro. As
estantes nessa sala encontravam-se repletas de livros mais finos, com capas
com letras douradas embutidas demasiado ornamentadas para Lore as
perceber ao longe. Havia pequenas plantas envasadas dispostas ao longo de
estantes de livros, com gavinhas verdes a serpentear sobre as prateleiras.
Não havia janelas por onde entrasse luz solar, pelo que Lore não entendeu
como cresciam, mas todas pareciam de perfeita saúde.
– Teoria religiosa, dizem? – Malcolm avançou para um dos livros
pousados sobre as mesas compridas e abriu uma portinha no vidro acima do
mesmo. Enfiou as mãos num par de luvas claras antes de cautelosamente
fechar a capa, para a seguir pegar noutro livro com o cuidado que um pai
pega numa criança. – É um tema muito amplo. Sejam lá mais específicos.
– Informação sobre o Spiritum – disse Gabe. – Principalmente, teorias
sobre como pode manifestar-se.
– Isso é fácil. – Malcolm abriu uma de uma série de gavetas na parede de
trás e gentilmente guardou lá o livro e voltou a fechá-la em silêncio. – É o
mesmo que o Anton tem andado a pesquisar.
Capítulo 27

As respostas nada significam sem as perguntas certas.


– Provérbio kitytheano

A semana seguinte caiu numa rotina simples. Gabe e Lore acordavam,


tomavam o pequeno-almoço e seguiam para a biblioteca da Igreja. A
seguir, passavam horas a consultar minuciosamente velhos manuscritos e
volumes encadernados de anotações dos anos posteriores à Queda dos
Deuses, Compêndios traduzidos do eroccano e do kirytheano e até do
antigo myroshano, dos tempos anteriores a Myrosh ser subjugado pelo
Império Kirytheano e a língua proscrita. As referências ao Spiritum, quando
encontradas, eram breves. Ainda assim, iam lá todos os dias, olhando para
os livros que Malcolm já procurara para Anton, tentando encontrar algo que
desse a tudo – a Bastian, aos corpos das aldeias, ao que planeariam August
e Anton – algum sentido.
Os estudos deles incluíram também assuntos mais obscuros.
Nomeadamente, textos sobre as coisas estranhas alcançadas ao canalizar-se
o poder elementar deixado escapar pelos deuses menores. Alguém fizera
um navio navegar mais depressa recorrendo ao poder de Caeliar; outra
pessoa lograra tornar acontecimentos de sonhos visíveis no mundo desperto
com o poder de Lereal. Fazia sentido que Anton tivesse pesquisado tais
coisas, se suspeitasse que as mortes súbitas se deviam a sobras de magia
elementar. Mas nada nos livros se assemelhava ao que acontecera nas
aldeias.
Ao longo de seis dias, Malcolm permitiu-lhes que trabalhassem num
relativo silêncio, evitando ao máximo os seus olhares curiosos. Quando as
perguntas por fim surgiram, Lore admirou-se por terem demorado tanto.
– Sabem – disse Malcolm, calmamente –, bastava terem perguntado ao
Anton o que descobriu ele.
Lore paralisou. Do outro lado da biblioteca, debruçado sobre um livro,
Gabe imitou-a.
Ambos sabiam que a dado momento teriam de ser sinceros com
Malcolm ou então inventar uma mentira plausível. No primeiro dia, Gabe
conferenciara com o seu colega Presque Mort enquanto Lore olhava para os
livros e disse-lhe que preferia que o Supremo Sacerdote não soubesse do
atual projeto deles. Lore ficou tensa, mas, após um breve silêncio, Malcolm
tinha concordado. Ele e Gabe eram amigos de longa data e, pelo que Lore
percebia, o bibliotecário não era tão devoto de Anton quanto Gabe. Se Gabe
lhe pedia para ser discreto, Malcolm sabia que seria por um bom motivo.
Mas, agora, Gabe não se manifestou, pelo que Lore decidiu com rapidez.
Levantou-se do banco e esticou as costas, fingindo alheamento.
– Ora diga-me lá exatamente o que procura o Anton?
– Ele não me deu pormenores – disse Malcolm, retirando outro livro de
uma estante e dando-lhe uma apressada vista de olhos. Ele entregara a Lore
e Gabe um par de luvas como as que sempre usava, mas nenhum deles
podia tocar nos livros mais raros, nem com elas calçadas. – Quis ver tudo o
que se referisse à aplicação prática do Spiritum. Assumi que ele teria uma
ideia de como poderia ser utilizado para contrapor à questão da Mortem,
mas, dado que passou um par de meses e ele não abordou o assunto, o
objetivo dele não deverá ser ajudar.
A voz de Malcolm denotava alguma instabilidade. Lore olhou
discretamente para Gabe; o Presque Mort fitava o seu amigo com os lábios
cingidos, notando-se um vinco entre as sobrancelhas.
Malcolm não reparou, embrenhado como estava nos seus livros. Abriu
cautelosamente uma página escolhida naquele em que acabara de pegar e
enfiou-o sob o vidro diante de Gabe. A seguir, descalçando as luvas para
não as sujar, pegou num pequeno regador de latão guardado num canto e
começou a tratar cuidadosamente das plantas incongruentes que cresciam
nas estantes.
– Todas as referências a Apollius outorgar capacidades de canalizar
Spiritum à linhagem Arceneaux parecem ser uma metáfora a eles serem os
Seus soberanos escolhidos para Auverraine. Nunca um Arceneaux alguma
vez canalizou Spiritum. Está à nossa volta, como a Mortem, mas não é algo
que se possa agarrar.
– A Mortem também não era, até Nyxara morrer – comentou Lore.
Malcolm apontou para ela.
– Precisamente. – Nitidamente, ele não dispunha de muitas
oportunidades para debater teorias de magia; pareceu quase zonzo face à
perspetiva, os seus modos austeros de antes esquecidos quando acabou de
tratar das plantas e voltou a pegar nas luvas. – Portanto, se subscrevem a
ideia de que Apollius não morreu, e simplesmente aguarda no Reino
Iluminado, faz sentido que ninguém consiga usar o Spiritum. Não há um
corpo de onde escorra.
– Se subscrevemos a ideia? – Gabe, incrédulo, levantou os olhos do livro
que lia através do vidro.
– Não fui eu a dizer que a pesquisa seria herética. – Malcolm encolheu
os ombros, voltando a calçar as luvas. – Estou só a acompanhar o teu
exemplo. – Apontou com uma mão, e depois com a outra, indicando uma
coisa a seguir a outra. – Quem detiver o poder tem de morrer… ou, para não
incomodar as sensibilidades mais pias, diremos apenas passar por uma
alteração de estado… para que outra pessoa o use.
Mesmo com a concessão, Gabe não pareceu muito agradado com o rumo
da conversa. Franzindo a testa com tal vigor que remexeu a pala, olhou de
novo para o seu livro.
– Ora bem – disse Malcolm, dirigindo-se a Lore –, teoricamente, é
possível extrair Spiritum de uma entidade viva, tal como se retira Mortem
de uma pedra ou madeira morta. Mas as coisas vivas agarram-se ferozmente
à vida, não a cedem com facilidade.
Lore avançou devagar até uma das estantes de livros onde Malcolm a
deixava tocar, exemplares encadernados de notas de palestras da
Universidade de Grantere, uma cidade pequena mais a norte.
– Imagino que extrair Spiritum a algo vivo o deixasse morto.
– Isso tem lógica, sim – disse Gabe, num tom seco.
Ela ignorou-o.
– E seria necessário extrair de algo grande, como uma pessoa ou um
animal grande ou uma data de flores, para se obter Spiritum suficiente para
fazer algo. – Ela não fazia ideia do que alguém poderia tentar fazer com o
Spiritum, mas a Mortem também não era propriamente a coisa mais útil.
– Se seguirmos a teoria de que funciona de forma similar à Mortem, sim.
– Malcolm encostou-se à mesa, de braços cruzados. – Mas repara: Nenhum
ser humano alguma vez canalizou Spiritum, por isso não sabemos ao certo
se funciona da mesma maneira. Tudo isto são conjeturas.
– Então, porque haveria de ser referido? – Lore pousou as notas das
palestras e pegou antes num dos volumes não-raros do Livro da Lei
Sagrada. Folheou até à notação, já memorizada. – O Livro da Lei Sagrada,
Opúsculo 214. «A quem escolho, lego o meu poder, Spiritum, a magia da
vida».
Malcolm sorriu.
Lore fitou-o por cima da capa do livro.
– Tem algum facto erudito complexo sobre esta passagem, não tem?
– Não é complexo, obrigadinho, apenas um desacordo quanto à tradução.
– O sorriso dele alargou. – Diz-me: a quem escolho é singular ou plural?
Ela abriu a boca para responder, mas depois fechou-a chocando os
dentes. Olhou para Gabe; ele parecia igualmente confuso com uma questão
aparentemente simples.
– Pode ser ambos, em função do contexto. E aí jaz o problema. –
Malcolm avançou até à estante, retirando outro exemplar do Livro da Lei
Sagrada. Este escrito em rouskano; avançou até à mesma página e apontou
para o Opúsculo 214. – Calculo que não saibas ler rouskano, mas eles têm
umas ligeiras variações na soletração do equivalente deles de «a quem
escolho», uma diz «ao meu eleito», outra «aos meus eleitos». Este exemplar
foi traduzido logo após o desaparecimento de Apollius… o tradutor terá
recebido as passagens ditadas pelo próprio Gerard Arceneaux. – Indicou a
palavra na página. – Ele usou a expressão no singular.
Gabe levantou-se do banco e aproximou-se para olhar para a tradução
rouskana.
– A tradução singular surge apenas em rouskano?
– Todas as línguas que distinguem entre eleito e eleitos optaram pelo
singular até por volta de 16 DQD… ou seja, quinze anos depois de Apollius
ter desaparecido, bem a meio do reinado de Gerard Arceneaux. – Malcolm
afastou-se para ir rapidamente às estantes buscar outros exemplares do
Livro da Lei Sagrada e abriu-os todos no Opúsculo 214, ocupando a mesa.
– Nessa altura, todas as traduções trocaram para o plural.
– É pecado alterar as palavras de Apollius. – Gabe debruçou-se e apoiou
as mãos na mesa, espreitando para os livros como se conseguisse levá-los a
confessar algo.
– Parece-me que Apollius deveria ter escolhido melhor as palavras –
murmurou Lore.
Gabe endireitou-se.
– Hum.
– Então, se era singular – disse Lore –, isso significaria que, em vez de
toda a linhagem Arceneaux ter a capacidade de canalizar Spiritum, só um
deles a teria.
Malcolm assentiu com a cabeça.
– É a mesma conclusão a que o Anton chegou.
A menção ao Sacredote Elevado adensou o ambiente.
O bibliotecário fitou-os por um momento, olhos escuros a cintilar de
curiosidade. Quando falou, fê-lo em voz baixa e com ar de quem decidira
algo.
– Querem ver o livro mais recente que adquiri? Tive de o mandar vir de
Grantere, depois de o August especificamente requisitar ao Anton que o
procurasse.
– Malcolm… – ia Gabe a dizer, mas o outro homem estendeu uma mão
enluvada.
– As coisas andam mal há tempos, Gabe. – O entusiasmo instigador que
demonstrara ao falar de traduções desaparecera; Malcolm soava resignado.
Triste, como alguém a aceitar um facto de que suspeitava havia muito,
embora tentasse ignorá-lo. – O Anton e o August nitidamente guardam
segredos e o Anton enfiou-te na Cidadela sabendo perfeitamente que era o
último lugar onde quererias estar. Entre isso e a pesquisa que ele leva a
cabo… não apenas sobre o Spiritum, mas sobre a Mortem e como esta pode
ser manipulada… não estou convencido de que seja ele quem eu quero
seguir.
Gabe ficou mudo. Estavam todos à beira da heresia, mas as palavras de
Malcolm eram as que mais se aproximavam disso.
– Não que deseje necessariamente seguir-vos em qualquer que seja a
demanda louca em que andam envolvidos – disse Malcolm, com ironia –,
mas tenho um… pressentimento, calculo. Algo está a mudar e eu quero
fazer parte da mudança.
Nem Lore, nem Gabe souberam o que dizer. Contudo, ao fim de um
momento, Gabe estendeu o braço e deu uma palmada no ombro do outro
homem. Manteve-se em silêncio, parecendo perturbado, quase receoso.
Malcolm retribuiu o gesto e a seguir virou-se para o armário onde eram
guardados os volumes mais raros.
– Deixem-me procurar aquele livro. Pode dar-nos alguma luz.
Junto a Lore, Gabe cruzou os braços, com uma expressão tensa e
pensativa.
Lore tamborilou com os dedos no tampo da mesa.
– Disse que o Anton andou a pesquisar sobre a Mortem, certo? O quê,
especificamente?
– Coisas horríveis – respondeu Malcolm, baixinho. – Relatos de
necromantes, logo dos primeiros anos após a Queda dos Deuses.
Aparentemente, a capacidade de despertar os mortos não tinha que ver com
quanta Mortem eram capazes de canalizar, mas com a forma de a manipular
para o conseguirem. E outros trabalhavam aos pares… um para despertar os
mortos, outro para os controlar, através de um complexo ritual de
canalização.
Lore franziu o sobrolho e torceu uma das fitas da manga. Tinha
escolhido um novo vestido, uma peça azul-clara com tufos pequenos de
tecido a cobrir os ombros, com as fitas que cingiam a manga a descerem
pela parte de trás dos braços. Faziam-lhe comichão.
Malcolm franziu o sobrolho, abrindo e fechando outra gaveta.
– Raios – murmurou entre dentes. – É sobre transubstanciação, por isso
só posso ter guardado nesta gaveta, não na de cima…
– Por acaso andarás à procura de Prática Física de Transubstanciação,
de Etienne D’Arcy? – questionou Bastian. – É que tenho-o aqui mesmo.
Lore rodou a cabeça tão depressa que o seu pescoço estalou.
O Príncipe Sol de Auverraine encontrava-se junto à porta da biblioteca,
do lado de dentro, com um ombro encostado ao caixilho. Segurava um livro
grande encadernado a couro, folheando descontraidamente as páginas para
a frente e para trás, indiferente à idade e ao valor que teriam. Um meio-
sorriso inocente iluminava-lhe um canto da boca e os seus olhos brilhavam
sombriamente na luz escassa.
Malcolm foi o primeiro a recuperar, pois a vista de um livro a ser
maltratado prevalecia sobre tudo o resto.
– Cuidado! – Correu até junto de Bastian e tirou-lhe o livro das mãos, de
forma demasiado delicada para se dizer que lho tinha arrancado, mas pouco
faltara. – Isto tem pelo menos duzentos anos.
– Isso explica o cheiro. – Bastian largou o livro sem protestar, enfiou as
mãos nos bolsos e caminhou descontraidamente até à mesa onde se
encontravam Gabe e Lore. Lore fitou-o como um rato olharia para um gato,
mas Gabe limitou-se a retesar-se, rígido como o vidro diante deles.
– Numa situação normal, ficaria perturbado por vocês os dois não me
terem convidado – referiu Bastian, aparentemente sem se incomodar com a
presença de Malcolm. – Mas calha eu ter a minha própria investigação para
levar a cabo. Daí o livro.
– Como é que aqui entrou para o levar? – A pressa em salvar o livro das
mãos impertinentes do príncipe estava a dissipar-se; Malcolm não parecia
exatamente nervoso, mas a sua expressão era de preocupação. – A porta
está sempre trancada…
– Ignorando o facto de eu conseguir obter qualquer chave que deseje –
interrompeu Bastian –, não fui eu quem levou o livro da biblioteca.
Encontrei-o no escritório do meu pai. – Inclinou a cabeça para Malcolm. –
E, se achas que eu estava a maltratar o livro, devias ver o que ele estava a
fazer. Deixou-o aberto e segurou as páginas com um copo de vinho.
– Deus Sangrante. – Malcolm rodou rapidamente o livro nas mãos para
inspecionar a lombada.
Bastian virou-se de novo para Gabe e Lore, o seu olhar a deslizar de um
para o outro.
– Ora bem – murmurou –, algum de vocês sabe o motivo para o meu pai
andar a estudar transubstanciação? Duvido que saiba sequer soletrá-lo, por
isso assumo que o Anton lhe tenha levado o livro, o que significa que
provavelmente terá algo que ver com as aldeias e, possivelmente, com
tentar tramar-me.
– Tem a certeza de que quer fazer isto aqui? – Lore falou em voz baixa e
apontou com o queixo para Malcolm, naquele momento concentrado em
verificar os danos no livro.
– Ah, certo. – Bastian endireitou-se e virou-se para o bibliotecário. –
Odeio fazer isto, Malcolm, mas é necessário: O Gabe e a Lore trabalham
para mim, pois parece que o meu pai e o meu tio querem culpar-me pelas
mortes nas aldeias e acusar-me de ser um espião kirytheano. Parabéns,
agora também fazes parte disto. Uma palavra que seja e vocês os três
podem apanhar o próximo barco para as Ilhas Queimadas.
Malcolm estacou, com o livro num ângulo estranho nas mãos.
Pestanejou.
– Bem – disse, ao fim de um momento. – Obrigado por me contar.
– De nada. – Bastian voltou a assentar as mãos na mesa, debruçado sobre
o vidro. – De volta à minha pergunta.
– Não fazemos ideia – disse Gabe entre dentes cerrados. – Começámos a
vir aqui há uma semana fazer pesquisa sobre o Spiritum, porque…
Lore olhou para ele, rapidamente e em pânico.
– Porque achamos que poderíamos dar com alguma pista sobre as aldeias
– prosseguiu, pacatamente. – Nem sequer discutimos transubstanciação,
seja lá o que for, até pouco antes de apareceres.
– Foi ideia minha. – Malcolm aproximou-se deles, segurando o livro
com cuidado nas mãos enluvadas. Fitou as de Bastian, fez uma careta,
retirou outro par de luvas do bolso e passou-as ao príncipe. – Na minha
biblioteca, seguimos as minhas regras. Calce o raio de umas luvas.
Arqueando uma sobrancelha, Bastian obedeceu.
– Explica lá isso melhor, por favor – disse, enquanto enfiava os dedos
em algodão branco demasiado apertado.
Notou-se apenas uma fugaz hesitação nos olhos de Malcom antes de
suspirar, abrindo o vidro e enfiando o livro por baixo, avançando para uma
determinada página.
– Estávamos a falar de que, nas traduções iniciais do Compêndio, os
versículos sobre a linhagem dos Arceneaux canalizar Spiritum recorrem ao
singular eleito. Como se apenas um Arceneaux eleito pudesse efetivamente
fazê-lo.
– Isso explicaria porque é que nenhum de nós alguma vez o fez – frisou
Bastian. – Mas não a relação da transubstanciação com tudo. Ou sequer o
que é. – Bateu no vidro sobre o livro. – Esta coisa não foi escrita com um
leigo em mente.
– A transubstanciação é basicamente uma coisa substituir outra. –
Malcolm inclinou-se para a frente e espreitou para o livro. – Ou, como o
explica D’Arcy, «o espiritual superar o físico até ao ponto onde o físico é
alterado».
– E o que tem isso que ver com o Spiritum? – Lore imitou Malcolm,
curvando-se sobre o vidro e semicerrando os olhos sobre as palavras
minúsculas na página. Todas pareciam ter mais sílabas do que deviam e a
escrita floreada dissolvia-se em rabiscos antes de ela retirar algum sentido.
– Por pura definição, nada – respondeu Malcolm. – E cientificamente,
ninguém dá muito crédito a essa ideia. Não é para ser levada à letra. Mas o
Anton estava desesperado por que eu encontrasse este livro e, dado que
tudo o mais que ele tem procurado ultimamente está relacionado com o
Spiritum, assumo que tenha encontrado uma ligação entre os dois.
Gabe franziu o sobrolho, enrugando a testa sobre a pala do olho.
Qualquer referência ao Supremo Sacerdote parecia deixá-lo com os nervos
em franja.
– Então, o que temos até agora – disse Lore, levantando um dedo por
cada ponto – é que a capacidade para canalizar Spiritum poderá ser detida
por apenas um Arceneaux, mas não fazemos ideia de qual, e o facto de o
Anton andar a olhar para ciência fajuta que diz que se consegue alterar
fisicamente algo se… se quê? Se se acreditar o suficiente nisso?
– É um bom resumo – concordou Malcolm.
Ficaram em silêncio. A seguir, Bastian endireitou-se, e cruzou os braços.
– Parece-me fazer todo o sentido.
Lore também cruzou os braços, como se fosse um desafio.
– Como assim?
– Um Arceneaux consegue controlar o Spiritum. O poder da vida. O meu
pai procurava a forma de se tornar esse Arceneaux. – Bastian encolheu os
ombros. – A última tentativa desesperada de um homem moribundo se
salvar.
Olharam para o Príncipe Sol. O Príncipe Sol olhou para eles. Gabe foi
quem conseguiu falar.
– Estás a dizer…
– Ah, pois, esqueci-me de vos contar. – Bastian afastou o cabelo do
rosto. – O meu pai está a morrer.
Capítulo 28

Não esqueçam isto: Os deuses nunca partem, simplesmente


mudam.
– O Livro da Lei Sagrada, Opúsculo 713[2]

S ilêncio, de tal modo absoluto que parecia ecoar nos ouvidos de Lore.
August estava a morrer. Isso explicava o facto de andar a tomar veneno,
bem como o desejo de se ver livre de Bastian para poder nomear um
herdeiro diferente caso o veneno não surtisse efeito. Não lhes revelava nada
sobre o que realmente se passava nas aldeias, pelo menos não diretamente,
mas ela não se livrava da sensação de que tudo estava ligado.
– Espera. – Gabe levantou a mão como que a solicitar mais silêncio,
embora fosse nisso que já todos tivessem caído há uns minutos. – Há
quanto tempo está ele doente? E porque não nos contaste antes?
– A verdade é que só soube hoje. – Bastian apoiou uma anca na mesa e
brindou Gabe com um olhar exausto. – Andava a vê-lo beber daquele cantil
mais do que o habitual e, pelo cheiro, percebi que não eram apenas bebidas
alcoólicas. Quando a Alie nos falou do problema da Cecelia, ocorreu-me
perguntar aos médicos do August. Um suborno chorudo levou o médico
assistente a entregar animadamente os registos. Recebi-os há cerca de duas
horas, depois de muito bem compilados para me facilitar a leitura. – Apoiou
um cotovelo no vidro. Malcolm fez um som abafado e, com um olhar quase
arrependido lançado ao bibliotecário, Bastian recuou de novo. – Entrei às
escondidas no escritório do August para ver se descobria algo relacionado
com as aldeias, mas tudo o que encontrei foi esse livro sobre
transubstanciação.
O facto de ele ter ido espreitar – de também sentir que tinha de haver
uma ligação entre tudo aquilo –, solidificou a ideia na mente de Lore. Esta
mordeu o interior da bochecha, a ponderar a sua pergunta seguinte. Não
havia forma de lhe dar voz sem soar a traição e, apesar de já estarem
comprometidos, ainda assim sentiu-se nervosa.
– Bastian, acha… será possível que o August ande a chacinar as aldeias?
Nenhum som de surpresa, nenhuma sobrancelha erguida. Todos tinham
chegado à mesma horrível conclusão.
– Eu acho que ele está envolvido – respondeu Bastian. – Mas isso não
nos revela nada sobre o como. É muita coincidência que tudo isto comece a
acontecer precisamente quando ele adoece e quer escolher um novo
herdeiro. Mas não me ocorre nenhuma teoria plausível para o modo como
conseguiu matar tanta gente de tão longe, sem deixar quaisquer vestígios.
Nem sobre o que ganha com isso. Deve haver uma forma mais fácil de
incriminar alguém.
Malcolm estendeu o braço e tocou ao de leve no livro.
– Isto poderá ter algo que ver com isso. Utilizar transubstanciação
para… sei lá, passar a doença dele a outras pessoas?
– Pensava que tinha dito que isso não funcionava – frisou Lore.
O bibliotecário ergueu as mãos.
– Eu não sei. É tudo teoria. A Mortem e o Spiritum são ambos poderes
divinos; não foram concebidos para serem utilizados por parte de humanos.
É por isso que todos os deuses tiveram de ascender de formas humanas,
tornar-se algo diferente. É completamente possível, provável, até, que haja
aspetos de ambos para os quais não temos contexto, que basicamente somos
incapazes de compreender.
– Temos de contar ao Anton.
A voz de Gabe soou baixa, mas trespassou a sala como uma faca. Ele
olhava em frente, para o vidro e para o livro por baixo.
– Não podemos, Gabe. – Lore tentou falar num tom brando, mas não
conseguiu amaciar a pontada de irritação. – Foi o próprio Anton que veio
buscar o livro.
– Isso não significa que esteja envolvido. – O Presque Mort levantou-se
da mesa, lançando um olhar fulminante a Lore. – Podia estar a tentar
investigar o que andava o August a fazer, ou a tentar resolvê-lo, de alguma
maneira.
– Mas não podemos arriscar…
– Porque haveria ele de trazer-te aqui se não quisesse que descobrisses o
que se passa? Se não queria pará-lo? Pensa, Lore. Porque é que o Anton, ou
até o August, traria uma necromante para perguntar aos corpos como
morreram se eles já o soubessem? Se estivessem envolvidos, merda!
– Tento na língua, Vossa Graça – disse Bastian em voz baixa.
Um olho azul ardeu de raiva quando Gabe o fez incidir no príncipe,
regressando depois a Lore.
– Não faz sentido – disse ele por fim. – A resposta mais simples costuma
ser a correta e a resposta mais simples é que, de alguma maneira, é Kirythea
quem está por detrás disto. A tentar iniciar uma guerra para finalmente
também se apoderar de Auverraine.
– Para ti, vai sempre dar tudo a Kirythea. – Bastian deu uns toquezinhos
no vidro. – Talvez não sejas a pessoa mais imparcial para avaliar isto,
Remaut.
As mãos do Presque Mort cerraram-se em punhos. Deu mais um passo
para a mesa.
– Gabe – avisou Malcolm.
O som do seu nome proferido pelo velho amigo bastou para fazer relaxar
um pouco os ombros de Gabe. Desviou o olhar de Bastian e, desgastado,
passou uma mão pelo rosto.
– Eu não pude despertar outro corpo que não fosse o que o Anton e o
August escolheram – disse Lore, calmamente. – E não me quiseram
presente quando começaram a fazer perguntas. Talvez a ideia não fossem as
perguntas, mas o despertar. Talvez de alguma forma o tenham disfarçado
com isso. Como, não sei. – Apontou a mão para o livro sob o vidro. – Mas
parece haver muito que não sabemos.
– Então, a solução passa por descobrir um corpo que não tenham
escolhido para ti. – Bastian olhou para o chão, os lábios contorcidos ao
refletir. – Um daqueles que esconderam algures.
– Exato. – Lore espreitou para Gabe, ainda calado, ainda ameaçador. –
Então, basicamente regressámos ao ponto de partida.
– Com o bónus de um rei a morrer lentamente, pelos vistos – acrescentou
Malcolm. Com um suspiro, sentou-se na mesa. – Ao que parece, agora
estou envolvido nisto e, dado que não anseio por uma estadia prolongada
nas Ilhas, vou tornar-me útil e ler este maldito livro. – Ergueu uma
sobrancelha a Gabe. – Coteja os Compêndios ali na mesa. Isso vai manter-te
ocupado e pode vir a revelar algo novo. Eu já olhei para eles até ficar vesgo.
– E eu, o que faço? – perguntou Bastian, animado.
– Não me atreveria a dar ordens a um príncipe.
– Vá lá, Malcolm, estás chateado por causa da ameaça das Ilhas
Queimadas? Compreendo, mas estou de mãos atadas. Desculpa a pobre
escolha de palavras.
Os olhos negros de Malcolm reviraram na direção do teto, como se
implorasse a Apollius por um momento de paz.
– Procure nas notas dos sermões. Veja se descobre algo.
Todos se lançaram às suas tarefas numa concentração silenciosa. Não
fora atribuída uma tarefa a Lore e ela não tinha propriamente vontade de
pedir que o fizessem, pelo que se aproximou de Gabe, sentando-se junto
dele na outra mesa comprida.
– Lamento – disse ela, pois nada mais lhe ocorria.
– O quê? – Ele não olhou para ela, o olho fixo numa página protegida
por vidro, mas não estava efetivamente a ler, apenas a olhar.
– Não sei. – Com um suspiro, entrelaçou as mãos sobre a mesa,
assentando lá a cabeça. – Tem razão ao dizer que o August e o Anton não
me trariam até cá para descobrir a verdade se já a conhecessem e não me
ocorre outra razão para me quererem na Cidadela… Como o Bastian disse,
haveria por certo formas mais fáceis de incriminar alguém. Isto tanto pode
ser uma enorme conspiração como apenas uma série de mal-entendidos.
Mas temos de saber.
Gabe permaneceu por uns momentos em silêncio. A seguir, disse:
– Há outra possibilidade.
– Qual?
– Talvez eles não te queiram aqui para saber das aldeias. – Remexeu-se
na cadeira. – Talvez o Anton planeie algo que nos salve a todos… que nos
salve de Kirythea, que salve as aldeias, que salve até o Bastian do August. E
talvez tu faças parte desse plano.
– Isso parece-me muito rebuscado.
Ele encolheu os ombros com desconforto.
– Eu só quero… – Interrompeu-se com um suspiro. – Eu só quero que
isto termine de uma forma com a qual eu possa viver.
E Anton no papel de vilão não era algo com que ele conseguisse viver.
Lore não sabia o que dizer. Assim, manteve-se em silêncio, com a
cabeça apoiada nas mãos, embalada pelo folhear das páginas e pelas luzes
ténues da biblioteca, os olhos a fecharem-se aos poucos.
Areia branca. Água azul. Céu azul.
Lore sentia, como sempre, a mesma figura insubstancial junto dela. Mas
algo parecia agora mais sólido, como se ela se tivesse aproximado, embora
a distância parecesse ser a mesma.
Rodou os olhos, o movimento a requerer muito mais esforço do que era
suposto. Mas apesar de ter havido um breve momento de corporalidade,
quando o vulto quase assumiu uma forma que ela reconheceria, desapareceu
num ápice.
– Ora bem – murmurou a voz desprovida de textura, imiscuindo-se no
seu sonho. – Vamos lá tentar outra vez, dado que já tiveste tempo.
Um puxão no coração, desta vez doloroso, como se uma mão lho
arrancasse do peito como um fruto. Um grito mudo contraiu-lhe a boca
enquanto lhe saía fumo do peito, enrolando-se até ao céu, contorcendo-se
sobre o azul.
– Lore.
Algo no ombro dela. Uma mão, a sacudi-la.
– Lore.
Com um esforço consciente, ela abriu os olhos.
Gabe franziu a cara ao olhar para ela desde o seu lugar no banco, mas a
mão no seu ombro era de Bastian. Ele tocou-lhe na testa, e depois
endireitou-se, olhando ostensivamente para o relógio na parede.
– Se nos despacharmos, ainda chegamos a tempo.
A tempo? Ela contou os dias para trás, tentando perceber ao que se
referiria ele…
– Merda. – Levantou-se de repente da mesa, passando uma mão pelo
cabelo desalinhado. – Tenho de ir a um lanche.

