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Acura Pela Fala
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Resumo
Esse ensaio tem como objetivo descrever os primórdios da Psicanálise e seu método de in-
tervenção: a cura pela fala. Foi elaborado revisando a bibliográfica dos primeiros casos de
histeria tratados por Breuer e Freud, a partir dos quais este último veio a formular o método
de associação livre.
O método proposto pela psicanálise tem contrário. Segundo Siqueira (2007), quando
sua origem na escuta do sujeito que sofre. Freud passou a ouvir a histérica e não apenas
Por isso é imprescindível que esta escuta olhá-la, subverteu a ordem médica, já que
analítica se desdobre numa escuta de si. Foi outra história era escutada além daquela que
assim que a interpretação dos seus próprios os pacientes contavam. E foi dessa forma que
sonhos, iniciada antes mesmo da análise dos tirou a histeria do campo da medicina.
sonhos de seus pacientes, permitiu a Freud Ao acessar conteúdos inconscientes atra-
adentrar na complexidade do inconsciente vés da fala, o paciente tem a oportunidade
e seu funcionamento. Este fato, por si só, já de tomar contato com o que Freud chamou
constitui uma quebra de paradigma no cam- de força atuante da representação não ab-re-
po das ciências, na medida em que ele pró- agida. Ao permitir que o “afeto estrangula-
prio se implica no processo de construção da do” encontre uma saída através do discurso,
sua teoria, passando a olhar para dentro si esta representação é submetida a uma nova
mesmo. cadeia associativa. Assim, o efeito curativo
A partir dessa espécie de “auto-análise” de que Freud fala nos seus primeiros tex-
empreendida por Freud e a partir de Anna tos sobre a histeria (1893-1895), diz respei-
O. – paciente de Breuer, cujo caso clínico to a um afeto dissociado da ideia original
foi publicado em 1895, na obra Estudos so- recalcada. E é exatamente a re-significação
bre a Histeria –, este método de tratamento deste afeto que a fala possibilita. No mesmo
inédito passa a tomar contorno. O caso ci- texto, ao falar de trauma psíquico, Freud
tado fora tratado através da catarse e da ab- expõe que, quando a reação é reprimida,
reação. Conforme o Dicionário de Psicanálise o afeto permanece vinculado à lembrança.
de Roudinesco (1998), o método catártico é Entende-se por “reação” todo tipo de “refle-
o procedimento terapêutico pelo qual um xos involuntários, das lágrimas aos atos de
sujeito consegue eliminar seus afetos pato- vingança”. Prossegue dizendo que, quando
gênicos e, então, ab-reagi-los, revivendo os a reação ocorre em grau suficiente, grande
acontecimentos traumáticos a eles ligados. A parte do afeto desaparece e faz uso de ex-
fala é o meio pelo qual estes afetos são elimi- pressões cotidianas como “desabafar pelo
nados. pranto” ou “desabafar através de um acesso
Segundo Ribeiro da Silva (1996), pela pri- de cólera”, a fim de explicar o processo tera-
meira vez na história, é dado à histérica o pêutico realizado através da fala. Tudo isto,
direito de usar a palavra e, apesar da impos- para reforçar sua tese de que a linguagem
sibilidade de Freud traduzi-la, esse discurso serve como substituta da ação, ou seja, com
jamais foi considerado coisa do diabo, como a ajuda da linguagem, um afeto pode ser
o era até então. É provável que, já nesse mo- “ab-reagido” quase com a mesma eficácia
mento, Freud estivesse escutando para além que uma vingança, por exemplo.
da moralidade, criando a primeira forma de Por meio da fala, é dada ao paciente a
conhecimento que tenha dado voz à loucura. oportunidade de se conectar com ideias re-
A psicanálise tenta, a todo instante, afastar- calcadas que produzem os sintomas atuais.
se da ideia de que o sofrimento psíquico Assim, ele passa a ter uma nova compreensão
resulta de uma falta de adaptação ao meio, desta memória. Supõe-se que, na medida em
rompendo, desde aí, com o paradigma médi- que o paciente mantém ideias recalcadas de
co. Podemos pensar que Freud rompeu com eventos ligados ao passado, este passado tor-
a medicina de muitas outras formas, como na-se presente, uma vez que é constantemen-
por exemplo, colocando o saber no paciente, te atualizado através dos sintomas. Quando a
uma vez que eram as pacientes que forneciam reação é reprimida, o afeto permanece ligado
a ele o que constituíam os sintomas, e não o à lembrança e produz o sintoma.
