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FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, corpo e ► Deste modo, em sua explicação, a acumulação primitiva consiste na
acumulação primitiva. Editora Elefante: 2017. expropriação da terra do campesinato europeu e na formação do
trabalhador independente “livre”.
CAPÍTULO 2 ► Marx reconheceu que: “a descoberta de ouro e prata na América, o
extermínio, a escravização e o sepultamento da população nativa nas
Introdução
minas, a conquista e a pilhagem das Índias Orientais, a transformação
da África em uma reserva para a caça comercial de peles negras (...)
são momentos fundamentais da acumulação primitiva”. (p.118).
► O desenvolvimento do capitalismo não foi a única resposta à crise do
poder feudal. Em toda Europa, vastos movimentos sociais comunalistas ► Por outro lado, não encontramos em seu trabalho menção às profundas
e rebeliões contra o feudalismo haviam oferecido a promessa de uma transformações que o capitalismo introduziu na reprodução da força de
sociedade construída sobre as bases da igualdade e da cooperação. trabalho e na posição social das mulheres. (p.118)
(p.114)
► Na análise de Marx sobre a acumulação primitiva tampouco aparece
► Em resposta à crise do feudalismo, a classe dominante europeia lançou alguma referência à grande “caça às bruxas”, ainda que essa campanha
a ofensiva global que, ao longo de ao menos três séculos, mudaria a terrorista patrocinada pelo Estado tenha sido fundamental para a derrota
história do planeta, estabelecendo as bases do sistema capitalista do campesinato europeu, facilitando sua expulsão das terras
mundial, no esforço implacável de se apropriar de novas fontes de anteriormente comunais. (p. 118)
riqueza, expandir sua base econômica e colocar novos trabalhadores Federici defende que:
sob seu comando. (p.116)
► 1- A expropriação dos meios de subsistência dos trabalhadores
► “a conquista, a escravização, o roubo, o assassinato: em uma palavra, a
europeus e a escravização dos povos originários da América e da África
violência” foi o pilar desse processo. nas minas e nas plantações do Novo Mundo não foram os únicos meios
► O conceito de “transição” é utilizado para pensar em um processo pelos quais um proletariado mundial foi formado e “acumulado”;
prolongado de mudança e em sociedades nas quais a acumulação ► 2- Esse processo demandou a transformação do corpo em uma máquina
capitalista coexistia com formações políticas que não eram ainda de trabalho e a sujeição das mulheres para a reprodução da força de
predominantemente capitalistas. trabalho. Exigiu a destruição do poder das mulheres que, tanto na
► Contudo, o termo sugere um desenvolvimento histórico gradual, linear, Europa como na América, foi alcançada por meio do extermínio das
ao passo que o período a que o termo se refere foi um dos mais “bruxas”; (p.119)
sangrentos e descontínuos da história mundial. (p.116) ► 3- A acumulação primitiva não foi, então, simplesmente uma
► Marx introduziu o conceito de “acumulação primitiva” n’O Capital para acumulação e uma concentração de trabalhadores exploráveis e de
descrever a reestruturação social e econômica iniciada pela classe capital. Foi também uma acumulação de diferenças e divisões dentro da
dominante europeia em resposta à crise de acumulação e afirmou que: classe trabalhadora, em que as hierarquias construídas sobre o gênero,
assim como sobre a “raça” e a idade, se tornaram constitutivas da
► 1- o capitalismo não poderia ter se desenvolvido sem uma concentração dominação de classe e da formação do proletariado moderno;
prévia de capital e trabalho;
► 4- Não podemos, portanto, identificar a acumulação capitalista com
► 2- a dissociação entre trabalhadores e meios de produção é a fonte da libertação do trabalhador, mulher ou homem, ou ver a chegada do
riqueza capitalista. (p.117) capitalismo como um momento de progresso histórico. Pelo contrário, o
capitalismo criou formas de escravidão mais brutais e mais traiçoeiras,
► Contudo, Marx analisou a acumulação primitiva quase exclusivamente na medida em que implantou no corpo do proletariado divisões
partindo do ponto de vista do proletariado industrial assalariado: o profundas que servem para intensificar e para ocultar a exploração. É
protagonista, sob sua perspectiva, do processo revolucionário do seu em grande medida por causa dessas imposições – especialmente
tempo e a base para uma sociedade comunista futura. (p.118) divisão entre homens e mulheres – que a acumulação capitalista
continua devastando a vida em todos os cantos do planeta. (p.119)
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► A acumulação capitalista e a acumulação do trabalho na Europa ► No entanto, nos lugares em que não foi possível vencer a resistência
dos trabalhadores, que se recusavam a voltar à situação de servos, a
► Marx escreveu que o capital emerge sobre a face da terra “escorrendo resposta foi a expropriação da terra dos camponeses e a introdução do
sangue e sujeira dos pés à cabeça, e com efeito, o começo do trabalho assalariado forçado. (p.125)
desenvolvimento capitalista pareceu um imenso campo de
concentração. No Novo Mundo, encontramos a submissão das ► Os trabalhadores que tentaram oferecer seu trabalho de forma
populações nativas por meio dos regimes sob os quais uma multidão de independente ou abandonar seus empregadores eram castigados com o
pessoas deu a vida para extrair prata e mercúrio das minas. Na Europa encarceramento e até a morte. (p.125)
do Leste, desenvolveu-se uma “segunda servidão” que prendeu à terra
uma população de produtores agrícolas que jamais havia sido serva. Na ► A campanha para maximizar a exploração do trabalho colocou em risco
Europa Ocidental, ocorreram os cercamentos, a caça às bruxas, as a reprodução da força de trabalho. Essa contradição que ainda
marcações a fogo, os açoites e o encarceramento de vagabundos e caracteriza o desenvolvimento capitalista, explodiu de modo mais
mendigos em “workhouses” e em casas correcionais (modelo para o dramático nas colônias americanas, onde o trabalho, as doenças e os
futuro sistema carcerário). Temos o surgimento do tráfico de escravos. castigos disciplinares destruíram dois terços da população original nos
(p.120-1) anos imediatamente após a Conquista. (p.125-6)

► A violência foi a principal alavanca, o principal poder econômico no ► A contradição também estava no cerne do tráfico e da exploração do
processo de acumulação primitiva, porque o desenvolvimento capitalista trabalho escravo. Milhares de africanos morreram devido às terríveis
exigiu um imenso salto na riqueza apropriada pela classe dominante condições de vida a que estavam sujeitos durante a travessia.