Bastian acompanhou-a ao exterior. Lore sentia o olhar penetrante de


Gabe na sua nuca, mas ele não tentou arranjar qualquer pretexto para os
acompanhar. Ele e Malcolm continuaram a passar a pente fino Compêndios
e textos de palestras para ver se havia alguma migalha de informação útil e
ele disse-lhe que tentaria regressar aos aposentos na altura em que ela
terminasse o lanche com Alie.
– Que primo consciencioso – disse Bastian ao saírem da biblioteca.
Lore deu-lhe uma leve cotovelada, fingindo tropeçar na bainha para
parecer um acidente. A curvatura da boca dele revelou que não se deixou
enganar.
O livro de transubstanciação estava enfiado sob o braço de Bastian,
mantido ali para não chamar a atenção. Quando entraram na Cidadela,
Bastian soltou o outro braço do aperto de Lore, após o que lhe enfiou um
papel na mão.
– Um mapa para os meus aposentos.
– Não é o momento mais indicado para uma proposta, mas respeito o
esforço.
– Lore, um pouco mais de nível. – Bastian deu-lhe um toquezinho sob o
queixo. – O lanche da Alie hoje é nos meus aposentos. Os dela estão a ser
sujeitos a uma profunda limpeza. Tenho de ir devolver este livro antes que o
meu pai dê pela falta dele; vejo-te lá. – Ele meneou-se pelo corredor fora, a
sua passada sem indicar minimamente que levava algo escondido debaixo
do braço. Numa outra vida, Bastian Arceneaux teria dado um bom
traficante de veneno.
Lore estudou o mapa e arrancou na que pensou ser a direção correta,
rumo ao torreão noroeste – para ajudar, Bastian tinha desenhado uma cara a
piscar o olho sobre o que ela presumia serem os aposentos dele. Após um
corredor pejado de estátuas de mármore e de outro composto inteiramente
por janelas, alcançou uma grande e ampla escadaria, alcatifada com um
exuberante carmesim.
– Muito mais agradável do que o sudeste – murmurou ela ao subir as
escadas. – E sem estátuas assustadoras.
Apesar de mais simpático, o torreão fora construído da mesma forma,
com escadas que terminavam em patamares estreitos que davam para átrios
residenciais mais compridos. Segundo o mapa de Bastian, os seus aposentos
ficavam bem lá no topo, ao cimo de pelo menos dez lanços de escadas.
Enquanto os corredores de acesso aos aposentos de Gabe e Lore eram
mantidos num ambiente escuro, ali tudo era luminoso e claro, os corredores
mais largos, iluminados tanto por candeeiros a gás como por luz natural
através de janelas cristalinas. Havia tapeçarias vibrantes penduradas junto a
pinturas a óleo em cores brilhantes – nitidamente feitas com mais cuidado
do que as puídas que existiam no torreão dela. Lore deu por si a não se
incomodar tanto quanto contara por ter de subir até ao cimo; era quase
como estar num museu.
Algures no terceiro patamar, o pé de Lore prendeu-se na sua saia violeta,
forçando-a a cambalear antes de voltar a equilibrar-se.
– Merda para a Muralha da Cidadela – silvou.
Mas a quase queda revelou-se afortunada, porque a levou a desviar os
olhos do mapa de Bastian e a ver a figura no átrio antes de ser vista.
Foi fácil reconhecer Severin Bellegarde. O seu cabelo negro reluzia,
perfeitamente penteado, as vestes em cores discretas elegantemente
adequadas ao seu corpo magro e alto. Ele percorria o corredor na direção
oposta das escadas com as mãos atrás das costas, como se as tapeçarias por
que passava fossem prisoneiros alinhados para uma inspeção. Em todas elas
parou para as observar com olhos semicerrados, examinando como se
estivesse a ler a tecedura antes de seguir em frente. Uma das mãos atrás das
costas segurava um pequeno papel dobrado.
Segurava um semelhante na noite em que ela e Gabe se tinham deparado
com ele nas escadas, recordou Lore. Quando corriam para as câmaras
mortuárias.
Mas ela não tinha tempo para tentar perceber o que seria. Lore
endireitou-se e voltou-se para o conjunto seguinte de degraus, na esperança
de que Bellegarde não desse por ela.
– Eldelore Remaut.
Não teve sorte.
Lore pôs um semblante despreocupado e aprazível e virou-se para se
baixar numa vénia desajeitada e retribuir a saudação dele.
– Severin Bellegarde.
O homem parara diante de uma tapeçaria junto às escadas;
aparentemente, mudara de direção enquanto ela estava de costas. Com um
vinco entre as sobrancelhas, ele não falou. Mas recuou, um pouco, a
tapeçaria a agitar-se quando o ombro dele roçou nela. Fitava-a com uma
expressão que Lore não percebia se seria de repreensão ou de reflexão.
Ela estava já a postos para se virar e afastar, escusando-se se ele não o
fizesse, quando Severin por fim falou:
– A senhora e o Gabriel vão marcar presença no baile do eclipse solar?
Ela franziu a testa. Bellegarde não parecia ser do tipo de se preocupar
com os programas sociais dos outros.
– Presumo que sim – respondeu ela, debatendo-se para controlar um
arrepio involuntário. O baile no dia do seu vigésimo quarto aniversário. O
dia em que seria Consagrada, se tivesse sido criada por gente que
acreditasse em tais coisas.
O arrepio involuntário tornou-se um nó involuntário na sua garganta.
Ainda magoava pensar em Val e Mari.
Os olhos verdes cravaram-na no seu lugar.
– É uma grande honra ser-se eleito.
A palavra levou-a a pensar no Compêndio, em tudo o que ela, Malcolm e
Gabe – e agora Bastian – estudaram na biblioteca da Igreja. A prudência fez
com que endireitasse as costas.
– Sim. Parece que apenas uns poucos foram convidados para o jantar
após o baile, certo? Eu e o Gabe planeamos fazer os possíveis por
marcarmos presença.
– Planeiam fazer os possíveis? – Uma sobrancelha negra ergueu-se. – O
que poderia haver de mais importante do que participar num evento para o
qual o próprio Rei Santo vos convida, numa ocasião espiritualmente tão
auspiciosa? Os eclipses totais são raros, em especial de dia. São fenómenos
de grande significado.
Lore tentou sorrir, mas percebeu que lhe saiu mais como um esgar.
– Nada será mais importante, naturalmente – murmurou, com um pavor
opressivo e vago a começar a desenvolver-se nas suas entranhas. – Lá
estaremos.
– Ótimo. – Bellegarde assentiu solenemente. – Estou certo de que será
um período de grande reflexão para todos nós. O que é algo de que
necessitaremos, com Kirythea a avançar. Com o número de mortes nas
nossas aldeias nas fronteiras a aumentar.
O sorriso falso e agradável de Lore esmoreceu.
– Como assim?
– Não soube? – O rosto do homem era uma máscara, tão inescrutável
como um entalhe alisado. – Esta tarde foi atacada outra aldeia. Há umas
horas.
Outra aldeia.
Ela fracassara em descobrir o que se passava e, enquanto desperdiçava
tempo a dar voltas sobre si mesma, toda uma aldeia morrera.
– Como é que o descobriram tão depressa? – A sua voz parecia proferida
por outro corpo.
Um músculo saltou na bochecha de Bellegarde, como se ele tivesse dito
algo que não devia.
– A Igreja e a Coroa têm informadores por toda a Auverraine – disse ele,
sem que isso fosse efetivamente uma resposta.
Lore tinha vontade de se deixar cair, os seus olhos a dar com o chão
antes de se desfocarem. Pensou no rapazinho nas criptas, encaixado entre as
mãos sangrantes grená de Apollius.
– Que horror – sussurrou ela.
– Uma tragédia, sem dúvida. – Bellegarde observou-a com atenção,
embora a sua expressão ainda nada revelasse. – E mais uma razão para nos
juntarmos no eclipse. Um tempo para novos começos.
Ela sentiu-se demasiado entorpecida para assentir.
– Severin?
August, a percorrer o átrio na direção deles. O rei apresentava-se de uma
forma notavelmente vulgar, com o seu cabelo grisalho e a roupa vermelho-
escura, apenas com o diadema de ouro sobre a testa a indicar o seu estatuto.
Ele posicionou-se graciosamente entre Lore e Bellegarde, mas de uma
forma que tinha obviamente o intuito de interromper a conversa e, apesar de
o seu sorriso ser radioso, não disfarçava o cansaço no olhar.
– E o que discutiam tão ardentemente?
– O evento do eclipse. – A voz de Bellegarde era fria. – Estava a
assegurar-me de que a Eldelore e o Gabriel comparecerão.
Se a estranha fixação do homem na agenda social de Lore espantava o
rei, ele não deu sinais disso. Pelo contrário, pareceu quase aliviado.
– Excelente notícia. Ficaremos encantados por tê-los.
Ela conseguiu assentir.
– Será por certo um momento esplêndido – frisou August –, e o Gabriel
sem dúvida apreciará um eclipse livre dos afazeres da Igreja. Os Presque
Mort por norma passam os eclipses a rezar, mas, para este, o meu irmão
abriu uma exceção. – Deu uma palmada no ombro de Bellegarde, uma
dispensa concisa. – Vamos lá, Severin. Deixemos a senhora entregue às
suas responsabilidades sociais. Está vestida para uma festa.
Bellegarde contraiu a cara, mas assentiu. A seguir, os dois olharam para
Lore.
Ela levou um momento a perceber que contavam que se afastasse
primeiro. Com mais uma vénia desajeitada, ela assim fez. Antes mesmo de
a curva das escadas os tapar da vista, ela espreitou de novo para Bellegarde
e August. Desciam os degraus juntos, falando baixinho. Ela reparou que
Bellegarde seguia de mãos vazias, sem o papel que até então segurava.
Lore agachou-se no patamar acima, escondida.
– Está tudo a encaixar como deve ser – murmurou Bellegarde. – O
próximo grupo está pronto para ser processado esta noite.
– E as amarras? – August soava impaciente.
– Parecem estar a funcionar bem.
– Mas não saberemos até eu experimentar.
Uma fração de segundo.
– Correto, Vossa Majestade – disse Bellegarde.
A seguir, o silêncio, com a exceção das botas a pisar as escadas
alcatifadas.
Quando deixou de ouvir os passos, Lore contou até cinquenta. A seguir,
movendo-se o mais silenciosamente possível, levantou-se e desceu as
escadas.
O átrio estava vazio. Lore não desperdiçou o momento. Correu
diretamente para a tapeçaria diante da qual Bellegarde parara, aquela logo
antes das escadas.
Não parecia diferente das outras que delimitavam o sumptuoso corredor.
Uma linha branca realçava um unicórnio apoiado nas patas traseiras, de
cascos a retalhar o ar, rodeado por cavaleiros com capacetes prateados e
flores silvestres pintalgadas em pasteis primaveris. Lore franziu os olhos,
traçando o padrão da linha até desfocar a vista.
Ele procurara algo nas tapeçarias. Lore estava familiarizada com o modo
como as pessoas agiam quando não queriam mostrar um ar suspeito; a
passada exageradamente casual, os movimentos rápidos dos olhos. Severin
Bellegarde preenchera todos os requisitos.
E havia aquele papel na mão dele. Um papel que desparecera quando ele
partira com August, tendo sido descartado ou enfiado num bolso. Talvez ele
procurasse um esconderijo, um sítio onde o pôr?
Com uma espreitadela rápida de um lado ao outro do átrio para garantir
que ainda permanecia sozinha, Lore enfiou a mão atrás da tapeçaria, entre o
tecido e a parede. Nada além de madeira lisa, de início, mas, assim que
passou com os dedos sobre o reverso da tapeçaria, estes prenderam-se em
algo afiado.
Um alfinete, segurando um pedaço de papel. Ela apostaria que se tratava
do mesmo que vira na mão de Bellegarde.
Lore só se picou uma vez ao puxar cuidadosamente o papel da ponta
afiada do alfinete, deixando lá o polegar para o colocar exatamente onde o
encontrara. Manter a mão sob o tecido pesado exigia agachar-se de forma
estranha junto à parede, pelo que desembrulhou o bilhete para o ler o mais
depressa que pudesse.
Mas o bilhete não tinha palavras. Apenas um número.
75.
Ela franziu a testa por uns instantes antes de apressadamente voltar a
enfiar o bilhete atrás da tapeçaria, picando de novo o dedo e praguejando
entre dentes. Estava irremediavelmente atrasada e havia aparentemente
escadarias infinitas entre si e os aposentos de Bastian.
Depois de se assegurar de que o bilhete não apresentava sinais de ter
sido mexido, Lore regressou às escadas, esforçando-se ao máximo por não
correr. Começava a formar-se uma bolha no arco do pé, acirrada pelos seus
sapatos finos, e isso causava-lhe um certo desconforto que a impedia de se
concentrar enquanto pensava no que descobrira.
75.
Setenta e cinco quê? Talvez não fosse sequer relativo a nada importante.
Talvez Bellegarde estivesse a catalogar as tapeçarias – ela não sabia quantas
havia no corredor, mas setenta e cinco não lhe parecia desmesurado. Talvez
ele quisesse garantir que o torreão onde vivia durante a temporada tinha
mais tapeçarias do que qualquer um dos outros. Parecia ser algo que um
cortesão da Cidadela faria.
Mas não acreditava nisso. Bellegarde comportara-se de forma estranha
quando a encontrara. Permanecera diante da tapeçaria como se tentasse
escondê-la e, contrariamente ao pretendido, acabara por lhe chamar a
atenção.
Lore enfiou o dedo na boca, chupando a pequena pinga de sangue criada
pelo alfinete. Esperava que o bilhete tivesse algum significado, de contrário
ter-se-ia empalado para nada a não ser para descobrir quantas tapeçarias
espalhafatosas August pendurava num corredor.
Uma mente tática para a posteridade, chamara Gabe a Lore. Pelos
deuses mortos e moribundos.
As indicações de Bastian levaram-na a subir as escadas, até chegar ao
fim das mesmas num corredor mais largo do que qualquer um dos
anteriores por onde passara. Espreitou para o mapa tosco, para as palavras
escritas com uma letra surpreendentemente graciosa por baixo da cara a
piscar o olho mal desenhada. Entre as palmeiras.
O ponto de referência era desnecessário. Havia apenas uma porta ao
fundo de um comprido e amplo corredor, pintado a branco com um padrão
espiralado de sóis dourados, ladeado por duas palmeiras frondosas. Sons de
risos ecoavam vindos do interior.
– Vamos a isso. – Lore percorreu o corredor, levantando a mão para bater
à porta.
Uma criada abriu a porta antes de ela bater e, crédito lhe seja dado, não
olhou Lore de alto a baixo como ela sem dúvida merecia, ofegante e a
coxear devido à bolha cada vez maior. Em vez disso, limitou-se a inclinar a
cabeça, afastando-se para a deixar entrar na sala mais bonita que alguma
vez vira.
A sua simplicidade era de cortar a respiração. As paredes eram de um
mármore claro, com arabescos dourados, sem quadros pendurados para
exibir a sua beleza simples. O chão era composto por azulejos em cores
enrubescidas e ténues, transformando todo o espaço num redemoinho
desorientador de volutas e arabescos, como se se estivesse numa nuvem. No
centro da sala, uma fonte de pedra projetava jatos de água para o teto de
vidro abobadado, perturbadoramente parecido com o que cobria as câmaras
mortuárias, e as janelas em arco nas paredes estavam paticamente
bloqueadas por uma profusão de plantas verdes. Para lá do foyer amplo,
uma escadaria dava para o que, assumiu Lore, seriam mais divisões, uma
mansão de pleno direito situada no topo da Cidadela.
Poderia ter ficado ali pasmada por horas, se Alienor não a tivesse
chamado.
– Lore! – Alie, com um sorriso amplo e vestida de amarelo-claro, o que
fazia brilhar a sua pele acobreada, aproximou-se dela e agarrou-a pelo
braço. – Ainda bem que pudeste vir! – Com uma mão abarcou a divisão. –
Não é lindo? O Bastian costuma ter isto num caos, mas parece que os
aposentos dele foram limpos antes dos nossos.
– É maravilhoso! – Era fácil imaginar Bastian ali, sob o brilho da luz que
entrava pelas janelas transparentes, cercado por plantas viçosas saudáveis.
Alie também parecia estar em casa. Ambos tinham em si algo de cintilante
que os encaixava na luz e no ar, com um luxo simples.
Lore questionou-se até que ponto pareceria ali deslocada.
– Estupidamente bonito, tal como o próprio homem. – Alie arqueou uma
sobrancelha clara. – Pelo menos, levou os pavões para o jardim durante a
tarde. Detesto aquelas coisas. Fazem tanto barulho que não percebo como é
que ele dorme.
– Penso que ele não dormirá aqui muito – disse uma nova voz. Num
recanto rodeado por paredes de vidro reluzente e cheio de fetos esmeralda,
uma mulher de cabelo preto azeviche e olhos a combinar bebericou de uma
delicada chávena de chá, com o seu brilho pálido a complementar a sua pele
castanho-dourada. – É só festas e farra.
– A dada altura tem de dormir – disse a cortesã junto dela. O seu cabelo
era dourado, completamente liso e solto a enquadrar o seu rosto pálido e
lábios carnudos. – O Lucien disse-me que a cama dele é praticamente do
tamanho desta sala.
– O Lucien há de saber. – A outra mulher sorriu com malícia e ergueu a
sua chávena em saudação.
– Por favor, falemos de tudo menos das conquistas do Bastian – disse
Alie, puxando Lore para junto das outras. – Parece-me má educação, tendo
em conta que estamos nos aposentos dele. É como discutir a qualidade da
carne na cara do talhante.
– O Lucien também saberia da qualidade da carne – disse a de cabelo
escuro, gerando um repique de gargalhadas, em que até Alie alinhou,
fingindo dar-lhe uma palmada. Ela pousou a chávena de chá para agarrar a
mão de Alie e dar-lhe um beijo exagerado.
Lore conseguiu sorrir, embora os nervos fossem como um nó à volta do
seu pescoço. Aquelas mulheres comportavam-se como velhas amigas, como
pessoas que tinham crescido juntas, tal como as velhas árvores cresciam em
redor de postes de vedações. Os seus risos pareciam amáveis e os olhares de
curiosidade que as outras duas lhe votavam não tinham nada de maliciosos.
Mas tais grupos eram pouco moldáveis para aceitarem gente nova.
Não cheirava a beladona no chá. Isso, pelo menos, já era bom.
Porcelana delicada ia ao encontro de lábios delicados, pastéis delicados
eram pegados por mãos delicadas. Lore sentia-se como um cavalo deixado
à solta numa joalharia.
– Amigos – disse Alie, mantendo o aperto firme no braço de Lore, como
se lhe pressentisse a vontade de fugir –, esta é a Eldelore Remaut, prima do
Gabriel. Se bem que ache que vocês já sabem.
– É um prazer finalmente conhecer-te, Eldelore. Sou a Danielle. – A
cortesã de cabelo dourado sorria amplamente. O seu vestido era de um
verde-claro e apresentava um corte parecido com o de Lore, embora as fitas
que saíam das mangas de Danielle estivessem enroladas em redor da parte
de cima dos braços e atadas em laços.
Então, era assim que era suposto usá-las. Não soltas e a dar-lhe a
sensação de ter aranhas a trepar-lhe pelos braços. Lore sentiu uma tremenda
urgência em dar um jeito às suas fitas, mas imobilizou as mãos e assentiu
antes com a cabeça, retribuindo o sorriso de Danielle.
– Brigitte – apresentou-se a mulher de cabelo escuro que beijara a mão a
Alie. O vestido dela era diferente, cor de pêssego com mangas justas que
iam até ao cotovelo e terminavam numa dobra de renda. Lore reconheceu-a
vagamente do baile de máscaras da primeira noite. Estava vestida de sereia,
com o cabelo pintado num verde reluzente. O cabelo ainda mantinha um ar
de sereia, metade do qual enrolado numa coroa negra em redor da cabeça, o
resto caído em tranças compridas ao longo das costas.
– É maravilhoso conhecer-vos – disse Lore, sentando-se num das outras
cadeiras à volta da mesa de ferro forjado. – Obrigada por me deixarem
invadir a vossa festa.
– Não é invasão nenhuma. – Brigitte retirou um macaron de uma pilha
pousada no centro da mesa. – Estamos entusiasmadas por finalmente termos
a possibilidade de te conhecer. Desde há um mês que não se fala de outra
coisa na Cidadela, a não ser de ti e do Gabriel.
O formigueiro de nervos deslocou-se da nuca e desceu-lhe pela coluna.
Lore forçou-se a sorrir.
– Bem – disse ela, e não soube como prosseguir, pelo que não o fez.
– A Bri e a Dani são as minhas melhores amigas – disse Alie, finalmente
sentando-se e puxando uma travessa de pastéis. – Somos chegadas desde
que começamos a aprender a ler. Eu e a Bri tivemos aulas de piano juntas e
o pai da Dani é sócio de Lorde Bellegarde. – Ninguém estranhou que Alie
se referisse ao pai pelo seu título.
Dani remexeu-se no seu assento. Lore pensou se o relacionamento dela
com o pai seria aparentemente tão distante como o de Alie com o seu.
– Não quis assoberbar-te com uma grande festa – prosseguiu Alie,
escolhendo algo coberto por açúcar em pó e cravando-lhe um garfo
minúsculo. – Embora tendo em conta que uma das festas do Bastian foi o
teu primeiro compromisso social, depois disso tudo parecerá discreto.
Lore riu-se educadamente, e combateu a sua ansiedade enfiando
consecutivamente pastéis na boca.
– Foi sem dúvida revelador.
O sorriso de Danielle era genuíno, mas declaradamente curioso.
– Mal te temos visto desde a tua entrada em grande no baile de máscaras
do Bastian, com exceção da tua apresentação nas orações do Primeiro Dia.
– O tom dela era ainda mais amistoso, mas algo intenso brilhava nos seus
olhos. Curiosidade e nem uma pitada de cautela.
– Estive doente – esclareceu Lore, procurando uma forma de explicar a
sua longa ausência que não passasse por Canalizei demasiada Mortem e
depois procurei provas de traição na Biblioteca da Igreja. Num lampejo de
inspiração, apontou para o abdómen. – Dores de barriga.
– Ah. – Brigitte anuiu em reconhecimento. Empurrou uma chávena de
chá sobre a mesa; cheirava de forma tão pura e delicada como tudo naquela
sala. – Isso deve ajudar. Também sinto dores terríveis quando me acontece,
tal como o meu irmão. É horrível.
A compaixão no tom de voz dela quase levou Lore a arrepender-se de
lhes ter mentido. Bem, apenas tecnicamente – podia não estar a sangrar
naquele momento, mas, quando isso acontecia, era como se alguém a
pontapeasse insistentemente na barriga. Bebericou do chá que lhe
ofereceram. Era surpreendentemente saboroso.
– Devo recuperar por completo daqui a uns dias. A seguir, espero poder
dar vazão à minha pilha de convites. E começar os treinos de croquet que
prometi à Alie.
– Tenho a certeza de que foste convidada para tudo. Não é frequente
aparecer alguém novo. – Danielle pegou num chocolate e enfiou-o na boca,
falando com a boca cheia de caramelo. – A maioria de nós começou a vir
para a Cidadela nos verões, em criança; conhecemo-nos há imenso tempo.
– Foi o que ouvi dizer. – Lore procurou informações na sua mente,
recordando a história que ela e Gabriel tinham inventado. Uma casa no
campo em… merda, Gabriel indicara-lhe um nome para utilizar e ela
esquecera-o por completo… uma doença infantil que a tinha mantido
confinada…
Mas as perguntas, quando surgiram, não eram sobre ela.
– Então – disse Danielle, debruçando-se para a frente, o seu olhar
saltitando maliciosamente entre Lore e Alie. – O que é que trouxe
efetivamente o Gabriel de volta à corte? Veio mesmo só para te
acompanhar?
Lore quase se engasgou com o chá. Aquele brilho estranho não
abandonara os olhos de Danielle, quase como se estivesse a testá-la.
– Dani. – A voz de Alienor soou a algo entre riso e um grito, com o tipo
de tensão nervosa que surge quando se deseja que uma conversa se
desenvolve ao mesmo tempo que tal não aconteça. – Não temos de falar do
Gabriel. Não há necessidade de desenterrar o passado. – Apesar de o rubor
de Alie ser da cor da compota de cereja do pastel de Lore, havia ainda uma
luz de esperança no seu olhar. Lore reconheceu-a. Uma tocha acesa havia
muito. E isso levou-a a pensar no peito despido de Gabe e em como o
sentira quente nas suas costas uma semana antes e, Deus Sangrante, não
podia haver uma só coisa que fosse que se revelasse simples?
– Pobre Bastian. – Brigitte abanou a cabeça, com uma expressão solene,
embora as suas palavras fossem provocativas. – Deu-se a este trabalho,
deixou a Alie usar a sua suite e tudo, só para ela perguntar pelo Gabriel.
– Tu sabes bem que não há nada disso com o Bastian – vincou Alie. –
Ele é como um irmão.
– Uma pena, sinceramente – reagiu Brigitte. – Quer dizer, não acho que
ser uma rainha Arceneaux seja muito interessante, mas ele é
irracionalmente atraente.
– Sim, irracionalmente atraente – disse Dani –, mas daria um péssimo
marido, se procuras lealdade. O Bastian leva três vezes por semana alguém
novo para aquela cama.
– Isso parece-me divertido – comentou Brigitte, com um sorriso
travesso. – Só o papel de rainha é que não me agrada. – Pegou noutro
macaron. – Mas não contem ao meu pai que eu disse isto. Ele ainda não
perdeu a esperança de nos tornar noivos antes do fim da estação.
O rosto de Lore ficou quase da cor do de Alienor.
– Céus, noivados. – Dani massajou a têmpora, como se lhe desse dores
de cabeça pensar sequer no assunto. – Nem quero pensar nisso.
Havia genuíno cansaço na voz de Dani. Alie e Brigitte entreolharam-se
fugazmente, compreensivas.
– A tua família já se habituou à ideia, Dani? – perguntou, hesitante, Alie.
– Tu e o Luc juntos?
– É claro que não. – Dani recostou-se com um suspiro, cruzando os
braços e olhando para o seu chá. Os seus olhos incidiram em Lore, e
desviaram-se. – Ele é plebeu. Não interessa que seja filho de um
conceituado construtor naval, só lhes importa a linhagem.
– E o Hugo não se pôs do teu lado?
– Não – respondeu pesarosamente Dani. – Fiz o que falámos… Fiz o
Hugo levar-me numa noite em que o Luc lutava, fingimos que não nos
conhecíamos. O Luc ganhou o desafio, claro, e o Hugo ganhou montes de
dinheiro na aposta… o Luc também. Mas, quando referi que poderia querer
casar com um plebeu abastado… não correu bem. – Contorceu a boca. –
Nas palavras do meu querido irmão, seria como deitar dinheiro ao mar.
Lore permaneceu calada. Pensou se Luc seria alguém que reconheceria
se o visse.
– Mas já estamos a pensar num novo plano – disse calmamente Dani,
esperançosa. – Eu e o Luc. A Amelia é a mais velha, é a filha que
necessitará de casar por uma questão de estatuto.
– Talvez ela tenha uma hipótese com o Bastian – disse Brigitte.
Dani revirou os olhos.
– Já pareces ela. Está convencida de que daria uma excelente rainha, mas
os meus pais estão a jogar pelo seguro. Estão presentemente em
negociações com o Visconde Demonde. A Amelia não se sente nada
entusiasmada.
– Céus, aposto que não. – Bri fez uma careta. – Se eu estivesse de olho
no Bastian Arceneaux e acabasse com o velho Demonde, ia passar-me da
cabeça.
O sorriso de Lore estava bastante tremido.
– Ele é velho, mas a linhagem Demonde também. E é rico como tudo e
muito mais fácil de assegurar do que um herdeiro Arceneaux. Se a Amelia
arranjar um noivo de prestígio, então o meu casamento pode ser só por
dinheiro. – Dani encolheu os ombros. – O Luc é herdeiro de uma fortuna
modesta e, além disso, está a ganhar dinheiro por si.
Uma vez mais, um desviar de olhos para Lore, tão rápido que poderia ser
fruto da imaginação.
– Também constrói navios? – quis saber Alie.
– Não propriamente – respondeu. – Aparentemente, há uma companhia
nova a contratar homens nas docas para fazer trabalho de transporte. Levar
carga de um lugar para outro, coisas assim. Pagam estupidamente bem e por
norma é apenas uma noite ou duas de trabalho. – Pensativa, bebeu um gole
de chá. – Calculo que não seja lá muito legal, mas se pagam tão bem aos
transportadores de carga, o orçamento para subornos deve ser bom. Se bem
que ninguém se atreveria a prender o Luc, sabendo de quem ele é filho.
Depois de Cecelia lhe ter revelado onde os cortesãos iam buscar o seu
veneno e como eram frágeis as regras para quem tinha dinheiro, Lore não
tinha dúvidas de que aquilo fosse verdade.
– Qual é a carga?
– Não sei – respondeu Dani –, nem quero saber… é imenso dinheiro, o
suficiente para o Luc comprar uma moradia urbana numa das alas mais
simpáticas e pagar o meu dote antes sequer de o pai morrer e lhe deixar o
negócio.
Lore sentiu algo a repuxar-lhe as entranhas, algo que não lhe caía bem.
Como se aquela conversa fosse de alguma maneira a continuação da que
tivera ao longo de toda a semana na biblioteca da Igreja.
– Bem, mas já chega dessa conversa. – Danielle acenou com a mão,
pondo fim à conversa sobre noivados. – Penso que estávamos a discutir o
atraente Duque Remaut e a sua presença na corte, certo?
– Pelos ferimentos de Apollius – murmurou Alie, enterrando o rosto nas
mãos.
Lore bebeu mais um gole do seu chá, demasiado depressa, queimando o
céu da boca. Brigitte e Danielle cravaram os olhares nela – nitidamente,
contavam que fosse ela a falar agora.
– Ele só veio mesmo para me acompanhar – revelou por fim. – Os meus
pais queriam que um familiar me ajudasse na estação e o Gabriel era a
única opção. Ele não ficou nada contente.
Alie deixou escapar um som discreto por trás das mãos.
– Quer dizer – corrigiu Lore de pronto –, houve partes que o deixaram
contente. – Virou-se para Alie. – Sei que ficou entusiasmado por voltar a
ver-te.
Tecnicamente, aquilo era mentira – Gabe não lhe dissera tal coisa–, mas
não o parecia.
– A sério? – Alie baixou as mãos com um suspiro. – Porque acho que
estraguei tudo. Foi um choque tal, voltar a vê-lo. Vê-lo tão… crescido.
Tronco nu à luz da lareira, a sombra de uma pala de olho obscurecida
pelo azul brilhante a fitá-la. Crescido, sem dúvida.
As recordações mais recentes eram menos agradáveis. O maxilar cerrado
ao ler outro livro aparentemente inútil. O modo como se ele se fechara nos
últimos dias, sempre preocupado com algo que não lhe contava.
– Ele também ficou assoberbado – disse Lore. – Tem sido… complicado
para ele, parece-me.
– Provavelmente, mais complicado do que seria para qualquer outra
pessoa. – Dani abanou a cabeça, compreensiva. – De início, houve quem
achasse que ia regressar de vez à corte. Mas parece que se mantém bastante
fiel àqueles votos.
As faces de Alie ficaram mais rosadas.
– Ser Presque Mort é um compromisso para a vida. Assim que se
conquista a capacidade de canalizar Mortem, não dá propriamente para a
devolver.
– Mas ele podia parar, não podia? Parar de canalizar, deixar os Presque
Mort. Sei que, tecnicamente, não o permitem, mas ele é um duque. –
Brigitte olhou entusiasmada para Alienor. – Poderia obter dispensa do
Supremo Sacerdote…
– Não. – Alie abanou a cabeça, firme e determinada. – Não.
E isso bastou para travar as amigas, levando-as a assentir como se a
palavra transportasse um significado maior do que uma sílaba deveria ser
capaz de carregar.
Brigitte bebeu um golinho de chá e fez uma careta.
– Será que o Bastian tem, por aí, vinho guardado?
– É o Bastian, claro que tem. – Danielle levantou-se, e estendeu uma
mão a Brigitte. – Vamos procurar.
– Vasculhar os aposentos do Príncipe Sol pode ser um pouco ousado –
comentou Brigitte, arqueando a sobrancelha.
– Não, se lhe dissermos que foi para a Alie e para a Eldelore. – Danielle
piscou-lhes exageradamente o olho, o que fez Alie revirar os olhos.
– É verdade. – Brigitte aceitou a mão estendida de Danielle. – Branco ou
tinto, senhoras?
– Qualquer coisa, desde que seja gaseificado – respondeu Alie.
Brigitte fez uma profunda vénia e então ela e Dani afastaram-se a rir de
qualquer coisa.
– Peço desculpa – murmurou Alie assim que as duas outras mulheres já
não as podiam ouvir. – Já não sei o que lhes dizer para as convencer de que
não há nada entre mim e o Gabriel.
– Por causa do que o pai dele fez? – Lore não conseguiu fazer uma voz
neutra. Ainda lhe doía no coração ver o modo como toda a gente ali parecia
tão determinada em cravar nas costas do filho os pecados do pai.
Alie abanou a cabeça e depois deu uma sonora gargalhada nada
adequada a uma senhora.
– Bem, em parte, sim – disse ela –, mas sinceramente acho que talvez
isso pudesse ter sido esquecido. O que tornou tudo impossível foi quando se
juntou aos Presque Mort.
Gabe referira algo similar.
– O teu pai, então, sempre desprezou a Igreja? – Lore tentou soar
desinteressada, falando enquanto levava a chávena de porcelana à boca.
Pensou no que Gabe lhe contara quando ela lhe pusera a mesma questão –
laços complicados entre religião e política, a crença de que tudo deveria ser
consolidado num único corpo governativo.
– Acho que o meu pai despreza quase tudo. – Alie pegou num pastel,
arrancou o canto e pousou as duas partes sem comer nenhuma.
– Parece que as crenças dele causaram tensão no vosso relacionamento –
comentou Lore. – Entre ti e o teu pai, quero eu dizer.
– Que relacionamento? – questionou Alie sombriamente. Desfez o pastel
que tinha no prato em pedaços mais pequenos, ainda por comer. –
Sinceramente, não fazemos muito em casa além de nos cruzarmos nos
corredores e praticamente nem isso na corte. A minha mãe morreu há muito
e sou filha única.
– Parece ser muito solitário. – Lore sabia bem o que era a solidão.
Abarcava tudo o que fazia, uma teia de aranha invisível da qual não
conseguia livrar-se. Colava-se.
– Sim – murmurou Alie. – É mesmo.
– Já não sobram pastéis?
A voz soou profunda, familiar. Lore rodou e deu com o sorriso
descontraído de Bastian. Ele apoiou os mãos nas costas da cadeira dela,
debruçando-se sobre ela e cobrindo-lhe a chávena de chá com a sua sombra.
A tensão que retesava os ombros dela dissipou-se um pouco. A
devolução do livro ao escritório do pai devia ter corrido bem. Em parte
ficara preocupada com a possibilidade de ele ser apanhado pelo pai, e o que
isso desencadearia neles.
Bastian piscou rapidamente o olho, para a descansar, como se lhe
adivinhasse os pensamentos.
– Há mais de onde vieram estes – ele disse a Alie, sem desviar os olhos
de Lore. – Se as minhas doçuras não comeram doçuras suficientes.
Alie resmoneou.
– Por favor, deixa-te de trocadilhos.
– Dá-me um momento, não me metas em sarilhos.
– Eu preferia morrer. – Alie sorriu, os seus olhos verde-escuros a cintilar.
– Além disso, acho que já nos mimaste o suficiente.
– Nunca. – Ele rodou uma das cadeiras vazias e sentou-se ao contrário,
apoiando o queixo e os braços cruzados e espreitando para Alie através da
franja do cabelo com uma adoração fingida. – Há algo que possa arranjar-te
para provar o meu afeto inabalável, Alienor Bellegarde? Gostarias de
chocolates em forma de cisne para a próxima? Criados de tronco nu para te
darem uvas a comer à boca?
Alie ergueu ironicamente a sobrancelha.
– Calculo que serias tu o criado de tronco nu?
– Naturalmente. – Olhos maliciosos deslizaram na direção de Lore, um
movimento quase impercetível. – Mas se calhar também conseguia cá trazer
o Remaut.
O sorriso alegre dela esmoreceu ligeiramente, com um tom rosa a
manchar-lhe as faces.
– Na verdade – disse ela –, a Bri e a Dani foram agora vasculhar os teus
aposentos em busca de vinho.
– Não me ocorre um único recanto onde não tenha escondido algum,
mas se queres ter a certeza de que o encontram, diz-lhes para espreitarem
para trás do espelho junto à cama no piso de cima.
– É claro que só podia estar aí. – Alie levantou-se, brandindo o dedo para
Bastian e Lore. – Comportem-se.
– Oh, nunca – reagiu Bastian. Ficou a olhar até Alie desaparecer da
vista. A seguir, virou-se para Lore, toda a animação desaparecida.
– Voltou a acontecer.
A aldeia. Lore assentiu com a cabeça.
– Já sei. Cruzei-me com o Bellegarde a caminho daqui.
Ele fez uma careta.
– Os meus pêsames.
– Ele parecia andar à procura de algo – disse Lore. – Ou à procura de um
sítio para esconder algo… tinha um papel na mão. Quando partiu, espreitei
atrás de uma tapeçaria e dei lá com o papel, preso por um alfinete. Mas
dizia apenas setenta e cinco, por isso não sei seria um bilhete ou outra
coisa.
Bastian empalideceu.
– Só pode ser um bilhete.
– Porquê?
– Porque é o número de pessoas que morreu na última aldeia – disse
Bastian. – Exatamente setenta e cinco.

[2] Retirado do Compêndio depois de Margot D’Laney, Segunda Sacerdotisa da Noite da Guarda
Sepultada, tentar abrir o túmulo de Nyxara em 200 DQD.
Capítulo 29

É preciso mais do que uma nuvem para formar uma


tempestade.
– Provérbio kirytheano

–I sso… – Lore rodou a cabeça, tentando interiorizar a informação. – Se


era a quantidade de mortos…
– Significa que o Bellegarde está envolvido – terminou Bastian, num
tom grave e sombrio.
– O August também apareceu no corredor. – A mente de Lore rodopiava
num milhar de direções, pegando em pedaços e preenchendo os espaços
onde encaixavam. – Ele não olhou para a tapeçaria onde o Bellegarde
escondeu o bilhete, mas iam a conversar quando os deixei. Algo sobre
grupos a serem processados, sobre amarras…
A voz animada de Danielle interrompeu-a.
– Bastian! Encontrámos o vinho. Não é gaseificado, mas acho que dá
para o gasto.
– Bem, não sabia que queriam gaseificado. – O Príncipe Sol passou de
sério a jovial num abrir e fechar de olhos. Até a postura se alterou, a tensão
rígida a suavizar para algo mais ocioso ao refastelar-se na sua ainda
invertida cadeira. – Está num dos quartos de hóspedes do segundo piso.
– Isto serve. – Dani agitou a garrafa, formando-se um leve vinco a meio
da testa ao olhar para Lore. – Sentes-te bem, Lore? Pareces pálida.
– É só a barriga – disse ela, pegando no seu chá já frio para beber um
longo gole.
– Vou mandar disso para os teus aposentos – disse Brigitte, indicando
com a cabeça a chávena de chá enquanto embrulhava a rolha na saia para a
puxar e abrir a garrafa de vinho. Saiu com um estampido e Alie aplaudiu
discretamente. Brigitte fez uma vénia e serviu vinho nas chávenas agora
vazias. – É a única coisa que me acaba com as dores.
– Obrigada – murmurou Lore. Sentia-se mal por mentir a Brigitte. Era
sempre horrível retribuir amabilidade com desonestidade.
Bastian levantou-se para que as quatro mulheres pudessem ficar com as
cadeiras.
– Eu encosto-me, encantadoramente, antes à parede e, se alguma de
vocês subitamente se sentir inspirada a pintar-me, nem sequer cobro taxa de
modelo – disse ele, enquanto Alie e as outras bebericavam vinho e
conversavam descontraidamente.
Lore sorveu o seu vinho e pensou como, na miríade de infernos, ia
descobrir onde August, Anton e também Bellegarde tinham escondido mais
setenta e cinco cadáveres.
– Espero voltar a ver o Luc para a semana – disse Danielle. O seu olhar
desviou-se da sua chávena para Lore. – Foi numa viagem de negócios com
o pai, por uns dias.
Luc. As docas. Lore franziu a testa, juntando umas peças.
– Disseste que andava alguém a contratar gente nas docas para
transportar carga?
Pela segunda vez, olhares curiosos voltaram-se para Lore, sem saberem
ao certo o que pensar da sua pergunta. Ela obrigou-se a sorrir, na esperança
de que achassem que a singularidade dela se devia a inaptidão social devido
ao isolamento rural.
– Eu… ah… tenho um certo interesse em transportes – gaguejou. – A…
a mecânica dos mesmos. O que andam a transportar? E como?
Muito bem, Lore. Não só acham que és socialmente inapta, como
também acham que tens os interesses mais aborrecidos da história da
humanidade.
Uma expressão inescrutável tomou o rosto de Dani.
– Tal como eu disse, não sei o que andam a transportar. Só sei que
andam a ser muito bem pagos.
– Digo-te, só pode ser veneno. – Brigitte recostou-se na cadeira,
segurando a haste fina do seu cálice de vinho. – Pelo que mais alguém
haveria de pagar uma boa maquia para ser levado de um lado para o outro?
Dani acenou com desdém.
– O Luc diz que é demasiado pesado para serem plantas. São precisos
pelo menos três homens para empurrar as carretas até ao ponto de largada.
Foi o único pormenor que me contou. – Sorriu. – É tudo muito misterioso.
O veneno podia ser bem pesado, em grandes quantidades, mas Lore
achava que Luc provavelmente teria razão – traficantes de veneno eram
muito dados ao secretismo, nada propensos a contratar ajuda avulsa nas
docas.
– Ele disse onde era o ponto de largada?
Atrás de Dani, Bastian encostou-se à parede com uma bota levantada e
os braços cruzados. A sua expressão nada revelava, mas o seu olhar incidia
nela de forma acutilante e calculista. Ele sabia o que ia na cabeça dela.
Dani abanou a cabeça.
– Tiveram de jurar que não revelavam os locais. E, pelos vistos, quem os
obrigou a jurar segredo era suficientemente assustador para ninguém pensar
em enganá-lo.
Lore espreitou para cima para Bastian, pensando se faria mais sentido a
ele do que a ela. Mas o Príncipe Sol mantinha-se inabalável.
– Interessante – concluiu Lore, discretamente. Bebeu mais uma longa
golada de vinho.
As conversas recaíram de novo em assuntos mundanos por mais uns
minutos, até que por fim Brigitte se levantou e se despediu, dizendo que
tinha de ir ter com os pais para jantar. Danielle acompanhou-a, desejando
fazer uma sesta antes de uma festa onde marcaria presença nessa noite.
– Foi um prazer conhecer-te – disse ela a Lore enquanto se levantava. –
Vê se me encontras na montanha de convites… Para a próxima serei a
anfitriã, Bastian, a não ser que queiras passar a receber-nos nos teus
aposentos todas as semanas?
– Ser anfitrião de um grupo de mulheres bonitas não é propriamente
árduo – disse Bastian, beijando a mão estendida de Dani. – Convidem uma
seleção ainda maior de gente bonita para a próxima e estarei
verdadeiramente no paraíso.
Brigitte sorriu e revirou os olhos.
– Eu envio-te o chá – garantiu ela a Lore ao seguir Danielle para o
exterior dos aposentos.
– Também vou andando. – Alie levantou-se da mesa. Sorriu a Lore. –
Obrigada por teres vindo, a sério. Sei que estar na Cidadela pode ser
avassalador, mas é mais fácil com amigos por perto. – Arqueou uma
sobrancelha a Bastian. – É seguro deixá-la ao teu cuidado ou é preciso uma
dama de companhia?
– Provavelmente, comigo é sempre aconselhável uma dama de
companhia, mas nada temas. – Bastian puxou Lore pela mão e depois deu-
lhe o braço. – Vou levar Lady Remaut aos seus aposentos e aposto que o
Presque Mort de estimação dela estará lá, pelo que não nos faltará
companhia.
Alie corou um pouco face à menção a Gabe, mas Bastian não o
comentou. Os três abandonaram os aposentos palacianos do príncipe e
desceram as escadas. Alie apertou a mão a Lore ao virar para o corredor
abaixo de Bastian, aparentemente rumo aos seus próprios aposentos.
Lore aguardou que percorressem mais uns quantos lanços de escadas
antes de falar, mantendo um tom baixo.
– Acho que as pessoas contratadas nas docas estão a transportar os
corpos.
– Obviamente. – Surgiu um cortesão a subir as escadas; Lore retesou-se,
mas não Bastian, cumprimentando-o com um sorriso ocioso e esperando
que desaparecesse da vista antes de voltar a falar. – Assim sendo, temos de
lá voltar. De preferência logo à noite.
– Logo à noite? Mas ainda há duas semanas…
– Apesar de sensibilizado pela tua preocupação, eu fico bem. – Olhou
então para ela e o seu sorriso era tão caloroso que ela quase perdoou o olhar
gélido. – Acho que assustei o suficiente os rufias que deram connosco da
última vez para os manter calados.
– Quem quer que esteja a contratar os estivadores, aparentemente
também os assusta o suficiente para os manter calados. – Ela não tinha de
explicar o paralelo. Quem estava a contratar era alguém com considerável
poder, sendo capaz de intimidar toda uma equipa de carregadores.
Talvez alguém tão poderoso como outro Arceneaux.
Bastian retesou o maxilar, realçando os vestígios de barba escura do
queixo.
– Isso já me tinha ocorrido – murmurou ele.
Esconder os corpos não implicava necessariamente que August tivesse
algo que ver com as mortes. Mas esconder os mortos, a par da insistência
em acusar Kirythea – implicando Bastian e assim abrindo caminho para a
escolha de outro herdeiro –, não formava um quadro bonito.
Em especial agora que sabiam que August se encontrava doente. Que
procurava desesperadamente uma forma de ludibriar a morte, fosse através
de veneno, fosse através da manipulação de Spiritum.
E onde encaixaria Anton nisso? Nitidamente, ele também procurava
maneiras de August poder curar-se com Spiritum. E ele e August tinham
unido esforços para a levar para ali; ambos teriam de estar envolvidos na
movimentação dos corpos. Mas significaria isso que eram cúmplices nas
matanças nas aldeias ou apenas desonestos com o que se passava depois?
De uma maneira ou de outra, não podiam confiar mais em Anton do que
em August.
Embora ela soubesse que Gabe seria de outra opinião.
Bastian manteve-se calado enquanto a levava pelo átrio de entrada, para
lá das portas grandes que davam para o exterior da Cidadela, para os
corredores decrépitos do torreão e para o cimo do torreão onde ficavam os
aposentos que ela partilhava com Gabe. Isso agradou-lhe. Ambos iam
embrenhados nos seus pensamentos e o silêncio era confortável.
Provavelmente, mais do que deveria ser.
– Meia-noite – disse Bastian ao aproximarem-se da porta, batendo sem
demora. – O mesmo lugar da última vez. Veste algo discreto.
A porta abriu-se de repente. Gabe parecia desalinhado, como se tivesse
estado a tentar adormecer. As horas que passavam na biblioteca iam
aumentando de dia para dia e todos eles estavam a precisar de descanso.
– Gabriel! – Bastian sorriu, pondo as mãos nos ombros de Lore para a
empurrar para a frente. – Vemo-nos logo à noite. A Lore põe-te a par.
E partiu, deixando-os a olhar um para o outro.
O silêncio tornou-se demasiado para o susterem por muito mais tempo.
– Sente-se bem? – perguntou Lore, baixinho.
Gabe massajou a pala do olho e virou-lhe as costas. A camisa dele
amarrotara-se durante o sono e ele esforçou-se ao máximo por endireitá-la,
embora estivesse irremediavelmente engelhada.
– Apenas cansado. Tanto quanto me lembro, a última noite em que dormi
bem foi quando acordaste depois da fuga de Mortem.
Assim que aquilo lhe escapou da boca, Gabe estacou e Lore levou algum
tempo a perceber porquê.
Na noite em que ela despertara, fora para ali. Dormira junto a Gabe no
chão. Tão fria e procurando calor, algo a que se agarrar.
Nunca tinham conversado sobre o assunto. Deixaram que se diluísse no
caos de tudo o resto, apagando-o até se afastar dos seus pensamentos. Mas,
agora, Gabe recuperara o tema, expusera-o de novo à luz.
Agora, podiam conversar sobre o assunto. Ou podiam continuar a fingir
que nunca acontecera.
Gabe abriu a boca e ela não conseguiu adivinhar que rumo ele ia tomar.
Que rumo ela desejava que ele tomasse.
Assim, não permitiu que ele falasse.
– Alguém anda a contratar gente nas docas para movimentar carga –
disse ela, passando junto dele na direção do quarto. – Nós vamos lá esta
noite para ver se conseguimos descobrir que tipo de carga se trata e quem
anda a contratar.
– Nós? – Gabe virou-se para ela ao mesmo tempo que fechava a porta. A
tranca fechou com um som claro e definitivo. – Então, o Bastian também
vai.
– Sim, Gabe, o Bastian também vai.
– Não me parece que seja sensato.
– Não vamos voltar a isso. – Lore esfregou os olhos. A escassez de sono
estava a vergá-la, deixando-a com a cabeça pesada e pouca paciência. –
Porque é que o odeia tanto?
Gabe manteve-se tanto tempo em silêncio que Lore achou que ele iria
ignorar por completo a questão. Manteve-se junto à porta, quieto, a cabeça
esticada para observar o fogo esmorecente.
– Eu não o odeio – murmurou por fim.
Passaram-lhe várias respostas tortas pela mente, mas Lore aguentou-se
em silêncio. Sabia que o que quer que se passasse entre o Presque Mort e o
Príncipe Sol não seria algo tão simples quanto ódio. Afundou-se no sofá e
esperou que Gabe apanhasse o fio à meada dos seus próprios pensamentos.
– O Bastian é negligente – disse Gabe. – Sempre foi, desde que éramos
crianças. Negligente com o seu poder. Negligente com a sua autoridade. –
Fez uma pausa, o maxilar a mover-se sob a barba ruiva. – Negligente com
as pessoas.
Aquela derradeira frase continha gelo suficiente para Lore dar com as
próprias mãos unidas, apesar de Gabe continuar a não olhar para ela.
Um minuto, a pairar. Depois, ele suspirou.
– Naquele dia, eu não deveria estar em Balgia. Devia estar aqui.
Naquele dia. O dia em que pai dele entregara o ducado a Jax e ao
Império Kirytheano. O dia em que o pai dele morrera e Jax lhe arrancara
um olho.
– Eu e o Bastian discutimos. Por causa de alguma coisa estúpida… acho
que ele fez batota a jogar cartas. Mas eu irritei-me, como só uma criança de
dez anos é capaz de se irritar. Brigámos e dei-lhe uma valente coça. – Um
sorriso malicioso contorceu-se na sua boca. – Não foi muito pior do que
aquilo que por norma fazíamos um ao outro, mas, por algum motivo, foi a
única vez em que ele fez queixa ao pai. A Ivanna tinha morrido no ano
anterior. Acho que o Bastian já tinha esgotado todas as formas de fazer o
August interessar-se por ele. Foi o último recurso. – Gabe encolheu os
ombros. – Não serviu para prender a atenção do August, mas levou a que eu
fosse banido de volta para Balgia pelo resto da estação, enviado para lá com
todos os funcionários que deveriam ser os meus pais substitutos. Na semana
a seguir a ter chegado, o meu pai rendeu-se ao Jax. – Ergueu a mão e coçou
a pala. – A minha presença não bastou para que mudasse de ideias.
Lore enroscou as mãos na saia.
– Gabe… Eu…
Mas ele interrompeu-a, como se temesse ouvir algo semelhante a pena.
– Não sou assim tão estúpido ao ponto de achar que o que me aconteceu
foi culpa do Bastian. Éramos crianças. Mas admito que sinto inveja. –
Soltou uma gargalhada grosseira. – Sinto inveja por as ações dele
aparentemente nunca terem consequências, enquanto eu carrego com as de
toda uma família. Sinto inveja por saber que seria preciso um milagre para
ele ser deixado sozinho e sem nada, enquanto a mim tudo me foi retirado
num instante.
Ela vira tudo o que ele listara, embora o tivesse classificado de forma
diferente. A negligência de Bastian era artificial, uma fachada erigida para
que ninguém soubesse o quanto ele se importava. Ainda recordava o modo
repentino como mudara naquela noite na viela, como o ar ocioso de altivez
desaparecera como uma capa descartada. Tantas camadas, tão elaboradas,
um desinteresse estudado. Bastian afogava-se nele, mas não a enganou,
apesar de os pontos fracos que ela vislumbrara serem apenas fendas
finíssimas na armadura que forjara ao longo de anos.
Isso fazia-a pensar em si mesma. Tinha sido Lore, Irmã da Noite, depois
Lore, Traficante de Veneno, e agora era Lore, Espia, personagens em que se
enfiara, carapaças diferentes para usar. Quando pensava no que poderia
restar quando todo esse artifício fosse despido, nada lhe ocorria. Como se
todas as coisas que a compunham fossem fachadas de uma casa vazia.
E, apesar de Bastian nunca ter tido de fugir, de ter nascido no seu
invólucro em vez de ter de se renovar em diferentes invólucros
repetidamente, ela achava que ele sentia o mesmo. Que todas as fachadas
dele poderiam esconder um vazio semelhante ao seu.
Ele suportava a raiva de Gabe com o que ela tinha julgado que seria
graciosidade, deixava que a raiva mal contida do outro homem não o
afetasse. Mas talvez não fosse graciosidade. Talvez Bastian guardasse
aquela recordação tão viva como Gabe e talvez achasse que merecia tal
raiva.
Contudo, Lore não sabia como articular aquilo. Pelo menos, de uma
forma que Gabriel pudesse compreender. Enquanto Bastian se debatia com
a sua gaiola, Gabe agarrava-se à sua, desejando que as paredes o
moldassem, enfiando-se dentro dos limites que conhecia. Fizera de si algo
que achava que o mundo desejava e, embora isso o irritasse, mesmo assim
Lore invejava-o, só um bocadinho. Havia um certo conforto em saber
exatamente como nos vão desiludir.
Gabriel erroneamente assumiu o silêncio dela como uma condenação.
– Sei que não é justo da minha parte – disse ele, num tom quase
acusatório, como se não conseguisse desviar o dedo que imaginava que ela
lhe apontara. – Antes, culpava-o. Agora já não o faço, pelo menos da
mesma forma. Mas aquela inveja permanece aqui presente.
– Eu compreendo – disse Lore. E era verdade.
Era tudo. Permanecerem em silêncio, sendo o único som o silvo do fogo
na lareira.
Por fim, Gabe suspirou, coçou a pala e endireitou os ombros.
– Certo – disse, determinado. – Que plano ridículo vamos seguir agora?

