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Ano I - n'1
Março 2002

Publicação Semestral do
NUPE - Núcleo Negro
da UNESP Para Pesquisa
e Extensão

CULTURA
SOCIEDADE
A IDENTIDADE NEGRA NO
CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO
Nenhuma palavra tem sido mais utilizada pelos grupos sociais em todo o mundo nas últimas décadas do
que identidade. Kabengele Munanga discorre sobre os diferentes sentidos que a identidade assume em nossos
tempos e seus desdobramentos políticos na construção de uma verdadeira democracia na qual a diversidade
cultural, as diferenças e as liberdades dos sujeitos sejam respeitadas.

Kabengele Munanga

os últimos 20 anos, a palavra identidade não sai da boca dos pesquisadores, principalmente da área
N das humanidades e não tem se limitado simplesmente à academia. Ela está no tecido social, no tecidfic
dos desenvolvimentos sociais, movimentos negros, e alguns seguimentos da população de um modo geral. E,
por coincidência, a questão da identidade também está em algo que eu chamaria uma relação não totalmente
conflituosa e contraditória, mas quase dialética como o processo da globalização. E como falamos tanto de
identidade chega a hora de explicar para os outros o que é a identidade. É difícil saber por onde começar. Nós
temos medo de ficar nos lugares-comuns e, às vezes, também temos receio de entrar em discursos muito
teóricos, deixando de lado questões mais fundamentais, questões conceituais que, talvez, não estejam
completamente superadas. É nesse sentido que eu fiquei entre duas opções: uma exposição menos formalizada
e outra mais sistematizada. Vou tentar nadar nessas duas águas um pouco diferentes.
Na realidade, quando se fala de identidade buscando defini-la exatamente, percebe-se que não há um povo
sem língua, não existe uma cultura que não faça a diferença entre ela e as outras e esse processo de identidade
não é uma descoberta, é um processo de construção, mas um processo de construção que passa também pela
existência do outro.
Vista a partir desse ponto, a identidade pode ser definida como um processo de construção de sentido,
como fonte de sentido, de experiência, mas um processo com seu sentido construído a partir de um conjunto
coerente de atributos considerados prioritários em relação às outras fontes. Esses atributos podem ser históricos,
geográficos, biológicos, sociais, culturais, religiosos e até filosóficos. E nós ficamos presos num certo momento,
talvez influenciados pela antropologia, a ver a identidade simplesmente do ponto de vista dos povos que os
antropólogos chamavam de primitivos. Sabemos que povos primitivos nunca existiram, é uma invenção. São
povos contemporâneos, que têm culturas diferentes dos povos ocidentais. Mas se nós olharmos muito bem a
configuração geográfica do mundo contemporâneo, vamos ver que até aqueles povos que nós não considerávamos

Este texto é resultado da palestra proferida pelo Professor Kabengele Munanga no I Fórum NUPE,
em 20 de junho de 2001. (N. da E.).

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povos primitivos, aqueles povos que nós considerávamos povos civilizados, nesse contexto, estão também se
debatendo, debruçando-se sobre a problemática da identidade de seus países.

Os exemplos são numerosos. Países como a Espanha até hoje têm as chamadas nacionalidades internas que
brigam, que querem a sua autonomia, que querem que a sua identidade seja respeitada do ponto de vista cultural,
lingüístico e religioso. A Espanha é talvez um país dos mais característicos. Temos o problema dos bascos que
querem a sua autonomia, que querem que sejam respeitadas as suas identidades; ol catalães, que querem que a
língua catalã tenha a estatura de língua nacional na Espanha. Isso sem contar a Andaluzia e tantas outras regiões.
Na própria França, que sempre se definiu como um país com unidade cultural, nós temos também os bascos da
França que reivindicam a sua identidade. Podemos multiplicar os exemplos com países pequenos como a Bélgica,
com os francófonos chamados de wallons em briga com os de línguas neerlandesas, flamengos. Temos o Canadá,
com Québec que quer a sua autonomia, a sua identidade contra pessoas da província de Ontário, que são
anglófonos. E sem esquecer os conflitos religiosos, que são também conflitos de identidade entre a Irlanda do
Norte e a Irlanda do Sul, conflitos entre católicos e protestantes. E, se nós pegarmos a antiga Iugoslávia, vamos
ver os croatas, que são católicos, contra os sérvios, que são os ortodoxos, contra os mulçumanos, e isso realmente
constitui conflitos identitários.