europeia e no número de trabalhadores colocado sob seu comando. ► Nunca, na Europa, a exploração da força de trabalho atingiu proporções
► A acumulação primitiva consistiu uma imensa acumulação de força de tão genocidas, exceto sob o regime nazista. A privatização da terra e a
trabalho – “trabalho morto”, na forma de bens roubados, e “trabalho mercantilização das relações sociais causaram pobreza e mortalidade
vivo”, na forma de seres humanos postos à disposição para sua generalizadas, além de uma intensa resistência que ameaçou afundar a
exploração. (p.121) nascente economia capitalista. (p.126)

► A tendência da classe capitalista durante os primeiros três séculos de ► Esse é o contexto histórico em que se deve situar a história das
sua existência era impor a escravidão e outras formas de trabalho mulheres e da reprodução na transição do feudalismo para o
forçado como relação de trabalho dominante; uma tendência que só foi capitalismo, porque as mudanças as mudanças que a chegada do
limitada pela resistência dos trabalhadores e pelo perigo de capitalismo introduziu na posição social das mulheres – especialmente
esgotamento da força de trabalho. (p.121) entre as proletárias – foram impostas com a finalidade de buscar novas
formas de arregimentar e dividir a força de trabalho. (126)
► A escravidão é aquela forma de exploração que o senhor sempre se
esforça para alcançar. A Europa não era uma exceção, e deve-se ► A privatização da terra na Europa, a produção de escassez e a
dissipar a suposição de que existe uma conexão especial entre a separação entre produção e reprodução
escravidão e a África. (p.122) ► Desde o começo do capitalismo, a guerra e a privatização da terra
► No entanto, a escravidão na Europa continuou sendo um fenômeno empobreceram a classe trabalhadora. Esse fenômeno foi internacional.
limitado, já que as condições materiais para sua existência não estavam ► O maior processo de privatização e cercamento de terras ocorreu no
dadas, embora o desejo dos empregadores em implementá-la deva ter
continente americano, onde no início do século XVII, os espanhóis
sido muito intenso. (p.122-3)
tinham se apropriado de um terço das terras comunais indígenas.
► Na Europa Ocidental, a tentativa de reinstaurar a servidão também (p.130).
falhou, devido à resistência campesina, que culminou nas Guerras ► Na Europa, a privatização da terra começou no final do século XV,
Camponesas na Alemanha. A Revolução do homem comum, um amplo
coincidindo com a expansão colonial. Ela assumiu formas diferentes:
esforço organizacional que se espalhou, unindo trabalhadores de todos
despejo de inquilinos, aumento de aluguel e impostos elevados por parte
os setores (agricultores, mineiros, artesãos). (p.123)
do Estado, o que levou ao endividamento e à venda de terras. (p.130)
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► Defino todos esses processos como expropriação de terra, porque, vários meios para se abolir o uso coletivo da terra: As vias legais eram,
mesmo quando a força não era usada, a perda da terra se dava contra a por exemplo, a emissão, por parte do rei de uma licença especial para
vontade do indivíduo ou da comunidade, solapando sua capacidade de cercar ou um acordo entre o proprietário e o inquilino. Contudo esses
subsistência. (p.130) métodos “legais” escondiam muitas vezes o uso da força e da
intimidação contra os inquilinos. (p.133-4)
► Duas formas de expropriação de terra devem ser mencionadas: a guerra
– cujo caráter mudou nesse período, uma vez que passou a ser usada ► Referia-se à abolição do sistema de campos abertos, um acordo pelo
como meio para transformar arranjos territoriais e econômicos – e a qual os aldeões possuíam faixas de terra num campo sem cercas.
reforma religiosa. (p.130) Carcar incluía também o fechamento das terras comunais e a demolição
dos barracos dos camponeses que não tinham terra, mas podiam
► As guerras tornaram-se mais frequentes, em parte devido às inovações sobreviver graças a seus direitos consuetudinários. (p.134)
tecnológicas, mas principalmente porque os Estados europeus
começaram a recorrer à conquista territorial para resolver suas crises ► Começo então, uma luta intensa, culminando em numerosos levantes,
econômicas, financiados por ricos investidores. (p.131) acompanhados por um extenso debate sobre os méritos da privatização
da terra que continua até os dias atuais, revitalizado pela investida do
► As campanhas militares tornaram-se mais longas e os exércitos Banco mundial sobre os últimos bens comuns do planeta.