Nada de lua, as estrelas débeis e os jardins escuros como breu. Lore


seguia atrás de Gabriel, mantendo-se suficientemente perto das suas costas
para sentir o calor dele através da camisa. Era perturbador, para não dizer
mais.
– Não gosto disto – disse ele, pela terceira vez em três minutos.
Provavelmente, a décima quinta no total. Ele iniciara a litania quando ela
lhe revelara o plano, ali na calmaria de vulnerabilidade depois de falarem de
Bastian, e mantivera-a intermitentemente desde então. Se Lore não tivesse
insistido tanto para que ambos tentassem pelo menos dormir um pouco
antes de a noite cair, seria provavelmente a trigésima vez que ela ouviria tal
lamento.
– Anotado – murmurou ela nas suas costas. – De novo.
Ele bufou, o bafo visível no ar frio.
– Não é seguro. Isto pode não ter nada que ver com as aldeias: podemos
estar a meter-nos injustificadamente num feudo de traficantes de veneno.
– Não sabemos e esta é a única pista com que contamos. – Lore lançou
um olhar fulminante às costas dele. – De novo.
Não uma réplica, mas um resmungo grave. De botas, caminharam
ruidosamente sobre o carreiro de pedra do jardim, enfiaram-se por entre as
árvores da cuidada floresta. Quando abandonaram o bosque, Bastian
encontrava-se sozinho junto à galeria. Vestia roupa escura, tal como eles, e
estava apoiado na pedra a fumar, o cabelo preso atrás e um pé apoiado na
muralha. Arrancou a ponta do cigarro antes de o atirar para a galeria – ainda
não chovera e a relva estava seca; a última coisa de que necessitavam era de
provocar um incêndio – e desencostou-se quando eles se aproximaram,
chamando-os para as sombras. Não falou até se encontrarem protegidos
pelas paredes de pedra e pelo rugido da água.
Bastian distribuiu as mesmas máscaras negras da ocasião anterior,
chapinhando ao longo do escoamento enquanto atava a sua sobre os olhos.
– O plano principal é não dar nas vistas. Estamos aqui para ver. Procurar
alguém a falar com as pessoas, a recrutar. Mas se tudo o mais falhar,
começamos a fazer perguntas, como se quiséssemos ser contratados.
– E os homens que nos viram na outra noite? – interrogou Lore. – Se
revelaram a sua identidade e o virem a comportar-se como se quisesse
transportar a carga misteriosa, quem estiver a contratar vai perceber logo
que foram desmascarados.
– E é por isso que eu não vou fazer perguntas. – Bastian espreitou por
cima do ombro. – Vocês é que vão.
Junto dela, Gabe retesou-se.
– Não posso – gaguejou Lore, falhando o passo até se imobilizar na
corrente rasa. – As pessoas podem conhecer-me…
– O que funciona a nosso favor. – Bastian seguiu em frente, acenando
com uma mão como se os protestos dela não passassem de ruído. – Se
quiserem saber o que te leva a procurar um novo trabalho, podes dizer que
algo correu mal com a equipa para quem traficavas. Passavas a vida a trocar
de trabalho, não era? É assim que um espião espia.
Lore cerrou os lábios e não protestou mais.
Chapinharam até ao fundo do túnel, até à escorregadia plataforma de
pedra saliente na parede e nas traves da galeria, substituídas desde a última
vez que usaram aquela rota. Bastian trepou e desapertou os parafusos,
estendendo depois a mão a Lore.
Ela estendeu os braços para ele e no momento em que os dedos dele os
agarraram, sentiu as mãos de Gabe na cintura. Os dois içaram-na e ser
apanhada entre os dois corpos ruborizou-lhe as maçãs do rosto.
Lore trepou pela galeria aberta para a rua, sem se voltar ao escutar Gabe
e Bastian subirem atrás de si. Bastian resmungou; Gabe fez um som como
se engolisse uma fungadela. Quando surgiram no campo de visão dela,
Bastian sacudia os dedos como se alguém os tivesse pisado.
Percorreram em silêncio a rua quase deserta, o brilho cor de laranja das
luzes do porto e os sons distantes de gritos anunciando que se encontravam
perto do ringue de boxe.
– Olhos bem abertos – disse Bastian, e logo a seguir estavam no meio da
multidão.
A noite revelou-se mais frequentada do que da vez anterior, bastantes
mais corpos pressionados em volta dos fardos de feno e todos pareciam
mais determinados em aproximar-se. Na noite em que Bastian combatera
com Michal, o ringue de pugilismo parecera mais um ponto de encontro
conveniente do que um ponto de atração, com espectadores à espreita nas
margens em grupos, a conversar e a rir e mal prestando atenção. Não era
assim naquela noite. Naquela noite, todos os olhos estavam fixos nos
lutadores e os olhares eram intensos.
Quando a multidão se apartou, Lore percebeu porquê.
Dois vultos de aspeto feminino lutavam intensamente no centro do
ringue de feno, de cabelo entrançado e seios muito bem enfaixados. O
sangue tingira quase de cor-de-rosa o cabelo louro de uma e a outra limpou
um lábio rachado com as costas de uma mão envolvida em pano.
– Noite de Pesos-Leves! – urrou um homem que deu por ela a ver, e que,
claramente, caminhava rapidamente para a bebedeira. – Vai uma luta? Tens
umas curvas a mais para seres peso-leve, mas podíamos arranjar alguém do
teu tamanho para que fosse um duelo justo.
– Não estou interessada, obrigada. – Lore recuou até embater noutra
forma quente… Bastian. Reconheceu a mão que lhe pousou no ombro.
O bêbedo encolheu os ombros e virou-se de novo para o ringue. A
lutadora loura atirou-se à magoada, o punho a cruzar o ar até chocar com
um rim. A outra lutadora tombou sobre as pedras cobertas de feno.
Lore rodopiou para se virar para Bastian.
– Sabia que era Noite de Pesos-Leves?
– Para ser sincero, nem sabia que isso existia. – Bastian sorriu sob a
máscara, esticando o pescoço para espreitar sobre a multidão. – Que
maravilha.
Ela praguejou entre dentes e virou costas ao ringue para observar a
massa de gente que se reunira para assistir. Era mais difícil medir o pulso à
multidão havendo tanta gente, mas a maioria estava demasiado concentrada
no combate, pelo que seria fácil detetar alguém a esgueirar-se para uma
conversa sussurrada. Gabe parou a uns passos dela e de Bastian, voltado
para a luta, mas com o seu olho azul de um lado para o outro através da sua
máscara.
A pugilista com o lábio ferido desviou-se para o lado. A loura tropeçou,
o soco falhado.
– Ali – disse Bastian.
Não apontou, mas com o queixo indicou as sombras na ponta mais
distante do ringue, um lugar entre candeeiros de rua onde a escuridão era
mais profunda. Três vultos reunidos, desviados do combate. Aquele cujo
rosto era visível para Lore parecia ouvir atentamente o que era dito. O vulto
que falava estava de costas voltadas.
Bastian e Gabe entreolharam-se. Gabe assentiu com a cabeça e a seguir
avançou para o grupo, abrindo caminho por entre a multidão como um
tubarão entre um cardume de peixes.
– Vamos. – Bastian agarrou o braço de Lore e puxou-a atrás de si. –
Acho que o nosso monge de estimação não precisa de apoio, mas é melhor
mantermo-nos juntos, nunca se sabe.
Emergiu um rugido do ringue. Quando Lore olhou para trás, a lutadora
loura estava no chão.
O grupo nas sombras apartou-se antes de Gabe lá chegar, com o vulto
que estivera a falar a desaparecer na multidão sem que Lore conseguisse
olhar bem para ele.
Gabe abordou um dos homens que estivera a ouvir e encetou uma
conversa casual. Bastian e Lore pararam a pouca distância; do que ela
conseguiu ouvir, Gabe estaria a falar de previsão do tempo para navegação.
– Deus Sangrante – murmurou ela, enquanto Bastian bufou.
Mais umas palavras vãs sobre ventos noroeste e Gabe apontou com a
cabeça para o orador já desaparecido.
– Por acaso não sabem se há por aí quem precise de gente para trabalhar?
Estou a precisar de umas coroas extra. – Uma pausa. – Uma coisa para uma
noite seria o ideal.
– Está a arriscar muito – sussurrou Bastian. Lore deu-lhe uma
cotovelada.
O homem com quem Gabe falava – muito pequeno e magro, se não fosse
pela barba cerrada no queixo, Lore diria que a voz ainda seria de
adolescente – espreitou para o seu companheiro e coçou o pescoço. Viu-se
uma constelação de pisaduras, bem roxas e recentes.
– Se calhar há – disse ele vagarosamente. – Mas os pormenores não são
comigo.
Gabe retesou o maxilar e o homem pequeno recuou, arregalando os
olhos ligeiramente assustado. Lore não o censurou. Gabe não parecia o tipo
de pessoa que se deve irritar.
– E como é que se encontra alguém disposto a partilhar os pormenores?
– quis saber Gabe.
O companheiro do homem – maior do que ele, mas ainda de aspeto
jovem – riu ruidosamente.
– Perdendo – disse ele, apontando para o ringue.
Lore olhou para trás. A lutadora loura estava novamente de pé, mas
escorria-lhe continuamente sangue de um golpe na testa, pingando-lhe
sobre os olhos.
– Perdendo? – perguntou Gabe, baralhado, de sobrolho carregado,
enrugando a máscara dominó preta.
– Perdendo um combate – murmurou o homem pequeno, voltando a
massajar as suas pisaduras recentes. – Eles só abordam as pessoas que
perdem uma luta.
– Porquê?
– Raios me partam se sei – respondeu ele imediatamente. – Deve ser por
ter de se pagar para lutar e quem acabou de perder dinheiro é menos
provável que faça perguntas.
Outro rugido da multidão. A lutadora loura fora derrubada, desta feita de
vez. Um homem enorme com uma barba preta entrançada passou por cima
dos fardos de feno e ergueu os braços da outra pugilista sobre a cabeça.
Tinha o olho negro e um sorriso viciosamente triunfante.
Gabe olhou para trás para Lore e Bastian, e suspirou.
– Com quem falo para entrar no ringue?
– Não podes. – O homem pisado olhou Gabe de alto a baixo, após o que
abanou a cabeça. – Esta noite não dá. É Noite de Pesos-Leves.
Três olhos incidiram em Lore – o de Gabe e os dois de Bastian, todos
interrogativos.
– Merda – murmurou Lore.
Capítulo 30

O passado terá sempre a última palavra.


– Provérbio eroccano

D ezPresque
minutos e um punhado de ouro de Bastian mais tarde, Lore, o
Mort e o Príncipe Sol estavam no limite exterior do ringue de
fardos de feno à espera da chegada da adversária dela.
– Sei que o objetivo é perder – disse Bastian, envolvendo os nós dos
dedos dela em pano de linho branco –, mas pelo menos tenta oferecer-lhes
um espetáculo. Duvido que alguém te aborde para transportares carga se
fores ao tapete ao primeiro soco.
– Vou dar o meu melhor. – Sentia-se demasiado nervosa para pensar em
condições.
Junto dela, Gabe tinha um ar zangado, o maxilar tenso o suficiente para
eriçar os pelos curtos e ruivos da sua barba.
– Não gosto nada disto.
– Também não estou propriamente entusiasmada. – Lore agitou os
joelhos, a energia nervosa a implorar-lhe que se movesse. –
Espantosamente, não sou muito boa a lutar com os punhos.
Bastian parou de enrolar o pano e arqueou uma sobrancelha.
– Eras traficante de veneno e não eras boa a andar ao soco? Eras boa em
quê?
Ela mostrou os dentes.
– A traficar.
– Não é preciso muita habilidade para lutar – frisou Gabe. – O instinto
de sobrevivência impõe-se. E isso não te falta.
– Discutível – murmurou Bastian. Gabe e Lore fingiram que não
ouviram.
Após um momento, Gabe suspirou, como se por fim se resignasse face
ao que estava prestes a acontecer.
– Aponta às rótulas.
– Ah, sim. – Bastian atou os panos das mãos. – As rótulas são os olhos
das pernas.
Ambos olharam para ele. Então, Gabe encolheu os ombros.
– É efetivamente um excelente conselho.
– Excelente ajuda, de ambos. – Lore movimentou os dedos, lutando
contra a ansiedade entorpecedora que lhe corria pela espinha.
Do outro lado do ringue, a multidão apartou-se. Uma rapariga com
cabelo acobreado em longas tranças e uma expressão de quem cheirou leite
estragado saltou sobre os fardos de feno e parou, anca empinada, braços
cruzados. Seria uns cinco centímetros mais baixa do que Lore, mas tinha
uma constituição redonda e musculada.
– Bem, que forma horrível – murmurou Bastian. – Nem sequer tem os
nós dos dedos ligados.
– Acho que ela não precisa. – Lore mirou as mãos da outra rapariga, uma
confusão de pisaduras e articulações inchadas, sinais de uma lutadora
veterana.
Cerrou os punhos. Sentiu a pulsação nos dedos, como se fossem
corações externos.
O juiz barbudo avançou para o centro do ringue.
– Última chamada para apostas.
– Se descobrem que perdi de propósito, serei perseguida pela cidade com
forquilhas – disse Lore.
– Então, é bom que faças com que não pareça que perdes de propósito –
replicou Gabe.
Quando o homem barbudo lhe fez sinal com o dedo, Lore avançou, com
as últimas palavras de encorajamento hesitante de Gabe e Bastian a serem
abafadas pela torrente de sangue a pulsar-lhe nos ouvidos. A sua adversária
aproximou-se, fitando-a de alto a baixo e terminando num sorriso
desdenhoso.
Lore sentiu-se muito irritada por ter de perder.
– As apostas estão feitas – avisou o juiz. – Vamos lá ver qual de vocês
envia a outra primeiro para o seu inferno pessoal, minhas senhoras!
Vaias e apupos ecoaram pela rua do porto. Lore deteve-se à espera do
sinal oficial a anunciar o início do combate. Surgiu com um soco na barriga.
A rapariga ruiva tentou pontapeá-la enquanto Lore se encontrava ainda
curvada sobre o estômago dorido, mas ela apercebeu-se e desviou-se com
um salto. A sua adversária, assustadoramente imperturbada, deu-lhe com a
palma aberta da outra mão na orelha e Lore ajoelhou-se, com os ouvidos a
zumbir.
– Acerta-lhe pelo menos uma vez! – A voz de Bastian, a gritar do
exterior do ringue.
– Estou a tentar – disse Lore, com os dentes cerrados.
Olhou para cima – a outra rapariga caminhava lentamente em redor do
círculo, um sorriso feroz no rosto, os aplausos do público a encorajá-la a
levar o seu tempo contra uma oponente visivelmente mais fraca. Lore foi
respirando fundo conforme a outra se aproximava, desejando que o seu
estômago se expandisse, empurrando mentalmente a dor para a periferia.
Remexeu o corpo dorido – rabo no chão, pernas dobradas diante dela, mãos
unidas atrás. Um esforço frouxo deu a impressão de que estava a tentar
levantar-se, sem o conseguir, o que serviu apenas para espicaçar o sorriso
da ruiva.
A rapariga aproximou-se por fim o suficiente, mas Lore não atacou,
ainda não. A outra inclinou a cabeça e fitou-a como alguém poderia olhar
para uma criança mimada.
– Até te dava a oportunidade de desistires, mas preciso de treinar. –
Fechou o punho e puxou o braço atrás.
A posição sentada de Lore deixava-a com os olhos ao nível do estômago
da outra rapariga. Perfeito.
Perna a levantar, apoiando-se nas mãos atrás, uma olhadela rápida para
se assegurar de que apontava bem, tudo num segundo. Lore pontapeou a
rótula da outra rapariga e esta caiu estendida para trás com um urro rouco
de dor.
– Os olhos das pernas – murmurou Lore, levantando-se do chão.
A multidão aplaudiu, as lealdades mudando como o estado do tempo.
Bastian festejou, mas Gabe pareceu preocupado. Queria que ela desistisse,
ela via-o no seu olhar, mas não lhe parecia que a adversária lhe desse tal
oportunidade, em especial agora.
Então, seria para perder em grande. Lore encolheu-se por antecipação.
– Vais pagar por isso. – A outra rapariga sacudiu a perna, mal coxeando,
embora a agonia estivesse patente no ricto da sua boca ao correr para a
frente.
– Sim, calculo que vá. – Lore suspirou.
– Parem com a luta!
Os gritos vieram das ruas atrás na direção da cidade, acompanhadas
pelos sons de botas no empedrado. Os aplausos da multidão transformaram-
se em gritos de surpresa.
– Casacas de sangue! Dispersem!
O ringue de feno foi abandonado; espectadores e lutadores em espera
deram à sola, desaparecendo em vielas quando um grupo de casacas de
sangue irrompeu na rua, as baionetas a refletir o brilho cor de laranja dos
candeeiros de rua. Pareciam lanças de chamas.
A rapariga com quem Lore estivera a lutar praguejou e deu a volta para
fugir com a sua perna magoada. Nem sequer olhou de novo para Lore. A
vingança passa para o fundo da lista de prioridades quando escapar às Ilhas
Queimadas figura no topo.
Uma mão no braço dela, empurrando-a em frente. Gabe.
– Vamos. Isto era um beco sem saída.
Correram com a multidão pelas ruas fora, os sons de capturas e disparos
ocasionais espicaçando-os a seguir em frente, até Bastian sair de repente de
uma viela estreita.
– Por aqui!
Gabe não amainou a passada ao virar, impulsionando ambos para a
segurança relativa da escuridão. Lore encostou-se à parede, braços cruzados
sobre o estômago. Ainda lhe doía do soco, e a corrida inesperada em nada
ajudara.
– Temos de regressar à Cidadela antes que isto se descontrole. – Bastian
parou mesmo na esquina da viela, a sombra numa parte do seu rosto ao
espreitar para a rua. Um grupo de casacas de sangue passou a correr e ele
encostou-se à parede, desaparecendo na escuridão. – Regressamos
amanhã…
– De maneira nenhuma. – Gabriel impôs-se no centro da viela húmida,
uma voz empedernida, a expressão ainda mais pétrea. – Este plano era
estúpido desde o início.
Bastian olhou para trás por cima do ombro, os candeeiros de rua a
revelar o brilho dos seus dentes. Lore recordou a última vez que estivera
numa viela com o Príncipe Sol, como ele mudara tão depressa de membro
da realeza ocioso para algo sarcástico e irado.
– Tens um plano melhor? – perguntou ele, a voz ao nível do tom afiado
de Gabriel.
– Tem de haver – reagiu Gabe. – Podemos falar com…
– Isso não vai resultar – disse Lore, calmamente. – Sabe bem que não,
Gabe. A única forma de descobrir quem trata da contratação será tratando
nós disso. – Apontou para a entrada da viela. – Uma rusga a ter lugar esta
noite é um sinal. Estamos no caminho certo e alguém sabia que vínhamos.
Gabe virou-se para ela, o olho azul ardente através da máscara de
dominó.
– Não imaginas o quanto é perigoso continuar a fazer isto. Continuar a
vir aqui…
– Eu sou daqui. – Conseguiu endireitar-se, apesar da dor no estômago, e
lançar-lhe um olhar fulminante. – Já lhe ocorreu que pode estar a levar
longe de mais o seu papel protetor?
Não planeara dizê-lo, não sabia que forma assumiria a sua ira, medo e
irritação até as palavras serem forjadas e lançadas. Os três paralisaram,
sabendo que aquela era uma porta que se abria para algo muito maior do
que aquilo para que de momento tinham tempo para lidar.
Gabe avançou um passo, olho azul a cintilar.
– Preferias que te lançasse aos lobos vezes sem conta para servir os meus
planos? – Não olhou para Bastian, mas não era necessário. A acusação saiu
como uma flecha e o alvo era óbvio.
O olhar de Bastian teve um forte impacto em Lore. Ele sabia o que ela
era, de onde viera, que seria capaz de sobreviver a uns lobos. Sabia que, se
fosse feita de vidro, havia muito que se teria estilhaçado.
Gabe não conhecia esses pormenores tão bem como Bastian.
Talvez estivesse na altura de tratar disso.
Lore inspirou fundo.
– Gabe, há algo…
Mas foi interrompida por uma forma vinda das sombras que lhe embateu
nas costas.
O seu estômago já dorido pareceu prestes a pegar fogo, enquanto o
crânio chocava contra a parede suja. Através do retinido agudo nos ouvidos,
ouviu Gabe gritar, ouviu sons de punhos a atingir carne, um rosnido que só
poderia ser de Bastian.
A pancada na cabeça deixou-lhe a visão turva, mas, a custo, Lore
conseguiu abrir os olhos.
– Não aprendeste a lição, pois não? – Havia algo de familiar naquela
voz; já a ouvira antes. Mas parecia-lhe mais ressequida, como se a garganta
onde a ouvira antes tivesse sido arranhada. – Quero lá saber que sejas
príncipe. Quero lá saber que sejas uma dama. Preciso de mais dinheiro e sei
que vocês, seus merdosos, o têm.
A visão de Lore começou a estabilizar aos poucos, apercebendo-se
melhor do vulto que tapava a luz do candeeiro a gás. Ele parecia bastante
pior do que da última vez – a sua constituição robusta vergara-se, como se
lhe faltasse a força para se aguentar direito, e traços de pedra cinzenta
entrecruzavam-se onde deveria haver veias –, mas ela reconheceu-o. Milo,
o brutamontes que tentara sacar a Bastian mais do que ele devia da aposta
da última vez que tinham ido ao ringue.
Gabe estava encolhido contra o tijolo sujo, consciente, mas atordoado,
roxo-escuro a espalhar-se pela têmpora. Via-se o punho do punhal de
Bastian cravado no ombro de Milo, mas o homem não parecia sequer senti-
lo. As suas veias estavam tão cheias de pedra que era um milagre a lâmina
ter sequer perfurado a pele. O homem tomara uma dose que o tinha deixado
na iminência de se tornar uma aparição.
Bastian estava dobrado sobre si mesmo no centro da viela, de braços
cruzados sobre a barriga. Milo também lhe acertara com um golpe de
punhal. Carmesim perpassava a camisa de Bastian, negro como a noite sob
a luz débil, pingando suavemente sobre o chão pejado de lixo.
Milo rodou a faca ensanguentada.
– Quero lá saber quem és – murmurou naquela voz empedernida e
arranhada. Um sorriso mudo ergueu-lhe os lábios, os olhos desfocados e
vidrados com uma pedrada eufórica de veneno. – Desta vez morres.
O tempo abrandou. Algo cristalizou na mente de Lore, completamente
formado, um instinto que ela sabia que deveria seguir.
– Ponha-se a andar – disse ela a Bastian, a sua voz de alguma maneira
forte apesar das dores no estômago e da cabeça a retinir.
Fosse qual fosse o conhecimento profundo que ela seguia, pareceu que
também ele o conhecia. Bastian pressionou a sua mão com mais força sobre
a barriga e cambaleou pela viela na direção oposta, o mais possível para
longe de Lore e Milo, mais depressa do que deveria ser capaz de correr com
o ferimento que tinha.
Milo moveu-se para o seguir, mas Lore foi mais rápida. Com Bastian
mais longe, foi simples chamar a Mortem, fluindo de paredes de pedra, do
lixo amontoado nos cantos, do aço frio do punhal que naquele preciso
momento cortava o ar na direção dela.
Revelou-se mais forte do que nunca, uma onda que deveria ter-lhe
subjugado os sentidos. Mas Lore agarrou o poder, e agarrou-o facilmente.
De mãos estendidas e com a visão a assumir tons cinzentos enquanto ela
sustinha a respiração e pousava no lugar onde a morte era visível, a morte
era uma ferramenta. Lore canalizou Mortem através do seu corpo, as veias a
enegrecer e os olhos a ficarem opacos, o coração a imobilizar-se no seu
peito por um instante.
Quase sem pensar, pegou em toda aquela morte e lançou-a contra Milo.
Tecer morte era como inspirar ar, como uma parte intrínseca de si que
estava apenas à espera de florescer. Antes, fizera-o sem pensar, a sua
capacidade nata a tornar simples algo a exercer com tanto cuidado. Mas
agora prestava atenção e regozijava-se com aquilo que conseguia fazer.
Lore girou a Mortem como uma linha, enrolando-a em redor do homem
como uma mortalha. Tal como as rosas no jardim, simplesmente envolvidas
em pedra, simplesmente congeladas. Apenas o suficiente para a inércia,
apenas o suficiente para o deter, pois não tinha outra hipótese.
Vês como o fazes facilmente, filha da escuridão?
A voz era débil, mas bastou para lhe quebrar a concentração. Sacudiu a
cabeça e abriu os olhos.
Milo era uma pedra. A ponta da faca cintilava a meros centímetros do
pescoço dela. Esperava que o rosto dele tivesse paralisado num grunhido,
mas, em vez disso, a expressão que ostentava era de terror.
– Tu… – Gabe estava pasmado, livre do seu atordoamento, abrindo e
fechando as mãos no ar enquanto se levantava. – Tu não devias…
– O que é que achas que ela deveria ter feito, Remaut? – Bastian vinha
em passada larga do fundo da viela. Tinha a camisa manchada com sangue,
mas já não a agarrava, não caminhava como um homem ferido. – Valsar
com ele?
Gabe não respondeu. Encostou-se à parede e fitou a estátua que Lore
criara a partir de um ser humano vivo.
Milo. Ele fora uma pessoa, com um nome e um trabalho, mesmo que
esse trabalho passasse por extorquir apostas de partidas ilegais de boxe.
Uma pessoa que ela transformara em pedra. Estaria ainda consciente,
algures no meio de tudo aquilo? Teria dores?
Ela abanou a cabeça. Não queria saber.
Lore não olhou para Gabe. Sabia que a sua expressão seria muito pior do
que fora no dia da fuga de Mortem e ela não aguentaria, não conseguiria
enfrentar aquilo, não, havendo tanto a fazer.
– Como está a sua barriga? – perguntou ela a Bastian, numa voz fina e
tremente.
Ele espreitou para baixo como se se tivesse esquecido, fazendo uma
careta ao olhar para a camisa ensanguentada.
– Bem – respondeu ele. – Deve ter sido um arranhão.
Fora mais do que isso. Pelo menos, Lore tinha achado que era. Mas,
quando ele levantou a camisa, a pele estava imaculada, marcada apenas por
uma mancha de sangue seco.
Sentiu uma mão no ombro dela – Bastian, gentilmente a afastá-la da faca
estendida na mão empedernida de Milo. Os dedos dele deslizaram-lhe para
a nuca, para o cabelo; o polegar roçou-lhe a face, e depois soltou-a e
afastou-se.
– Certo – disse ele, com um aceno de cabeça determinado. – Bem. Não
podemos deixá-lo aqui e calculo que ainda não estejas com vontade de
voltar a alterá-lo.
– Se isso for possível. – A voz de Gabe soou discreta e rouca. – Se
conseguirmos alterá-lo de novo.
– Seja como for, temos de o tirar daqui. – Havia uma carreta encostada à
parede na outra ponta da viela; Bastian foi lá e puxou uma das pegas.
Aquilo moveu-se, mas com um chiado horrível. – Para onde, é que não faço
ideia.
– Eu faço – disse Lore. Sentiu os lábios entorpecidos. – Sei para onde
podemos levá-lo.

Houve um momento de certo pânico enquanto Bastian e Gabe debatiam


a melhor forma de inclinar o homem de pedra para o carrinho de mão – e se
este aguentaria sequer o peso, decrépito como estava; Milo não era um
homem pequeno nem quando era de carne e osso – mas, afinal, a estátua
feita de Mortem foi mais fácil de mover do que parecera.
Gabe e Bastian içaram-no juntos depois de contarem até três e o homem
tombou na carreta, que tinha o fundo revestido com lixo que Lore recolhera
na viela. Bastian recuou, de olhos arregalados.
– Foi mais fácil do que eu esperava.
– Isto não é pedra maciça – vincou Gabe. A seguir, abanando a cabeça,
acrescentou: – Ele não é, quero eu dizer.
Não se tratava de pedra maciça, era apenas um ser humano envolvido
num manto de morte. Lore sentiu-se maldisposta. Gabe não olhou para ela.
Gabe tapou a figura em pedra com mais lixo e a seguir ele e Bastian
manobraram a carreta enquanto Lore ia sorrateiramente até à entrada da
viela, olhando para ambos os lados.
– Caminho desimpedido – murmurou ela –, mas temos de nos despachar.
– Sim, calculo que isto seja difícil de explicar. – Bastian levantou a parte
da frente da carreta atrás dela. Gabe manteve-se na traseira, para a manter
estável. Ela pensou se ele escolhera tal posição por ser a mais afastada dela.
Lentamente, Lore saiu da viela, com Bastian e Gabe e a sua bizarra carga
atrás. Ela recordou a rota, dobrando as curvas e tomando os atalhos sem ter
sequer de pensar. Ao longo de dez anos, a equipa de Val trabalhara a partir
do mesmo armazém e recordava como lá chegar, apesar de em parte desejar
poder esquecer.
Ela não quisera envolvê-las. Mesmo depois de se ter tornado claro que as
respostas poderiam ser mais facilmente obtidas se se ativesse ao seu
passado de traficante de veneno do que mantendo-se no seu presente
falsamente nobre, Lore não quisera recorrer a Val e Mari; quisera mantê-las
o mais possível afastadas daquilo. Tanto para as proteger, como porque a
ideia de vê-las gerava um ferimento muito preciso no seu coração,
semelhante ao de fazer pressão numa pisadura.
Só que agora não havia escolha.
O nevoeiro pairava baixo sobre a rua, adensando-se quanto mais se
aproximavam do porto. A lua cheia refletia na água negra, visível ao longe
como uma extensão reluzente não muito diferente do céu no alto.
Olhar para a lua levou-a a pensar no eclipse que estava para chegar, no
baile do seu vigésimo quarto aniversário.
O armazém era um edifício comprido e escuro, com praticamente nada
que o distinguisse dos outros edifícios compridos e escuros das imediações,
e era deixado intencionalmente com um ar abandonado. O telhado abatia a
meio. As calhas estavam todas cheias de esterco de gaivota seco. Havia
marcas de água nas placas ásperas de madeira das paredes exteriores.
A maioria das outras construções encontravam-se na realidade vazias,
um paraíso para aparições em busca de um lugar para dormir após a sua
última dose, ou de um lugar sossegado para morrerem por fim após se
terem ossificado em vidas demasiado longas. Val nunca expulsou ninguém
dos armazéns vazios, mas ocasionalmente enviava gente para procurar
corpos. Em especial nos meses mais quentes, quando a escassa carne que
lhes restava começava a feder. Queimavam os cadáveres que encontravam,
sem se darem ao trabalho de procurar alguém que pudessem ter conhecido.
Se alguém descia tão baixo ao ponto de morrer num armazém vazio no
porto, não teria ninguém à sua procura e provavelmente não teria grande
interesse em aceder ao Reino Iluminado. Não havia muita gente que
acedesse.
– Onde vamos, exatamente? – Bastian não parecia minimamente
cansado. Quando ela olhou para trás para ele, os músculos dos ombros dele
estavam tensos sob o tecido teso manchado com sangue da camisa. Servia
apenas para chamar a atenção para os seus braços com as veias salientes, o
seu peito plano e bem delineado.
Ela desviou o olhar.
– Antro de traficantes de veneno. – Não valia a pena tentar esconder.
– Oh, fantástico – comentou Bastian. – Nunca visitei nenhum.
Atrás dele, Gabe permanecia em silêncio.
As ruas em redor do armazém encontravam-se vazias, o que era típico.
Val fazia a sua equipa ter horários diversificados para que não chamassem a
atenção ao serem vistos junto do local. Agora, deveria ser apenas pela força
do hábito. Val tinha a sua documentação, estava oficialmente habilitada pela
Igreja e pela Coroa. Entregar Lore a Anton dera-lhe um véu de
legitimidade.
Os candeeiros de rua estavam agora bem longe e a única iluminação era
a lua redonda, as estrelas espalhadas. Fazia com que o edifício se impusesse
como um bloco de um carrasco.
Lore deteve-se diante da porta, com os nervos a agitarem-lhe a barriga.
Mas tinha de esconder um homem praticamente petrificado até descobrir
como poderia devolvê-lo ao estado anterior, e só lhe ocorria aquele espaço.
Assim, bateu à porta. Um padrão familiar, imbuído nela desde os seus
treze anos. Duas batidas curtas, a seguir mais duas com uma pausa de
quatro segundos entre elas, e um arrastar final com os nós dos dedos.
Abriram de imediato.
– Pelos deuses mortos e moribundos, porque é que…
A voz rica de contralto de Mari vacilou quando a sua silhueta elegante
apareceu à porta. Arregalou os olhos.
– Lore?
O lábio tremeu-lhe, contra a sua vontade.
– Olá, Mari.
Capítulo 31

Os laços familiares são sagrados, mas nem sempre é o


sangue que os forma.
– Provérbio myroshano

O interior do armazém contrastava em absoluto com a decadência exterior.


O chão estava bem varrido, o teto era alto e composto por múltiplas
camadas de madeira e latão para impedir que o mau estado do telhado
afetasse o interior. Havia camas de campanha junto às paredes, algumas
feitas, outras por fazer – a maioria da equipa não morava lá e Val e Mari
dispunham de um pequeno apartamento por cima do escritório, mas
mantinham as camas na eventualidade de alguém necessitar de um lugar
para ficar. À direita, o escritório em espaço aberto jorrava luz dourada na
obscuridade, projetada a partir de um candeeiro a gás na beira da
escrivaninha. O candeeiro era uma peça muito estimada por Mari. Fora um
presente de Val no aniversário delas, quando Mari deixou de aguentar tratar
da contabilidade à luz da vela.
Havia umas quantas caixas empilhadas nas sombras na parte de trás do
espaço, prova de que iria haver uma entrega nos próximos dias. Val só ali
mantinha veneno caso fosse mesmo necessário.
Mari ficou parada em frente à porta do escritório, de braços cruzados, a
olhar fixamente para Gabe e Bastian, assim como para a carreta atrás deles,
com uma expressão inescrutável, enquanto Lore a punha a par do que se
passava. Foi fiel à verdade, na sua essência, embora não tenha contado a
Mari a razão para andarem nas docas. Mas queria fazê-lo. Ver uma das suas
mães fizera desaparecer a dor da traição de Val; sentia-se de novo uma
criança, desejosa de deixar tudo nas mãos de uma das suas mães adotivas
para que lhe resolvessem o problema.
Também manteve de fora da história as identidades de Gabe e Bastian.
Contar a Mari que o Príncipe Sol de Auverraine e um dos Presque Mort se
encontravam no seu armazém era garantia de confusão.
Quando Lore por fim se calou, Mari assentiu lentamente, interiorizando
a história com os seus lábios cerrados.
– Então – disse ela, olhos negros cansados –, queres que guardemos aqui
um morto…
– Não está morto. – Foi a primeira vez que Gabe falou desde que tinham
deixado a viela, e assustou Lore quase tanto quanto Mari. Junto dele,
Bastian mantinha-se calado, de braços cruzados e olhar pensativo. Ambos
continuavam de máscara, apesar de Lore ter retirado a sua, o que tinha o
efeito desconcertante de os fazer parecer quase a mesma pessoa, ao vê-los
pelo canto do olho.
– Uma pessoa não morta – cedeu Mari –, no nosso armazém até saberes
como corrigir as coisas.
– Não há de demorar – garantiu Lore. A voz dela apresentava o mesmo
tom choroso de quando era criança, implorando por algo que desejava. – Na
realidade, vou tentar daqui a um minuto ou dois.
Sentiu o olhar de Gabe a incidir-lhe na nuca, provocando-lhe pele de
galinha. Lore irritou-se. Deixar Milo naquele estado era mau, tentar repará-
lo era mau – ela não ia agradar a Gabe, fizesse o que fizesse, e desejou não
se importar.
– Só precisávamos de um lugar onde o pôr – terminou, baixinho. – Não
podíamos deixá-lo na viela.
– Não, calculo que não. – Mari suspirou, levantando a mão para apertar o
nó que lhe prendia o lenço de seda sobre o seu longo cabelo dobrado,
fazendo tilintar as contas de vidro que tinha nas pontas. Devem tê-la
apanhado mesmo antes de se deitar. – Está bem. Ele pode ficar.
– Com sorte, não será por muito tempo. – Lore virou-se e fitou o homem
de pedra na carreta. O lixo que tinham empilhado em cima dele
movimentara-se, destapando o rosto aterrorizado de Milo.
Mari espreitou para a carreta. Arqueou uma sobrancelha a Lore.
– Dá-me um segundo e eu trato dele – disse Lore. – Eu só precisava… eu
só precisava de privacidade.
Privacidade e um lugar onde se sentisse confortável. Lore não percebera
como se aguentara tão bem até a tensão desanuviar, pouco a pouco. Apesar
de tudo, ainda sentia aquele armazém como se fosse a sua casa, e céus,
como sentia a falta dele. Estar ali preenchia um vazio no seu peito que nem
sequer sabia que tinha.
– Podes tê-la. – Mari espreitou para a porta. – A Val deve estar a chegar.
O vazio voltou. Lore mordeu o lábio.
– Isso vai ser um problema?
– Sinceramente, não me parece. – Mari olhou-a nos olhos, algo a
suavizar o seu rosto. Tristeza e resignação moldaram-lhe a boca. – Ela
estava entre a espada e a parede, Lore. O Supremo Sacerdote não lhe deu
escolha. Eras tu, ou todo o grupo ia para a forca.
Atrás dela, Gabe retesou-se.
– Para a forca? – repetiu ela, baixinho. Val tinha dito que tivera de fazer
uma escolha, entre ela e a equipa, mas Lore julgava que isso significaria um
tempo na prisão, talvez as Ilhas Queimadas…
– Morte para todos nós – sussurrou Mari. Mordeu o canto do lábio. – Ele
queria-te, ratinha. Mesmo.
Ela pensou naquele primeiro dia depois de Cavalo, quando Anton lhe
disse que a Igreja a observava desde os treze anos, desde que despertara
Cedric dos mortos. Observando, mantendo registos, deixando-a viver uma
vida que ela julgava ser livre até puxarem por fim a corda.
Tinham esperado que ela fosse mais velha. Que o seu poder sobre a
Mortem tivesse amadurecido, desenvolvido. E, de facto, isso acontecera – o
homem de pedra no carrinho era a prova. Ela não teria sido capaz de algo
assim há umas semanas, como se o seu tempo na Cidadela de alguma
maneira tivesse fortalecido as suas capacidades.
O seu tempo na Cidadela e a marcha lenta rumo ao vigésimo quarto
aniversário.
Instintivamente, o seu olhar incidiu em Bastian, à procura de alguma
força no Príncipe Sol. Ela não percebeu que Gabe se afastara, o suficiente
dentro do armazém para não ouvir a conversa, até estar atrás de Bastian,
andando de um lado para o outro como um animal enjaulado. O Presque
Mort olhou uma vez para trás, o seu olhar a saltitar entre ela e o outro
homem, antes de voltar a virar costas.
Uma batida na porta. O mesmo padrão a que Lore recorrera. Mari foi
abrir.
Era Val do outro lado.
– Desculpa, amor, eu… – Val parou a meio da frase, a boca aberta sem
dizer nada, olhos arregalados ao fitar Lore. – Ratinha – disse ela, após o que
correu para a frente.
Lore não sabia com o que contar. Junto à parede, Bastian parecia pronto
para lutar – ombros relaxados, punhos cerrados.
Mas Val abraçou Lore e apertou-a com força. Dos abraços que
partilharam, este foi o mais demorado. Apesar de só ter havido três antes
daquele, todos devidamente catalogados na mente de Lore, pelo que talvez
não fosse uma métrica correta – Mari era a mais mole, a mãe mais propensa
a dar conforto. Ainda assim, após o momento inicial de paralisar com o
choque, Lore correspondeu ao abraço com a mesma intensidade, a sua raiva
esquecida no aroma familiar do cabelo de Val, no arranhar familiar da sua
camisa na face dela.
– Oh, ratinha. – A voz de Val soou sufocada e rouca. – Ainda bem que
estás bem.
Lore não reagiu. Baixou o queixo, enterrando o rosto nos ombros de Val,
e esperou que a mulher não sentisse o sal quente através da sua camisa de
trabalho.
Mas Lore não se permitiu chorar realmente. Era uma barreira que não
podia derrubar já; não havia tempo.
Já estava mais composta quando se apartaram, as lágrimas já secas, o
queixo direito.
– Compreendo por que o fizeste – disse calmamente Lore. – Sei que ele
andou a vigiar-me desde… desde o Cedric. E a Mari contou-me que
ameaçou enforcar toda a equipa.
O olhar de Val revelava cansaço. Ela assentiu com a cabeça e passou
uma mão pelo lenço que lhe sustinha o cabelo claro.
– Ele também apresentou as coisas como sendo algo bom para ti. Viver
na Cidadela, onde o teu… o teu estado poderia ser mais bem compreendido.
Da maneira como falou, iriam ensinar-te a lidar com isso.
Lore remexeu-se, desconfortável. Era doloroso perceber que Anton
recorrera à promessa de a ensinar para obrigar Val a concordar. Isso levava-
a a pensar com que frequência Val desejara ajudar, mas sem saber como.
Os braços musculados da velha traficante de veneno tremeram quando
apoiou as mãos nos ombros de Lore.
– Se eu soubesse que andavam a seguir-te, ter-te-ia protegido –
murmurou. – Espero que acredites nisso.
– Acredito em ti – murmurou Lore. E era verdade. – Lamento ter-te feito
acarretar com tudo isto, Val.
– Não digas isso. – A mãe dela sacudiu-a ligeiramente. – Não tens culpa.
Nenhuma. Sinto-me muito contente por aqui estares e por te ver bem.
– Não assim tão bem – frisou Mari. – Ali com o homem na carreta
transformado em pedra, e tudo.
Val arregalou os olhos.
– Como?
– É uma longa história – suspirou Lore.
– Guarda-a para mais tarde, se queres. – Val finalmente reparou em Gabe
e Bastian. A traficante de veneno grisalha fitou-os circunspectamente, uma
mão baixando do ombro de Lore para pairar sobre o coldre de couro na
anca. Val trazia sempre uma pistola. – Estou mais interessada nos homens
que não são de pedra que estou a ver no meu armazém.
Lore abriu a boca, tentando ordenar histórias de cobertura, mas escusava
de se ter dado ao incómodo. Claro que Bastian a bateu aos pontos.
– Blaise – mentiu Bastian, com uma vénia. – E o meu amigo carrancudo
é o Jean-Baptiste.
Gabe retesou o maxilar face ao florido nome falso que Bastian lhe
atribuíra. Foi quase um alívio ver a irritação a tomar-lhe o rosto, algo
diferente do distanciamento frio e da fúria em lume brando.
– E de onde é que vocês conhecem a Lore?
Bastian nem vacilou face ao olhar sagaz de Val.
– Temos andado a ajudá-la na Cidadela – disse, mantendo-se perto da
verdade sem a revelar. A seguir, com um olhar malicioso: – Nós, os
marginais, temos de nos manter unidos, minha senhora.
– Não me venhas cá com minha senhora. – O olhar de Val passou de
Bastian a Lore, avaliador. – Se a Lore confia em vocês, também confio.
Mas aquilo que se dá facilmente, também se retira facilmente, e se pisarem
o risco, nem que seja por um milímetro, lá se vai a confiança.
– Nunca tal nos passaria pela cabeça – replicou Bastian. – Todos os
apêndices manter-se-ão precisamente onde os quer.
Val assentiu ao de leve com a cabeça, aparentemente aplacada.
– Muito bem – disse ela, cruzando os braços. – O que planeiam fazer em
relação ao tipo de pedra?

