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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

TOMAZ ALEIXO BRASILEIRO BORGES

ÉPOCA DE CRISE NA FILOSOFIA DE ORTEGA Y GASSET

Salvador
2017
TOMAZ ALEIXO BRASILEIRO BORGES

ÉPOCA DE CRISE NA FILOSOFIA DE ORTEGA Y GASSET

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia,
como requisito para obtenção do grau de Doutor em
Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura

Salvador
2017
B83 Brasileiro Borges, Tomaz.
Época de Crise na Filosofia de Ortega y Gasset / Tomaz
Brasileiro Borges. -- Salvador, 2017. 135 f.

Orientador: Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura.


Tese (Doutorado - Pós-Graduação em Ciências Sociais) --
Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Ciência Humanas, 2017.

1. Crise. 2. Ortega y Gasset. 3. Crença. 4. Verdade. 5.


História. I. Castelo Branco de Moura, Mauro. II. Título.
A
Jesús Marcial Conill Sancho, por me introduzir no pensamento de Ortega.
Mauro Castelo Branco de Moura, pela paciente orientação dos últimos anos.
BRASILEIRO BORGES, Tomaz. Época de Crise na Filosofia de Ortega y Gasset.
(Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, 2017.

RESUMO

A pesquisa busca esclarecer um conceito que, atualmente, aparece confuso em


inúmeros pensadores. O que é isso a que se chama Crise? Quando podemos chamar
um período histórico de Época de Crise? Como se inicia esse período? Essas são
algumas das perguntas que se tentará responder, tendo como guia a filosofia do
mestre espanhol. Esta pesquisa tem por objetivo contribuir para a construção de um
conceito que possa ser utilizado por aqueles que se dedicam a conhecer nosso tempo.
Em linhas gerais, a crise se dá quando deixamos de estar seguros sobre a crença que
fundamenta nossa visão de mundo e não estamos seguros em nenhuma outra crença
fundamental. Ortega ensina que quando as crenças que alicerçam nossa instalação
no mundo deixam de viger, quando nosso sistema de crenças entra em colapso, nosso
projeto de vida e de mundo também deixa de ser efetivo e a vida se torna uma vida
em crise. Crise é crise de sentido, é estar em um mar de dúvidas, é viver desorientado.
O principal sintoma de uma vida em crise é o desassossego.

Palavras-chave: Crise, Ortega y Gasset, Crença, Verdade, História.


BRASILEIRO BORGES, Tomaz. Época de Crise na Filosofia de Ortega y Gasset.
(Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, 2017.

ABSTRACT

This research seeks to clarify a concept, which currently seems confused within the
works of many authors. What is the actual meaning of the so called "Crisis"? When a
historical period can be labeled "Times of crisis"? How does it start? These are some
of the questions that we will try to answer, using as a benchmark the philosophical
ideas of the Spanish master. The research main purpose is to contribute to establish
a concept that may be used by those whose work is dedicated to better understanding
our times. In general, crisis is present when we no longer feel sure about the faith that
underlies our world vision, and remain unsafe about any other fundamental belief.
Ortega points that when the beliefs that sustain our installation in the world are no
longer valid, when our faith system collapses, our projects of life and world cease to
be effective and life turns into crisis. Crisis, is crisis of senses, is feeling immersed in
doubts, insecure and disoriented. The main symptom of a life in crisis is uneasiness.

Keywords: Crisis, Ortega y Gasset, Belief, Truth, History.


A verdade é uma só: são muitas.
E estamos todos certos. E sem rumo.

ANTONIO BRASILEIRO
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 4

2 O EU E A CIRCUNSTÂNCIA ................................................................................. 12

3 A VIDA COMO REALIDADE RADICAL ................................................................ 23

4 A DOUTRINA DO PONTO DE VISTA ................................................................... 32

5 SOBRE A RAZÃO HISTÓRICA............................................................................. 40

6 VERDADE: FANTASIA E SINCERIDADE ............................................................. 52

7 VERDADE: IMAGINAÇÃO E CONFRONTAÇÃO ................................................. 61

8 SOBRE IDEIAS E CRENÇAS ................................................................................ 73

9 A CRISE DA RAZÃO ............................................................................................. 88

10 SOBRE ÉPOCA DE CRISE ............................................................................... 101

11 SINTOMAS DE UMA ÉPOCA DE CRISE .......................................................... 110

12 CONCLUSÃO .................................................................................................... 129

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 136


4

1 INTRODUÇÃO

Vivemos em uma época de crise. Esta afirmação parece, atualmente,


inconteste. Nunca vimos a palavra “crise” tão utilizada quanto nos dias atuais, seja em
teses doutorais, nos livros que abarrotam as prateleiras das livrarias ou nos telejornais
diários. Encontramos, por exemplo, mil setecentas e noventa e seis entradas ao
digitarmos a palavra ‘crisis’ na seção de ciências políticas e sociais do site da rede
espanhola de livrarias Casa del Libro. Apenas como comparação, encontramos pouco
mais de duzentas entradas quando digitamos ‘progreso’.
Entretanto, o problema surge quando tentamos esclarecer o conceito de época
de crise. Apesar de utilizado frequentemente, poucos discutem seu significado. Carlo
Bordoni e Zygmunt Bauman, em seu livro Estado de Crise, recentemente publicado,
pouco se atreveram na construção de um conceito sólido de crise, limitando-se quase
exclusivamente em demonstrar alguns efeitos da crise de legitimidade das
democracias atuais.1 Edgar Morin e Patrick Viveret em Como viver em tempo de crise
deliberadamente abandonam a busca pelos ‘porquês’ da crise, concentrando seus
esforços em demonstrar a necessidade de buscar as melhores saídas.2
O presente estudo tem por objetivo contribuir para a construção de um conceito
que possa ser utilizado com segurança por aqueles que se dedicam a conhecer nosso
tempo. Ortega y Gasset (1883-1955), filósofo espanhol com atuação na primeira
metade do século passado, considerado por muitos como o filósofo da crise, será o
foco deste trabalho. Outros pensadores antes de Ortega se debruçaram sobre o tema
da crise da cultura ocidental, contudo acreditamos ser o filósofo espanhol o que mais
se aproxima da nossa sensibilidade, tanto pela língua quanto pelo conteúdo de sua
obra.
Ao longo de sua vasta obra, e desde muito cedo, Ortega reitera que o filósofo
está obrigado a atender aos problemas de seu tempo. Já em Meditaciones del Quijote

1BAUMAN, 2016.
2O mais próximo de um conceito de crise que encontramos em Como viver em tempo de crise está em
seu primeiro parágrafo: “As crises agravam as incertezas, favorecem os questionamentos; podem
estimular a busca de novas soluções e também provocar reações patológicas, como a escolha de um
bode expiatório. São, portanto, profundamente ambivalentes”. (MORIN, 2015, p. 9). Como podemos
notar, esse parágrafo não se presta a esclarecer o significado da palavra crise.
5

concentra-se para tentar resolver “o problema” que enfrenta sua época, uma época
de crise — que é o sair dela o quanto antes. Para isso formula uma “teoría de la vida
humana”, uma espécie de teoria da história, na qual se refere a “ecuaciones con
lugares vacíos que somos invitados a llenar con precisiones en cada caso”.3 É este, a
nosso ver, o maior legado do pensamento de Ortega aos novos filósofos: um guia para
a difícil tarefa que é o sair da crise. E talvez seja, dentre as suas ideias, aquela que
melhor suportará o impacto de teorias futuras; com equações de lugares vazios, pois
oferece-nos um esquema para guiar-nos, uma claridade sobre a confusão em que nos
encontramos. Para entender o conceito de época de crise é indispensável que
saibamos como e por que uma determinada cultura chega a viver em crise.
Em resumo, o que Ortega fundamentalmente propõe aponta para se pensar a
íntima ligação entre a verdade e os movimentos históricos: a verdade é criação
humana, fantasia, fruto de ideias, na tentativa de dar sentido à vida. Essa concepção
passa a ser tida como verdade na medida em que consegue solucionar o que é crítico.
Quando já não pensamos em tais ideias como criações, e não as consideramos como
obras de outros homens, elas assumem para nós o caráter de crenças e as sentimos
como a própria realidade. Ocorre, porém, que o homem nunca deixa de ter novas
ideias — novas soluções aos novos problemas de uma vida cada vez mais complexa
— que precisam estar em harmonia com o conjunto de crenças vigentes, exigindo que
o homem reforme algumas das antigas verdades para que o mundo mantenha sua
coerência e firmeza. Tais reformas resultam, ao final, em novas maneiras de ser
homem — em suma, resulta em movimentos históricos.4

Toda vida, por fuerza se planea a sí misma. O lo que es igual: al decidir


cada acto nuestro nos decidimos porque nos parece ser el que, dadas
las circunstancias, tiene mejor sentido. Es decir, que toda vida
necesita – quiera o no – justificarse ante sus propios ojos. La
justificación ante sí misma es un ingrediente consubstancial a nuestra
vida. Tanto da decir que vivir es comportarse según un plan como decir
que la vida es incesante justificación de sí misma. Pero ese plan y esa
justificación implican que nos hemos formado una “idea” de lo que es
el mundo y las cosas en él, y nuestros actos posibles sobre él. En

3 ORTEGA, Pasado y porvenir para el hombre actual, IX, p. 650.


4 Segundo Ortega: “Cada época trae consigo una interpretación radical del hombre. Mejor dicho, no la
trae consigo, sino que cada época es eso” (ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 354).
6

suma: el hombre no puede vivir sin reaccionar ante el aspecto


primerizo de su contorno o mundo, forjándose una interpretación
intelectual de él y de su posible conducta en él.5

Em suma, uma cultura ou civilização se mantém sobre uma visão de mundo e


uma visão de vida (ou projeto de vida) compartilhada.6 E a crise se dá quando
deixamos de estar seguros sobre a crença que fundamenta nossa visão de mundo e
não estamos seguros em nenhuma outra crença fundamental. 7 “Tanto para a
comunidade quanto para o indivíduo, a vida sem visão de mundo constitui um distúrbio
patológico de falta de orientação das mais severas” (SCHWEITZER, 2013, p. 60). É o
momento em que se instala a dúvida. “Se duda porque se está en dos creencias
antagónicas, que entrechocan y nos lanzan la una a la otra, dejándonos sin suelo bajo
la planta. El dos va bien claro en el du de la duda”.8
O indivíduo ao chegar ao mundo, adverte Ortega, se encontra com um mundo
já feito, já preenchido por produções espirituais em forma de usos, costumes,
prejuízos, opiniões etc., que, desde sua primeira infância vão se acomodando aos
âmbitos vazios de sua consciência.9 É herdeiro de um sistema cultural, do qual “se va
habituando progresivamente, generación tras generación, a no tomar contacto con los
problemas radicales, a no sentir las necesidades que integran su vida y de otra parte
a usar modos mentales ideas, valoraciones, entusiasmos de que no tiene evidencia,
porque no han nacido en el fondo de su propia autenticidad”.10 Enquanto herdeiro, o

5 ORTEGA, Misión de la universidad, IV, p. 342.


6 Segundo Albert Schweitzer, a visão de mundo “é o conteúdo dos pensamentos que a sociedade e os
indivíduos geram sobre a existência e o objetivo do mundo e sobre a posição e o destino da humanidade
e do homem dentro dela. Qual o significado da sociedade em que vivo e de mim mesmo no mundo?
Que almejamos dentro dele? Que esperamos dele?” (SCHWEITZER, 2013, p. 57). A visão de vida é
originada a partir da visão de mundo, e acrescenta que “por essa filosofia, que impulsiona apenas a si
própria em vez de batalhar por uma visão de mundo fundamentada em pensamento e útil à vida,
chegamos à carência de visão de mundo e, com isso, à inexistência da civilização [...] Mas nem a
‘metafísica’ cuidadosa e acadêmica, tampouco a fantástica e pretensiosa, pode de fato nos entregar a
visão de mundo. Constitui um erro cabal acreditar que o caminho poderia ser a ‘metafísica’, erro que já
vivenciamos o suficiente em nosso pensamento ocidental. Seria trágico renová-lo agora que estamos
diante da necessidade de nos livrarmos da falta de visão de mundo na qual nossa miséria espiritual e
material se funda” (SCHWEITZER, 2013, p. 2).
7 Rikiwo Shikama (1991, p. 20) informa que “o sistema de crenças, uma vez estabelecido, não poderia

ser necessariamente inalterável. Está sempre mudando, sutilmente, como se fosse um ser vivente.
Dentro, uma parte está morrendo, outra nascendo e outra se renovando gradualmente.”
8 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 394.
9 ORTEGA, El hombre y la gente, VII, p. 234.
10 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 70.
7

homem, se afastando de suas necessidades vitais, corre o risco de se tornar


inautêntico. E, com isso, “hay instituciones muertas, valoraciones y respectos
supervivientes y ya sin sentido, soluciones indebidamente complicadas, normas que
han probado su insustancialidad”.11
Segundo Ortega, este processo parte da etapa inicial de uma cultura que tende
a se tornar cada vez mais complexa e inchada, até alcançar um momento tal em que
a ruptura com a crença (ou conjunto crenças) que sustentava seus valores se dá
inevitavelmente, provocando um sentimento generalizado de desassossego.

Pero en esa área básica de nuestras creencias se abren, aquí o allá,


como escotillones, enormes agujeros de duda. Este es el momento de
decir que la duda, la verdadera, la que no es simplemente metódica ni
intelectual, es un modo de la creencia y pertenece al mismo estrato
que ésta en la arquitectura de la vida. También en la duda se está.
Sólo que en este caso el estar tiene un carácter terrible. En la duda se
está como se está en un abismo, es decir, cayendo. Es, pues, la
negación de la estabilidad.”12

Esta etapa histórica é que Ortega denomina época de crise.13 São aquelas
horas fatídicas, onde “al mundo o sistema de convicciones de la generación anterior
sucede un estado vital en que el hombre se queda sin aquellas convicciones, por tanto,
sin mundo”,14 deixando o homem em seu estado original de não saber a quê se ater,
em um estado de ausência de verdadeiro sentido e orientação. Assim, o que
caracteriza uma época de crise é este sentimento de se estar náufrago, em busca de
uma terra firme.15
Trataremos aqui de investigar em que consiste o que Ortega chama “época de
crise”. Para isso teremos que iniciar nossa aproximação com os conceitos básicos de
sua filosofia — a vida, a verdade, o homem, a atuação do homem no mundo e do

11 ORTEGA, La rebelión de las masas, IV, p. 194.


12 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 392.
13 Note-se que a história, para Ortega y Gasset, depende da interpretação que determinada cultura tem

sobre a realidade da qual faz parte. E os movimentos históricos são, de forma radical, a adequação
dessa interpretação à própria realidade que não se deixa aprisionar.
14 ORTEGA, Historia como sistema, VI, p. 21.
15 A metáfora do naufrágio é uma das mais belas e precisas utilizadas por Ortega. Francisco José

Martín (1999) sustenta um parentesco entre o estilo de Ortega e a tradição humanista, em especial
com a figura de Baltasar Gracián.
8

mundo sobre o homem. Nossa expectativa é de que consigamos a reunião organizada


dos pensamentos atinentes a este assunto, a ser extraída dos diversos momentos de
sua extensa obra, combinando, quando necessário para uma melhor abordagem do
tema, com as ideias de outros pensadores que também se dispuseram a tratar do
problema, ou que lhe foram referências fundamentais.
Adotamos como premissa a unidade do pensamento de Ortega enquanto se
refere à sua teoria da história. Desde Meditaciones del Quijote (1914) até a sua última
palestra proferida, Ortega é coerente com o seu pensamento.16 Algumas vezes
podemos notar o uso de termos distintos para um mesmo conceito, mas essas
reformulações eram necessárias ao maior aprofundamento do tema estudado. 17 Já

16 Fernando Salmerón (1993, p. 29) afirma que “os temas capitais do período de mocidade coincidem
[...] com os temas de toda a obra madura do mestre espanhol, como pode ser constatado, sem
dificuldade, por qualquer conhecedor mediano de seus escritos”. Isso não significa que entre o Ortega
de 1914 e o Ortega de 1955 não se detecte uma evolução. Seria ingênuo imaginar que em mais de
quarenta anos de trabalho filosófico Ortega não houvesse amadurecido seu pensamento. Ferrater Mora
(1958, p. 18) distingue três etapas fundamentais de seu desenvolvimento intelectual: o objetivismo
(1902-1914), o perspectivismo (1914-1923) e o raciovitalismo (1924-1955). J. Gaos (1957, p. 87)
observa que Ortega teve uma etapa de mocidade (1902 ou 1904-1914), na qual não se constata uma
filosofia própria, uma primeira etapa de plenitude (1914-1924); uma segunda etapa de plenitude (1924-
1936), em que se notaria a influência de Heidegger, e uma última etapa, que chama de Expatriação
(1936-1955), caracterizada mais pela continuidade de publicações. P. Cerezo (1984, p. 257 e ss.)
também divide sua obra em três períodos, que denomina: período do objetivismo eidético ou
neokantismo, período da fenomenologia e período da razão vital. A. Gutiérrez Pozo (2003, p. 23 e ss.)
segue, em linhas gerais, a concepção de P. Cerezo. C. Morón (1968, p. 81) prefere considerar a
periodização do pensamento de Ortega considerando as principais influências recebidas pelo filósofo
espanhol que, em sua interpretação, foram: Cohen, Scheller, Spengler e Heidegger. J. T. Graham, que
defende a necessidade de se compreender Ortega considerando sua raiz pragmatista, afirma que
primeiro Ortega se valeu da devoção do neokantimo à cultura para combater a fúria de Nietzsche,
depois recorreu ao “empirismo radical” de William James para escapar da armadilha idealista, e por
último baseou-se no método fenomenológico de Husserl para corrigir a noção de verdade do
pragmatismo.
17 Morón Arroyo (1968, p. 35) criticará como pouco filosófico não utilizar Ortega uma única palavra para

esclarecer uma ideia. “Mais grave que a evasão ou o rodeio é o equívoco. Ortega não usa os termos
com um sentido constante”. Fernando Salmerón (1959, p. 295) concorda com Morón Arroyo, afirmando
que “os conceitos de Ortega sequer são conceitos, apenas imagens, que não servem como
instrumentos intelectualmente eficazes para se apoderar da realidade”.Julián Marías (1983, p. 251)
defende o método de Ortega afirmando que ele “teve que frear sua tendência a fazer uma filosofia
‘técnica’; se tivesse feito, teria caído no vazio, teria sido inassimilável”. Durante anos houve o debate
sobre se Ortega poderia estar relacionado entre os filósofos. V. Chumillas (1940), J. Iriarte (1942),
Sánchez Villaseñor (1943), Roig Gironella (1946), S. Ramírez (1958) e V. Marrero (1962) são alguns
de seus críticos implacáveis. Essa polêmica só foi superada na década de 1970, com o aporte dos
trabalhos de J. L. Abellán (1966), J. L. Aranguren (1966), J. P. Borel (1969) e A. Guy (1968), que
tentaram compreender Ortega de maneira mais neutra, menos parcial.
9

nos anos 1920, razão vital e razão histórica são conceitos que começam a ser
entendidos conjuntamente. A vida, segundo Ortega, é tanto biografia quanto biologia.
Desde as celebrações pelo centenário do nascimento de Ortega inúmeros
estudiosos vêm se debruçando sobre os termos fundamentais de sua filosofia. Há,
seguramente, muitas descobertas inquestionáveis. É certo que muito já foi escrito
sobre o autor, sobre sua teoria do conhecimento, sua metafísica, suas teorias
estéticas e políticas, mas não foi assim no que concerne à sua teoria da história e à
sua doutrina sobre crise histórica.18 Pesquisando a biblioteca da Universidad
Complutense de Madrid, por exemplo, encontramos apenas dois trabalhos sobre o
tema, o primeiro publicado em 199119 e o segundo em 199420, que, por se tratar de
uma série de artigos, não se propõe a abordar o tema de forma sistemática.
Compartilho com o parecer de Ferrater Mora sobre o debate entre os que
defendem a originalidade de Ortega e os que o apontam, em seu estilo, como um
imitador do pensamento alemão contemporâneo21. Provavelmente Ortega seja mais
original do que o que dizem seus críticos implacáveis e menos original do que o que
pensam seus partidários. De todo modo, as realizações de um filósofo devem ser
apreciadas mais em termos de verdade do que de originalidade (FERRATER MORA,
1958, p.13).

18 José Luis Abellán (1996, p. 109) afirma que “o pensamento orteguiano alcança sua máxima
radicalidade no tema da história, onde logra situar-se à altura dos tempos”.
19 SHIKAMA, Rikiwo. Ortega: filósofo de las crisis históricas. Santiago de Chile: PUC, 1991.
20 PAREDES MARTÍN, María del Carmen. Ortega y Gasset: pensamiento y conciencia de crisis.

Salamanca: Universidad, 1994.


21 C. Morón publicou, em 1968,El sistema de Ortega y Gasset, livro no qual examina as principais

influências recebidas. Em 1979 saem os estudos de Ph. W. Silver (Fenomenología y razón vital) e de
N. R. Orringer (Ortega y sus fuentes germânicas). Nelson Orringer, fuçando a biblioteca pessoal de
Ortega, descobre obras de filósofos alemães que mais influenciaram o espanhol. Dentre os nomes
apontados (alguns sequer foram mencionados pelo próprio Ortega) estão: O. Immisch, G. Simmel, H.
Choem, P. Nartop, A. Pfander, M. Geiger, W. Schapp, E. Jaensch, K. Friedemann, E. Lucka e J. M.
Verweyen. P. Cerezo (1984) considera que Ortega não conseguiu abandonar o idealismo. Do lado dos
que defendem uma originalidade quase independente de Ortega podemos citar os trabalhos de Julián
Marías (1982), A. Rodríguez Héscar (1985), S. Rabade (1983), A. Regalado (1990), J. San Martín
(1998) e J. Lasaga (1997). Para Rodríguez Huéscar (2002), Ortega inaugura uma nova etapa da
metafísica ocidental. Miguel Oromí (1953) foi ainda mais radical: afirma que o vitalismo orteguiano
constitui a negação da metafísica ocidental, sendo sua filosofia mais profunda do que a de Kant. P.
Garagorri (1958) e J. L. Abellán (1991) afirmam que a filosofia de Ortega desborda os limites da filosofia
tradicional.
10

Ortega foi acusado também de ser pouco filosófico, principalmente por não ter
construído uma filosofia sistemática, ter demonstrado interesse por uma infinidade de
temas e ter escrito sua obra em vários gêneros literários, sobretudo o ensaio. Tudo
isso é certo; porém, como bem observa J. T. Graham (2004, p. 28),

seu pensamento não pode ser categorizado, nem apresentado


simplesmente como uma filosofia acadêmica, mas, com limites
precisos entre sua metafísica, epistemologia, ontologia, ética e lógica.
Tão afinados limites quase não existem em sua filosofia, muito menos
em seu pensamento como um todo.