cresceram dez vezes em tamanho, tornando-se permanentes e
profissionais. Foram contratados mercenários que não tinham nenhum ► Resumidamente, o argumento oferecido pelos “modernizadores” de
laço com a população. O objetivo da guerra começou a ser a eliminação todas as posições políticas é que os cercamentos estimularam a
do inimigo, deixando vilarejos abandonados, campos abertos de eficiência agrícola e que os deslocamentos provocados foram
cadáveres, fome e epidemias, mudando a paisagem agrária da Europa. compensados com um crescimento significativo da produtividade da
(p.131-2) terra. (p.134-5)

► Muitos contratos de arrendamento também foram anulados quando ► Afirmava-se que a terra estava esgotada e que, se estivesse nas mãos
terras da Igreja foram confiscadas durante a Reforma, que começou dos pobres, teria deixado de produzir. Junto com a inovação agrícola, os
com uma apropriação massiva por parte da classe alta. Na França, um cercamentos tornariam a terra mais produtiva, o que levaria à expansão
apetite comum pelas terras da Igreja inicialmente uniu classes baixas e do abastecimento de alimentos. (p.135)
altas no movimento protestante. Contudo artesão e trabalhadores
► A defesa dos cercamentos a partir da “modernização” tem sido
diaristas foram traídos em suas expectativas. (p.132)
revitalizada pelo neoliberalismo. Seu principal fomentador foi o Banco
► Os camponeses que haviam se tornado protestantes para se livrar dos Mundial que frequentemente exige dos governos da África, Ásia e
dízimos, também foram enganados. Quando defenderam seus direitos, América Latina que privatizem suas terras comuns como condição para
declarando que o Evangelho promete terra, liberdade e emancipação, o recebimento de empréstimos. (p.135) rodapé
foram atacados.
► Entretanto, esses argumentos não se sustentam. A privatização da terra
► Na Inglaterra, grande parte da terra também mudou de mãos em nome e a comercialização da agricultura não aumentaram a quantidade de
da reforma religiosa. Foi a maior transferência de terras e foi nomeada alimentos disponíveis para as pessoas comuns, embora tenha
como “O grande saque”. (p.132) aumentado a disponibilidade de comida para o mercado e para a
exportação. Para os trabalhadores, isso representou a instauração de
► “Cercamento” era um termo técnico que indicava o conjunto de dois séculos de fome, da mesma forma que, atualmente, mesmo nas
estratégias usadas pelos lordes ingleses e pelos fazendeiros ricos para áreas mais férteis da África, da Ásia e da América Latina, a desnutrição
eliminar o uso comum da terra e expandir suas propriedades. é endêmica, devido à destruição da posse comum da terra e da política
de “exportação ou morte” imposta pelos programas de ajuste do Banco
► Queria dizer envolver um pedaço de terra com cercas, canais ou outras
Mundial. (p.135-6)
barreiras ao livre trânsito de homens e animais, em que a cerca era
marca de propriedade e ocupação exclusiva de um terreno. Portanto, ► Pelo contrário, o desenvolvimento do capitalismo operou em perfeita
por meio do cercamento, o uso coletivo da terra, geralmente harmonia com o empobrecimento da população rural.
acompanhado por algum grau de propriedade comunal, seria abolido,
suplantado pela propriedade individual e pela ocupação isolada. Havia
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► Um testemunho da miséria produzida pela privatização da terra é o fato rural se aprofundaram, à medida que aumentou o número de ocupantes
de que, apenas um século depois do surgimento do capitalismo agrário, ilegais que não tinham nada além de uma cama e uma vaca, e a quem
60 cidades europeias instituíram alguma forma de assistência social, ao não restava outra opção a não ser “ajoelhar e baixar a cabeça” para
mesmo tempo que a indigência se tornava um problema internacional. implorar por um emprego. (p.138-9)
(p.136)
► A coesão social começou a se decompor as famílias se se
► Há também erros em relação à efetividade do sistema de agricultura de desintegraram, os jovens deixaram os vilarejos para se unir à crescente
campos abertos. Ele protegia os camponeses do fracasso de uma quantidade de vagabundos ou trabalhadores itinerantes – que logo se
colheita, devido à variedade de faixas de terra a que uma família tinha tornaram o principal problema social da época; idosos eram
acesso; também permitia um planejamento manejável do trabalho (dado abandonados à sua própria sorte. (p.139)
que cada faixa requeria atenção em diferentes momentos); e promovia
► O resultado foi um campesinato polarizado não apenas por
uma forma de vida democrática, construída sobre a base do
desigualdades econômicas cada vez mais profundas, mas também por
autogoverno e da autossuficiência, já que todas as decisões – quando
um emaranhado de ódios e de ressentimentos. (p.139)
plantar, quando colher, quando drenar os pântanos, quantos animais
seriam permitidos nos campos comuns – eram tomadas pelos ► A indústria têxtil foi reorganizada como indústria artesanal rural, na base
camponeses em assembleia. (p.136-7) do “sistema doméstico”, antecedente da atual “economia informal”,
► As terras comunais eram fundamentais para a reprodução de muitos também construída sobre o trabalho das mulheres e das crianças.
