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Um mistério que envolve filosofia, _ matematica, historia e ciéncias ocultas Ree og ® oe : eres pe SECRETO @-DESCARTES Amir D. AczEL vy Para Debra Titulo original: Descartes Secret Notebook (A True Tale of Mathematics, Mysticism, and the Quest to Understand the Universe) ‘Tradugao autorizada da primeira edigéo norte-americana, publicada em 2005 por Broadway Books, uma divisio de Randon House, Inc., de Nova York, BUA Copyright © 2005, Amir D. Aczel Copyright da edicao brasileira © 2007: Jorge Zahar Editor Lida. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 e-mail: jze@zaharcom.br site: www.zahar.com.br “Todos os dircitos reservados. A reprodugio nao-autorizada desta publicagio, no todo ou em parte, constitui violagao de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Projeto grifico ¢ composigao: Capa: Sérgio Campante Iustragio da capa: © Leonard de Selva/Corbis CIP-Brasil. Catalogagio-na-fonee Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Alle 07-0244 Aczel, Amir D., 1950- O caderno secreto de Descartes: um mistério que envolve filosofia, matemitica, histéria ¢ ciéncias ocultas/Amir D. Actel; tradugio, Maria Luiza X. de A. Borges. — Rio de Janeiro: Jorge Zabar Ed., 2007. Tradugéo de: Descartes’ secret notebook: (a true tale of mathematics, mysticism, and he quest to understand the Universe) Inclui bibliografia ISBN 978-85-7110-973-5 1. Descartes, René, 1596-1650 ~ Cadernos de notas, desenhos etc. 2. Descartes, René, 1596- 1650 — Conhecimentos ~ Matemitica. 3. Leibniz, Gottfried Wilhelm, Freiher von, 1646- 1716 ~ Manuscritos. 4. Matematica ~ Filosofia ~ Histéria ~ Século XVIL. I. Titulo. CDD: 510.1 DU: 510.2 SUMARIO cio, 7 Introdug4o: A procura de Leibniz em Paris, 15 1. Os jardins da Touraine, 21 2. Matematica jesufta e os prazeres da capital, 29 3..O enigma holandés, 39 ; 4. Trés sonhos num forno as margens do Danubio, 50 5. Os atenienses sofrem com uma peste antiga ¢ persistente, 57 6.0 encontro com Faulhaber e a Batalha de Praga, 64 7.A fraternidade, 71 8. Espadas no mar e um encontro no Marais, 79 _ 9. Descartes ¢ os rosacrucianistas, 86 10. Criag6es italianas, 95 11. Um duelo em Orléans ¢ 0 cerco de La Rochelle, 102 12. A mudanga para a Holanda e o fantasma de Galileu, 109 13, Um caso secreto, 1 19 14. A filosofia de Descartes ¢ 0 Discurso do método, 123 15. Descartes compreende o antigo mistério deliaco, 133 16. A princesa Elisabeth, 137 / 7A disputa de Utrecht, 143 18. O chamado da rainha, 148 Materia 1g. A misteriosa morte de Descartes, 158 20. Leibniz investiga o segredo de Descartes, 168 21. Leibniz quebra o cddigo de Descartes ¢ desvenda o mistério, 181 Um epilogo do século XXI, 193 Notas, 199 Bibliografia, 210 Créditos das ilustragées, 216 Agradecimentos, 218 Indice remissivo, 220 PREFACIO SEGUREI O FRAGIL MANUSCRITO ANTIGO em minha mao, Abri-o cuidadosa- mentee li: PREAMBULOS O temor de Deus é 0 comeco da sabedoria. Os atores, chamados & cena, usam uma mascara para ocultar suas faces afogueadas. Como eles, ao subir 20 palco no teatro do mundo, onde até agora fui somente um espectador, avango mascarado. No tempo de minha juventude, testemunhando enge- rnhosas descobertas, eu me perguntava se poderia inventar todas as coisas por mim mesmo, sem me apoiar no trabalho de outrem. Desde entio, pouco a pouco, dei-me conta de que procedia segundo determinadas regras. A ciéncia & como uma mulher: se fiel, permanece junto do marido, é respeitadas caso se entregue a todos, é degradada. O manuscrito prosseguia. Depois de algumas paginas, li mais um fragmento de texto: OLYMPICA 11 de novembro de 1620, comego a conceber os fundamentos de uma descoberta admirdvel. Essas eram as palavras enigmiaticas de René Descartes (1596-1650). Elas nunca foram destinadas para outros olhos que no os seus préprios. Mas o manuscrito que eu tinha agora em minhas mios ndo fora escrito por ele, Era uma cépia dos escritos secretos de Descartes feita por Gottfried Wilhelm 7 8 © CADERNO SECRETO DE DESCARTES Leibniz (1646-1716) — um dos maiores matematicos de todos os tempos ¢ 0 homem que, apenas alguns anos depois de copiar o caderno de notas de Descartes em Paris, nos daria 0 cdlculo. . A IDEIA DE UM Livro sosRE Descartes me ocorreu quando eu estava perdido numa tempestade de neve em algum lugar no leste de Ontario, perto da frontcira de Québec, por volta da meia-noite, no inicio de janciro de 2002. Voltavamos para casa em Massachusetts depois de uma visita a parentes, em Toronto, durante os feriados. Esperévamos passar a tiltima noite de nossa viagem em Montreal, quando nosso carro ficou atolado na neve profunda lancada por uma nevasca repentina. Saf da estrada principal no intuito de procurar um lugar para esperar a tempestade passar, mas apés uma infeliz seqiiéncia de desvios para varias estradas secundarias, cheguei 4 conclusao de que estévamos completamente perdidos. A visibilidade era ruim, nao havia nenhuma luz a vista, ¢ ndo tinhamos a menor idéia de onde deviamos virar. Eu sabia que se ficdssemos sem combustivel, comegariamos finalmente a congelar. Enquanto dirigia, dei uma olhada em meu painel. Lembrei-me entao de um equipamento com que aquele carro viera — algo que eu nunca tivera neces- sidade de usar antes. No painel, reconheci o botaozinho e apertei-o. Seguiu-se © som de um numero de telefone sendo discado automaticamente. “Boa-noite, sr. Aczel”, disse uma voz agradavel a mil quilémetros de dis- tancia. “Como esti passando esta noite? Vejo que est rumando para o sul na Glen Donald road, a 800 metros do cruzamento com a County road 27, nas proximidades de Cornwall, em Ontirio.” “Hum, hum...”, disse eu, tentado evitar que minha voz denunciasse, que eu nao tinha absolutamente nenhuma idéia de onde estavamos. “Estamos procurando um hotel... Est4 nevando muito.” “Nenhum problema”, foi a resposta. “Para onde esté tentando ir?” “Montreal.” “Nao ¢ dificil”, tranqiiilizou-me a voz da civilizacdo. “Vire 4 esquerda no préximo cruzamento, com a County road 27. Siga essa estrada por trés quilé- metros e depois vire & direita no cruzamento; verd entéo a faixa expressa para a Highway 401, quc leva a Montreal, Que hotel prefere? Hé um Marriott assim PREFACIO. 9 que se chega a cidade desta diregao. Posso fazer uma reserva para o senhor e estarei de volta com mais instrugées quando estiver mais adiante.” A vor naquele telefone celular guiou-nos através da noite: de uma estrada tural deserta numa Ontério assolada pela neve até um quarto de hotel aquecido em Monteal, orientando-nos a cada virada ao longo do caminho. A pessoa que nos dava instrug6es a distancia conhecia nossa posicao, com uma mar- gem de erro de menos de quatro metros, a cada minuto de nossa viagem. A tecnologia que tornou tudo isso possivel é o GPS, Sistema de Posicionamento Global, que permite determinar a localizagio de um pequeno receptor de radio (chamado receptor de GPS) em qualquer lugar do mundo. Nesse caso, um aparelho instalado em meu carro, ligado a um telefone celular interno, permitia 4 companhia que fornece esse servigo determinar a localizagao de meu veiculo onde quer que ele estivesse. A espantosa tecnologia funciona gtacas a uma invengo feita h4 quase quatro séculos pelo filésofo, cientista e matematico René Descartes. Descartes nos deu o sistema de coordenadas cartesianas, assim chamado em sua homenagem — um sistema de linhas paralelas que se entrecruzam em duas, trés ou mais direcées, permitindo-nos descrever numericamente a posi- 40 de um ponto no espaco. Nesse caso, a posicio do ponto (meu carro) foi descrita em termos de sua latitude ¢ longitude, traduzidas em seguida numa localizagio num mapa. O sistema GPS funciona também em trés dimensdes: além da latitude ¢ da longitude, pode dar a altitude — e isso 0 torna util para orientar um aviao. Mas 0 sistema de coordenadas de Descartes ¢ usado para muito mais do que o GPS. Cada pixel na tela de seu computador é descrito internamente por um par de ntimeros: suas coordenadas horizontal e vertical. Toda a tecno- logia da computacio, portanto, se baseia no invento de Descartes. Graficos, diagramas e mapas de todo tipo fundam-se no sistema cartesiano, bem como a fotografia digital, tao popular hoje em dia, além das imagens e documentos enviados na internet, as plantas da engenharia, os véos espaciais ¢ a exploracao de petréleo. As aplicacées vao ainda além disso — de nossa apreensao tridimensional de imagens, grdficos e formas. Mesmo quando se dispée de dados sobre mui- tas vari4veis — mais do que as trés dimensées visuais da vida cotidiana —, esses dados ainda podem ser analisados mediante o uso das coordenadas car- tesianas. Seu banco, por exemplo, pode ter dados sobre sua renda, seus ativos, © numero de anos em que vocé estd em seu atual emprego, o niimero de membros da sua familia, sua idade, seu nivel educacional e assim por diante. 