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A espera e a noite

No imaginário coletivo, o nordeste brasileiro está fortemente ligado ao maracatu. Desde que
essa manifestação cultural foi descoberta pelos meios de comunicação de massa, sua imagem
tornou-se o leitmotiv da maioria das campanhas de turismo da região. Folhetos, cartazes e guia
turísticos estão repletos de caboclos do maracatu rural, com suas cabeças e golas coloridas,
óculos escuros e uma flor na boca. São imagens que se repetem e acabam por reduzir
manifestações tradicionais a um produto a um produto cultural. Assim mesmo a melhor
fotografia antropológica corre o risco de se transformar em um convite sedutor para um
espetáculo que pode ser consumido através de imagens de massa e pacotes turísticos.
Ensaio, de Barbara Wagner nasce do lugar-comum da imagem etnográfica e do desejo de
mensurar um trabalho artístico com a tradição da fotografia de reportagem. A artista se voltou
a cena do maracatu rural em praças de Nazaré da Mata e outras cidades do interior de
Pernambuco durante os ensaios que precedem o carnaval, quando os brincantes ainda não usam
a indumentária tradicional. Wagner direciona seu olhar a instantes raros da celebração: suas
tomadas verticais mostram os caboclos em momentos de espera. Antes que a música comece e
que a brincadeira envolva o grupo inteiro em uma dança. A espera e a noite compõem um
espaço atemporal, a atenção se concentra nas poses involuntárias desses homens, em suas
expressões, nos detalhes de suas roupas nos seus gestos. A série alterna entre a natureza estática
de Auguste Sander e a dureza flagrante de Weegee, e revela uma ironia que evita o estereótipo
das taxonomias documentais, que muitas vezes restringem o trabalho fotográfico a uma fria
aplicação de uma estratégia conceitual.
A série horizontal começa quando a música começa: o grupo se anima e os brincantes se
desafiam ao ritmo frenético dos instrumentos de sopro e tambores. É o canto do mestre que
interrompe o movimento: deitados, agachados ou ajoelhados, os caboclos respeitam uma trégua
concedida na forma de rimas improvisadas. É nessa pausa que a artista faz a tomada de seus
retratos horizontais. Os mesmos homens agora isolados em um espaço que se limita ao chão,
ao pavimento, à terra batida. O maracatu é desmembrado e seus integrantes estão retidos em
um horizonte abstraído do realismo e que tende para p retrato puro.
A festa do maracatu torna-se uma alegoria da própria vida, em que jovens, velhos e crianças
seguem o inevitável ritmo da dança e do jogo. A fotografia de Bárbara Wagner renuncia o mero
testemunho, compondo uma mitologia pessoal da brincadeira feita de orgulho e ingenuidade,
de exibicionismo e ferocidade, em que cada imagem deixa transparecer uma
incomunicabilidade que permite ir além das cores do folclore. Os caboclos a imagem do
maracatu, que não pergunta e não promete nada em troca. As fotografias se tornam um espelho
noturno no qual o olho, atraído por aquela inefável suspensão , surpreende a si mesmo.
Giuliano Sergio, Historiador e crítico de arte.
Barbara Wagner: domingo

“Naquele tempo, ir ao fotógrafo era um processo complicado e os preparativos, quase tão


complicados quanto o condicionamento de um paciente para operação cirurgica”, afirma
Brassai sobre a relação com a fotografia na época em que o romancista Marcel Proust
compunha suas observações sobre o cotidiano europeu. Brassai exemplifica como condição
sine qua non para a compreensão das imagens, dos segredos e dos jogos de sedução nas
personagens de Proust a relação do autor com a fotografia , numa sociedade em que causar
efeitos nas fotos “trajes especiais, penteados sofisticados eram debatidos em família”.
Com tais exemplos, temos, sobretudo, uma sensação transversal à história e ao tempo: o desejo
de endomingar-se , de ficar “bem na foto”. Endomingar-se, talvez, seja um dos rasgos
conceituais mais propícios para entendermos o olhar de Barbara Wagner. Atenta aos
mecanismos que polarizam os sensos de valores sociais , definindo a anomia ou a integração
social, a fotógrafa se posiciona frente a comunidades fornteiriças na integração estreita ou
frouxa aos hábitos e regras estabelecidas ou outsiders da “boa ou má conduta social” , termos
caros a sociologia de Norbert Elias. Assim, comunidades de moradores de trailers,
frequentadores de uma praia popular, casais românticos montando álbuns para a eternidade e
grupos de maracatu rurais ensaiando para o carnaval são personagens de sua produção artística.
Todos querem e ela consegue endomingá-los diante da câmera fotográfica.
Para isso, Barbara Wagner vem trabalhando a fotografia em distintas direções. Captura as
imagens de maneira bastante particular e original com o uso do flash mesmo em cenas cuja luz
o faria desnecessário. Assim, se aproxima de fotógrafos contemporâneos como Martin Parr e
Terry Richardson. As personagens anônimas brilham sob o flash congregando da universal
sensação de posar bem para o retrato. Estes interesses colocam a fotografia atenta as imagens
popularescas, belas em excesso no colorido, mas com desvios Kitsch nas encenações e
ambientes. O caráter documental se apresenta, mas não se furta ao orquestrado das
combinações entre fotógrafo e retratados. Pesquisa, antes, os lugares e os hábitos de onde
retirará as imagens. Assim observa a cena como um pintor observa a luz da natureza. Porém
lida com a indomável natureza humana, repleta de regras e antirregras. Como nas fotografias
de costumes presentes em August Sander, quando se fotografava tanto senhores com trajes de
domingo e homens desamparados-, a etnografia importa para dar ao evento o filtro necessário,
social, político, moral.

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