pequenos fazendeiros ou lavradores que sobreviviam apenas porque ► Os trabalhadores têxteis não eram os únicos que tiveram seu trabalho
tinham acesso a pradarias, nas quais podiam manter vacas, ou bosques barateado. Logo que perderam o acesso à terra, todos os trabalhadores
dos quais extraíam madeira, frutos e ervas, ou pedreiras, lagoas onde lançaram-se numa dependência econômica que não existia na época
podiam pescar e espaços abertos para reunir-se. medieval, considerando-se que sua condição de sem-terra deu aos
► Além de incentivar as tomadas de decisão coletivas e a cooperação no empregadores o poder para reduzir seu pagamento e ampliar o dia de
trabalho.
trabalho, as terras comunais eram a base material sobre a qual podia
crescer a solidariedade e a sociabilidade campesina. Todos os festivais, ► Em regiões protestantes, isso ocorreu sob o disfarce da reforma
os jogos e as reuniões da comunidade camponesa eram realizados nas religiosa, que duplicou o ano de trabalho, por meio da eliminação dos
terras comunais. Os campos comuns eram os lugares onde se feriados religiosos. (p.140)
realizavam os festivais populares e outras atividades coletivas como
esportes, jogos e reuniões. ► As lutas contra os cercamentos continuaram com um evidente aumento
da presença das mulheres. Alguns protestos eram inteiramente
► A função social das terras comunais era especialmente importante para femininos (p.143)
as mulheres, que, tendo menos direitos sobre a terra e menos poder
social, eram mais dependentes das terras comunais para a subsistência, ► As mulheres foram as que mais sofreram quando a terra foi perdida e o
a autonomia e a sociabilidade. vilarejo comunitário se desintegrou. Isso se deve, em parte, ao fato de
que, para elas, era muito difícil tornar-se “vagabundas” ou trabalhadoras
► As terras comunais também foram o centro da vida social das mulheres, imigrantes, pois uma vida nômade as expunha à violência masculina,
o lugar onde se reuniam, trocavam notícias, recebiam conselhos e especialmente num momento em que a misoginia estava crescendo.
podiam formar um ponto de vista próprio – autônomo da perspectiva (p.144)
masculina – sobre os acontecimentos da comunidade. (p.138)
► As mulheres também tinham mobilidade reduzida devido à gravidez e ao
► Essa rede de relações de cooperação, considerada “comunismo cuidado dos filhos. Tampouco podiam se tornar soldados pagos, apesar
primitivo” do vilarejo feudal, desmoronou quando o sistema de campos de algumas terem se unido aos exércitos como cozinheiras, lavadeiras,
abertos foi abolido e as terras comunais foram cercadas. prostitutas e esposas; porém essa opção também desapareceu à
► medida que, progressivamente, os exércitos foram sendo
Não só a cooperação no trabalho agrícola desapareceu quando a terra
regulamentados e as multidões de mulheres que costumavam segui-los
foi privatizada e os contratos individuais de trabalho substituíram os
foram expulsas dos campos de batalha. (p.144)
coletivos, mas também as diferenças econômicas entre a população
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► As mulheres também se viram prejudicadas pelos cercamentos, porque homens, mas que, diferentemente deles, quase não tinha acesso aos
assim que a terra foi privatizada e as relações monetárias começaram a salários. (p.146)
dominar a vida econômica, elas passaram a encontrar dificuldades
► Em uma sociedade que estava cada vez mais monetizada, acabaram
maiores do que as dos homens para se sustentar, tendo sido confinadas
sendo forçadas à condição de pobreza crônica, à dependência
ao trabalho reprodutivo no exato momento em que este trabalho estava
econômica e à invisibilidade como trabalhadoras.
sendo absolutamente desvalorizado. (144-5)
► A desvalorização e a feminização do trabalho reprodutivo foi um
► Com o desaparecimento da economia de subsistência que havia
desastre também para os homens trabalhadores, pois a desvalorização
predominado na Europa pré-capitalista, a unidade entre produção e
do trabalho reprodutivo inevitavelmente desvalorizou o seu produto: a
reprodução, típica de todas as sociedades baseadas na produção-para-
força de trabalho.
o-uso, chegou ao fim conforme essas atividades foram se tornando
portadoras de outras relações sociais e eram sexualmente ► Entretanto, na transição do feudalismo para o capitalismo, as mulheres
diferenciadas. (p.145) sofreram um processo excepcional de degradação social que foi
► No novo regime monetário, somente a produção-para-o-mercado estava fundamental para a acumulação de capital e que permaneceu assim
desde então. (p.146)
definida como atividade criadora de valor, enquanto a reprodução do
trabalhador começou a ser considerada como algo sem valor do ponto ► Diante desses fatos, é impossível dizer que a separação entre o
de vista econômico e, inclusive, deixou de ser considerada um trabalho. trabalhador e a terra e o advento da economia monetária formaram o
(p.145) ponto culminante da luta travada pelos trabalhadores medievais para se
► O trabalho reprodutivo continuou sendo pago – embora em valores libertarem da servidão. (p.146)
inferiores – quando era realizado para os senhores ou fora do lar. No ► Não foram os trabalhadores – mulheres ou homens – que foram
entanto, a importância econômica da reprodução da força de trabalho libertados pela privatização da terra. O que se libertou foi o capital, na
realizada no âmbito doméstico e sua função na acumulação do capital mesma medida em que a terra agora estava “livre” para funcionar como
se tornaram invisíveis, sendo mistificadas como uma vocação natural e meio de acumulação e exploração, e não mais como meio de
designadas como “trabalho de mulheres”. (p.145) subsistência.