10 © CADERNO SECRETO DE DESCARTES Esses dados multidimensionais podem ser mapeados numa escala de muitas varidveis com o uso das coordenadas cartesianas (mesmo que tal “mapa” nao possa ser visualizado e s6 tenha sentido no contexto da anilise computacional dos dados) e, por meio de andlise estatistica, levar 0 banco a decidir se deve ou nao the conceder 0 empréstimo que vocé pediu. Algoritmos estatisticos e cientificos que analisam dados sobre muitas varidveis usam o sistema cartesiano na andlise. O nimero de aplicagées do sistema de coordenadas cartesianas em nossas vidas ¢ imenso. Literalmente, tudo 0 que fazemos, vemos ou usamos em nosso dia-a-dia tem algo a ver com a notavel invengao de Descartes. Curiosamente, a invengao do sistema de coordenadas que recebeu seu nome foi um resultado especial de um projeto muito mais grandioso de Des- cartes. Quatro séculos atrds, ele promoveu um imenso avanco na matemitica, dando inicio & moderna teoria matemitica ao unificar a Algebra com a geo- metria mediante a invencao da geometria analftica: uma maneira de conectar as equacées e formulas da Algebra com as figuras e formas da geometria. O sistema de coordenadas cartesianas foi precisamente o estratagema que criou para facilitar essa unificagao. E claro que a enorme fama de Descartes nio provém simplesmente de seu trabalho na matemitica ou na fisica — em que ele também fez desco- bertas importantes, especialmente sobre a gravidade e objetos em queda, bem com em dptica —; ela se deve sobretudo a seu trabalho em filosofia. O “Penso, logo existo” de Descartes, ¢ a filosofia que existe por trés dessa afirmagao, ¢ um pilar da filosofia moderna; ¢ seu racionalismo — 0 carte- sianismo — € considerado de grande importancia para o desenvolvimento do pensamento filoséfico. Descartes é muitas vezes visto como o fundador da filosofia moderna, Em suas Meditagées, publicadas em 1641, ele escre- veu: “Deve ser reconhecido que este pronunciamento, existo, sempre que o declaro ou o concebo em minha mente, ¢ necessariamente verdadeiro.” Na introdugao ao livro que organizaram, Descartes and His Contemporaries, M. Grene e R. Ariew consideram essa afirmacao de Descartes 0 sinal de momento critico no pensamento ocidental: “Subitamente, alcancamos um novo nivel de consciéncia, em que podiamos fazer perguntas reflexivas sobre nés mesmos: podemos passar da consciéncia a um mundo externo? Quem somos nés como mentes em relagéo a nossos corpos?”! Alguns estudiosos chegaram mesmo a afirmar que a filosofia de Descartes, ao introduzir 0 cu na consciéncia humana, inaugurou a tcoria psicolégica moderna. O méto- do de raciocinio de Descartes criou assim a auto-reflexdo, que incorporou a filosofia os elementos da psicologia moderna. Descartes foi 0 pioneiro PREFACIO 0 das investigacoes metafisicas e formulou hipoteses acerca da relagao entre 0 corpo ea alma. Tentou usar a razao e a légica para provar a existéncia de Deus (em quem acreditava). Ha um vinculo direto entre a abordagem Idgica ¢ racional de Descartes a filosofia e seu trabalho em matemitica. A razio disso é que sua filosofia é baseada numa tentativa ambiciosa de fundar todo o conhecimento humano nos mesmos principios precisos, estritamente ldgicos, que os gregos antigos haviam usado para criar sua duradoura geometria. Actedito que as obras de Descartes em matemética, fisica e filosofia, bem como em outras reas que estudou, como biologia, anatomia ¢ tcoria musical, sdo unidas por elos invisiveis de légica. Essa racionalidade interna recondita é a esséncia de Descartes — pois 0 Descartes oculto foi fundamentalmente um matematico supremo: um homem que fazia matematica com tal exceléncia que chegou a acreditar que poderia aplicar suas habilidades e métodos matematicos a todas as dreas de estudo do homem. Descartes viveu num dos periodos mais tumultuados, porém intelec- tualmente fecundos, da Histéria, a primeira metade do século XVII, época da Guerra dos Trinta Anos, em que catdlicos e protestantes foram implacavelmente lancados uns contra os outros numa série de batalhas sangrentas. Esse periodo viu também a impiedosa represséo de novas idéias cientificas e filoséficas pela Igreja catélica, como o evidenciou 0 julgamento de Galileu pela Inquisicao, a perseguicao de outros pensadores que apoiaram a teoria de Copérnico ¢ a qucima de livros proibidos. Esse foi também, no entanto, um periodo de grande reflorescimento intelectual — a extensio do Renascimento a ciéncia, & matemiatica e a filosofia. Idéias classicas nessas dreas estavam sendo estudadas e disseminadas por toda a Europa por intelectuais. A obra de Descartes, ao mesmo tempo que foi um produto desse periodo, foi de vanguarda, abrindo caminho no desenvolvimento da matematica e da filosofia até os nossos dias. 4 Meu cart ravorrro em toda Paris é Les Deux Magots — esse icone da sociedade literdria que Hemingway, Fitzgerald, Sartre e De Beauvoir tornaram famoso —, defronte & antiga igreja de Saint-Germain-des-Prés. Seis meses apés nossa viagem canadense na neve, encontrei-me num dia ensolarado sentado nesse café com meu amigo historiador Richard Landes. Tomavamos café gelado, e Richard me falava sobre os arranjos que queria fazer para que eu me encontrasse icy © CADERNO SECRETO DE DESCARTES com o diretor do centro Descartes em Paris, agora que eu estava na capital francesa para pesquisar a vida do filésofo e matematico. Eu aluguei um apartamento no Marais — a parte mais antiga, medieval, de Paris, ¢ a Ginica area da cidade que nao fora arrasada no século XIX pelo baréo Georges Haussmann como parte de seu plano de construir os largos e elegantes bulevares que associamos hoje a Paris. O bairro, com suas ruelas estreitas, anti- gas, conserva muito da aparéncia que a cidade tinha nos diss de Descartes. Meu apartamento, na rue du Bourg Tibourg, ficava num prédio construido em 1629. Tanto o prédio quanto o apartamento, nos quais visivelmente poucas obras foram feitas nos tiltimos séculos além do necessério para a manutengio, pareciam muito com o que deviam ser quando Descartes caminhava por essas mesmas ruas no breve periodo, em 1644, em que morara bem perto desse enderego, na rue des Ecouffes, entre a rue du Roi de Sicile e a rue des Blancs-Manteaux.’ O apartamento, um cémodo amplo com uma cozinha num canto e um banheiro, tinha um teto alto sustentado pelas vigas originais marrom-escuras, tao caracteristicas da construcio francesa do século XVII. Uma escada estrei- ta, em espiral, com janelinhas cortadas nas grossas paredes de pedra, levava a0 apartamento. Olhando o prédio de fora, podia-se admirar as altas janelas parisienses ¢ notar os suportes de ferro salientes que mantinham unidas as paredes exteriores dessa estrutura antiga. Saber que meu prédio estava alii na época em que Descartes andava por aquelas mesmas ruas conferiu 4 minha pesquisa um maior sentide de realidade. Eu passava os meus dias nas bibliotecas e arquivos de Paris, pesquisando sobre Descartes e sua obra; viajei para os lugares em que ele passou temporadas ou viveu pela Europa — Descartes foi um grande viajante, que conheceu a maior parte do continente — e trilhei o perimetro da Place des Vosges, sob os arcos antigos, exatamente como ele fez em 1647, discutindo matematica com Blaise Pascal. Tive nas minhas mos cartas originais que Descartes havia escrito para seu amigo Marin Mersenne; examinei incontaveis manuscritos redigidos ao longo dos séculos; cheguei a comprar um livro original de Descartes, publicado em 1664. Mas, em algum momento no meio de minha investigacio, fiz uma descoberta surpreendente: Descartes mantivera um caderno de notas secreto, od AGORA EU ESTAVA SENTADO no cora¢ao da drea em que Descartes mais gostava de morar sempre que passava temporadas mais longas em Paris — 0 entio PREFACIO B agora elegante bairro de Saint-Germain-des-Prés, Richard falava rapidamente sobre Descartes, histéria e Paris, mas éramos interrompidos com demasiada freqiiéncia pelo perpétuo toque de seu telefone celular. Contemplei a velha igreja diante de nés. Sabia que era muito antiga — sua construcdo comegou no século VI. Ela tem uma torre graciosa, que data do século Xe ainda man- tém em seu estado original. Apresenta um tipo ristico de beleza, ¢ de fato ficava outrora no campo, fora dos muros da cidade — dai a designagao “des Prés”. Eu sabia também mais uma coisa sobre essa igreja: dentro dela ha uma ctipta contendo os restos de René Descartes. Mas a0 corpo do grande filésofo ¢ matemético — tio reverenciado pelos franceses — falta a cabega. O ctinio de Descartes, ou melhor, um eranio supostamente seu, ¢ exibido em outro lugar de Paris. Nada que diz respeito a Descartes é simples, e nada € o que parece, como aprendi em minha investigacao para compreender esse homem e desvendar seus segredos. INTRODUGAO: A PROCURA DE LEIBNIZ EM PARIS No pia 1° DE JUNHO DE 1676, Gottfried Wilhelm Leibniz, que se tornaria conhecido como um dos maiores matemiticos de todos os tempos e que — junto com Newton, que trabalhou independentemente na Inglaterra — seria considerado 0 descobridor do célculo, apeou de uma carruagem em frente a uma casa em Paris, subiu alguns degraus ¢ bateu a uma pesada porta de madeira. Leibniz chegara a Paris alguns anos antes, vindo de Hanéver, em sua Alemanha natal. Encontrava-se ali numa missao diplomatica no interesse de seu protetor, um nobre alemao. Pessoalmente, porém, estava 4 procura dos escritos ocultos de Descartes. Ouvira dizer que, a0 morrer em Estocolmo, em 1650, Descartes deixara uma caixa contendo escritos que nunca pretendera publicar e mantivera secretos ao longo de toda a sua vida. Sabia que esses escritos estavam guardados em algum lugar na capital francesa, e ao longo de mais de trés anos ¢ meio passados na cidade esforgou-se ao maximo para encontrar esse tesouro. Finalmente, usando uma rede de contatos, conseguiu obter o nome ¢ o enderego de Claude Clerselier (1614-84), um homem que fora, além de amigo de Descartes, editor e tradutor de suas obras. Leibniz foi informado de que um quarto de século antes, Clerselier havia recebido os manuscritos ocultos de Descartes de presente de seu cunhado Pierre Chanut (1601-62), que fora embaixador da Franga na Suécia e confidente de Descartes durante os poucos meses em que este servira 4 rainha Cristina da Suécia como professor de filosofia, antes de morrer. Algum tempo depois da morte de Descartes, o embaixador Chanut des- pachou para a Franga, de navio, a caixa que continha os manuscritos ocultos. Apés longos atrasos pelo caminho, a carga foi desembarcada em algum mo- 15 6 © CADERNO SECRETO DE DESCARTES mento de 1653 no porto francés de Rouen. Em seguida, foi reembarcada num barco que subiria o rio Sena até Paris. Assim que entrou em Paris, porém, € passava pelo paldcio do Louvre, o barco emborcou e afundou. A caixa lacrada que continha os manuscritos de Descartes ficou submersa por trés dias. De- pois, miraculosamente, desprendeu-se dos destrocos ¢ foi encontrada numa ribanceira, alguns metros tio abaixo. ‘Ao ser informado disso, Clerselier — que esperava a preciosa carga havia muito tempo e que, ao saber que o barco emborcara, ficara desolado ¢ simplesmente perdera a esperanca de jamais ver os manuscritos — correu ao rio com todos os seus criados e ordenou-lhes que recobrassem os papéis rapidamente. Em seguida, instruiu os criados a espalhar as folhas de per- gaminho dos manuscritos de Descartes sobre mesas em sua casa para seca- rem. Mais tarde, os criados, que eram analfabetos, tiveram dificuldade em recompor os manuscritos!, mas Clerselier fez grandes esforgos para salvar os esctitos ocultos de Descartes ¢ passou muitos anos lendo os manusctitos e pondo-os em ordem. Havia um caderno de notas, contudo, cujo contetido ele ndo conseguiu entender. ~ O HomeEM Que JA passara da meia-idade entreabriu a porta, mas ao ver alguém que ndo conhecia, volrou a feché-la. “Por favor”, suplicou 0 jovem por trs da porta trancada, “por favor, leia esta carta’, e enfiou, por uma brecha que se reabriu, uma carta de apresentagio do duque de Hanéver, pedindo a quem quer que a lesse que proporcionasse toda ajuda ao portador. ‘Apés passar os olhos rapidamente pela carta, Clerselier abriu sua porta e convidou Leibniz a entrar. Era um homem possessivo, e vinha guardando com citimes os escritos de Descartes. Considerava-se 0 protetor dos segredos do falecido amigo. Ouviu atentamente a explicacao de Leibniz sobre sua ne- cessidade urgente e extraordindria de ver os documentos. Ao ouvir a histéria, compreendeu que o futuro e a reputacio daquele rapaz poderiam depender do contetido dos escritos ocultos de Descartes. Assim, com relutancia, ¢ apesar de sua inclinagio a nao fazé-lo, Clerselier consentiu em deixar Leibniz ver 0 trabalho de Descartes e até copid-lo. Leibniz sentou-se, abriu um manuscrito ¢ leu: INTRODUGAO 7 PREAMBULOS O temor de Deus é 0 comego da sabedoria. Os atores, chamados a cena, usam uma mascara para ocultar suas faces afogueadas... Depois de ler a referéncia de Descartes 4 sua esperanga de descobrir por si mesmo toda a ciéncia, e de “avancar mascarado” pela vida, Leibniz continuou lendo e encontrou o seguinte: ‘TESOURO MATEMATICO DE POLYBIUS, O COSMOPOLITA Fornecer ao leitor os verdadeiros meios de resolver todas as dificuldades desta ciéncia; esti demonstrado que, sobre essas dificuldades, o espirito humano nada mais pode descobrir. Iso para calar a tagarelice vi e rejeitar a irresponsabilidade de alguns que promerem demonstrar novos milagres em todas as ciéncias. Leibniz compreendeu que Descartes havia planejado escrever um livro sobre uma importante descoberta matematica usando um pseud6nimo, René Descartes seria Polybius, o Cosmopolita. Depois de uma pausa, continuou a examinar 0 extraordindrio documento, mas o que leu em seguida o sur- preendeu: Oferecido, uma vez mais, aos estudiosos eruditos de todo 0 mundo, ¢ es- pecialmentea G, ER. C. ‘Na cépia que fez do manuscrito, Leibniz acrescentou uma palavra entre parénteses, escrevendo: G. (Germania) FE R. C. Nao precisou anotar 0 significado do acrénimo “EF. R. C.”. Conhecia-o muito bem... talvez bem demais. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha quando se deu conta de que um vinculo secreto e invisivel 0 ligava ao falecido fildsofo francés. . LENDO ATENTAMENTE os manuscritos que tinha diante de si, Leibniz compreen- deu que os Preédmbulos ¢ a Olympica, que anunciavam a “admirdvel descoberta” de 18 © CADERNO SECRETO DE DESCARTES Descartes, mas nao apresentavam a propria descoberta, eram apenas fragmen- tos destinados a introduzir a verdadeira obra em que a verdade nao revelada naqueles manuscritos era exposta. Mas que obra era essa ¢ onde se encontrava? Como estava prestes a descobrir, Leibniz achava-se naquele momento muito perto do mais profundo segredo de Descartes, da descoberta mais préxima de seu coragio — uma descoberta que precisaria ser velada com um pseudénimo, uma linguagem mistcriosa ¢ uma notag&o esquisita, mistica. “Sim, hd mais um item”, disse o velho cavalheiro, quando Leibniz, ao cabo de cinco dias de c6pia, lhe perguntou ansiosamente se havia mais alguma coisa’. “Mas, afora eu, ninguém jamais o viu antes. E um caderno de notas — seu cademo de notas secreto,” E em seguida acrescentou: “De todo modo, nao me parece que o senhor o compreenderia. Passei anos tentando decifré-lo, mas nada do que esta ali, simbolos, desenhos ou formulas, faz 0 menor sentido. E inteiramente codificado: Leibniz suplicou, e explicou mais uma vez sua necessidade desesperada de se inteirar de tudo que pudesse acerca da obra oculta de Descartes, Prometeu que guardaria o segredo, fosse ld o que estivesse escondido nas paginas do caderno. Clerselier acabou por ceder, mas impés severas restrig6es ao acesso a esse documento.’ . O capeRNo DE Descartes consistia em 16 paginas de pergaminho. Continha uma notacdo esquisita. Alguns simbolos pareciam aqueles associados 3 alquimia ¢ A astrologia — ndo eram caracteres usualmente encontrados em textos sobre matematica. Junto deles havia figuras estranhas, obscuras, ¢ ainda seqiiéncias de ntimeros aparentemente incompreensiveis. Que significava tudo aquilo? Trabalhando com afinco ¢ com muita rapidez — talvez furtivamente, pois ndo sabemos quais eram de fato as condig6es que Clerselier havia imposto quando por fim Ihe permitira ver 0 caderno —, Leibniz teve de decifrar o cédigo de Descartes a0 mesmo tempo em que fazia a cépia. No momento em que precisou interromper seu trabalho, havia conseguido copiar apenas uma pagina e meia. Parte da cépia do caderno de notas secreto de Descartes feita por Leibniz‘ é mostrada na pagina a seguir. Alguns anos depois desse episédio, o caderno secteto original desapareceu para sempre. Por outro lado, durante mais de trés séculos, ninguém foi capaz de compreender o significado da cépia que Leibniz. fizera dele. INTRODUGAO 19 Pagina da cépia feita por Leibniz do caderno secreto de Descartes 20 © CADERNO SECRETO DE DESCARTES O significado dos simbolos esquisitos, entre os quais 2), e das seqiiéncias de numeros — 468 12 200 e486 20 12 — permaneceu um profundo mistério. Por que Descartes manteve um caderno de notas secreto? Quais eram seus contetidos? E por que Leibniz sentiu-se compelido a viajar para Paris, procurar Clerselier ¢ copiar paginas dele? 1.08 JARDINS DA TOURAINE Pouco ANTES DE DESCARTES NaSCER, em 31 de marco de 1596, sua mae, Jeanne Brochard, teve uma atitude que talvez tenha alterado o curso da civilizacao ocidental. Pois, como Julio César cruzando 0 Rubicao em 49 a.C., Jeanne Brochard atravessou rio Creuse, que separava a terra natal de sua familia, na tegido do Poitou, da cidadezinha de La Haye, situada na regiao da Touraine, no centro-oeste da Franga. A familia de Descartes era origindria do Poitou ¢ vivera muitos anos na cidade de Chatellerault, cerca de 25 quilémerros ao sul de La Haye. Os pais dele, Joaquim Descartes ¢ Jeanne Brochard, que se casaram em 15 de janeiro de 1589, possuiam uma imponente mansio no centro de Chatellerault, no numero 126 da rue Carrou-Bemard (hoje rue Bourbon). Joaquim Descartes era conselheiro do Parlamento da Bretanha', um cargo importante que o mantinha longe de casa, na distante Rennes. Jeanne precisou de ajuda para dar & luz, e foi por isso que viajou para o norte e, cruzando o rio, foi para a Touraine, ter seu filho na casa da mae, em La Haye. Passado algum tempo, depois de se recuperar, ela retornou a Chatellerault. Apesar desse acidente de nascimento, ao longo de toda a vida de Descartes seus amigos 0 chamariam freqiientemente René, le Poitevin — René do Poitou. ‘As regides do Poitou e da Touraine incluem terras que vém sendo cultiva- das desde a Antigiiidade. Hé morros baixos, muitos dos quais com florestas, € ricas planicies, irrigadas por rios. Nessas terras férteis, vacas ¢ carneiros pastam € muitos produtos agricolas sao cultivados. La Haye € um vilarejo de casas de pedra com telhados cinza. No tempo de Descartes, tinha 750 habitantes. Chatellerault, uma cidade maior e mais refinada que La Haye, com largas avenidas ¢ uma praca elegante, servia como o foco da vida rural da regiio. Essa 21 a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. OS JARDINS DA TOURAINE 23 Casa da avé de Descartes (atualmente 0 Museu Descartes) Embora as regides do Poitou ¢ da Touraine sejam semelhantes em sua topografia, cendrio ¢ na disposi¢ao de aldcias ¢ cidades, havia uma dife- renga importante entre elas. Enquanto o Poitou era sobretudo protestante, a Touraine tinha maioria catélica. Sabemos que nos 15 anos de 1576 a 1591, realizaram-se apenas 72 batismos protestantes em La Haye’. Essa significativa diferenca religiosa entre as duas regides iria afetar a vida de 24 © CADERNO SECRETO DE DESCARTES René Descartes. Esse acidente de nascimento — o fato de ter nascido, e mais tarde ter sido também criado, numa regiao fortemente catélica, embora sua familia proviesse de uma protestante — exerceria consideravel impacto sobre a personalidade de René, influenciando assim suas acdes a0 longo de toda a sua vida e determinando o curso do desenvolvimento de suas idéias filoséficas e cientificas, bem como 2 maneira pela qual ele as divulgou para © mundo. Descartes viveu num século marcado por graves tensdes, ¢ até guerras, entre catélicos e protestants. O fato de ter nascido numa regiao catélica e ter sido criado por uma devota governanta catélica, quando muitos dos amigos ¢ associados de sua familia no Poitou eram protestantes, contribuiu para a sua reserva natural. Tornou-o também, quando adulto, muito mais preocupado com a Inquisi¢ao catélica do que talvez devesse ter sido, e nado temeroso 0 bastante da perseguicio de que poderia ser vitima por parte dos protestantes. Em conseqiiéncia, absteve-se de publicar elementos de sua ciéncia ¢ filosofia por medo da Inquisicéo, e por outro lado nao hesitou em se estabelecer em paises protestantes, onde académicos e tedlogos atacaram ferozmente sua obra, em parte por saberem que ele era catélico. René Descartes recebeu 0 batismo catélico em 3 de abril de 1596 na capela de so Jorge em La Haye, uma igreja normanda do século XI. Em sua certidao de batismo lé-se:* Neste dia foi batizado René, filho do nobre Joachym Descartes, con- selheiro do rei e seu Parlamento da Bretanha, e da donzela Jeanne Brochard. Seus padrinhos, o nobre Michel Ferrand, conselheiro do rei, lugar-tenente geral de Chatellerault, ¢ o nobre René Brochard, conselheiro do rei, juiz magistrado em Poitiers, e adama Jehanne Proust, esposa do senhor Sain, controlador de pesos ¢ medidas para 0 rei em Chitellerault. {Assinado] Michel Ferrand Jehanne Proust René Brochard Michel Ferrand, padrinho de René Descartes, era seu tio-avé — tio ma- terno de Joaquim Descartes, René Brochard era 0 avé do bebé, pai de Jeanne Brochard. A mae de Jeanne Brochard, avé de Descartes, era Jeanne Sain. A mulher do irmao desta era Jeanne (Jehanne) Proust.* a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 28 O CADERNO SECRETO DE DESCARTES deu. Tinha igualmente interesses ¢ negécios de familia mais ao sul ¢ a oeste, em Nantes, ¢ também na Bretanha. Quando ficou mais velho, René passou a viajar com freqliéncia, com o irmao e a irma, para visitar 0 pai. Finalmente, veria todo o oeste da Franga como sua terra natal, j4 que no final da infancia passou temporadas em varios lugares nas regides do Poitou, da Touraine ¢ da Bretanha. Mas essas viagens freqitentes sacrificavam o menino. Quando adulto, Descartes descreveu sua satide quando crianca como precaria, e, em cartas para 0s amigos, contou que todos os médicos que o examinaram haviam dito que le tinha uma satide téo ruim que muito provavelmente morreria ainda jovem. Sua devotada governanta, no entanto, cuidou tio bem do menino que aos 11 anos ele foi considerado suficientemente saudavel para ser afastado de casa e enviado para estudar no prestigioso colégio jesuita de La Flache. 