A completa ausência de um plano veio a resultar em algo como isto:


Bastian, como sempre um encanto, conversou descontraidamente enquanto
ele e Gabe erguiam o estranhamente leve homem de pedra da carreta,
encostando-o à parede. Lore ia apanhando fragmentos de conversas sobre
transportes de mercadorias navais, questões sobre se Mari e Val alguma vez
tinham frequentado o ringue de boxe – a resposta foi um rotundo não – e
comentários sobre a excelente camuflagem que montaram para o armazém,
mas ela só estava a ouvir parte. Toda a sua concentração incidia em Milo, o
ser humano em redor do qual ela tecera a morte, e em como poderia desfiá-
la.
Se poderia desfiá-la.
– Ele vai lembrar-se? – perguntou Lore discretamente a Gabe. – Quando
for… desempedrado?
A resposta saiu grave e gélida como o vento sussurrante vindo do mar.
– Nas poucas ocasiões em que isto já aconteceu – respondeu ele, com um
tom que vincava que reprovava com veemência todas as ocasiões em que
tal sucedera –, as vítimas não recordavam muito das poucas horas antes de
serem atacadas. Provavelmente, ele não vai recordar-se sequer de nos ter
visto.
Vítima. Ataque. Palavras escolhidas deliberadamente. Lore curvou os
ombros.
Gabe cerrou e descerrou os punhos, um olhar inescrutável no seu único
olho visível.
– Então, como é que queres fazer isto?
Ela contara com uma ideia dele, mas isso seria pedir demasiado. Lore
engoliu em seco, abrindo e fechando as mãos em preparação para o
formigueiro.
– Acho que da mesma maneira que tratei o corpo nas criptas – respondeu
por fim. – Tento simplesmente… reverter.
Ele assentiu, com um movimento brusco do queixo.
– Eu ajudo.
Contudo, não parecia uma oferta de apoio. Era mais como uma ordem.
Como se não confiasse que ela conseguisse fazê-lo sozinha. E apesar de
Lore também não confiar em pleno em si mesma, foi como deitar sal numa
ferida.
Bastian reparou na tensão a pairar entre eles, tão densa que era quase
visível, e encaminhou Val e Mari de volta para o escritório, ainda a
conversar. Val parecia irritada, Mari perplexa. Ainda assim, ambas terão
percebido que aquilo seria algo a fazer sem público, permitindo que Bastian
as levasse dali.
Ótimo. Ela não queria que assistissem.
Afastando da mente todos os pensamentos sobre a sua infância e as mães
adotivas, Lore virou-se para Milo e para os seus horríveis olhos de pedra.
– Muito bem – murmurou. – Vamos a isto.
Hesitante, esticou as mãos. Sentiu o ar a mover-se junto dela enquanto
Gabe fazia o mesmo. Um sopro para dois pares de pulmões, inspirado e
retido, deixando-os no espaço onde Mortem e Spiritum se tornavam
tangíveis.
Os sentidos de Lore foram de pronto inundados pela morte. Não era
como com Cavalo, uma expansão natural de Mortem enquanto o corpo
morria, uma coroa de escuridão a alargar. A entropia que cercava Milo era
espessa como alcatrão, um enigma tornado quase sólido pela sua massa
pura. A contradição deixou a mente de Lore instável.
Cerrou os dentes. Aquilo não tinha que ver com pensamento – as duas
vezes em que o fizera, fora por puro instinto. Tinha que ver com sensações.
Manteve os olhos abertos, a sua visão a tornar-se cinzenta rumo ao preto
e branco que mostrava vida e morte em contrastes claros. O homem diante
de si estava todo a preto, uma auréola de escuridão pura a traçar a sua
forma. Fios escuros jorraram dos dedos dela, filamentos finos como teias de
aranha, ligando-a à Mortem que canalizara para o corpo dele, o casulo que
tecera.
Mas no núcleo dele havia luz sem cor, uma essência de vida intocada.
Ele poderia ser salvo.
Para transformar matéria viva em pedra, ela tecera morte nas células,
como um casulo em volta de uma borboleta. Lore conseguia sentir os
lugares onde essa morte agora aguardava, delicadamente entrelaçada na
vida, separadas pela membrana mais fina. Duas faces da mesma moeda,
incapazes de existir uma sem a outra. Fortalecendo uma, fortalecia ambas.
Pensou na Lei dos Opostos.
– Percebe onde começa a Mortem? – Ela olhou para Gabe. O seu único
olho estava opaco, as veias enegrecidas, as extremidades necróticas. A pele
dos seus lábios encolhera, revelando mais dos dentes, fazendo parecer que
rosnara.
Monstruoso, como ela.
– Percebo – respondeu, num tom discreto e prático.
– Vamos então desenredá-la. Lentamente.
Trabalho hábil, trabalho cauteloso. Com as mãos ainda estendidas, Lore
torceu o dedo e o filamento negro a ele preso tremelicou. Lentamente,
rodou o dedo como se enrolasse de novo fio num carretel. A Mortem
desenrolou-se do assassino, de volta para ela. Sentiu os pulmões vazios, o
coração a ficar imóvel e fraco enquanto a canalizava através de si, dirigindo
depois os filamentos para o chão de pedra, direcionando morte para matéria
já morta. O chão era suficientemente grosso para aguentar sem ficar
demasiado instável.
Gabe fazia o mesmo ao lado dela, em silêncio, e notoriamente com
menos filamentos. Juntos, desfiaram a morte do homem diante deles,
desenrolando Mortem para libertar a essência de luz ainda no seio dele.
Durante todo aquele tempo, Lore contou com a voz incorpórea, com os
murmúrios que tanto soavam como ela ou como algo completamente
diferente. Mas nada surgiu.
Deveria ser reconfortante. Mas não foi.
Quando toda a morte se foi e a luz no cerne de Milo preguiçosamente
irradiou para o resto dele, Lore baixou as mãos, a arquejar. O coração dela
batia a custo; mais doloroso do que o habitual, um baque brusco que lhe
sacudia a caixa torácica. Lentamente, a sua visão monótona recuperou as
cores normais e ela viu o que fizeram.
Milo parecia normal de novo. Nitidamente mais saudável do que antes,
até. A sua pele tinha um brilho rosado; as veias que haviam sido de um
carvão puro, passaram a um cinzento esfumado, até regressarem ao azul em
alguns lugares. Tinha os membros frouxos e o punhal caiu-lhe da mão com
um estalido suave.
Os seus olhos tinham-se fechado a dada altura. Também a boca. Parecia
estar a dormir.
Gabe avançou, lambeu um lado do dedo e posicionou-o sob as narinas
do homem imobilizado.
– Está a respirar.
O alívio deixou Lore com as pernas trementes.
– Então, tratámos dele?
Gabe voltou-se, sem a olhar nos olhos, e avançou para o escritório. Os
braços de Bastian projetavam feixes de sombra sobre o brilho da lâmpada,
enquanto contava alguma história, e o riso tilintante de Mari infiltrou-se
pela fenda sob a porta. Ele não respondeu.

Milo não deu sinais de despertar, nem sequer quando Gabe e Bastian lhe
pegaram nos braços e nas pernas e o levaram do armazém. Mari sugerira
que o deixassem ficar numa das camas, mas Val recusara.
– Ele tem a cabeça afetada por veneno e há aqui muito para roubar –
retorquiu ela, e indicou que havia um armazém ao fundo do beco onde as
pessoas iam dormir depois de beber de mais. – Se se recordar de algo, com
sorte acha que é uma alucinação. Os deuses sabem que está bem habituado
a elas.
A resmungar, Gabe e Bastian arrastaram o peso morto do homem sobre o
empedrado áspero, a respiração deles gerando nuvens no ar. As botas na rua
e o sopro harmonizavam-se com o som suave da maré a chegar, sinos
distantes em proas de navios.
Val encaminhou-os por vielas estreitas, aproximando-se de um armazém
escuro, onde empurrou gentilmente a porta. Rangeu, mas se o som
despertou alguém no interior, ninguém se queixou. Bastian e Gabe
pousaram Milo no chão e partiram rapidamente, em silêncio. Ele nem se
mexeu.
– Vocês são muito sorrateiros – comentou Val assim que chegaram todos
ao exterior. – Já pensaram dedicar-se ao tráfico de veneno?
Gabe pareceu chocado, mas Bastian encolheu os ombros.
– Na verdade, nem por isso, mas nunca digas nunca. Embora a minha
atual agenda não mo permita.
– É uma pena. – Mari abanou a cabeça. – A nossa equipa nestes últimos
dias anda a perder elementos a grande velocidade.
– Detenções? – perguntou Lore, baixinho. As operações de Val podiam
ter passado recentemente à legalidade, mas os casacas de sangue eram
conhecidos por deter qualquer pessoa de que não gostassem.
– Se fosse assim tão simples… – Um riso expeliu vapor da boca de Mari,
enovelando-se no ar como fumo. – Os nossos mais leais ainda andam por aí,
tudo gente que conheces, ratinha, não te preocupes, mas os tipos mais novos
estão sempre a ser levados. – Prendeu com mais força o nó do lenço,
retorcendo os lábios. – Acho que receber o suficiente para pagar a renda por
um ano com uma noite de trabalho é uma proposta difícil de suplantar.
Todos registaram as palavras em simultâneo. Bastian arregalou os olhos.
Os lábios de Gabe formaram uma linha tensa. Lore sentiu o coração
acelerado.
– Estás a par das movimentações de carga?
– Carga – disse Val, num tom trocista. – É contrabando, só pode ser.
Ninguém paga tanto dinheiro para transportar algo legal.
– Oh, não tem nada de legal. – Mari resfolegou. – O Phillip deixou
escapar uns pormenores quando veio cá despedir-se e ao aperceber-se disso
até parecia que tinha assinado a própria sentença de morte. Tive de lhe
prometer pelas alminhas durante quase uma hora que não contava a
ninguém.
– Tem alguma informação sobre para onde o transportam? – Gabe
parecia estar a levar a cabo um interrogatório. Lore franziu-lhe o sobrolho.
Ele não lhe ligou. – Ou algo sobre quem está realmente a contratar?
Val lançou-lhe um olhar gélido.
– Creio que a Mari acabou de dizer que prometeu a um amigo não
revelar nada.
Lore sentiu a pele dos ombros a arrepiar. A última coisa de que
necessitava era de que Gabe se envolvesse numa discussão com Val. Estava
certa de que Gabe perderia.
Bastian, pelos vistos, pensou o mesmo.
– É evidente que nunca quereríamos que alguém voltasse atrás numa
promessa – interrompeu ele com um sorriso. – Peço desculpa pela
impertinência do meu amigo.
Se um olhar conseguisse pegar fogo a alguém, o olhar fulminante que
Gabe lançou a Bastian tê-lo-ia reduzido a cinzas.
Mari cruzou os braços e pensativamente mordeu o lábio.
– Isto é uma informação de que precisas, não é? – perguntou ela
baixinho a Lore. – Lá para o que te puseram a fazer na Cidadela. O que
significa que é mais do que apenas transportar contrabando.
– Sim – respondeu Lore. Nunca fora capaz de mentir a Mari. Ela
conseguia perceber tudo, mesmo quando tentava disfarçar.
As mães dela entreolharam-se.
– Podes contar-nos algo, Lore? – perguntou suavemente Mari.
Ela queria contar. Queria despejar tudo – os corpos, as mentiras, os
mistérios esotéricos que sabia ter de encaixar algures e o espectro da guerra
a pairar sobre tudo –, mas saber poderia representar a forca.
Eles podiam travá-lo. Ela, Bastian e Gabe, se ele ainda cooperasse com
eles depois disto. Não valia a pena deixar Val e Mari em pânico. Não
precisava de as envolver mais do que já estavam, pelo menos até não haver
outra alternativa.
– Não – murmurou Lore. – Lamento, mas não.
Ao lado dela, a mão de Bastian ficou tensa, ergueu-se um pouco no ar.
Como se fosse pousá-la no braço dela. Mas não o fez.
– Não tem mal, ratinha – disse Val. – Nós compreendemos.
Mari assentiu com a cabeça, uma sacudidela determinada com o queixo.
– Não sei muito – disse ela. – Mas só o pouquinho que o Phillip me
contou bastou para ele quase se mijar nas calças, por isso preciso de saber
que terás cuidado. Todos vocês.
– Claro – murmurou Bastian. Gabe assentiu com a cabeça. Lore também.
– Tudo o que sei – disse Mari com um suspiro –, é que o que quer que
andem a movimentar, está a ser levado para as catacumbas. Bem no fundo
nas catacumbas. Bem debaixo da Cidadela.
Capítulo 32

Todas as formas de afeto podem mutilar


mas um triângulo forma-se mais como uma lâmina.
– Letra de canção de bar

–A manhã à noite. – Bastian não se fingia despreocupado, já não. Tinha


as mãos apoiadas nas costas do sofá de Lore e Gabe, o cabelo caído
sobre a testa e a ensombrecer-lhe o rosto. – Tem de ser amanhã à noite. Não
podemos esperar mais. Se o fizermos, pode ser afetada outra aldeia.
– Os guardas não vão desconfiar? – Lore remexeu as brasas na lareira
com o atiçador prateado brilhante, soprando depois um pouco para as
acender. Ela ainda sentia a pele arrepiada de canalizar Mortem, um frio bem
infiltrado nos ossos. – Uma coisa é ir à socapa à cidade, outra
completamente diferente é irmos à socapa ao jardim secreto dos Presque
Mort com a sua entrada supostamente secreta para as catacumbas.
A mão de Gabe, a pairar junto do rosto dela conforme ele apoiava o
cotovelo na cornija da lareira, passou a um punho fechado. Ele mantivera-se
calado desde que Mari lhes contara das catacumbas, ao longo de toda a
caminhada de regresso à Cidadela e até aos aposentos deles. Ela espreitou
para cima para ele; a pala do olho enfrentou-a e a linha da boca nada lhe
revelou.
– Não, se levarmos um dos Presque Mort. – A expressão do Príncipe Sol
era ela capaz de interpretar bem… raiva e a expectativa de uma luta. – E
não se formos cuidadosos. A verdadeira questão é saber como vamos
encontrar os corpos assim que entrarmos nas catacumbas. Debaixo da
Cidadela não é grande ajuda.
Lore olhou para ele, mordendo a bochecha e desafiando-o a ver a
resposta a isso nos olhos dela. Estivera tão perto de contar a Gabe na viela a
verdade sobre o que ela era, mas isso fora antes de transformar Milo em
pedra, antes de Gabe começar a olhar para ela como se fosse o pecado em
forma de gente. Não queria revelar-lhe a verdade agora. Não queria revelar-
lhe nunca.
Bastian reparou no olhar dela. Compreendeu. Apontou o queixo na
direção dela.
– Mas vamos arranjar uma maneira.
– Como é que vais fazer isso? – Gabe não olhou para nenhum deles,
ainda a fitar o fogo que Lore despertara para a vida. A mão dele desistira da
luta contra um punho cerrado e dobrou os dedos para dentro, as
extremidades dos nós a projetar sombras no chão. – As catacumbas são
vastas.
– Eu arranjo um mapa – disse Bastian, como se fosse a coisa mais
simples do mundo. – Tem de haver um algures.
Lore esperava que Gabe o repreendesse pela resposta imbecil, mas, em
vez disso, o Presque Mort cerrou os dentes tal como fizera com a mão.
– E quando encontrarmos os corpos? – perguntou ele virado para as
chamas. – Como vai ser? O que fazemos com eles?
– Então – disse Lore brandamente –, pergunto-lhes como morreram.
Outra vez.
Uma careta repuxou a boca de Gabe para baixo. Não necessitou de
revelar o que o incomodava; todos recordavam o que acontecera ao
primeiro cadáver que ela despertara. Aquele que lhe dissera para procurar
os outros. A noite matou-me.
Lore remexeu-se para poder puxar os joelhos até ao peito, um escudo
improvisado.
– Agora sei como corrigir as coisas – murmurou, refutando aquilo que
Gabe não dissera. – Se eu… sem querer fizer outra vez com que dure.
Gabe retesou-se. Ela fingiu não reparar. Um silêncio gelado abateu-se
sobre a divisão, com a desconfiança a cristalizar nos cantos.
Doía, mas, em parte, o que a espantava era a demora. Não era suposto
Gabe ter chegado sequer a confiar nela. Poderiam conter a mesma
monstruosidade, mas não era uma parcela igual, e a dele era assumida como
uma espécie de honra.
A dela não passava de uma maldição.
– A propósito – disse Bastian –, provavelmente também será hora de o
Claude repousar. Depois de tudo isto terminar, claro. Devemos dar-lhe um
enterro adequado. Eu falo com a florista.
Os olhos dela deslizaram para os dele. Ele mostrou-lhe um leve sorriso,
pesaroso. Tentando aquecer o gelo que se formara, mas nem o sol de
Bastian conseguia fazer derreter o frio do inverno.
O silêncio reinou por mais uns minutos, daquele que deixa as pessoas
cativas, temendo o que pode vir pela frente, mas incapazes de escapar.
Por fim, Gabe endireitou-se, olhando primeiro para Bastian e a seguir
para Lore.
– Isto, partindo do princípio de que a Mari não está a mentir.
O tom dele deixava-o bem claro – estava a iniciar uma discussão e não
se importava.
Lore poderia ter travado aquilo. Poderia ter deixado as palavras assentar,
não permitir que fossem o catalisador que Gabe aparentemente desejava.
Mas não tinha paciência para isso.
Lentamente, levantou-se, de costas direitas e cabeça inclinada para poder
nivelar o olhar dela com o dele.
– Está a chamar mentirosa à Mari?
– Não tenho motivos para pensar que não o seja – respondeu Gabe. A
vontade de discutir já desaparecera da sua voz; estivera ali apenas para a
ignição. Agora, já ardia e ele manteve-se inexpressivo, como se fosse
superior a isso. – Ela é traficante de veneno.
– Também eu era – rosnou Lore.
Gabe inclinou a cabeça.
– E vê como tens sido leal para a coroa que te resgatou da tua vida de
crime.
Ela esbofeteou-o.
O som estrondeou pela sala como se fosse um disparo de pistola,
igualmente forte. A cabeça de Gabe foi sacudida para o lado, com a marca
dos dedos dela a surgir a escarlate na bochecha dele, mas ele não abriu a
boca, virando-se de novo para ela assim que a inércia o permitiu.
Atrás do sofá, Bastian nada fez. Os olhos dele mantinham-se fixos em
Lore, semicerrados e calculistas.
– Pode ser uma armadilha. – Ainda naquela voz grave e inexpressiva,
enquanto o rosto de Gabe ardia com o rubor da bofetada. – As tuas velhas
amigas podem estar a tentar atrair-te às catacumbas.
– Porque é que haveriam de o fazer? – Ele não sabia o que haveria lá em
baixo. Quem. Se alguém a queria de volta às catacumbas, não seria Val ou
Mari. – Têm documentos de August. Agora trabalham legalmente. Isso
altera a sua opinião? Faz com que pareçam mais leais?
– Não – respondeu Gabe. – São só mais fáceis de comprar.
– E disso percebe bem, certo, Duque Remaut?
O seu único olho refulgiu, como se uma brasa bem no fundo dele tivesse
finalmente faiscado.
Bastian falou, uma voz tranquila, mas veemente.
– Acho que isto é mais do que um simples desejo de proteger a nossa
necromante latente, não é, Gabriel?
Gabe espreitou para ele, e desviou o olhar. Teria sido desdenhoso, não
fosse a fúria visível no seu olhar.
– A Igreja proíbe a entrada nas catacumbas sem uma autorização
especial – prosseguiu Bastian. – Que, desconfio eu, nunca obteríamos. Eu
entendo, meu amigo. Sentes como se tivesses já uma série de pecados e não
quero atirar-te mais um para cima. – Algo semelhante a desdém transbordou
do seu tom descontraído. – O que diria disso o Anton?
Um músculo retesou-se no maxilar de Gabe. Ele nada disse.
– Eu e a Lore vamos – disse Bastian, com um ar de quem punha um fim
à conversa. – Conheço o caminho até ao jardim de pedra. Somos ambos
suficientemente espertos para lá chegar sem sermos apanhados. Vamos
descobrir o que se passa e os farrapos da tua honra não serão mais
esfiapados. Sei o quanto os estimas e te agarras a eles.
Gabe permaneceu em silêncio, imóvel como o homem que Lore
transformara em pedra. Fitou o fogo como se este lhe pudesse revelar algo
enquanto Bastian se endireitava e preparava para partir.
– Amanhã à noite – anunciou Bastian a Lore por cima do ombro
enquanto puxava a porta para a abrir. – Venho aqui ter.
E saiu, misturando-se com as sombras do corredor. A arandela do
Coração do Deus Sangrante na parede em frente desaparecera por completo,
cera de vela a pingar sobre os braços dourados como osso derretido.
Depois de Bastian partir, Gabe olhou para ela. Olhou apenas, não falou,
não se mexeu. O rosto dele estava inexpressivo, desprovido de qualquer
emoção, embora aquele calor a arder em fogo lento ainda não se tivesse
extinguido.
Ele vira-a a canalizar Mortem, vira-a a despertar os mortos. Isso ele tinha
perdoado, deixado para trás; apesar disso, continuara a encará-la como uma
pessoa. Mas transformar um humano em pedra – enviá-lo para um lugar
entre a vida e a morte – fora a gota que tinha feito transbordar o copo.
Gabe acreditava na vida depois da morte. Acreditava na miríade de
infernos, no Reino Iluminado. Quando abordaram o assunto no jardim, tudo
fora em abstrato, um exercício intelectual. Mas ele acreditava que ela
enviara Milo para a sua recompensa eterna, para depois o arrancar de novo
de lá. E isso tornava-a o tipo de monstro que ele jurara não vir a ser.
Lore engoliu em seco. Sentia os olhos a arder e isso deixava-a
terrivelmente envergonhada, a transbordar de uma fúria que lhe turvou
ainda mais a visão. Malditos sentimentos. Maldito coração, ainda a querer
ser encarado como bom quando isso nunca foi sequer uma opção.
– A sério? – Soou baixinho e rouco. – Vai ficar aí sem dizer nada? Vai
deixar as coisas assim?
Ele ficou ali. Não disse nada. Deixou as coisas assim.
Lore correu para o seu quarto e bateu com a porta depois de entrar.

O sono custou a vir, mas, quando veio, passou-lhe por cima como uma
onda negra. Nada de sonhos, felizmente. Apenas descanso, uma imensidão
vasta e vazia.
Ainda assim, quando a porta deu um estalido ao abrir, Lore despertou de
imediato.
Sentou-se na cama, o sono quebrado como uma tábua frágil,
completamente desperta durante o tempo que a cabeça levou a erguer-se da
almofada. Encontrava-se alguém na soleira da porta, a silhueta traçada pela
luz do fogo, alto, de ombros largos e cabelo curto.
Gabe.
Continuou sem falar. Tal como ela. Ele nem sequer se mexeu, mas Lore
rodou vagarosamente as pernas e pousou os pés no chão, caminhou na
direção dele até o peito dela e o dele ficarem separados apenas pela largura
de uma mão. Ele estava quente; o calor irradiava dele como se do fogo se
tratasse, chamando pelo frio dela.
Não parecia real. Não em plena noite, quando a luz sumiu e os
pensamentos se tornaram turvos, horas irreais destinadas ao sono. Não
parecia real e foi por isso que as mãos de ambos se ergueram praticamente
ao mesmo tempo. As dela pousaram no peito despido dele; as dele na nuca
dela, dedos a enredar-se no emaranhado do cabelo castanho-dourado dela.
Nada de palavras, nada de sons além da respiração deles. Então, ele
curvou-se para a frente e ela ergueu o queixo para ir ao encontro dele, bocas
colidindo em calor e necessidade.
Gabe não a beijou com sedução. Beijou-a esfaimado, uma fome nascida
de votos desadequados, de raiva e de desejo. Ela conseguia sentir os dentes
dele nos seus lábios, a língua a deslizar insistentemente contra a dela, e o
gemido que zumbiu na garganta dele não foi artificial. Ela sentia o calor a
acumular-se entre as suas pernas; a boca de Lore abriu-se, querendo mais,
saboreando a intensidade quase animalesca dele.
Ele empurrou-a mais para o interior do quarto; ela sentiu o parapeito da
janela a cravar-se ao fundo das costas, uma dor aguda que Gabe aliviou
erguendo-a para que se sentasse lá. Ela envolveu-lhe a cintura com as
pernas; ele percorreu-lhe o pescoço com sucessivos beijos.
– Deus Sangrante – blasfemou ele encostado à clavícula dela, com uma
voz rouca e áspera. – Pelos deuses mortos e moribundos.
Ela sentiu-o a pressionar-lhe o centro, o que a fez arquejar quando ele
puxou o ombro do roupão para o lado, beijando a pele despida enquanto a
mão lhe moldava o seio. O polegar dele deu com o pico do mesmo,
retesado; rodeou-o ao de leve e Lore arquejou de novo, chegando-se ainda
mais, o pensamento consciente a recair numa dor vaga e num fogo que com
as chamas afastava tudo o resto.
Quando a boca dele deu de novo com a dela, Lore deitou a mão ao cinto
de Gabe.
Ele estacou, uma mão no seio dela, a outra embrenhada no cabelo. Os
lábios dele descolaram-se dos dela e então as mãos dele baixaram,
agarrando ambos os lados das ancas dela sobre o parapeito.
Ficou tão frio, com ele afastado. O vidro fazia pressão nas costas dela,
gelando-lhe os pensamentos.
Gabe encostou a testa à dela. Nenhum deles falou, antes deixando-se
ficar parados por momentos, partilhando a respiração e o conhecimento de
que o que quer que tivesse estado prestes a acontecer já não ia acontecer.
E então ele afastou-se do quarto, desaparecendo na escuridão. A porta do
quarto abriu-se, o corpo dele tapando o feixe estreito de luz, e fechou-se de
novo.
Lore recostou-se contra a janela e deixou que o frio se lhe infiltrasse até
aos ossos.
Capítulo 33

Segura bem as rédeas do teu corpo, pois este irá levar-te à


ruína.
– O Livro da Lei da Morte, Opúsculo 67

E ladevido
acordou tarde na manhã seguinte, dorida e cansada, os olhos a colar
ao sono. A noite passada pareceu-lhe um sonho e poderia ter-se
convencido de que o era, não fora a leve pisadura no ombro. Um lugar onde
o controlo de Gabe falhara, prova violeta da iminência de um pecado.
Lore franziu a testa e subiu o roupão de repente. O controlo dele acabara
por levar a melhor. E por muito que, no momento, isso tivesse sido
frustrante, em parte sentia-se grata. A luz do dia a entrar pela janela afastou
fantasias vãs, tornando tudo claro, real e simples.
As coisas já eram suficientemente complicadas sem tudo isso.
A vergonha gerou-lhe um nó apertado na barriga, mas Lore manteve o
queixo numa postura altiva ao empurrar a porta para a abrir. Gabe
comportar-se-ia como se nada tivesse acontecido; ele iria permitir que assim
fosse. Era mais simples.
Porém, quando a sala de estar se abriu diante dela, encontrava-se vazia.
O ninho de Gabe fora reagrupado numa pilha de mantas cuidadosamente
dobradas deixada no canto do sofá.
Então, ele partira antes de ela se levantar. Ótimo. Simples, fácil.
Fácil como o raio dos deuses mortos e moribundos.
Uma bandeja com o pequeno-almoço cintilava sobre a mesa atrás do
sofá. Havia um bilhete enfiado sob a borda da bandeja, palavras curtas com
uma escrita elegante.
A noite passada deixou-me com fome. Calculo que tenha tido o mesmo
efeito em ti. Repousa. – Bastian.
Era certo que não fora ele a levar o pequeno-almoço, pelo que o duplo
sentido do bilhete teria sido para escapar a possíveis olhos curiosos. Lore
contorceu os lábios. Toda a Cidadela achava já que ela andava a dormir com
o Príncipe Sol; mais valia aproveitar isso.
Em especial se naquela noite iam sozinhos até ao jardim de pedra. Um
encontro amoroso seria uma desculpa conveniente se fossem apanhados.
Pensar em amantes e no jardim de pedra naturalmente levou a sua mente
até Gabe. Lore destapou a bandeja com um tinido e lançou-se à fruta e aos
pastéis, recusando-se estoicamente a pensar nele, a pensar na noite passada
e naquilo que quase tinham feito.
Nada, disse a si mesma, dando uma dentada numa tarte de cereja. Não
significa nada de nada.
Quando a bandeja ficou quase vazia e ela se serviu de uma chávena de
café para empurrar a comida, sentou-se no sofá com um suspiro.
Repousa, dizia o bilhete de Bastian, algo que ela entendeu como um
código para fica no teu quarto. Provavelmente, uma boa ideia. Se se
mantivesse longe dos cortesãos, haveria poucas hipóteses de ser
questionada por Bellegarde ou alguém mais que pudesse ter uma ligação
aos corpos nas catacumbas.
Teria de despertar um desses corpos esta noite. Sentiu um arrepio na
nuca só de pensar nisso.
Pelo menos, agora sabia com o que contar. A boca aberta, sem se mover,
os sussurros. Esperava apenas que desta vez o cadáver dissesse algo
prestável.
Lore deixou cair a cabeça nas mãos com um gemido de frustração.
Estava presa no quarto, onde nada havia para fazer. Nada, exceto aqueles
livros de poesia erótica que trouxera da biblioteca dourada. Explorar os
salões com Gabe, rindo do ridículo da Cidadela, parecia uma memória
longínqua.
Com outro longo suspiro, teatral como se alguém conseguisse ouvir,
Lore levantou-se e foi buscar os livros à mesa de cabeceira, levando-os
então para o minúsculo estúdio à direita da porta. Sentou-se na única
cadeira à escrivaninha, pousou uma perna sobre o braço da mesma e abriu o
livro numa página aleatória. O poema parecia ser sobre um sacerdote que
esquecia os seus votos a troco dos favores de uma amante de peitos
generosos.
– Que irónico – murmurou Lore.

Quando o seu estômago roncou com insistência suficiente para não


bastarem mais uns pastéis para o satisfazer, Lore desobedeceu ao Príncipe
Sol. Vestiu-se, abandonou o quarto, quase batendo a porta atrás dela, e
começou a descer as escadas serpenteantes até ao salão principal.
A mesa comprida estava posta com tantas iguarias como antes. Uma
fonte de vinho gorgolejava ao centro, rodeada por vegetais, pão e carne,
incluindo a odiada pavoa de Bastian. Lore serviu-se de uma grande pratada,
parecendo-lhe ser despeito tanto quanto fome.
– Lore!
Alie. Naquele dia, usava um vestido cor de laranja claro, a combinar
com os ganchos com pedras preciosas que sustinham os caracóis brancos do
seu cabelo. Parecia uma borboleta, algo destinado ao ar e a voar.
Lore permitiu-se ser abraçada. Um toque afetuoso que nada exigiu da
parte dela criou-lhe um mortificante nó na garganta; Lore engoliu-o.
Alie manteve as mãos nos ombros de Lore quando se afastaram, com
uma sobrancelha soerguida.
– Por favor, diz-me que foste convidada para o baile do eclipse e para o
jantar a seguir? Se não foste, será um tédio terrível. Pelo menos, calculo que
seja. Na verdade, nunca fui a nenhum. – Desatou aos risinhos. – O meu pai
sempre insistiu para que assistíssemos a vigílias noturnas no santuário
durante os eclipses. Esta é a primeira vez que nos deixa fazer algo mais
animado.
Seria má-educação enfiar pão na boca para evitar uma resposta. Ainda
assim, Lore chegou a pensar nisso por momentos.
– Sim, fomos convidados – acabou por responder.
Só se apercebeu do erro de utilizar o plural quando os olhos de Alie se
iluminaram. Nós, referindo-se a ela e Gabe. Gabe, por quem Alie ainda
nutria um sentimento especial. Gabe, que fora ao quarto de Lore e a beijara
como um moribundo antes de desaparecer.
O sorriso dela foi muito difícil de disfarçar.
– Oh, graças a todos os deuses. – Alie deixou cair as mãos; rodou um
pouco para pegar numa maçã, que limpou ao vestido antes de a trincar. – Se
tivesse de passar toda a noite com o rei e o meu pai, iria enlouquecer.
– Vão ser eles os únicos presentes? – Lore agarrou com mais força o
prato, o sabor a pavoa de súbito desaparecido. – O August e a tua família?
Se assim fosse, destruiria qualquer oportunidade de ser uma
coincidência.
Alie levou um momento a engolir, não se mostrando disposta a falar com
a boca cheia de maçã. Modos elegantes.
– Não, propriamente – disse ela, após bebericar um pouco de vinho para
empurrar. – Há mais umas quantas pessoas convidadas para o baile. Quanto
ao jantar: o Anton estará presente, claro. E mais uns quantos. Mas vai ser
um evento discreto, pelos vistos. Muito exclusivo. – Inclinou-se uma pouco
mais para ela, como se não desejasse ser ouvida por terceiros. – A Bri não
foi convidada para o jantar, apesar de a Dani e a família dela terem sido.
Não que a Bri se queixe. Vai haver uma grande festa na propriedade do
Fabian Beauchamp no exterior da cidade, por isso ela vai de carruagem até
lá depois do baile. – O anseio com que proferiu as palavras indicou que
mais desejaria estar numa festa do que com August. Lore não tinha como
censurá-la.
– Mas vamos divertir-nos, se tu, eu, o Gabe e o Bastian estivermos todos
presentes. – O sorriso de Alie ampliou-se ligeiramente ao proferir o nome
de Gabe. – O Bastian é capaz de animar mesmo as cerimónias mais
entediantes da corte. Há de garantir que não é uma seca. – Bebeu mais um
gole de vinho e afastou-se. – Tenho de ir à minha aula de piano, mas envia-
me um bilhete quando tiveres uma tarde livre! Ainda temos de jogar a
desforra do croquet, espero que andes a treinar!
A seguir, afastou-se, serpenteando por entre os cortesãos na sua
elegância vespertina, deixando Lore com um prato cheio de comida que na
verdade já não queria, mas que não conseguia desperdiçar. Com um suspiro,
encetou o regresso ao seu quarto.
Fosse o que fosse o baile do eclipse, estava certa de que não seria uma
seca.
Lore avançou rapidamente até às escadas alcatifadas de acesso ao seu
torreão, com a cabeça inclinada. Portanto, não viu August até o Rei Santo
pigarrear.
Estacou, com as mãos ocupadas com o prato de porcelana cheio de
vegetais. Sentiu uma onda de pânico a espalhar-se pelo peito; baixou a
cabeça e dobrou os joelhos numa vénia mal-amanhada, escondendo a cara
para não mostrar o seu pânico.
– Vossa Majestade.
Ele tinha um ar… horrível. Notavam-se profundas olheiras em redor dos
olhos, a sua pele estava lívida e com um ar pegajoso, como se tivesse sido
recentemente acometido por febre. Tinha os ombros ligeiramente curvados,
mas isso não tornava a sua presença menos imponente, e ela deu por si a
endireitar-se enquanto ele semicerrava os olhos.
August não perdeu tempo com amabilidades.
– Tens passado tempo com o meu filho?
A boca dele contorceu-se ao articular a palavra filho, como se fosse algo
nojento que tivesse de cuspir.
– Claro, Vossa Majestade. – Lore assentiu com a cabeça, franzindo as
sobrancelhas. – Seguimos à letra as suas ordens.
Tendo em conta que as ordens nunca se tinham tornado mais específicas,
ela nem sequer mentia.
– Ótimo. – O rei remexeu na sua cintura, retirando do seu gibão o cantil
fino e bebendo uma boa golada. – Haverá uma decisão em breve. O filhote
vai finalmente ter aquilo que merece.
A seguir, o Rei Santo passou por ela, com o hálito a tresandar a
beladona. Não se despediu.
Lore ficou por momentos a olhar para ele antes de, sem forças, subir os
degraus até ao seu quarto.

Lore sentou-se à janela à espera de que o céu escurecesse. Havia uma


mancha no vidro que não estava lá na véspera; ou fora do tecido amarrotado
com suor ou de uma mão. Esfregou-a enquanto o relógio de parede ia
rodando, aproximando-se cada vez mais da meia-noite.
Gabe ainda se encontrava ausente. Desistira de o tentar ouvir nos
vestíbulos. Pensou se teria regressado ao seu claustro. De regresso às
paredes que o manteriam a salvo de si próprio, de tudo aquilo que lhe fora
ensinado que era pecado. Por certo Anton iria ceder depois de ele confessar
que quase violara os seus votos por causa de uma necromante traficante de
veneno.
Isso gerou-lhe uma dor nas entranhas tão cortante como uma baioneta.
Lore tentou convencer-se de que não fazia sentido. Não era propriamente a
primeira vez que o fazia – brincar entre o quente e o frio, acabando por se
decidir pelo frio. Não precisava de ter um significado.
Mas, ainda assim.
Abanou a cabeça numa tentativa de o afastar da mente, fechou os olhos.
Mais valia gastar o seu tempo a preparar-se efetivamente para o que
aconteceria à meia-noite, em vez de se preocupar com um monge que
aparentemente entendera que ela não era merecedora da sua questionável
salvação.
Em vez disso, concentrou-se na sua floresta, a parede que erigira em
redor da mente para manter no exterior a consciência da morte. Concentrou-
se em troncos chegados e ramos entrelaçados e no subtil ziguezaguear de
fumo por detrás das árvores, preto em contraste com o céu azul, denso
como se algo já ardesse.
O ponteiro dos minutos avançou para o doze. Assim que alcançou o seu
zénite, bateram à porta.
Lore levantou-se. Tentou não pensar no que a aguardava lá em baixo no
jardim de pedra, onde nas catacumbas fervilhava a escuridão.
Bastian encontrava-se no corredor, completamente vestido de preto. A
lumieira do Coração do Rei Sangrante encontrava-se cheia de velas na
parede atrás dele, realçando-o com uma luz demoníaca e ocultando os
caprichos da sua expressão. Mas conseguia ver-lhe os olhos, um brilho
sombrio, e não havia lá qualquer diversão. O Bastian desta noite não estava
para brincadeiras.
– Pronta para uma conversa com os mortos?
– Tanto quanto possível. – Lore saiu para o vestíbulo e fechou a porta
com cuidado. Por detrás do brilho da lumieira, o corredor voltava a ser
tomado pelas sombras.
– Pelo que vejo, o Gabriel decidiu não se juntar a nós? – Bastian
acompanhou-a ao seu lado.
– Exato. – Lore olhou pelo corredor; a escuridão era preferível a
conversar sobre Gabe. – Não o vejo desde a noite passada.
– Hum. – Bastian não fez mais perguntas.
Ultrapassou-a ao chegarem à bifurcação no corredor, pondo-se diante
dela para liderar. A rota que tomaram para se infiltrarem no complexo das
traseiras e através da galeria seria demasiado óbvia naquela noite.
Ela pensou no encontro com August, a beber veneno e quase a parecer
um cadáver. O filhote vai finalmente ter aquilo que merece.
Em abstrato, sabia que August odiava Bastian. Mas presenciá-lo – puro
ódio e não um desprezo velado por detrás de falsa preocupação – gerou um
sentimento profundo de pena, uma pena que sabia que Bastian dispensaria.
Ainda assim, sentia-a. Custara-lhe imenso quando Val a entregara a Anton;
não imaginava como era possível viver sabendo que o próprio pai desejava
a nossa morte.
– Sente-se bem? – murmurou ela nas costas de Bastian quando viraram
para um corredor desconhecido. Havia tapeçarias grossas penduradas nas
paredes, abafando-lhe a voz. Sóis e estrelas esculpidos rodavam pelo teto
num dourado a três dimensões.
Ele espreitou por cima do ombro, com a sobrancelha bem arqueada.
– Sim, andar pelos salões às escondidas não é algo que me cause grande
confusão.
– Eu queria dizer… – Acenou com a outra mão, franziu os lábios. – Com
tudo.
Ele dispensaria a pena dela, mas queria dar-lhe algo. Um lugar que
oferecesse suavidade, se ele a quisesse. Ternura não era algo que lhe
surgisse com facilidade, mas tentaria.
Um brilho no olhar dele; ele compreendeu, apesar do embaraço dela.
Bastian encolheu os ombros, virando-se para trás.
– Eu – disse com determinação – cá me vou aguentando. – Retirou algo
brilhante do bolso: um cantil, que inclinou rapidamente para a boca, para
depois lho passar sem olhar para ela.
Lore pegou nele. Cheirou apenas o suficiente para ter a certeza de que
não continha nem um toque de veneno e bebericou. Uísque, suficientemente
forte para quase a deixar a tossir.
– Belo método para se ir aguentando.
– Não podia haver melhor. – Bastian voltou a pegar no cantil. O corredor
bifurcou-se; ele seguiu pelo caminho da esquerda, mármore reluzente. –
Mantém-te junto à parede. Há uma piscina comprida no meio do chão ao
longo deste corredor.
– Quem é que achou que isso era boa ideia?
– Algum antepassado meu com demasiado dinheiro e pouco gosto. Por
isso, poderá ter sido qualquer um deles.
O corredor de gosto duvidoso terminou, alargando para um átrio repleto
de flores noturnas sob um teto abobadado em vidro. Era lindo e Bastian
abrandou o passo. Lore alinhou. Não estava com pressa.
Reconheceu umas quantas flores: – heléboro, da cor de sangue seco;
figueira-do-inferno, subindo uma treliça de madeira para abrir flores
serpenteantes para a lua; venenos que conhecia, venenos que qualquer um
fora da Cidadela seria detido por plantar, e aqui serviam apenas de
decoração.
– O meu pai é um homem mau.
Ela desviou o olhar do heléboro – Bastian não olhava para ela,
mantendo-se parado de mãos nos bolsos e cabeça inclinada para a lua, como
se ele próprio fosse uma flor venenosa noturna.
– Isso facilita as coisas – disse ele baixinho. – Facilita o ter de lidar com
o facto de me querer morto. Talvez isso até faça de mim bom. – Um
resfolegar, os olhos a fechar conforme inclinou a cabeça mais para trás. – A
Lei dos Opostos, certo? Se um homem mau me quer morto, isso faz de mim
bom. No sentido mais técnico.
Não parecia tratar-se de uma conversa com mais do que um participante.
Lore limitou-se a olhar para ele, cheirando o veneno doce e percorrendo as
linhas do rosto dele com os olhos. Demasiado atraente, pensara ela antes,
mas ao luar Bastian detinha o tipo de beleza que despedaçava corações.
O ar em redor dele quase parecia brilhar, pó dourado na escuridão. O
luar tornava-o bonito, sem dúvida, mas do mesmo modo que a escuridão
enfatizava uma chama. Ele não pertencia àquele lugar; Bastian Arceneaux
era a antítese da noite.
– A minha mãe também não era boa – murmurou ela.
O olhar dele deslizou para ela, um convite subtil para que prosseguisse,
mas Bastian mantinha o rosto apontado ao céu.
– Depois de eu ter nascido… depois de todas as Irmãs da Noite terem
percebido o que eu conseguia fazer… manteve-se distante. Não me lembro
sequer de alguma vez me ter tocado com afeto. – O nó que sentia na
garganta gerado pela aceitação do abraço de Alie tentou regressar. Ela
engoliu em seco, uma vez mais, massajou o pescoço como se conseguisse
afastá-lo fisicamente. – Nessa altura, dedicava-se por completo às Irmãs. À
missão dela, a impedir que a Deusa Sepultada voltasse a despertar.
Vai, dissera ela, empurrando Lore para a luz do dia cortante enquanto
ainda lhe doía a mão da marca que lhe gravaram, uma ave a expulsar um
passarinho do ninho. Se calhar não seria totalmente dedicada. Mas o
suficiente.
– Havia algo em mim… – Neste ponto, a voz de Lore soçobrou e fez
uma pausa até se recompor. – Havia em mim algo de errado. Algo que ia
contra tudo aquilo a que ela dedicara a vida.
Lore não se apercebera que fitava fixamente a mão com a lua gravada
até esta ser tapada pela de Bastian. Ele avançara na direção dela, discreto
como uma sombra, e envolveu os dedos dela com os seus. Ela sentia os
traços da sua cicatriz encostada à dele, os riachos agora sarados de um meio
sol.
– Eu entendo – murmurou Lore, fitando as mãos dele. – As pessoas são
diferentes e só o facto de se pertencer à família de alguém não significa que
sejam boas umas para as outras. Mas ela era tudo o que eu tinha e olhava
para mim como se fosse um monstro. – Lore fechou os olhos, por
momentos, e inspirou fundo. Olhou para cima para ele. – Mas ela não me
quis morta. Salvou-me. Levou-me para a boca das catacumbas quando o
resto das Irmãs queria enviar-me para o túmulo da Deusa Sepultada.
Ergueu o canto da boca, um sorriso débil.
– Isso já é qualquer coisa.
Pararam no átrio durante uns momentos, mãos entrelaçadas, a cicatriz
dela a roçar na dele. Pelo canto do olho, Lore viu algo como uma névoa a
enredar-se em volta deles, uma dança de trevas e dourado, brilho
transformado em fumo. Mas talvez fossem apenas lágrimas ocultas que ela
não se permitia derramar; quando tentou concentrar-se no brilho estranho,
ele desapareceu.
– Bem – disse por fim Bastian. – Ainda não morremos. – Soltou-lhe a
mão e avançou, na direção da porta do átrio.
Sem abrir a boca, Lore seguiu-o.
Para lá do átrio, Bastian encaminhou-a por um lanço de degraus estreitos
e a seguir a isso os corredores aos poucos tornaram-se mais familiares.
Circularam até chegar ao piso principal, rumando à frente da Cidadela e não
às traseiras. Lore ouviu cortesãos, risinhos e vozes suaves e gemidos de
amantes, mas não viram ninguém.
Até aparecer o casaca de sangue ao fundo do corredor.
Bastian foi rápido; agarrou o braço dela e puxou-a para uma alcova
recuada que enquadrava uma janela. Não havia uma cortina que a fechasse,
nem as havia em qualquer outra ali perto.
– Merda – disse Lore entre dentes. – Merda, merda, merda.
– Tento nessa língua de contrabandista. – Bastian apoiou as costas no
arco da alcova; olhou em volta, estimando a distância entre eles e o guarda.
Os olhos dele voltaram a incidir nela, sombrios e sérios. – Nós vamos
passar por ele, mas tens de acompanhar-me.
– Muito bem, força.
– Beija-me.
Ela arregalou os olhos. O som das botas do guarda aproximou-se.
– Oh, vá lá – murmurou Bastian, revirando os olhos enquanto lhe
agarrava o braço, a puxava para si e colava os lábios nos dela.
Lore fez um leve som na garganta antes de perceber que Bastian não
estava efetivamente a beijá-la. Sim, as bocas deles estavam unidas, mas ele
não se movia, não tentava aprofundar aquele abraço ligeiro e técnico. A
mão dele apertou-lhe a anca, a outra cingia-lhe o pulso, ainda levantado
onde ele a agarrara.
Lentamente, Lore deixou a mão assentar no ombro dele, percebendo o
que aquilo era, o que ele fazia. Dois cortesãos aos beijos no vestíbulo à
meia-noite seria uma cena comum, nada que levantasse suspeitas. O guarda
passaria por eles sem reparar.
Bastian inclinou a cabeça para que os rostos deles não se vissem desde o
vestíbulo, os caracóis do cabelo a tombarem sobre a face dela. Os lábios
dele apartaram-se dos dela, apesar de ainda se encontrarem suficientemente
perto para roçarem ao falar.
– Eis a nossa traficante de veneno – disse ele suavemente. – Lesta a
reagir.
O hálito dele cheirava a folhas de menta. A expiração dele era a inalação
dela. Ele era demasiado, estava demasiado próximo, inescapável, e o raio
do guarda caminhava tão devagar.
Botas em aproximação. Passaram. Nem sequer uma pausa. Lore e
Bastian aguardaram na alcova, bem colados um ao outro, a respirar o
mesmo ar até ela se sentir zonza. Os rostos deles estavam demasiado
próximos para ela lhe distinguir a expressão por completo, mas via-lhe a
curvatura do sorriso, e era quase selvagem.
Quando as botas deixaram de ecoar, Bastian afastou-se, apoiando a
cabeça na parede. Manteve as mãos nas ancas dela.
– Pronta?
Lore assentiu. Recuou. Bastian encaminhou-a de novo para as sombras e
nenhum deles falou.
Mas ela pensou naquele não-beijo e em como tinha havido um momento
em que sentiu uma alteração no controlo dele, levando a que efetivamente a
beijasse se sentisse que da parte dela haveria interesse.
E ela não sabia se haveria ou não.
Por fim, uma porta estreita e discreta, instalada entre naves dominadas
por pequenas estátuas do Deus Sangrante, o peito vazio e mãos pejadas de
pedras de granada. Bastian rodou a pequena maçaneta de ferro forjado.
– Tenha a bondade.
Lore saiu para a erva macia. À direita dela, as paredes do jardim de
pedra brotavam do relvado aparado, blocos grosseiros de escuridão ao luar.
Não havia ninguém por perto, sendo o único som o vento a assobiar por
entre as flores de pedra, fazendo pressão contra as pétalas de granito.
Aproximaram-se do portão. Bastian remexeu na fechadura por um breve
momento antes de esta deslizar e se abrir, indicando depois com a cabeça
para ela entrar.
O jardim revelara-se estranho, mas belo, da primeira vez que Gabe a
levara ali – ao luar, era de uma beleza sinistra. As rosas de pedra
projetavam sombras sólidas sobre as pedras do caminho, a escuridão a
furtar a cor a tudo, deixando o cenário cinzento, até as plantas que ainda
não tinham sido transformadas pela cuidadosa aplicação de Mortem.
E, atrás, no centro do jardim… o poço, frio e escuro, que dava acesso às
catacumbas.
Bastian aproximou-se com cautela. A tampa circular estava pousada em
cima, mantida no lugar pela estátua de Apollius. Ele agarrou-a, puxou-a e
fez um esgar.
– É pesada como o raio.
– A ideia era essa – ouviu-se uma voz conhecida junto ao portão.
Lore virou-se.
Gabe
Ao vê-lo, Lore paralisou, mas Bastian praticamente não reagiu.
Endireitou-se do ponto onde estava apoiado na estátua, sempre gracioso.
– Gabriel – disse ele num tom descontraído. – E eu aqui a pensar que não
querias juntar-te a nós. O que te fez mudar de ideias?
Bocas e mãos e apalpadelas às escuras. Lore sentiu o rosto a ruborizar.
Gabe não olhou para ela. Com os braços cruzados sobre o peito, o couro
preto da sua pala a absorver a luz, fazendo com que esse seu lado da cara
parecesse perdido num vazio.
– O que me fez mudar de ideias – disse ele –, foi a certeza de que se não
estivesse aqui, sem dúvida que ias arranjar maneira de fazer merda.
– Ouçam só o Mort. – Bastian rodou o pescoço, sacudiu os ombros. –
Daqui a nada vamos ver-te a renunciar aos votos.
Ela sentiu-se grata pela escuridão. O calor nas faces seria capaz de
acender o raio de uma vela.
Bastian apontou com a cabeça para o poço.
– Então, que tal uma ajudinha? – Voltou a empurrar a estátua, movendo-
a sobre a plataforma de madeira na direção do muro do poço.
Com um suspiro resmoneado, Gabe avançou, o seu ombro a roçar em
Lore ao passar por ela. Ela não se moveu, para o desafiar. O modo como o
olhar dele incidiu nela revelou que foi entendido como tal.
– Onde esteve? – quis saber Lore.
– A pensar. – A linha do seu maxilar era tensa, projetando uma sombra
profunda no pescoço dele.
– E chegou a alguma conclusão interessante?
Ele por fim olhou para ela. Virou-se de maneira a que o seu olho azul
incidisse nela como um farol numa costa rochosa, perigo e segurança em
simultâneo.
– Cheguei à conclusão de que não podia permitir que fizesses isto
sozinha.
– Tenho o Bastian. – A verdade, assim como uma arma e a recordação da
respiração partilhada numa alcova. – Nunca iria fazer isto sozinha, Gabriel.
Só não ia fazê-lo consigo.
Um músculo no maxilar dele retesou-se.
– Aquilo em que deveria ter pensado – disse ela –, é no que vai fazer
quando por fim se provar que o Anton é um mentiroso. – A seguir, deu a
volta para ajudar Bastian a mover a estátua.
Ao fim de um momento, Gabe seguiu-a.
Capítulo 34

Na nossa observação de necromantes capturados que


trabalhavam em pares, o necromante mais forte canalizava a
Mortem, enquanto o menos forte a direcionava. Desta forma,
eram capazes de erguer mais mortos utilizando menos
energia. Alguns necromantes eram capazes de moldar a
Mortem pura antes de a canalizarem através de si próprios,
gerando coisas como força ou energia aumentadas assim que
essa Mortem moldada fosse por fim absorvida.
Teoricamente, esta prática poderia ser dominada para fins
militares, mas havia tão pouca gente capaz de o fazer que é
impraticável haver mais investigações quanto a essa
possibilidade.
– Notas de Thierry LeMan, investigador a trabalhar nas Ilhas
Queimadas por volta de 10 DQD

C om os três a trabalhar em conjunto, foi bastante fácil mover a estátua.


