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Documento 68
Documento 68
No imaginário coletivo, o nordeste brasileiro está fortemente ligado ao maracatu. Desde que
essa manifestação cultural foi descoberta pelos meios de comunicação de massa, sua imagem
tornou-se o leitmotiv da maioria das campanhas de turismo da região. Folhetos, cartazes e guia
turísticos estão repletos de caboclos do maracatu rural, com suas cabeças e golas coloridas,
óculos escuros e uma flor na boca. São imagens que se repetem e acabam por reduzir
manifestações tradicionais a um produto a um produto cultural. Assim mesmo a melhor
fotografia antropológica corre o risco de se transformar em um convite sedutor para um
espetáculo que pode ser consumido através de imagens de massa e pacotes turísticos.
Ensaio, de Barbara Wagner nasce do lugar-comum da imagem etnográfica e do desejo de
mensurar um trabalho artístico com a tradição da fotografia de reportagem. A artista se voltou
a cena do maracatu rural em praças de Nazaré da Mata e outras cidades do interior de
Pernambuco durante os ensaios que precedem o carnaval, quando os brincantes ainda não usam
a indumentária tradicional. Wagner direciona seu olhar a instantes raros da celebração: suas
tomadas verticais mostram os caboclos em momentos de espera. Antes que a música comece e
que a brincadeira envolva o grupo inteiro em uma dança. A espera e a noite compõem um
espaço atemporal, a atenção se concentra nas poses involuntárias desses homens, em suas
expressões, nos detalhes de suas roupas nos seus gestos. A série alterna entre a natureza estática
de Auguste Sander e a dureza flagrante de Weegee, e revela uma ironia que evita o estereótipo
das taxonomias documentais, que muitas vezes restringem o trabalho fotográfico a uma fria
aplicação de uma estratégia conceitual.
A série horizontal começa quando a música começa: o grupo se anima e os brincantes se
desafiam ao ritmo frenético dos instrumentos de sopro e tambores. É o canto do mestre que
interrompe o movimento: deitados, agachados ou ajoelhados, os caboclos respeitam uma trégua
concedida na forma de rimas improvisadas. É nessa pausa que a artista faz a tomada de seus
retratos horizontais. Os mesmos homens agora isolados em um espaço que se limita ao chão,
ao pavimento, à terra batida. O maracatu é desmembrado e seus integrantes estão retidos em
um horizonte abstraído do realismo e que tende para p retrato puro.
A festa do maracatu torna-se uma alegoria da própria vida, em que jovens, velhos e crianças
seguem o inevitável ritmo da dança e do jogo. A fotografia de Bárbara Wagner renuncia o mero
testemunho, compondo uma mitologia pessoal da brincadeira feita de orgulho e ingenuidade,
de exibicionismo e ferocidade, em que cada imagem deixa transparecer uma
incomunicabilidade que permite ir além das cores do folclore. Os caboclos a imagem do
maracatu, que não pergunta e não promete nada em troca. As fotografias se tornam um espelho
noturno no qual o olho, atraído por aquela inefável suspensão , surpreende a si mesmo.
Giuliano Sergio, Historiador e crítico de arte.
Barbara Wagner: domingo