► Além disso, as mulheres foram excluídas de muitas ocupações ► Libertados foram os proprietários de terra, que agora podiam despejar
assalariadas e, quando trabalhavam em troca de pagamento, ganhavam sobre os trabalhadores a maior parte do custo de sua reprodução,
uma miséria em comparação com o salário masculino médio. dando-lhes acesso a alguns meios de subsistência apenas quando
► Essas mudanças históricas – que tiveram um auge no século XIX com a estavam diretamente empregados.
criação da figura da dona de casa em tempo integral – redefiniram a ► Quando não havia trabalho disponível ou esse trabalho não era lucrativo
posição das mulheres na sociedade e com relação aos homens. (p.145) o bastante – como em épocas de crise comerciais e agrárias -, os
► A divisão sexual do trabalho que emergiu daí não apenas sujeitou as trabalhadores podiam ser despedidos e abandonados à própria sorte
para morrer de fome.
mulheres ao trabalho reprodutivo, mas também aumentou sua
dependência, permitindo que o Estado e os empregadores usassem o ► A separação entre os trabalhadores e seus meios de subsistência, assim
salário masculino como instrumento para comandar o trabalho das como a sua nova dependência das relações monetárias, significou
mulheres. (p.145-6) também que o salário real agora podia ser reduzido, ao mesmo tempo
► Dessa forma, a separação efetuada entre a produção de mercadorias e que o trabalho feminino podia ser mais desvalorizado com relação ao
masculino por meio da manipulação monetária. (p.147)
a reprodução da força de trabalho também tornou possível o
desenvolvimento de um uso especificamente capitalista do salário e dos ► A revolução dos preços e a pauperização da classe trabalhadora
mercados como meios para a acumulação de trabalho não remunerado. europeia
► Mais importante: a separação entre produção e reprodução criou uma
classe de mulheres proletárias que estavam tão despossuídas como os
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► Devido às suas devastadoras consequências sociais, esse fenômeno ► A intervenção estatal na reprodução do trabalho: a assistência aos
“inflacionário” foi chamado de Revolução dos Preços. Foi atribuído à pobres e a criminalização da classe trabalhadora
chegada de ouro e prata da América.
► A luta por comida não era a única frente na batalha contra a expansão
► Contudo, os preços aumentaram por causa do desenvolvimento de um das relações capitalistas. As massas resistiam à destruição de suas
sistema de mercado nacional e internacional que estimulava a formas anteriores de existência, lutando contra a privatização da terra,
exportação e a importação de produtos agrícolas, e porque os contra a abolição dos direitos consuetudinários, contra a imposição de
comerciantes acumulavam bens para depois vende-los por um preço novos impostos, contra a dependência do salário e contra a contínua
maior. presença de exércitos em suas vizinhanças. (p.159)

► A chegada do tesouro americano provocou uma enorme redistribuição ► Na Idade Média, a migração, a vagabundagem e o aumento dos “crimes
da riqueza e um novo processo de proletarização. contra a propriedade” eram parte da resistência ao empobrecimento e à
despossessão; uma vasta humanidade envolvida em sua própria
► A revolução dos preços disparou também um colapso histórico nos diápora, que durante décadas escapou ao controle das autoridades.
salários reais, comparável ao que vem acontecendo em nossa época,
precisamente nos países que sofreram o ajuste estrutural do Banco ► O Estado promulgou novas leis contra a vagabundagem, muito mais
Mundial e do Fundo Monetário Internacional. (p.150) severas, que prescreviam a escravidão e a pena de morte em casos de
reincidência. (p.160)
► Isso não foi obra da mão invisível do mercado, mas produto de uma
política estatal que impedia que os trabalhadores se organizassem, ► Estes aspectos da transição para o capitalismo podem parecer coisa do
enquanto dava aos comerciantes a máxima liberdade com relação ao passado. Contudo, a semelhança fundamental entre esses fenômenos e
estabelecimento de preços e ao movimento de mercadorias. (p.150) as consequências sociais da nova fase de globalização que
testemunhamos hoje, nos diz algo diferente.