Quanto ao método, seguiremos duas indicações que o próprio Ortega


considerou como necessárias à reflexão crítica. A primeira diz respeito à clareza do
expressar como cortesia própria do teórico. É certo que nem todos tiveram, como
Ortega, o dom da (boa) escrita, mas tentaremos deixar o mais limpo possível a
exposição de nossos argumentos. Assim, para não perder o ritmo do texto optamos
por tratar os temas e citações secundárias em nota de rodapé. A segunda indicação
é a de que o caminho mais curto entre o ponto de que parte o investigador e o ponto
a ser investigado, na atividade teórica, não é a reta. Nestes referenciais, os temas são
constituídos de objetos que só se entregam ao nosso conhecimento, “solo se dejan
conquistar cuando se los trata como los hebreos a Jericó — yendo hacia ellos
curvamente, en círculos concéntricos cada vez más estrechos e insinuantes”.22 Desse
modo, o que poderá parecer repetição de temas já trabalhados — surgindo uma e
outra vez ao longo do texto — é o método que utilizamos para que a cada nova
aproximação se possa ter mais clareza sobre o objeto estudado.23
Ortega y Gasset, até meados do século passado, foi considerado o expoente
maior da filosofia espanhola, experimentou um período de ostracismo no final do
século e, atualmente, volta a ser objeto de estudo e uma das referências sobre o tema
da pós-modernidade.24 M. Martín Serrano (1999) e A. Ovejero (2000) defendem a

22 ORTEGA, ¿Qué es filosofía?, VII, p. 280.


23 Também em relação ao ‘método de Jericó’, Ortega sofreu duras críticas. Assim, Morón Arroyo (1968,
p. 35) pensa que “o método de Jericó dá a sensação de não querer um enfrentamento decidido”.
24 Segundo fontes do Ministério de Educação e Ciência da Espanha, nos últimos vinte anos foram

defendidas mais de setenta teses de doutorado sobre Ortega y Gasset.


11

ideia de que Ortega seja considerado um pós-moderno. Jesús Conill, uma referência
nas discussões atuais sobre o tema, também situa Ortega entre os pós-modernos (ver
“La transformación de la fenomenología en Ortega y Gasset. La posmodernidad
metafísica”, em SAN MATÍN, 1992).
12

2 O EU E A CIRCUNSTÂNCIA

Ao longo da história da filosofia sempre se indagou sobre o que se chama


eu. Seria uma extensão da alma ou do corpo? Pensamento, memória ou inteligência?
Ortega critica a “sugestão tradicional”, por fazer residir o eu em alguma coisa, quando
na verdade “usted no es cosa ninguna, es simplemente el que tiene que vivir con las
cosas, entre las cosas, el que tiene que vivir no una vida cualquiera, sino una vida
determinada”25. De acordo com Ortega, coisa é tudo aquilo “[...] cuyo modo de ser
consiste en ser lo que ya es y en el cual, por lo tanto, coincide, desde luego, su
potencialidad con su realidad”26 — isto é, tem seu ser já dado e não pode ser outro, e
o tem por si e independentemente do homem.
Diferentemente, porém, da coisa cuja característica é consistir em um ser
estático, o homem é determinado por um ser em constante movimento, ou melhor, em
um “ser sendo”, em potência, em pretensão, em projeto. “Un ente cuyo ser consiste,
no en lo que ya es, sino en lo que aún no es, un ser que consiste en aún no ser”.27 A
vida é sempre antecipação do futuro, é projeto. O decisivo, como pensa Ortega, é
sentir-se projetado para o futuro,

es, pues, vida esa paradójica realidad que consiste en decidir lo que
vamos a ser — por tanto, en ser lo que aún no somos, en empezar por
el futuro. Al contrario que el ser cósmico, el viviente comienza por lo
de luego, por después.28

E ainda: “[…] en un buen orden psicológico, pues, lo decisivo no es la suma de


lo que hemos sido, sino de lo que anhelamos ser”, pois, enquanto o passado, por ser
passado, se apresenta como estável, o futuro se apresenta como enigmático29, o qual,

25 ORTEGA, Goethe desde dentro, IV, p. 400.


26 ORTEGA, Meditación de la técnica, V, p. 339.
27 ORTEGA, Meditación de la técnica, V, p. 338.

28 ORTEGA, ¿Qué es filosofía?, VII, p. 432.

29 Sobre isto, escreve Ortega: “El presente no me preocupa porque ya existo en él. Lo grave es el futuro.

Para estar yo ahora tranquilo con respecto al minuto que va a venir, necesito estar seguro, por ejemplo,
de que la tierra que ahora me sostiene no me va a fallar luego” (En torno a Galileo, V, p. 85).
13

para enfrentá-lo, o homem precisa estar apoiado no passado, “sólo de él puede echar
mano: es la navecilla en que se embarca hacia el inquieto porvenir”.30
Convém observar que, em nenhum momento, Ortega interpreta esse projeto
como algo determinado; pelo contrário, a seu ver, a vida como projeto implica uma
vontade que é livre para realizar ou não esse projeto, apenas não pode escolher outro,
nem prescindir dele.
Em suma, o eu singular precisa realizar-se, executar o projeto que é sua vida,
e deve contar com o mundo em torno, único meio de realização do projeto, que lhe é
dado, com suas facilidades e dificuldades.
Este personagem programático, dirá Ortega, é o responsável por valorar todas
as coisas — aquelas que encontramos em nossa vida, as que precisamos interpretar
para que ela faça sentido. Este eu é, assim, “uma individualíssima influência
constrangedora e coercitiva sobre o mundo” e o mundo, por sua vez, é tudo aquilo
que me opõe resistência.
Entender o homem enquanto projeto significa entendê-lo como um “ser
substancialmente necessitado”, incompleto, um ser que “tem em si a exigência de
buscar sua unidade em algo fora de si”. Esse fora de si que obrigatoriamente se
relaciona e busca identidade é o que Ortega denomina circunstância. “La
circunstancia! Circum-stancia! Las cosas mudas que están en nuestro próximo
derredor!”31
A circunstância orteguiana guarda uma grande semelhança com o mundo
circundante (Umwelt) de Edmund Husserl,32 como poderemos ver no decorrer deste
trabalho, porém o conceito de circunstância em Ortega só é devidamente absorvido
quando compreendemos bem o conceito de vida humana. E aqui se separa Ortega
radicalmente de Husserl.
Para Husserl, o mundo existe para nós como produto intencional, em que a
intencionalidade “nada mais significa que esta particularidade que tem a consciência

30 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 94.


31 ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 319.
32 O conceito de circunstância aparece em Ortega em um artigo de 1911 (ORTEGA, Vejamen del

orador, I, p. 557), o que sugere uma possível independência em relação ao pensamento de Husserl.
14

de algo, de trazer, em sua qualidade de cogito, seu cogitatum em si mesmo”.33 O


objeto é sempre objeto-para-um-sujeito, só terá sentido em relação com a consciência
que o percebe. A fenomenologia, neste sentido, é o estudo do mundo na
consciência.34
Husserl parte da dúvida universal de Descartes, buscando corrigi-la em sua
condição negadora do mundo. “Nós partimos daqui, mas advertindo em seguida que
a tentativa da dúvida universal só deve nos servir como instrumento metodológico
para colocar em relevo certos pontos que são suscetíveis de serem trazidos à luz com
evidência mediante esta tentativa, enquanto entranhados em sua essência”. Se trata,
pois, de retomar “a tentativa da dúvida universal, levada a cabo por Descartes, para
um fim muito distinto, visando obter uma esfera do ser absolutamente indubitável”
(HUSSERL, Ideias I, §31). Essa esfera do ser se consegue quando deixamos toda
suposta verdade em suspensão, enquanto que duvidosa, até que consigamos topar
com algo verdadeiramente certo, algo que seja forte suficiente para agüentar as
investidas de minha dúvida radical. Assim, Husserl opera a redução de toda verdade
possível a uma operação do “eu”, substituindo, então, a primeira verdade do ego
cogito cartesiano.
No parágrafo 33 de suas Ideias, Husserl pergunta “o que pode, em definitiva,
permanecer quando se desconectou o mundo inteiro, contando nós mesmos, com
todo cogitare?”. O efeito da epoché é uma redução à esfera transcendental, onde
encontramos as vivências puras e a consciência pura com seu “eu” puro. Nessa esfera
transcendental se encontra a evidência apodítica. E a fenomenologia tem por tarefa
analisar a referida esfera e tudo que nela efetivamente se dá. Por meio da “redução
transcendental”, a fenomenologia se impõe como tarefa ver o que se apresenta como
evidente, abdicando de “provar” a verdade do dado. Neste sentido, dirá Husserl, “a
fenomenologia tende por essência a aspirar a ser a filosofia ‘primeira’ e a oferecer os

33Husserl, Edmund. Meditações cartesianas, §14.


34 Xavier Zubiri define Fenomenologia como “um conhecimento que recai sobre um objeto que esteja
ao alcance de todos sem discussão, e que, inclusive, sobre esse objeto se vá tendo conhecimentos
justificados com plena evidência pela própria índole dele. Este conhecimento deverá ser conquistado
justificadamente desde si mesmo; de sorte que toda orbe dos conhecimentos filosóficos deve ser a
orbe das verdades que eu logre, ou seja, deve ser uma orbe de verdades que eu, o ego, vá
fundamentando com caráter absoluto desde sua condição de “eu”.” (1963, p. 203).
15

meios a toda crítica da razão que se deva realizar; por isso, requer prescindir o mais
completamente possível de supostos e o possuir uma absoluta evidência intelectual
na reflexão de si mesma” (HUSSERL, Ideias I, §63). A fenomenologia aspira a ser
uma nova atitude orientada a “tão só” contemplação.
Em seu livro sobre Leibniz (1947), Ortega expõe, em nota de rodapé (ORTEGA,
VIII, p.273-275), suas objeções à fenomenologia de Husserl:

Desde 1914, es la intuición del fenómeno “vida humana” base de todo


mi pensamiento. Entonces lo formulaba yo — con motivo de exponer
durante varios cursos la fenomenología de Husserl — corrigiendo de
modo principal la descripción del fenómeno “conciencia de…” que,
como es sabido, constituye, a su vez, la base de su doctrina. […]
haciendo constar, frente a todo idealismo, que no es pura descripción,
sino ya hipótesis, decir que el acto de conciencia es real, pero su
objeto es sólo intencional; por tanto, irreal. La descripción que se
atiene rigurosamente al fenómeno — decía yo entonces – enunciará
que en un fenómeno de conciencia como la percepción hallamos la
coexistencia del yo y de la cosa, por tanto, que ésta no es idealidad,
intencionalidad, sino la realidad misma. De modo que en el “hecho”
percepción lo que hay es: yo, de un lado, siendo a la cosa percibida, y
de otro, ésta siéndome; o lo que es igual: que no hay tal fenómeno
“conciencia de… cómo forma general de la mente. Lo que hay es la
realidad que yo soy abriéndose y padeciendo la realidad que me es el
contorno, y que la presunta descripción del fenómeno “conciencia” se
resuelve en la descripción del fenómeno “vida real humana”, como
coexistencia del yo con las cosas en torno o circunstancia. Resulta,
pues, que “no hay” tal conciencia como fenómeno, sino que conciencia
es una hipótesis, precisamente la que hemos heredado de Descartes.
Por eso Husserl vuelve a Descartes.

Ortega acredita que se equivoca Husserl ao aceitar a possibilidade da


suspensão por completo da “atitude natural” e a ideia de que a consciência do mundo
percebido fosse o resultado dessa suspensão, e apontava a postura de Husserl como
de uma inclinação excessivamente “mentalista”.35 “Para que haya conciencia es

35Philip Silver mostra claramente que Ortega já havia concluído, em 1914, uma crítica à fenomenologia
husserliana. De acordo com Silver, Ortega buscou uma fenomenologia mundana, antecipando a
fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (SILVER, 1978). E Julián Marías (1959, p. 264) diz
que “em 1914, quando a teoria da fenomenologia havia cumprido apenas um ano, Ortega havia
superado as noções de redução e consciência, para afirmar a realidade pessoal e executiva da vida
humana”.
16

menester que deje yo de vivir actualmente, primariamente, lo que estaba viviendo y


volviendo atrás la atención recuerde lo que inmediatamente antes me había pasado”.36
Contudo, adverte Ortega, o homem sempre esteve no mundo, antes de qualquer
reflexão filosófica e o mundo, em contrapartida, sempre esteve presente em nós, não
admitindo, assim, que nenhuma redução fenomenológica nos separe desse mundo
que nos é presente. “La fenomenología, al suspender la ejecutividad de la
‘conciencia’, su Weltsetzung, la realidad de su ‘contenido’, aniquila el carácter
fundamental de ella. La ‘conciencia’ es justamente lo que no se puede suspender: es
lo irrevocable. Por eso es realidad y no conciencia”. Eu sou eu e minhas
circunstâncias, eis a irredutível realidade da vida humana.
Sobre a relação de Ortega com a fenomenologia husserliana, Julián Marías
afirma:

Um ano depois da publicação das Ideias, vem Ortega a dizer que ao


contemplar minhas vivências, o eu sujeito delas deixa de ser
propriamente eu, e se converte em imagem, coisa ou objeto. Na
verdade o verdadeiro eu, o executivo, o presente, é o que vê e
considera ao anterior, ao que foi sujeito da vivência descrita e
contemplada. Ou, invertendo os termos, o eu que considera,
contempla e descreve, é dizer, o eu que está executando a redução
fenomenológica, longe de sucumbir a ela e ser um eu “aético” e entre
parênteses, é verdadeiro, executivo e presente, irredutível. Eu significa
executividade, presença, plena realidade. Não se trata de “o eu”, nem
o homem, mas a verdadeira intimidade que é algo enquanto
executando-se, e isso é nossa vida, não como imagem, mas
justamente em sua própria execução, a qual por sua vez somente é
possível enquanto que se ocupa com coisas.
Isso quer dizer que no instante em que Ortega pensou a fundo sobre
a fenomenologia, foi além dela no que tem de filosofia idealista, de
afirmação da consciência como realidade absoluta ou, como diz
Husserl, “não relativa”. A eliminação do executivo é ilusória, porque a
realidade mesma, isto é, não sua imagem ou conceito, é
executividade; quando o fenomenólogo crê estar tratando com um eu
fenomenologicamente reduzido, com um eu-consciência, é seu eu
executivo, plenamente real, quem opera com uma imagem pretérita de
seu eu, que antes também foi executivo. Dito com outras e mais exatas
palavras, sobre a ilusão da consciência aparece a realidade, a única
com a qual temos uma relação íntima, nossa vida enquanto se
executa, isto é, vivendo. (MARÍAS, 1959, p. 262).

36 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 166.


17

Ortega não aceita que nossa relação primordial com as coisas seja em um
processo de “tomar consciência de”. Em Ortega vemos que o âmbito da consciência
se transfere para a vida e a nossa relação primordial com o mundo é uma relação
pragmática, que consiste em estar no mundo contando com as coisas. Para Ortega,
o conhecimento não pode ser entendido como o ingresso da coisa na mente, nem
como um estar a “coisa mesma” na mente per modum cognoscentis, nem como uma
construção da coisa. O conhecimento é, segundo Ortega, uma “interpretación de la
cosa misma sometiéndola a una traducción, como se hace de un lenguaje a otro,
diríamos del lenguaje del ser, que es mudo, al lenguaje decidor del conocer”. 37
Javier San Martín, com uma interpretação bastante peculiar sobre Husserl,
afirma que a filosofia de Ortega se aproxima bastante da fenomenologia de Husserl,
ambas possuindo a mesma arquitetura. Isso, segundo San Martín, não tira o mérito
de Ortega, mas o coloca em uma posição de relevo, posto que o espanhol soube
criticar “o que em Husserl era caduco”.38 San Martín aponta que ao se desvencilhar
da teoria fenomenológica e submergir diretamente na prática fenomenológica, Ortega
consegue desenvolver sistematicamente o que Husserl não conseguiu, “sua obra é o
desenvolvimento da fenomenologia como pensar sistemático”. (SAN MARTÍN, 1994,
p. 66). É interessante notar que San Martín compreende a redução fenomenológica
como recondução da realidade no sujeito que experimenta a realidade, e assim nos
diz que “todo o sentido da redução transcendental husserliana não é senão o de
reconduzir o mundo à vida radical, onde as coisas ganham sentido de ser, à
subjetividade transcendental que é o Urstätte, como diz Husserl, o lugar originário do
sentido do mundo”. (SAN MARTÍN, 1994, 93). E aproxima o conceito de subjetividade

37 ORTEGA, Origen y epílogo de la filosofía, IX, p. 372.


38 De acordo com Javier San Martín (1994, p. 116) “a fenomenologia é uma prática teórica que Husserl
introduz baseada em uma teoria fenomenológica. Em Ideais a teoria fenomenológica se centra em uma
apresentação da redução e da epoché que não se conjuga facilmente com a prática fenomenológica,
o que fará Husserl se esforçar continuamente em resolver essa dificuldade. Creio que Ortega, de
entrada, percebe com nitidez a intenção da fenomenologia, quer dizer, se faz com a prática
fenomenológica e o que lhe é inerente: mas não termina de aderir à teoria fenomenológica, que
ademais interpretou incorretamente, até o ponto de terminar, por volta de 1929, por identificar a
fenomenologia com essa teoria, repetindo desse modo uma atitude que havia sido e estava sendo
muito habitual entre os leitores de Husserl e em alguns de seus mais importantes discípulos”.
18

transcendental husserliana ao pensamento de Ortega quando entende que “a


subjetividade transcendental husserliana, a welterfahrendes Leben sou eu, é minha
vida como âmbito onde todo ser que me é tem seu ser e sentido”. (SAN MARTÍN,
1994, p. 92).
Vale lembrar que para Ortega a verdade é desvelada a partir de dois processos,
imaginação e confrontação. Segundo San Martín (1998, p. 112), esses processos já
estavam presentes na fenomenologia, como nos mostra o fragmento a seguir:

É possível que aqui se diga que Ortega se separa radicalmente da


fenomenologia. Eu creio exatamente o contrário: aqui Ortega
demonstra até que ponto captou sua mensagem, pois nos dois
momentos da verdade temos, nem mais nem menos, os dois conceitos
— que em fenomenologia é necessário distinguir — da palavra
“constituição”, primeiro como aprender a conhecer uma coisa, quando
realmente nos aparece algo pela primeira vez, nos surge uma
realidade nova, se constitui essa realidade para nós, se dá uma
Urstiftung, o que é o primeiro e fundamental sentido de constituição.
Aí está contido o primeiro sentido da verdade. A verdade é doação
originária de uma realidade; essa doação é absolutamente individual
e súbita. Uma vez dada essa doação se converte em receita de
reconhecimento que atua mecanicamente, e aí temos o segundo
sentido de constituição, que é fundamentalmente aplicação de um
esquema de reconhecimento a uns dados, o que normalmente se fará
de um modo muito mecânico.

Já José Lasaga Medina concorda que existe grande proximidade entre os dois
filósofos, contudo informa que “existem duas diferenças que afetam o sentido central
de uma e outra filosofia: a) Husserl não descreve o mundo da vida em termos de uma
realidade credencial, de forte componente social, alheia à consciência; b) Husserl
mantém intacto seu projeto original de encarregar à consciência a epoché do mundo
da vida para criar uma ciência radical e fundamental, o que implica a possibilidade de
constituir racionalmente a totalidade do mundo da vida”. (LASAGA, 1994, p. 211, nota
6). Em suma, a proximidade entre Ortega e Husserl depende de como se compreende
a fenomenologia.
Retomando o argumento central sobre o conceito de circunstância, Ortega nos
mostra que ao homem não está facultado prescindir do projeto que é sua vida, vida
entendida como conjunto de eu e circunstância. Circunstância essa que nos é dada e
19

não pode ser substituída por outra, pois forma parte de nós, é um conjunto de
facilidades e dificuldades para a execução de nosso projeto, que é “[...] El fuera de si,
donde El hombre tiene que afanarse en ser”.39 Note-se que a circunstância representa
o mundo não apenas como um mundo de coisas, mas como um mundo prático, como
aquilo que nos rodeia — coisas, bens e valores.
O conceito orteguiano de circunstância, como apontado por Morrón Arroyo, tem
grande parentesco com o conceito de milieu-dinge de Max Scheler. Vejamos o
seguinte fragmento de Scheler:

Pongamos por lo pronto en claro: las “cosas” con que actuamos en


nuestra vida, a las que nos referimos, por ejemplo, cuando
relacionamos ciertas acciones — o disposiciones — de los hombres
con su “milieu”, no tienen nada que ver con la “cosa en si” de Kant ni
con los objetos descubiertos en la ciencia — objetos hipotéticos con
los cuales la ciencia “explica” las realidades naturales —. El sol-milieu,
por ejemplo, no es el sol de la astronomía: la carne que se roba o se
compra no es una suma de células y tejidos con los procesos químicos
y físicos que en ellos se dan. Estas cosas-milieu — milieu-dinge —
tienen por de pronto dos características: son las que tenemos delante
en nuestra vida espontánea, y en cuanto objetos de nuestro actuar,
son realidades dotadas de valores.
[…] Lo percibido como ejerciendo una influencia sobre mí es todo
aquello que al variar en alguna dirección produce una variación de mi
vivencia en alguna dirección: no importa que yo no pueda señalar la
cosa concreta que varía en ese “milieu”, o la experiencia concreta que
cambia mi vivencia general, no importa tampoco si lo percibo como
ejerciendo una influencia puede o no ser claramente detectada por mí.
[…] Así, al “milieu” momentáneo pertenecen no sólo la serie de objetos
que encuentro en la calle o en mi habitación, sino todo aquello con
cuya existencia o no existencia cuento en mi vida práctica
(espontánea). (in MORRÓN ARROYO, 1968, p.151).

A diferença entre os autores está, principalmente, na identificação feita por


Ortega entre mundo e circunstância. Em ¿Qué es Filosofía?, Ortega demonstra com
clareza a ideia de circunstância como nossas possibilidades e como resistência a mim
e não apenas como vida espontânea. É circunstância como condição da vida humana.