Contudo, essas questões, politicamente, colocam-se num contexto diferente de países como o Brasil. Por
razões históricas, o Brasil, os Estados Unidos e a África do Sul são países multiétnicos, multirraciais (se nós
utilizarmos o conceito de raça numa visão sociológica e não biológica porque a biologia moderna diz que a raça
não existe). Podemos multiplicar os exemplos em âmbito mundial, percebe-se que a questão da identidade é um
problema que tem a sua globalidade, mas a dialética é diferente da questão da globalização que passa pela
economia de mercado, que passa pelas técnicas, pelo capital transnacional, pelas mídias etc.

É a partir desses exemplos que nós podemos tentar situar um pouquinho a problemática da nossa identidade
brasileira, nesse contexto da globalização, partindo sempre da idéia de que a identidade é um processo de
construção de sentido, que não tem uma essência, a não ser uma essência histórica e política. Ora, como pensar
a identidade sem questões políticas de sobrevivência de um povo, sem questões de participação no processo
nacional, sem questões de poder, sem questões de dominação? A identidade não teria sentido. A identidade de
um povo só se define numa relação dialógica com a identidade do outro. Nesse processo de negociação das
convivências é que as identidades se colocam.

Num país como o nosso, comparado com os Estados Unidos e com vários países da América Latina que
são caracterizados pela relação de desigualdade baseada na raça, nós podemos distinguir várias formas de
identidade. Podemos pensá-las emprestando os conceitos de Manuel Castells, ao considerar a existência de uma
identidade legitimadora que é a identidade construída pela classe dominante, pela ideologia dominante e que, no
caso brasileiro, é uma identidade que passou pelo processo de construção de uma unidade em detrimento das
diversidades étnicas, culturais etc, dos vários segmentos que construíram o Brasil.

No fim do século XIX e início do século XX, havia toda uma polêmica criada pela elite intelectual. Pensava-se
que o único caminho para construir a identidade brasileira seria por meio da eliminação das diversidades tanto
biológicas quanto culturais, e isso passaria pelo processo de miscigenação que acabaria com a existência do índio e
do negro, teríamos uma nova raça, que não seria mais nem índia nem negra, mas que seria uma raça branca. Muitos

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autores desse período acreditavam que, no ano 2000,0 Brasil seria totalmente branco, se estivessem vivos poderiam
ver que as suas previsões não deram certo, pois o Brasil não é branco, o Brasil é diverso.
Esse processo para construir uma identidade legitimadora implicava a edificação de urna unidade modelo de
Estado e nação, com base em uma única cultura. É o exemplo da França e de alguns países ocidentais c,
infelizmente, o modelo, nós sabemos, do qual derivaria o processo da mestiçagem, no campo biológko; e, no
campo cultural, o processo de assimilação. Mas isso não funcionou. Essa identidade legitimadora, apesafcle não
ter dado certo porque não conseguiram branquear o Brasil, hoje se recupera através de putros conceitos.

Contra a identidade legitimadora, ternos, então, a identidade de resistência que é uma identidade produzida
por aqueles atores sociais que se encontram em posições subalternas, que são chamados de minorias (que,
afinal, não são tão minorias, demograficamente; isso é um mito) mas que resistem a essa identidade legitimadora
e criam culturas de resistência. O processo de tomada de consciência nessa cultura de resistência leva à construção
de identidades que nós podemos considerar como identidades de resistência e que podem ser localizadas em
toda a diversidade cultural brasileira, em várias regiões do Brasil. Salvador com as religiões afrodescendentes,
com os blocos afros; com culinárias que nós podemos localizar no Sul através da cultura gaúcha; cultura
maranhense, e tudo isso é identidade de resistência que são resultados de culturas de resistência.
A diferença em si não faz a identidade; a identidade passa pelo processo de tomada de consciência das
diferenças, e cada povo, nesse processo, sempre encontra as diferenças e alguns atributos que ele considera mais
significativos, mais importantes que os outros e, a partir desses atributos que são tirados da história ou da
geografia, ou da situação social, de relação de gêneros ou da religião é que o povo constrói a sua identidade.
Temos também a identidade do projeto e essa é a proposta mais política, com os movimentos negros, os
movimentos sociais, os movimentos feministas e de tantas outras chamadas minorias que tentam construir uma
nova identidade com objetivo de transformar, de mudar a sociedade e, claro, sempre partindo da consciência da
identidade de resistência, elas têm propostas de transformação da sociedade que são propostas politicas.
Em nossa vida podemos ser atravessados por várias identidades. Uma mesma pessoa, um mesmo indivíduo
pode viver várias identidades num mesmo momento. Um grupo pode viver várias identidades ao mesmo tempo.
Pode ser uma identidade individual, familiar, coletiva, com conteúdo étnico, religioso, com conteúdo dentro das
relações de gênero, pode ser uma identidade regional. Pode ser uma identidade nacional. Estando aqui em São
Paulo você quer assumir a identidade paulista (o que quer que seja isso); o baiano pode assumir a identidade de
baiano; uma vez fora do Brasil, na França, ele tenta assumir a identidade brasileira (e seria o que essa identidade
brasileira?). O que é considerado como regional aqui, lá fora pode ser considerado simplesmente como nacional.
Essa é uma experiência que eu vivi quando estava estudando na Bélgica. Naquela época, na Universidade de
Louvain, nós convivíamos com alguns brasileiros, é claro que brancos pois naquela altura era impossível encontrar
um negro brasileiro estudando na Europa. Havia uma solidariedade entre os países de terceiro mundo, países da
América latina, países africanos, nós nos encontrávamos muito. E cada vez que os brasileiros queriam mostrar
um pouquinho de sua brasilidade, eles iam às cantinas italianas procurar ingredientes para fazer pratos brasileiros
típicos, como a feijoada, o sarapatel, ou convidavam para escutar um samba e era isso a cara da identidade
brasileira lá fora. Era inimaginável um brasileiro, no exterior, apresentar um prato de pizza, de massa italiana. O
italiano diria: "Mas isso aqui é meu!" Ou convidar alguém para escutar uma música clássica, elaborada no Brasil:

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"Mas isso aqui não é brasileiro!" Então, aquilo que considerávamos regional, em outro contexto, se tornava uma
representação da nacionalidade, da identidade nacional.
Esse caráter plural da identidade às vezes pode fazer com que uma mesma pessoa, ou um mesmo gripo, vivam
conflitos de convivência. Isso se verifica, por exemplo, entre as pessoas que não conseguem sair das ambivalências,
como aquelas que são fruto de casamentos interraciais e não sabem qual lado escolher entre as identidades de seus
familiares. Num certo momento, para sair do conflito, têm que realmente escolher de que lado ficar e é uma
escolha geralmente política e ideológica. Como estudar essas identidades considerando essa pluralidade?
Como eu havia dito, nós temos tendência a sempre nos remeter ao conceito de etnicidade. Somos todos
iniciados pela antropologia. Quando se fala de identidade, já se pensa imediatamente em identidade étnica.
Parece que só a etnia produz identidade. Todas as entidades sociais produzem identidades: mulheres, homossexuais,
pessoas de uma faixa etária podem produzir identidade, pessoas que pertencem a uma classe social subalterna
podem produzir identidade, não é necessário pertencer a um grupo étnico para produzir identidade. Então, o
conceito de etnicidade realmente é um obstáculo epistemológico porque não há como esgotar a distinção
somente trabalhando com ele.
No mundo contemporâneo, caracterizado por esse contato múltiplo entre sociedade e cultura e no qual a
etnia não é a única categoria social produtora da cultura, o conceito de etnicidade se torna estreita e
metodologicamente limitado para analisar os fenômenos identitários. Além disso, considerando as diferentes
formas de identidade que nascem numa sociedade pluricultural, que não se reduzem necessária e absolutamente
a uma sociedade multiétnica, fica difícil operar com o conceito de etnicidade (o que faria supor até uma abordagem
emocêntrica, tudo virou etnia). As mulheres, numa luta política se mobilizam para construir a sua identidade.
Essa identidade, de fato, é uma categoria de mobilização para se libertar do domínio do machismo, mas em uma
perspectiva reducionista, ela se torna etnia. Estoura um conflito em qualquer lugar do mundo, na África:
"conflitos étnicos", "conflitos de identidade" . Às vezes se perde que não se trata de conflitos de culturas e sim
de conflitos políticos, da divisão do poder. Estoura um conflito no Leste Europeu: "conflitos étnicos". Esquece-
se que há questões políticas importantes.
Então a identidade étnica se torna urna palavra para explicar tudo, até onde não há conflitos culturais. Há um
exemplo muito interessante. Acho que todos já ouviram falar em somali. A linguagem analítica vai falar de conflitos
étnicos na Somália. Somali é um grupo étnico, é uma etnia só, não há conflito étnico na Somália. Há conflito de
poder talvez entre duas linhagens, entre segmentos importantes na sociedade, não se trata de conflito identitário.
Sem dúvida, a etnia tem sido uma fonte fundamental de sentido e de consciência e, se durante toda a história
humana ela é uma estrutura essencial de diferenciação e de reconhecimento, também o é de discriminação em
numerosas sociedades contemporâneas. Ela tem sido e permanece, ao mesmo tempo, fundamento das revoltas
pela justiça social e o motivo irracional da chamada purificação étnica.
A identidade se constitui, em larga medida, na base cultural que permite a formação das redes e das transações de
confiança no novo mundo econômico. Por isso a raça e a etnia são cruciais tanto aqui como nos Estados Unidos, e
em outros países. Suas manifestações têm sido profundamente modificadas pelas tendências atuais da sociedade.
Novamente, eu lançaria mão de Manuel Castells, ao pensar que enquanto motivo de opressão e discriminação, a etnia
deva ser considerada mais do que nunca. Mas, como fonte de sentido e de identidade, a etnia tende a ser especificada.