pilares que balizam os estudos psicanalíticos: “Vou lhe ser franco”. Diz isso sempre que está
a descoberta do inconsciente. Com a noção prestes a falar algo que o perturba, que reluta
de inconsciente, o discurso freudiano des- em saber. Fala dirigindo-se a mim, mas, tam-
centrou o sujeito do registro da consciência bém, como se falasse pela primeira vez de
e do eu. Segundo Roudinesco (2000), Freud suas dores para si mesmo. Outras questões
introduziu a noção de “um lugar” desligado se encontram latentes na sua fala, tais como,
da consciência, povoado por imagens e pai- por exemplo, o lugar onde esse paciente me
xões e perpassado por discordâncias. O su- coloca. Porém, não é a transferência que nos
jeito freudiano é um sujeito livre, dotado de interessa aqui. O que importa trazer, através
razão. Porém, sua razão vacila no interior de deste exemplo, é o fato de que, na relação co-
si mesma. É de sua fala e de seus atos, não de migo e através da fala, ele dá voz ao sofri-
sua consciência alienada, que pode surgir o mento que o acompanha desde a infância,
horizonte de sua própria cura. podendo, aos poucos, apropriar-se de sua
Segundo Ogden (1996), Freud acreditava vida e de sua história, bem como tomar con-
que a Psicanálise proporcionava uma trans- tato com conteúdos recalcados.
formação da relação do homem consigo Ogden, em Os Sujeitos da Psicanálise
mesmo, um ‘descentramento’ que, de acordo (1996), faz uma analogia entre a questão sem
com o próprio Freud, já havia ocorrido de solução da referida obra de Shakespeare e o
três maneiras diferentes na história moder- tema inicial da Psicanálise, que segue sem
na. A primeira, através da revolução coper- resolução através da sua história no último
nicana, que deslocou como centro fixo do século:
universo o homem (Terra), em torno do qual
giravam, até então, o sol, a lua e os planetas. Nos primeiros momentos da cena de aber-
A segunda, por meio da reestruturação da- tura de Hamlet, escuta-se um som vindo da
rwiniana das concepções biológicas vigentes, escuridão fora dos muros do palácio. O guar-
as quais estabeleciam para o homem uma da indaga, “Quem está aí?” Como um acorde
posição distinta dos animais, acima e separa- dissonante inicial de uma obra musical, a per-
do deles por ordem divina. A terceira forma gunta, “Quem está aí?” reverbera sem solução
e a mais perturbadora delas, segundo Freud, através de toda obra (p. 11).
foi efetuada pela psicanálise, descentrando o
homem de si mesmo, “solapando a ilusão de E não é, justamente, esta questão que atra-
identidade entre consciência e mente” (OG- vessa e constitui o processo de análise? Não
DEN, 1996, p. 14). importa se estamos na posição de paciente
Exatamente a partir deste referencial, ou de analista, “quem está aí?” é o que vol-
“o ego não é amo em sua própria morada” ta e meia nos perguntamos. Segundo Ogden
(FREUD apud OGDEN, 1996), é que Freud (1996), o tema da “cisão da consciência” e a
dá outro lugar às palavras e vai além delas, questão do sujeito dentro dessa “dupla cons-
buscando aquilo que é dito, mas, também, ciência” têm reverberado durante todo esse
aquilo que é não dito. As palavras falam de século de pensamento analítico.