39 ORTEGA, El hombre y la gente, VII, p. 108.


20

A interação do homem com o mundo se dá em uma estrutura de presença e


compresença. O mundo (ou circunstância) é constituído de coisas como prágmata40,
assuntos e importâncias. Então, estas se nos apresentam como presença e
compresença. O conceito de compresença é fundamental para que possamos, em
breve, entender a importância da fantasia na concepção da verdade. Existem coisas
com que contamos sem nunca as termos presentes, contamos com elas por sabermos
que existem ou porque cremos em sua existência. Assim, nos dirá Ortega, “[...] el
mundo vital se compone de unas pocas cosas en el momento presentes y
innumerables cosas en el momento latentes, ocultas, que no están a la vista pero
sabemos o creemos saber”.41
Dentre as coisas que nos são patentes existem aquelas que se destacam sobre
as outras — as coisas que vemos com atenção —, e as que formam um fundo sobre
o qual aquelas se destacam. Enquanto que o primeiro plano é advertido, atendido, o
segundo, que Ortega denomina horizonte, embora sendo algo que vemos, que está
aí para nós, tem sua presença em forma de desatenção. Esta porção do mundo que
nos é presente, seja em primeiro plano ou em forma de desatenção, é o que Ortega
chama contorno.42
Estas considerações nos ajudam a compreender a afirmação orteguiana de que
o mundo é uma perspectiva, onde, dependendo de nossas circunstâncias, algo nos
aparecerá como distante ou como próximo.
Outro conceito fundamental para compreendermos bem a ideia orteguiana de
eu e circunstância é o da vida como realidade radical. É o que veremos a seguir com
mais aprofundamento, mas aqui se faz necessário apontar um aspecto — o de que as
coisas que compõem a minha circunstância só podem ser compreendidas em
referência à minha vida. Portanto, não são coisas por si, são assuntos e importâncias,
algo que aproveitamos ou evitamos. O Ser não se dá como substância, como

40 Ortega nunca encontrou uma palavra em espanhol que traduzisse de forma adequada o sentido que
os gregos davam a prágmata, daí que muitas vezes glosava seu significado, buscando uma melhor
compreensão do leitor. Uma “coisa” enquanto pragma deve ser entendida como algo em relação com
o homem, que ele manipula ou evita, de acordo com uma finalidade. Ortega não entende coisa como
algo que existe por si.
41 ORTEGA, El hombre y la gente, VII, p. 119.

42 ORTEGA, El hombre y la gente, VII, p. 104.


21

realidade em si, mas como realidade-para, como interação executiva entre um eu e


suas circunstâncias. Ortega recorre à etimologia: “y, como hacer y ocuparse, tener
asuntos se dice en griego práctica, praxis — las cosas son radicalmente prágmata y
mi relación con ellas, pragmática.”43
Segundo Ortega, tudo é prágmata e tudo tem origem utilitária. Ortega defende
que o conhecimento é uma ação e que a imaginação é indispensável ao labor
cognitivo do homem, porém critica a ideia de que a verdade seja produto da utilidade
e conformada pelos desejos44. O problema está no centro do conhecimento, mas este
não se resume à seleção utilitária dos problemas práticos. Ensinam Peter L. Berger e
Thomas Luckmann (2012, p. 18, 19) que “o sentido de uma experiência ou de uma
ação surgiu no trato consciente e ‘solucionador de problemas’ do indivíduo com seu
meio ambiente natural e social: ‘em qualquer lugar’, ‘em qualquer tempo’ [...] A
formação de reservatórios históricos de sentido e de instituições alivia o indivíduo da
aflição de ter de solucionar sempre de novo problemas de experiência e de ação que
surgem em situações determinadas.”
Do que foi dito até aqui devemos derivar duas considerações: o homem se
encontra num mundo que lhe é alheio, mas está obrigado a lidar com tal mundo para
realizar o projeto que é sua vida. Lidar com o mundo significa interpretar nossa
situação, “[...] tratar de averiguar qué es ese mundo en que braceamos náufragos y
cuál es su relación con nosotros”45. O que encontramos, à nossa volta, não nos diz,
por si, o que é, de modo que somos obrigados a forjar uma ideia, sondar, de alguma
maneira, o que é isso.
Além do caráter necessário de sabermos em que nos ater, para Ortega, “el
hombre rinde el máximum de su capacidad cuando adquiere la plena conciencia de
sus circunstancias. Por ellas comunica con el universo.”46

43 ORTEGA, El hombre y la gente, VII, p. 110.


44 Ortega combate a ideia jamesiana da verdade como uma espécie de satisfação ou conveniência. De
acordo com James, uma ideia é verdadeira quando é útil. A verdade é o que nos convém crer. Note-se
que para Ortega não cremos voluntariamente. As crenças se encontram num nível pré-intelectual.
45 ORTEGA, En el centenario de una universidad, V, p. 470.

46 ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 319.


22

Aqui precisamos observar que a ideia orteguiana de circunstância está


intimamente relacionada com a ideia de gerações. Segundo Ortega, encontramo-nos
com uma circunstância que está, em parte, já interpretada por gerações anteriores. A
maior parte das perguntas sobre o que são certas coisas já foi respondida, fazem parte
das convicções de uma época. “Consciente ou inconscientemente nos achamos
instalados nessa rede de soluções prontas para os problemas de nossa vida”.
Nossa circunstância, como vimos, é composta de coisas enquanto facilidades,
dificuldades, interpretações, que topamos quando somos arremessados nela, que
fazem parte de nós. Conforme Ortega, “por lo visto, aquí y yo, yo y aquí, somos
inseparables de por vida”.47 A fórmula orteguiana “yo soy yo y mi circunstancia” implica
uma interpretação necessariamente unitária de Eu e Mundo. Estamos obrigados a
interpretar Eu e Mundo como um todo concreto. O núcleo ou realidade radical deste
todo concreto e unitário é a vida do homem. Para Ortega,

lo primero, pues, que ha de hacer la filosofía es definir ese dato, definir


lo que es “mi vida”, “nuestra vida”, la de cada cual. Vivir es el modo de
ser radical: toda otra cosa y modo de ser lo encuentro en mi vida,
dentro de ella, como detalle de ella y referido a ella. En ella todo lo
demás es y es lo que sea para ella, lo que sea como vivido. 48

A filosofia de Ortega é filosofia da vida humana. Neste sentido — e


exclusivamente neste sentido — empregamos o termo vitalismo para entender o
pensamento do mestre madrilenho. Mas, o que é a vida humana?

47 ORTEGA, El hombre y la gente, VII, p. 126.


48 ORTEGA, ¿Qué es filosofía?, VII, p. 405.
23

3 A VIDA COMO REALIDADE RADICAL

Dos ensinamentos de Buda às ideias dos cientistas de hoje sobre uma flecha do
tempo, subjaz uma preocupação com o viver. O Dasein de Heidegger é perpassado
por essa preocupação: Sorge (cuidado) foi a palavra que usou para exprimir esse
estar no tempo. Um estar, claro, não “físico”, mas carregado de uma consciência deste
estar. De um ou de outro modo, porém, não tem sido fácil se chegar a algum acordo.
Pisamos como que em reinos de alguma ficção. Para Bergson, “o tempo é invenção
ou não é absolutamente nada”. Isto está em seu livro A evolução criadora, e foi citado
por Ilya Prigogine. “Bergson fala ali do tempo como ‘jorro efetivo de novidade
imprevisível’ de que é testemunha a nossa experiência da liberdade humana, mas
também da indeterminação das coisas”. (PRIGOGINE, 1996, p.61).
A ideia de ‘invenção’ do tempo, bem adaptada ao viver humano e todo seu
aparato de decisões, aproxima-nos de Heidegger e Ortega, assim como dos filósofos
chamados existencialistas. Ante o indeterminado nunca nos sentimos à vontade, já
que a imprevisibilidade não parece nos deixar mais felizes. A vida como eleição
(elegância), de Ortega, impõe este “cuidado” de que nos falava Heidegger, ao tempo
em que nada retira deste mistério que é o viver.
Sobre o tema da vida humana, à luz do pensamento de Ortega, um de seus mais
importantes discípulos, Julián Marías, escreveu uma interessante Antropología
metafísica. Marías também faz uso da flecha (mas não a “flecha do tempo”) como
imagem da vida. É uma imagem justa, diz Marías, mas não completa; “[...] a rigor, é
todo o arco com sua tensão para trás, de onde a flecha recebe impulso, e o alvo para
o qual se oriente — o símbolo adequado da vida humana”. E prossegue:

Tomando-se, porém, esta imagem a sério, deve-se completá-la ainda


mais. Esse alvo, para que o seja, precisa ser procurado, e portanto é
sempre um entre vários possíveis; apontar é orientar-se para vários
pontos, para eles projetar-se, depois disparar em direção a um que só
tem sentido no contexto dos demais. A vida é, a rigor, um feixe ou
molho de flechas, cada uma das quais se orienta em uma direção,
sendo uma a privilegiada. Porém não basta: a vida não é um mero
acontecer [...] e sim um estar vivendo; um continuar apontando e
disparando; essas flechas vão saindo de uma aljava que em princípio
parece inesgotável, mas que não o é: não está esgotada, é em cada
24

instante inexausta, e por isso se apresenta como possibilidade.


(MARÍAS, 1971, p.90).

Esta vida como possibilidade é, para Ortega, a realidade radical. A realidade


radical que é a vida, a de cada qual. Esta frase está presente em praticamente todos
os escritos deixados pelo filósofo espanhol.
Paulino Garagorri, em Introducción a Ortega, ressalta:

para Ortega, a realidade radical que é a vida não se pode entender


de acordo com as prévias significações que ambos os vocábulos, vida
e humana, vinham carregando: nem esta vida é a que fala a biologia,
nem humana quer dizer uma ‘coisa’, uma substância fixa, estável e
dada, mas um ‘quehacer’. A forma primária do viver humano é
‘quehacer’ (GARAGORRI, 1970, p.69).

Entretanto, entender a vida humana como realidade radical não significa


entender a vida humana como absoluta realidade. Deixemos isso bastante claro.
Ortega não pretende simplesmente substituir a ideia de Natureza. O que afirma é que
toda realidade efetiva precisa se justificar na vida. Ou seja, trata-se de uma nova ideia
sobre o que se deve entender por Realidade.
A vida de cada um como realidade radical não significa entender a vida como
algo absoluto, nem como sendo a única realidade existente: significa compreender
que a vida é “la raíz de toda otra realidad” e que “em el acontecimiento vida le es dado
a cada cual, como presencia, anuncio o síntoma, toda otra realidad, incluso la que
pretenda trascenderla”.49 Tudo, pois, aparece na vida.
No mesmo sentido, José Luis Molinuevo observa que precisamos ter sempre em
mente que Ortega não concebe a vida como substância, no sentido cartesiano do
termo, como aquilo que não necessita de outra coisa para subsistir. Em Ortega, vida
é sempre “necessitada (necessita do outro para existir), generosa (é doação de si
mesma) e amorosa (um exercício constante de transmigração para o outro”
(MOLINUEVO, 2002, p.67).

49 ORTEGA, La idea de principio en Leibniz, VIII, p. 274.


25

Acertada é a conclusão de Garagorri em Introducción a Ortega, quando afirma


que “a ideia da vida como realidade radical e a ideia do conhecimento como função
interna da vida são as duas teses formais do pensamento orteguiano. Radicais e
esclarecedoras, trazem consigo uma reforma, não já da filosofia, mas do
conhecimento e, por último, da ideia da verdade ao advertir que ‘quanto hoje é
reconhecido como verdade... teve a seu tempo que estreitar-se e encolher-se para
passar pelo coração de um homem’; portanto, que a verdade não é utópica, senão
que sempre ‘verdade é o que agora é verdade’” (GARAGORRI, 1970, p.140).
Segundo Husserl, a vida não deve ser entendida em um sentido fisiológico, mas
como uma atividade que possui fins, que cria formas espirituais: “vida criadora de
cultura, em sentido mais amplo, numa unidade histórica” (HUSSERL, 2008, p.61).
Villacañas Berlanga aproxima o conceito vida, adotado por Husserl, da ideia de vida
em Ortega ao assinalar que:

a vida não se reduz ao eu e à imanência da consciência. Ao contrário,


nessa imanência da consciência se fazem presentes as coisas
transcendentes. Husserl não havia buscado nada diferente. A vida
seria a plataforma absoluta na qual eu e não eu se fazem presentes.
(in LASAGA MEDINA, 2007, p.174).

Contudo, veremos que o conceito de vida humana em Husserl não atinge a


profundidade atribuída por Ortega.50
Em um artigo de Álvaro Bastida Freijedo (in LLANO ALONSO, 2005, pp. 55-107),
encontramos um interessante esquema sobre o conceito de vida humana no
pensamento de Ortega y Gasset. Nele, Bastida Freijedo tenta demonstrar os
componentes originários e indispensáveis da vida humana, ou, com as palavras de
Ortega, as categorias da vida humana. Essas categorias formam um sistema aberto

50 Em 1935, ao tomar conhecimento da publicação das conferências de Praga na qual Husserl explica
a crise da razão como uma crise enraizada na modernidade, Ortega ratifica sua opinião sobre o estilo
intelectual de Husserl; porém, dirá que abandonou a fenomenologia no mesmo instante em que a
recebeu, porque “para que sea posible un pensar fenomenológico sistemático hay que partir de un
fenómeno que sea él por sí sistema. Este fenómeno sistemático es la vida humana y de su intuición y
análisis hay que partir” (La idea de principio en Leibniz, VIII, p. 273).
26

ao qual se podem agregar novos aspectos fundamentais, diferenciando-se, assim, de


outros sistemas de categorias, como os de Aristóteles e Kant.
As principais categorias são: a vida como presença, ou seja, eu me encontro
presente entre o que me circunstancia, e o que me circunstancia se encontra presente
ante mim; a vida como ‘quehacer’, o que significa que ao encontrar-me na vida sou
obrigado a fazer algo a todo momento para sustentar-me nela; a vida como projeto,
no qual o futuro é tão ou mais importante do que o presente e o passado; a vida como
problema,posto que viver é achar-me em uma total insegurança; a vida como
angústia, como “menesterosidad de pleno ser”51, sendo o náufrago a melhor das
metáforas52; a vida como forçosamente livre, enquanto somos livres para realizar um
dos “si mismo” que nos são possíveis na circunstância; a vida como preocupação,
porque a liberdade traz a responsabilidade de resolver o problema que é minha vida;
a vida como salvação,já que salvar minha vida supõe realizar minha vocação no meio
que é minha circunstância; e a vida como elegância, porque dentre as distintas
possibilidades de salvar-me existe aquela que se apresenta como ótima, a que melhor
se adequa à minha vocação. Salvar minha vida passa por conseguir eleger essa
possibilidade.
A vida nos é dada, porém não nos é dada feita, “sino que necessitamos
hacérnosla nosotros, cada cual la suya. La vida es quehacer.”53 Fazer a nossa vida
não significa que possamos fazer qualquer coisa que nos venha na mente. Como
adverte Jorge Acevedo, “sem considerar o contexto imediato destas frases — nem os
outros círculos de seu contexto ‘completo’ — ficaríamos na tentação de suspeitar que
o filósofo exagera desproporcionalmente uma característica humana.” (ACEVEDO,
1994, p. 57). A vida enquanto “quehacer” está constrangida por um sistema de
crenças.
Registramos anteriormente que precisamos nos manter na circunstância e, por
conseguinte, decidir o que fazer. O que fazemos agora vem determinado pelo porvir.
Do ponto de vista vital, o futuro vem antes do passado e do presente. “Lo decisivo no

51 ORTEGA, Una interpretación de la historia universal, IX, p. 213.


52 ORTEGA, II, p. 375; IV, p. 254; V, p. 60; VI, p. 477; VII, p. 417.
53 ORTEGA, El hombre y la gente, VII, p. 101.
27

es la suma de lo que hemos sido, sino lo que anhelamos: el apetito, el afán, la ilusión,
el deseo”.54
Não há contradição nisso, na convivência da determinação com a decisão,
escolha, liberdade. O que acontece é que o repertório de fatalidades do contorno
oferece, a cada instante, a possibilidade de que se faça isto ou aquilo, ou seja, o
próprio decidir exige a simultaneidade de limitação e liberdade. Onde houvesse pura
indeterminação, em que tudo fosse igualmente possível, o único impossível seria
decidir. A vida exige que eu trate com a circunstância para seguir vivendo. Dito de
outro modo, é a circunstância o conjunto de elementos determinados, portanto,
fechada; mas, ao mesmo tempo, com largueza interior, onde é possível o homem
mover-se. Conforme Ortega, “para sostenerse en esa circunstancia tiene que hacer
siempre algo — pero este quehacer no le es impuesto por la circunstancia, como al
gramófono le es impuesto el repertorio de sus discos o al astro la línea de su órbita”.55
Este caráter dinâmico da existência humana, esta vida como um “quehacer”, como
um “drama”, e não como coisa ou matéria ou substância acabada, aparece já com
firmeza em Pidiendo un Goethe desde dentro e, particularmente, em Historia como
Sistema. Sublinha Ortega:

Vivir es ser fuera de sí — realizarse — el programa vital que cada cual


es, irremediablemente, oprime la circunstancia para alojarse en ella;
esta unidad de dinamismo dramático entre ambos elementos — yo y
el mundo — es la vida.56

Tanto Ortega quanto Heidegger se afastam da dualidade sujeito-objeto,


característico da metafísica moderna. Se na escola racionalista temos a determinação
do sujeito sobre o objeto e na empirista o objeto como determinante, o Dasein significa
o eu dentro do mundo sendo obrigado a compreender-se. “Eu sou eu e minhas
circunstâncias”, sentencia Ortega.

54 ORTEGA, ¿Qué es filosofía?, VII, p. 435.


55 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 23.
56 ORTEGA, Goethe desde dentro, IV, p. 400.
28

O homem está obrigado a conviver com um mundo que não foi escolhido por
ele.57 Há nisso uma dimensão de fatalidade, porém há também uma dimensão de
possibilidades. A imagem do arco utilizada por Marías descreve perfeitamente essa
concepção de Ortega. “La vida es el ser indigente”58, escreve Ortega, cuja propriedade
originária, frisamos, é ter afazeres.
Como vimos, a estrutura fundamental da vida é individual e concreta, a vida de
cada qual, contudo Ortega apresenta outros dois níveis, o interindividual e o social.
Em La “filosofía de la historia” de Hegel y la historiología Ortega nos diz que “en el
convivir se completa el vivir del individuo; por tanto, se le toma en su verdad y no
abstraído, separado.”59 E mais adiante afirma:

Pero esta vida interindividual, y cada una de sus porciones


individuales, encuentra también ante sí un tercer personaje: la vida
anónima – ni individual ni interindividual –, sino estrictamente
colectiva, que envuelve a aquéllas y ejerce presiones de todo orden
sobre ellas. Es preciso, por tanto, trascender nuevamente y de la
perspectiva interindividual avanzar hacia un todo viviente más amplio
y que comprende lo individual y colectivo: la vida social.60

Outro aspecto da vida é ser pretensão. Ortega define a vida do homem como
uma pretensão que nunca será realizada. “El destino — el privilegio y el honor— del
hombre es no lograr nunca lo que se propone y ser pura pretensión, viviente utopía.
Para siempre hacia el fracaso, y antes de entrar en la pelea lleva ya herida la sien”.61
O homem, neste sentido, é um ser constitutivamente infeliz, que descobre o
mundo como hostilidade. “El ser básico del hombre es subsistente infelicidad. Es el
único ser constitutivamente infeliz y lo es porque está en un ámbito de existencia —
el mundo — que le es extraño y, últimamente, hostil”.62

57 O ponto de partida da filosofia de Merleau-Ponty é a relação do homem com esse mundo em que
“fomos lançados”.
58 ORTEGA, Historia como sistema, VI, p. 33.
59 ORTEGA, La “filosofía de la historia” de Hegel y la historiología, IV, p. 539.
60 ORTEGA, La “filosofía de la historia” de Hegel y la historiología, IV, p. 540.

61 ORTEGA, Ideas y creencias, V, p. 434.

62 ORTEGA, En torno al “coloquio de Darmstadt, 1951”, IX, p. 640.


29

Poderíamos, aqui, aproximar o pensamento de Ortega, neste assunto, do de


Heidegger63, que também entende o mundo contemporâneo como hostil para o
homem. Contudo, como ressalta Francisco José Martín, esta hostilidade, no
pensamento de Heidegger, implica um retorno à origem: “Trata-se de desandar o
caminho, de retornar àquele habitar originário que coloca o homem no centro da
‘quadratura’ como num templo sagrado em que se reúne à espera do acontecimento
revelador e salvador”. (MARTÍN, 1995, p.51). Já em Ortega y Gasset, esta hostilidade
originária encontra seu antídoto no futuro, no constante tener que hacer da vida do
homem: a obrigatoriedade de tratar com a circunstância, que significa, “un tener que
hacerse a sí mismo”. Esta nostalgia heideggeriana não existe em Ortega. Segundo
Martín, Ortega é um pensador laico, que conta com o passado, mas que em seu
pensamento não há nenhuma intenção de volta ao passado em termos negativos. Em
Ortega, o homem conta com o passado, mas com vistas no futuro, para dar conta de
realizar-se na novela de sua própria vida. O ser orteguiano não se encontra em uma
melancolia para o passado, mas em uma decisão para o futuro. “Ser não quer dizer
habitar, como Heidegger pensava, mas viver” (MARTÍN, 1995, p.52).
Seguindo essa aproximação entre os conceitos de ser e vida dos dois
pensadores, diz-nos Villacañas Berlanga que “a ideia de vida era mais profunda que
a ideia de ser. Esta é a chave da divergência entre Ortega e Heidegger. E era mais
profunda porque a vida não é ser” (in LASAGA MEDINA, 2007, p.170).
O próprio Ortega critica Heidegger quando este deixa de lado a pergunta pelo
significado de Ser assim que indagamos “o que é algo”. “La pregunta ¿qué es la luz?
implica que no sabemos lo que la luz es; pero a la vez implica que sabemos lo que es

63José Gaos entende que Heidegger fez Ortega redirecionar sua filosofia para seu verdadeiro sentido.
Do sentido “biológico”, presente em Meditaciones del Quijote, para o “vital” ou “biográfico” dos escritos
posteriores. Ortega nunca admitiu alguma influência de Heidegger em seu pensamento. Vale recordar,
também, que ambos, Ortega e Heidegger, foram influenciados por Dilthey e Nietzsche. E, de acordo
com Marías, já em Las Atlántidas, obra anterior a Ser e Tempo, Ortega havia buscado interpretar a vida
humana como biografia/biologia. O próprio Ortega, incomodado com as insinuações sobre a influência
do pensamento de Heidegger, escreve em 1933 (Goethe desde dentro, p. 403) uma extensa nota de
rodapé, onde se refere ao pensamento do filósofo alemão como formalmente inconcluso, e o seu como
inadequadamente desenvolvido em forma escrita. Em todo caso, Ortega nunca abandonou a ideia
nietzschiana de que o espírito se parece mais a um estômago. E ele próprio faz uma crítica a Heidegger
por colocar o Ser como o problema mais importante. Segundo Ortega, o correto seria perguntar: “o que
me pede o corpo?” — e, não, “o que me pede o ser?”.
30

el ser antes de saber lo que es cada cosa en cuanto que es”.64 A pergunta “o que é o
Ser?” não significa apenas quem é o Ser, mas, também, “qué es el Ser mismo como
predicado, sea quien quiera el que es o el ente”. Para Ortega, Heidegger insere o
Dasein entre os tipos de Ente que se propõe a classificar.65
Outra importante diferença entre o pensamento de Heidegger e o de Ortega se
encontra na concepção unilateral da vida, preconizada pelo filósofo alemão, e na
concepção multilateral da vida, postulada por Ortega. Para Ortega, a vida comporta
uma duplicidade, como, em toda empresa, dois ingredientes: “el apetito de ejecutarla
y el temor del peligro que ocasiona”.66 Assim, contra a concepção heideggeriana da
vida como angústia, inquietude e morte, entende Ortega a vida como angústia e
empresa, morte e deleite, inquietude e sossego. A cada sentimento de aprisionamento
que o homem vivencia, Ortega vincula o sentimento do esforço desportivo capaz de
elevá-lo e libertá-lo do peso que suporta nas costas. Não existe em Ortega nenhuma
utopia reconfortante. Não cabe ao homem esperar uma instância de salvação fora do
próprio homem. A razão de Ortega coloca o homem desse lado de cá, com os pés
bem firmes na terra, consciente das possibilidades e dificuldades que lhe oferece a
circunstância (MARTÍN, 1995, p.56).
A liberdade e responsabilidade que fazem parte da vida impõem a ela uma
característica constitutivamente moral. Para realizar-me preciso atender à minha
vocação; minha vida enquanto projeto só cobra sentido quando se comunica com
minha circunstância, a qual somente estará inteira se se completa no universo.
Circunstância e vocação exigem ser completadas. É minha responsabilidade aceitar
meu destino e integrá-lo, ou seja, salvá-lo (BASTIDA FREIJEDO, in LLANO ALONSO,
2005, p.85). O pensamento orteguiano de que Yo soy yo y mi circunstancia y si no la
salvo a ella, no me salvo yo, culmina em uma ética da vida humana. Por ser livre para
escolher, sou o responsável pela salvação de minha vida. Elegante, segundo Ortega,
é aquele que sabe escolher a melhor conduta, e elegante é esta própria conduta. A
ética da vida humana orteguiana exige que se atue com elegância.