► O colapso do salário foi especialmente desastroso para as mulheres. Em
meados do século XVI as mulheres estavam recebendo um terço do ► O empobrecimento, as rebeliões e a escalada do “crime” são elementos
salário masculino (que já se encontrava reduzido) e não podiam mais se estruturais da acumulação capitalista, na mesma medida deve despojar
manter com o trabalho assalariado, nem na agricultura, nem no setor a força de trabalho de seus meios de reprodução para impor seu
manufatureiro, um fato que, sem dúvida, é responsável pela gigantesca domínio.
expansão da prostituição nesse período. (p.151)
► O fato de que as formas mais extremas de miséria e de rebeldia tenham
► A Europa que se preparava para se tornar o prometeico motor do desaparecido nas regiões europeias que se industrializaram durante o
mundo, levando a humanidade a novos patamares tecnológicos e século XIX não é uma prova contrária a essa afirmação.
culturais, era um lugar onde as pessoas nunca tinham o suficiente para
comer. (p.155) ► A miséria e a rebeldia proletárias não pararam ali; apenas diminuíram ao
grau em que a superexploração dos trabalhadores teve que ser
► A transição para o capitalismo inaugurou um longo período de fome para exportada, por meio da institucionalização da escravização, num
os trabalhadores na Europa – que muito possivelmente terminou devido primeiro momento, e, posteriormente, por meio da expansão da
à expansão econômica gerada pela colonização. Nos séculos XVI e XVII dominação colonial. (p.161-2)
os trabalhadores foram espoliados pela fome e protagonizaram ataques
a armazéns e motins contra a exportação das colheitas locais. (p.155) ► Quanto ao período de transição, este continuou sendo, na Europa, um
período de intenso conflito social, preparando terreno para uma série de
► Eram as mulheres que, em geral, iniciavam e lideravam as revoltas por iniciativas estatais que, a julgar por seus efeitos, tiveram três objetivos:
comida. Conclui-se que as mulheres se destacaram nesse tipo de
protesto por seu papel de cuidadoras de suas famílias. Porém, as ► 1- criar uma força de trabalho mais disciplinada;
mulheres também foram as mais arruinadas pelos altos preços, já que, ► 2- dispersar os protestos sociais;
por terem menos acesso que os homens ao dinheiro e ao emprego,
dependiam mais da comida barata para sobreviver. (p.156) ► 3- fixar os trabalhadores nos trabalhos que lhes haviam sido impostos.
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► Ao se buscar a disciplina social, um ataque foi lançado contra todas as ► Essa divisão permitia que os empregadores renunciassem a qualquer
formas de sociabilidades e sexualidade coletivas – incluindo esportes, responsabilidade na reprodução dos trabalhadores, com a segurança de
jogos, danças, funerais, festivais e outros ritos grupais que haviam que o Estado interviria, seja por meio de assistência, seja por meio de
servido para criar laços de solidariedade entre os trabalhadores. punições, para encarar as inevitáveis crises. (p.164)

► O ataque foi sancionado por um dilúvio de leis numa verdadeira ► Na Inglaterra, à medida que avançava o século XVI, o recebimento de
campanha contra a “cultura popular”. (p.162) assistência pública – mesmo para crianças e idosos – foi condicionado
ao encarceramento de quem a recebia nas “casa de trabalho”, onde
► Contudo, o que estava em jogo era a dessocialização ou passaram a ser submetidos à experimentação de diferentes esquemas
descoletivização da reprodução da força de trabalho, bem como a de trabalho.
tentativa de impor um uso mais produtivo do tempo livre.
► Consequentemente, o ataque aos trabalhadores, que havia começado
► Na Inglaterra, esse processo alcançou seu ápice com a chegada ao com os cercamentos e com a Revolução dos preços, levou, ao cabo de
poder dos puritanos depois da Guerra Civil, quando o medo da um século, à criminalização da classe trabalhadora, isto é, à formação
indisciplina social deu lugar à proibição das reuniões e dos festejos de um vasto proletariado que ou estava encarcerado nas “casas de
proletários. trabalho” e de correção, ou se via forçado a buscar a sobrevivência fora
► Entretanto, a “reforma moral” foi igualmente intensa nas regiões não da lei, vivendo em aberto antagonismo com o Estado – sempre a um
passo do chicote ou da forca. (p.166)
protestantes, onde, no mesmo período, as procissões religiosas
substituíram os bailes e as cantorias que vinham sendo realizados ► Diminuição da população, crise econômica e disciplinamento das
dentro e fora da Igreja. mulheres
► Até mesmo as relações entre os indivíduos e Deus foram privatizadas: ► Em menos de um século, contando a partir da chegada de Colombo ao
nas regiões protestantes, por meio da instituição de uma relação direta continente americano, o sonho dos colonizadores de uma oferta infinita
entre o indivíduo e a divindade; nas regiões católicas, com a introdução de trabalho foi frustrado. Os europeus haviam trazido a morte à América.
da confissão individual; A própria Igreja, enquanto centro comunitário, As estimativas do colapso populacional que afetou a região depois da
deixou de ser a sede de qualquer atividade que não estivesse invasão colonial afirmam que a população caiu em torno de 75 milhões
relacionada com o culto. (p.162) na América do Sul, o que representava 95% de habitantes. (p.167)
► Como resultado, o cercamento físico operado pela privatização da terra ► Com exceção da Peste Negra (1345-1348), essa foi uma crise
e o cercamento das terras comunais foram ampliados por meio de um populacional sem precedentes, e a morte recaiu sobre os pobres. (168)
processo de cercamento social: a reprodução dos trabalhadores passou
do campo aberto para o lar, da comunidade para a família, do espaço ► No entanto, também se considerou como fatores do declínio
público ( a terra comunal, a Igreja) para o privado. populacional a baixa taxa de natalidade e a relutância dos pobres em
reproduzir. A idade de casamento estava aumentando em todas as
► Em segundo lugar foi introduzido um sistema de assistência pública, que classes sociais e, ao mesmo tempo, a quantidade de crianças
foi um momento de inflexão na mediação estatal entre os trabalhadores abandonadas começou a crescer. (p.168)
e o capital, assim como na definição da função do Estado. (p.163)
► É nesse contexto que o problema da relação entre trabalho, população e
► Foi o primeiro reconhecimento da insustentabilidade de um sistema acumulação de riquezas passou ao primeiro plano do debate e das
capitalista regido exclusivamente por meio da fome e do terror. Também estratégias políticas com a finalidade de produzir os primeiros elementos
foi o primeiro passo na construção do Estado como garantidor da de uma política populacional.