Gabe orientou-os – a estátua estava num carril, que mal se via no padrão
de madeira no escuro – e moveram a estátua até esta encaixar numa ranhura
esculpida no cimo do muro do poço.
– Agora que penso nisso – disse Bastian, apoiando as mãos nas ancas e
fazendo uma careta ao olhar para a estátua –, movê-la para a ranhura
parece-me óbvio.
– Mas que começo auspicioso – murmurou Gabe.
Lore sentia-se demasiado ofegante para dizer algo. Mesmo deslizando
sobre um carril, o raio da estátua era pesada.
Bastian retirou o pedaço de madeira que tapava o poço, já livre de deuses
de pedra. No interior, um anel perfeito de negritude, tão denso que quase
parecia líquido. Emanou frio das profundezas do poço e os três recuaram
instintivamente um passo.
– Tens chave? – A voz de Gabe soou grave e sombria, ainda
desconfiada. Arqueou uma sobrancelha a Bastian, que parecia
tremendamente confuso.
– Uma chave para quê?
– Para as câmaras – disse Gabe. – As câmaras dentro das catacumbas.
Não estão simplesmente abertas.
– Bem. – Bastian puxou o cabelo para trás. – Merda.
– Eu consigo entrar. – Lore não olhou para qualquer dos dois. Olhou
para o vasto poço de escuridão, uma entrada para partes profundas da terra
onde não era suposto os vivos irem. – Eu consigo entrar – repetiu.
Gabe franziu as sobrancelhas.
– Como?
Atrás dele, Bastian nada disse.
Ela engoliu em seco.
– Consigo entrar em qualquer câmara que encontremos. Confiem em
mim.
Ela sabia isso tal como sabia qual a forma das catacumbas, o seu próprio
nome e os rebordos em forma de crescente da cicatriz na palma da sua mão.
Diante de si, nenhuma parte daquele mundo sob a terra permaneceria
fechado.
A guerra na mente de Gabriel era visível no seu rosto, talhado no luar
prateado. A confiança circulava entre eles, mas sem nunca pousar, aves
necrófagas com um corpo a morrer lentamente.
– Ela era traficante de veneno – disse Bastian, uma sombra sob a beira
do telhado do poço. Estava de braços cruzados, a falar em voz baixa. – Sabe
forçar uma fechadura.
Gabe percebeu que havia ali algo mais e percebeu que ela não ia
partilhar. Lore viu-o na linha formada pela boca dele, tensa e inabalável e
na forma de uma dor bem disfarçada.
Gabriel Remaut levara uma vida de feridas subtis e ela não parava de lhe
infligir outras.
Mas ele decidiu não fazer caso. Assentiu com a cabeça.
– Está bem.
O olhar de Bastian nunca se desviou de Lore. Assim que ela se sentiu
mais tranquila, com a culpa bem dominada nas suas entranhas, ele pareceu
perceber. Uma leve inclinação da cabeça dele e depois subiu ao poço.
– Muito bem. Eu e a Lore vamos procurar, não sei quanto tempo levará a
encontrar os cadáveres, mas imagino que regressaremos antes do
amanhecer. Remaut, ficas aqui e…
– De maneira nenhuma. – Foi quase uma rosnadela. – Achavas que
deixava que a levasses lá abaixo sozinho?
– Acho que vai ter de ser – disse Bastian, com uma voz suave e cortês, e
com algo de cortante. – Alguém tem de ficar de vigia e faz mais sentido que
sejas tu.
– Porque é que tenho a impressão de que planeaste isto?
– Garanto-te que não planeei, Mort, dado que nenhum de nós ainda há
cinco minutos sabia que ias aparecer. Deixaste a Lore sozinha todo o dia.
– Tenho a certeza de que tu não o fizeste.
Deus Sangrante e o Seu coração ausente, aqueles dois iam deixá-la
louca.
– O Bastian tem razão. Alguém tem de ficar a vigiar. – Lore falou de
forma rápida e firme. Fosse qual fosse o território em que Gabe e Bastian
estavam a entrar, ela queria que saíssem de lá. – E as pessoas vão questionar
muito menos a sua presença aqui do que a do Bastian, Gabe.
A lua refletiu no telhado dourado da Cidadela, fazendo cintilar o olho
azul de Gabe. Ele fitou-a por momentos e depois coçou a pala.
– Pensa, Lore – murmurou. – Se eu tiver de ficar de vigia, que assim
seja, mas sinceramente sentir-me-ia melhor se fosses sozinha e não na
companhia dele.
– Você foi-se embora. – As palavras evocaram o indizível… o quarto
escuro dela, os corpos a encaixar antes de se separarem de vez. – Sei que
me prefere sozinha, Gabriel, mas eu não.
Ele recuou, afastando-se dela. O brilho do luar abandonou-lhe o olho; a
sombra tombou sobre ele como um manto.
Bastian saltou para a beira do poço e depois agachou-se para espreitar
para a escuridão. Um clique, o isqueiro de punho de pérola a acender-se na
sua mão. A minúscula chama de pouco servia, mas iluminou uns degraus
curtos e estreitos, que espiralavam pela lateral do poço.
– Alguma ideia de até onde desce até se alcançar o fundo?
– O poço tem uns dez metros de profundidade. – Nenhuma emoção na
voz de Gabe. Uniforme como águas plácidas.
– Excelente. – Com cuidado, Bastian desceu o primeiro degrau. – Vemo-
nos ao alvorecer.
Lore sentiu o olhar acutilante de Gabe na nuca, escrutinando, sabendo
que havia algo que ela não lhe contara.
Algo que nunca contaria. Mesmo que o silêncio dele, a sua relutância em
perguntar, em contrapartida a levasse a achar que talvez devesse fazê-lo.
O cimo da cabeça de Bastian desapareceu lentamente conforme ele
percorria os degraus. Lore subiu para o rebordo do poço.
– Lore.
Ela virou-se um pouco para trás. Gabe manteve-se de braços cruzados,
uns centímetros mais baixo do que ela nesta nova perspetiva.
– Eu não queria ir-me embora – disse ele por fim. – Ontem à noite. Não
queria parar.
Ela dobrou os dedos, parcialmente. Cerrou-os com força.
– Então, porque o fez?
Ele desviou o olhar.
– Por não me parecer… correto, estar contigo. Pareceu-me perigoso.
Algo que eu deveria evitar enquanto me restassem forças. – Mordeu o canto
da boca, como se não soubesse como o dizer. – Parecia-me um erro, mas
um erro que eu já tivesse cometido. Um erro que sabia que acabaria mal.
E ele tentava dizer-lhe algo, algo que roçava o que ela sentira desde que
o conhecera – a ligação instantânea, o modo como parecia que ela o
conhecia e a Bastian a um nível intrínseco inexplicável. Mas ela reteve
apenas uma palavra, que a fez retrair-se.
– Um erro – repetiu em voz baixa.
Gabe retesou-se, como se não tivesse percebido como soara até o ouvir
na voz dela.
– Lore, eu não queria dizer…
– Deixou bem claro o que queria dizer. – Firmou o pé no primeiro
degrau e desceu, perseguida pelo som do suspiro de Gabe.
As catacumbas pareciam iguais em todo o lado. As paredes, em pedra e
secas como um osso, estreitando e alargando sem qualquer lógica, como se
alguém as tivesse desenhado a partir do padrão de pulmões doentes a
respirar. O chão de terra, pejado de pedaços de cascalho. O odor. Vazio, tipo
ozono, a picar no nariz.
Ela sentia a Mortem, sentia perto os seus membros fantasmas; morte em
toda aquela pedra, morte dos ossos das aparições que se arrastavam até ali
para morrer. Gente sem ninguém que se importasse o suficiente para lhes
cremar os corpos.
Surpreendia-a sentir tanta Mortem com Bastian por perto. Mas qualquer
efeito de contenção que ele tivesse sob a capacidade dela parecia ter
diminuído naqueles últimos dias, até deixar de ser sequer uma preocupação.
Em vez disso, a presença dele quase parecia tornar os sentidos dela mais
claros, a Mortem mais nítida, como se ele fosse a pedra de amolar da sua
lâmina.
A mente dela incidiu, inexplicavelmente, no seu próprio aniversário.
Consagração. A escuridão da lua a cobrir o sol. Espreitou para Bastian; ali,
pelo canto do olho, um cintilar de ouro que desapareceu da sua vista quando
tentou concentrar-se nisso.
Lore abanou a cabeça.
Havia uma pilha aleatória de madeira velha, caules de plantas secas e
cordões ao fundo das escadas estreitas. Bastian uniu o material para fazer
uma tocha e encostou o isqueiro de pérola à ponta, acendendo-a. Entregou-a
a Lore sem proferir uma palavra.
Lore aceitou a tocha. Sentiu pânico a borbulhar no peito, óleo numa
frigideira demasiado quente, saltando para a queimar. Agora, que estava ali,
na escuridão, todos os sentidos lhe gritavam para que desse a volta, subisse
as escadas para o céu aberto e o ar puro…
– Lore. – Mãos nos ombros dela, calor e o aroma a vinho. – Respira.
Assim fez, devagar. Inspirar e expirar, sempre a fitar os olhos dele, de
um castanho como uísque e muito próximos de si.
Depois de se ter controlado, recuou. Ele largou-a.
Bastian assentiu com a cabeça, juntando material para fazer outra tocha.
– E então, por onde?
Lore fechou os olhos e deixou que o seu mapa interior das catacumbas
assentasse no lugar. Era como uma grelha disposta no interior das suas
pálpebras, um emaranhado escuro como uma teia de aranha. Um ponto no
mapa pulsou, um coração enegrecido de Mortem concentrado num único
lugar. Ali estariam os corpos. Perto daquele nó, duas centelhas de luz
branca – ela e Bastian. Assim, tudo o que tinha a fazer era encontrar um
caminho em todas aquelas linhas irregulares que os ligavam.
Olhar para o seu mapa era como orientar-se num labirinto visto de cima,
olhando para baixo para um fosso de corda emaranhada ou veias expostas.
Bem abaixo, pouco mais do que um reflexo, ela viu mais um punhado de
luzes brancas, agora tão poucas. Outra tempestade de Mortem emaranhada
e pulsante.
As Irmãs da Noite. O cadáver de Nyxara. Ali, na estranha catedral
subterrânea no fundo das catacumbas, ali junto àquele túmulo de obsidiana.
Lore conseguia vê-lo, agora que o fixara na mente, vê-lo como se estivesse
ela própria sob as estalactites cristalinas, as paredes ponteadas por
constelações de mica, o bloco reluzente do túmulo, um escuro mais
profundo do que as próprias catacumbas…
Mas não era isso que a levava ali. Lore voltou a atrás, reorganizando a
mente, traçando um caminho entre ela e Bastian e os corpos.
– Por aqui. – Avançou. Atrás dela, Bastian depressa acendeu a sua tocha
para a seguir.
Não demoraram muito a deparar com a primeira pilha de ossos, velhos e
ressequidos e envolvidos num manto andrajoso de cor indefinida. Bastian
fez uma careta, afastando com a ponta do pé o que parecia ser um fémur.
– Que fedor – murmurou. – Já estou farto de cadáveres e ainda nem
sequer encontrámos o carregamento.
– Imagina como eu me sinto – replicou Lore.
Calaram-se. Quando ela espreitou por cima do ombro, as sobrancelhas
de Bastian uniram-se, as chamas da sua tocha projetando uma sombra
ondulante.
– Não contaste ao Gabe, pois não? Sobre teres sido aqui criada?
– Isso interessa? – A pergunta saiu mais cortante do que ela pretendeu.
– Não. Isso é lá contigo. Contas-lhe o que quiseres. – Encolheu os
ombros, mas não serviu para disfarçar o olhar acutilante, uma pá a tentar
descobrir respostas enterradas. – É apenas interessante, nada mais. Dado
que vocês os dois andam nitidamente tão agarradinhos.
– Eu não ando agarradinha ao Gabriel Remaut.
– Bem, ele sem dúvida que anda a tentar agarrar-te.
– Não. – A gargalhada dela fui curta e seca. – Não anda nada.
– Então, enganou-me bem enganado.
– Não é nada difícil enganar-te.
Agora, foi a vez dele de largar uma gargalhada áspera.
– Só se fores tu. – Uma pausa, para depois falar num tom mais brando: –
Então, porque é que me contaste?
– Porque ameaçaste mandar-me para as Ilhas Queimadas se eu não o
fizesse. – O caminho à frente abria-se em várias opções, dividindo-se em
salas irregulares. Lore parou e inspirou fundo. Virou à esquerda.
– Isso não é tudo – disse Bastian atrás dela. Havia um tom na voz dele
que ela nunca ouvira. Dúvida. – Confiaste em mim, Lore. Apesar de tudo,
apesar de contrariada, confiaste em mim.
– Não me deste grande escolha. – Mas não o disse num tom acusatório.
– Também não me pareceu que eu tivesse grande escolha. – A dúvida no
tom de Bastian assumiu um tom mais intenso. – Estou sempre a tentar
descobrir porque é que queria saber da tua infância, sobre quem eras.
Porque é que precisava de saber. Para me proteger do August, é certo, mas
era mais do que isso. Era como… como se algo me empurrasse. Como se
tivesse acontecido antes, iria acontecer de novo, e eu fazia parte disso,
quisesse ou não.
Não eram as mesmas palavras que Gabe usara antes junto ao poço, mas
não deixavam de ser uma repetição. A perceção de coisas a ocuparem os
seus lugares à volta deles, a sensação de serem posicionados por forças tão
maiores do que eles próprios, maiores até do que reis e guerras. Ela, e
Bastian e Gabe, cometas que não teriam como evitar a colisão.
Lore virou-se. Os olhos de Bastian cintilaram, zangados e perdidos.
– Eu conheço-te. – Bastian disse-o como se fosse uma sentença. – E tu
conheces-me. Porquê, Lore? E porque é que parece que sempre te conheci?
Poderia ter soado romântico, em qualquer outro contexto. Mas ali, tudo o
que se ouvia era dor e confusão, mais uma coisa imensurável. Lore fitou-o e
nada disse.
– Diz-me que não estou sozinho nisto. – O Príncipe Sol não era de
implorar, sabia ela. Lore pensou que seria provavelmente o mais perto que
ele esteve disso. Marcou-a, uma ferida que sarara e reabrira vezes sem
conta. – Lore, diz-me que não estou aqui sozinho.
E não fora sempre isso que ela quisera? Não estar sozinha?
Ela olhou fixamente para ele através da escuridão e da luz da tocha, das
rochas e dos ossos.
– Não estás. – Saiu numa voz rouca; ela engoliu em seco. – Não estás
sozinho, Bastian. Eu também o sinto.
A seguir, virou-se e retomou o caminho. Atrás dela, Bastian suspirou a
custo e seguiu-a.
Capítulo 35

Nada é novo.
– O Livro da Lei da Morte, Opúsculo 135

L ore percebeu que a primeira câmara a que chegaram não era aquela que
procuravam. O mapa mental indicava-lhe que seguisse caminho, que
continuasse a serpentear para a escuridão.
Mas Bastian deteve-se, erguendo a tocha flamejante na direção da porta
de madeira lascada.
– Será que devíamos verificar esta?
– Não é a correta – frisou Lore, seguindo em frente. Estava frio ali tão
fundo na terra e o entorpecimento causava-lhe dormência na ponta dos
dedos. – E temos de continuar se queremos regressar antes do nascer do sol.
– Como é que sabes? – Bastian espreitou uma vez mais para a porta,
antes de a seguir em passada lenta. – Acho que aqui em baixo não vamos
conseguir ver quando o sol nascer. Deus Sangrante, acho que nem vamos
conseguir sequer perceber se o mundo acabar.
Uma hipérbole, mas ainda assim Lore ergueu um pouco os ombros.
– Eu sei. – A sua intuição era uma centelha no peito, uma tocha que não
a deixava ficar mal. Uma parte dela sentia-se em casa nas catacumbas, de
uma forma como nunca se sentia noutros lugares.
Tudo o que alguma vez quis foi encontrar um lugar onde se encaixasse
que não ficasse nas trevas. Mas sombras e morte eram as únicas coisas que
lhe reservavam um espaço.
– Nunca me contaste como é que funciona essa coisa da navegação. –
Bastian estugou o passo para se pôr a par dela, adaptando a sua passada
mais ampla para se aguentar assim. – Calculo que tenha algo que ver com o
facto de teres nascido aqui?
Lore encolheu os ombros, observando a escuridão diante de si em vez de
o Príncipe Sol ao lado.
– Assumo que sim.
– Então, és a única a conhecer desta forma as catacumbas, porque foste a
única nascida nas catacumbas.
– Não fui a única.
Ele arqueou uma sobrancelha.
Lore suspirou, e esfregou os olhos. Sentiu-se grata por ter sido Bastian a
descer com ela; não tinha forças para esconder segredos.
– Houve outros bebés nascidos das Irmãs da Noite – revelou. – Mais de
uma grávida solteira achou que seria preferível esconder-se nas catacumbas
a ter de lidar com as famílias à superfície.
– Não abona muito em favor das famílias.
– Ou da sociedade em geral. É preciso mais do que uma pessoa para
gerar um bebé, mas o ónus recai sempre naquela que transporta a prova no
corpo.
– É verdade. – Bastian baixou o queixo, aquiescendo. – Mas calculo que
nem todas as crianças aqui nascidas sejam capazes de usar a Mortem.
– Pois não. – Lore tentou rir-se, sem grande sucesso. – Acho que tive
sorte.
Ele bufou e a seguir inclinou a cabeça para a mão dela com a lua
marcada, que balançava de lado enquanto a outra transportava a tocha.
– Todas as crianças nascidas das Irmãs da Noite foram marcadas?
Ela fechou a mão com força.
– Não. Apenas as escolhidas para irem para o túmulo durante o eclipse
para ver se o corpo de Nyxara se remexia.
O olhar dele ensombreceu ao ouvir a palavra eclipse, associando-a ao
baile planeado, sincronias que causavam impressão.
Uns quantos passos em silêncio. A seguir, Bastian engoliu em seco.
– Não devias ir ao baile do eclipse, Lore.
– Tenho de ir. Se não for, torna-se óbvio que nós…
– Porra, não tens nada. – As palavras estilhaçaram-se nos dentes dele,
veementes e cortantes. – Não tens de fazer tudo o que o August e o Anton
dizem, como um carneirinho. Se for preciso, eu e o Remaut podemos
arranjar uma desculpa. Fingir que estás doente, trancada no quarto,
infernos, que fugiste pela galeria pluvial para ir para um tasco
embebedares-te, mas acho que não deves ir.
Ela parou.
– Sabes de alguma coisa?
– É claro que não sei de alguma coisa. – Bastian pareceu irritado. – Mas
tenho um mau pressentimento em relação a isso e, no que te diz respeito, é
quanto basta.
– Porque tens tanto interesse em proteger-me? – Ela cravou os pés em
terra seca e pó de ossos, enfrentou-o como se fosse uma carga de cavalaria.
– Porque tenho eu tanto interesse em proteger-te?
– Não sei. – Tentavam tirar sentido do que haviam dito antes, a sensação
de já se conhecerem, de serem controlados por fios que não tinham sido
eles a atar. – Não sei.
Lore suspirou e desviou o olhar.
– Muito bem. Vou tentar arranjar maneira de não ir ao baile do eclipse.
Contudo, ao mesmo tempo que o prometia, as palavras fixaram-se com
força no fundo da garganta, com sabor a mentira. Os seus pensamentos
incidiram em Gabe, como reagiria se ela de repente decidisse fazer frente a
Anton. Até então, ele fora tão longe graças à ameaça das Ilhas Queimadas –
uma ameaça mais especificamente dirigida a ela, dado que as ligações e o
título dele provavelmente o livrariam desse destino. Mas, depois da noite
anterior, Lore não queria testar até onde ele iria por ela, se essa linha fosse
finalmente cruzada.
Bastian assentiu com a cabeça.
– Obrigado.
– Também não devias ir – disse Lore, desviando à força a sua mente de
Gabe. – Com o teu pai a tentar livrar-se de ti, e isso.
– Tenho comido apenas da minha comida – revelou Bastian. – E não vou
beber nem comer nada no baile, o que exclui a possibilidade de me dar uma
dose exagerada de um dos seus venenos. Se eu fosse de alinhar nessas
coisas, iria facilitar-lhe o trabalho, mas isso sempre me repugnou. – O canto
da sua boca ergueu-se, os seus dentes a brilhar à luz da tocha. – E se ele
tentar matar-me de uma forma menos subtil, quem poderá censurar-me se
lhe retribuir o favor?
Ela sentiu a inquietação a latejar nas têmporas.
– Então, esperemos que se comporte como deve ser.
O olhar de Bastian indicou que, de certa forma, não alimentava de
maneira nenhuma essa esperança. Em parte, ansiava por um banho de
sangue.
Mais à frente, as catacumbas voltavam a ramificar-se, um T de túneis
sem outras opções que não fosse esquerda ou direita. O trajeto que ela
traçara na sua mente indicava-lhe a direita, mas, ao virar a lanterna, a luz
incidiu sobre algo na parede. Palavras.
Parou, franzindo o sobrolho.
Bastian pôs-se ao seu lado, a luz da sua tocha a iluminar ainda melhor as
palavras. A escrita era tremida, vincada nuns pontos e mal se vendo
noutros.
– Parece algaravia – comentou ele. – Talvez uma aparição se tenha
tornado suficientemente loquaz pouco antes de ter morrido.
– Não me parece que uma aparição descesse até aqui. – Já decorrera pelo
menos uma meia hora desde que passaram por restos mortais. Lore
encostou a tocha ainda mais à parede.
Semicerrou os olhos, tentando decifrar a inscrição em voz alta. Pelo
menos estava escrito em auverrani.
– A divindade nunca é destruída – murmurou ela. – Apenas replicada.
– Ainda vou pela algaravia. – Mas notava-se uma certa inquietação na
voz de Bastian, reveladora de que as palavras também a ele lhe pareceram
pesar. – Aparição ou não, como é que alguém conseguiu escrever numa
parede de pedra?
Havia algo claro parcialmente escondido na terra. Lore deu-lhe um toque
com a ponta do pé – um osso, com a ponta afiada. A superfície estava
esburacada, como se já ali estivesse há muito.
– Talvez tivesses razão em relação à aparição.
Bastian franziu o nariz.
– Que bom para mim. – Apontou com a cabeça para a bifurcação no
túnel. – Por onde?
Ela indicou a direita com a cabeça e seguiu caminho, um pouco mais
depressa do que antes. Pontapeou o osso para a escuridão.
Mantiveram o ritmo acelerado, com as tochas a crepitar. Parecia a Lore
que teriam decorrido pouco mais de duas horas desde que desceram através
do poço – ainda faltava imenso tempo para o nascer do sol, mas Gabe
ficaria preocupado. Ela tinha praticamente a certeza de que ele já estaria a
andar de um lado para o outro. A andar de um lado para o outro e a puxar a
pala do olho.
– Achas que ele estará bem? – As palavras passaram-lhe pelos lábios
sem sequer se aperceber que as formara.
– O Remaut? – Ao lado dela, Bastian retesou-se, mas a sua voz soou
equilibrada. – Tenho a certeza de que está bem. Talvez esteja a aproveitar
para pôr o sono em dia. Nestes últimos dias tem andado com ar de quem
precisa de descanso.
– Ele dorme em frente à nossa porta – revelou Lore. – Para ficar de
guarda.
– Sempre foi dado a espetáculos dramáticos de cavalheirismo.
– Talvez devesses aprender algo com ele.
O silêncio prolongou-se, até que:
– Queres que o faça, Lore?
Poderia ter parecido galanteador, no seu tom habitualmente superficial.
Mas não. Soava sincero e Lore não respondeu.
O mapa mental dela orientou-os por um punhado de curvas, com tochas
a tremeluzir na pedra húmida. Na mente dela, as luzes brancas que lhes
correspondiam aproximavam-se do emaranhado de Mortem, até os dois
ficarem bem juntos. Tinham chegado ao destino. Que, aparentemente, seria
uma parede sólida.
– Raios. – Lore bateu com a mão na parede rugosa. – Merda!
– Tem de haver algures uma porta. – Bastian acenou com a tocha,
projetando uma luz tremente em ambas as direções. – Talvez haja um trinco
disfarçado, ou isso?
– Não há. – O átrio era estreito; Lore podia inclinar-se para trás e bater
na parede oposta. Desceu pela parede, pressionando a base da mão na testa.
– Não há aqui nada.
– Tem de haver. Orientaste-nos…
– Orientei-nos mal, Bastian. – Baixou a mão e olhou para cima para ele
com um olhar cortante. – Estava errada. Talvez estejamos errados em
relação a tudo isto. Talvez seja melhor esquecer o assunto.
– Esquecer – repetiu ele, frio. Olhou para baixo para ela, com a luz do
fogo a dar-lhe um ar tão régio e distante como uma estátua de Apollius. –
Vamos deixar o meu pai e o meu tio recolherem corpos sabe-se lá para quê
e levarem-nos à guerra?
Lore não desviou o olhar do dele, mas também não respondeu. Sentia-se
cansada. Cansada de tentar reparar algo que não compreendia na sua
totalidade. Cansada de ser levada à força para uma ou outra direção, usada a
partir de todos os ângulos. Talvez alguns desses ângulos se justificassem,
mas não deixavam de doer.
Bastian praguejou, encaixando a tocha num montinho de pedras para a
manter direita, passando depois a mão sobre a parede. Ainda à procura do
trinco escondido.
Ela ficou por momentos a observá-lo, incapaz de se obrigar a levantar-se.
A seguir, com um suspiro, ergueu-se e imitou-o.
Ele olhou-a de lado, mas manteve-se calado. Esperto.
Tal como seria de prever, não havia qualquer trinco. Mas assim que a
mão de Lore passou sobre uma secção de parede de pedra áspera, a sua
palma… parou.
Ela franziu o sobrolho. Podia mover a mão se tentasse, mas a sua pele
parecia atraída de volta para aquele ponto… mais macio do que o resto da
pedra, e também mais frio. De início, achou que essa fora a razão para a sua
mão se desviar até lá, uma mera questão de textura. Mas, ao pressionar a
mão na pedra, sentiu algo a latejar. Um redemoinho de sangue invernoso,
lento e coagulado.
Mortem. Mortem, a chamar por ela. Ali reunida e emaranhada.
– Acho que descobri – murmurou ela.
Bastian parou de passar as mãos pela parede, o seu cabelo escuro a
cintilar com poeiras douradas. Ele recuou, mãos abertas diante dele numa
espécie de sinal de rendição.
– O que temos de fazer?
– É uma fechadura – revelou ela, ainda a pressionar a pedra. – Mas sem
chave. Um mecanismo que tem de ser acionado por magia, e não por algo
físico.
– Magia é só contigo, infelizmente. – Ele engoliu em seco, semicerrando
os olhos ao fitar a parede. – É seguro?
– De maneira nenhuma.
– Então, está bem. – Bastian posicionou-se atrás dela, como se fosse
capaz de lhe dar algum apoio. – Estou aqui para o que for preciso. Tenta
não morrer.
Lore fechou os olhos e ergueu o queixo, projetando os sentidos para a
parede ao mesmo tempo que desmontava a sua barreira mental, a floresta
que sempre lhe evocava Gabe. Tentou reunir Mortem a partir da pedra em
volta, mas o modo como já fora trabalhada para aquela porta escondida
impediu-a de a puxar.
Inspirou fundo, susteve o ar até ver estrelas a rodar atrás dos olhos.
Quando os abriu, a sua visão assumira tons cinzentos – a parede diante de si
era um emaranhado preto em contorção, a mão dela apoiada num cinza de
brilho ténue de um canalizador a trabalhar. Mais Mortem oculta na parede
atrás dela, na terra; Lore puxou-a, finos fios de escuridão a enrolarem-se
nos seus dedos. Lore canalizou-a através de si, rápida devido ao treino.
Então, suavemente, pressionou-a para a parede.
A Mortem na parede fora moldada num quebra-cabeças, um nó ao
centro, outros filamentos a contornar a forma da porta. Para a abrir, teria de
resolver o enigma.
Só podia ser obra de Anton. Recordava-lhe demasiado o que ele fizera
com a fuga, torcendo filamentos de Mortem para um nó intrincado,
trabalhando-a de formas que ela nunca vira. Mas o que quer que Anton
tivesse feito na fuga era simples, comparado com aquilo. Ela nunca soubera
que a Mortem poderia ser usada daquela forma, torcida e moldada em vez
de passar rapidamente por um canalizador para matéria morta.
Transformada numa ferramenta. Devia ter sido necessária uma
concentração intensa para a canalizar e dar-lhe forma ao mesmo tempo.
Mas teria ele canalizado, na fuga? Agora que pensava no assunto, Lore
não sabia ao certo. Anton dera forma à Mortem, mas não se recordava de
lhe ver os olhos opacos e os dedos necróticos que significavam que
movimentava o poder da morte através do seu corpo.
Teria simplesmente dado forma à Mortem pura? Formara um entrançado,
enviando-o depois para que ela a canalizasse para dentro? Tal já havia sido
feito, mas isso fora séculos antes.
Não tinha tempo para pensar nisso. Lore sorveu ar por entre os lábios
enquanto sondava o quebra-cabeças, os filamentos de Mortem que
canalizara colhendo os do Supremo Sacerdote, dedos finos sobre cordas de
violino.
O objetivo do enigma era evidente – desemaranhar o nó no centro. A
partir daí seria simples seguir através do quebra-cabeças e em volta do
contorno da porta. Algo simples, seguir os seus próprios fios e abrir. O
desenredar levaria, provavelmente, uma eternidade. Uma série de
movimentos pequenos, um a seguir ao outro, executados exatamente da
forma correta e exatamente na ordem correta…
Um dos fios escapou-lhe, o efeito de empurrar através da parede fê-lo
fugir para o lado. Algo no quebra-cabeças encaixou no seu lugar.
O nó emaranhado suavizou-se.
Apenas por um momento, Lore manteve-se imóvel, sem conseguir
acreditar que resolvera o intricado enigma por acidente. Então, com mais
um empurrão, enviou a Mortem que gerara através da linha.
Um estalido. A parede diante de si rodou e abriu-se.
Lore recuou, com os filamentos de Mortem a cair enquanto ela
arquejava, a cor regressando à sua visão e o sangue a chegar-lhe aos dedos.
Emanava frio da porta já aberta e a escuridão do outro lado era densa como
alcatrão. Pegou na sua tocha com mãos trementes; nem a luz da chama
penetrava mais do que meio metro na câmara.
– Eu vou à frente. – Bastian rolou os ombros para trás e retesou o
maxilar. Transpôs a porta antes de ela o conseguir deter.
Um grito curto, assustado. Lore cruzou com ímpeto a entrada da câmara,
esquecendo a apreensão, e quase chocou com as costas de Bastian.
– Apanhei-te – riu-se ele.
Lore deu-lhe uma palmada nas costas.
– Vai-te lixar.
– Pensei que tínhamos combinado ser delicados.
Havia uma corrente de nervos sob o gracejo, algo que nenhuma piada
poderia disfarçar. A escuridão era densa, pressionando-os a toda a volta,
mas havia também uma perceção de espaço que ela não sentira nos túneis,
uma vastidão.
De certa forma, era pior.
– O que é isto?
Bastian afastou-se para o lado – mais passos do que Lore previra, pelo
que teve de se despachar para o acompanhar – até chegar à parede. Ele
tateou a pedra, retirando algo que parecia ser uma videira sem folhas. Um
pavio.
– Não acendas isso – disse Lore no preciso momento em que Bastian
levava a tocha à ponta do pavio.
A chama percorreu o fio, mas, em vez de conduzir a uma pilha de
explosivos, o pavio transportou o fogo até outra tocha instalada na parede.
E depois a mais outra, e outra, a luz a viajar em redor da divisão até toda a
caverna se iluminar num tom laranja tremeluzente.
Era enorme, do tamanho de três salas do trono. Havia plintos de pedra
instalados a igual distância entre si, recordando sinistramente a Lore as
hachuras de ferro sobre os pavimentos muito mais acima.
E, em cada laje de pedra, um cadáver.
Todos de tamanhos diferentes, de géneros diferentes, mas mortos de
forma idêntica. Todos tapados por um tecido escuro. Todos com um ar de
quem meramente dormia, desde que uma pessoa não se aproximasse o
suficiente para reparar na palidez, na textura cerosa da pele.
E todos pareciam ter aproximadamente a mesma idade. Não havia
crianças, nem idosos. Aqueles corpos estariam no auge da vida, se não
estivessem mortos.
Bastian foi o primeiro a avançar. Hesitante, ainda a segurar a tocha
acesa, embora já nem fosse precisa.
– Onde estão os restantes?
Nada de crianças. Nada de idosos. Ela sentiu uma impressão na nuca,
uma espécie de apreensão que não sabia como analisar.
– Podem estar noutra câmara, não podem? Separados?
– Talvez. – Bastian enrugou as sobrancelhas. – Mas porquê?
Lentamente, Lore abeirou-se da laje seguinte. Mulher, musculada, talvez
uns quantos anos mais velha do que ela. Cabelo ruivo, um rosto macio, sem
rugas. E nenhum sinal de decomposição.
O último ataque ocorrera dois dias antes. Dois dias, com setenta e cinco
vítimas. Mas havia bastante mais do que setenta e cinco corpos naquele
espaço, pelo que só poderiam ser cadáveres das quatro aldeias atacadas.
Mas porque teriam sido divididos por idades? E como se manteriam tão
bem preservados?
– Lore. – Bastian falou em voz baixa, como se temesse perturbar os
mortos. – As palmas das mãos deles.
A mão de um dos cadáveres descaíra do plinto. Lore não quis tocar-lhe;
em vez disso, agachou-se e inclinou o pescoço para espreitar.
Um eclipse fora gravado na palma da mão do cadáver. Um sol na parte
de cima, com a curva a passar na base dos dedos, os raios a estender-se até
às extremidades dos mesmos. Um crescente de lua sobre a base,
completando o arco do sol.
– Não compreendo – murmurou ela, endireitando-se, fechando a sua
própria mão marcada. – O que significa isso?
– Só há uma maneira de descobrir – disse Bastian.
Lore pousou os dedos ao de leve sobre o plinto de pedra diante dela.
Fechou os olhos e deu com a morte bem escondida nas profundezas do
corpo, puxando-a com delicadeza.
O ar que inspirou e susteve soube-lhe a vazio e frio mineral. As pontas
dos dedos ficaram frias e pálidas conforme filamentos de escuridão saíam
do corpo para ela, o mundo a perder de novo a cor.
Algo parecia errado. Ela via o seu próprio corpo, luz branca e cinzenta e
massa escura ao centro. Bastian junto dela, uma luz tão brilhante que
praticamente pulsava. Mas logo acima do coração de cada cadáver, havia
um nó de escuridão, densamente emaranhado, a cor do céu desprovido de
lua ou estrelas. Recordou-lhe a fuga, a porta. Anton, de novo.
O que fizera o Supremo Sacerdote?
A batida do seu coração abrandou, cada vez mais. Sentia os membros
pesados. Puxou para dentro de si tanta Mortem quanto era capaz e bateu
com as palmas das mãos no plinto, canalizando-a para a pedra, sentindo-a
ficar porosa e quebradiça.
A pulsação nas suas veias tornou-se lenta; os pulmões não recebiam ar
suficiente. Interiorizara mais morte do que deveria, no breve período em
que a canalizara. Era… era mais espessa do que deveria ser, mais densa.
Sentiu os joelhos a ceder e Bastian correu para junto dela, um braço
quente sobre os seus ombros e a mantê-la de pé e estável.
– O que é que te aconteceu? – murmurou Lore para o morto, a voz a soar
fina e aguda. – Quem fez isto, e porquê?
Mas o cadáver diante de si permanecia imóvel e silencioso.
– Não compreendo. – Bastian estreitou os olhos. – O que…
Um som rangente interrompeu-o quando todos os cadáveres na caverna
se sentaram. Quando todos os cadáveres na caverna rodaram para os fitar
com olhos mortos e inexpressivos.
A compreensão abateu-se sobre Lore como uma onda. Ao tirar a morte a
um deles, de algum modo tirara-a a todos. Aqueles nós retorcidos de
escuridão que ela vira sobre os corações deviam estar a uni-los, ainda que
ela não percebesse como.
Bastian, como que por instinto, pôs-se à frente dela. Baixou a mão na
direção de um punhal escondido nas suas roupas escuras. O que faria com
ele, Lore não sabia – não podia propriamente voltar a matá-los.
Contudo, nenhum dos mortos se posicionou para atacar. Em vez disso,
como um só, abriram as bocas, mais do que maxilares humanos deveriam
permitir.
– Eles despertam. – Veio do primeiro, o cadáver mais perto deles. Os
lábios azuis não se mexiam, tal como a criança nas criptas. – Eles
despertam, como os recipientes novos. – As palavras tornaram-se um
cântico, sonoro e ecoante. – Eles despertam. Eles despertam, como os
recipientes novos.
Lore sentia-se tão fria quanto os cadáveres, tão imóvel quanto a morte.
– Eles despertam. – Os cadáveres próximos da mulher juntaram-se ao
cântico. – Eles despertam, como os recipientes novos.
O cântico espalhou-se como uma gota de tinta numa poça de água,
ondulando para as bordas até atingir todos os cadáveres na caverna.
Falavam a diferentes velocidades, acompanhavam o cântico em momentos
diferentes, uma sinfonia de vozes que preencheu o espaço vasto da caverna
e se abateu sobre Lore como uma onda.
A seguir, as palavras foram interrompidas e os mortos desataram a gritar.
Capítulo 36

Cães feridos regressam sempre para junto dos donos.