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E, para sustentar a sua hipótese, Castells analisa brevemente a evolução da identidade afro-americana dos
Estados Unidos, certo de que lá a raça conta enormemente. Mas, simultaneamente, há uma fratura de classes
entre os próprios negros na sociedade americana; entre aqueles que ascenderam e aqueles que ficaram nos
guetos. Então, lá, a raça e a etnicidade realmente não são critérios operacionais. Enquanto os negros áa classe
média se esforçam para inventar uma identidade que faz reviver os tempos do passado africano e/ou amfricano,
mas que nada dizem sobre o sofrimento do momento, paralelamente, os negros dos guetos elaboram uma nova
cultura feita de angústia, de raiva e de reação individual à exclusão coletiva, na qual a negritude conta menos que
a situação de rejeição, que cria vínculos do tipo novo. Em vez do jazz que é da classe média, eles inventaram o
"rap", que é a imagem dessa cultura. Ela também expressa a identidade, ela também se enraíza na história negra
e na tradição americana do racismo e da opressão racial, mas ela integra os elementos novos: a policia, o sistema
penal como instituições centrais; a economia criminal como lugar de trabalho; as escolas como terreno de
enfrentamento; as igrejas como ilhas de reconciliação; as famílias centradas nas mães; os imóveis deteriorados;
a organização social em torno de gangues e a violência como modo de vida. Então, a identidade se constrói com
outro critério que não seja necessariamente o critério da negritude e da etnicidade.
Embora nos faltem dados sobre a nossa realidade (sobre a chamada classe média negra brasileira), a situaçk
norte-americana mostra claramente os limites de uma abordagem da identidade enfocada do ponto de vista da
etnicidade de uma sociedade de redes, porque a etnia repousa em vínculos primários, que, uma vez cortados de
seu contexto histórico, não agem mais como fundamentos para a reconstrução de sentido num mundo de
fluxo, de combinação de imagens e de retribuição de significados. Os materiais étnicos integram-se à comunidade
cultural mais forte, mais larga, como a religião, o nacionalismo etc.
O estudo das sociedades contemporâneas plurais, globalizadas, exige uma abordagem interdisciplinar
recorrendo ora à história e à geografia porque a identidade é um processo cuja matéria-prima é tirada dos
lugares, lugares, como me ensina o professor Milton Santos, considerados como espaço de exercício da existência
plena; ora à antropologia e à sociologia porque a elaboração de uma identidade empresta seus materiais das
categorias culturais e das estruturas de produção e reprodução; ora à psicologia e à psicanálise porque a identidade
se constrói pela tomada de consciência através de um processo de individualização no qual interfira o quadro da
memória coletiva e os fantasmas pessoais; ora à ciência politica, pois os aparelhos do poder manipulam a
identidade e fabricam falsas identidades e suas estratégias pelo controle do poder; ora à filosofia porque a
identidade pede um fundamento ontológico. Quem sabe se, a curto prazo, vamos precisar da etologia e de
algumas descobertas nas áreas biológicas para entender esse fenômeno social tão dinâmico.
Após demonstrar que seria muito reducionista operar somente com o critério de etnicidade tendo em vista
a pluralidade do conteúdo da identidade, eu passo, então, a investigar o que é a identidade negra, que conteúdo
nós demos a esse conceito.
Já ouvimos, em nosso cotidiano, pessoas que dizem "identidade racial negra", outros falam "identidade
étnica negra", tem quem junte os dois e fale "identidade étnico-racial". Afinal, qual é o conteúdo da identidade
negra? O conteúdo é racial, étnico, étnico-racial, o que nós entendemos por tudo isso? A confusão vem do
próprio conceito de raça e etnia e, por isso, penso ser relevante retomá-los para verificar o que nós entendemos
pela expressão "identidade negra".