64 ORTEGA, La idea de principio en Leibniz, VIII, p. 234.


65 ORTEGA, La idea de principio en Leibniz, VIII, p. 278.
66 ORTEGA, Notas del vago estío, II, p. 428.
31

Harold Raley aponta algumas diferenças fundamentais entre as ideias de Ortega


e as de Heidegger em Phenomenological life:

Provavelmente, quando um filósofo fala e escreve sobre a “vida”, a


“existência” e a “circunstância”, exceto em casos contados, qualquer
semelhança que guarde com o significado que Ortega imprime a esses
termos será totalmente circunstancial e absolutamente enganosa.
Inclusive a compreensão de Heidegger do termo Dasein e vida-no-
mundo não pode comparar-se com a elegante intuição que Ortega
possui da vida circunstancial [...] Enquanto em Heidegger nos é
permitida a certeza de que com independência do problema, esse
“esperará” docilmente enquanto trabalhamos com calma para resolvê-
lo, no caso de Ortega por vezes quase estamos convencidos de que
nossas vidas estão empenhadas em uma corrida dialética em direção
à claridade e de que em qualquer momento o mundo está disposto a
nos cortar o passo com perigos diversos. (in GRAY, 1994, p.51).

Para concluir esta abordagem de algumas diferenças entre o pensamento de


Heidegger e o de Ortega, recolhemos um fragmento em que Gadamer narra o
encontro entre os dois pensadores no congresso de Darmstadt, em 1951, que ele
presenciou:

Herr Heidegger, dizia Ortega, a filosofia tem relação com três coisas:
a primeira, com a sagacidade, que sem dúvida você possui; a
segunda, com a profundidade, que você é um mestre, mas, carece
completamente da terceira: ¡¡a dança!!”. Heidegger, um pouco
enfadado, lhe contestou: “E o que tem que ver a filosofia com a
dança?” Ortega, sorridente e burlão, lhe disse: “Mehr als Sie denken!,
Mehr als Sie denken! (Mais do que você pensa!)”. E Gadamer sorria
contando, dando-lhe razão a Ortega: não apenas a angústia, também
a atitude desportiva e alegre. (in LLANO ALONSO, 2005, p.409).
32

4 A DOUTRINA DO PONTO DE VISTA

O ponto de vista individual é o único a partir do qual se pode conhecer o mundo.


Com essa afirmação, Ortega busca superar tanto o racionalismo quanto o ceticismo.
Não considerar o ponto de vista do indivíduo, apesar de sua utilidade instrumental,
significa a impossibilidade de se ver o real. Nas palavras de Ortega, “desde distintos
puntos de vista, dos hombres miran el mismo paisaje”.67
Mas aceitar o ponto de vista individual significaria aceitar que as verdades são
falsificações da realidade? Não — nisso Ortega é categórico. O homem que conhece
nem é uma razão pura e invariável, nem sua apreensão da realidade deforma a
realidade apreendida. O homem que conhece tem a função de crivo, por ele o real é
retido em parte é ignorado ou despercebido todo o resto. Esse processo depende da
capacidade receptiva do observador, de suas circunstâncias. Não há que se falar em
falsificação da realidade, mas em seleção de aspectos do real. A perspectiva é um
dos componentes da realidade. Assinala Ortega:

De la infinitud de los elementos que integran la realidad, el individuo,


aparato receptor, deja pasar un cierto número de ellos, cuya forma y
contenido coinciden con las mallas de su retícula sensible. Las demás
cosas — fenómenos, hechos, verdades — quedan fuera, ignoradas,
no percibidas.68

Para Ortega, o processo de apreensão da realidade se assemelha ao processo


de apreensão das cores e sons. Cada observador, neste sentido, descobrirá certos
aspectos da realidade e terá uma ‘cegueira’ diante de outros. Diferentemente do
relativismo, segundo o qual um ponto de vista individual anula outro ponto de vista
individual, posto que dois observadores nunca se encontram localizados no mesmo
ponto, para Ortega a realidade será composta, em última instância, dos pontos de
vista individuais.69 De fato, para cada aparato receptor se apresentará uma paisagem,

67 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 199.


68 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 198.
69 Neste sentido, afirma Ortega que “si hay un ser o sujeto - no digo que exista, en el que se integraran

todas las verdades posibles y todas las facetas y haces que la realidad pueda tener, ese ser, principio
33

um aspecto do real, mas estes não são necessariamente antagônicos. Quanto mais
aspectos percebemos, mais próximos da realidade estaremos. Note-se, porém, que o
ponto de vista individual é parcial, mas não falso. Apenas em um Deus onipotente e
ubíquo seria possível uma verdade não localizada. 70 E mesmo assim, “su punto de
vista es el de cada uno de nosotros; nuestra verdad parcial es también verdad para
Dios”.71 Assim indaga Ortega: “¿Cuándo nos abriremos a la convicción de que el ser
definitivo del mundo ¿no es materia ni es alma, no es cosa alguna determinada, sino
una perspectiva?”.72
Durante o ano acadêmico de 1915-1916, Ortega se aprofundou em seu diálogo
com Husserl em um curso ministrado pelo Centro de Estudos Históricos de Madrid.
As quinze lições só foram publicadas em 1982 com o título Investigaciones
Psicológicas, escolhido por Paulino Garagorri. Nelas argumenta Ortega que a verdade
em si mesma não é relativa, que relativa é a parte da realidade percebida por cada
indivíduo, posto que “cada indivíduo é um órgão de percepção em algo distinto de
todos os demais, e como um tentáculo que chega a pedaços de Universo para o resto
secretos” (XII, p. 432).
Ainda ao criticar o relativismo, Ortega chama atenção para outro importante
fato no processo de conhecimento: o de que ponto de vista é direcionado para uma
determinada paisagem. Na teoria do ponto de vista temos o sujeito que busca
conhecer e o objeto que se organiza de uma determinada maneira, aparecendo para
o sujeito.73 Em O Ser e o Nada, Sartre afirma que “a aparência remete à série total
das aparências e não a uma realidade oculta que haja drenado para si todo o ser do
existente” (1972, p. 11), aproximando-se, assim, do pensamento de Ortega. A
aparência, neste sentido, não oculta o ser de um existente, não difere, enfim, da
essência.

integral de todas verdad, sería lo que llamamos Dios. En efecto, sólo en Dios, ente ideal hipotético que
ahora mentalmente construimos, tendrá sentido suponer la integridad de la verdad”.
70 Mais adiante veremos a importância do conceito de sinceridade em Ortega y Gasset.
71 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 202.

72 ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 321.

73 ORTEGA, El sentido histórico de la teoría de Einstein, III, p.236.


34

Cada ponto de vista está condicionado ao modo como a realidade se apresenta


para o observador. Não podemos ver o que queremos ver, nem fingir ver uma
realidade que não se mostra. Esse é o alerta de Ortega. O processo de conhecer a
realidade depende tanto da sensibilidade do observador quanto da organização da
realidade.
Por volta de 1950, Ortega acreditava que convinha afastar da terminologia
filosófica o vocábulo ‘ideia’, segundo ele, em último grau de degeneração e
envilecimento, pelo vocábulo ‘aspecto’. “Porque, en efecto, pertenece a la Realidad
tener ‘aspectos’, ‘respectos’ y, en general, ‘perspectiva’, ya que pertenece a la realidad
que el hombre esté ante ella y la vea. Casi son equivalentes los términos perspectiva
y conocimiento”.74 Conhecer, neste sentido, significa reunir perspectivas.
Interpretamos a realidade, mas estamos submetidos à maneira como a
realidade se nos mostra, que é sempre fragmentada, razão pela qual apenas temos
dela alguns aspectos. Com efeito, as perspectivas da realidade variam quando em
diferentes pontos estão situados os videntes, variam as perspectivas quando em
diferentes momentos históricos tentamos perceber seus aspectos. A cada momento
histórico só nos é permitido ver dela uma pequena porção. A que nos cabe agora é
distinta da porção que coube ser vista por gerações anteriores, assim como distinta
será a que caberá às gerações vindouras.
Ademais, ante a realidade se encontra o homem, que a interpreta ou traduz. O
homem maneja os aspectos que a realidade lhe oferece de acordo com sua
sensibilidade e, segundo a qual, algumas vistas o preocuparão mais que outras.
Ortega definirá o homem como um ser cuja realidade primária e mais decisiva consiste
em ocupar-se de seu futuro, ocupar-se antecipadamente com o que ainda não é. Toda
a vida humana é, em princípio e fundamentalmente, preocupação. Ocorre que a
sensibilidade do homem varia em cada época, e, assim, variam suas preocupações.
Em cada época preocupam mais determinados assuntos, é concedida importância a
certa gama de problemas que foram total ou parcialmente desatendidos por uma
época pretérita. Por outro lado, alguns problemas são completamente esquecidos ou

74 ORTEGA, Origen y epílogo de la filosofía, IX, p. 371.


35

relegados a um plano secundário. A vida, reitera Ortega, é sempre preocupação,


contudo a cada momento histórico toca preocuparmo-nos mais com determinadas
coisas em detrimento de outras.
A cada época corresponde uma série de evidências que estão concordes com
o espírito dessa época. A realidade responde a um sujeito, e responde de acordo com
a situação do contemplador, com a posição em que este se encontra ao contemplar a
realidade. Ou seja, de determinado ponto na história e geografia do mundo. A
aparência seria, neste sentido, uma qualidade objetiva do real.
Cada povo e época possuem uma sensibilidade que lhes é comum, da qual não
devem fugir caso queiram estar de acordo com o mundo. São nossas circunstâncias
parte de nosso ser, e é com elas, ou através delas, que nos colocamos ante o mundo.
A verdade depende do ponto em que se encontra o observador, depende das
circunstâncias em que este está posicionado. Se nos encontramos em distintos pontos
de vista, veremos distintos aspectos da realidade. E quanto maior for o número de
aspectos percebidos pelo investigador, mais próxima será a identidade entre a sua
teoria e a realidade autêntica. Assim, nossa sensibilidade guiará nossa visão do
mundo, nossas circunstâncias conformam nossa hierarquia de valores. Uma de
nossas circunstâncias é a sociedade em que nos tocou nascer, com todo o seu acervo
de crenças estabelecidas. Somos nossas próprias crenças, observa Ortega
repetidamente.
Como vimos, a realidade se organiza de tal maneira que uma paisagem pode
se apresentar mais próxima para determinado observador e mais distante para outro,
de acordo com os conceitos de presença, compresença e latência demonstrados
anteriormente. A verdade alcançada por cada observador é absoluta, sem ser
necessariamente a mesma. “Cada vida es un punto de vista sobre el universo”75,
escreve Ortega. Por isso, o fator vital é um componente essencial do conhecimento.
Também Nietzsche nega a possibilidade da existência de um ponto de vista
absoluto, por ser a verdade relativa, histórica e depender do ponto de vista do sujeito.
Contudo, Nietzsche concebe essa situação como uma luta entre os pontos de vista

75 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 200.


36

divergentes, enquanto Ortega aceita a possibilidade de pontos de vista diferentes, os


quais são sempre complementares. Note-se que o vitalismo orteguiano nada tem de
idealismo.
Cumpre aqui observar que, apesar de influenciado pela ideia nietzscheana de
perspectivismo, Ortega dela se distancia ao afirmar que o fator vital não se deve a
uma utilidade biológica. Inclusive, buscando esclarecer o seu ponto de vista, Ortega
vai abandonar os termos vital e biologia e passará a utilizar, em seu lugar, histórico e
biografia. De acordo com Julián Marías, “Nietzsche interpreta o conhecimento do
ponto de vista da utilidade vital — quase sempre entendida biologicamente — e por
isso, seu perspectivismo tende a anular a diferença entre a verdade e o erro, a colocar-
se Jenseits von wahr und falsch. Verdade é para ele o tipo de erro sem o qual não
poderia viver uma determinada espécie de seres vivos. E a oposição entre o mundo
verdadeiro e o aparente é reduzida por ele a relações de valor” (1967, p. 215).
O seguinte fragmento, extraído de ¿Qué es filosofía?, demonstra essa ruptura
com o idealismo subjetivista:

El mundo no es una realidad subsistente en sí con independencia de


mí — sino lo que es para mí o ante mí y, por lo pronto, nada más.
Hasta aquí marchamos con el idealismo. Pero agregamos: como el
mundo es sólo lo que me parece que es, será sólo ser aparente y no
hay razón ninguna que obligue a buscarle una substancia tras de esa
apariencia — ni a buscarla en un cosmos sub-stante, como los
antiguos, ni a hacer de mí mismo substancia que lleve sobre sí, como
contenidos suyos o representaciones, las cosas que veo y toco y huelo
e imagino… Sin objetos no hay sujeto. El error del idealismo fue
convertirse en subjetivismo, en subrayar la dependencia en que las
cosas están de que yo las piense, de mi subjetividad, pero no advertir
que mi subjetividad depende también de que existan objetos… Lejos
de ser el yo lo cerrado es el ser abierto por excelencia… La verdad es
que existo yo con mi mundo y en mi mundo — y yo consisto en
ocuparme con ese mi mundo, en verlo, imaginarlo, pensarlo, amarlo,
odiarlo, estar triste o alegre en él y por él, moverme en él, transformarlo
y sufrirlo…Pero ¿qué es esto? ¿Con qué hemos topado
indeliberadamente? Eso, ese hecho radical de alguien que ve y ama y
odia y quiere un mundo y en él se mueve y por él sufre y en él se
esfuerza — es lo que desde siempre se llama en el más humilde y
universal vocabulario «mi vida»… Se acabaron las abstracciones. Al
buscar el hecho indubitable no me encuentro con la cosa genérica
37

pensamiento, sino con esto: yo que pienso en el hecho radical, yo que


ahora filosofo.76

O perspectivismo orteguiano, ao mesmo tempo que refuta as noções absolutas,


defende a objetividade. Ortega abandona o idealismo, mas defende a ideia de que a
verdade é possível ao homem, rejeitando, assim, o ceticismo e o relativismo. O ponto
de vista individual não deforma a realidade, como pensava Nietzsche. Simplesmente
cada ponto de vista individual seleciona um aspecto da realidade. A perspectiva é um
dos componentes da realidade, é, ao contrário do que pensava Nietzsche, sua
organização.
A verdade é, assim, parcial, relativa ao ponto de vista, mas também objetiva.
Portanto, a doutrina de Ortega não descarta completamente o conceito de
permanência, como a doutrina nietzscheana. Para Ortega, existe uma realidade
objetiva (ou cosmos) da qual podemos conhecer os aspectos, extrair verdades
universais, mesmo que não sejam permanentes. A perspectiva não é o conhecimento:
“é” o ser definitivo do mundo. A relatividade está no sujeito cognoscente, visto que
este singular aparato de percepção (que é a vida de cada qual) está situado em um
determinado ponto de observação. Todo conhecimento é perspectivista. E aqui nos
encontramos distantes de qualquer subjetivismo, de qualquer redução do real ao
sujeito cognoscente.77
Pois bem, a realidade se constitui por uma infinidade de perspectivas e, como
postula Ortega, cada indivíduo é um ponto de vista sobre o universo. Neste sentido, a
soma organizada das perspectivas individuais é a tarefa essencial de quem se propõe
a conhecer a realidade. Não é possível construir uma teoria do real abstendo-se do
ponto de vista individual. A vida de cada qual é a realidade radical. Assim, assinala
Ortega,

somos insustituibles, somos necesarios [...] Dentro de la humanidad


cada raza, dentro de cada raza cada individuo es un órgano de

76ORTEGA, ¿Qué es filosofía?, VII, p. 404/405.


77Ortega define subjetivismo (relativismo) “a toda teoría del conocimiento donde el carácter de verdad
se hace dependiente, en una forma o en otra, de la constitución del sujeto que conoce” (VII, p. 506).
38

percepción distinto de todos los demás y como un tentáculo que llega


a trozos de universo para los otros inasequibles.78

“Es la cosa el maestro del hombre”.79 Quando observamos uma laranja, diz
Ortega, não há dúvida de que ela é a causa de que passemos de um aspecto a outro;
porém, devemos ter em conta que isto se dá porque, em cada momento, apenas
podemos ver dessa laranja um ponto de vista e somos impelidos a girá-la para
conseguir ter dela uma ideia mais completa. Em cada momento temos da realidade
um certo número de ‘aspectos da coisa’ que se vão acumulando. Assim, a realidade
radical que é a vida não consiste em ‘consciência’, mas sim “em uma radical dualidade
unitária, que é o diálogo dinâmico entre eu e as circunstâncias” (ORTEGA, 1967, p.
43). Entenderemos melhor a relação de Ortega com a realidade neste fragmento:

El ‘aspecto’ pertenece a la cosa, es — si queremos decirlo crudamente


— un pedazo de la cosa. Pero no es solo de la cosa: no hay ‘aspecto’
si alguien no mira. Es, pues, respuesta de la cosa a un mirarla.
Colabora en ella el mirar porque es este quien hace que en la cosa
broten ‘aspectos’, y como ese mirar tiene en cada caso una índole
peculiar — por lo pronto mira en cada caso desde un punto de vista
determinado —, el ‘aspecto’ de la cosa es inseparable del vidente. Más
como, al fin y al cabo, es siempre la cosa quien se manifiesta a un
punto de vista en alguno de sus aspectos, estos le pertenecen y no
son ‘subjetivos’. De otra parte, dado que son sólo respuestas a la
pregunta que todo mirar ejecuta, a una inspección determinada, no
son la cosa misma, sino sólo sus ‘aspectos’. El ‘aspecto’ es la ‘cara
que nos pone’ la realidad. La pone ella pero nos la pone a nosotros.80

A realidade é sempre “realidade-para”.81 Isto não quer dizer que existam várias
realidades. A realidade é única. Ocorre que a percepção da realidade depende dos

78 ORTEGA, Verdad y perspectiva, II, p. 19.


79 ORTEGA, Origen y epílogo de la filosofía, IX, p. 368.
80 ORTEGA, Origen y epílogo de la filosofía, IX, p. 370.
81 Em um artigo intitulado Las creencias en la vida humana, José Lasaga Medina afirma que “o que há

consiste (ou se dá) não como substância, mas como acontecimento. Não cabe, pois, falar de
realidades-em-si, mas de realidades-para. A realidade se manifesta como relação; contudo não como
relação a um sujeito cognoscente, como acreditou Kant, mas como interação executiva entre um eu e
sua circunstância” (1994, p. 209). Nossa relação primária com as coisas se dá numa relação de contar
com, “nosso trato com os utensílios do mundo, conste, não é primariamente cognoscitivo”. Neste
sentido, adverte Ortega, “‘cosas’ significa en la lengua actual todo algo que tiene por sí y en sí su ser,
por tanto, que es con independencia de nosotros. Mas los componentes del mundo vital son sólo los
39

aparatos utilizados para conhecê-la. Hoje temos conhecimento da existência de


partículas subatômicas, o que nos faz ver a realidade de uma maneira impensável
para um grego clássico e, possivelmente, daqui a 500 anos se verá o mundo de uma
forma completamente distinta da nossa. A compreensão da realidade depende dos
mecanismos utilizados para conhecê-la.
Nem racionalismo, nem subjetivismo. Nem há uma perspectiva absoluta,
utópica, como pensavam os racionalistas, nem o ponto de vista do indivíduo é falso,
como se posicionaram os subjetivistas. Não é possível atribuir à realidade a
característica de imutável, nem afirmar que a realidade é fruto de capricho. A realidade
se mostra em perspectivas que só podem ser consideradas do ponto de vista de um
indivíduo. Cada indivíduo possui algo de verdade. Neste sentido afirma Ortega que a
verdade é histórica.