2, MATEMATICA JESUITA E OS PRAZERES DA CAPITAL Em 1603 0 REI Henrique IV, que fora criado como protestante mas se con- vertera ao catolicismo, deu aos jesuitas, em sinal de sua boa vontade em relacdo Aquela poderosa ordem catélica, um castelo na cidade de La Fliche, cercado por vastos terrenos, em que eles deveriam instalar um novo colégio. Os jesuitas ampliaram 0 castelo ¢ o resultado foi uma série de grandes prédios em estilo renascentista interconectados, separados por vastos patios internos, quadrados ¢ simétricos. Ao entrar no terreno, fica-se impressionado com a perfeita ordem e simetria desses grandes patios, dispostos como um tabuleiro de xadrez, e com os jardins impecaveis que se estendem além deles. E um dos mais impressio- nantes terrenos de colégio ja vistos; hoje funciona ali uma academia militar, a Prytanée National Militaire. La Fléche foi bem escolhida para um colégio. Situa-se em Anjou, no norte da Touraine, numa 4rea rica, com florestas e morros suavemente ondulados. A cidade é atraente; tem seu centro cortado por um rio e é cercada por prados vigosos. O portio do colégio se abre diretamente para a vasta praca da cidade. E ao sair do seu terreno, os alunos achavam-se em pleno centro da cidade, com muitos lugares para comer, beber ¢ encontrar entretenimento. Inaugurado pelo rei Henrique LV, 0 colégio abriu seus portées em 1604, Os estudantes mais promissores das melhores familias da Franga foram incen- tivados a se candidatar a matricula, Entre os alunos aceitos para a primeira turma estava Marin Mersenne (1588-1648), que se tornaria o mais devotado ¢ leal amigo de Descartes. O estabelecimento era ditigido como uma escola semimilitar. Os alunos tinham de usar uniforme, incluindo calgbes amartados sob os joelhos com cordées arrematados por pompons, uma elegante blusa azul com mangas 29 30 O CADERNO SECRETO DE DESCARTES bufantes e um chapéu de feltro. Cada aluno recebia uma longa lista de itens que devia levar para a escola. Entre eles estavam velas, varios tipos de lipis, penas e cadernos, além de abjetos de uso pessoal. a SEGUNDO Novas Pesquisas, René Descartes ingressou no colégio de La Fléche logo apés a Péscoa de 1607." © La Fléche era uma instituigdo educacional de nivel secundirio, em que meninos estudavam antes de ir para uma universida- de. A admissao de René foi adiada porque sua satide nao era boa o suficiente quando era mais novo; até entao, ele foi educado em casa por um preceptor. Tinha 11 anos quando iniciou seus estudos no La Fléche e ali permaneceu até se formar, oito anos depois, em 1615. A instrugio no colégio era gratuita, mas as familias dos alunos tinham de pagar pelas acomodagécs, refeigées e outras despesas. Na época cm que Descartes estudou 14, 0 colégio tinha cerca de 1.400 alunos, vindos de toda a Franga. Felizmente para o menino, La Fléche ficava a apenas um dia de viagem de sua casa em La Haye, o que lhe permitia facilmente visitar sua avo ea governanta. Como Descartes ainda estava frigil, a familia fez uma solicitagio especial ao colégio, pedindo que a administracio zelasse excepcionalmente bem por sua sade. O reitor, padre Charlet, que era aparentado da familia Descartes e que René mais tarde qualificaria de “quase um pai para mim”, aquiesceu com todo gosto, e deu ao menino privilégios sem precedentes para lhe poupar qualquer fadiga, na esperanga de que sua saiide melhorasse. Assim, permi- tiu-lhe dormir até tarde de manha e permanecer na cama até que se sentisse bem o bastante para se juntar aos outros na sala de aula. Esse regime singular foi o inicio, para Descartes, de um habito que durou quase a vida inteira: acordar tarde de manhi e permanecer na cama, pensando e trabalhando, até sentir-se disposto para levantar ¢ enfrentar o dia. Durante a maior parte de sua vida até os tiltimos meses na Suécia, com excegéo dos perfodos em que estava no exército envolvido em luta intensa, Descartes nunca teve um des- pertar forcado de manha, levantando-se sempre quando seu corpo estava suficientemente descansado. Para todos os outros alunos a vida no colégio comecava as cinco da manhi. Até as cinco e quarenta e cinco faziam as oragées matinais, lava- vam-se ¢ vestiam-se, ¢ preparavam-se para o trabalho. A higiene pessoal era muito importante: os alunos eram compelidos a se lavar bem, e quando MATEMATICA JESUITA F OS PRAZERES DA CAPITAL 3 ficavam doentes eram confinados 4 enfermaria. Em seguida, até as sete € quinze, eles se dedicavam 4s suas tarefas individuais e tomavam o café da manhi. As primciras aulas iam das sete e meia as dez da manha e René estava dispensado de comparecer a elas. As dez horas era celebrada uma missa, seguida pelo almogo, a primeira refei¢ao substancial do dia. Seguia- se um perfodo de recreio. As aulas da tarde comecavam 4 uma e meiae duravam até quatro e meia ou cinco e meia, dependendo da estacao. Os alunos passavam o restante do dia — até as nove da noite, quando iam para a cama — fazendo a refeicao da noite e jogando, sobretudo os jogos de bola populares na Franga durante esse periodo (entre os quais 0 famoso jew de paume). Tinham permissio também para jogar cartas, um passatempo muito apreciado, embora o envolvimento de dinheiro em qualquer tipo de jogo fosse estritamente proibido. Pouco antes de se recolherem, ouviam uma pre- lecdo espiritual.? Em dias especiais, tinham aula de equitagéo, bem como de esgrima. René Descartes se reunia a seus colegas depois que as aulas da manha haviam terminado. Seu regime especial, que lhe permitia ficar na cama até tarde, o fez aprender a estudar por conta prépria. Isso foi especialmente util em matematica, permitindo-lhe deduzir idéias por si mesmo, em vez de pre- cisar estudar lentamente a matéria com uma classe inteira. Esse habito de independéncia intelectual permitiu-lhe avancar rapidamente e — um pouco mais tarde na vida — criar novo conhecimento matematico ¢ cientifico por si mesmo, sem ser refreado por crengas convencionais. Os alunos aprendiam gramética, que significava latim e grego. Estudavam também humanidades, retérica e filosofia. Tanto as humanidades quanto a ret6rica eram centradas nos classicos. As humanidades incluiam as obras dos poetas romanos Virgilio, Horacio ¢ Ovidio, ao passo que a retérica era sobretudo um estudo de Cicero e do método platénico de argumentagao. A filosofia ensinada no La Fléche consistia nas obras de Aristételes, na tradi¢io escoldstica medieval, bem como em légica, fisica ¢ metafisica.? Os jesuitas ensinavam a seus alunos os fundamentos da matemitica grega: as obras de Euclides, Pitégoras e Arquimedes. Os gregos, com sua visio clara e abstrara da natureza e de seus elementos, simplificaram a geometria, reduzin- do-a a figuras que podiam ser desenhadas com apenas dois instrumentos — os mais simples que eles puderam conceber, ¢ que, segundo acreditavam, deveriam ser suficientes para a construgio de qualquer figura geométrica ima- gindvel ou necessdria. Esses dois instrumentos clementares cram um esquadro sem marcas ¢ um compasso. 32 © CADERNO SECRETO DE DESCARTES Exquadro Compasso O esquadro fazia Aangulos e linhas retas, 0 compasso era usado para fazer ciraulos e marcar distdncias. Combinando as operagées dos dois instrumentos, era possivel desenhar tudo o que tinha importincia para os matemdticos gregos. AO Figuras desenhadas com esquadro ¢ compasso Descartes ficava fascinado pela simplicidade de pensamento ¢ a capacidade de abstracio que os gregos antigos haviam demonstrado com sua geometria, toda uma ciéncia baseada no uso de dois instrumentos. Os padres que Ihe ensinavam esse antigo conhecimento no colégio esbogavam toda a teoria da geometria cuclidiana ¢ explicavam aos alunos como provar diversos teoremas em geometria. Os cursos de marematica no La Fléche inclufam também arit- mética, em que as regras do cOmputo eram estudadas, bem como algebra, em que métodos de solugGes das equag6es eram explicados — até 0 ponto em que essas equagées eram compreendidas na época. Curiosamente, os pitios e construgées do colégio de La Fléche, com suas linhas perfeitamente simétricas e quadradas, pareciam ter sido construidos com esquadro ¢ compasso. Mais tarde, os escritos de Descartes — particularmente seu Discurso do método de 1637 — deixam claro que ele se impressionava com simetria e linhas retas no projeto de edificios e cidades: a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 36 © CADERNO SECRETO DE DESCARTES Quando crianga, René tivera uma paixonite por uma menina que sofria de ambliopia. Essa lembranga da infancia o levava a sempre concentrar sua arengio nos olhos das mulheres. Quando rapaz. em Patis, viu-se especialmente atraido por mulheres com belos olhos. Entre os novos amigos de René em Paris estava Claude Mydorge, que fora tesoureiro na cidade de Amiens ¢ era um reputado matemitico de