relação entre as classes e como supervisor da reprodução e da
disciplina da força de trabalho. (p.164) ► Federici defende que tenha sido a crise populacional dos séculos XVI e
XVII, e não a fome na Europa, durante o século XVIII (como defendido
► Foi com a introdução da assistência pública que o Estado começou a por Foucault), que transformou a reprodução e o crescimento
reivindicar a “propriedade” da mão de obra, ao mesmo tempo que populacional em assuntos de Estado e objetos principais do discurso
instituía uma “divisão do trabalho” capitalista dentro da própria classe intelectual. (p.169)
dominante.
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► Sustenta, ademais, que a intensificação da perseguição às “bruxas” e os ► Aprovaram-se leis que bonificaram o casamento e penalizaram o
métodos disciplinares que o Estado adotou nesse período, com a celibato. Foi dada uma nova importância à família enquanto instituição-
finalidade de regular a procriação e quebrar o controle das mulheres chave que assegurava a transmissão da propriedade e a reprodução da
sobre a reprodução, têm também origem nessa crise. força de trabalho.

► Outros fatores também contribuíram para aumentar a determinação da ► Simultaneamente, observa-se o início do registro demográfico e da
estrutura de poder europeia dirigida a controlar de forma mais estrita a intervenção do Estado na supervisão da sexualidade, da procriação e da
função reprodutiva das mulheres. (p.170) vida familiar. (p.173-4)

► Entre eles, devemos incluir a crescente privatização da propriedade e as ► No entanto, a principal iniciativa do Estado com o fim de restaurar a
relações econômicas que, dentro da burguesia, geraram uma nova proporção populacional desejada foi lançar uma verdadeira guerra
ansiedade com relação à paternidade e à conduta das mulheres. contra as mulheres, claramente orientada a quebrar o controle que elas
haviam exercido sobre seus corpos e sua reprodução. (p.174)
► Não pode ser apenas coincidência que, no momento em que os índices
populacionais caíam e em se formava uma ideologia que enfatizava a ► Essa guerra foi travada principalmente por meio da caça às bruxas, que
centralidade do trabalho na vida econômica, tenham se introduzido nos literalmente demonizou qualquer forma de controle de natalidade e de
códigos legais europeus sanções severas destinadas a castigar as sexualidade não procriativa, ao mesmo tempo que acusava as mulheres
mulheres consideradas culpadas de crimes reprodutivos. (p.170) de sacrificar crianças para o demônio.

► A preocupação com o crescimento da população pode ser detectada ► Mas a guerra também recorreu a uma redefinição do que constituía um
também no programa da Reforma Protestante. Rejeitando a tradicional crime reprodutivo. Desse modo, a partir de meados do século XVI, ao
exaltação cristã da castidade, os reformadores valorizavam o mesmo tempo que barcos portugueses retornavam da África com seus
casamento, a sexualidade e até mesmo as mulheres por sua capacidade primeiros carregamentos humanos, todos os governos europeus
reprodutiva. “As mulheres são necessárias para produzir o crescimento começaram a impor penas mais severas à contracepção, ao aborto e ao
da raça humana” disse Lutero. (p171) infanticídio, sendo muitas vezes punidas com a pena de morte. (p.174)

► Foi a classe mercantilista que inventou as casas de trabalho, perseguiu ► Também foram adotadas novas formas de vigilância para assegurar que
os vagabundos, transportou os criminosos às colônias americanas e as mulheres não interrompessem a gravidez. Criou-se um sistema de
investiu no tráfico de escravos, sempre afirmando a “utilidade da espionagem com a finalidade de vigiar as mães solteiras e privá-las de
pobreza” e declarando que o ócio era a praga social. qualquer apoio. Hospedar uma mulher solteira era ilegal. (p.176)

► Encontramos na teoria e na prática mercantilistas a expressão mais ► Uma das consequências foi que as mulheres começaram a ser
direta dos requisitos da acumulação primitiva e da primeira política processadas em grande escala e, nos séculos XVI e XVII muitas foram
capitalista que trata explicitamente do problema da reprodução da força executadas.
de trabalho.
► A suspeita que recaiu sobre as parteiras nesse período – e que levou à
► Essa política teve um aspecto “intensivo”, que consistia na imposição de entrada de médicos homens nas salas de parto – provinha mais do
um regime totalitário, que usava todos os meios para extrair o máximo medo do infanticídio do que de qualquer outra preocupação pela suposta
de trabalho de cada indivíduo, independente de sua idade e condição. incompetência médica das parteiras. (p.177)

► Mas também teve um aspecto “extensivo”, que consistia no esforço para ► Com a marginalização das parteiras, começou um processo pelo qual as
aumentar o tamanho da população e, desse modo, a envergadura do mulheres perderam o controle que haviam exercido sobre a procriação,
exército e da força de trabalho. (p.173) sendo reduzidas a um papel passivo no parto, enquanto os médicos
homens passaram a ser considerados como aqueles que realmente
► Porém, mesmo antes do auge da teoria mercantilista, na França e na davam a vida.