que son para y en mi vida no para sí y en sí. Son sólo en cuanto facilidades y dificultades, ventajas y
desventajas, para que el yo, que es cada cual, logre ser; son, pues, en efecto, instrumentos útiles,
enseres, medios que me sirven - su ser es un ser para mis finalidades, aspiraciones, necesidades, o
bien son como estorbos, faltas, trabas, limitaciones, privaciones, tropiezos, obstrucciones, escollos,
rémoras, obstáculos que todas esas realidades pragmáticas resultan, u por motivos que veremos,
siendo ‘cosas’ sensu stricto, es algo que viene después, algo secundario y en todo caso muy
cuestionable” (El hombre y la gente, VII, p. 117).
40

5 SOBRE A RAZÃO HISTÓRICA

Segundo Nietzsche, tudo está transpassado por interpretações, e são nossas


necessidades as que interpretam o mundo. Assim, devemos pensar a partir do corpo,
mais precisamente, do estômago, pois, de acordo com o autor de Assim falou
Zaratustra, o espírito se assemelha a um estômago. Nessa mesma linha encontramos
o pensamento de Ortega sobre a verdade, a qual é uma resposta a um problema que
devemos solucionar. Essa resposta, porém, depende de quanto pode processar o
nosso estômago. A vida espiritual toma, assim, um formato mais visceral. Ortega
difere, pois, de Heidegger. Enquanto para este o ser é o problema mais importante,
para Ortega o que mais importa é saber: “o que me pede o corpo?”.
Ortega entende a modernidade como época da vigência do racionalismo. 82 A
“sensibilid vital” própria da modernidade radica na “suspicacia y el desdén por todo lo
espontáneo e inmediato. Entusiasmo por toda construcción racional”.83 A verdade do
mundo se fundamenta em um “yo que piensa conforme la ley universal del pensar”. E
assim,

Más hondamente fluye desde el Renacimiento por los senos del alma
europea la tendencia antagónica [ao relativismo]: el racionalismo.
Siguiendo un procedimiento inverso, el racionalismo, para salvar la
verdad, renuncia a la vida. […] Siendo la verdad una, absoluta e
invariable, no puede ser atribuida a nuestras personas individuales,
corruptibles y mudadizas. Habrá que suponer, más allá de las

82 Anthony Giddens e Philip W. Sutton definem a modernidade como “período que se estende do
Iluminismo europeu de meados do século XVIII a, pelo menos, meados dos anos 1980, caracterizado
pela secularização, racionalização, democratização, individualização e ascensão da ciência”
(GIDDENS, 2015, p. 22). Segundo Toulmin, “dizer que todos os problemas verdadeiramente filosóficos
devem enunciar-se com independência de qualquer situação histórica concreta e resolver-se com
métodos igualmente isentos de toda referência contextual, é precisamente uma das pretensões
racionalistas que melhor caracterizam a filosofia moderna entre 1640 e 1950” (1990, p. 67). Mesmo
reconhecendo uma outra filosofia moderna, anticartesiana, encarnada em figuras como Voltaire ou
Vico, as principais características da modernidade apontadas por Ortega são a crença na ciência e a
crença no progresso. Assim, ensina Morón Arroyo, já em El tema de nuestro tiempo Ortega caracteriza
a época moderna como a época da razão pura. Em suma, Ortega aponta como pontos fundamentais
da modernidade: o triunfo das ciências exatas, em particular a matemática e a física, como modelos
epistemológicos mais perfeitos; a separação entre o âmbito da natureza e o âmbito da cultura, onde “la
cultura es siempre la negación de la naturaleza, y como en el hombre a lo natural llamamos espontáneo,
tendremos que definir la cultura como la negación de lo espontáneo” (II, p. 46); o triunfo da idéia da
consciência como fato primário do Universo, o que implica na tese idealista da redução do real ao ideal;
e, como vimos, a fé no progresso.
83 ORTEGA, El tema de nuestro tempo, III, p. 161.
41

diferencias que entre los hombres existen, un especie de sujeto


abstracto, común al europeo y al chino, al contemporáneo de Pericles
y al caballero de Luis XIV. Descartes llamó a ese nuestro fondo común,
exento de variaciones y peculiaridades individuales “la razón”, y Kant,
“el ente racional”.84

Mas a razão que opera negando a historicidade constitutiva da vida — e em


negligência para com as exigências próprias que ela reclama — é uma razão
alienante. “La pura intelección o razón no es otra cosa que nuestro entendimiento
funcionando en el vacío, sin traba alguna, atenido a sí mismo y dirigido por sus propias
normas internas”. A ideia como correção da perspectiva individual esqueceu de sua
função corretiva e ousou idealizar um mundo abstendo-se da perspectiva individual.
Neste sentido, durante a modernidade, “se creyó que con la razón se podía suplantar
a la naturaleza creando de nuevo el mundo según conceptos puros, se creyó sobre
todo que podía forjarse more geométrico la sociedad humana”. Mas ocorre que a
razão deve estar sempre a serviço das urgências da vida. Os conceitos são
instrumentos que não se prestam a substituir a espontaneidade vital, mas assegurá-
la. A função da razão é servir como órgão que possibilita uma vida em plenitude, que
garante a claridade sobre uma circunstância sempre problemática. “Claridad no es
vida, recorda Ortega, pero es plenitud de la vida”.85 A vida em plenitude só se faz
possível por meio da cultura86, porém, adverte Ortega, não devemos esquecer que a
cultura tem que ser vital. Nem vitalismo, nem racionalismo,

la nota esencial de la nueva sensibilidad es precisamente la decisión


de no olvidar nunca y en ningún orden que las funciones espirituales
o de la cultura son también, y a la vez que eso, funciones biológicas.
Por tanto, que la cultura no puede ser regida exclusivamente por sus
leys objetivas o transvitales, sino que, a la vez, está sometida a las
leyes de la vida [...] Se trata, pues, de dos instancias que mutuamente
se regulan y corrigen. Cualquier desequilibrio a favor de una o de otra
trae consigo irremediablemente una degeneración. La vida inculta es
barbarie; la cultura desvitalizada es bizantismo.87

84 ORTEGA, El tema de nuestro tempo, III, p. 158.


85 ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 358.
86 Para Ortega “toda cultura es un movimiento natatorio para intentar salvarse, porque uno siente

ahogarse” (En torno a Galileo, V, p. 122)


87 ORTEGA, El tema de nuestro tempo, III, p. 169.
42

Longe desses dois extremos, a missão da nova razão passa por colocar a
cultura na sua genuína função, que é a de servir a vida.
Ortega reconhece que a razão histórica está relacionada à, ao menos, três
contribuições estabelecidas por Dilthey. “Primero: estado de ‘conciencia histórica’,
averiguación de que todo lo humano es relativo a un tiempo, salvo el hecho mismo de
la existencia de lo humano. Segundo: necesidad consecuente de fundar esa
conciencia histórica, es decir, esa única afirmación que parece quedar en pie cuando
las demás sucumben: que el hombre es relatividad, historicidad. Tercero: postulación
de una ciencia de lo humano como tal que al ser la disciplina fundamental y quien
propiamente conoce la única realidad salvada del naufragio — el hombre —, será lo
que se ha pretendido siempre con el nombre de filosofía.”88
Com isso, Dilthey consegue redirecionar a preocupação da filosofia para o
problema que é o homem. A partir desse novo redirecionamento se fazia necessário
descobrir uma nova razão — o que Dilthey não conseguiu desenvolver em seu
pensamento –, capaz de compreender o problema da vida humana. Assim dirá
Ortega: “La filosofía es un hecho humano, y hemos visto que para Dilthey — esa es
su genialidad y su limitación — el hombre no tiene una ‘naturaleza’, un modo de ser
único e invariable en su última contextura, como creía aún el siglo XVIII, sino solo tiene
historia.”89
O ser do homem, como vimos, não pode ser compreendido como algo que se
remete ao estático. É preciso compreender que a realidade ‘homem’ consiste em ser
puro dinamismo, sempre diferente de si mesma. Para Ortega, a exuberância que a
ciência físico-matemática representa como conhecimento contrasta com a sua
deficiência diante do que é propriamente humano; buscou uma natureza estática do
homem, mas nunca encontrou, pelo simples fato de que “el hombre no tiene
naturaleza sino que tiene... historia. O, lo que es igual: lo que la naturaleza es a las
cosas, es la historia — como res gestae — al hombre”.90

88 ORTEGA, Guillermo Dilthey y la Idea de vida, VI, p. 196.


89 ORTEGA, Guillermo Dilthey y la Idea de vida, VI, p. 198.
90 ORTEGA, Historia como sistema, VI, p. 41.
43

Essa ideia provoca a necessidade de reformulação do problema do


conhecimento. A razão, enquanto veículo fundamental do conhecimento, se encontrou
sempre entre duas correntes contraditórias — o racionalismo, que aceita a ideia da
realidade em constante alteração, porém entende a verdade como una e invariável,
reflexo fiel das coisas; e o ceticismo, que, diante do multiforme desenvolvimento da
vida humana, compreende como impossível a tarefa de se conhecer a verdade, sendo
sempre uma verdade para cada caso particular. Em ambas as teorias — racionalismo
e ceticismo —, observa Ortega, adota-se a premissa de que o ponto de vista do
indivíduo é falso. Nas palavras do pensador espanhol:

La historia de la ciencia del conocimiento nos muestra que la lógica,


oscilando entre el escepticismo y el dogmatismo, ha solido partir
siempre de esta errónea creencia: el punto de vista del individuo es
falso. De aquí emanaban las dos opiniones contrapuestas: es así que
no hay más punto de vista que el individual, luego no existe la verdad
— escepticismo; es así que la verdad existe, luego ha de tomarse un
punto de vista sobreindividual — racionalismo.91

Ortega y Gasset iguala racionalismo e ceticismo como decorrência de uma


mesma crença, a de que o ponto de vista do indivíduo é falso. Sua teoria, com efeito,
difere radicalmente das teorias mais influentes da modernidade justamente por
postular que o mais importante é o ponto de vista individual.
No curso do pensamento orteguiano, o racionalismo falha ao postular que a
realidade possui uma ‘fisionomia’ própria, independentemente do ponto de vista do
observador. Não sendo fiel ao ponto de vista transforma-se em uma verdade utópica.
Para Ortega, a utopia é o falso, “la verdad no localizada, vista desde lugar ninguno”.92
A razão pura, fiel às suas regras internas, reveste-se de uma exatidão e rigor sublimes,
à custa de afastar-se das próprias coisas que investiga. Ortega cita a matemática
como exemplo de uma ciência que conta apenas consigo mesma, abstendo-se de
contemplações e, deste modo, sendo incorruptível e universal. O triângulo ou a reta

91 ORTEGA, Verdad y perspectiva, II, p. 18.


92 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 200.
44

são objetos ideais, fixos. O matemático primeiro define o número para depois elaborar
seus teoremas, diz Ortega. Eis o que argumenta:

Todas las ciencias particulares empiezan por acotar un trozo del


universo, por limitar su problema, que al ser limitado deja de ser un
problema. Dicho de otra forma: el físico y el matemático conocen de
antemano la extensión y atributos esenciales de su objeto; por tanto,
comienzan no con un problema, sino con algo que dan o toman por
sabido.93

O ponto fundamental da crítica de Ortega ao racionalismo é sobre a crença na


identidade do pensamento com a realidade, ou seja, a realidade consiste em matéria
racional e o pensamento tem a capacidade de abarcar a realidade plenamente. 94 No
entendimento do sistema cartesiano, afirma Ortega,

si no fuera por los pecados de la voluntad, ya el primer hombre habría


descubierto todas las verdades que le son asequibles, no habría
habido, por tanto, variedad de opiniones, de leyes, de costumbres, en
suma, no habría habido historia.95

Assim, dirá Ortega, a razão físico-matemática é ineficiente para a apreensão


dos problemas da vida humana, porque não se presta a apreender uma realidade em
sua ‘manifestação plena’, em seu movimento. Neste sentido, “desde el punto de vista
del racionalismo, la historia, con sus incesantes peripecias, carece de sentido y es
propiamente la historia de los estorbos puestos a la razón para manifestarse. El
racionalismo es antihistórico”.96
Diz então Ortega que, através do processo de dedução da razão físico-
matemática, chegar-se-á a um ponto que não se poderá ultrapassar racionalmente,
provocando uma antinomia da razão. Ou a dedução racional levará a uma redução ao
incognoscível, ou a uma região delimitada pelos elementos últimos, que são

93 ORTEGA, ¿Qué es filosofía?, VII, p.308.


94 Este trabalho não tem por escopo entrar no debate acerca da interpretação sobre o racionalismo.
Aqui adotamos uma das inúmeras interpretações, aquela compartilhada por Ortega. O que buscamos
é demonstrar por que Ortega criticava tanto Descartes, quais as ideias que o filósofo espanhol
combatia.
95 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 159.

96 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 159.


45

irracionais.97 O que significa dizer que o exercício da razão necessita apoiar-se em


elementos não racionais. Segundo Ortega,

La idea racional es la idea “distinta” frente a la “confusa”. Distinta es la


idea que podemos anatomizar en todos sus componentes internos, y,
por tanto, penetramos por completo. Al distender los poros de la idea
compleja penetra entre ellos nuestro intelecto y la hace transparente.
Esa transparencia cristalina es el síntoma de lo racional. Pero los
poros se hallan entre los elementos o los átomos de la idea; sobre ellos
rebota nuestra intelección y, exentos de intersticios, no los puede a su
vez penetrar. Leibniz no tiene otro remedio que aceptar lo que más
dolor podía ocasionarle: que la definición o razón descansa a la postre
en simple intuición, que la actividad directriz y analítica termina en
quietud intuitiva. El racionalista quisiera que toda cosa fuese conocida
por otra (su “razón”); pero es el caso que las últimas cosas sólo se
conocen por sí mismas, por tanto, irracionalmente, y que de este saber
intuitivo e irracional depende, a la postre, el racional. En última
instancia, la razón sirve sólo para reducir las cuestiones complejas a
otras tan simples que sólo cabe decir al que disputa: abra usted los
ojos y vea lo que tiene delante. Si nihil per se concipitur nihil omnino
percipietur. Si nada es concebible por sí, nada sería percibido o
conocido. Ahora bien, la intuición es ilógica, irracional, puesto que
excluye la prueba o razón […] Esto es lo que hace inadmisible el
racionalismo para todo espíritu severo y veraz. Siempre acaba por
descubrirse en él su carácter utópico, irrealizable, pretensioso y
simplista”.98

No final das contas, argumenta Ortega, a razão pura se constitui numa crença
e, por esse motivo, teve o vigor de concorrer à crença religiosa anteriormente
vigente.99
Recordemos que, para Ortega, a vida é entendida como “diálogo dinâmico
entre o indivíduo e o mundo, como confronto do eu e sua circunstância”. Este modo
de pensar a vida é similar ao modo do pensar heideggeriano. 100 De acordo com

97 ORTEGA, Ni vitalismo ni racionalismo, III, p. 274.


98 ORTEGA, Ni vitalismo ni racionalismo, III, p. 275.
99 ORTEGA, Historia como sistema, VI, p. 46.

100 Segundo José Gaos, “entre 1928 e 1932 se desenvolve a influência mais decisiva na obra de Ortega:

a de Heidegger. O que o faz passar do puro historicismo das Atlántidas ao biografismo raciohistoricista,
e o faz interpretar no sentido deste o anterior biologismo raciovitalista” (GAOS, 1992). Recordemos que
Julián Marías é terminantemente contra esse ataque de Gaos, pois afirma que, já em 1910, Ortega
havia se instalado nas bases decisivas de seu pensamento, reagindo ao idealismo. Assim, entende
Marías que a evolução da obra de Ortega deve ser entendida como um desenvolvimento linear de uma
46

Heidegger existe uma “diferença ontológica” entre Ser e Ente. O ser não pode ser
entendido como referente às representações do sujeito ou da coisa. Para Heidegger,
devemos entender o ser como um “horizonte significativo”, pelo qual todo ente, toda
realidade é vista. Ser não significa a essência ou a existência da coisa. Heidegger
pensa o ser como manifestabilidade, como aquilo que aparece. “A essência do ser-aí
radica em sua existência.” (HEIDEGGER, 2005, p. 42). É enquanto realização de seu
ser, processo que funde num mesmo momento uma relação ontológica e uma
autocompreensão.
Heidegger critica Descartes por não ter buscado esclarecer o “sentido de ser”
quando digo “sou”, identificando-o com o conceito de substância. E critica Husserl por
não se ater à intencionalidade do “sentido de ser”. Também Ortega culpa Descartes
por haver colocado a filosofia em um caminho equivocado quando dividiu o mundo em
objeto pensante e objeto com extensão, retirando a possibilidade de compreender a
realidade como interação entre eu e circunstância.
Para Descartes, o Ser é algo relativo ao Pensar; contudo, e aqui encontramos
a principal crítica de Ortega ao idealismo101, o próprio Pensar é algo relativo à vida

intuição primeira: a intuição orteguiana antecipa em vinte anos o pensamento de Heidegger. (MARÍAS,
1959).
101 Em seu dicionário de filosofia, Ferrater Mora define idealismo como “toda doutrina – e toda atitude

– segundo a qual o mais fundamental, e aquilo pelo qual se supõe que devem reger-se as ações
humanas são os ideais – realizáveis ou não, mas quase sempre imagináveis como realizáveis [...] A
ação mais fundamental do idealismo é tomar como ponto de partida para a reflexão filosófica não ‘o
mundo em torno’, ou as chamadas ‘coisas exteriores’ (o mundo exterior), mas o que chamaremos eu,
sujeito ou consciência. Justamente porque o eu é fundamentalmente ideador, quer dizer,
representativo, o vocábulo idealismo torna-se totalmente justificado. Considerando o idealismo com
particularmente o idealismo moderno, e tendo em conta que o ponto de partida do pensamento idealista
é o sujeito, pode dizer-se que tal idealismo constitui um esforço para responder à pergunta: ‘como
podem conhecer-se, em geral, as coisas?’ Para o idealismo, ser significa primariamente ‘ser dado na
consciência’, ‘ser contido na consciência’. O idealismo é, assim, um modo de compreender o ser. Em
um curso de filosofia ministrado entre 19221 e 1922, apenas publicado em suas Obras completas (VII,
p. 767), ensina Ortega: “Como ven ustedes, la teoría idealista del conocimiento, que, en una u otro
forma, ha imperado en el mundo intelectual desde el Renacimiento hasta hoy, encuentra que el sujeto
no puede reglar, medir su pensamiento con una realidad trascendente, independiente de éste, por la
sencilla razón de que esa realidad no existe. Más rigurosamente dicho: la realidad trascendente es,
cuando más, problemática, y por tanto no puede el conocimiento, al construir su propia teoría y justificar
la pretensión de rigor en él ínsita, no puede afirmarla y estatuirla. La única objetividad segura con que
el conocimiento cuenta es la de los contenidos de conciencia. Esto es lo único que, en efecto, halla el
conocimiento previamente a su operar, lo único que es dado a él, puesto, positivo. Lo demás es
añadido, supuesto, problemático por tanto. A esta forzosidad que surge para el conocimiento riguroso
de no contar con más entidades, con más realidad, con más ser que los contenidos se ha llamado
principio de la inmanencia o de la fenomenalidad, según el cual ‘lo que para mí existe, está bajo l asuma
47

humana. Nem Ser nem Pensar são a autêntica realidade. Como vimos, a realidade
radical é a vida de cada um. “Detrás del pensamiento está nuestra simple, concreta y
dramática vida, la de cada cual, que nos obliga a pensar y teorizar”. 102 A crítica de
Ortega a Descartes — e consequentemente à fenomenologia de Husserl, que
considerava como uma forma “ultradepurada” do idealismo — se concentra na
necessidade da intermediação da consciência entre o eu que conhece e o mundo.
Para que o idealismo faça sentido, afirma Ortega, é preciso que o pensamento se
pense a si próprio. No entanto, a consciência não possui um ser objetivo, é pura
transitividade.
Lembremos ainda que, para Ortega, o Ser das coisas é “posto” pelo homem
quando este já não pode “contar com” elas espontaneamente, passando a “reparar
em”, a perguntar por elas. É nesse instante que as coisas começam a ter um ser. Em
1953 explica que o Ser, mais que um problema, era a solução encontrada.103
Compreender que a vida é a realidade radical e a razão deve servir à vida, esse
é o alerta de Ortega:

No existo porque pienso, sino al revés: pienso porque existo. El


pensamiento no es la realidad única y primaria, sino al revés, el
pensamiento, la inteligencia, son una de las reacciones a que la vida
nos obliga, tiene sus raíces y su sentido en el hecho radical, previo y
terrible de vivir. La razón pura y aislada tiene que aprender a ser
vital.104

condición de ser hecho de conciencia’. O más lacónicamente: toda realidad es contenido de


conciencia”. E em seu escrito de 1924 dedicado a Kant, Ortega define o Idealismo como: “Primero.
Idealismo es toda teoría metafísica donde se comienzo por afirmar que a la conciencia sólo le son
dados sus estados objetivos o “ideas”. En tal caso, los objetos sólo tienen realidad en cuanto que son
ideados por el sujeto individual o abstracto. La realidad es ideal. […] Segundo. Idealismo es también
toda moral donde se afirma que valen más los “ideales” que las realidades. Los “ideales” son esquemas
abstractos donde se define cómo deben ser las cosas. Mas habiendo hecho previamente de las cosas
estados subjetivos, los “ideales” serán extractos de la subjetividad. El idealismo de los “ideales” es
subjetivismo práctico” (IV, p. 268).
102 ORTEGA, Sobre la razón histórica, XII, p. 181.
103 ORTEGA, Origen y epílogo de la filosofía, IX, p. 434.
104 ORTEGA, En el centenario de una universidad, V, p. 472
48

Já em Meditaciones del Quijote referia-se Ortega à diferença entre saber e


compreender.105 “¡Sabemos tantas cosas que no comprendemos!”. Para Ortega, só é
possível compreender as realidades humanas, pois são as únicas que têm sentido.106
A Física não aspira a compreender, diz,

la Física se contenta con una primera aproximación cognoscitiva a la


realidad. Renuncia a comprenderla, y de esta renuncia hace su
método fundamental. No se puede desconocer que este ascetismo de
intelección — la renuncia a comprender — es la gran virtud, la
disciplina gloriosa de la gente física. En rigor, lo que esta ciencia tiene
de conocimiento es algo meramente negativo; como conocimiento, se
limita a salvar las apariencias; esto es, a no contradecirlas.107

Se, na Física, o compreender é um mínimo, algo meramente negativo, na


história se converte em algo constitutivo. A história é sempre saber e compreender;
implica técnica, manejo de dados, mas, também, descobrimento de realidades, que
implica, por sua vez, construção.