– Provérbio kirytheano

P elos deuses, que barulho faziam. Uma cacofonia guinchante que ecoava
pela câmara demasiado ampla, ressaltava nas paredes de pedra, numa
dissonância que perfurava os ouvidos de Lore. Ela cambaleou para trás,
afastando-se daquele plinto e do seu cadáver urrante, tropeçou numa pedra
solta e caiu de rabo no chão com as mãos a pressionar os ouvidos e os
dentes cerrados.
Ainda tinha filamentos finos de Mortem agarrados aos dedos, unindo-a
ao resíduo pedregoso de uma teia de aranha, um frio a roçar-lhe no rosto.
Uma anomalia, algo com que nunca se deparara antes… assim que se
deixava de canalizar, os filamentos deviam desaparecer. Mas algo naquele
lugar, bem nas profundezas da terra e inundado de morte, parecia levar a
Mortem a perdurar.
Junto dela, Bastian ajoelhou-se no chão, com as bases das palmas das
mãos a pressionar as orelhas com tanta força que talvez fosse ficar marcado.
Nenhum deles tentou chegar à porta. Era demasiado; concentraram-se
apenas em manter-se juntos durante o ruído horrível.
Pelo menos, até os corpos começarem a mover-se.
Espasmódicos de início, membros mortos a despertar, e tudo aquilo
sincronizado como se tivesse sido ensaiado. O braço direito erguia-se, os
dedos fletiam-se. A seguir, a perna esquerda, balançando sobre a lateral dos
plintos. Isto enquanto continuavam a gritar, as bocas ainda abertas.
– Merda – disse Lore entre dentes, levantando-se apressadamente. –
Merda, isto não deveria ser possível, merda…
Bastian mantinha os olhos fechados; não estava a ver, continuava
curvado sobre os joelhos. Lore agarrou-lhe o ombro e puxou-o para a porta.
Os olhos dele abriram-se então, arregalados, com um palavrão inaudível
sob o estrépito dos cadáveres gritadores.
A porta, felizmente, ainda se encontrava aberta. Lore arrastou-o atrás de
si no momento preciso em que os cadáveres na câmara se ergueram. Todos
os mortos se viraram para eles em simultâneo, olhos negros, bocas
escancaradas, escuras e mais abertas do que alguma vez deveriam estar.
Lentamente, começaram a avançar.
– Fecha-a! – gritou Bastian, esquecendo qualquer ideia de secretismo.
Era evidente que toda aquela gritaria se deveria ouvir a quilómetros.
– Não sei como! – Lore pressionou as mãos contra a parede, mas os
rastos de filamentos de Mortem roçavam lá passivamente, inúteis. – A
magia é… está a colar-se, não entendo…
Pelos deuses, havia tanto que ela não entendia. Aquele poder vivia em si
havia praticamente vinte e quatro anos e permanecia um mistério,
incognoscível, uma maldição com tantas facetas quanto um diamante.
Bastian não deveria conseguir ver os filamentos de Mortem nos dedos
dela – ela não era capaz de canalizar –, mas, de algum modo, via. O
arregalar dos olhos e a forma como abriu a boca revelava-o.
Mais um mistério.
Ele correu para a frente, afastou-lhe as mãos da porta. Lampejos de
dourado pairavam no ar em redor dos dedos dele, demasiados para serem
fruto da imaginação, demasiado corpóreos para serem uma alucinação. Ela
já os via com nitidez, envolvendo as palmas das mãos dele, fluindo dele
como a Mortem fluía dela.
O Príncipe Sol juntou os fios de morte no seu punho recoberto a dourado
e puxou-os com força.
A Mortem deixou-se levar, soltando-se de Lore como um fio a passar
pelo buraco de uma agulha. Lore arquejou, com a visão a brilhar
intensamente. A própria vida parecia jorrar do ponto onde Bastian tocara,
ruborizando-lhe a pele e acelerando-lhe a pulsação, todos os nervos vivos e
envolvidos por um formigueiro. A Mortem fugia dele, mas ela ainda a
sentia, ainda poderia agarrá-la se quisesse.
Havia também algo mais, uma sensação de dualidade: segurar uma corda
de sombra e outra de luz ao mesmo tempo, como se ela fosse duas coisas
pressionadas numa única forma. Apenas uma centelha de perceção, uma
resposta a uma pergunta que ela não sabia como fazer…
Os corpos na câmara colapsaram. A gritaria parou, deixando um silêncio
vibrante no seu lugar.
Mantiveram-se junto à entrada, a mão dela aconchegada na dele,
ofegantes. A testa dele inclinou-se e repousou na dela; ela permitiu-o. A
sensação inebriante que a percorrera quando ele puxara os filamentos –
vida, brilhante e vibrante, anátema da magia que ela transportava – esvaiu-
se lentamente. E com ela, aquele vislumbre de conhecimento, de algo a
encaixar no lugar. Pergunta e resposta a dissipar-se.
Lore retirou as suas mãos das de Bastian.
– Como é que… – Sentia a garganta como se tivesse engolido uma mão-
cheia de gravilha; pigarreou e tentou de novo. – Como é que fizeste aquilo,
Bastian?
Ele olhou para as suas mãos. O bruxulear no ar em volta dele
esmorecera, mas apenas um pouco, e voltou a cintilar quando ergueu a mão
na direção dela. Lore encolheu-se, por instinto, e ele deixou a sua mão cair.
– Não sei. – Abanou a cabeça. – Deve ser algo relacionado com estar nas
catacumbas…
Em breve iria amanhecer. Lore sabia-o, sentiu a certeza nos ossos, tal
como sentira tudo ali em baixo. Tinham de ir embora, não tinham tempo
para aquilo.
– E tu? – perguntou ele, a voz ainda aguda devido aos nervos. – A
Mortem alguma vez fez isso antes?
– Colar-se a mim daquela maneira, ou levar um monte de cadáveres a
perseguir-me? – A sua gargalhada pesarosa soou tremida. – A resposta é
não, às duas coisas.
– Que falta de educação não terem respondido às tuas perguntas antes de
desatarem aos gritos – comentou Bastian. – O que estavam eles a
murmurar? Algo sobre despertar?
– Eles despertam. Praticamente o mesmo que me disse o primeiro. –
Lore fez uma carranca. – Dava jeito eu fazer uma leve ideia de a quem se
referem quando dizem «eles».
– Achas que não são só palavras desconexas?
– Os mortos não mentem. É uma resposta à pergunta que fiz, ainda que
seja indireta. – Massajou a testa, deixando um rasto de pó e cinza da tocha.
– Mas não fazemos ideia do que raio significa.
Bastian virou-se para observar a porta. As lumieiras no interior da
câmara ainda ardiam, iluminando a confusão de corpos espalhados pelo
chão; nenhum deles tratou de apagar as chamas. A luz mais intensa revelou
aquilo que as tochas não tinham mostrado – um X na porta de pedra, mal
visível sobre o cinzento esburacado.
– Achas que quem fez isto também escreveu aquela passagem
encantadora naqueles tuneis lá atrás?
– É possível, mas duvido. – Lore passou os dedos sobre o X e a seguir
ergueu-os, pretos de carvão. – Isto era suposto ser uma marca temporária,
fácil de remover.
– Então, com sorte, não terá sido gravada com um osso.
– Mas estava trancado com Mortem. A Mortem usada de uma forma que
eu só vi uma vez. – Lore limpou o carvão na coxa. – Na fuga de há uns dias.
– O Anton. – O maxilar de Bastian formou uma linha tensa, os braços
cruzados enquanto olhava para a porta.
– O Anton – concordou ela.
Toda aquela expedição tinha por objetivo provar que Anton era um
mentiroso. Mas, depois de o terem conseguido, encontrado provas
irrefutáveis, o facto pesava sobre os ombros de Lore. A expressão ausente e
perdida de Bastian indicava que também ele sentia esse peso.
O meu pai é um homem mau, dissera ele no átrio, enquadrado pela luz do
luar e por flores de veneno. Devia doer, saber que todo o nosso legado
estava corrompido.
Ele suspirou, olhou para Lore.
– Então, o meu tio e o meu pai andam a matar os próprios cidadãos para
provocar uma guerra?
– Parece provável. – Lore enfiou o braço na câmara sem efetivamente
passar a soleira e pegou numa das tochas da parede para substituir a que
largara. – Mas não entendo porquê. Seja como for, temos Kirythea às
nossas portas. Uma eventual guerra é praticamente inevitável. Porquê
exacerbá-la?
– Tem de haver alguma vantagem que desconhecemos. – Bastian
caminhava ao lado dela, carrancudo, com o cabelo a cair-lhe sobre a testa. –
Algo que torne uma guerra lucrativa, em vez de esgotar os recursos.
– Se bem que essa falta de recursos nunca fosse sentida na Cidadela.
Ele inclinou a cabeça, em concordância.
A jornada de regresso ao poço decorreu em silêncio. Lore encaminhou-
os com recurso ao mapa mental, refazendo os passos por entre o entrançado
de túneis. Ao passarem pelas palavras gravadas na parede, ela olhou apenas
de relance.
A divindade nunca é destruída.
Mais à frente, um fino raio de luz cintilava, demasiado brilhante para ser
a lua. O amanhecer ultrapassara-os e a intensidade do seu brilho ao fim de
horas nas catacumbas deixava-a com dores de cabeça.
Bastian parou na base das escadas, franzindo os olhos ao fitar o feixe de
luz solar.
– Ele deixou a entrada aberta – murmurou. – Por pouco.
– Vai lá estar para o afastar.
– Depositas tanta fé no nosso monge. – Bastian subiu as escadas e
começou a trepar, com cuidado, os músculos dos ombros movendo-se sob a
sua camisa empoeirada enquanto se equilibrava com uma mão na parede. –
Ele é tão instável. Não me surpreenderia se tivesse dado à sola assim que
descemos.
– Tu devias depositar mais fé nele – disse Lore, virada para as amplas
costas de Bastian. Percebendo que o olhava fixamente, baixou os olhos para
os seus próprios pés e subiu com cuidado os degraus estreitos. – Ele
apareceu, certo?
A resposta que teve foi a abertura da tampa do poço, lançando para baixo
uma luz penetrante. Não era manhã plena, mas já suficientemente avançada
para que o brilho a levasse a desviar os olhos.
Quando se voltou de novo, Bastian desaparecera, com a abertura à frente
mostrando nada mais do que o céu pintado a rosa. Lore revirou os olhos.
Claro que ele simplesmente saltaria do poço assim que se provasse que ela
tinha razão. Já devia estar a trocar insultos com Gabe.
Porém, quando Lore chegou ao cimo das escadas, Bastian encontrava-se
ajoelhado entre dois dos Presque Mort, com a cabeça puxada à força para
trás, a ponta da baioneta cravada na pele do pescoço. Atrás dele encontrava-
se Malcolm, com uma expressão pensativa, mas com a linha da boca a
mostrar determinação.
Diante do poço, Anton, com o seu pingente do Coração do Deus
Sangrante a cintilar sob a luz ténue.
E, junto a Anton, Gabe.
Bastian riu-se, um som terrível e pesaroso, exibindo os dentes.
– O que dizias tu sobre depositar fé nele, Lore?
Mas Lore não respondeu. Sabia quando era apanhada.
Uma pausa, em que o único som era o da túnica de Anton a bater-lhe nas
pernas ao sabor da brisa matinal. A seguir, Gabe aproximou-se do poço,
estendendo uma mão para a ajudar a sair.
Ela não a aceitou. Não olhou para ele. Desceu sozinha para o
empedrado, apesar de ter as pernas a tremer.
Anton acenou com uma mão cansada.
– Levem-nos para a Igreja. Os nossos colegas aguardam.
– Os teus colegas? – repetiu Bastian com desdém. Os Presque Mort
içaram-no; ela reconheceu vagamente os dois guardas do dia da fuga de
Mortem, e ambos pareciam um pouco entusiasmados de mais por poderem
tratar o Príncipe Sol com brutidão. A ponta da baioneta nunca abandonou o
pescoço dele, mas Bastian não parou de resmonear. – Que forma
interessante de dizer cúmplices traidores.
Junto dela, Gabe retesou-se. Bastian reparou e incidiu nele o seu olhar
abrasador, a boca retorcida numa feia mistura de raiva e traição.
– Acho que é verdade o que se diz, certo, Remaut? Quando alguém
mostra quem é, mais vale acreditar. Pensei em dar-te o benefício da dúvida.
Que parvo que fui.
Gabe não estava ao alcance do toque, mas o próprio ar em volta dele
pareceu vibrar com o esforço por se manter imóvel. Tinha os punhos
cerrados nos flancos, com os nós dos dedos brancos.
– Ele tem razão. – Todos os olhares incidiram em Lore. Ela olhou em
frente, sem fitar qualquer um deles, mantendo o olhar preso na fina faixa de
sol que passava sobre o muro do jardim. – Parece que a traição lhe é inata,
Duque Remaut.
Ela tinha-o ferido. Era essa a sua intenção. Ainda assim, o subtil
abatimento dos ombros dele, a forma como o rosto dele se virou, deixando
visível a Lore apenas a pala infernal, provocou um nó em todos os órgãos
dela.
– Temo que isto seja um pouco mais complexo do que tu e o meu
sobrinho pensam. – Anton mirou-a, com o sol nascente por trás a tornar-lhe
o lado ferido do rosto uma confusão de riachos de sombra. – Questões de
traição por norma assim são. Mas estamos a pôr a carroça à frente dos bois.
– Virou-se de repente e rumou à porta embutida no muro do jardim que
dava acesso à Igreja. – Vamos. Temos muito a discutir.

Os Presque Mort levaram Lore e Bastian para uma antecâmara ampla,


apenas com uma mesa comprida e um punhado de cadeiras, e uma única
tapeçaria pendurada, onde se via Apollius agarrado ao Seu peito sangrante.
Isto recordou a Lore a sala para onde fora levada depois de reanimar
acidentalmente Cavalo.
Desta feita, as amarras que lhe prendiam as mãos eram um pouco mais
intrincadas. Tal como as de Bastian. Em vez de cordas, tinham algemas, que
foram presas a argolas de ferro grossas instaladas no chão. Uma espécie de
reprodução das barras de ferro que cruzavam o chão da Cidadela.
Lore calculava que ninguém precisasse de ser recordado do seu
significado sagrado na Igreja. Havia desses lembretes por todo o lado.
Foi Malcolm quem fechou as algemas em volta dos pulsos dela.
– Porquê? – questionou ela enquanto ele o fazia, sem se dar ao trabalho
de sussurrar. – Pensei que era adepto de uma mudança, Malcolm? Pensei
que estivesse do nosso lado?
Não era sua intenção soar tão magoada.
O bibliotecário-chefe levou o seu tempo a responder. Quando o fez, foi
com um suspiro.
– O Anton vai explicar – disse ele. – O Gabe foi falar com ele; depois,
ambos foram falar comigo, e o que me contaram fez-me perceber que temos
de trabalhar juntos.
Lore fez uma careta. Junto dela, outro Presque Mort acorrentou Bastian,
mas o Príncipe Sol manteve-se em silêncio, a olhar para o chão.
Uma hora depois, esse silêncio perdurava. Durante essa hora, ela
constatou que tinham maneiras diferentes de lidar com a traição. Lore
gelava, sem mostrar qualquer tipo de emoção. Bastian, pelo seu lado, ia
alternando entre mostrar um ar de quem poderia tentar arrancar a argola de
ferro do chão com as próprias mãos, ou um ar de quem perdera um amigo.
Ela supunha que, de certa maneira, até perdera. O que havia entre si,
Gabe e Bastian não era propriamente amizade – era simultaneamente mais
profundo e menos complicado do que isso, de certa forma um nó básico que
nenhum deles era capaz de desatar. A traição de Gabe doía, embora também
parecesse inevitável.
– Lamento, Lore – murmurou Bastian.
Ela franziu as sobrancelhas.
– Lamentas o quê?
– Se já é tão mau o Gabe trair-me – disse ele para as suas mãos atadas –,
nem imagino como será para ti, gostando dele como gostas.
– Eu não gosto dele de… de nenhuma maneira especial. – A resposta
saiu-lhe ofegada, sem energia suficiente por detrás das palavras para as
tornar uma verdade ou uma mentira. Ficaram simplesmente ali a pairar.
A porta abriu-se. Ambos levantaram a cabeça.
Anton e Gabe, como seria de esperar, acompanhados por Malcolm. O
bibliotecário lançou um olhar rápido e furtivo a Lore, com uma expressão
tomada pela preocupação.
O Presque Mort afastou-se, deixando ver outra figura atrás deles.
Severin Bellegarde.
– Ora, ora – disse Bastian, recostando-se na sua cadeira com um
chocalhar das correntes. – Parece que tudo o que teorizámos é verdade. Mas
o que ganha com a guerra, Severin? Dinheiro? Já tem mais casas do que
familiares e o seu estilo de vestir deixa bem patente que não quer saber de
modas…
– Ninguém deseja a guerra, Bastian. – Anton trocara a túnica pela
vestimenta justa e escura que usara no dia da fuga de Mortem, ficando a
condizer com Gabe e Malcolm. Sentou-se à mesa e cruzou os braços,
parecendo de repente um homem muito mais novo, apesar do seu basto
cabelo grisalho. – É precisamente isso que nós tentamos evitar.
Nós. Pelos vistos, ele e o Bellegarde.
O olhar de Bastian deslizou na direção do de Lore, ambos chegando em
simultâneo à mesma conclusão – a porta da câmara estava fechada. Não
vinha mais ninguém.
E August não estava presente.
Bellegarde observou a centelha de reflexão nas expressões deles,
surgindo-lhe no rosto severo um leve sorriso.
– A única pessoa que está a tentar espoletar uma guerra é o August –
revelou. – E não estamos de acordo.
– O meu irmão crê que estamos do mesmo lado, mas não estamos. Desde
há muito tempo. – Anton remexeu-se à mesa, apoiou os cotovelos sobre os
joelhos e olhou para Bastian. – Lamento, sobrinho.
– Lamentas o quê? – Bastian apagou todas as suas emoções do rosto e
assumiu a faceta de príncipe negligente. Ergueu o queixo, o cabelo preto a
cair-lhe pelas costas. – Um bocadinho tarde para arrependimentos, não te
parece?
– Lamento – disse vagarosamente Anton, ignorando-o –, que a doença e
a inveja tenham tornado o teu pai um homem mau. Lamento que tenhas
sido tu a suportar as consequências. – Uma pausa. – Lamento que ele te
queira morto, sendo tu a pessoa que menos merece ser alvo da ira dele.
Um músculo contorceu-se no maxilar de Bastian. As suas mãos
algemadas retesaram-se, o suficiente para fazer tilintar as correntes e algo
triste tremeluziu no seu rosto. O seu pai estava a morrer, o seu pai queria-o
morto. Duas coisas com um peso tremendo.
O momento com tanto de terno como de perturbador terminou quando
Anton se virou para Lore.
– O que é que aconteceu quando tentaste despertar o corpo na câmara?
A boca dela abriu-se para mentir por instinto, para alegar
desconhecimento de qualquer câmara ou corpo. Mas o tempo para tais
mentiras já passara. Lore afundou-se no assento, com as algemas a tinir.
Junto à porta, Gabe retraiu-se ligeiramente. Ela recordou o dia em que o
conhecera, em que ele lhe desapertara as amarras, tentando deixá-la o mais
confortável possível, e afastou a memória bruscamente.
– Sabemos que foi por isso que lá foste – disse Anton, cansado,
interpretando o silêncio dela como relutância. – E foi por isso que não te
impedimos. Foi por isso que deixámos o bilhete, que a Danielle foi
instruída a falar-te das docas… a família dela também compreende que tipo
de ameaça representa agora August e é mais leal à Igreja do que à Coroa,
aos deuses acima dos seres humanos. Temos de saber o que aconteceu,
Lore.
O bilhete que Bellegarde plantara, Dani no lanche de Alie. Lore fora
levada como uma criança que segue de mão dada com os pais; tinham sido
levados até ali com tanta facilidade.
Atrás de Anton, Gabe fechou o olho e desviou o queixo. Ele saberia?
Teria feito parte do plano de Anton desde o início?
Os restantes olharam para ela, os Presque Mort e Bellegarde e até
Bastian, com diversos níveis de confusão e expectativa. Lore encolheu-se,
de repente consciente de novamente ter fracassado.
– Não resultou. Não disseram nada de novo.
– Nada de novo – repetiu Anton. – Então, o mesmo da outra vez.
Ela assentiu com a cabeça.
Um olhar fugaz entre Anton e Bellegarde, tão rápido que poderia ser
fruto da imaginação dela.
– E o que mais aconteceu, Lore?
– Primeiro, tive de passar pelo seu trinco – replicou ela com petulância.
Se ele lhe falava como quem se dirige a uma criança, ela podia agir como
tal.
Um leve sorriso curvou a boca fina do Supremo Sacerdote.
– Sim, foi uma bela façanha. Foi preciso praticar muito para domar a
Mortem dessa forma. Praticar e investigar. – Inclinou a cabeça na direção
de Malcolm por um instante. – É uma sorte termos mantido tanto
conhecimento na biblioteca.
Malcolm cingiu os lábios. Nada disse.
– E depois disso? – instigou Anton.
– Despertei um deles. – Não referiu as marcas na mão do cadáver. – Mas
todos se ergueram. Todos os que estavam naquela câmara, sem exceção.
– Ergueram-se? – perguntou Bellegarde, com entusiasmo. Atrás dele, um
ar de leve repulsa espasmou no rosto de Malcolm antes de este se obrigar de
novo à neutralidade. – Conseguiam andar?
Ela assentiu, apesar de o entusiasmo do nobre perante um bando de
cadáveres a moverem-se lhe retorcesse a boca com uma repugnância
semelhante à de Malcolm.
– Todos se moveram ao mesmo tempo. Levantaram-se das suas lajes e
começaram a avançar na nossa direção.
– Enquanto gritavam – acrescentou Bastian. – Não te esqueças dos
gritos.
Mas a questão dos gritos não parecia interessar tanto a Bellegarde. Ele
virou-se para Anton com um entusiasmo mal contido.
– Isso significa que as amarras resultam. Só é preciso…
Anton ergueu uma mão e o nobre calou-se de pronto.
– Que amarras? – disparou Lore. – Estão a falar de quê?
O Supremo Sacerdote suspirou.
– Nós atamos os cadáveres – explicou tranquilamente. – Atei ontem o
nó, mas o Gabriel e o Malcolm é que canalizaram a Mortem. Aplicando na
prática todos os anos de estudo sobre propriedades mágicas.
O olhar dela incidiu em Gabe, o instinto a impor-se ao desejo de não
olhar para ele, uma renovada sensação de traição a dar-lhe a volta ao
estômago. Os ombros de Gabe estavam curvados, a cabeça inclinada para
que ela não lhe visse a expressão.
Anton reparou. Notou-se o seu olhar perspicaz.
– Ligámos os cadáveres – prosseguiu –, de modo a que o que aconteça a
um também aconteça aos outros, assim que a Mortem neles for de novo
canalizada para o exterior. Enquanto experiência, compreendes, para ver se
despertar um dos mortos despertaria todos. – Apontou para Lore. – Mas o
despertar deve ser executado por um necromante poderoso. O mais
poderoso que pudéssemos encontrar e apenas depois de o seu poder ser
aperfeiçoado, tanto pela aproximação da idade da Consagração como pela
proximidade do Spiritum. – A sua mão apontou para Bastian. –
Precisávamos de que vocês os dois se aproximassem, para que os vossos
poderes se aprimorassem mutuamente. A Lei dos Opostos em ação.
– Eu não tenho a merda do Spiritum – disse Bastian, entre dentes. –
Nenhum de nós tem, é um conto de fadas.
– Apollius dá a oferenda ao seu escolhido – disse Anton num tom
brando. – Que és tu, Bastian. – Os dedos dele ergueram-se e tocaram na
face marcada do seu rosto. Havia cicatrizes também na sua mão, reparou
Lore. Pareciam novas, ainda rubras e inflamadas.
– Foi o próprio deus quem mo disse – prosseguiu Anton. – Disse que
eras o Arceneaux a quem concedera o seu poder. Disse que Gabriel Remaut
e uma filha das catacumbas deveriam manter-se perto de ti após a tua
Consagração e que isso prepararia o caminho para o regresso de Apollius.
– O quê?
A voz de Gabe, fina e baixa. O seu olho azul arregalou-se, e a boca
abriu-se e tornou a fechar-se.
– Isto está em curso há anos – murmurou Anton. – A ecoar através dos
tempos. Apollius a descer para comungar connosco. Um príncipe
Arceneaux, um filho da traição e a filha de uma Irmã da Noite, nascida com
a capacidade de canalizar Mortem. – Abriu as mãos, sorriu com gentileza
com o canto da boca que o podia fazer. – O mais claro que alguém ouviu a
Sua voz desde o próprio Gerard Arceneaux.
O choque deixou Gabe tenso e pálido. Abanou ligeiramente a cabeça,
como se fosse capaz de unir as palavras de Anton de uma forma diferente,
uma que fizesse sentido.
Naturalmente que a coisa a que se agarrou foi a ela. A prova de que ela
era algo ímpio.
– A filha de uma Irmã da Noite… – Gabe virou-se para Lore, com o
choque a passar a horror. – O que está ele a dizer?
Ela não soube o que responder. Todas as razões para Lore não lhe ter
contado surgiram bem nítidas: a expressão repugnada, a forma como recuou
um passo por instinto, apesar de estarem a metros de distância. Anton
acabara de dizer que eles tinham sido usados ao longo de todo aquele
tempo, levados a representar uma visão que ele nunca partilhara por
completo com eles. Mas o que mais chocava Gabe era Lore, a Irmã da
Noite, Lore, que sustinha a morte nas suas mãos desde que nascera.
Bastian reparou. Semicerrou os olhos, uma curva cruel a dobrar-lhe a
boca.
– Vês porque é que ela não te contou, Remaut?
Gabe engoliu em seco.
– Contaste ao Bastian?
Ela continuou incapaz de falar. O Príncipe Sol fê-lo por ela.
– Sim – disse ele, recostando-se na cadeira, as pernas a estalar e as
correntes a tinir. – Ela contou ao Bastian.
Malcolm, Bellegarde e Anton nada disseram, deixando o silêncio abater-
se em volta deles como um sudário sobre um corpo. A expressão de Anton
nada revelava. Acabava de aplicar um golpe a Gabe e marimbava-se para
isso. Acabava de desfazer tudo o que eles achavam que sabiam uns sobre os
outros, sobre eles próprios, sem mostrar qualquer tipo de emoção.
Visões e profecias e golpes e guerras, mas tudo isso perdia importância
para Lore, face às mortes que forjavam. Face à justiça rumo à qual
aparentemente nunca estivera a dirigir-se, que não soubera até àquele
momento que tanto, tanto desejava.
– Então, matou-os? – perguntou. Todos aqueles corpos, aquela criança…
todos mortos em prol de uma experiência, para ver o que poderia ser feito
com a magia horrível que vertia de uma deusa sepultada e uma rapariga que
fora amaldiçoada com ela. Para a Cidadela e para a Igreja, aquelas pessoas
eram descartáveis e Lore odiou isso mais do que alguma vez odiara algo. –
Destruiu todas aquelas aldeias?
– Não – respondeu Anton, num tom quase piedoso. – Não, Lore, não
destruí as aldeias.
Isto tudo e continuavam sem saber. Isto tudo e não estavam mais
próximos das respostas.
– Mas o que os está a matar não é nada em comparação com o que o
August planeia fazer com eles – prosseguiu Anton. – Ele quer usá-los como
um exército. Um exército que não pode ser derrotado. – Olhou para Lore. –
Mas trata-se de um exército que tu agora controlas, Lore. Foi por isso que te
encaminhámos esta noite para as catacumbas, antes do baile do eclipse.
Para poderes assumir o controlo dos exércitos dos mortos antes que o
August o faça.
Capítulo 37

Amor azedado é o remédio mais amargo.


– Provérbio caldienano

–N ão –Atédisse Lore.
Gabe, ainda chocado com a revelação do passado dela e com a
visão de Anton, quase pareceu sentir orgulho nela por causa disso. Quase.
– Não? – disse Anton, num tom brando.
– Não o farei. Não os despertarei. – O olhar dela saltou de Anton para
Bellegarde e para Malcolm, em busca de um sinal de que aquilo resultaria,
que a sua recusa teria algum significado. – Não os despertarei, não os
controlarei. Não farei nada pelo August, nem por si.
Anton suspirou.
– Minha querida – murmurou. – Receio que seja demasiado tarde para
isso.
O sol a subir na janela projetou calor na nuca dela, uma queimadura
como a da cicatriz em forma de lua na sua mão.
– Como assim?
O Supremo Sacerdote voltou a suspirar, como se aquilo lhe fosse penoso.
Ergueu uma sobrancelha, um professor a incentivar um aluno
particularmente relutante.
Mas Lore não queria a persuasão gentil dele. O que queria era a merda
de respostas.
– Como assim, caramba, diga-me o que…
– Lore. – A voz de Gabe soou rouca. Mesmo assim, abafou a dela.
Bastian ergueu a cabeça, com um olhar fulminante para o outro homem.
Gabe não lhe prestou qualquer atenção. Só olhava para Lore.
– Lembras-te do que aconteceu ao Cavalo? Porque tivemos de ir
verificar o corpo nas criptas, naquela noite em que o Bastian nos encontrou?
Ela franziu as sobrancelhas, sem saber o que fazer da súbita mudança de
direção da conversa.
– Claro – disse ela vagarosamente. – Despertei-o e depois ele…
E depois ele permaneceu desperto. Ela despertara-o e ele permanecera
desperto, tal como o corpo da criança na câmara mortuária.
Anton disse que os cadáveres das aldeias estavam unidos – o que
acontecia a um, acontecia a todos.
Lore mexeu-se abruptamente na cadeira, com o peso das algemas de
ferro a exercerem uma dor penosa nos ombros.
– Eu posso reparar isso. Já o fiz antes.
– Desta vez, não podes – disse Anton com gentileza. – São centenas de
corpos. Lore… até para ti, canalizar tanta Mortem seria praticamente
impossível.
– Têm de me deixar tentar! – Não queria chorar ali, não na presença
deles, mas sentia-se tão zangada e esgotada e era sempre mais complicado
travar o choro quando se sentia exausta, a pensar nas catacumbas por baixo
deles, cheias de cadáveres aos gritos que tinham sido pessoas, apenas
pessoas…
– Então, foi por isso que nos conduziste lá abaixo. – A voz de Bastian,
calma e fria, atravessando o pânico dela. O olhar dele estava cravado em
Gabe. – Foi por isso que voltaste para nos ajudar. Para a Lore despertar os
mortos e não haver forma de voltar atrás.
Gabe nada disse. Não teve de o fazer. A sua expressão revelava que a
acusação era verdadeira.
Bastian recostou-se, descontraído como se a cadeira e as correntes
fossem um trono dourado.
– Porque é que não havemos de pensar que trabalhas de novo com o meu
pai? Depois de nos teres levado a acionar o seu exército de mortos-vivos?
– Porque o August não controla o exército – disse Anton. – E, se formos
bem-sucedidos, nunca há de controlar.
– O August nunca seria capaz de o controlar, seja como for – contrapôs
ela. – Ele não consegue canalizar Mortem.
– Para já – murmurou Anton.
Ao longe, os sinos começaram a repicar. Primeiro Dia. Algures, as
orações do nascer do sol estavam a começar.
Gabe mantinha-se imóvel como uma estátua no seu lugar junto à porta,
de expressão empedernida, nada revelando. Lore fechou os olhos e rodou a
cabeça. Não queria olhar para ele, mas os seus olhos deslizavam sempre
para lá, consistentemente atraídos para a gravidade dele.
– E o que foi exatamente que vos levou a decidir que não podiam
permitir que isto acontecesse? – questionou Bastian. – Há anos que o meu
pai é um tirano. Sugou este país até ao tutano, deixou que os nobres… tu…
enriquecessem enquanto toda a gente fora das muralhas da Cidadela tinha
cada vez menos a cada ano que passava. Então, só se importam quando ele
pensa em guerra? Quando se torna algo que pode afetar-vos?
– O August não quer saber de Apollius. – A expressão de Bellegarde não
era bem um sorriso de desdém, mas estava lá perto. – Para tentar evitar o
seu destino, ele tentaria alterar o seu papel na história, ocupar um lugar que
não é seu. A visão do Supremo Sacerdote foi clara. O August não pode ir
para a guerra com Kirythea. Isso minaria tudo.
Não foi uma resposta, não mesmo, mas ainda assim encerrou a conversa.
A questão não era proteger Auverraine. A questão era o poder e o recurso à
religião para o manter.
O sorriso de desdém de Bastian foi bem mais evidente do que o de
Bellegarde.
– Nada disto altera o facto de eu não dispor de magia. Eu não sou o
eleito.
– Agarra-se a ti como tinta em papel. – Havia um tom de reverência na
voz de Anton; olhou para o sobrinho com uma expressão serena, como se
olhar para ele aplacasse alguma dor no coração. – Acredites ou não,
Bastian, és aquele por quem temos aguardado. Aquele que Apollius
abençoou. Lamento não ter percebido desde o início.
Bastian contorceu-se na cadeira, como se tivesse tentado afastar-se do tio
se as correntes não o tivessem evitado.
Lore sentia a cabeça a doer. Pensou na noite anterior, quando estavam
naquele átrio cheio de flores de veneno, no ouro que envolvia as mãos dele.
O olhar de Bastian incidiu na direção dela, como se revivesse a mesma
recordação. Ele inspirou tremulamente, enrijeceu a linha do maxilar.
– Quem está a par disto?
– Todos, se acreditarem nos Opúsculos.
– Sabes ao que me refiro, velho. – Algo venenoso fervilhou na voz de
Bastian. Algo no limiar da violência.
Anton reparou, fitando pensativamente o sobrinho.
– Apenas o teu pai, e os presentes nesta sala. – A sua expressão serena
ensombreceu. – É outra razão para o August te querer morto. Acha que
poderá ser ele mesmo o eleito de Apollius quando se livrar de ti.
– Transubstanciação – murmurou discretamente Malcolm. – Superar o
físico com o espiritual.
O Supremo Sacerdote assentiu.
– E assim que ele detiver o Spiritum, pode deitar a mão ao poder da Lore
e canalizar ambos. Brandir vida e morte como uma espada em cada mão.
– Não se pode ter ambos. – Lore abanou a cabeça. – A Mortem e o
Spiritum anulam-se mutuamente.
– Antes pelo contrário – respondeu Anton. – Uma fortalece a presença
do outro. Apenas em determinadas circunstâncias podem ser detidos em
simultâneo. – O seu único olho saltitou entre Bastian e Lore, inescrutável. –
Mas pode ser feito. Num eclipse, por exemplo.
Bastian nas catacumbas, obrigando-a a prometer não ir ao baile do
eclipse, tudo por causa de um pressentimento. Todos sabendo coisas que
não deveriam saber, conhecimento a encaixar no lugar certo sem uma
explicação lógica.
– Então, tem sido você desde o início. – A visão de Lore ficou turva, a
argola de ferro que lhe prendia as correntes a tornar-se uma mancha
cinzenta em contraste com o chão. – A observar-me desde que saí das
catacumbas, a organizar a rusga para eu me expor. A trazer-me aqui e a
plantar pistas que me levariam a despertar o exército, tudo para pôr no
devido lugar as peças da sua visão. Ludibriando também o August, até ele
ter decidido que queria a guerra.
Anton assentiu, de forma tranquila e imperturbável.
Tão habituados a serem usados, todos.
– E você? – Lágrimas ainda lhe turvavam a visão; quando olhou para
Gabe, viu apenas uma sombra alta, um clarão de vermelho dourado. – Ficar
comigo, estar com… ser meu amigo? – Calou-se antes que dissesse outra
coisa, algo mais acalorado. – Foi tudo fingido?
– O Gabriel estava tão a leste como tu – disse Anton. – Quando ontem
me procurou e me contou o teu plano, esperava que eu te travasse. Estava
muito relutante em deixar-te deambular pelas catacumbas.
Lore baixou o olhar e concentrou-se intensamente no chão sob os seus
pés.
– Eu disse-lhe, então, o que precisávamos que acontecesse. O rumo que
seguíamos. A nossa necromante a erguer os mortos e os poderes do meu
sobrinho aperfeiçoados pelos teus, para ele poder aceder ao seu lugar de
pleno direito. Agora, infelizmente, há ainda a questão do eclipse. Da tua
Consagração, Lore.
– A minha Consagração?
– O teu poder sobre a Mortem atingirá o seu pico no teu vigésimo quarto
aniversário. Que coincidirá com o eclipse. – Anton cruzou os braços. – O
August planeia matar-vos a ambos e retirar-vos o poder no baile.
– Mas, como é que ele o faria? – Ela dirigiu a sua pergunta para o solo;
sentia a cabeça demasiado pesada para a erguer. – Roubar o nosso poder?
O rosto com cicatrizes do Supremo Sacerdote quase se revelou piedoso.
– Matando-te no momento em que o eclipse é total, quando a lua tapa
por completo o sol. Quando os poderes da vida e da morte podem ser
brandidos juntos. – O olho dele cintilou. – Quando os recipientes eleitos se
manifestam.
– Não – disseram Bastian e Gabe em uníssono, as suas vozes em
harmonia contra as paredes de mármore. Lore levantou a cabeça; os dois
homens entreolharam-se com puro ódio, todos aqueles sentimentos
complexos finalmente a cristalizar em algo afiado como uma lâmina.
– Ele não vai matar a Lore. – Gabe desviou o olhar de Bastian, para fitar
antes Anton. – Disse…
– Paz, meu filho. – Palavras calmas, mas a voz de Anton eriçou-se. Gabe
encolheu-se. – A Lore estará absolutamente segura.
– Parece-me que o melhor seria escondê-la até terminar o eclipse. –
Gabe avançou, espetando o queixo com determinação; contava com outra
razão para hesitar e quis evitar que tal acontecesse desta vez. Nada disse
sobre a segurança de Bastian. – Mantê-la aqui ou enviá-la para as mães
dela.
Mari e Val. Chamar-lhes mães, mesmo conhecendo já a sua verdadeira
origem, parecia uma espécie de absolvição.
Todavia, Anton abanou a cabeça antes que Gabe acabasse de falar.
– Não resultará. Necessitamos de que as coisas prossigam como se não
fizéssemos ideia do que o August planeia, para que ele não desconfie.
– Então, vamos a esse maldito baile como se nada se passasse – disse
Bastian, olhando para Lore –, e confiamos que tu impedes o meu pai de nos
matar e iniciar uma guerra.
As suas palavras estavas carregadas de ceticismo.
– Tu – murmurou Anton –, não fazes ideia das coisas que impedi que o
teu pai fizesse, Bastian. De todas as coisas de que te protegi.
Isso bastou para o fazer desviar o olhar do de Lore. Pela primeira vez
desde que ela o conhecia, o Príncipe Sol pareceu completamente perdido.
– Muito bem. – Anton virou-se para Gabe, como se o assunto estivesse
encerrado. – O baile é daqui a dois dias. Sugiro a todos que descansem
bastante até lá, pois é garantido que será uma longa noite. Lore, ficas nos
teus aposentos. O Gabriel leva-te lá e fica de guarda.
Mantém-na prisoneira. Garante que ela não foge. Lore desejou ter força
suficiente para ainda assim o tentar, mas não tinha. Os últimos dias tinham-
na esgotado.
– Bastian – disse Anton, virando-se para trás. – Acho que é melhor
ficares aqui.
Uma gargalhada que pareceu um latido rude.
– Cá está. – Bastian recostou-se na cadeira e agitou os pulsos para fazer
tinir as correntes. – Então, agora sou um prisioneiro?
– Pensa antes que és um convidado – replicou Anton.
Bastian não respondeu, mas os seus olhos cintilaram com uma promessa
fria de violência.
– Eu mantenho-te em segurança, sobrinho – murmurou Anton, quase
com reverência. – A seu tempo, tudo será revelado.
Lore não percebia o significado daquilo. Pelos vistos, Bastian também
não. Ela deixou que Gabe lhe desapertasse as correntes, deixou que a
encaminhasse em silêncio até à porta.
Quando olhou para trás, o dia já rompera por completo na janela atrás de
Bastian, deixando-lhe as feições na sombra, recortando-o a dourado.
Iluminava-o como raios em redor de um sol, como um halo.
Capítulo 38

Por vezes, vê-se o amor a chegar. E quando toma um rumo


diferente, devemos sentir-nos gratos.
– Excerto da obra de Marya Addou,
poetisa malfourana

O caminho de regresso aos aposentos deles fez-se em silêncio. Gabe


manteve-se atrás dela, uma sombra com um só olho a seguir-lhe os
passos e a assegurar-se de que ela ia para onde devia. Apesar de já não estar
acorrentada, foi a primeira vez que Lore se sentiu verdadeiramente
prisioneira na Cidadela.
Os aposentos deles estavam trancados. Lore enfiou a chave até meio na
fechadura da porta antes de Gabe se pôr ao seu lado.
– Não funciona. – A voz era grave. – O Anton mandou mudar a
fechadura.
Ela olhou para ele, mas nada disse. Nada havia a dizer.
Gabe engoliu em seco. Destrancou a porta com uma chave que retirou do
bolso e depois afastou-se para que ela entrasse primeiro.
Os aposentos pareciam estranhos – desconhecidos e desadequados,
quando antes se tinham revelado tão acolhedores quanto ela poderia esperar
naquele lugar. Em especial, sabendo que Anton mudara a fechadura a dado
momento depois de ela ter saído na noite passada. Pela miríade de infernos,
ele provavelmente teria alguém à espera nos vestíbulos, a ver quando ela
saía para poderem lançar mãos ao trabalho de imediato.
Porque Gabe lhe tinha contado. Gabe contara-lhe tudo.
Sentia os pulsos em carne viva. O ferro deixara-os com comichão.
Massajou-os com insistência, tentando expulsar a sensação da pele,
tentando fazê-la parar…
Uma pressão suave, os dedos de Gabe intrometeram-se onde tinham
estado os dela.
– Lore, vais magoar-te…
Dissera a verdade quando contou a Gabe e Bastian que não era boa a
lutar, mas o instinto sobrepôs-se. Lore arrancou o pulso da mão de Gabe e
deu-lhe uma palmada com a outra mão, atingindo-o no ombro,
desequilibrando-o e afastando-o.
– Não me toque – rosnou ela. – Porra, não me toque.
Ele olhou fixamente para ela, um olho azul arregalado. O maxilar dele
retesou-se sob os pelos ruivos de barba a nascer no queixo.
– Estava a tentar manter-te em segurança.
– Recorrendo à própria pessoa que sabíamos que estava a mentir?
– Ele está do nosso lado! Ouviste tudo tal como eu, sabes que o Anton
trabalha contra o August!
– Mas você não sabia. – Ela voltou a levar os dedos ao pulso, coçando e
coçando. – Não fazia ideia daquilo em que o Anton estava envolvido e só
por pura e estúpida sorte não conseguiu que acabássemos os três
assassinados!
– Era isso ou ver-te avançar para uma morte bem mais provável nas
malditas catacumbas! – Gabe passou as mãos pelo seu cabelo cortado rente.
– Eu queria que ele vos impedisse sequer de descer até lá. Aos dois.
Pareceu-me algo muito mais urgente do que brincar à política…
– É mais do que brincar à política! Se estivéssemos certos, se o Anton e
o August continuassem do mesmo lado, o Bastian poderia…
– Peço desculpa – interrompeu Gabe, quase com uma rosnadela. –
Esqueci-me de que devemos sempre pensar primeiro no Bastian.
– Poupe-me – silvou Lore. – Ambos sabemos o que se passou. Sentiu-se
avassalado pela ideia de talvez, por uma vez, se ter equivocado em relação a
algo. Assustou-se.
As mãos de Gabe abriram-se e fecharam-se, quase cerradas em punhos.
O instinto também se apoderara dele e dizia-lhe que defendesse o homem
que avançara quando o seu pai se esvaíra em sangue.
– Fosse qual fosse o lado do Anton – disse ele –, eu sabia que seria o
correto.
Ela riu-se, num tom alto e rude.
– Pelos deuses, Gabe, parece um cão pontapeado a voltar para junto da
bota. O Anton acolheu-o porque alucinou que um deus desaparecido lhe
disse que o fizesse. Ela não o ama. Nunca amou. Não é seu pai, por muito
que a Igreja queira que lhe chame isso.
O Presque Mort avançou um passo na direção dela e ela recordou, contra
a sua vontade, aquela noite no seu quarto, a boca dele no pescoço dela, as
mãos dele a vaguear pelo seu corpo. Pensou se ele a beijaria assim agora.
Parecia ser o padrão deles, a única forma de conseguirem comunicar
quando tudo se empilhava em montes pontiagudos, impossíveis de serem
escalados.
– Eu queria manter-te em segurança. – A explicação saiu-lhe grave e
sombria, mas ele estacou a uns passos e deteve-se, não permitindo que o seu
corpo se aproximasse um centímetro mais que fosse do dela. – E, se isso
implicasse magoar o Bastian, que assim fosse.
Lore arreganhou os dentes.
– Estou farta de ser a corda que cada um de vocês puxa para o seu lado.
– Principalmente, porque já escolheste o vencedor, não foi? – Ele riu-se
tal como ela fizera: sem alegria, nenhuma. – Fizeste-o no momento em que
lhe contaste as tuas origens.
Pronto, tinha de ser.
– Só soube disso há uma hora – vincou Lore. – Não faça de conta que é
uma justificação.
– Há quanto tempo? – rosnou Gabe. – Há quanto tempo é que ele sabe?
Perguntei-te, naquele primeiro dia. Perguntei-te como é que começaste a
canalizar Mortem e tu mentiste-me. Alguma vez lhe mentiste ou ele foi
merecedor da verdade desde o início?
Mantinha-se muito direito e com a cabeça erguida, mas notava-se um
certo abatimento nos seus ombros. Esforçava-se tanto por não mostrar dor
no rosto que esta se manifestava noutros pontos.
– Contei-lhe na noite em que ele nos levou ao ringue de boxe –
respondeu Lore. – Da primeira vez.
O olho dele tremeluziu ao fechar, e depois abriu.
– Há tanto tempo?
Ela nada disse.
Gabe assentiu com a cabeça, os lábios contorcidos num sorriso amargo.
– Então, vocês os dois já há algum tempo que andam a rir-se de mim.
– Não foi nada disso, Gabe. A única razão para eu lhe ter contado foi por
ele ter ameaçado…
– Talvez tu não te risses, mas ele sem dúvida que sim. E talvez ele te
tenha ameaçado, Lore, mas ambos sabemos que irias acabar por lhe contar.
Confiaste nele o suficiente para o seguir até ao raio das catacumbas. –
Abanou a cabeça com uma gargalhada cortante. – Mais uma vez ele
ganhou. Mais uma vez ele é melhor.
– Deus Sangrante, nem tudo tem que ver consigo e com a sua culpa! –
Lore abanou a cabeça. – Quer saber porque não lhe disse de onde vim?
Porque já sabia qual seria a sua reação. Sabia que acharia que eu era uma
espécie de monstro.
– Não me conheces bem – disse Gabe, e era verdade. Ele, ela e Bastian
estavam de certa forma ligados, mas isso não fazia com que se conhecessem
mesmo, em todas as suas complexidades. As suas ligações estranhas
enfatizavam isso mesmo, em vez de o ocultarem.
– Não, não conheço – disse Lore, agastada. – E se calhar é melhor
manter as coisas assim.
Como se ela tivesse voto na matéria. Como se não sentisse as paredes de
algo a encerrarem-se, encurralando os três no centro.
Não houve qualquer vestígio de emoção no rosto de Gabe – nem dor,
nem raiva. Ele limpara tudo, deixando um vazio na sua esteira.
– Descansa um pouco. – Monótono, frio. – Estou lá fora. – Contornou-a
e abriu a porta.
Lore virou-se para o acompanhar com o olhar.
– E quando é que posso sair?
– O baile do eclipse é daqui a duas noites, às oito – respondeu Gabe. –
Por isso, uns dez minutos antes disso.
A porta fechou-se. Ouviu-se o trinco.