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O conceito raça foi emprestado da zoologia e da botânica, que foi transportado ao campo da biologia
humana, na segunda metade do século XVIII, pela então nascente história natural da humanidade. Nós sabemos
também que esse conceito não conseguiu explicar a variabilidade e a diversidade humanas, pelol,contrário,
desembocou numa classificação absurda que apenas hierarquizou a diversidade humana em três granes raças
desiguais, dando origem ao determinismo científico, ao determinismo ideológico que praticamente pavimentou
o caminho da doutrina racista.
Do século XVIII para cá, os cientistas aperfeiçoaram os critérios de classificação, passando da cor da pele,
que é definida simplesmente pelo grau de concentração da melanina, aos critérios morfológicos, como nariz,
lábio, queixo, forma do crânio, ângulo facial etc., e aos critérios químicos, como os grupos de sangue, doenças
hereditárias, raciais etc. Com o cruzamento desses critérios cada vez mais prolíficos, originou-se um número
cada vez mais crescente de raças, sub-raças, subsub-raças, que pode chegar a centenas de raças, cruzando-se
todos os critérios. Os progressos realizados na genética humana, na biologia molecular e na bioquímica levaram
os próprios cientistas contemporâneos a desacreditar a raça como fato e uma realidade, considerando-a apenas
como um conceito, aliás, cientificamente inoperante, um conceito construído a partir de critérios artificiais
como é a cor da pele. Nem um por cento do nosso patrimônio genético define a cor da pele, um por cento é
muito pouco significativo para você classificar a diversidade humana.
François Jacob, prêmio Nobel da biologia, disse que a raça é um conceito e não uma realidade. É um
conceito inoperante cientificamente, por isso hoje, biologicamente, a raça não existe. No entanto, o conceito
continua sendo utilizado na nossa comunidade científica, mas apenas como uma construção sociológica, porque
ele tem um conteúdo político e ideológico relacionado com a estrutura do poder de cada sociedade multinacional
visto que negro, branco e mestiço não significam a mesma coisa em todas as sociedades. Negro, branco e
mestiço nos EUA significam outra coisa que no Brasil, que na África do Sul na vigência do apartheid. Por isso, o
conteúdo destas palavras negro, branco, mestiço, o conteúdo mesmo do próprio conceito de raça é semântico,
político, ideológico e não biológico. E se, na cabeça de um geneticista contemporâneo ou de um biólogo
molecular, a raça não existe, na estrutura mental de várias populações contemporâneas, existem ainda raças
fictícias e outras construídas a partir das diferenças fenotípicas, como a cor da pele. Raça é uma construção
politica e ideológica.
São essas raças que estão nas cabeças das pessoas e é por isso que nós continuamos a utilizar o conceito de
raça na área das Humanidades, mas com um conteúdo que não é biológico porque biologicamente a raça não
existe, mas com um conteúdo simplesmente ideológico e político, na medida em que essas raças fictícias (que
Octavio Ianni define como raças sociais) continuam a fazer vítimas em nossa sociedade. É a partir dessas raças
que se reproduz e se mantém o racismo que está difuso no tecido social.
Com base nessa desqualificação do conceito de raça, algumas pessoas recorrem, hoje, ao conceito de etnia,
que consideram mais cômodo e mais consensual para carregar o conteúdo outrora reservado ao conceito de
raça. Isso é muito comum no jargão de alguns países europeus. Na França, em que se prefere utilizar o conceito
de etnia, não se usa mais o conceito de raça, mas nem por isso o racismo deixou de existir. A etnia é simplesmente
um conceito mais cômodo e menos conflituoso para continuar a manter o racismo.
Embora teoricamente a raça tenha um conteúdo morfobiológico (o verdadeiro conteúdo da raça é

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morfobiológico) e a etnia tenha um conteúdo sóciocultural histórico, a etnia, ao substituir a raça, é empregada até
como um sinônimo mais aceitável. Seria politicamente correto utilizar o conceito de etnia e não o conceito de raça.