105 Xavier Zubiri, por sua vez, observa que “o sentir humano e a compreensão não são dois atos
numericamente distintos, cada um completo em sua ordem, senão que constituem dois momentos de
um só ato de apreensão senciente do real: é a inteligência senciente... O sentir humano e o
compreender não só não se opõem, como constituem em sua intrínseca e formal unidade um só e
único ato de apreensão. Esse ato enquanto senciente é impressão; enquanto intelectivo é apreensão
da realidade. Portanto, o ato único e unitário de compreensão senciente é impressão de realidade.
Compreender é um modo de sentir, e sentir é no homem um modo de compreender. (ZUBIRI, 1998A,
p.12).
106 Dilthey, em sua Introdução às Ciências do Espírito (1986), afirma que o homem somente pode

conhecer o mundo do espírito. A natureza só se deixa conhecer pelo espírito humano, nunca no que
ela é em si. O próprio Ortega inicia o artigo “Aurora da razão histórica” reconhecendo que fora Dilthey
o que fizera “a descoberta de uma nova realidade: a vida humana”. Dilthey faz com que a filosofia
conceba a vida humana não mais como uma realidade que pertence ao “universo infinito” dos físicos,
mas como uma realidade peculiar, que não pode ser submetida à realidade física. A partir de então,
segundo Ortega, a filosofia passou a perceber que o homem não têm natureza, tem história. De acordo
com Ortega (Guillermo Dilthey y la Idea de vida, VI, p. 166): “La nueva gran Idea en que el hombre
comienza a estar es la Idea de la vida. Dilthey fue uno de los primeros en arribar a esta costa
desconocida y caminar por ella, aunque, como suele acontecer a los primeros ocupantes, ya veremos
con qué género de fatigas e insuficiencias. Este estudio va a precisar cómo, en rigor, Dilthey no supo
nunca que había llegado a un nuevo continente y tierra firme. No logró nunca posesionarse del suelo
que pisaba.” Ortega reivindica também para si a inovação dessa ideia, posto que afirma (e lamenta)
não ter tido contato com a obra de Dilthey em sua estância em Berlim. Esse fato é questionado por J.
C. Lavêque (“Ortega y Dilthey”, em Ll. Álvarez [ed.], pp. 193 e ss.), segundo o qual o contato com
Dilthey se deu já em 1916. Para Ortega, Dilthey “no llegó nunca a la suficiente posesión de la ‘razón
histórica’ es que considere a la filosofía, junto a la religión y la literatura, como una posibilidad
permanente – por tanto, a-histórica – del hombre.” (Guillermo Dilthey y la Idea de vida, VI, p. 185).
107 ORTEGA, La “filosofía de la historia” de Hegel, IV, p. 532.
49

No próximo capítulo examinaremos a importância da fantasia na construção da


realidade. Mas, ainda aqui, devemos ter em conta que Ortega não abandona a
razão108, apenas a coloca em um posto de dependência, de servidão; a razão deve
servir à vida.109 Neste novo esquema de pensamento, devemos destacar a doutrina
do ponto de vista, ou doutrina da paisagem vital. Já fizemos alusão ao seguinte: cada
sujeito possui sua paisagem própria, resultado de um crivo ou seleção entre a múltipla
realidade do universo e da qual compreende apenas uma pequena parte. Isto não
contradiz a índole ecumênica da vida, senão que a reforça:

Esta doctrina del paisaje vital es, en mi entender, decisiva para la


historia, que, a la postre, no consiste sino en una hermenéutica o
interpretación de las vidas ajenas. Pues bien, el horizonte es un
elemento de ese paisaje y representa el dato de su amplitud y
variedad.110

Ortega reivindica, assim, para a História, o caráter de uma ciência rigorosa.


Neste sentido, ele é otimista e manifesta a convicção de que a ciência histórica,
através dos esforços dos historiadores, aproxima-se de um período de maturidade, e
exigirá para si a prerrogativa de apreensão da realidade. A História não mais sentirá
a necessidade de se igualar à Física, e terá bem claro que em apenas um ponto as
duas ciências se assemelham, pois ambas, enquanto ciências, são construções.111

108Para Ortega, toda teoria tenderá a ser racional, passará por esse processo essencialmente formal e
operatório. “Todo lo que sea más de esto degenera en racionalismo” (Ni vitalismo ni racionalismo, III,
p. 277), que, por sua vez, não é senão uma postura antiteórica, anticontemplativa de misticismo da
razão. Inclusive Ortega afirma que para que fosse possível o surgimento da razão histórica foi
necessária a passagem pela razão físico-matemática. “Para que el hombre se extrañase de la vida
humana y reparase en que es una realidad peculiar, fue menester que llegara antes a poseer un sistema
riguroso y preciso de la realidad cósmica, que conociese de verdad la consistencia de los fenómenos
materiales. (ORTEGA, Ghillermo Dilthey y la Idea de vida, VI, p. 178). Em suma, foi necessário estar
na crença de que todos os problemas da humanidade pudessem ser resolvidos pela razão para que o
se pudesse constatar sua limitação e para que se buscasse uma nova razão, capaz de responder sobre
os problemas que ficaram sem solução.
109 Podemos afirmar que, de certa forma, o princípio de razão histórica mantido por Ortega está na

mesma linha do conceito amplo de razão que incorpora as diferentes formas pré-racionais da poesia
ou do mito, apresentado por Ernest Cassirer em A filosofia das formas simbólicas (1998).
110 ORTEGA, Las Atlántidas, III, p. 293.

111 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 17.


50

Como vimos, Ortega não nega a razão, apenas recusa sua presunção de
fundamento do conhecimento, de soberania:

muy lejos nos sentimos hoy del dogma hegeliano, que hace del
pensamiento sustancia última de toda realidad. Es demasiado ancho
el mundo y demasiado rico para que asuma el pensamiento la
responsabilidad de cuanto en él ocurre. Pero al destronar la razón,
cuidemos de ponerla en su lugar. No todo es pensamiento, pero sin él
no poseemos nada con plenitud.112

Neste sentido, afirma Ferrater Mora (1958, p. 35), para Ortega “os conceitos
não são a substância metafísica da realidade”, mas órgãos de percepção.
Recordemos que as circunstâncias se apresentam como presenças e latências, e
percepção aqui significa ‘percepção da profundidade’. Assim, “a percepção nos leva
do nível da vida espontânea ao nível da vida reflexiva”, mas devemos ter consciência
de que a vida espontânea “constitui sempre o princípio e o fim de nossa busca”.
Precisamos pensar, nos ensina Ortega, como precisamos comer ou respirar.
Podemos entender agora como se articulam as principais teorias de Ortega que
culminam no conceito de razão histórica. Primeiro, a vida de cada um é a realidade
radical. Segundo, o ponto de vista do indivíduo é fundamental. Terceiro, as
circunstâncias fazem parte de mim: a realidade que me facilita ou oprime não pode
ser minimizada. Quarto, só conseguimos compreender uma época se entendemos a
história universal. “Tomando las cosas en todo su rigor, no se puede entender ni un
segundo de la vida de un hombre si no se entiende la historia universal”. 113
Mas, já que nos é impossível certificar a verdade de todos os fatos históricos,
a compreensão necessita de uma unidade e uma totalidade, em suma, um sistema,
porque somos obrigados a preencher os vazios com teorias. Para compreender é
indispensável a imaginação. O órgão da compreensão é a fantasia. Assim diz
expressamente Ortega quando trata da figura de Goya:

No hay historia sin datos, sin hechos comprobados. Pero la historia no


consiste en los datos. La misión de éstos es, primero, obligarnos a

112 ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 354.


113 ORTEGA, Un rasgo de la vida alemana, V, p. 187.
51

imaginar hipótesis que lo expliquen, que los interpreten, porque todo


hecho es por sí equívoco, y segundo, confirmar o invalidar esas
hipótesis […] En nuestro caso se trataría de esto: hay que imaginar al
hombre Goya. Digo ‘imaginar’. Hay que partir, claro está, de los datos
que sobre él poseemos, pero no hay que limitarse a ellos. Esos datos
son sólo los puntos de referencia donde queda inscrita la figura
imaginaria de Goya. Ya estoy oyendo que se dice: ‘¡Eso es fantasía!’
Pues claro que lo es. Pues ¿y qué otra cosa va a ser? ¿Qué idea se
tiene de la ciencia? La ciência es fantasía.114

A contribuição de Ortega y Gasset para a filosofia no século XX, segundo


Gilberto Kujawski (1991), foi a descoberta da nova ideia de razão, constitutivamente
radicada na vida, em seu princípio e em seu fim, a razão vital, ou razão vivente. Esta
não invalida, e sim integra a razão pura, limitando-a a seus domínios. Por outro lado,
não faz a mínima concessão ao irracionalismo, não é nenhuma tendência ‘vitalista’
propensa à inconsciência e ao sonambulismo. “Para a razão vital, razão e teoria são
sinônimos, teoria fundada em conceitos rigorosos e controláveis” (1991, p. 162).
Ora, se o conhecimento das ciências físico-matemáticas têm tido a pretensão,
em seu estatuto epistemológico, de se constituir como um saber do tipo experimental
e do tipo formal puro, o conhecimento nessas ciências não é todo o conhecimento.
Logo, existem outras formas de conhecer. Nietzsche (1999, p.37), ao problematizar
os limites da natureza lógica do conhecimento, sugere o que Sócrates deveria se
perguntar: “Será que o que eu não entendo nem por isso é ininteligível? Será que a
arte é até mesmo um correlato e suplemento necessário da ciência?”.

114 ORTEGA, Goya, VII, pp. 514-515.


52

6 VERDADE: FANTASIA E SINCERIDADE

A sociabilidade do homem significa que temos de resolver conjuntamente


nossos problemas, participar de um projeto comum. Este projeto, seja ele qual for,
deve ser aceito como “verdadeiro”. Todo movimento histórico se justifica nisso. A cada
giro efetuado pelo homem, a cada maneira de responder às perguntas sobre o mundo,
o homem e o conhecimento — ou, dito de outro modo, a cada modo de ser homem —
, corresponde um instante na história. É aqui, na maneira de entender a história, de
conceber os movimentos históricos, suas causas e consequências, suas etapas e
repetições, que é de fundamental importância a teoria construída por Ortega y Gasset.
“La definición del hombre”, diz ele, “verdadero y único problema de la ética, es el motor
de las variaciones históricas”.115 E nesta teoria desempenha um papel relevante o
conceito de verdade.
Talvez sempre tenha sido presente na história do homem este desejo de
conhecer a realidade. Uma tarefa extremamente árdua, para uns, e impossível, para
outros. Assim Buda, para conhecer a realidade sem camuflagens teve que se isolar
em meio à pura natureza, aprendendo a ouvir o rio, e se desembaraçando de toda
cultura até então aprendida, de toda “palavra”. A imagem de Buda nos faz perceber a
dureza da tarefa. Nietzsche, porém, não imaginava possível um homem que não
caminhasse pelo reino das palavras, pois, para ele, a aparência é tudo e a única coisa
permitida ao homem é sua interpretação. De certa forma, poderíamos dizer que Buda,
ao atingir a, para ele, “verdade suprema”, aniquila sua condição humana. Assim,
podemos dar razão a Nietzsche sem perder a imagem de Buda. Com as palavras,
segundo Nietzsche, jamais se chega à verdade. A “coisa em si” — isto seria
justamente a verdade pura, sem consequências — é totalmente inalcançável.116

115ORTEGA, El sobrehombre, I, p. 93.


116Rodríguez Huéscar, em Perspectiva y verdad, distingue três possibilidades de se apresentar a
realidade: a) a realidade livre de qualquer interpretação, que seria a realidade como puro problema,
onde não podemos falar em coisas; b) a realidade interpretada em forma de crenças, que seria a
realidade como prágmatas (facilidades ou dificuldades), onde as coisas existem “para mim”; c) a
realidade pensada, a realidade enquanto mundo das coisas e ideias. Nesse último nível, notamos a
dependência tanto do sistema de crenças quanto das interpretações individuais do problema que é a
vida de cada qual.
53

Jesús Conill, ao interpretar Nietzsche, qualifica o homem de “animal fantástico”,


justamente por sua necessidade de fantasiar para sobreviver. “O homem fabrica
perspectivas e ficções. A vida humana necessita de ‘ilusões’, que dão prova de si por
seus efeitos. A vontade é substituída pela eficácia” (CONILL, 1991, p. 55).
A compreensão da realidade depende, sobretudo, das ideias pré-admitidas,
aceitas como verdadeiras. Ideias características de cada tempo, que se vão
metamorfoseando para satisfazer melhor às necessidades do homem. A “realidade”
está pendente dos pressupostos aceitos como verdadeiros. É — por que não? — uma
“questão de fé”. Assim, alguém que traz em si impregnada uma certa ideia sobre o
homem e sobre determinadas verdades históricas, utilizando-se da razão, chegará a
uma criação da realidade diferente de outro que não compartilhe das mesmas
crenças, das mesmas “verdades fundamentais” — como a verdade sobre o homem e
sobre determinados fatos históricos.117 Em resumo, com as palavras não atingimos
mais que a superfície das coisas. Não percebemos mais que “formas” e estímulos.
Vivemos imersos em ficções, em ilusões, em sonhos.
Este discurso é constante na obra de Nietzsche. E levou a inúmeras
interpretações díspares entre elas. Muitos interpretaram as palavras de Nietzsche
como uma busca do desmascaramento de falsas ideias, um projeto para salvar o
homem que se havia desviado do caminho verdadeiro. Em nosso modo de ver, o que
Nietzsche queria mostrar era a necessidade da ilusão para a sobrevivência do
homem, a verdade como a forma mais conveniente de erro. É o que assinala já em
seu primeiro livro, O nascimento da tragédia no espírito da música: “O agir requer que
se esteja envolto no véu da ilusão” (1999, p. 31). E em Sobre verdade e mentira no
sentido extramoral: “O último dos filósofos… prova a necessidade de ilusão” (1996, p.
18). Contudo, esta ilusão deve ser, para o homem superior, uma ilusão consciente.
O que Nietzsche pretende é responsabilizar o filósofo por suas ideias, por ideias
que conformarão a realidade. Na medida em que da realidade apenas podemos sentir

117 Referindo-se à razão pura e suas verdades fundamentais, diz Ortega: “Es una constitución
esquemáticamente perfecta, donde se supone que los hombres son ‘entes racionales’, y nada más.
Admitido este supuesto — la ‘razón pura’ tiene que partir siempre de supuestos, como el ajedrez —,
las consecuencias son ineludibles y exactas. El edificio de conceptos políticos, así elaborados, es de
una ‘lógica maravillosa’, es decir, de un rigor intelectual insuperable” (ORTEGA, El tema de nuestro
tiempo, III, p. 161).
54

o sopro, caberia ao filósofo (e ao poeta) criar a melhor realidade possível, uma


realidade que estimule o desenvolvimento humano. “O Filósofo tem que solucionar o
problema do valor, tem que determinar a hierarquia dos valores”. (2001, p. 62). Em
outras palavras, é dever do filósofo valorar. Neste sentido, Nietzsche faz a distinção
entre ficções reguladoras, indispensáveis à vida, e ficções in malo sensu, ou
simplesmente ficções, que refuta com toda veemência. Nietzsche pensava que a
verdade era criada pela imposição da interpretação do grupo formador da cultura.
Ortega pensava parecido, mas essa vontade criadora de verdades, no pensador
espanhol, está mais diluída em seu conceito de circunstâncias, em sua teoria do ponto
de vista.
Vimos que Ortega aceita algumas das principais teses nietzschianas sobre o
problema da verdade — sobretudo sua ideia do conhecimento como uma função vital
e de que a verdade é histórica. Contudo, enquanto o pensamento de Nietzsche
desemboca em um total relativismo, Ortega acredita na possibilidade de um
conhecimento racional objetivo, mesmo não sendo absoluto nem definitivo. Ambos
negam o suposto racionalista segundo o qual as construções racionais representam
a realidade. Para ambos, a razão deve se submeter à vida, e não o contrário. A
autêntica realidade é cambiante e a imagem racional que temos dela é uma criação,
uma construção, uma ficção.118
Entretanto, a divergência entre os dois pensadores concerne ao processo de
criação dessas ficções. Enquanto Nietzsche demonstra que essas criações humanas
representam a imposição “intencional” da vontade de determinado grupo sobre outro,
Ortega defende a ideia de que essa criação é realizada através da disposição do
homem de enfrentar sua circunstância.
O conceito de sinceridade é vital para bem entendermos Ortega. Adiante
tentaremos nos aprofundar no exame desse conceito, pois aí reside, a nosso ver, a
grande ruptura de Ortega com o pensamento de Nietzsche, para quem

a linguagem não reflete a verdade, e sim configura uma aparência


enganosa, que desfigura, simula e obstrui a verdade... O que se pode

118Paul Veyne, influenciado diretamente pela filosofia de Foucault, afirma que “os homens não
encontram a realidade: eles a fazem, assim como fazem sua história” (2013, p. 13).
55

pensar, tem que ser uma ficção. O pensamento não captura o real.
Todo conceito é uma metonímia. (in CONILL, 2001, p. 51).

Poderíamos afirmar que, em parte, Ortega se identifica com essa ideia, sobretudo à
luz da seguinte reflexão:

Soy fundamentalmente de la opinión de que las asunciones más falsas


son para nosotros justamente las más imprescindibles, que el hombre
no puede vivir sin dejar la ficción lógica, sin medir la realidad con el
patrón del mundo inventado de lo incondicional… y que una negación
de esta ficción, una renuncia a ella, en la práctica, equivaldría a una
negación de la vida. Admitir la no-verdad como condición de la vida. 119

Contudo, ao recusar o idealismo, Ortega admite o conceito de sinceridade,


gerando assim seu perspectivismo. O conceito orteguiano de sinceridade substitui o
conceito nietzschiano de vontade de poder.
O homem, segundo Ortega, é um animal fantasista. Está obrigado a fantasiar,
a criar verdades para sobreviver; deve interpretar constantemente a realidade
enigmática e parcial de um mundo onde ele se encontra sem saber por que e sem
haver solicitado. É, em suma, um fabricante de universos. E isto, este fantasiar
incessante, este constante criar/recriar o mundo, é o que explica as mudanças
históricas.120 “El hombre es un fabricante nato de universos... He aquí, señores, por
qué hay historia, por qué hay variación continua de las vidas humanas”. 121
Fabricar universos. A imagem é imponente, mas cabível. Cabível numa
definição simbólica deste animal que é o homem — agora alçando-se ao reino
especial, embora por ele mesmo criado, do homem.
A fantasia — como esta fabricação de universos — já vem de longe. Talvez a
partir mesmo da invenção da linguagem e de sua coroação com a escrita. Poetas
como Hölderlin já sabiam: “poeticamente mora o homem”. Bergson falava de uma

119 ORTEGA, Moralejas, I, p. 53.


120 Ortega reforça esta tese: “El hombre es un animal fantástico y la historia universal es el esfuerzo
gigantesco y milenario de ir, poco a poco, poniendo algún orden en la loca fantasía. La historia de la
razón es la historia de los estadios por los que ha ido pasando la domesticación de nuestro desaforado
imaginar” (ORTEGA, Una interpretación de la historia universal, IX, p. 207.).
121 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 33.
56

função fabuladora, espécie de instinto a conviver lado a lado com a inteligência. Um


pensador como Heidegger, intérprete de Hölderlin, e que preferia ser chamado
justamente de pensador, ao invés de filósofo, via com muitos bons olhos os poetas.
“A linguagem — é esta sua frase célebre — é a caso do Ser”. Em seu abrigo mora o
homem. Os pensadores e os poetas são aqueles que velam por este abrigo.
A interpretação recebe em Ortega a qualidade de função vital, fisiológica.
Interpretamos porque não poderíamos viver de outra forma. Assim como nos é
indispensável respirar ou comer, também nos é indispensável interpretar. O
pensamento, diz ele, “es una función vital, como la digestión o la circulación de la
sangre”.122 É um dos sistemas indispensáveis à vida, como também o são o sistema
circulatório e o digestivo. Nosso pensamento encontra sua causa e justificação em
nós mesmos, na manutenção da vida. A razão deve ser vital. Neste sentido, o
pensamento é meio para a vida, um de seus órgãos, e por ela está governado. Somos
obrigados a interpretar, a todo instante, para sobreviver. 123
É certo que interpretamos, pensa Ortega, mas não interpretamos
arbitrariamente. Estamos obrigados a ser sinceros, a pensar segundo o que sentimos
com íntima sinceridade.124 Trata-se aqui da busca sincera de minha sincera atitude
diante da coisa. Rodríguez Huéscar (1966) ressalta esta perspectiva ética da ideia de
verdade em Ortega. Deve-se pensar com autenticidade. Pensar é pensar as coisas
segundo elas se nos apresentam. “Su misión es reflejar el mundo de las cosas,
acomodarse a ellas de uno u otro modo; en suma, pensar es pensar la verdad, como
digerir es asimilar los manjares”.125
De acordo com esta teoria, dois contempladores que hipoteticamente se situem
num mesmo ponto, munidos das mesmas ferramentas para executar a observação,
devem coincidir na confecção do real. Ortega refuta, assim, o subjetivismo. Estando

122 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 164.