Ela não pretendia adormecer.


Foi praticamente como se não conseguisse evitá-lo. Num momento,
estava sentada no estúdio minúsculo, enroscada na única cadeira, e a seguir
deu por si junto a um vasto mar azul, com areia branca a esboroar sob os
seus pés, a maré a rolar gentilmente, deslizando pelos seus tornozelos
despidos.
– Hum – disse Lore, constatando então que era a primeira vez que
conseguia falar num desses sonhos. Isso pareceu-lhe importante.
O vulto ao lado dela pareceu pensar o mesmo. Lore não virou a cabeça
para o fitar, mas sentiu-o a retesar-se, como se se tivesse tornado mais
corpóreo.
– Está a chegar a tua hora. – Suave, sem textura, uma voz que não
pareceu provir de uma garganta. – E não sei como o processo vai mudar,
por isso mais vale tirarmos o máximo proveito disto.
A voz pareceu estar a convencer-se a si própria.
Um puxão no coração dela, como se estivesse a ser arrancado do peito.
A corrente de fumo negro a fluir dela em direção ao céu.
Requereu um grande esforço rodar a cabeça. Mas Lore conseguiu.
O vulto também se virou. E era Cedric. O rosto perfeito e imaculado de
Cedric acima da ruína que era o seu corpo, os dentes ensanguentados
abrindo-se num largo sorriso.
Mas o vulto alterou-se. A criança das criptas, a boca aberta. Outro borrão
e era a cara da mãe dela a fitá-la.
O seu cabelo era comprido, liso e claro, os olhos do mesmo castanho
tipo mel de Lore. Com um sorriso gentil que Lore nunca lhe vira, inclinou-
se para a frente, pressionando uma mão na face da filha.
– Ela nunca para de tentar – murmurou, enquanto o seu polegar roçava
na pele de Lore, apesar de a sua voz não ser a correta. Era suave de uma
forma nada natural, a mesma voz de antes, despojada de tudo o que fosse
humano. – Ela não entende que Ele não pode permitir que Eles regressem. –
A cópia da sua mãe suspirou, passou a mão pelo cabelo. – A culpa não é
tua. Pelo menos, desta vez podemos utilizar o que Ela oferece. Em breve,
tudo acabará.
A sensação de algo a puxar no peito de Lore tornou-se insuportável,
como se o seu corpo tentasse virar-se do avesso. Gritou enquanto fumo
emplumava graciosamente pelo céu fora.
– Merda.
Lore sentou-se, afastando dos olhos o cabelo emaranhado e suado. Sentia
o pescoço a arder – adormecera com o pescoço apoiado no braço da cadeira
num ângulo estranho. Voltando a praguejar, massajou o local da dor e
cambaleou até à sala de estar, espreitando para o relógio.
Após um dia de isolamento, a escuridão do lado de fora da janela
indicou-lhe que era a manhã do seu aniversário.
O eclipse seria nessa noite.
Havia comida na mesa atrás do sofá. Coisas simples, maçãs, pão e
queijo, coisas que podiam ser postas e deixadas ficar.
Interpretou aquilo como sendo uma mensagem em código. Ninguém iria
abrir aquela porta, apenas quando estivessem a postos para a escoltar até ao
baile do eclipse.
Escoltá-la até à sua Consagração e ao ritual que August planeara para se
apoderar da sua magia. Um ritual que teria de confiar que seria travado por
Anton; de contrário, ela e Bastian seriam mortos.
Era quase engraçada, a facilidade com que aceitara que Bastian era
mágico. Que nascera para canalizar vida, da mesma forma que ela nascera
para canalizar morte, que ela era o reflexo sombrio dele. Lá em baixo nas
catacumbas, com os mortos inquietos a avançarem lentamente para a porta
e com filamentos de Mortem enredados nos seus dedos, sentira-o quando
Bastian afastara os fios colados. Vida, a correr, as veias dela repletas com
demasiado sangue, os pulmões com demasiado ar. Naquele momento, ele
comandara tanto a vida como a morte, segurara ambas nas suas mãos.
Ela fora o para-raios dele, a escuridão que fizera a luz brilhar com mais
intensidade após a Consagração dele. E, agora, aproximava-se a dela. Lore
sentira o seu poder a fortalecer ao passar mais tempo com Bastian, à medida
que se aproximava dos vinte e quatro anos. Um momento que, para outros,
significava celebração.
Para ela, significava um possível assassinato.
Fazia sentido. Lore pegou num pedaço de queijo e deixou-se cair de
novo no sofá.
Uma lágrima escorreu-lhe pela têmpora e molhou-lhe o cabelo. Não se
tinha apercebido de que se formara até lhe deslizar para o ouvido, quente,
húmida e notoriamente desagradável.
– Vai-te lixar, Gabe – murmurou ela, na esperança de que ele ainda
estivesse do outro lado da porta, na esperança de que ele ouvisse. Por um
lado, queria tentar abri-la, verificar se ele estava do outro lado. Verificar o
que ele faria se ela tentasse sair. Iria atá-la? Derrubá-la? Beijá-la?
Todas as opções lhe pareciam possíveis.
Pensar em Gabe levou a sua mente a incidir de novo em Bastian. Onde
estaria ele, se Anton estaria a ser cruel. Não lhe parecia – a bizarra conversa
que tinham tido enquanto estavam acorrentados passara-lhe a ideia de que
Anton andaria a proteger Bastian havia mais tempo do que tinham noção;
não conseguia libertar-se da recordação da sua voz quase reverente. Ainda
assim, deixá-lo à mercê do tio deixava-a nervosa.
Nenhum deles se encontrava a salvo. Nenhum deles podia partir.
A mente dela vagueou, mas desta vez conseguiu evitar adormecer. A luz
que entrava pela janela brilhou ao amanhecer, tornou-se mais intensa ao
meio-dia e começou a diminuir lentamente até ao tom dourado de uma tarde
de solstício.
Comeu mais um pouco, principalmente para apaziguar o seu estômago
revolto. Abriu uma garrafa de vinho do aparador abaixo da janela e pensou
brevemente na primeira noite em que ela e Gabe o surripiaram antes de
sacudir violentamente a cabeça dorida, como se a recordação fosse uma
mosca a que pudesse dar uma palmada.
Lore bebeu metade da garrafa e deixou-se flutuar agradavelmente no
zumbido caloroso da mesma enquanto decorreu outra hora e a janela
escureceu. Ainda não chovera e o ar seco deixava a luz solar com um aspeto
quebradiço, como vidro acabado de polir.
Quando o relógio assinalou que faltava meia hora para as oito, a porta
abriu-se. Gabe. Olhou para o cabelo selvagem e para o rosto ruborizado
dela, mas não teceu quaisquer comentários. Trazia nas mãos um saco com
roupa, que pôs diante dela.
– Veste-te. – Soou como se não falasse há dias, como se as derradeiras
palavras que proferira tivessem sido dirigidas a ela, e iradas. – Saímos
daqui a vinte minutos.
– Um homem de palavra.
O maxilar dele retesou-se. Pousou o saco e recuou para a porta, voltando
a rodar a chave na fechadura ao sair.
Com cuidado, ainda sentindo os efeitos do vinho, Lore avançou e pegou
no saco, retirando de lá um vestido. Não era pesado – tiras de renda bem
preta compunham a saia, com um corpete simples preto que mergulhava
bem fundo à frente e atrás e deixava os braços a descoberto. Nada de
elementos decorativos, nem bordados. Apenas renda e seda pretas.
– Está na hora do espetáculo – murmurou Lore.
Capítulo 39

Agarrar a escuridão e a luz – agarrar tudo aquilo que compõe


o mundo – deveria ser fardo para um único deus. Todos os
poderes virão à Minha mão e então o mundo saberá a hora
do Meu regresso.
– O Livro da Lei Sagrada, Opúsculo 856
(texto verde, proferido diretamente
por Apollius a Gerard Arceneaux)

V inte minutos mais tarde e faltando dez para as oito, Gabe abriu de novo
a porta, precisamente quando Lore passava um pente pelo cabelo.
– Dê-me um segundo – disse ela, torcendo-o numa trança desordenada e
espalhando-o em volta da cabeça. O saco também continha um conjunto de
ganchos de cabelo pretos; prendeu-os na trança para a segurar e só se picou
na cabeça uma vez.
Ele nada disse, manteve a postura tensa. Os seus ombros ocupavam
quase por completo a largura da porta, sólidos e direitos. Ele tinha
controlado a apreensão que antes os deixava curvados. Um som áspero; a
garganta dele a aclarar.
– Estás…
Estava bonita e tinha noção disso. O vestido servia-lhe na perfeição,
como se tivesse sido feito à medida para ela, e a falta de ornamentos ou
joias assentava bastante bem. Lore resistiu à tentação de rodopiar. Fizera-o
umas vezes antes de ele abrir a porta, mas, por muito gratificante que
tivesse sido o rodopiar de saias, parecia-lhe algo mórbido, tendo em conta o
iminente ritual da desgraça. Em vez disso, ignorou Gabe, apontou com a
cabeça para o reflexo no espelho manchado e abeirou-se da porta.
– Vamos lá despachar isto.
Porém, ele não se moveu. Bloqueou a porta, olhando de alto para ela
com uma expressão que parecia pairar algures entre a determinação e a dor.
Ela olhou-o nos olhos, tentando impedir que a sua expressão revelasse o
que quer que fosse.
– Vou manter-te em segurança – murmurou ele. – Podes confiar nisso.
– Eu não posso confiar em nada – disse ela com leveza, sem vacilar; não
iria vacilar diante dele. Indicou a porta com a cabeça. – Vamos atrasar-nos.
Ele demorou-se ali mais um pouco, procurando palavras, mas sem
sucesso. Por fim, virou-se e ofereceu-lhe o braço, tal como fizera quando
eram recém-chegados e estavam vestidos como dedaleiras, rumando ao
baile de máscaras de Bastian sem fazerem ideia do que esperar.
Encaminharam-se para o vestíbulo. Seguiram em silêncio.

Numa reviravolta de ironia negra, o baile do eclipse decorria no mesmo


átrio que Bastian e Lore tinham atravessado a caminho das catacumbas.
Havia uma mesa comprida numa ponta do salão de vidro, praticamente
coberta pelas folhas de flores venenosas, embora as plantas estivessem
suficientemente longe para não representarem um perigo para a fonte de
vinho que gorgolejava no centro da mesa. Tinham sido instaladas cadeiras
de prata junto às janelas reluzentes, agrupadas para facilitar a troca de
mexericos. Ao canto, um conjunto de cordas tocava música animada para
dançarinos que rodopiavam no centro da pista de dança. Havia bastante
mais convidados do que Lore contara, o suficiente para deixar o amplo átrio
lotado.
Reconheceu Cecelia no canto, embora aparentemente ela não tivesse
levado chá venenoso para aquela festa em particular. Junto dela, Dani, a par
de outra mulher loura que só poderia ser a sua irmã. Amelia, recordou Lore.
Os olhos da mulher loura incidiram em Lore assim que ela entrou na sala e
logo se desviaram, mas Dani não desviou o olhar nem quando Lore a fitou.
Doía-lhe mais do que devia, saber que ela andara a trabalhar para Anton
desde o início, que todas as ofertas de companhia tinham tido um motivo
por trás. Era injusto da parte de Lore julgá-la por isso, tendo em conta as
circunstâncias, mas a dor manteve-se ao desviar os olhos da outra mulher.
Por um breve momento, pensou se Alie também estaria envolvida, se todas
as amizades hesitantes que fizera ali deixavam antever uma eventual
traição, uma base ainda mais tremida do que assumira.
Obrigou-se a parar de pensar nisso. Naquele momento, não tinha tempo,
nem forças para aquilo.
O trono de August não ajudava à sensação de assoberbamento. Não era
enorme como o do piso inferior – em vez disso, era um trono de viagem
assente num estrado de madeira na extremidade dianteira do átrio, forjado
em fio de ouro e prata entrançado. No cimo, um sol e uma lua pairavam um
sobre o outro, sustidos por filamentos de metais preciosos tão finos que
eram quase invisíveis.
O próprio Rei Santo parecia estranhamente estoico para uma festa.
Estoico e ainda pior do que na última vez que Lore o vira – o rosto
macilento, os olhos enfiados em covas escuras, a pele por baixo arroxeada.
Ele viu Gabe acompanhar Lore para dentro da sala, mas não mostrou sinais
de os reconhecer, ensimesmado em pensamentos.
Até então, parecia ser o único grande jogador presente. Não havia
Presque Mort, nem Anton, nem Bellegarde, apesar de Alie se encontrar
entre os dançarinos. Parecia uma festa como qualquer outra e a normalidade
transformou o medo de Lore de uma leve agitação no estômago para uma
espiral lenta no peito.
Lore procurou Bastian, na esperança de que ele ali estivesse, mesmo na
ausência dos seus captores. Não o viu. Os nervos levaram-na a contrair a
mão – Gabe cingiu o cotovelo em redor da mesma, como um torno.
– Dá um bom carcereiro – murmurou ela pelo canto da boca.
Algo nele desabou, apenas uma fração, a rigidez da sua postura a ceder.
– Lore, por favor…
– Até que enfim!
Na pista de dança, Alie separou-se da sua parceira de dança – Brigitte,
que acenou a Lore antes de avançar para a mesa dos vinhos – e
praticamente correu para eles, com um sorriso rasgado.
– Estava aqui a pensar quando chegavam! As danças estão quase a
terminar!
Mesmo tendo as revelações de Anton alterado tudo, ter Alie por perto
ainda era um conforto.
– Não começava só às oito? – questionou Lore.
– O jantar começa às oito – corrigiu Alie. – Ou um pouco depois,
calculo… Acho que a ideia é enquadrá-lo com o momento do eclipse total.
O lembrete – do que August planeara fazer quando a lua cobrisse o sol e
mergulhasse o mundo na escuridão, levou o pavor nas entranhas de Lore a
passar de uma espiral lenta para um nó apertado.
Alie sacudiu a mão para se refrescar, secando a película brilhante de suor
que tinha na testa.
– Não faço ideia porque é que o August se mostra tão inflexível em fazer
os seus poucos e selecionados convidados comerem às escuras.
Uns quantos convidados escolhidos. Ou seja, os que August julgava
estarem do seu lado, que ou não interfeririam com o ritual ou que, como
Bellegarde, planeavam trair o rei e travá-lo.
Lore não sabia ao certo qual a fação que mais a perturbava,
sinceramente.
A banda retomou a música, desta feita a um ritmo mais lento – uma
valsa.
– A última dança da noite. – Alie engoliu em seco e depois retesou o
queixo e olhou para Gabe, que se mantivera calado desde que ela se juntara
a eles. – Danças comigo, Gabe?
Ele retesou-se; Lore sentiu-o, a sua mão ainda presa no gancho do braço
dele.
– Lamento, mas…
– Ele adoraria – ouviu-se uma voz proveniente de detrás dele, grave e
familiar.
Bastian, graças aos deuses.
O Príncipe Sol não parecia minimamente cansado, além de uma fadiga
patente em redor dos seus olhos castanho-dourados. As suas vestes eram
pretas e sem elementos decorativos, a combinar com o vestido de Lore, o
seu único ornamento sendo o diadema de ouro na cabeça, desprovido de
pedras de granada. Sorria, mas o seu rosto estava pálido. O sorriso tornou-
se cortante ao dar uma palmada no ombro de Gabe, com um pouco de força
a mais para ser de companheirismo.
– O Duque Remaut não é de deixar as senhoras à espera.
Algo sombrio perpassou pelo rosto de Gabe, mas ele assentiu.
– Adoraria, Alie.
Até soou genuíno. Lore achou que até seria, apesar de tudo.
Ele desdobrou o cotovelo; a mão dela ficou livre. Bastian pegou-lhe de
imediato, com os seus dedos calosos encerrando-se em volta dos dela como
uma porta contra o frio da noite.
Allie puxou Gabe para a pista de dança; ele olhou para trás por cima do
ombro, de sobrancelhas franzidas sobre um olho azul e uma pala de couro.
– Cuidado – murmurou ele.
Nem Bastian, nem Lore reagiram. Gabe misturou-se na multidão atrás de
Alie.
A música continuava a tocar e Bastian encaminhou-a para a dança,
conduzindo com tanta naturalidade como fizera na noite do seu baile de
máscaras. O sorriso desapareceu do seu rosto assim que deixou de ter de
disfarçar para Alie.
– Temos de fugir.
Ela já contava com aquilo. O que não contava era com a agitação que lhe
gerava na barriga, a sensação de vertigem que o pensamento de fugir lhe
dava. Partir seria tão fútil como tentar agarrar o mar com as mãos. Não
apenas fisicamente, mas também espiritualmente, como se algo a prendesse
ali.
– Não podemos – murmurou ela. – Por muito que não queira confiar
nele, o Anton é a nossa única…
– Não compreendes, Lore. – Havia um certo desespero no tom de
Bastian, algo que lhe indicava que ele sentia a mesma atração por aquela
noite e tentava desesperadamente lutar contra isso. – Voltou a acontecer.
Outra aldeia.
Apenas a mão de Bastian na sua cintura a impediu de tropeçar na bainha
do vestido. Os dedos de Lore gelaram.
– Quando?
– Na noite passada. – Mantinha-a próxima de si e falava-lhe ao ouvido.
A quem visse, pareceriam estar a dois minutos de se escapulirem para um
recanto escondido, mas os rostos deles eram máscaras idênticas de medo. –
Uns quantos Presque Mort foram recolher os corpos… O Anton pôs o
Malcolm no comando.
Outra aldeia. Lore pensou no sono desconfortável, sonhos sombrios dos
quais recordava apenas fragmentos.
Abanou a cabeça, afastando as especulações parcialmente formadas.
– Onde está então o Anton?
– Não sei. – Bastian fê-la rodopiar. – A preparar-se para deter o August,
calculo. Não interessa. Não vou permitir que o meu tio seja a única coisa
que se interpõe entre ti e a morte. Arranjo-te dinheiro. Comida. Meto-te
num barco…
– Não posso abandonar Dellaire. A Mortem não permite.
– Maldita seja. – Disse-o num silvo entre dentes, o aperto na cintura dela
tão intenso que quase magoava. – Maldita seja. Muito bem. Arranjo-te
algum lugar na cidade…
– Bastian. – Ela voltou a abanar a cabeça, com o nariz a roçar no
pescoço dele. Não tinham de se manter assim tão chegados, mas era
reconfortante, e nenhum deles se afastou. – Eles acabam por me descobrir.
Sabes disso.
O caminho dela terminava ali, na Cidadela. Ou morta no ritual de
August, ou mantida numa gaiola dourada, uma ferramenta para ajudar a
controlar um rei louco e moribundo. Lore sabia-o. Gabe sabia-o. E Bastian
também. Dos três, seria ele provavelmente o que mais tentaria mudar o
imutável, o mais predisposto a pensar que poderia mudar o mundo em seu
proveito. Mas até Bastian tinha de perceber que desta vez não valia a pena.
Lore estava presa.
Contudo, ela estar presa não tinha de implicar que todos estivessem.
– Eu não posso partir – insistiu Lore, murmurando ao ouvido dele. – Mas
tu podes.
Pela primeira vez, Bastian vacilou na dança; outros cortesãos
rodopiavam em volta deles como se ela e o Príncipe Sol fossem rochas
numa corrente, mas ele e Lore mantiveram-se ali imóveis, as mãos dela nos
ombros dele, as dele na cintura dela, os olhos dele cravados nos dela.
– E deixar-te. – Brusco, mas não zangado, mas para lá caminhando. –
Deixar-te aqui.
– O Anton disse que ia impedir o ritual. – Uma fraca defesa, mas nada
mais tinha.
– Assim o diz. E depois? – As pessoas começavam a olhar; Bastian
voltou a fazê-la rodar ao ritmo da dança, com a linha tensa do maxilar a
formar um vincado contraste com o movimento fluído. – Eu parto e tu ficas
presa na Cidadela? Achas que o August não volta a tentar matar-te, que o
Anton não encontra uma forma de te usar como arma? Aqueles dois nunca
hão de acordar em nenhum tipo de paz e tu vais estar sempre no meio.
– Repara que tudo isso tem que ver comigo, e não contigo.
– Caramba, Lore, não percebes? – Fê-la girar com mais força do que o
necessário, cingiu a cintura dela com o braço e puxou-a de repente mais
para si. – Eu disse-te nas catacumbas. Estamos nisto juntos, de alguma
maneira, tu, eu e o Remaut, apesar de eu detestar isso, porra. Não posso
abandonar-te aqui, nem se quisesse. Nem se isso me salvasse o couro.
– Se? – Um vestígio de gargalhada gorgolejou na garganta dela, mas
quando saiu era indistinguível do início de choro. – Abandonar-me sem
dúvida que te salvava o couro.
– E todavia. – A dança terminou; permaneceram imóveis, ainda
agarrados. – Estás presa a mim. Venha o que vier.
Venha o que vier.
Ela olhou para cima. O sol pairava baixo no céu.
Movimento na parte da frente do átrio, por detrás do trono de August.
Severin Bellegarde passou por uma porta pequena, vestido de forma tão
austera como sempre. Afastou-se para o lado, sem chamar a atenção, e
esperou com as mãos unidas atrás das costas, junto das flores de veneno
envasadas.
August levantou-se do trono, como se a entrada de Bellegarde tivesse
sido um sinal. Ergueu as mãos, a imagem de um soberano benevolente.
– Obrigado por se juntarem a nós – disse ele, num tom nitidamente
destinado a dispensar as pessoas. – Amanhã dar-se-á o início de uma
triunfante nova era para Auverraine. Sinto-o. – Sorriu. – Até as trevas
podem ser brandidas para fortalecer a luz.
Aplausos respeitosos da multidão reunida. A seguir, os cortesãos
despediram-se, esvaziando o átrio num desfile resplandecente. Uns quantos
lançaram olhares curiosos por cima do ombro, fitando quem ficava, mas
nenhum deles pareceu pensar que se tratasse de algo estranho. Lore resistiu
à grande vontade de lhes gritar, para ver se alguém se virava e ajudava, se
reparavam que se passava algo de mau e se inspiravam para o deter. Mas
ninguém o faria. O Rei Santo falara e a sua palavra valia mais do que a lei.
Assim que partiram, permaneceu apenas uma vintena de pessoas. Lore
reconheceu Bellegarde, Alie e uns quantos Presque Mort, que deviam ter
aparecido enquanto ela argumentava com Bastian. Não eram todos. Alguns
tinham sido enviados com Malcolm para inspecionar a aldeia dizimada na
véspera. Ela não conseguia deixar de pensar na métrica que Anton utilizara
para decidir quem ficava e quem ia.
Dani e Amelia encontravam-se junto à fonte de vinho, com um punhado
de pessoas que Lore achou que seriam familiares delas. Quaisquer vestígios
de amizade que houvesse na expressão de Dani naquele lanche com Alie já
tinham desaparecido; via-se apenas algo a maquinar. Ela desempenhara de
forma notável o seu papel, enviando Lore para a etapa seguinte do bizarro
plano de Anton.
Onde estaria Anton?
August permanecia de pé diante do seu trono prateado e dourado, com as
mãos ainda apoiadas, rubis a cintilar-lhe nos dedos. O silêncio tomou a sala.
Lore desejou enroscar-se em si mesma – nenhum dos cortesãos ali reunidos
olhava para ela, todos aqueles coconspiradores do Rei Santo ou do Supremo
Sacerdote, mas estavam cientes da presença dela. Isso provocava-lhe dores
de cabeça, deixava-lhe o estômago instável, sinistramente semelhante à
ressaca que sentia após canalizar demasiada Mortem.
Uma presença nas suas costas. Gabe. Ele não lhe tocou, mas a mão dele
pairava sobre o seu punhal e o braço de Bastian ainda enlaçava as ancas
dela. Os três ali juntos, de novo reunidos.
August semicerrou os olhos ao fitá-los, mas apenas por um momento. A
seguir, empinou o queixo, dirigindo-se ao céu através da janela em vez de
aos seus fiéis ali reunidos.
– Se aqui estão – disse ele –, sabem do limiar em que nos encontramos.
Violência, sim, mas por um propósito e com um objetivo… uma guerra que
iremos vencer sem dúvida. Pela glória de Auverraine. Pela glória de
Apollius, pelo Deus Sangrante. Para pavimentar o caminho para o Seu
regresso e renovar o mundo, um renascimento das cinzas do antigo.
– Que Ele regresse – ergueram-se as vozes em redor da sala, entre as
flores de veneno ali espalhadas. – Que Ele regresse em sangue e fogo e que
as Suas feridas sarem.
Assemelhava-se ao chamamento e reação às orações do Primeira Dia,
num tom sombrio.
Junto ao pai, Alie franziu a testa, com a confusão a macular a sua
expressão levemente divertida. Pelo menos, ela não estivera envolvida. Pelo
menos, Lore tinha uma amiga.
O braço de Bastian permanecia assente com força na cintura dela. Dois
amigos.
E apesar de Gabe os ter entregado a Anton, ainda a defendia. Talvez
Lore contasse com mais gente do que pensava.
Um conforto frio, enquanto fitava um rei que a queria morta. Enquanto o
homem que supostamente o travaria ainda permanecia ausente.
August prosseguiu.
– Um eclipse é um momento de grande poder, quando a luz e as trevas se
unem. Quando o mundo se torna um portal de mudança e as coisas podem
ser encarriladas para novos caminhos. – Os seus olhos escuros brilharam ao
incidi-los no filho. – O mundo está desequilibrado, desde o
desaparecimento de Apollius. As coisas nem sempre correm como é devido.
E quando assim é, cabe-nos mudá-las.
– Onde raio se meteu o Anton? – silvou Bastian pelo canto da boca, a
pergunta dirigida a Gabe atrás dele. – Não é o momento para se chegar
atrasado.
– Vem a caminho. – Só que Gabe parecia tão assustado como Bastian.
As mãos de Lore escorregavam com suor frio.
Do outro lado do átrio, os olhos verde-escuros de Alie saltitavam entre
August, o seu pai arrebatado e Lore, tentando encaixar as peças de um
puzzle improvável. A preocupação vincou-lhe a testa com rugas; depois, a
determinação suavizou-as.
Fez um pequeno movimento para a frente, como se pretendesse juntar-se
a Lore, Bastian e Gabe no centro da sala; Bellegarde estendeu de pronto o
braço, apertando com força o pulso dela, pele com falta de sol em contraste
com castanho-acobreado. Alie estava demasiado longe para se ouvir, mas
Lore apercebeu-se do leve som de pânico que lhe escapou da boca.
Gabe também. Ficou muito rígido, com as linhas do seu corpo a
retesarem-se virado para Alie, apanhada no meio.
August ignorava-os a todos. Um sorriso frouxo iluminava-lhe o rosto
pálido, a cabeça virada para os céus.
– Nas mãos de um deus, uma maldição pode tornar-se um dom. Nas
mãos de um deus, o verdadeiro deus, trevas e luz podem unir-se. Todo o
poder pode unir-se, alojado num corpo sagrado. Um deus, uma coroa. Um
império que se espalha pelo mundo, cura todas as suas doenças e o
endireita.
Enquanto ele falava, mais Presque Mort encheram a sala, as suas roupas
escuras e corpos com cicatrizes espalhando-se por entre flores venenosas.
Nada disseram, simplesmente alinharam-se nos limites do átrio,
inexpressivos como soldados enviados para a frente de batalha. O Supremo
Sacerdote continuava sem aparecer.
Finalmente, August baixou a cabeça, virando-se para a pequena multidão
em vez de para o céu. A expressão dele era de profunda paz, profunda
plenitude, alguém a ver um plano a dar frutos após anos de cuidadoso
planeamento. Subtilmente, assentiu com a cabeça.
Os Presque Mort moveram-se, rápidos e silenciosos. Bastian foi o
primeiro a perceber, virando-se a mostrar os dentes, a faca que escondera na
bota de repente na mão, cintilando perversamente. Gabe demorou um pouco
mais, com a confusão bem patente na sua expressão – mas, quando um dos
Presque Mort lhe pôs uma mão dura no ombro, rodopiou, agarrando o seu
próprio punhal, embora ainda sem o desembainhar.
Lore não dispunha de arma, mas quando o Presque Mort a agarrou, ela
não deixou de dar luta, esperneando e arranhando-o com as unhas. Não
valeu de nada, mas tentou.
Anton abandonara-os. Não aparecera para travar o ritual.
Talvez nunca tivesse tencionado fazê-lo. Talvez tivesse apenas fingido,
como uma forma de os manter dóceis, para que não fugissem. Um afago
suave no pescoço de um coelho antes de o partir.
Ela viu de relance o rosto de Gabe. Ele não fora realmente capaz de
apontar o punhal aos seus companheiros. Resmoneando, parecia perdido,
aflito.
Do outro lado da sala, Bellegarde agarrava a mão de Alie, com força
suficiente para deixar marca. A pequena mulher não tinha como escapar,
mas avançou a custo, com uma expressão de pânico.
– Gabe!
Algo no nome dele pronunciado por Alie despertou Gabe da inércia.
Com um som angustiado, sacou por fim da faca, golpeando um dos Presque
Mort. Atiraram-se a ele num abrir e fechar de olhos, subjugando-o,
levando-o dali. Ele lançou um grito sem palavras, um grito que quase
resultou no nome de Alie, mas nunca lá chegou. Um baque horrível quando
um punho se esmagou contra a sua têmpora; ele desabou no chão.
Alguém agarrou a trança de Lore, que se soltara dos seus ganchos,
puxando-a de repente para trás. Ela rosnou, mas os braços do Presque Mort
prenderam-na, mantendo-a confinada. Foram necessários dois para fazer o
mesmo a Bastian; o Príncipe Sol tentou libertar-se à força, gritando insultos
que ecoaram no átrio que ia escurecendo aos poucos. Um dos monges
atacou com um punhal; a ponta afiada cortou o sobrolho de Bastian, de
onde jorrou sangue e o chocou a ponto de conseguirem subjugá-lo, de
braços torcidos atrás das costas.
A sombra da lua aproximava-se do sol baixo.
O Presque Mort que segurava Lore forçou-a a seguir na direção do trono
de August. O Rei Santo mantinha-se imóvel e desinteressado, de mãos atrás
das costas. Outro Presque Mort – o da fuga, caminhando quase
normalmente com uma prótese no lugar do pé – abeirou-se do estrado e
entregou um punhal ao rei, feito de prata e coberto com espirais de ouro.
Combinava com o trono, um casamento da noite e do dia, do sol e da lua.
– Sempre esteve fadado a ser desta forma – disse ele calmamente, num
tom audível apenas a Lore e Bastian. – A Mortem e o Spiritum, unidos,
detidos pela mesma pessoa. A era de múltiplos deuses faz parte do passado;
agora, há espaço apenas para um.
– E então decidiu que devia ser você? – A voz de Lore soou áspera,
enrouquecida pela forma como o Presque Mort lhe agarrava o cabelo, o
pescoço esticado para a frente como uma oferenda. Tinha de se esforçar
para ver August, que passava o dedo pela faca refinada.
– Apollius decidiu que deveria ser alguém da nossa família. – August
encolheu os ombros. – Escolheu mal, no momento de decidir a pessoa
específica, mas isso é facilmente remediável. Quando nos tornarmos só um,
quando eu me tornar o Seu avatar, o Seu recipiente, Ele compreenderá.
Os Presque Mort içaram Bastian para a plataforma enquanto ele cuspia e
vociferava, contorcendo-se como um gato. Os seus punhos agitados
acertaram em mais do que um deles – o Mort que lhe segurava os braços
tinha um olho a enegrecer rapidamente, e via-se uma pisadura a dilatar na
bochecha do outro enquanto as suas mãos agarravam o cabelo de Bastian e
lhe puxavam a cabeça para trás, tal como a de Lore. Bastian espreitou
através do sangue do ferimento na cabeça, com o peito a subir e a descer, os
dentes arreganhados.
August suspirou ao olhar para o filho, sempre um pai dececionado.
Por seu lado, Bastian riu-se, uma gargalhada rápida e cortante.
– Que adequado – rosnou ele. – Sempre tiveste de fazer tudo com grande
ostentação.
O rei abanou a cabeça. Um vestígio de pena cruzou-lhe o rosto, rápido e
intenso como um comentário breve, tornado ainda mais terrível por se ter
revelado genuíno.
– Nunca poderias ser tu – murmurou. – Não interessa o que dizia a visão
do Anton.
– Por não ser suficientemente devoto? – Não havia como escapar; mas,
ainda assim, Bastian tentava libertar-se do Mort que o segurava, com os
músculos tensos. – Seria eu se tivesse matado a minha própria gente e
preparado os seus cadáveres para formarem um exército?
– Eu não os matei, Bastian. – O pesar na expressão de August tornou-se
frio. – Esse é um pecado que não podes atribuir-me.
O olhar dele incidiu em Lore, lenta e deliberadamente.
A garganta dela apertou-se. Tal como a mente, encerrando-se face a uma
constatação impossível. A Mortem não conseguia fazer algo assim. A
Mortem não conseguia matar toda uma aldeia e deixar os corpos intactos.
Nenhum mero canalizador conseguia fazer algo assim.
Nenhum.
– Agora. – August ergueu a faca enquanto a sala aos poucos ia
mergulhando na escuridão, a totalidade do eclipse a chegar aos poucos. –
Vamos começar.
Lore contou que a faca se abatesse de repente sobre o pescoço exposto
de Bastian; a forma como ele estrebuchava deixava claro que esperava o
mesmo. Mas o Presque Mort que segurava o Príncipe Sol não puxou a
cabeça deste mais para trás para tornar o seu pescoço um alvo mais fácil.
Em vez disso, ele e outro monge puxaram um braço de detrás das costas de
Bastian e puseram-no à frente para expor a palma dele ao pai.
As linhas cicatrizadas de um meio sol cintilaram a vermelho na luz que
esmorecia.
O Presque Mort que segurava Lore fez o mesmo – puxou a mão dela de
detrás das costas, a mão onde as Irmãs da Noite tinham gravado a fogo a lua
exatamente onze anos antes. Lore tentou cerrá-la num punho, mas o monge
puxou-lhe os dedos para trás, quase ao ponto de os partir.
Foi rápido. August golpeou primeiro a mão de Bastian, de forma rápida e
brutal, o sangue a escorrer da palma do filho até pingar no chão, juntando-
se ao que ainda escorria do ferimento na cabeça dele. A seguir, foi a vez de
Lore; ela cerrou os dentes para conter um grito quando a ponta do punhal se
cravou na sua carne, cortando as linhas da vida e do coração para se juntar a
uma cicatriz antiga.
Meio sol, arqueando para cima a partir das pontas da lua crescente dela.
Lore percebeu sem olhar que a palma de Bastian iria combinar com a sua,
uma lua talhada entre o sol dele, as duas cicatrizes encaixadas num único
símbolo. Vida e morte, luz e trevas.
Através da janela do átrio no alto, o céu aproximava-se da total
escuridão, dois corpos celestes espelhando momentaneamente as novas
cicatrizes deles, antes de a lua tapar completamente o sol.
Largando a faca ensanguentada, August pegou nas mãos cortadas deles e
uniu-as diante de si, palma com palma, ferida com ferida.
Lore teve a sensação de ter sido atingida por um relâmpago. O poder
emanou em arco do ponto onde a mão dela se encostava à de Bastian,
derrubando cada membro, uma ampliação do que sentira nas catacumbas
quando ele puxara os fios de Mortem que saíam dela. Vida, uma corrente de
sangue, uma torrente de ar puro em pulmões arquejantes.
E Bastian sentiu o oposto. Ela viu, e também sentiu, a ligação que tinha
pressentido ao longo de todo o tempo manifestada como uma ponte entre
eles. Frio e imobilidade, esvaziando, viajando através deles numa
tempestade de morte. Opostos, unidos, fortalecendo-se mutuamente.
August abriu a boca. Soltou um som agudo e louco, nem riso, nem
choro, mas algo mais animalesco. Na escuridão do eclipse, os ângulos do
rosto dele eram cruéis como os de uma caveira.
Largou as mãos de Lore e Bastian. Ambos caíram, sendo-lhes difícil
manterem-se conscientes. O corpo de Lore parecia ser puxado em direções
opostas, como se pudesse ser despedaçado pelas costuras. Escuridão e luz e
vida e morte, coisas que não deveriam habitar o mesmo espaço, ambas
detidas agora por ela.
– Já chega.
Anton. Finalmente.
O Supremo Sacerdote encontrava-se na outra ponta do átrio, envergando
a sua túnica branca e o pingente reluzente, que balançava enquanto ele
caminhava, lentamente, até ao centro do chão.
August observou impassivelmente a aproximação do irmão, brincando
com a sua faca. Uma mancha de sangue maculava-lhe o gibão.
– Finalmente, dignas-te a aparecer – comentou, disfarçando o seu
cansaço por detrás de um tom arrogante. – Agora, é a tua vez. Os poderes
deles estão unidos, mas apenas um sacerdote de Apollius pode aplicar o
derradeiro golpe e redirecionar a magia para o recipiente adequado. – A
curva do seu sorriso cintilou de forma tão impiedosa como a lâmina. – Sei
que ansiaste por este momento, quando o teu poder é preciso em vez do
meu.
Anton brindou o irmão com um sorriso gentil e quase piedoso.
– E sabes que não posso pôr os nossos desejos terrenos à frente dos de
Apollius.
Todos os cortesãos convidados por August, toda a gente que ele achara
estar do seu lado, observaram o Supremo Sacerdote caminhar lentamente na
direção dele sem erguer um dedo. Os Presque Mort que seguravam Lore e
Bastian recuaram conforme Anton avançava, fazendo-os sair do estrado do
trono e passar para o chão. Os joelhos de Lore cederam, pelo que tiveram
de a arrastar. Bastian pisou uma poça do seu próprio sangue, deixando um
rasto de pegadas no chão. Atrás deles, Gabe permanecia inconsciente,
tombado contra a parede numa pilha desprovida de ossos.
– Mas ele não é merecedor. – Para crédito de August, não soava receoso.
A sua voz permanecia nítida e sonante, apesar de os seus olhos embotados
pela doença se revelarem exaustos. – Já discutimos isto, Anton. O rapaz não
pode ser o eleito, tem de ter havido um erro. Ele não está preparado e o
tempo escasseia cada vez mais.
Anton subiu os degraus e parou diante do irmão.
– Mas há de estar – declarou. – Pode vir a ficar, com o treino adequado.
A liderança de que ele precisa.
– Mas ele não pode deter este poder. – Mesmo então, com a situação
claramente a descarrilar, August parecia mais forte do que antes, com a
promessa da magia a revigorar-lhe o corpo doente. Pôs-se muito direito, a
cabeça virada para cima a fitar o céu escurecido pelo eclipse, como se
conseguisse ver lá o próprio Apollius. – Seria demasiado para ele.
Eram da mesma altura, o rei e o sacerdote, reflexos quase perfeitos um
do outro, as diferenças assinaladas apenas pela roupa e pela metade do rosto
de Anton marcada por cicatrizes. Assim, quando Anton o mirou, os seus
olhares estavam perfeitamente nivelados.
– Então, alguém terá de o orientar. Mostrar-lhe o caminho.
– Eu posso ser essa liderança. – Por momentos, um sorriso dissimulado
repuxou a boca de August; a perceção de uma abertura, uma forma de
conseguir fazer com que aquilo seguisse o rumo que desejava. – Sou o pai
dele.
– Mas nunca te comportaste como tal – frisou Anton.
Quando Anton cravou a sua faca no corpo de August, mal teve de erguer
a mão para o fazer.
Capítulo 40

Contemplai o meu regresso.