Eu, pessoalmente, em meus trabalhos utilizo geralmente o conceito de negro e de branco no sentido
político ideológico e não biológico. Ou às vezes utilizo o conceito de população branca e população negra,
-f
conceito que empresto de alguns biólogos anti-racistas, como o geneticista Jean Rennaud que entende por
população o conjunto de indivíduos que participam de um mesmo círculo de união ou de casamentos, que , ipso
facto, conservam o patrimônio genético comum. É claro, isso é uma regra, mas as regras têm exceções sempre,
há pessoas que passam para o outro grupo, mas a regra é o casamento de pessoas que tenham semelhanças e
participem de um mesmo círculo de casamento e é por isso que constituem uma população.
À confusão que existe entre o conceito de etnia e de raça, vem se juntar outra mais problemática e difícil de
se trabalhar em torno da identidade negra que alguns adjetivam como identidade racial negra ou como identida
étnica negra ou, como disse, uma expressão composta por identidade e fatores étnico-raciais. A confusão e
justamente no uso não claramente definido dos conceitos de raça e de etnia.
Os povos que aqui se encontram, num país que nós podemos considerar historicamente como um carrefo
de culturas e de civilizações, não podem mais, em nome da biologia moderna, ser considerados como raças, mks
como populações, na medida em que eles continuam, pelas regras culturais de endogamia, a participar de um
mesmo ciclo de união, embora esses círculos não estejam hermeticamente fechados, como demonstrado pe
crescimento da população mestiça. Por outro lado, todos esses povos são oriundos de vários grupos étnicos,
europeus, asiáticos, árabes, africanos, que aqui encontraram outros mosaicos étnicos, formados pelos milhões
de povos autóctones indígenas. Será que todas as diversidades étnicas originárias de vários países europeus,
asiáticos e árabes e judeus com tantas culturas, religiões e visões de mundo diferentes se aculturaram ¡para
formar apenas uma única etnia branca, como já ouvimos falar, ou para formar uma única etnia negra? Será quc
todas as diversidades étnicas africanas se aculturaram para formar apenas uma única etnia negra, uma cultura
negra? Sem dúvida, há questões políticas e ideológicas que colocaram todos os brancos no topo da pirâmide
social, do comando e do poder independentemente de suas raízes culturais. Por vício da ideologia racista,
tendemos a estabelecer uma relação intrínseca entre biologia e cultura e a considerar a população branca,
independentemente de sua origem geográfica e cultural, como pertencente a uma mesma cultura e 5. uma
mesma etnia. Daí a expressão equivocada de cultura branca. Na realidade não há uma cultura branca. Vá aqui na
República dos Pampas, compare-se com os brancos do Nordeste. Verifica-se que não há uma única cultura
branca no Brasil. Mas como há essa relação intrínseca entre a cultura e a raça, um vício da ideologia racista,
achamos que há uma cultura branca e uma cultura negra.
Pelo mesmo raciocínio, baseado na questão política e ideológica que colocou todos os negros em posição
inferior da pirâmide social como grupo subalterno independentemente de suas raízes culturais, tem-se a mesma
tendência, por vício da mesma ideologia racista que estabelece uma relação intrínseca entre biologia e cultura, a
considerar a população negra, independentemente de suas origens geográficas e culturais, como pertencente a
uma mesma cultura e a uma mesma etnia, daí as expressões equivocadas de cultura negra e etnia negra no singular.

A realidade etnográfica do Brasil contemporâneo não autoriza, do meu ponto de vista, a se falar de cultura
negra nem de cultura branca no singular e nem de identidade cultural negra e cultural branca no singular. Há sim