123 Seguindo este raciocínio, afirma Ortega: “Pienso lo que pienso, como transformo los alimentos o
bate la sangre mi corazón (...) En mí, como individuo orgánico, encuentra, pues, mi pensamiento su
causa y justificación: es un instrumento para mi vida, órgano de ella, que ella regula y gobierna” (El
tema de nuestro tiempo, III, p. 164).
124 Segundo Antonio Rodríguez Huéscar (1966), Ortega começa afirmando a conexão essencial entre

verdade e vida: a verdade deve ser ‘pessoal’, quer dizer, viva, crida por quem a sustenta, professada
com sinceridade y apaixonada.
125 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 164.
57

ambos observadores mergulhados em circunstâncias idênticas, se sentirão partícipes


de uma mesma realidade, terão semelhantes interpretações do mundo. Contudo, esta
interpretação não perde o status de fantasia. Se fosse possível integrar os incontáveis
“aspectos” de uma coisa, segundo Ortega, teríamos a coisa mesma. “Porque la cosa
es la ‘cosa entera’. Como esto es imposible, tenemos que contentarnos con tener de
ella solo ‘aspectos’ y no la cosa misma.”126 Sendo impossível ver a totalidade do real
— e este só pode ser compreendido em sua totalidade —, o contemplador é forçado
a recriar todas as demais circunstâncias que escaparam a seu campo de visão. Está
forçado, pois, a preencher os vazios com suposições, com ideias. A realidade que se
nos mostra fragmentada exige-nos, entretanto, um sistema.
Sim, estamos irremediavelmente presos a nosso tempo. A parte de realidade
que nos cabe compreender — a de agora — é distinta da de nossos antepassados.
Nosso campo de visão e, também, nossas ferramentas de interpretação (nossas
circunstâncias) são diferentes. Isto se dá, como adiante veremos melhor, porque ao
mesmo tempo em que somos tocados pelo mundo, ao mesmo tempo em que ele nos
faz a nós, nós também o fazemos, o construímos.
Quando afirma Ortega que “eu sou eu e minhas circunstâncias”, não se trata
de uma metáfora. Isto deve ser entendido literalmente. Parte de mim se encontra fora
e está tão presente em mim quanto minha parte interior. É o que nos obriga a ser
sinceros. Estamos obrigados a salvar as nossas circunstâncias se aspiramos à nossa
salvação, e nessa medida somos obrigados a “buscar el sentido de lo que nos
rodea”.127
Ortega escapa assim da armadilha subjetivista. Não podemos interpretar à
revelia. Se buscamos a nossa salvação, se queremos verdadeiramente nos situar no
mundo que nos rodeia, estamos obrigados a interpretar de acordo com aquela porção
de realidade que nos foi conferida pelo destino. A salvação sempre esteve na fé
sincera. Seja ela divina ou racional.
Nem racionalismo, nem subjetivismo, dirá Ortega. A verdade assume, na
medida em que é uma criação do homem, uma aparência mutável; contudo, como

126 ORTEGA, Origen y epílogo de la filosofía, IX, p. 372.


127 ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 322.
58

vimos acima, também apresenta uma característica vinculante, na medida em que


está condicionada à sensibilidade de uma época.
Num contexto assim, estamos obrigados a pensar a verdade. Não poderia ser
de outra forma. Pensar, como enfatiza Ortega, é uma função indispensável à vida.
Ocorre que pensar a verdade e estar na verdade são, para Ortega, uma e mesma
coisa. E do executar esta tarefa com perfeição, depende a felicidade do homem, o
estar em paz, o coincidir-se consigo mesmo. O fragmento abaixo resume bem o
sentido deste capítulo.

El hombre para vivir tiene que pensar, gústele o no. Si piensa mal, esto
es, sin íntima veracidad, vive mal, en pura angustia, problema y
desazón. Si piensa bien encaja en sí mismo — y eso, encajar en sí
mismo, es la definición de la felicidad.128

No mais profundo de nossa consciência, todos sentimos quem temos que ser,
qual é a nossa personalidade. Quando conseguimos realizar esta personalidade, diz
Ortega, quando conseguimos coincidir o que somos com o nosso autêntico ser, somos
felizes. Pois bem, a felicidade do homem é uma questão de fidelidade interior,
depende do coincidir entre o pensado e o sentido. Este coincidir do homem consigo
mesmo tem, para Ortega, o mesmo sentido de estar na verdade. O homem se esforça
incessantemente para estar na verdade. E estar na verdade nada mais é do que
acreditar nas respostas encontradas para os diversos problemas da vida. A verdade
não existe “si no nace en nuestro ser orgánico el acto mental con su faceta ineludible
de convicción íntima”.129
Note-se que este estar na verdade não denota quietude. Quando se está na
verdade, nunca se está quieto. Para permanecer neste estado é necessário esforço e
imaginação.
A vida do homem é um incessante fantasiar, um permanente buscar estar em
claro consigo e com as coisas ao derredor. Esta atividade interminável é um dos
atributos inerentes ao ser homem. Conforme Ortega,

128 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 113.


129 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 166.
59

el hombre tiene una misión de claridad sobre la tierra. Esta misión no


le ha sido revelada por un Dios ni le es impuesta desde fuera por nadie
ni por nada. Lleva dentro de sí, es la raíz misma de su constitución.130

Assim, o homem busca estar em claro consigo mesmo a respeito do que crê
das coisas com as quais vive ou coexiste. Uma vez que saibamos ao que nos ater,
por exemplo, com respeito à terra, sentir-nos-emos seguros.131
Então, algo é problemático quando buscamos em nós, e não sabemos, qual é
a nossa verdadeira posição frente a esse algo; quando, entre muitos pensamentos,
não sabemos de verdade qual é o nosso. Dito de outro modo, algo nos é problema
não porque ignoramos seu ser, mas porque não temos resposta ao problema anterior
e originário, qual seja, “encajar yo en mi mismo, coincidir conmigo”. 132
A história pode ser contada como uma busca de estabilidade. Diante do caos
que é a vida, o homem busca criar a ordem. Diante da incerteza do mundo, procura
dar um pouco de sentido ao mundo. A história é uma interpretação do mundo, um
confinar a vastidão do mundo em um esquema inteligível.
Mas, como é impossível captar o mundo em toda sua complexidade, estamos
obrigados a inventá-lo, ao menos em parte. E o inventamos com ideias. Este é um
tópico importante em Ortega. Para fugir do subjetivismo, Ortega vincula este fantasiar
à sinceridade. Assim, escreve:

Nuestros pensamientos efectivos, nuestras creencias firmes son un


ejemplo irremediable de nuestro destino. Significo con esto que no
está en la mano del hombre pensar y creer lo que quiera. Se puede
querer pensar de otro modo que como, en efecto, se piensa, y trabajar
lealmente por cambiar de opinión e inclusive conseguirlo. Pero lo que

130 ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 357.


131 Sobre ‘estar en claro consigo mismo’, escreve Ortega: “El hombre se adapta a todo, a lo mejor y a
lo peor; sólo a una cosa no se adapta: a no estar en claro consigo mismo respecto a lo que cree de las
cosas. Por ejemplo, una de las creencias en que el hombre puede estar es la convicción de que todo
es dudoso, de que no puede averiguar positivamente ese ser de las cosas que tanto necesita. Pues
bien: aun en ese caso extremo el hombre se sentirá tranquilo, ni más ni menos que cuando goza de
creencias más positivas [...] Lo malo es si el escéptico duda de su duda, porque eso significa que no
sabe, no ya lo que las cosas son, sino cuál es su auténtico pensamiento. Y esto, es lo único a que el
hombre no se adapta, lo que la realidad radical, que es la vida, no tolera” (España invertebrada, III, p.
85-86).
132 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 86.
60

no se puede es confundir nuestro querer pensar de otro modo con la


ficción de que ya pensamos como queremos.133

É certo que fantasiamos, contudo este fantasiar, para que seja útil à vida, deve
ser sentido como verdadeiro. “La verdad o falsedad de una idea”, diz Ortega, “es una
cuestión de ‘política interior’ dentro del mundo imaginario de nuestras ideas. Una idea
es verdadera cuando corresponde a la idea que tenemos de la realidad”.134
Em suma, devemos buscar sempre pensar bem, que é pensar com sinceridade.
Buscar a correspondência de uma ideia com o aparente da realidade. A razão não
pode fabricar mundos puramente ideais, mas deve servir à vida — é o que sublinha
Ortega.

133 ORTEGA, España invertebrada, III, p. 88.


134 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 388.
61

7 VERDADE: IMAGINAÇÃO E CONFRONTAÇÃO

O mundo é aquilo que o homem encontra já pronto ao nascer, é o todo no qual


temos que mergulhar, queiramos ou não. É o externo a nós, o lugar onde devemos
desenvolver cada ato de nossas vidas. Envolvidos pelo mundo começaremos a
apreendê-lo, a interpretá-lo. A cada época corresponde um conjunto de ideias sobre
o mundo, assim como sobre o papel desempenhado pelo homem. Entende Ortega a
vida como um drama, do qual recebe o homem um enredo, ou, utilizando seus termos,
um projeto de ser homem. O drama, salienta ele, é o drama de cada qual, de cada
homem individualmente. Contudo, estamos todos igualmente influenciados por um
conjunto de ideias preexistentes ao nosso nascimento. Estas convicções coletivas —
ou ideia de mundo —, não as temos nós, posto que foram forjadas por gerações
anteriores à nossa; ao contrário, elas nos têm a nós. Estamos irremediavelmente
associados à ideia de mundo existente desde que nascemos. E teremos, queiramos
ou não, que atuar de acordo com esta ideia e através dela. Em suma, estamos presos
a nosso tempo.

Al encontrarnos viviendo, nos encontramos no sólo entre las cosas,


sino entre los hombres; no sólo en la tierra, sino en la sociedad. Y esos
hombres, esa sociedad en que hemos caído al vivir tiene ya una
interpretación de la vida, un repertorio de ideas sobre el universo de
convicciones vigentes.135

Sem que possamos escolher, encontramo-nos em um mundo já pronto, um


mundo carregado de soluções para os problemas da vida. Assim, quando estamos
diante de um problema, recorremos às soluções encontradas por nossos
antepassados. Na maioria das vezes de forma inconsciente, pois desde que
nascemos recebemos constantemente aquelas soluções vitais — nossas convicções
coletivas — através da família, da escola, da leitura, das relações sociais. Garagorri,
ao interpretar o pensamento de Ortega, entende que “pertence à estrutura da vida o
fato de que seu dinamismo, que implica sempre uma ação dirigida ao futuro, se acha

135 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 81.


62

sustentado de um modo também constitutivo, inevitável, no coletivo passado humano”


(1985, p. 38).
Assim, segundo Ortega, quando enfrentamos uma questão vital que não nos
parece de todo resolvida e queremos verdadeiramente encontrar uma solução,
encontramo-nos presos àquelas soluções já dadas e somos obrigados a lutar tanto
contra a questão vital que nos atormenta quanto contra as convicções coletivas às
quais estamos submetidos. Daí a grande dificuldade em que nos achamos diante de
um grande problema: o ter que lutar contra parte da bagagem cultural que carregamos,
contra parte de nós mesmos, visto que nossa história, nossa cultura — ou como bem
disse Ortega, nossas circunstâncias — fazem parte de nós.
Uma circunstância extremamente entranhada em nós é o idioma, que somos
obrigados a utilizar para pensar nossos próprios pensamentos. O idioma em si já é
uma elementar interpretação da vida. “Al hablar somos humildes rehenes del
pasado”.136. Então é evidente que a realidade é distinta quando a observamos de
janelas distintas. Também são bem distintos os argumentos do drama em que
consiste a vida quando se está na crença de um Deus onipotente e benévolo, dos
argumentos de quem se encontra em uma crença contrária. Somos, queiramos ou
não, prisioneiros das interpretações fabricadas por nossos antepassados. Cada
geração presente carrega entranhada em si todas as gerações anteriores; é herdeira
de um espólio irrenunciável. Neste sentido, diz Ortega, estamos obrigados a
reconhecer que “o passado é presente”, que “nosso presente está feito com a matéria
desse passado”, o que nos torna o resumo de uma história universal.

Deberíamos representarnos las generaciones...como los acróbatas


del circo cuando hacen la torre humana... Esto nos llevaría a
percatarnos de que el pasado no se ha ido sin más ni más, de que no
estamos en el aire sino sobre sus hombros, de que estamos en el
pasado, en un pasado determinadísimo que ha sido la trayectoria
humana hasta hoy, la cual podía haber sido muy distinta de la que ha
sido, pero que una vez sida es irremediable, está ahí — es nuestro
presente en el que, queramos o no, braceamos náufragos.137

136 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 448.


137 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 45.
63

Para Enrique Tierno Galván, realidade e resultado são equivalentes. Segundo


o sociólogo espanhol, “quando digo ‘existe’ e outras coisas assim, quero dizer ‘no nível
da cultura atual tal hipótese está verificada ou ajuda mais à verificação de outra que...’
A ciência é um conjunto de hipóteses. A cultura é a totalidade do conjunto de
‘resultados’” (1966, p. 10-11).
Pois bem, de acordo com a ideia de mundo que recebemos ao nascer, o
principal problema é o de situar o homem no posto exato que lhe cabe. O mundo e o
homem são temas primordiais da filosofia, pois é a partir das respostas dadas e
aceitas sobre o que é o mundo e o que é o homem, que se criarão as demais respostas
com as quais se forjarão os demais comportamentos humanos, os modelos de vida
— ou, conforme a terminologia de Ortega, o projeto de vida humana. “Toda vida de
hombre parte de ciertas convicciones radicales sobre lo que es el mundo y el puesto
del hombre en él — parte de ella y se mueve dentro de ella”.138
José Lasaga Medina, a esse respeito, observa:

[...] é evidente que o homem estaria em um estado de desorientação


se não existisse em seu entorno um ‘sistema’ de instâncias
orientadoras. O termo convicção pode ser traduzido por evidência ou
certeza. Mas de que tipo de evidência se trata? De uma evidência
intelectual? E o mais importante, se trata de uma evidência alcançada
pelo pensamento através de um esforço de reflexão? Às duas
perguntas Ortega responde negativamente. As convicções que
orientam o mundo com o qual nos encontramos são, em sua maior e
decisiva parte, herdadas da sociedade. Viver pressupõe um
componente de facilidade que devemos receber mais ou menos
elaborado (LASAGA, 1994, p. 210).

Partimos, pois, de “certas convicções radicais” sobre o que se denomina


mundo, com as quais temos que lidar ou esquecer. Lidaremos com aquelas que
aparecem para nós como problemáticas e esqueceremos todas as demais, que serão
tidas, para nós (em determinado lugar e época), como verdades incontestes, como
realidade. Da inumerável gama de elementos que fazem parte da realidade, haverá
alguns que serão percebidos, ou como problema a ser resolvido ou como valor a ser
reordenado. Todas as demais coisas serão postas de lado, quando não mesmo

138 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 26.


64

ignoradas. Estas atuam sobre nós sem que cheguemos a pensar sobre elas. Sobre
as primeiras atuamos conscientemente. Cada geração atuará de acordo com a
sensibilidade de sua época; é influenciada por determinadas ideias que lhes abrirão
os olhos para determinadas verdades e, consequentemente, lhes ofuscarão outras,
dependendo da perspectiva histórica em que se encontre. Aqui a verdade assume sua
fundamental qualidade: a de ser histórica. Perspectivismo, historicismo e
raciovitalismo assumem, neste contexto, uma e mesma significação. A história faz
parte da vida humana, de nosso psiquismo, da razão humana — que Ortega
denominará razão vital primeiramente e razão histórica mais tardiamente. Assim, as
verdades estão vinculadas, iniludivelmente, à sensibilidade de um determinado
momento histórico:

como con los colores y sonidos acontece con las verdades. La


estructura psíquica de cada individuo viene a ser un órgano perceptor,
dotado de una forma determinada, que permite la comprensión de
ciertas verdades y está condenado a inexorable ceguera para otras.
Asimismo, cada pueblo y cada época tienen su alma típica, es decir,
una retícula con mallas de amplitud y perfil definidos que le prestan
rigurosa afinidad con ciertas verdades e incorregible ineptitud para
llegar a ciertas otras.139

A realidade é perspectiva, isto é, não se oferece plenamente e de igual modo,


em suas múltiplas faces, à nossa visão, que também é determinada pela singularidade
de nossa posição no universo, de nossa história. “No hay — según el bosque me ha
dicho en sus rumores — una claridad absoluta; cada plano u orbe de realidades tiene
su claridad patrimonial”.140
Assim, poderíamos dizer que a verdade seria aquilo que cada povo e época
percebem com íntima sinceridade. É verdade para, e não A Verdade. Não é
independente do homem. É verdade histórica, dependente de uma tomada de
perspectiva.
Vimos acima que perspectivismo, historicismo e raciovitalismo assumem em
Ortega um significado complementar. O que significa que só em conjunto podemos

139 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 199.


140 ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 345.
65

compreender a novidade do pensamento de Ortega, só conjuntamente podemos


entender o que ele, como filósofo, tenta transmitir. Nem idealismo, nem racionalismo,
eis o seu lema.141 Contudo, apenas pela negação das duas influentes teorias não
conseguimos compreendê-lo. Não se trata aqui de simples miscelânea. O
fundamental está em fazer do corpo o veículo maior de percepção da realidade e
entender a razão como parte integrante de um corpo formado também pelas vísceras.
A razão não deve ser relegada, visto que o corpo necessita dela para organizar o caos
que é a vida; porém, devemos notar que ela é meio para a vida. A razão deve trabalhar
para a vida, repete continuamente Ortega. Sobre isso, também Nietzsche já havia
insistido.
Assim, uma das qualidades próprias da realidade é possuir uma perspectiva, a
qual depende da sensibilidade da época, e varia quando esta varia. Com este
raciocínio, Ortega vem a negar a imutabilidade da Verdade, e rompe com o pilar do
ideal moderno cientificista. “La verdad es histórica”.142 Deixamos de acreditar que para
alcançar a verdade basta desvelá-la, retirar a espuma que a envolve. O moderno
acreditou que a verdade se atingiria com um simples método. Ortega mostra, porém,
que três fatores são cruciais: engenho, arte e sinceridade. Por isso, reflete:

Pues puede acaecer que la verdad sea todo lo contrario de lo que


hasta ahora se ha supuesto: que las cosas no tienen ellas por sí un
ser, y precisamente porque no lo tienen el hombre se siente perdido
en ellas, y no tiene más remedio que hacerles él un ser, que
inventárselo. Si así fuese, tendríamos el más formidable vuelco de la
tradición filosófica que cabe imaginar. ¡Cómo! ¿el ser — que parece
significar lo que ya está ahí, lo que ya es —, consistiría en algo que
hay que hacer y que por tener irremediablemente que hacerlo es la
vida del hombre tan fatigosa, tan laboriosa, tan hacendosa?143

141 Cumpre notar que a busca da síntese de ambas as correntes não foi tentada primeiro e
exclusivamente por Ortega, pois fazia parte das preocupações de seu tempo. Como exemplo, podemos
citar José Ingenieros, que, em 1913, publica O homem medíocre, de cujo livro destacamos fragmentos
como: “À medida que a experiência humana se amplia, observando a realidade, os ideais são
modificados pela imaginação, que é plástica e não repousa jamais. Experiência e imaginação seguem
vias paralelas, ainda que esta se antecipe em muito àquela” (p. 13); “[...] é mais estreita ainda a
tendência corrente de se confundir idealismo, que se refere aos ideais, com as tendências metafísicas
que assim se denominam porque consideram as ‘ideias’ mais reais que a realidade mesma, ou
pressupõem que eles são a realidade única, forjada por nossa mente, como no sistema hegeliano... A
experiência, e apenas ela, decide sobre a legitimidade das ideias, em cada tempo e lugar” (p. 18-19).
142 ORTEGA, ¿Por qué se vuelve a la filosofía?, IV, p. 99.

143 ORTEGA, España invertebrada, III, p. 84-85.


66

Poderíamos acrescentar: justamente por isso, por ser o homem obrigado a


estar a todo instante ocupado com o mundo, que sua vida é aceitável e, de certa
forma, valiosa. O homem é, irremediavelmente, um criador. Para que possa estar no
mundo, onde lhe cabe viver, deve inventá-lo — ou melhor, é obrigado a reinventá-lo,
no todo ou em parte, para que possa estar na verdade, termo que, de importância
capital na obra de Ortega, é de difícil entendimento para os de língua alemã, francesa
ou inglesa, nas quais os verbos ser e estar se confundem. Pois assim passaremos a
entender a verdade: como algo em que se está, mas que em algum dado momento
pode-se deixar de estar e escorregar-se para o estar na dúvida. Eis a brilhante
dicotomia orteguiana: estar na verdade e estar na dúvida. Bem a propósito vem o dito
popular quando enfatiza o momento dramático de um homem: estar num mar de
dúvidas. Náufrago num mar de dúvidas a bracejar em busca da salvação. Logo
veremos melhor o que sugere esta imagem; mas, agora, devemos nos deter no
processo criador do homem.
A verdade, pois, assume em Ortega um caráter fundamentalmente histórico. A
incessante inquietação do homem para estar na verdade, associada à sua inexorável
fantasia e à incontrolável exigência de experimentar tudo o que pensa e sonha, de
duvidar constantemente de sua criação, faz com que a humanidade permaneça em
uma contínua variação. Nunca na história experimentou o homem longos períodos de
estagnação.
Esta reflexão sobre a verdade tem importância decisiva para Ortega, com o que
concorda seu discípulo Julián Marías. O empreendimento de incessante escalada à
verdade pode ser intuído à luz do que afirma: “Yo he buscado en torno, con mirada
suplicante de náufrago, los hombres a quienes importase la verdad, la pura verdad”. 144
O problema é que não dispõe o homem de ferramentas para conhecer o mundo
(que só pode ser conhecido por inteiro) como efetivamente é. Sua única certeza é a
do esforço que precisa empenhar para consegui-lo. Contudo, não podemos viver sem
uma interpretação do mundo na qual possamos nos mover com segurança, ter por

144 ORTEGA, Verdad y perspectiva, II, p. 16.


67

realidade. "Podemos elegir entre una fantasía y otra para dirigir nuestra conducta y
hacer la prueba, pero no podemos elegir entre fantasear o no".145
Por ser obrigado a mover-se sobre o sólido, o homem inventa arbitrariamente
um mundo no qual possa caminhar. Supõe que as coisas são de uma dada maneira.
Ao executar tal tarefa está o homem dotado de um esquema com o qual pode
confrontar a efetiva realidade para, através dele, conseguir uma visão aproximada da
realidade. Assim, tendemos a imaginar que a realidade é de uma determinada
maneira e, logo, buscamos confrontar esta suposição com as inumeráveis facetas que
nos apresenta esta mesma realidade, a fim de alicerçar, solidificar a nossa teoria.
Primeiro, fantasiamos, logo racionalizamos sobre nossa fantasia. Nem mesmo a física
escapa a esse princípio. “Lo que llamamos razón no es sino fantasía puesta en
forma”.146 A física, diz Ortega, consiste na criação de mundos ideais, puramente
inventados. Acreditar no princípio da observação imparcial, norte da ciência moderna,
já não é mais possível.

La observación, la de Galileo como la del hombre paleolítico, es


imposible sin invención previa. Los hechos no nos dicen nada
espontáneamente. Esperan a que nosotros les dirijamos preguntas de
este tipo: ¿Sois A o sois B? Pero A y B son imaginaciones nuestras,
invenciones.147

Movemo-nos, assim, por esquemas dotados de princípios fundamentais, ou


segundo suposições prévias, que são puramente imaginativas. Para atingir a
realidade o homem atua criando, incessantemente, verdades. E não poderia ser de
outra forma. Toda teoria científica parte de determinados pressupostos que não se
expõem a provas e contraprovas, porque são aceitos pacificamente. Ademais,
podemos verificar que um conjunto X de dados pode ser manipulado de diversas
formas, a depender do método adotado pelo observador. Assim, nem o mais rigoroso
método de observação científica é capaz de excluir a influência criativa do homem.
Neste sentido, todos aqueles que buscam incessantemente a verdade das coisas

145 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 404.