primeira ordem. Uns 12 anos mais velho que Descartes, Mydorge era um homem do mundo, dotado de uma personalidade especialmente cativante e vivaz de bom senso de humor. Descartes gostava muito dele ¢ os dois homens passavam muitas horas juntos, seja divertindo-se, seja discutindo matematica. Entre os rapazes que René conhecera no La Fléche estava Marin Mersenne. Nessa altura, este havia concluido seus estudos na Sorbonne e recebera o habito da Ordem dos Minimos em 17 dejulho de 1611, no mosteiro de Nigeon, perto de Paris. A Ordem dos Irmaos Minimos foi fundada em 1435 por séo Francisco de Paula na Caldbria, na Itélia. Para os minimos, a humildade é a principal virtude; 0 nome minimo deriva de minimi, pois eles se viam como “os menores” de todos os religiosos. Seis meses apés a chegada de Descartes a Paris, Mersenne foi ordenado sacerdote e tornou-se um frade do mosteiro dos minimos na Place Royale (atual Place des Vosges). Descartes visitava com freqiiéncia 0 amigo Mersen- ne, que tinha muitos interesses cientificos e matemiaticos, conversava com ele ¢ explorava novas idéias. Rapidamente, Mersenne tornou-se 0 maior amigo de Descartes. Segundo Baillet, as estimulantes interacdes de que Descartes desfrutava com ele serviam de contrapeso para a falta de propésito geral que caracterizou seus primeiros tempos em Paris.” Descartes também gostava muito de musica. Alguns estudiosos estabeleceram uma relacio entre esse seu interesse e seu grande talento para matematica. Seja como for, Descartes ¢ seus muitos amigos dedicavam-se juntos a seus interesses musicais, assistindo a concertos ¢ apresentagées em toda a capital. *: Ap6s CERCA DE UM ANO Consumido em todo tipo de jogo e divertimento, René Descartes sentiu necessidade de se tornar mais sério. Em Paris, entrara em contato com novas idéias. Intelectuais franceses estavam estudando a ge- ometria grega, tentando aperfeicoar as obras dos gregos antigos. Nessa altura os Elementos de Euclides haviam sido ampliados para incluir mais trés volu- mes além dos 13 originais. A fisica também se desenvolvia, 4 medida que os a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 40 O CADERNO SECRETO DE DESCARTES depois traduziu para latim o pardgrafo escrito abaixo do diagrama. Entregou © papel ao jovem soldado, dizendo: “Querem que se prove essa afirmagao”, e apontou para a tiltima frase. Des- cartes olhou atentamente para o papel em sua mao, ¢ 0 homem acrescentou: “Quando tiver conseguido resolver esse problema, me dard a solugao, nao é?”2 Descartes desviou-se rapidamente do papel e pregou os olhos no homem. “Sim, é claro que lhe darei a solugao”, disse, num tom determinado. “Poderia por favor me dar seu endetepo?” O holandés ofereceu-lhe a mao e disse: “Meu nome é Isaac Beeckman.” “René Descartes”, disse 0 soldado. “Ou René le Poitevin, como me chamam, porque minha familia vem da regido francesa do Poitou; embora na verdade eu tenha nascido na Tourain ‘Apertaram-se as maos, e Beckman contou a Descartes que era de Middle- burg, mas passava algum tempo em Breda para ajudar o tio com seus porcos. Deu-lhe 0 enderego do tio e os dois se despediram. A partir de seu diario, descoberto numa biblioteca holandesa em 1905, ¢ de outras fontes, sabemos que Beeckman nao acreditava que 0 jovem soldado seria capaz de resolver 0 enigma. ‘Na manha seguinte, antes que Isaac Beeckman tomasse o café da manha na casa do tio, ouviu-se uma alta ¢ persistente batida 4 porta. O criado abriu-a e deixou entrar 0 jovem soldado. Estava acompanhado de seu camareiro. Des- cartes mostrou a Beckman sua solu¢do para o enigma holandés. O holandés, que era um matematico competente, ficou pasmo com a solugao que o soldado dera aum problema matemético muito dificil. Nao esperara que uma pessoa qualquer resolvesse um problema que muitos especialistas em matematica € professores nao haviam conseguido deslindar. A brilhante solugao do proble- ma cimentou uma amizade entre os dois homens. Esse evento foi também um divisor de aguas na vida do jovem Descartes, pois 0 fez compreender pela primeira vez que era um matematico de muito talento. . O enteMa Que Descartes sovucionou e demonstrou para seu novo amigo nao era um problema isolado que aparecera de repente num cartaz no sul da Holanda. O século XVII assistiu a um reflorescimento da geometria classica da Grécia antiga, 4 medida que pessoas instruidas por toda a Europa procu- a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 44 © CADERNO SECRETO DE DESCARTES Descartes ia visité-lo sempre que podia. Quando nao estavam juntos, os dois amigos trocavam idéias por carta. Em 26 de marco de 1619, Descartes escreveu ao amigo de seu acampa- mento em Breda. Expés seu plano de inventar um método para a solucdo de uma variedade muito ampla de problemas. Escreveu: “Desejo dar ao puiblico ndo uma Ars brevis de Lull, mas uma ciéncia baseada em novos fundamentos.” Descartes aludia aqui a obra de Ramon Lull (c. 1235-1315), um mistico nascido na ilha espanhola de Mallorca que escreveu 260 livros, entre os quais Ars brevis (“Arte breve”). As obras de Lull eram uma mistura de cabala e misticismo, cujos dlementos eram maneitas de combinat letras ¢ niimeros numa tentativa de extrair conhecimento novo sobre o Universo. Um més mais tarde, em 29 de abril de 1619, Descartes escreveu de novo a Beeckman sobre a obra do mistico: “Trés dias atrds conheci um homem culto numa estalagem em Dordrecht e discuti com ele a Ars parva [Ars brevis| de Lull. Ele disse ser capaz de usar a Arte com tanto sucesso que era capaz de discorrer sobre todo e qualquer tépico durante uma hora; ¢ se depois alguém lhe pedisse para falar sobre o mesmo tépico por mais uma hora, era capaz de fazé-lo sem repetir 0 que ja havia dito, ¢ assim por diante por mais 20 horas.”> Descartes estava interessado no poder dos métodos misticos de Lull para a obtencao de conhecimento. Perguntou a Beeckman sobre eles, ¢ este, que havia lido algumas obras de Lull, explicou-lhe que o maiorquino invencara uma roda em que nove letras, B, C, D, E, , G, H, J ¢ K eram arranjadas. Essas nove letras representavam attibutos da criagdo (aparentados aos dez atributos de Deus, 0 Seffrot na cabala judaica). Produzindo permutagées dessas letras mediante o uso de circulos que giravam dentro de outros cfrculos num dispositive geométrico, era possivel deduzir novos conceitos.* As cartas que Descartes enviou para Beeckman em 1619 nos dao a primeira indicagao da curiosidade do jovem acerca de idéias ¢ métodos misticos, A magia medieval de Lull iria se refletir nos ensinamentos de uma socie- dade secreta que estava emergindo no inicio do século XVII, e Descartes iria se ver no meio dessas exploragbes da ciéncia e do misticismo. * QUANDO VoLTOU A SEU ACAMPAMENTO em Breda, Descartes comegou a des- confiar de que talvez nunca tivesse uma oportunidade de ver a agéo militar por que tanto ansiava. O principe de Orange havia assinado um armisticio com a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 48 0 CADERNO SECRETO DE DESCARTES onde ficou algum tempo, tendo visitado também o restante da Dinamarca. De lA seguiu a leste para Danzig. Algumas semanas mais tarde, rumou para 0 sul; viajou por grande parte da Polénia ¢ entrou na Hungria. Depois virou a oeste ¢ chegou a Frankfurt em 20 de julho de 1619, a tempo de testemunhar um evento importante: a eleic¢io do novo sacro imperador romano. O rei da Boémia, Fernando II, foi eleito imperador em 28 de agosto ¢ coroado. Des- cartes presenciou essa magnifica ceriménia."’ O novo sacro imperador romano recebeu 0 globo ¢ o cetro de Carlos Magno, bem como sua espada, que ergueu bem alto para que todos a vissem. ° A BoféMIa NAO TINHA MAIS REI, ¢ os boémios protestantes rebeldes — em claro desafio a seus suseranos austriacos — decidiram eleger um, em vez de se submeter ao dominio dos Habsburgo. Nessa altura, toda a Europa protes- tante tinha os olhos voltados para Frederico, eleitor palatino do Reno (assim chamado porque era um dos principes alemaes com o privilégio de eleger 0 sacro imperador romano), como seu lider potencial. Os boémios escolheram facilmente Frederico do Palatinado para se tornar Frederico V, rei da Boémia, ¢ lhe ofereceram a coroa. O tio materno de Frederico, o principe de Orange, foi favoravel a que ele assumisse 0 papel para o qual fora escolhido; mas seu sogro, Jaime I da Inglaterra, ficou muito preocupado com esse desdobramento e disse-lhe que © considerava jovem ¢ inexperiente demais para assumir um papel que lhe parecia arriscado: o de rei de uma nagao prestes a sofrer um grande ataque militar. Mas a filha de Jaime, mulher de Frederico, ansiosa por se tornar uma rainha, pressionou o marido a assumir 0 trono. Frederico deveria certamente ter ouvido o conselho do sogro, pois para continuar rei iria precisar muito do apoio da Inglaterra, e Jaime I tinha claramente pouco interesse em ajudd-lo. No fim das contas, Frederico atendeu aos pedidos da mulher e do tio e aceitou ser coroado. Trés dias depois da coroagio do marido, a princesa Elisabeth da Inglaterra foi ungida rainha Elisabeth da Boémia. Previsivelmente, os austriacos sentiram-se ultrajados com a coroacio de um novo rei ¢ uma nova rainha da Boémia, vendo isso como a rebeliao de uma provincia. O duque Maximiliano da Baviera resolveu entéo ir para a guerra para ajudar os austriacos a derrubar o novo rei. “Durante todos esses movimentos, Descartes desfrutou a tranqiiilidade que provinha de sua completa indiferenca a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 92. © CADERNO SECRETO DE DESCARTES O que mais impressionou Descartes, segundo a descri¢io do sonho que fez em Olympica, tal como relatada por Baillet, foi que ele notou que todos a sua volta passaram subicamente a andar muito empertigados, ao passo que ele continuava encurvado até 0 ch4o e sem equilibrio por causa do vento. De repente o vento amainou consideravelmente, Descartes aprumou-se e despertou de seu sonho. Ao acordar, sentiu “um profundo pesar que o levou a acreditar que aquilo era obra de um espirito mau que o queria seduzir”.’ Rezou, pedindo a Deus protesao contra as forcas desconhecidas que temia estarem decididas a puni-lo por seus pecados, pois parecia-Lhe que suas ofensas deviam ter sido muito graves para que tivesse se defrontado com a ira de uma tempestade caida do céu sobre sua cabega. Passou as duas horas seguintes acordado, “pensando sobre o bem e o mal neste mundo”. Até entio, Descartes estivera dormindo sobre o seu lado esquerdo. Mudou de lado e adormeceu de novo. Teve entdo seu segundo sonho. Nele, estava em uma sala; sentiu a sala desaparecer pouco a pouco, até que, de repente, ouviu um terrivel estrondo, que acreditou ser um trov4o. A tempestade do sonho anterior havia voltado, mas ele a sentiu como uma alucinacao. A tempestade nao podia atingi-lo — ele estava protegido na seguranga de seu quarto. Viu entio © quarto se encher com magnificas centelhas de luz, e despertou de novo. No terceiro sonho, Descartes estava sentado & sua escrivaninha com uma enciclopédia (ou dicionério, segundo uma interpretagao) diante de si. Quando estendeu a mao para pegar a enciclopédia, encontrou um outro livro, intitulado em latim Corpus poetarum. Abriu esse livro numa pagina ao acaso ¢ encontrou ali um poema, “Idilio XV”, do poeta romano Aus6nio. Comegou a ler seu primeiro verso: Quod vitae sectabor iter? — “Que caminho devo seguir nesta vida?” Em seguida uma pessoa desconhecida apareceu e lhe mostrou um outro poema de Ausénio, intitulado “Est et Non”. Mas assim que Descartes tentou segurar 0 Corpus poetarum,' ele desapareceu. Em vez dele, voltou a encontrar sua enciclopédia — mas dessa vez ela j4 nao estava tao completa como fora antes. Depois 0 livro e a pessoa desconhecida desapareceram. Descartes con- tinuou a dormir, mas agora estava num estado mais elevado de consciéncia, que o fez saber que o que acabara de Ihe acontecer fora apenas um sonho. Foi capaz de interpretar 0 sonho enquanto ainda dormia. Descartes compreendeu que a enciclopédia representava todas as ciéncias reunidas. Considerou que 0 Corpus poctarum representava a “filosofia ¢ 0 co- nhecimento reunidos”. A razdo para essa suposigao foi sua crenga de que os poetas — mesmo os que escrevem versos “tolos” — tinham algo a dizer que nao era menos valioso que as obras dos fildsofos. Os poetas proporcionaram a a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 56 0 CADERNO SECRETO DE DESCARTES Kepler e sua obra foram associados a uma figura mistica e obscura que vivia no sul da Alemanha nessa época: 0 matematico Johann Faulhaber (1580- 1635). A obra de Faulhaber sobre matematica tinha excelente qualidade, mas era mesclada com o misticismo e 0 oculto. Recentemente, varios estudiosos analisaram seus livros, alguns exemplares foram descobertos na Stadtbibliothek Ulm, a biblioteca municipal de Ulm, cidade onde Faulhaber viveu. Esses pes- quisadores encontraram fortes ¢ intrigantes conexdes entre a obra de Faulhaber ¢ os escritos secretos de Descartes. Estaria a “admiravel ciéncia” de Descartes vinculada 4 obra desse matematico mistico? a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 60 O CADERNO SECRETO DE DESCARTES ea altura para 20 metros cada). Assim, para duplicar 0 cubo — para obter uma estrutura de 2 mil metros de volume comegando com uma de 1.000 metros — cles precisariam aumentar o comprimento, a largura ¢ a altura, cada um, pela raiz ctibica de 2. Isso porque a raiz cuibica de 2, quando elevada ao cubo, nos dé 2 — o fator necessério para multiplicar 0 volume. Dessa maneira, cada medida teria de mudar de 10 metros para 10 x (raiz cbica de 2), ou aproximadamente 12,6 metros. Ora, ocorre que nenhuma seqiiéncia finita de operagées com es- quadro e compasso pode transformar um comprimento dado num numero que seja o produto desse comprimento pela raiz ctibica de 2 — ou, de fato, pela raiz ctibica de qualquer mimero. O problema que 0 ordculo de Apolo apresentou aos atenienses era insoluvel. E importante notar que o novo templo tinha de continuar com a forma de um cubo; ndo fosse isso, bastaria dobrar uma de suas dimensées, digamos, 0 comprimento, para obter o resultado desejado. Os gregos da Antigiiidade nao sabiam que 0 problema deliaco, como fi- cou conhecido, ¢ matematicamente impossivel se usados apenas seus instru- mentos. $6 muitos séculos depois esse problema seria compreendido. Nesse interim, os gregos descobriram mais dois outros problemas que também eram incapazes de resolver, ¢ hoje sabemos que ambos eram igualmente insoliveis com esquadro e compasso. Um deles era o da quadratura do circulo— usar esquadro ¢ compasso para criar um quadrado com a mesma rea que a de um circulo dado. O outro era a trissegao de um Angulo — dado um Angulo, usar esquadro e compasso para dividi-lo em trés angulos iguais. Esse problema pode ser resolvido em casos especiais, mas um método geral — que funcione com qualquer angulo dado — nao existe. Os gregos antigos — Pitdgoras, Euclides e outros grandes matematicos da Antigiiidade — eram excelentes gedmetras. Nao possufam, porém, uma teoria bem desenvolvida da dlgebra. A dlgebra é necesséria, no entanto, para a compreensio ¢ o tratamento adequado de problemas complexos de geometria, como a duplicacao do cubo, a quadratura do circulo ¢ a trissegao de um Angulo, coletivamente chamados os zrés problemas cldssicos da Antigitidade. eo Dots miLéntos APs a peste de Atenas, Descartes viu-se matutando sobre 0 problema delfaco. Contemplou o cubo. Quais eram suas propriedades? Qual era o seu segredo? Por que nao era possivel duplicar aquele objeto usando esquadro e compasso? a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 6.0 ENCONTRO COM FAULHABERE A BATALHA DE PRAGA EM JULHO DE 1620, Descartes decidiu abandonar o restante das tropas quando clas avangavam para nordeste, ¢ passar varios meses na cidade de Ulm, no sul da Alemanha, para estudar sobre essa parte do pais. A primeira pessoa que Descartes conheceu em Ulm foi o matematico mistico Johann Faulhaber.' Nao so Baillet nos da esse itinerario, como esse encontro foi descrito por um bidgrafo anterior de Descartes, Daniel Lipstorp.’ Documentos alemaes estudados recentemente fornecem provas indubitaveis de que Descartes e Faulhaber realmente se conheceram. Em 1622, Faulhaber publicou um texto matematico intitulado Miracula arithmetica. Nesse livro, forneceu métodos para a solucao de equacées quirticas (isto é, do quarto grau), e estes sio praticamente idénticos aos que Descartes dé em seu livro, Géometrie, publicado em 1637.5 No livro que publicou em 1622, Faulhaber escreveu: Como esse nobre ¢ muito instruido senhor, Carolus Zolindius (Polybius), um cavalheiro muito bem-dotado e meu amigo, deixou-me saber que publicard em breve, em Veneza ou em Paris, estas tabelas... Faulhaber claramente conhecia alguém chamado Polybius. E 0 manus- crito oculto de Descartes, Predmbulos, visto ¢ copiado por Leibniz bem como estudado por Baillet, declarava claramente que Descartes pretendia escrever um livro sobre uma verdade matematica usando o pseudénimo Polybius 0 Cosmopolita. Polybius ¢ Descartes eram, portanto, a mesma pessoa, e como o livro de Faulhaber menciona o pseudénimo de Descartes, esse é um forte indicio de que Descartes e Faulhaber se conheceram. 64 a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 68 0 CADERNO SECRETO DE DESCARTES 0s resolveu também." Fle talvez nao soubesse disso na época, mas Faulhaber ¢ Roth eram ambos matemiticos de extrema competéncia, cuyjas obras eram associadas a uma sociedade misteriosa, tio secreta que seus membros eram conhe- cidos como “os Invisiveis”. ? No Inicio DE NOVEMBRO DE 1620, Descartes seu camareiro deixaram Ulme viajaram em direc4o ao nordeste para se reunir ao restante das tropas do duque Maximiliano, que nessa altura convergiam para a cidade de Praga. Antes de ter oportunidade de continuar estudando as idéias de geometria grega antiga, de tentar resolver o mistério deliaco ou de explorar plenamente os estimulantes problemas que Faulhaber lhe apresentara, Descartes foi finalmente convocado para sua primeira batalha. Estava ansioso por participar da luta, talvez téo an- sioso quanto por descobrir a verdade por meio da ciéncia ¢ da matematica. As forgas de Maximiliano da Baviera — que lideravam os alemies catdlicos nesse conflito — juntaram-se aos outros exércitos que cercavam Praga, todos se preparando para enfrentar as forcas de Frederico V, rei da Boémia, que de- fendiam a cidade. Descartes ¢ seus companheiros soldados foram rapidamente dispostos em ordem de batalha e preparados para um ataque 4 cidade. Em 7 de novembro, algumas das forgas de defesa conseguiram furar 0 cerco ¢ rea- grupar-se na Montanha Branca, fora da capital. Os defensores de Praga tinham uma forca de 15 mil homens, apoiados por artilharia. A forga de ataque, que incluia a Liga Catdlica de Maximiliano bem como tropas imperiais, contava com 27 mil homens. A grande Batalha de Praga comegara. Os defensores alcancaram uma répida vitéria inicial quando sua cavalaria, apoiada por canhées, venceu algumas das tropas invasoras, Mas logo a maré virou ¢ as forgas combinadas do inimigo, muito maiores, os esmagaram. Na noite de 8 de novembro, dois mil homens do exército boémio jaziam mortos, enquanto os atacantes catélicos perderam apenas 400 homens. Estava claro para os sobreviventes que Praga logo cairia. Frederico V da Boémia, com sua esposa Elisabeth e a familia, esconderam-se na Cidade Velha de Praga, e o rei tragou um plano apressado para retird-los clandestinamente do pais e procurar refiigio na Silésia. A noite, os exércitos atacantes levaram seus canhées e sua infantaria para perto dos muros de Praga, depois que todas as aldeias em tomo da cidade haviam se rendido aos exércitos bivaro ¢ imperial. No dia 9 de novembro, Descartes e os exércitos vitoriosos entraram na cidade de Praga. Esse foi o batismo de fogo do a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 72 © CADERNO SECRETO DE DESCARTES ser impostores, uma vez que “nao seria correto que gozassem de boa reputagio como detentores da verdade & custa da boa-fé do povo”. Decidiu empreender esforcos para conhecé-los, mas encontrou uma dificuldade insuperavel. Por sua propria constitui¢ao, os irmaos da Rosa-Cruz — também conhecidos como rosacrucianistas — eram inidentificaveis. As pessoas os chamavam “os invisiveis”. Em sua aparéncia e habitos, costumes e comportamento didrio, nao diferiam do restante da populacao. E seus encontros eram secretos e vedados a estranhos. Apesar de todos os seus esforcos e das indaga¢ées que fez a todos que conhecia, Descartes nao conseguiu encontrar uma s6 pessoa que se confessasse membro da fraternidade Rosa-Cruz, ou sobre qual pairasse sequer a suspeita dea ela pertencer. Ao que tudo indica, no tinka a menor idéia de que nio sé conhecera um dos mais proeminentes mateméticos associados & ordem Rosa- Cruz, como se tornara amigo dele — tratava-se de Johann Faulhaber.” “~ A FRATERNIDADE Rosa-Cruz era uma sociedade mistica secreta de estudiosos e reformadores fundada na Alemanha na primeira parte do século XVII. O simbolo da sociedade era uma cruz com uma tinica rosa em seu centro. Ahistéria da formacao da fraternidade é verdadeiramente fantdstica. Ela é narrada no primeiro texto rosacrucianista, 0 Fama fraternitatis, publicado em 1614, ¢ repetida quase ipsis litteris por Baillet (1691), bem como em varias outras fontes como o livro de Max e Augusto Heindel (1988). O fundador a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 76 O CADERNO SECRETO DE DESCARTES valiosos ¢ que deveriam ser unificados e desenvolvidos como uma entidade independente. A matematica detinha um papel-chave em toda a ciéncia € podia ser usada para explicar as forcas da natureza. Assim, a filosofia da cién- cia dos rosacrucianistas assemelhava-se de certo modo a dos pitagéricos, que acreditavam que a geometria ocupava 0 mais elevado nivel do conhecimento humano. Era também muito préxima das idéias que Descartes iria expressar mais tarde em seus escritos. A fraternidade opunha-se ao poder da Igreja e defendia a reforma do sis- tema rcligioso no continente. Scus membros preocupavam-se com a oposigio da Igreja as idéias cientificas ¢ lutavam por mudanga. Essa talvez fosse uma das raz6es por que a Rosa-Cruz era uma sociedade secreta. Se nao tivessem se mantido ocultos, reriam sido perseguidos e severamente punidos pela Inqui- sigdo. Escritos rosacrucianistas indicam que a Ordem se opunha também & lealdade nacional — seus membros se consideravam cidadaos do mundo, nio de um pais. Além da unidade de todo o conhecimento, eles defendiam uma unidade da humanidade, sem limites nacionais ou étnicos. O conhecimento era tradicionalmente buscado na universidade, e na Europa do inicio do século XVII as universidades eram dominadas pela tra- di aristotélica do Universo, que concordava com as Escrituras, situando a Terra no centro de toda a criagao. Por essa raz4o os ensinamentos ea pesquisa na universidade nao acolhiam de bom grado as novas idéias de Copérnico, Kepler € outros que promoviam a ciéncia. O pensamento desse perfodo na Europa era institucionalizado e fechado a quaisquer novas idéias ou interpretagées. Os rosacrucianistas opunham-se a essa tendéncia e defendiam a idéia de que o conhecimento devia ser buscado fora dessas instituigées. gio escolistica do pensamento aristotélico. Os jesuitas abragavam a visio Dado o papel politico da fraternidade, é dificil sustentar 0 ceticismo com relagao & sua existéncia, Entidades ¢ organizagées secretas tendem a surgir em sociedades em que as pessoas correm perigo sempre que expressam idéias — politicas, cientificas ou religiosas — que contrariam as das autoridades. Sabe- se que 0s jesuitas aguilhoaram um homem chamado Adam Haslmayr a uma galé por ter publicado, em 1614, um tratado que ampliava os escritos de Fama fraternitatis. Ele foi preso pelos jesuitas pouco depois que o livro foi langa- do. Haslmayr havia declarado abertamente que os jesuftas tinham usurpado o titulo de uma verdadeira Sociedade de Jesus de seus legitimos donos — 0s rosactucianistas. Segundo ele, que foi um estreito colaborador de Johann Andrei — na visio de muitos, o principal escritor rosacrucianista —, 0 grande a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.

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