algo que o sujeito quer falar e, também, da-
quilo que ele quer esconder. Assim, a escuta Breves considerações
em Psicanálise não é qualquer escuta. Segun- acerca da escuta em Melanie Klein e Lacan
do Siqueira (2007), o psicanalista se propõe Parece adequado tratar, sucintamente, a im-
escutar o que não ouve, ir além do que se vê, portância da fala e da escuta analítica em
escutando o conflito, o sofrimento humano. abordagens posteriores, dentre elas as de
Ao redigir esse texto, lembro-me de um Melanie Klein e Jacques Lacan, os quais pu-
paciente que diz várias vezes, nas sessões: deram ampliar conceitos freudianos a ponto
de construir novos paradigmas nos campos lico foi definido como o lugar do significante
teórico e clínico. e da função paterna; o imaginário, como o
Klein expandiu o conceito de fantasia in- lugar das ilusões do eu, da alienação e da fu-
consciente com ênfase no mundo interno do são com o corpo da mãe; e o real como um
paciente, escutou a fantasia como o repre- resto impossível de simbolizar.
sentante psíquico da pulsão. Também pos-
tulou que a análise de crianças era possível, Considerações finais
inaugurando a técnica do brincar como fer- Nesta comunicação procurei situar a origem
ramenta de escuta do inconsciente infantil. e o método de tratamento psicanalítico. En-
Segal (1975) coloca que, na escuta kleiniana, tretanto, uma questão se faz presente a todo
é importante analisar as relações do ego com instante: que lugar ocupa a Psicanálise num
os objetos internos (submetidos às fantasias contexto cada vez mais imediatista, no qual
Ics) e externos, e que, com essa compreen- a singularidade é cada vez menos conside-
são, o analista pode vislumbrar o ponto de rada? Parece-me claro que vivemos numa
urgência traduzido na angústia e no sadismo época onde o sujeito que sofre não tem lugar
voltado para si mesmo ou para o objeto. Ao social. Grande paradoxo, pois sabemos que
compreender essas fantasias, pode-se inter- o sofrimento é inerente à condição humana.
pretar, de maneira substancial, as operações Birman, na obra O Mal-Estar na Atualidade
defensivas do ego em termos de emoções e (2001), cita, a partir das ideias dos filósofos
comportamentos. Para Klein, a fantasia não Lasch e Debord, duas formas de subjetivação
é, simplesmente, uma fuga da realidade, mas vigentes na atualidade - a cultura do narcisis-
uma constante e inevitável interação en- mo e a sociedade do espetáculo:
tre experiências reais e mundo interno, um
modo de conceber as demandas pulsionais O que justamente caracteriza a subjetividade
inconscientes. na cultura do Narcisismo é a impossibilidade
Lacan, segundo Roudinesco (1998), para de poder admirar o outro em sua diferença
escutar o inconsciente, apoiou-se não mais radical, já que não consegue se descentrar de
num modelo biológico (darwinista), mas si mesma. Referido sempre a seu próprio um-
num modelo linguístico. Além disso, Lacan bigo e sem poder enxergar um palmo além do
reformulou a metapsicologia freudiana, ar- próprio nariz, o sujeito da cultura do espetá-
ticulando a teoria do sujeito com conceitos culo encara o outro apenas como um objeto
como o real, o imaginário, o estádio do es- para seu usufruto. Seria apenas no horizonte
pelho na constituição do eu e o simbólico. O macabro de um corpo a ser infinitamente ma-
real designa uma realidade fenomênica que nipulado para o gozo que o outro se apresen-
é imanente à representação e impossível de ta para o sujeito no horizonte da atualidade
simbolizar. Utilizado no contexto de uma (p.25).
tópica, o real é inseparável dos outros dois
componentes, o imaginário e o simbólico. Coloca, ainda, que por intermédio destas
Ainda segundo Roudinesco (1998), o imagi- categorias, torna-se possível supor o que está
nário, no sentido lacaniano, define-se como no fundamento das psicopatologias atuais.
o lugar do eu por excelência. O simbólico nos Deste modo, faz-se necessário que também a
fala de um sistema de representação baseado escuta em Psicanálise esteja sensível aos mo-
na linguagem, ou seja, signos e significações vimentos do contemporâneo, para que possa
que determinam o sujeito, permitindo-lhe escutar estas novas demandas.
referir-se a ele, consciente ou inconsciente- Por fim, segundo Roudinesco (2000), o
mente, ao exercer sua faculdade de simboli- método psicanalítico é um tratamento base-
zação. Resumidamente, para Lacan, o simbó- ado na fala, um tratamento em que o fato de