Inglaterra o Estado adotou um conjunto de medidas pró-natalistas, que
combinadas com a assistência pública, formaram o embrião de uma ► Com essa mudança, também teve início o predomínio de uma nova
política reprodutiva capitalista. prática médica que, em caso de emergência, priorizava a vida do feto
em detrimento da vida da mãe. (p.177)
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► Isso contrastava com o processo de nascimento habitual que as ► Mas, apesar das diferenças, em ambos os casos o corpo feminino foi
mulheres haviam controlado. E, para que efetivamente ocorresse, a transformado em instrumento para a reprodução do trabalho e para a
comunidade de mulheres que se reunia em torno da cama da futura mãe expansão da força de trabalho, tratado como uma máquina natural de
teve que ser expulsa da sala de partos, ao mesmo tempo que as procriação, funcionando de acordo com ritmos que estavam fora do
parteiras eram postas sob a vigilância do médico ou eram recrutadas controle das mulheres. (p.178)
para policiar outras mulheres. (p.177)
► Esse aspecto da acumulação primitiva está ausente em Marx, com
► Na França e na Alemanha as parteiras tinham que se tornam espiãs do algumas exceções. Marx nunca reconheceu que a procriação poderia se
Estado se quisessem continuar com a prática. Esperava-se delas que tornar um terreno de exploração e, pela mesma razão, um terreno de
informassem sobre todos os novos nascimentos, que descobrissem os resistência. (p.179)
pais de crianças nascidas fora do casamento e que examinassem as
mulheres suspeitas de ter dado à luz em segredo. (p.177) ► Ele nunca imaginou que as mulheres pudessem se recusar a reproduzir
ou que esta recusa pudesse se transformar em parte da luta de classes.
► Também tinham que examinar as mulheres locais, buscando sinais de
lactância, quando eram encontradas crianças abandonadas nos degraus ► Por que a procriação deveria ser um “fato da natureza” e não uma
das igrejas. Nos países protestantes, esperava-se que os vizinhos atividade historicamente determinada, carregada de interesses e
espiassem as mulheres e informassem sobre todos os detalhes sexuais relações de poder diversas?
relevantes: se uma mulher recebia um homem enquanto o marido ► Na realidade, as mudanças na procriação e na população estão tão
estava ausente, ou se entrava numa casa com um homem e fechava a
longe de ser automáticas ou naturais que, em todas as fases do
porta. (177-8)
desenvolvimento capitalista, o Estado teve que recorrer à regulação e à
► Na Alemanha, a cruzada pró-natalista atingiu tal ponto que as mulheres coerção para expandir ou reduzir a força de trabalho. (p.180)
eram castigadas se não faziam esforço suficiente durante o parto, ou se ► Isso era especialmente verdade no momento em que o capitalismo
demonstravam pouco entusiasmo por suas crias.
estava decolando, quando os músculos e ossos dos trabalhadores eram
► O resultado destas políticas, que duraram duzentos anos foi a os principais meios de produção.
escravização das mulheres à procriação. Enquanto na Idade Média elas ► Mas mesmo depois, e até o presente, o Estado não poupou esforços na
podiam usar métodos contraceptivos e haviam exercido um controle
sua tentativa de arrancar das mãos femininas o controle da reprodução
indiscutível sobre o parto, a partir de agora seus úteros se
e da determinação sobre onde, quando ou em que quantidade as
transformaram em território político, controlados pelos homens e pelo
crianças deveriam nascer.
Estado: a procriação foi colocada diretamente a serviço da acumulação
capitalista. (p.178) ► Como resultado, as mulheres foram forçadas frequentemente a procriar
contra a sua vontade, experimentando uma alienação de seus corpos,
► Nesse sentido, o destino das mulheres na Europa Ocidental, no período
de seu trabalho e até mesmo de seus filhos mais profunda que a
da acumulação primitiva, foi similar ao das negras nas colônias
experimentada por qualquer outro trabalhador.
americanas, que, depois do fim do tráfico de escravos, foram forçadas
por seus senhores a se tornar criadoras de novos trabalhadores. (p.178) ► Ninguém pode descrever, de fato, a angústia e o desespero sofridos por
uma mulher ao ver seu corpo se voltando contra si mesma, como
► A comparação, obviamente, tem sérios limites. As mulheres europeias
acontece no caso de uma gravidez indesejada.
não estavam abertamente expostas às agressões sexuais, embora as
mulheres proletárias pudessem ser estupradas com impunidade e ► Isso é particularmente verdade naquelas situações em que a gravidez
castigadas por isso. Tampouco tiveram que sofrer a agonia de ver seus fora do casamento era penalizada com o ostracismo social ou, até
filhos levados embora e vendidos em leilão. (p.178) mesmo, com a morte. (180)
► Os ganhos econômicos derivados dos nascimentos a que estavam
obrigadas a gerar eram muito mais dissimulados. Nesse aspecto, a
condição da mulher escrava revela mais explicitamente a verdade e a
lógica da acumulação capitalista.

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