ETHNOS BRASIL • CULTURA • SOCIEDADE


uma cultura de massa, produto da tecnologia, dos meios de comunicação e do consumismo que aproxima todos
os povos brasileiros negros e brancos, orientais e todos os povos do mundo dentro de algo hoje qualificado
como cultura globalizada. Mantêm-se culturas particulares que escapam dessa cultura globalizada, que se
constituem até como uma resistência ao processo de globalização e se constroem diversamente unto no conjunto
da população negra como no conjunto da população branca ou oriental. É com consciência, neffisas culturas de
resistência, que se constroem as identidades culturais que por definição são plurais, são diversa.
Olhando a disposição geográfica do Brasil e com base na documentação etnográfica, fica difícil encontrar
uma única cultura negra e uma única cultura branca. Os afro-baianos produzem no campo da religiosidade, da
música e da culinária uma cultura diferente da dos afro-mineiros, dos afro-maranhenses e dos negros do Rio de
Janeiro. Todas as comunidades quilombolas, apesar de terem em comum alguns problemas, tais como a falta de
documento de propriedade sobre a terra onde moram, problemas comuns como saúde e educação, todas elas
têm histórias de culturas diferentes, cultivam religiões diferentes. Quem conhece os quilombos percebe que eles
têm religiões diferentes, muitos não têm candomblé. Os gaúchos do Rio Grande do Sul têm também
particularidades culturais: trajes, hábitos, alimentos, culinárias diferentes das outras regiões do Brasil.
E como a identidade cultural se constrói com base na tomada de consciência das particularidades históricas,
dos atributos culturais considerados mais significativos no sistema axiológico de cada um dos segmentos originais
que formaram o Brasil, não vejo também o sentido das expressões identidade cultural negra e identidade cultural
branca no singular.
Mas no plano político, a partir da tomada de consciência da exclusão baseada na discriminação racial, a raça
(no sentido sociológico e político ideológico) pode construir uma identidade mobilizadora negra, pelo fato de
todos os negros serem, apesar de suas produções culturais e identidades culturais diferentes, submetidos à
dominação do segmento branco da sociedade e pelo fato de serem ou comporem o segmento social mais
subalternizado da sociedade. Uma tal identidade que, embora passe pela aceitação da negritude e das
particularidades culturais negras, tem um conteúdo político e não cultural. Porém, os negros não deixam de
viver suas peculiaridades culturais e religiosas como não deixam de participar das identidades religiosas dominantes
como o catolicismo, o protestantismo. É nessa perspectiva política que alguns falam de identidade racial negra,
de identidade étnica negra ou de identidade étnica racial. Oxalá, tenham consciência do conteúdo politico
dessas expressões e não caiam no biologismo pensando que os negros estariam produzindo uma cultura e
construindo uma identidade negra como as laranjeiras produzem laranjas e como os mamoeiros produzem
mamões. Minha dúvida é: quando as pessoas falam em identidade negra e identidade branca, será que elas não
estão caindo no biologismo?
Pelo fato de o Brasil ter sido considerado o país do mundo onde o processo miscigenatório foi um dos mais
intensos, alguns estudiosos defendem, hoje, a existência de uma identidade mestiça brasileira. Quem leu Darcy
Ribeiro, com todo o respeito, sabe que ele aponta nessa direção. Uma posição que eu considero um biologismo
politizado pois, atribuindo à identidade um contexto político como eu sempre fiz em meus trabalhos, não vejo
como fazer dela uma figura mestiça porque a identidade é construída no terreno das exclusões, portanto, no
terreno do político e não do biológico através de uma figura mestiça que seria a reunião cio sangue branco e do
sangue negro. Mas negro, índio, mulher, homossexual, classes sociais, todas as diversidades regionais e locais

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18 ETHNOS BRASIL • CUL7UR.4 • SOCIE.DADR
constroem identidades diversas e não mestiças. Partindo da mestiçagem, transforma-se o social em uma identidade
miscigenada e mestiça sem sentido. Não pode ser.

Negros, brancos, árabes, asiáticos, judeus distribuídos em diversas áreas geográficas brasileiras constroem
diversas identidades de resistência enquanto que os movimentos sociais negros de diversas entidades negras,
movimentos feministas ou outros movimentos construídos com bases em diferenças de sexo, como os
movimentos homossexuais, constroem identidades de projeto. Quando falamos de identidade dentroMo
movimento negro, eu entendo por lá identidades de projetos para a transformação da sociedade.
Nós não construímos as identidades através de nosso discurso da militância intelectual negra, elas estão nos
terreiros de candomblé, estão nos quilombos, estão em várias áreas, elas existem. Nós utilizamos esses elementos
simplesmente como elementos de resistência para construir uma identidade de projeto, para dizer que chegamos,
trabalhamos, participamos da construção da economia do Brasil, da riqueza do Brasil, povoamos o Brasil,
fizemos a história do Brasil. Onde está a nossa parte na distribuição do bolo nacional que nós produzimos? É
esse tipo de identidade que eu entendo que nós devemos construir do ponto de vista politico que nada tem a ver
com as resistências culturais. É claro, partimos delas para dizer que existimos, produzimos, estamos aqui,
modelamos assim a nossa identidade.
A identidade brasileira no singular se constrói com base na diversidade interno biológico, negro, índio,
branco, oriental, mestiços e todas as combinações.
Com base na diversidade interno biológica e interno cultural eu defendo a minha posição de que a cara do
Brasil não é a mestiçagem; a cara do Brasil é a pluralidade das cores dos rostos, dos valores culturais e religiosos.