– O Livro da Lei Sagrada, Opúsculo 896
(texto verde, proferido diretamente
por Apollius a Gerard Arceneaux)

L ore não sabia o que tinha esperado. Anton dissera que impediria August
de completar o ritual, e não havia dúvida de que matá-lo tratara da
questão. Ponderou nesse facto com um distanciamento alheado, mesmo
com a morte e a vida a percorrerem-na numa mistura inebriante, turvando-
lhe a vista da cor para uma escala de cinzentos e de novo para a cor.
Bastian estava com os olhos arregalados, e lívido. Tinha a boca aberta,
mas de lá não saiu qualquer som. A dada altura, vira-se forçado a ajoelhar-
se e agora estava de joelhos sobre o seu próprio sangue, como um
suplicante num altar.
Ninguém mais conseguia ver o que sucedera, ainda não. A forma como
os irmãos se encontravam posicionados bloqueava a vista a todos os que
estavam atrás. Anton largou a faca, a lâmina a manchar de carmesim o
tecido branco ao cair antes de aterrar nas dobras da túnica aos seus pés,
mantendo-a escondida. As suas mãos agarraram os ombros do seu gémeo,
aguentando-o de pé para se manterem com os olhos nivelados, mesmo
quando os joelhos do rei cediam.
Um fluido rosado borbulhou nos lábios de August. Ele fez um som
sufocado e arquejante.
Pelo canto do olho, Lore viu Bastian a encolher-se.
– Nunca percebeste – disse Anton, num tom baixo e apaziguador, como
alguém que tenta falar com um cavalo assustado. – Apollius nunca comete
erros. Nunca. Em relação a nada.
– Tens razão. Equivoquei-me. – As palavras de August eram coisas
destroçadas, caindo desajeitadamente de uma boca débil. Uma derradeira
tentativa para se salvar. – Não sabia quão sagrado…
– Não quiseste saber – resmoneou Anton. – Não quiseste compreender,
pois querias o poder para ti. Uma profecia para se cumprir e fechaste os
olhos. – Sacudiu o irmão, salpicos de sangue a voar da boca de August,
manchando-lhe a face. – Este é o preço da traição.
– Não – disse August baixinho, recorrendo ao que restava da sua força
para falar. – É o preço da inveja. Quem peca agora, irmão?
O rosto pintalgado de sangue de Anton petrificou-se. Num único gesto,
largou os ombros do seu gémeo e recuou. O Rei Santo desabou no chão.
August ainda sorvia ar inútil, ainda se contorcia enquanto Anton se
virava para a multidão. Nenhum dos cortesãos reunidos pareceu
surpreendido. Já contavam com aquilo. Toda a gente em que August
confiara devotara a sua lealdade a Anton, com a Igreja finalmente a
sobrepor-se à Coroa.
A única expressão de espanto era a de Alie, ainda agarrada por
Bellegarde, com uma mão a tapar a boca. Alie, e Bastian. Bastian estava
com um ar de quem poderia desmaiar a qualquer momento, ainda ajoelhado
sobre o seu próprio sangue. A sua cabeça deixara de sangrar, formando uma
crosta no lado do rosto, a cor lúrida a fazer com que o branco dos seus olhos
arregalados se destacasse.
Anton ergueu as mãos, exatamente com a mesma postura adotada por
August.
– Fiéis – entoou ele –, todos sabíamos que August não era aquele que
nos conduziria rumo à nossa nova…
Um grito interrompeu-o. Lore não percebeu que fora ela até sentir os
maxilares bem abertos.
A dor espalhou-se no seu abdómen, tremendamente quente e ardente. O
Presque Mort que a segurava largou-a, espantado; ela deixou-se cair de
joelhos.
A faca. A faca de August, prata e ouro e cravada no seu flanco.
Atrás de Anton, o amontoado sangrento do rei inclinou-se, com a mão
que atirara a faca estendida. A sua palma atingiu o estrado com um baque,
um sorriso a revelar dentes manchados de sangue.
– Não será ele – disse, as palavras tartamudeadas por entre sangue e
bílis, e todos os fluidos que um corpo moribundo liberta quando o equilíbrio
por fim vacila. – Não, se eu a matar.
A visão de Lore passou a um único tom, tudo a preto ou branco ou um
cinzento intermédio. O próprio corpo dela era um caos de brilho preto e
branco, Mortem e Spiritum entrelaçados, tanto devido ao ritual
protagonizado por August como ao ferimento nas entranhas dela.
Ao longe, ouviu alguém chamar pelo seu nome. Bastian.
Mas Anton não pareceu abalado. Ergueu os olhos para o céu, suspirando
como um pai face a uma criança desobediente, e depois virou-se para o rei
caído.
– Um ferimento nas entranhas demora a matar alguém – comentou –, um
facto que começo a lamentar.
Anton ergueu o pé, calçado com uma bota pesada, e abateu-o sobre a
cabeça de August. A luz branca em redor do rei espiralou para longe como
uma brisa, uma nuvem de escuridão a assumir o seu lugar.
Matéria encefálica manchou a sola da bota de Anton quando a ergueu
das ruínas do crânio de August.
Lore vomitou vinho. Acumulou-se pegajoso no seu colo, misturando-se
com o sangue do seu estômago.
Mais gritos, mas soavam como se viessem de debaixo de água. Ela não
conseguia organizar os seus pensamentos em linhas corretas. Tudo era dor e
tudo se desvanecia.
A voz de Bastian interrompeu o ruído, o timbre reconhecível mesmo não
o sendo as palavras. A de Gabe, o mesmo, rugidos sem som, rosnadelas,
choques de aço e o som de punhos a socar. Devia ter despertado. Isso era
bom. Talvez ambos vivessem. Dois em três não era mau.
– Levem-na para os jardins – disse Anton e, vagamente, Lore sentiu
mãos sob os joelhos, em volta dos ombros, erguendo-a como uma nobre
desmaiada. – Ela espera-nos lá.
Os olhos de Lore tremularam ao fechar.
Solo duro. Frio a imiscuir-se pelas roupas arruinadas, fazendo com que o
ferimento no seu corpo e a sua mão cortada doessem. Vento através da
pedra, fazendo rodopiar folhas transformadas em rocha, pétalas de granito.
Lore obrigou-se a abrir os olhos.
O jardim de pedra. Ardiam tochas em redor do poço, substitutas da luz
furtada pelo eclipse. Ainda tinha a visão turva, a dor e a perda de sangue
dificultavam-lhe focar o olhar, mas conseguia ver Anton parado diante do
poço aberto, a estátua de Apollius que o mantinha encerrado pacatamente
pousada ao lado. Outras formas indistintas em volta dele – os Presque Mort,
todos os que não foram enviados para a aldeia para lidar com os novos
cadáveres. Novos cadáveres, como o sonho dela…
Havia outra figura junto a Anton, parada do outro lado do poço. Esbelta,
vestida de preto, com um longo cabelo louro.
Anton virou-se antes que a mente dela lhe permitisse compreender o que
via. Uma pequena bênção.
– Ah. Lore.
Ao ouvir o nome dela, dois dos Presque Mort aproximaram-se,
erguendo-a com cuidado. Sangue empapado no lado do seu vestido; a
cabeça pesada como as rosas de pedra que delimitavam o carreiro.
– Estiveste tão bem – disse o Supremo Sacerdote enquanto ela
cambaleava na direção dele. – A sério, Lore, devias sentir-te orgulhosa de ti
mesma. Por fazeres parte disto, por ter Apollius a referir-se a ti pelo nome.
E por mais de uma vez! A visão que me deu a minha cicatriz foi quando
ouvi falar de ti pela primeira vez, mas Ele desde então falou comigo…
Disse-me para aprender a arte de aceder aos sonhos dos outros, como
extrair o teu poder para formar o nosso exército de mortos-vivos.
Falava demasiado depressa, com demasiado entusiasmo, como se tivesse
estado à espera da oportunidade de revelar todos aqueles segredos.
– Cale-se – disse Lore, mas saiu como um crocitar e Anton não ouviu.
– O facto de o Gabe te ter ensinado a proteger a mente foi um pouco
problemático – prosseguiu o Supremo Sacerdote. – Paguei bem caro por lhe
ensinar esse truque. – A sua mão afagou a outra, aquela com as cicatrizes
recentes.
A mão sem cicatrizes segurava um diadema dourado, com granadas
incrustadas. A coroa de August, aquela simples que ele usava quando o
irmão o golpeou. Lore não percebia por que razão ele ainda não a pusera.
– Mas tudo acabou por se desenrolar como era suposto – prosseguiu o
Supremo Sacerdote. – Quando por fim morreres, quando voltar a golpear-te
(as minhas desculpas por esse momento desagradável, mas será necessário),
o teu poder vai passar para o Bastian. Ele deterá a magia da vida e da morte,
o Spiritum e a Mortem. E então começará.
Contudo, Lore mal percebia, as palavras desviavam-se dela como o
azeite da água. Pois o seu olhar finalmente tinha-se focado na pessoa do
outro lado do poço.
Cabelo dourado e liso. Feições finas e pálidas. Um corpo alto e esguio,
tão diferente do de Lore. Mas os olhos luminosos cor de mel, esses eram
iguais.
Uma Irmã da Noite. Aquela que lhe fizera a cicatriz em forma de lua e
depois decidira salvá-la, enviando-a para a superfície em vez de para aquele
túmulo de obsidiana onde lhe seria extraída a mente e ficaria com um olhar
inexpressivo, algo vital arrancado.
A mulher sorriu e no seu sorriso havia genuíno pesar.
– Olá, filha.
Capítulo 41

Os finais levam o seu tempo.


– Provérbio kirytheano

L ore nunca soubera o verdadeiro nome da mãe. As Irmãs não os usavam.


Quando Lore nasceu, a mãe vivia havia meses com o que restava da
Guarda Sepultada, completamente assimilada nas suas fileiras, emboras as
outras a encarassem com apreensão.
Lore sabia porquê. Fora-lhe contada a história. Depois de ter chegado, a
mãe dela abeirara-se do túmulo de Nyxara, como o deveria fazer qualquer
Irmã, e a escuridão saíra. A escuridão acariciara-lhe a barriga, onde Lore
ainda dormia, alheada do mundo e do papel que desempenharia nele.
Assim, da primeira vez que Lore canalizou Mortem, por acidente –
puxando um fio da mesma do túmulo da Deusa Sepultada e enviando-o para
a rocha que compunha a catedral subterrânea delas, quase causando um
colapso –, não se tratou de uma surpresa. Era algo com que já contavam.
Os vislumbres de memórias que ela retinha dos seus treze primeiros anos
eram breves – esforçara-se ao máximo por os sepultar –, mas estavam
repletos de olhares de esguelha iluminados pela estranha fosforescência do
cristal das paredes, de murmúrios atrás de mãos.
Quando ocorreu o eclipse, a mãe aproximou-se dela com o ferro da lua
crescente cor de laranja brilhante e também isso não fora uma surpresa. Ela
chorara ao queimar a palma da mão de Lore, o sinal de que ela seria a
seguinte a entrar no túmulo. Lore recordava-se que era tempo de celebração
para as outras Irmãs e de como tinham dado os parabéns à sua mãe pela
coragem de finalmente fazer o que era correto.
Mas, nessa noite, enquanto Lore dormia… um toquezinho no flanco, os
olhos aterrorizados da mãe. Ela levou Lore pelos túneis, até lá acima onde a
luz do derradeiro dia antes do eclipse já coloria o céu.
– Foge – sussurrou a mãe.
E Lore assim fez.
Correu e correu, mas andou em círculos. Pois ali estava de volta. A olhar
para o rosto da mãe e vendo algo semelhante a terror, algo como uma pena
profunda.
– Tive saudades tuas. – Oh, deuses, o tom sincero na voz dela servia
apenas para tornar tudo pior. A Irmã da Noite encontrava-se do outro lado
do poço, mas mantinha os braços estendidos, como se conseguisse puxar
Lore para um abraço. – Estás tão crescida. Tão linda. – Suspirou, uma
impressão na garganta. – Quem me dera que tudo tivesse sido diferente.
Achei que talvez houvesse uma oportunidade de Ela mudar de ideias, que
não fosses uma das eleitas… – Fechou os olhos, uma lágrima cristalina a
escorrer-lhe pela face, refletindo a luz. – Mas a deusa é imutável. Eu devia
ter-te enviado antes para o túmulo, deixar que o poder d’Ela te consumisse,
que te fizesse arder antes de atingires a idade da ascensão. Agora, a única
saída é a morte.
Lore tentou libertar-se do Presque Mort que a prendia, apesar da pontada
no flanco; as palavras desoladas finalmente conseguiram despertá-la da
apatia.
– Não – disse ela, e soou como se a sua boca estivesse cheia de algodão.
– Não, não, não, não, não quero…
– Não podemos permitir que volte a acontecer, meu amor – murmurou a
mãe. – A Feiticeira da Noite também foi uma das escolhidas de Nyxara. Era
para se tornar o avatar da deusa. E Ela teria destruído o mundo. Lamento
imenso. Tu tens de morrer e eu lamento imenso.
– Mas vais esperar. – A voz de Anton soou diferente, a certa aparência
de bom senso desaparecida. Estranho, constatar que desaparecera e perceber
que era aquilo que se encontrava por baixo. – O acordado era que receberias
de volta o teu avatar depois de acrescentadas seis aldeias ao exército e que
seria eu a aplicar o golpe fatal. A papelada para fazer com que a Guarda
Sepultada volte a fazer parte da Igreja está preenchida, mas posso rescindir
a qualquer momento por incumprimento dos termos.
– Claro – murmurou a Irmã da Noite. – Um acordo é um acordo.
– Precisamente. Percebo porque é que as Irmãs te tornaram Sacerdotisa
da Noite. – Os olhos de Anton brilharam com uma luz doentia. – Espero
que respeites mais o título do que a anterior.
A mãe de Lore – a Sacerdotisa da Noite – limitou-se a inclinar a cabeça.
Três mães, duas traições, todas por algum bem maior sobre o qual Lore
nem queria saber. Só queria viver. O bem maior podia esperar.
– Por favor, não deixes que ele me mate. – Lore sabia que soava patética.
Estava patética, tombada entre dois Presque Mort, a esvair-se em sangue e
sem o conseguir estancar. – Eu não fiz nada, não foi escolha minha, por
favor…
– Oh, minha querida. – A Sacerdotisa da Noite ergueu a mão, e voltou a
baixá-la, como se acariciasse a face de Lore caso estivessem mais próximas.
– É a única coisa que podemos fazer. O mundo não te sobreviveria.
– Um acordo é um acordo – repetiu Anton, virando-se para Lore. –
Agora, vamos lá acertar contas e cada um vai à sua vida.
Os lábios da Sacerdotisa da Noite cingiram-se de desgosto. Acenou com
uma mão.
– Leva então o que te é devido.
– Agradeço a tua cooperação – disse Anton, apesar de a sua voz denotar
algum sarcasmo. – Estou grato por compreenderes desta vez que só há
espaço para um deus.
– Não há por certo espaço para seis outra vez – disse suavemente a
Sacerdotisa da Noite. – Os deuses não gostam de partilhar o poder.
– É o problema das ascensões – concordou Anton. – Quando seres
humanos se tornam deuses, carregam com eles a sua natureza. – O Supremo
Sacerdote mostrou os dentes, um ricto triunfante ao encaminhar-se para
Lore. Uma mão erguida.
Era a mesma sensação de puxão dos sonhos dela, mas sem o sono
amortecedor revelava-se agonizante. O seu coração imobilizou-se, apenas
um pedaço de carne, que parecia estar a ser puxado lentamente pelas costas.
Fios de Mortem sombria vazavam-lhe do peito, escorrendo lentamente
como sangue de um milhão de pequenas feridas.
O sacerdote louco criou um nó de morte pura no ar, unindo os
filamentos.
– Apollius – murmurou, olhando para o céu como se encontrasse lá o seu
deus. Uma lágrima extasiada escorreu pela face dele. – Vê o que faço por
Ti. Como manipulo o poder da Tua esposa traiçoeira e o entrego à Tua
glória.
Ele ainda puxava poder dela enquanto falava para o céu vazio,
enrolando-o entre os dedos. Coalesceu sobre as cabeças deles, um nó
retorcido e intrincado, a pulsar como um órgão ao formar-se. Cachos
estenderam-se desde a massa central, a volutear na direção do céu na
sombra do eclipse, escapando-se para o exterior como se procurassem algo.
Procurando outra aldeia. Mais gente para matar, mais cadáveres para o
exército de mortos-vivos de Anton. Usando-a para o criar; Mortem
canalizada a partir do corpo dela tocado pela deusa, destinado a fazer coisas
que nenhum outro canalizador conseguia.
– Deste-nos o Teu sinal – murmurou Anton para o céu. – A Tua
promessa de que nos aguarda um novo mundo, um que Tu formarás para os
Teus fiéis. Recorda, Deus Sangrante, como ajudei a conduzi-lo, aqui quando
dois poderes opostos podem ser mantidos em harmonia.
Poderes opostos.
Mesmo através do derramamento lento do seu sangue, dos dedos gelados
e no frio rastejar da morte, Lore sentiu o Spiritum, o rasto de cometa de
vida tecido através dela quando as suas mãos e as de Bastian foram talhadas
e depois unidas no momento em que a lua tapou o sol.
Ela tinha ambos. Mortem e Spiritum, vida e morte. Ambos viviam nela,
ambos podiam ser canalizados.
Não houve tempo para pensar duas vezes. Lore estendeu a mão e puxou.
Fluiu luz de Anton, uma erupção a piscar pelo jardim até aos dedos dela
em espera, roubada do halo em redor do corpo vivo dele. Não se uniu como
uma meada, algo maleável a ser entrançado; aquilo era relampejante, tudo
aquilo era energia estrepitante e o rugido de Lore ecoou no de Anton
enquanto ela o puxava para dentro de si, as suas veias a aquecerem e a
encherem, o coração a bater com vigor suficiente para lhe magoar os
pulmões.
Uma dor intensa no seu flanco, um ardor envolvente. Percebeu que
estava curada sem ter de olhar, a força da vida a correr através de si e a
sarar tudo.
Lore não se podia agarrar àquilo. Era excessivo, demasiado brilhante.
Largou sem um grito; o estrepitar de um relâmpago abandonou as mãos
dela, ricocheteou pelo jardim até ao vulto ajoelhado de Anton. O velhote
respirava como um fole, agarrado ao coração, os lábios repuxados desde os
dentes.
– Bruxinha da morte – rosnou Anton. – Achas que estás certa?
– Acho – arquejou Lore, esforçando-se por se erguer –, que não vou
permitir que mate mais gente com o meu poder.
– É isso que não entendes, Lore – disse a mãe dela, esbelta e triste e
envolta na luz das chamas. – Não é teu. É d’Ela. E quanto mais viveres…
mais forte te tornares… mais parecida hás de ficar com Ela.
– Não podemos ter outra Queda dos Deuses. – Anton levantou-se,
lentamente, parecendo em absoluto um velho frágil. Com a exceção dos
olhos. Esses cintilavam com um brilho de loucura, um fervor que a levou a
encolher-se. Girava na mão a faca que usara para esfaquear August. – Não
podemos permitir que volte a acontecer.
– Então, prefere matar pessoas? – Mesmo curada, ainda lhe doía o
flanco; Lore pressionou lá o punho. – Está baralhado, Anton. Não haverá
outra Queda dos Deuses, porque não há mais deuses!
– Há um e vais ceder-Lhe o teu poder – retorquiu Anton, com saliva a
voar do canto da sua boca com cicatrizes. – O mundo subjugado pela
soberania misericordiosa de Apollius, através da Sua abençoada…
Um grito rasgou a noite, interrompendo o que Anton ia dizer. Tochas
tombaram, rolando pelo chão empedrado; outra tocha voou pelo ar. As
flores vivas a crescer no topo das suas congéneres de pedra estavam secas e
quebradiças devido a um verão sem chuva; foram lambidas pelo fogo,
cercando o poço em línguas de fogo ascendentes.
E Bastian passou pelo meio delas.
A sua camisa elegante estava rasgada, com sangue seco do corte no
sobrolho. Os seus dentes brilhavam com a luz tremeluzente, expostos e
ameaçadores.
A cara de Anton abriu-se num sorriso beatífico e doentio, que deu a volta
ao estômago de Lore. Ele escondera toda aquela… aquela veneração,
aquela devoção, mantendo Bastian a uma certa distância enquanto
trabalhava para o manter a salvo de August. Mas agora que tudo se
aproximava do fim, olhava para o sobrinho com o mesmo brilho no olhar
que lançara aos céus enquanto rezava.
– Bastian, meu rapaz! – chamou o Supremo Sacerdote. – Lamento que
estejas ferido. Eu disse-lhes que não deviam magoar-te, mas quando se
gerou o caos…
– Os teus monges estão em estado bem pior do que o meu. – Bastian
empunhava uma espada curta que devia ter retirado a alguém; rodou-a de
maneira a que a ponta ensanguentada captasse a luz do fogo.
Os Presque Mort espalhados pelo jardim pareciam desconfortáveis; mãos
recaíam sobre os arneses em volta do peito. Espreitaram para o seu
sacerdote, aguardando instruções, a postos para a violência se chamados a
isso.
– Ainda bem que aqui estás – prosseguiu Anton, alheio ao tom grave e
perigoso da voz de Bastian. – As coisas descontrolaram-se um pouco com a
rapariga. Mas agora que chegaste, podemos avançar. Talvez possas
convencê-la a ver a razão.
O olhar de Bastian incidiu em Lore, com o pânico a evidenciar-se nas
suas feições.
– Estás ferida?
– Ela está bem – disse Anton com desdém, acenando com a mão. –
Melhor, até. Canalizou Spiritum e aplicou-o para se curar. – Uma
gargalhada nítida ecoou por todas as rosas de pedra, o silvo das chamas. –
Se a magia dela foi potenciada a tal nível, imagina a tua!
Do outro lado do poço, a Sacerdotisa da Noite mantinha-se imóvel como
um ícone esculpido. A expressão dela vacilava entre as chamas crescentes,
mas não fitava Bastian com receio. Era algo mais semelhante a resignação,
como se o aparecimento dele assinalasse uma mudança de maré, desviasse
o rumo do seu plano. Ela incidiu o olhar em Lore. Não se via dó na sua
expressão.
Lentamente, aproximou-se, perto suficiente para o seu sussurro se fazer
ouvir.
– Tu gostas dele – murmurou a mãe dela. – Não gostas?
Lore não respondeu.
– Se gostas dele – murmurou, os olhos cor de mel a brilharem com
lágrimas –, se gostas de alguém neste mundo, vais permitir que isto
aconteça. Por favor, não o tornes mais complicado do que tem de ser. Não
fazes ideia do inferno que podes trazer a este mundo.
– Lamento ter-te deixado na ignorância. – Anton avançou para Bastian
como alguém se aproximaria de um altar, esquecendo por completo a
presença de Lore e da Sacerdotisa da Noite.
Bastian manteve-se imóvel. O fogo iluminou-o a dourado, fazendo com
que parecesse moldado em ouro mais do que em carne.
– Houve muita coisa que eu não compreendi até recentemente –
prosseguiu Anton. – E sei que gostavas da rapariga… isso, lamento, mas
tens de compreender que é uma fraqueza, algo que não pode continuar, pelo
bem de todos. Tens de ultrapassar isso, tens de estar preparado para
sacrificar antigos sentimentos e refazer o mundo à imagem de Apollius. –
Uma lágrima irrompeu da linha das pestanas e escorreu pela face. – Pelo
teu…
– Não vai sacrificar ninguém.
Gabe.
Ele apareceu por detrás do Supremo Sacerdote, completamente
enfurecido, de punhal na mão. Pressionou a lâmina no pescoço de Anton e a
sua mão não tremeu ao agarrar o pulso do sacerdote, torcendo-o para o
obrigar a largar a faca ainda revestida com o sangue de August. Gabe
parecia em pior estado do que Bastian, a sua pala do olho desaparecida,
com pisaduras a formarem-se em cada milímetro visível de pele.
– Ah, Gabriel – suspirou Anton. – As tuas lealdades sempre em mutação.
Já devia contar com isso. – Um som ameaçador ergueu-lhe a boca. – Parte
de ti sabe, acho. Aquilo em que te tornarás se se permitir que isto prossiga.
Uma abominação. Um pecado recorrente.
A garganta de Gabe mexeu-se ao engolir em seco, ao forçar mais a
lâmina a ponto de franzir a pele.
– Cale-se – disse ele, com o fantasma de algo a formar-se. – Por favor,
pai, cale-se.
– Não sou teu pai, rapaz – silvou Anton.
Uma hesitação, o olho azul de Gabe a tremer ao fechar-se antes de tornar
a abrir-se.
– Lore. – Sentiu a mão fria da mãe no braço. – Lore, por favor, antes que
isto atinja o ponto de não retorno.
O céu iluminava-se, aos poucos. A lua afastando-se do sol.
O nó de Mortem que Anton estivera a moldar ainda rodava no ar, uma
massa de morte e trevas mantida inerte. Aniquilação, à espera do seu alvo.
Os olhos brilhantes de Anton incidiram em Lore e na Sacerdotisa da
Noite.
– Ainda me é devida uma aldeia – frisou ele, quase irritado, como se não
tivesse uma faca encostada ao pescoço.
Lore estendeu os braços, de olhos fixos no Supremo Sacerdote, e
chamou de volta a Mortem.
Sentiu o mesmo que antes – os membros enfraquecidos, a visão em tons
de cinzento, a guinada no peito. Mas, ao desemaranhar o nó de Mortem e
deixá-lo afunilar de volta em si mesma, Lore percebeu o que havia de
diferente. O que tornava aquilo em algo mais.
Esta morte era dela, extraída dos seus próprios ossos, da carne que a
formava. O seu poder pertencia-lhe. Não se limitava a canalizá-la, estava a
absorvê-la: cosendo-a entre as suas vértebras, entrançando-a para dentro das
suas veias.
O nó desenredou-se em duas batidas de coração, filamentos entrançados
que deslizaram pelos dedos dela, instalados junto da corrente de luz que era
o Spiritum. Sentiu-os a ambos, percebeu que poderia usar ambos.
Quanto mais forte te tornares mais parecida hás de ficar com Ela.
A mãe dela emitiu um som que seria algo entre um suspiro e um soluço.
– Foi isto que vi, nos reflexos do túmulo. – Sussurrou quase só para si,
com a voz quebrada. – Foi aquilo que a deusa sonhou, mas achei que
poderia evitá-lo. Achei que escolherias o mundo e não a ti.
– Sou demasiado egoísta para isso – sussurrou Lore.
Os Presque Mort nada fizeram enquanto os fios de poder
cuidadosamente tecidos pelo seu líder se desfiavam, observando com
cautela. Dava a ideia de que todos olhavam para Bastian, não para Anton,
como se a lealdade deles fosse votada ao Príncipe Sol.
– Cabra – cuspiu Anton. – De uma maneira ou de outra, Apollius há de
impor-se. Tu só…
– Cale-se. – Mas a voz de Gabe soou tremida. Ele olhou em volta para os
outros Presque Mort; a passividade deles pareceu perturbá-lo tanto quanto
Lore. O olho de Gabe incidiu em Bastian; a órbita vazia do outro olho era
um poço de sombra. – É um velho louco, Bastian. – O seu tom era de
súplica. – Despoja-o do título e já não pode fazer mais mal a ninguém.
Bastian não lhe respondeu. Em vez disso, virou-se para Lore e para a
mãe dela e estendeu a mão.
– Se lhe tocar – disse ele com calma, os olhos negros apontados à
Sacerdotisa da Noite –, vou às catacumbas e arranco-vos de lá a todas.
– Lore – disse a Sacerdotisa da Noite, num derradeiro esforço. – Por
favor.
Lore olhou para a mãe. A seguir, avançou e assumiu o seu lugar junto a
Bastian, pontapeando o punhal de Anton para longe, fazendo-o deslizar até
ao fogo.
A Sacerdotisa da Noite expirou, trémula.
Lore desviou o olhar da mãe, olhando em volta deles até aos Presque
Mort, cercados por chamas.
– Porque é que não fazem nada? Estão à espera de quê?
– Não sei – respondeu Bastian. – Nem quero saber. – Deu um passo na
direção do tio.
Gabe puxou o Supremo Sacerdote para trás, para longe do príncipe que
se aproximava.
– Bastian. – Emoções contraditórias contorciam-lhe o rosto, medo,
tristeza e ira. – Já falámos sobre isto.
– Tu falaste sobre isto. – Bastian fazia algo estranho com as mãos.
Fletiu-as para trás e para a frente, enroscando os dedos, como se tentasse
enrolar uma corda invisível. Uma luz dourada cintilou no espaço em volta
dele.
– Ele está confuso – disse Gabe, recuando mais um passo. Anton tinha o
corpo frouxo, olhando para o alto, como se orasse. – Não passa de um
homem. Fica com o cargo dele, dá-o a alguém, mas não o mates!
– Eu sou o raio do Rei Santo. – Não foi um grito. Foi pouco mais do que
um sussurro. Ainda assim, reverberou sobre o silvo do fogo e quando
Bastian inclinou a cabeça para cima, as chamas pareceram formar um halo
em volta da mesma. – Mato quem bem me apetecer.
– Então és igual – rosnou Gabe. Fogo elevou-se atrás dele, como se a sua
ira o tivesse espicaçado. – És igual a ele, és igual ao teu pai.
Atrás do ombro de Gabe, Lore distinguia ainda a silhueta da mãe,
cintilando face às chamas.
– Ouçam – murmurou ela, interpondo-se entre ele e Bastian –, tudo o
que aconteceu esta noite foi violência sem sentido, não temos de…
– Não foi sem sentido – murmurou Anton. – Só se achares que não faz
sentido impedir um apocalipse. O poder dela vai continuar a crescer,
Bastian, em especial agora que também é capaz de canalizar Spiritum. Isso
vai infetar-lhe a mente; Nyxara vai infetar-lhe a mente. Mata já a rapariga
ou hás de vê-la mais tarde a implorar pela morte, quando o mundo desabar
em redor dela assim que Apollius o tornar Seu. – Uma gargalhada grave e
arfante silvou por entre os dentes de Anton, os seus olhos apontando de
novo para o céu. – O ciclo iniciou-se e estão todos enredados, ligados a um
afeto que já antes vos arruinou e voltará a arruinar.
A tensão percorreu os ombros de Lore, refletindo-se nos de Bastian; a
ponta da faca de Gabe vacilou.
– Foi profetizado, mas ninguém quis acreditar – frisou Anton com uma
voz esganiçada. – Ninguém, exceto eu. Ouve-me, Apollius! Ouve como os
alerto para a era que aí vem, para o que acontece quando novos deuses se
erguem e tentam contrariar a Tua vontade!
Gabe tropeçou, tentando manter agarrado o velho louco que fora uma
espécie de pai, o único que ele pudera ter. O seu olho incidiu em Bastian,
suplicante.
O Príncipe Sol – não, o Rei Santo – continuou a olhar, implacável. As
suas mãos sempre a fletir, para trás e para a frente, formando mais luz
dourada.
– Vais dar-nos outra solução, velho – murmurou Bastian. – Não me
obrigues a arrancar-ta.
Gabe desviou o olhar, mas o seu punhal não vacilou.
– Há uma. – Lore avançou, a tremer; o ferimento sarara, mas ainda doía.
O seu cabelo tombara, envolvendo-lhe o rosto em madeixas castanho-
douradas escurecidas pelo sangue. – Aprendi a proteger a minha mente da
Mortem. O Gabe ensinou-me. Não pode ser assim tão diferente agora.
Posso impedir-me de sentir poder, de me tornar mais forte. Impedir-me…
Interrompeu-se, sem saber como terminar. Não estava certa de necessitar
de o fazer. Era um pensamento que se formara por si só.
Anton voltou a rir-se.
– Sempre estiveste pronta a fazer tudo o que fosse preciso para salvares a
própria pele.
– Não me conhece – frisou Lore.
O único olho dele estreitou-se, cintilando com a mesma luz cortante da
lâmina de Gabe.
– Tens mesmo a certeza?
– O que precisas de fazer? – Algo mudara nos modos de Bastian, na sua
postura. Desaparecera o príncipe letárgico; assumira por completo a sua
nova faceta de rei. Era o outro lado que mostrara a Lore na noite na viela,
na noite em que ela lhe contara a sua história. Estivera sempre ali à espera
um rei. Um rei brutal.
Lore espreitou para Gabe. Ele esforçava-se tanto por não mostrar o que
lhe ia na alma, esforçava-se e falhava. A dor instalara-se nas rugas da sua
testa, na curva irada da sua boca em volta dos seus dentes expostos. Mas
via-se esperança, despertando para a vida quando os olhares deles se
cruzaram. Esperança de ainda conseguir salvar aquele homem miserável
que segurava tão junto de si, o homem que procurara apenas aproveitar-se
dele.
– Eu posso ensiná-la – disse Gabe. – Ensiná-la a proteger ainda melhor a
mente. Assegurar que não volta a acontecer algo parecido com as aldeias.
Ele já o fizera antes, percebeu ela de repente. Naquela noite em que ela o
tinha acordado e o obrigou a sentar-se com ela e concentrar-se, apaziguando
as trevas até o sono chegar pacificamente, sem aqueles sonhos estranhos.
Nessa noite não houvera mortes.
Mas Anton abanou a cabeça, sem querer saber da lâmina ainda encostada
ao seu pescoço. Gabe tentou movê-la; não foi a tempo e uma linha fina
carmesim vincou a pele do velho.
– Não vai durar – disse num tom esganiçado. – Os papéis estão
atribuídos. Deixar viver a rapariga é um convite à destruição, para o mundo,
mas principalmente para vocês.
– Poupa-nos às tretas religiosas – disse Bastian entre dentes.
Outra gargalhada áspera do Supremo Sacerdote.
– Oh, sobrinho, é a única coisa a que não poderás ser poupado. Hás de
aprender isso.
– Lore. – A voz da Sacerdotisa da Noite era calma; mas nem por isso
deixou de ecoar. O seu rosto estava desprovido de emoções, embora algo
como resignação espreitasse no canto da boca dela, no brilho do olhar. – As
coisas progrediram mais do que pensámos – disse ela suavemente. – Agora,
percebo. Não posso obrigar-te a escolher a morte.
– Tem toda a razão – rosnou Bastian, posicionando-se diante de Lore.
– Eu antes era muito fraca – prosseguiu a Sacerdotisa da Noite,
ignorando Bastian. – E lamento.
– Lamenta ter-me deixado viver? – A voz de Lore saiu áspera. –
Lamenta ter-me salvado?
A mãe baixou o queixo, com o seu longo cabelo comprido praticamente
a cobrir-lhe o rosto.
– Mas, agora, podes ser forte – disse ela, como se Lore nem sequer
tivesse falado. – Podes fazer a escolha certa.
– Está a pedir-lhe que morra e acha-se nesse direito? – Gabriel
praticamente cuspiu as palavras.
Mas a Sacerdotisa da Noite não respondeu. Só olhava para Lore, apenas
para a filha.
– Tudo brota dessa escolha – murmurou ela. – És a semente do
apocalipse.
E era verdade. Lore não sabia como, para já, não compreendia as
complexidades, mas sentia a verdade.
Mas era também verdade o que dissera à mãe. Era egoísta. Na hora de
escolher entre si e o mundo, escolher-se-ia a si própria.
A Sacerdotisa da Noite suspirou. Assentiu com a cabeça, sabendo a
resposta de Lore apesar de ela não lhe ter dado voz. A seguir, num
movimento rápido que as chamas tremeluzentes bissetaram em repelões
estranhos, trepou para a beira do poço e desceu as escadas em caracol rumo
à escuridão.
Bastian avançou, como se pretendesse segui-la para exercer algum tipo
de vingança, mas Lore pôs-lhe a mão no peito.
– Não – murmurou ela, sem nada mais a acrescentar. – Não.
Ele deu-lhe ouvidos.
– Vocês escolheram o vosso caminho, os três – murmurou Anton. – Há
de vir o infortúnio quando os restantes vos seguirem.
Bastian olhou para Gabe. Sacudiu a mão.
– O velho viverá, Gabe.
Deixando descair os ombros, aliviado, Gabe afastou por fim o punhal do
pescoço de Anton. Recuou, deixando o Supremo Sacerdote sozinho.
Bastian moveu a mão, torcendo-a num gesto gracioso que pareceu quase
impossível. Redemoinhos dourados formaram-se no ar, coalescendo em
redor dos dedos dele, fios puxados do próprio sol.
A seguir, Bastian lançou o punhado de ouro na direção de Anton.
Os fios prenderam-se ao chão em redor do Supremo Sacerdote e
irromperam. Videiras verdes espessas cresceram rapidamente pela pedra,
cravadas de espinhos, as pontas abrindo em rebentos de rosa cor de sangue
idênticos aos que ardiam junto ao carreiro. Serpentearam em redor das
pernas dele, da barriga. Entraram-lhe pela boca antes sequer de ele
conseguir gritar. Ele revirou o olho enquanto a órbita vazia do outro era
preenchida por verde, depois vermelho, uma rosa a florescer na órbita com
cicatrizes, pétalas a roçar a sua testa enfurecida.
Acabou num instante. Anton Arceneaux ficou encasulado em rosas e
sangue, mais uma estátua no jardim.
E Bastian fizera-o com extrema facilidade, como se fosse uma segunda
natureza.
Com um som curto e rouco Gabe cambaleou para trás.
– Disseste que não o matavas. – No fim, a sua voz vacilou. – Disseste
que não o fazias!
– Eu disse que ele viveria. – Bastian deu um passo em frente até junto
dos restos do tio e arrancou-lhe a coroa ensanguentada da mão. O sacerdote
não a tinha soltado durante todo aquele tempo. – E vive.
Um leve subir e descer no peito de Anton. Um leve silvo de respiração.
Bastian tinha razão; entre todas aquelas rosas, Anton permanecia vivo.
Pelos deuses, isso era pior.
O olhar de Gabe saltou do seu sacerdote para o seu rei, com o choque a
transformar-se em ódio, ardente e cáustico.
– És igual a eles – voltou ele a dizer, como um eco. As chamas das rosas
ardentes no jardim pareceram curvar-se na sua direção, como que atraídas
pela sua raiva. – É assim que vai ser, então? Serás um tirano mágico, pior
do que o August alguma vez poderia ser?
Bastian não respondeu. Em vez disso, assentou a coroa na cabeça, que
atravessou a linha de sangue na sua testa.
– Vida longa ao Rei Santo.
Epílogo

A cadeira era desconfortável.


Não se tratava apenas da cadeira em si – estar ali era desconfortável,
no estrado na sala do trono, sentada ao lado de Bastian.
A cadeira era de prata, retirada de um dos inúmeros arrumos da Cidadela
que Bastian vasculhava à procura de coisas para vender, oferecer ou
derreter. Era uma forma aleatória de tentar ajudar quem vivia no exterior da
muralha, mas já era algo. Séculos de riqueza acumulada eram difíceis de
liquidar de uma só vez.
Mas guardara aquela cadeira para pôr sobre o estrado do trono. Para ela.
Para ela poder sentar-se junto dele numa exibição de igualdade.
Quase como uma rainha.
Havia quem lhe chamasse isso. Ela ouvira-o a ser sussurrado – a rainha
do veneno, a rainha da cicuta, a rainha feiticeira da morte. Pelos vistos, a
corte adorava uma alcunha.
Lore não desejava estar ali. Não queria ser tão visível, tão vulnerável.
Mas, por ora, a história do que ela era – do que August e Anton tinham
tentado fazer – espalhara-se pela Cidadela e para lá dela. Perdera o
anonimato; a segurança oferecida por Bastian era tudo o que lhe restava.
Em especial, por as notícias sobre o poder dela terem transposto as
fronteiras de Auverraine. Até Kirythea.
A manhã ainda ia a meio, mas já tinham tratado de uma série de
assuntos. Petições a ouvir, prisioneiros a perdoar. Todos eles tinham estado
presentes no baile do eclipse.
Aquela que não saiu da cabeça de Lore era Dani. Toda a família dela fora
enviada para as Ilhas Queimadas, com a exceção de Amelia, a irmã mais
velha que fora apressadamente casada uma semana antes com Lorde
Demonde, que não queria saber do escândalo associado ao antigo apelido
da sua nova mulher. Dani passara todo o tempo a olhar irada para Lore, até
enquanto era algemada.
Bastian mantinha Lore ao seu lado por ser mais seguro para eles ficarem
juntos, mas ela desejava que ele a deixasse esconder-se atrás do trono, ou
algo parecido.
Agora, no chão de mármore diante dela, Mari e Val faziam uma vénia,
com o novo contrato delas bem seguro na mão de Val. Todos os perdões
tinham de ser reavaliados pelo novo rei; o negócio de tráfico de Val e Mari
ocupara uma posição privilegiada na lista de assuntos a renovar de Bastian.
Ele facilitara-lhes a vida, pusera toda a equipa delas na lista de pagamentos
da Cidadela. O seu passo seguinte, contara ele a Lore, seria legalizar a
utilização de veneno para doentes terminais, aqueles que poderiam
necessitar de prolongar um pouco a vida para assegurar que as suas famílias
ficavam bem entregues, ou para suavizar a dor. Despachava perdões a
traficantes de veneno detidos tão depressa quanto a caneta era capaz de
assinar o seu nome.
Tudo aquilo era bom para Dellaire. Ainda assim, os olhos negros de
Mari mostravam apreensão ao fitar Lore. A preocupação alojara-se na linha
dos seus lábios cheios.
Ela e Val não falaram ao abandonarem a sala do trono, depois de tratados
os seus assuntos. Mas ambas olharam uma vez mais para Lore, antes de a
porta ser fechada.
Lore desejou desesperadamente poder acompanhá-las.
– Mais um. – Bastian remexeu-se no seu trono e ergueu uma mão para
ajustar a sua coroa com raios de sol. Assentava-lhe bem, melhor do que
alguma vez assentara a August. – Depois podemos ir comer algo e não
teremos de olhar para a merda desta sala por uns dias.
– Quem é? – questionou Lore. Naquele dia, não analisara a agenda de
perdões. Sentira-se demasiado cansada.
Agora, assustava-a dormir. Dormia o menos possível.
Bastian dirigiu-lhe um olhar inescrutável.
– É…
A porta abriu-se antes de ele poder responder.
Gabe.
O antigo Duque Remaut não se encontrava acorrentado. Passara as duas
últimas semanas desde a morte de August aprisionado na Igreja, trancado
num claustro – um verdadeiro favor, mantê-lo longe das masmorras. Lore
solicitara isso, mas não tivera de implorar. Bastian concordara à primeira,
como se também não desejasse manter Gabe nas masmorras.
Ainda assim, parecia extenuado. Magro, magoado. Arranjara outra pala
para o olho depois de ter perdido a primeira, mas não lhe assentava bem e
todo o seu olho parecia encovado.
Lore sentiu um aperto no peito.
Não sabia do que fora formalmente acusado Gabe. Havia várias opções.
Traição, cúmplice de homicídio. Tudo coisas que levariam uma pessoa às
Ilhas Queimadas ou à forca.
Miríade de infernos, por certo que Bastian não faria isso. Ela interviria,
caso necessário.
Mas não teve de o fazer.
Gabe parou a meio da sala. Inspirou fundo e ergueu o olhar.
Se ficou surpreendido ao ver ali Lore, não o demonstrou. O seu olho azul
deslizou até ela, para se desviar rapidamente, sem sinal de qualquer
emoção.
– Gabriel Remaut – entoou Bastian, tal como fizera com cada um dos
penitentes. – Sabes o que te traz aqui?
– Passa essa parte à frente. – A voz dele soou rouca. – Não podemos
simplesmente passar essa merda à frente? Vossa Majestade?
A sua voz transbordava de desprezo. Lore mordeu o lábio.
Mas Bastian assentiu com a cabeça.
– Podemos. – Recostou-se no trono, joelhos bem afastados, observando
toda a sala. Até o trono lhe assentava melhor do que assentara ao pai. –
Gabriel Remaut, juras a tua lealdade à coroa do Rei Santo e à Igreja de
Auverraine, para a liderares com devoção e piedade inabaláveis enquanto
aguardamos o regresso de Apollius?
Disse-o tão depressa, de forma tão indiferente, que Lore e Gabe levaram
algum tempo a interiorizar as palavras. Gabe arregalou os olhos.
– Eu não…
– Responde lá que sim. – Bastian tamborilou com os dedos no joelho. –
Sabes o que é. Já antes ouviste a anunciação.
Lore conseguiu finalmente entender a declaração, o seu significado.
Ficou boquiaberta.
Gabe endireitou-se e assentiu com a cabeça.
– Sim.
– Então, declaro-te Supremo Sacerdote.
Silêncio. Nem ela, nem Gabe, souberam como reagir, o que dizer. Ele
passara de prisioneiro a segundo homem mais poderoso do país numa
questão de segundos.
E Bastian parecia simplesmente aborrecido.
– Muito bem – disse o Rei Santo, agitando os dedos com desdém. –
Desaparece-me da vista. Eu e a minha feiticeira da morte temos muito a
discutir.
Agradecimentos

Este livro, e todos os meus livros, não existiriam sem o incrível trabalho
da minha agente, Whitney Ross. Que haja muitas mais histórias no futuro e
que sejam cada vez mais loucas.
Sinto-me eternamente grata à minha editora, Brit Hvide, cuja orientação
é sempre inestimável e que, de facto, me obriga a clarificar as coisas.
(Obrigada, eu preciso.) Adoro criar livros contigo e espero criar muitos
mais.
Toda a equipa da Orbit é fantástica e sinto-me continuamente radiante
pela sorte que tenho por trabalhar com eles.
Ao meu Pod – sem o qual não estaria aqui.
A todas as minhas maravilhosas amigas que têm constado de todos os
meus agradecimentos e que continuarão a constar – Sarah, Liz, Nicole,
Ashley, Chelsea, Jensie, Steph, Leah – adoro-vos infinitamente.
E a Caleb – és um borracho e fico contente por seres meu. És um
achado.
Contents
1. Ficha Técnica
2. Capítulo 1
3. Capítulo 2
4. Capítulo 3
5. Capítulo 4
6. Capítulo 5
7. Capítulo 6
8. Capítulo 7
9. Capítulo 8
10. Capítulo 9
11. Capítulo 10
12. Capítulo 11
13. Capítulo 12
14. Capítulo 13
15. Capítulo 14
16. Capítulo 15
17. Capítulo 16
18. Capítulo 17
19. Capítulo 18
20. Capítulo 19
21. Capítulo 20
22. Capítulo 21
23. Capítulo 22
24. Capítulo 23
25. Capítulo 24
26. Capítulo 25
27. Capítulo 26
28. Capítulo 27
29. Capítulo 28
30. Capítulo 29
31. Capítulo 30
32. Capítulo 31
33. Capítulo 32
34. Capítulo 33
35. Capítulo 34
36. Capítulo 35
37. Capítulo 36
38. Capítulo 37
39. Capítulo 38
40. Capítulo 39
41. Capítulo 40
42. Capítulo 41
43. Epílogo
44. Agradecimentos

Landmarks
1. Cover
2. Title-Page
3. Table of Contents
4. Acknowledgments

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