O livro de Alain Touraine, Podemos viverjuntos?, é muito interessante. O titulo já é bastante sugestivo. Ele nos
remete diretamente à realidade de alguns países ocidentais, talvez ao próprio país de Touraine que é a França.
Aqueles países e algumas tendências políticas defendem a idéia de que a distância entre certas culturas é tão
grande que não há como se entenderem. Por isso devem viver em espaços segregados e ser colocadas em
relação de subordinação claramente definidas como no sistema colonial.
Eu penso que as culturas produzidas por várias comunidades na sociedade brasileira (Estou falando do
Brasil contemporâneo, não estou falando do Brasil colonial, quando nossos antepassados deviam se esconder e
esconder seus deuses e para tocar sua música. Estou falando do Brasil contemporâneo) não ficam aprisionadas
em espaço segregado. Salvo a realidade das comunidades indígenas com as quais não convivemos, no Brasil
contemporâneo existe um processo de transculturação inegável. Em vista disso, aqui, as cerdas das identidades
culturais vacilam, os deuses se tocam, os sangues se misturam. Mas nem por isso devemos sustentar a idéia de
uma identidade mestiça que seria uma espécie de identidade legitimadora ideologicamente projetada para recuperar
o mito da democracia racial.
Se vocês se lembram, há dois ou três anos, num programa de televisão, estavam sendo entrevistados alguns
grandes baianos e entre eles havia a dona Zélia Gattai e o marido (Jorge Amado). Perguntaram-lhe: "Mas o que
você acha de uma ação afirmativa para os negros no Brasil?". Respondeu: "Mas isso é um absurdo! Não há
negro e nem branco, no Brasil, todo mundo é mestiço!" Então como fazer a ação afirmativa, politica pública
compensatória para o negro se o negro não existe? Se todo o mundo é mestiço aqui... Então fica claro para que

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serve o conceito de identidade mestiça. Por isso sustento a idéia que a identidade mestiça seria uma espécie de
identidade legitimadora e ideologicamente projetada a recuperar o mito da democracia racial.
Para construir uma unidade nacional, não é necessário uma unidade cultural. Alguns exemplos externos
mostram isso. A China é uma grande diversidade cultural, ela tem uma identidade nacional, constrói isso. Os
Estados Unidos têm uma grande diversidade cultural, entretanto, a consciência nacional é muito forte. Claro
que alguns países têm uma homogeneidade cultural como o Japão, que oferece exemplos de uma grande unidade,
uma grande consciência, uma grande identidade nacional consolidada. Mas, no oposto, temos o exemplo da
Somália que é uma grande homogeneidade cultural, mas que não conseguiu construir uma identidade política,
uma identidade nacional política.
A unidade cultural não é símbolo da unidade em termos de identidade. Portanto, há aqueles países que se
formaram por um mesmo grupo étnico, mas que não conseguem formar sua identidade nacional. Temos casos
de Ruanda e Burundi. Nós acompanhamos alguns anos atrás uma guerra de meses que matou quase 1 milhão
da população pertencente a um mesmo grupo chamado tutsi. Tutsi é simplesmente uma sociedade estratificada
onde há castas nobres, os tutsis, e depois a plebe, que são os hutus e outros. Não são diferentes grupos étnicos.
Falam a mesma língua até agora, têm a mesma religião, o mesmo território, a mesma cultura, então não se trata
de etnias, mas a colonização belga conseguiu transformar esses povos em etnias diferentes.

Como todas as políticas coloniais etnizaram o continente africano, criaram até etnias que não existiam, a
África foi vista como um mosaico étnico e se esqueceram das formações políticas anteriores, os impérios, os
reinos, ficando simplesmente um mosaico étnico. O exemplo da África do Sul ilustra muito bem isso. A
antropologia na África do Sul é dividida em dois tipos: a antropologia com tendência anglo-saxônica, que
achava que a África do Sul era uma totalidade, tinha seus problemas e devia ser estudada como um todo, e uma
antropologia de lingua africâner que considerava que o essencial era estudar as etnias e, em nome das etnias,
agregar o povo da África do Sul inteira.
Resumindo, não é necessário uma unidade cultural para se criar uma identidade nacional. É um falso problema
que foi criado pela ideologia dominante.
Cultura e comunidade não devem ser confundidas, porque nenhuma sociedade aberta às trocas e às mudanças,
tem unidade cultural completa, tendo em vista que as culturas são construções que se transformam constantemente
ao reinterpretar experiências novas. Isso que torna artificial a busca de uma essência ou de uma alma nacional,
ou ainda a redução da cultura a um código de condutas. Por isso eu concordo com aqueles pensadores que
criticam a idéia de que urna sociedade deve ter uma unidade cultural, religiosa étnica. E, no caso do Brasil que
tem uma unidade cultural construída pela mestiçagem biológica ou pela mestiçagem cultural (o que chamo de
identidade legitimadora), a questão fundamental e que permanece colocada é: como podemos combinar a
igualdade com a diversidade para podermos viver harmoniosamente e juntos. E não vejo outro caminho a não
ser a associação da democracia política com a diversidade cultural baseadas na liberdade dó sujeito.

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