146 ORTEGA, Una interpretación de la historia universal, IX, p. 190.
147 ORTEGA, Bronca en la física, V, p. 283.
68

devem assumir a responsabilidade inerente a toda “descoberta”. Ao considerar


particularmente o papel dos historiadores, diz Ortega:

Lo que yo pido a los historiadores no es más sino que tomen en serio


eso mismo que hacen, que de hecho practican y en vez de construir
la historia sin darse cuenta de lo que hacen se preocupen de
construirla deliberadamente, partiendo de una idea más rigurosa de la
estructura general que tiene nuestra vida y que actúa idéntica en todos
los lugares y en todos los tiempos.148

Ao problematizar o princípio de observação imparcial a que se atribuía à


ciência, Ortega questiona a primazia desta sobre os demais campos da criação
humana, a supremacia da razão sobre os demais atributos do homem. Também a
ciência é obra da fantasia. E este caráter, pelo menos em parte, fantasiador da ciência,
torna-a irmã da poesia.149 Em suma, por ser o homem um animal fantasista, não cabe
imaginar uma criação humana que não esteja contaminada por esta característica. E
Ortega acrescenta:

Desde hace muchos años sostengo que la poesía es una forma del
conocimiento, ahora añado que desde hace los mismos años procuro
hacer caer en la cuenta a los demás que la física es una forma de
poesía, esto es, de fantasía, y aún hay que añadir, de una fantasía
mudadiza que hoy imagina un mundo físico distinto del de ayer y
mañana imaginará otro distinto del de hoy.150

Existem, pois, diversas formas de conhecimento, uma das quais é a ciência,


que está impregnada de fantasia. Aqui vemos abalado um dos pilares da
modernidade, que se guiou pela crença na ciência, num progresso ininterrupto da
razão, tanto quanto pela crença de que a cultura era a finalidade nobre da vida. Para
Ortega, culturalismo, cientificismo e progressismo são um e mesmo ismo corruptor da

148 ORTEGA, Em torno a Galileo, V, p. 20.


149 Unamuno — um dos maiores críticos do intelectualismo — apontava para o poder experimentador
da literatura como alternativa da razão discursiva. “Alemania, v. gr., nos da a Kant, y nosotros le damos
a Cervantes. Harto hacemos con procurar enterarnos de lo suyo, que su ciencia y su metafísica
fecundará nuestra literatura, y ojalá nuestra literatura llegue a ser tal que fecunde su ciencia y su
metafísica” (Sobre la tumba de Costa, OC, VII, p. 1027). Unamuno estava convicto de que a filosofia
se assemelhava muito mais com a poesia do que com a ciência e, neste sentido, afirmava ser a
metáfora “uno de los más filosóficos modos de discurrir” (Sobre la filosofía española, OC, p. 644).
150 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 133.
69

vida. Reduzem o sentido e valor da vida a mero trânsito, a um futuro utópico. Neste
sentido, “el culturalismo es um cristianismo sin Dios”151,no qual a verdade deixaria de
ser encontrada em um Deus infinito, passando a ser ditada por uma ciência infinita.
Ao pensar assim, Ortega vai de encontro à posição culturalista moderna que atribui à
ciência o caráter de imparcialidade e a exclusividade no conhecimento da realidade.

La ciencia, la posesión de la verdad, es, como la posesión de Dios, un


acontecimiento que no ha acontecido ni puede acontecer en "esta
vida". La ciencia es sólo un ideal. La de hoy corrige la de ayer, y la de
mañana la de hoy. No es un hecho que se cumple en el tiempo; como
Kant y toda su época pensaban, la ciencia plenaria o la verdadera
justicia sólo se consiguen en el proceso infinito de la historia infinita.152

Sim, deixou de fazer sentido atribuir à física uma imparcialidade ante os


fenômenos do mundo. Assim como a poesia, a física está carregada de paixão, de
vontade, de criação. Aqui, o homem atual rompe com o pensamento moderno, com a
crença numa realidade imutável, capaz de ser alcançada mediante mecanismos
técnico-científicos, com a fé em que estamos seguindo inexoravelmente rumo a um
estágio de mais verdade. Ora, a verdade não pode ser mais pensada como adequação
do pensamento à realidade. O método científico não está isento de parcialidade, de
intuição, de achados provisórios. Os dados utilizados pela ciência, assinala Ortega,
ainda que efetivos, não são a realidade, não trazem por si a apreensão da realidade;
dependem de uma mente que os interprete, os ordene, os utilize. Com isso, Ortega
descarta a ideia de verdade modernamente concebida. A realidade se transforma em
algo não imóvel, menos rígido, menos imparcial.
Os gregos utilizavam a palavra alétheia para se referir à verdade. Seu sentido
originário, porém, é desvelamento: desvelar a realidade, tirar o véu que a encobria.
Este descobrir não significa uma imparcialidade do descobridor. Não se descobre
nada valendo-se de pura técnica. Não se trata de simples manejo dos fatos. Descobrir
consiste em imaginar e confrontar. “Los hechos”, reflete Ortega, “cubren la realidad y

151 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 185.


152 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 185.
70

mientras estemos en medio de su pululación innumerable estamos en el caos y la


confusión”.153
Para Ortega, o homem só pode atuar sobre matérias questionáveis, ideias, e
nunca sobre a realidade última. Por isso, a verdade de uma ideia consiste justamente
na prova que queremos dar de sua existência. Necessita apoiar-se em outras ideias
que, por sua vez, deverão sustentar-se em outras, formando, assim, um sistema de
ideias, um Discurso. Este Discurso é obra e responsabilidade do homem e conforma,
de certa maneira, um mundo à parte do mundo real. Neste sentido, a verdade ou
falsidade de uma ideia depende da solidez que consegue quando confrontada às
demais ideias integrantes do Discurso. Uma ideia nova que pretenda ingressar no
Discurso está obrigada a contestar o conjunto de ideias vigentes, e não diretamente
contra a realidade. Segundo Ortega, “la verdad suprema es la de lo evidente, pero el
valor de la evidencia misma es, a su vez, mera teoría, idea y combinación
intelectual”.154
Para descobrir a realidade, o homem está obrigado a exercitar duas operações
distintas. A primeira consiste em (retirando-se por um momento dos inumeráveis fatos
que o rodeiam, estando só com sua mente, “ensimismándose”), imaginar uma
realidade, fabricar uma realidade imaginária, por sua conta e risco. Então, continuando
em seu “ensimismamiento”, deve imaginar, racionalmente, quais os fatos que esta
realidade imaginária produziria — quais aspectos desta lhe caberia perceber —, em
sendo esta verdadeira. Mas, após finalizar este exercício poético, criador, deve
abandonar seu “ensimismamiento”, sair de sua mente pura e iniciar a segunda
operação: a confrontação. Deve comparar os fatos — que supostamente a realidade
imaginária produziria — com os fatos que efetivamente podem ser observados. Então,
quando existisse a sobreposição entre uns e outros, poderia assegurar que a
realidade ocultada pelos fatos teria sido des-coberta.155

153 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 15.


154 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 389.
155 Karl Popper, ao criticar a “crença de que a ciência avança da observação para a teoria”, reafirma,

em linhas gerais, os conceitos antecipados por Ortega. Em Conjecturas e refutações, escreve: “Em vez
de esperar passivamente que as repetições nos imponham suas regularidades, procuramos de modo
ativo impor regularidades ao mundo. Tentamos identificar similaridades e interpretá-las em termos de
leis que inventamos. Sem nos deter em premissas, damos um salto para chegar a conclusões — que
71

Este duplo exercício — imaginação/confrontação — é o mecanismo próprio da


ciência por ser esta um conhecimento que depende de um primeiro impulso poético,
de uma prévia e livre criação humana para, logo, valendo-se da qualidade organizativa
da razão, confrontar o inteiramente humano (o imaginado) com o que não faz parte
diretamente do homem, os fatos que o rodeiam, os dados da experiência sensível.
Faz-se então necessário o emprego de duas formas distintas de conhecer: uma,
criadora, puramente imaginativa, substancialmente humana; e outra, confrontadora,
na qual a razão lógica torna-se ferramenta indispensável à organização dos fatos
aparentes. Assim desvenda Ortega o mecanismo racional do homem na construção
da realidade. “La realidad no es dato, algo dado, regalado — sino que es construcción
que el hombre hace con el material dado”.156
Esta construção da realidade é uma reação indispensável ante um mundo
enigmático. O homem reage ante o enigma que é a realidade autêntica, produzindo
um mundo imaginário. Imaginariamente, ele se retira da realidade e se recolhe a seu
mundo interior, volta-se para si. Mas, neste voltar-se para si, o homem se volta para
o mundo, enquanto realidade histórica, percebendo-o, agora, de sua dimensão
interior. Trata-se de um exercício forçoso de interpretação. “Vivir es ya encontrarse
forzado a interpretar nuestra vida”.157 O resultado desta construção
imaginativa/confrontativa, de nossa postura poéticoestatística diante dos fatos
perceptíveis, é o que chamamos mundo ou universo. “Este, pues, no nos es dado, no
está ahí, sin más, sino que es fabricado por nuestras convicciones”.158
Esta interpretação que o homem dá à sua vida, esta série de soluções mais ou
menos satisfatórias que inventa para resolver seus problemas e necessidades vitais,

podemos precisar pôr de lado, caso as observações não a corroborem” (1980, p. 14). Não surpreende
tanto verificar as semelhanças entre o pensamento de Popper e o de Ortega quanto o desconhecimento
da existência do próprio Ortega por parte de Popper e da maioria dos filósofos ingleses
contemporâneos. Em Confissões de um filósofo, Bryan Magee resume o livro de Popper acima citado
e conclui com a espantosa assertiva: “Ele [Popper] derruba uma tradição empírica em filosofia
consagrada há alguns séculos, tradição cujo princípio mais importante é o de que todo o nosso
conhecimento do mundo deve começar pela experiência. Trata-se, portanto, apesar das aparências,
de uma teoria radical — revolucionária num sentido histórico e épica em suas implicações. Ela arrasa,
quase por acaso, com séculos de atividades filosóficas” (2001, p.).
156 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 16.
157 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 24.

158 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 24.


72

é, justamente, o que chamamos cultura, porque esta, à luz do pensamento de Ortega,


está obrigada a servir à vida, e nunca o contrário.
73

8 SOBRE IDEIAS E CRENÇAS

O ser humano começa sua vida encarando o desconhecido, obrigado a


interpretar sua situação, a “averiguar qué es ese mundo en que braceamos náufragos
y cuál es su relación con nosotros”.159 A história radica nesta necessidade que temos
de sustentar-nos em um meio que nos é estranho. Nesta tarefa que é a vida
recebemos influxos de nossos antepassados, os quais também se encontraram com
o desconhecido e nos legaram suas crenças. Por isso, de acordo com Ortega, a
realidade radical é exatamente essa tarefa de viver; é, constitutivamente, serviço.
Para conseguir o equilíbrio em um mundo que lhe é total ou parcialmente
complexo, o homem tem como principal ferramenta secretar ideias. Mas a ideia que o
homem tem da realidade não se confunde com a realidade mesma — “su papel es de
espejo, y cuanto más limpio, mejor”.160 O homem se propõe a interpretar o mundo à
sua volta da melhor maneira possível — contudo, as ideias “son y no pueden ser más
que fluctuantes interpretaciones de la realidad”.161
Neste sentido, não cabe pensar em verdades definitivas, que são flutuantes
interpretações da realidade. Tampouco podemos pensar a verdade como uma cópia
fiel da realidade. A verdade é uma interpretação da realidade.162 A ideia, adverte
Ortega,
refleja las cosas y en este virtual sentido las contiene. Si un espejo
tuviera conciencia de sí mismo caería fácilmente en la ilusión de que
tiene dentro de sí los objetos que refleja; y si además tuviese pies
echaría a andar creyendo que podía llevarse consigo todo lo en él
espejado, que era, pues, espejo y cosa espejada.163

Para Ortega, as ideias assumem um papel secundário em nossas vidas. São


perceptivelmente flutuantes. O ideário de um homem é não capaz de aclarar sua vida

159 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 470.


160 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 472.
161 ORTEGA, Pasado y porvenir para el hombre actual, IX, p. 720.
162 Para conseguir maior inteligibilidade sobre o tema, Ortega acrescenta aos termos “verdade” e

“realidade” — utilizados por ele com um sentido, muitas vezes, destoante do habitual — os termos
“ideias” e “crenças”. Em alguns contextos, utilizou-os conjuntamente: “ideias verdadeiras” e “a realidade
em que cremos”; em outros, utilizou isoladamente cada vocábulo.
163 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 473.
74

ou sua época. Para o filósofo, são as nossas crenças o que mais relevo e influência
têm sobre nossas vidas. Assim, as ideias

no poseen en nuestra vida valor de realidad. Actúan en ella


precisamente como pensamientos nuestros y sólo como tales. Esto
significa que toda nuestra ‘vida intelectual’ es secundaria a nuestra
vida real o auténtica y representa en esta sólo una dimensión virtual o
imaginaria.164

Em termos intelectualistas, são os pensamentos conscientes que determinam


nossa vida. Ortega, contrariamente, afirma que nosso comportamento depende de
nossas crenças, que, como vimos, não são objeto de nosso pensamento consciente.
Exemplifica: ao caminhar pela rua, acreditamos que o solo é firme, e não
afundaremos. Ora, referir algo tão óbvio parece tolice; entretanto, isto é assim, diz
Ortega, pela força dessa convicção, por estar esta crença totalmente enraizada em
nós. Sequer somos conscientes deste pensamento — contudo, sem a confiança na
rigidez do solo seríamos incapazes de caminhar. “En las creencias vivimos, nos
movemos y somos”.165
Subjacentes às ideias encontramos as crenças, que de modo imperceptível nos
sustentam. Através delas, com elas, atua o nosso viver cotidiano.166 Nossa relação
com as ideias é reflexiva porque elas nos permitem criticar nossas crenças e elaborar
novas formas de pensar e agir.167 A arte, a ciência, a técnica, a política, a moral e, de
certo modo, a religião são consequências desta inteligência reflexiva.168 E todas são

164 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 388.


165 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, 397.
166 Para Giddens, as crenças “não constituem meras descrições do mundo social, mas, como produto

organizado dos atos humanos, formam a base da constituição desse mundo... Os atores utilizam os
conceitos do senso comum e a linguagem cotidiana para fazer com que a vida aconteça" (1997, p.
252).
167 Cabe lembrar que, para Ortega, as ideias têm o poder de modificar a nossa percepção da realidade,

inclusive de destruir completamente a crença em que um povo se encontra: “Las ideas son fuerzas
destructoras, porque desarraigan a los hombres de una u otra creencia y finalmente, al cabo del tiempo,
pueden destruir toda la creencia de un pueblo” (Pasado y porvenir para el hombre actual, IX, p. 722).
168 Segundo Husserl, “Se a ideia geral de verdade em si se converte em norma universal de todas as

realidades e de todas as verdades relativas, que aparecem na vida humana, isto afeta também a todas
as normas tradicionais, as do direito, da beleza, da finalidade, dos valores humanos dominantes,
valores de caráter pessoal” (2008, p. 73).
75

possíveis, apenas, sobre a base das crenças. Sem crenças não se pode construir
nada.
Em Meditaciones del Quijote, Ortega esclarece como se manifesta a percepção
da realidade por parte do homem, como esta percepção depende da perspectiva que
se pode ter de determinado ponto de vista, depende das circunstâncias. Desse modo,
nossas crenças são nossas circunstâncias, influenciam nosso ponto de vista.
Segundo Ortega,

las creencias constituyen la base de nuestra vida, el terreno sobre que


acontece. Porque ellas nos pone delante lo que para nosotros es la
realidad misma. Toda nuestra conducta, incluso la intelectual,
depende de cuál sea el sistema de nuestras creencias auténticas.169

Vivemos e nos movemos em nossas crenças, elas nos constituem, assegura


Ortega. Mas, enquanto temos as ideias em nós, com as crenças ocorre o contrário:
são elas que nos têm a nós. Através delas dirigimos as nossas condutas, são o chão
onde apoiamos nossa vida, nossas relações, nossos pensamentos e ações. Para
Ortega, as crenças são o motor e o elemento fundamental do “quehacer vital”. Somos
‘moldados’ por nossas crenças e é através delas que as coisas com que contamos
ganham sentido. Mas, visto que esse “quehacer” consiste em um “contar com” as
coisas, as crenças, para Ortega, não se reduzem apenas a tornar possível o
“quehacer”, sendo sua principal função conhecer a realidade.
As crenças, na maioria das vezes, são inconscientes, sequer saberíamos
formulá-las claramente, como acervo que são da herança cultural. Contamos com
elas, mas não as percebemos conscientemente, e mesmo as ignoramos. 170 Neste
sentido, as crenças se confundem com a própria realidade. Ortega conceitua a crença
como uma superior forma de conhecimento, vinculada à sensibilidade, à vida.171

169 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 387.


170 Note-se que há uma aproximação com o conceito de “representações coletivas” de Durkheim e, em
certo sentido, com o de “inconsciente coletivo” de Jung.
171 Em Ideas y creencias e Historia como sistema podemos encontrar a expressão plena da teoria da

crença orteguiana. Julián Marías observa que, já em Vieja y nueva política, de 1914, a distinção entre
ideias e crenças está claramente formulada (MARÍAS, 1991, p. 151).
76

Diferentes das ideias, que são pensamentos explícitos, as crenças nem sempre
se formulam expressamente. Mas isso não significa que nunca se possa ser
consciente delas; significa, simplesmente, que as crenças operam de forma
infraintelectual. Contamos com elas tanto quando pensamos como quando agimos:
são os fundamentos básicos de nossas argumentações e de nossa conduta. As
crenças, segundo Ortega, são como o chão onde pisamos e caminhamos; apenas nos
damos conta de sua existência quando tropeçamos nele.
Já as ideias, para o pensador espanhol, surgem em dia e hora determinados
sobre esse chão em que caminhamos inadvertidamente. São ocorrências,
pensamentos que poderiam nunca nos ter ocorrido. Constituem-se como teorias e não
confundimos seus conteúdos particulares com a própria realidade. Resultam do
esforço de nosso intelecto.
Enquanto criações nossas, as ideias são propositais e intencionadas; têm por
objetivo interferir na realidade em que cremos viver. Sabemos a que se dirigem e que
podem ser refutadas. Deve-se entender, segundo Ortega, a afirmação de que a ideia
é aquilo que o homem forja para si mesmo quando a crença vacila. Na medida em
que as ideias tornam-se as coisas que construímos de maneira consciente, não
cremos nelas. Como ocorrências, sobre as ideias podemos atuar de forma direta.
Nossas crenças, em contrapartida, são criações de outros, de nossos antepassados.
Nascemos imersos nelas e através delas percebemos a realidade.
Pela impossibilidade humana de perceber a realidade em si mesma, somos
obrigados a contar com nossas crenças, como um conjunto de soluções. Contamos
com elas não de maneira intencional, mas infraintelectual, e, justamente por isso,
confundem-se com a realidade. A elas pertencemos, queiramos ou não. E Ortega
sublinha:

Ahora bien, de la mayor parte de las cosas con que de hecho


contamos no tenemos la menor idea, y si la tenemos — por un especial
esfuerzo de reflexión sobre nosotros mismos — es indiferente porque
no nos es realidad en cuanto idea, sino, al contrario, en la medida en
que no nos es sólo idea, sino creencia infraintelectual.172

172 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 388.


77

Neste sentido, a realidade em que cremos estar seria o impregnado em nós, o


tido já por natural, o inquestionável, o imperceptível, como a certeza de que existe um
chão suficientemente sólido para sustentar nosso corpo. Aquilo que mesmo oculto em
nosso interior faz parte de nossas vidas, sem o qual seria impossível viver. “Aquello
con que contamos y en que, de puro contar con ello, no pensamos” — nossas crenças,
nossa vida primária, o pano sobre o qual teceremos nosso destino. Nossa vida
intelectual, por outro lado, será sempre secundária, representando apenas uma
dimensão imaginária de nossa realidade autêntica. As ideias, nós as temos e justo por
isso, porque sabemos que são criações nossas, nunca influirão em nossas vidas como
autêntica realidade. Em contrapartida, nossas crenças nos têm a nós, nelas “vivemos,
nos movemos e somos”. Porque, para Ortega,

creencias son todas aquellas cosas con que absolutamente contamos,


aunque no pensemos en ellas. De puro estar seguros de que existen
y de que son según creemos, no nos hacemos cuestión de ellas, sino
que automáticamente nos comportamos teniéndolas en cuenta”.173

Ortega, ao desenvolver a noção de executividade, distingue as duas


possibilidades de “existir algo para mim”: ou algo existe na forma de “contar com” ou
existe como “reparar em”. “Reparar, equivale a lo que tradicionalmente se llamaba
‘tener conciencia de algo’, y el simple ‘contar con’, expresa esa presencia efectiva,
ese existir para mí que tienen siempre todos los ingredientes de mi situación”.174A
diferença entre ideias e crenças praticamente coincide com essa distinção entre as
formas de presença executiva e intelectual das coisas na vida humana, que, como
vimos, é a realidade radical.
Não pensamos racionalmente sobre nossas crenças, apenas estamos seguros
de sua existência. Quando pensamos racionalmente sobre uma crença, significa que
começamos a deixar de ‘contar com’ ela. A esse respeito, Peirce tem posição
semelhante ao afirmar:

173 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 397.


174 ORTEGA, Unas lecciones de metafísica, XII, p. 41.
78

Uma proposição que voluntariamente pudesse ser posta em dúvida,


certamente nós não a creríamos. Porque a crença, enquanto dura, é
um hábito forte e, como tal, força o homem a crer até que alguma
surpresa quebre o hábito. Apenas se rompe uma crença por meio de
uma experiência nova. (PEIRCE, cp5, p. 524).

Quando ocorre tal desqualificação de uma crença, esta perde o valor de


realidade. “Porque realidad”, diz Ortega, “es precisamente aquello con que contamos,
queramos o no. Realidad es la contravoluntad, lo que nosotros no ponemos; antes
bien, aquello con que topamos”.175 E chama atenção para o fato de que aquilo que
menos percebemos, com que menos nos preocupamos, é o que mais interfere em
nossas vidas, que maior força exerce sobre nossas condutas.
Assim, se queremos entender o espírito de uma época devemos elevar ao
primeiro plano suas crenças comuns. Se buscamos “esclarecer a vida a partir de seu
subsolo”, se queremos construir a história, devemos penetrar fundo no estrato das
crenças. Ressalta Ortega que somos nossas crenças, enquanto as ideias são parte
de nossa ocupação intelectual. Ou bem as temos, por um esforço e trabalho nosso,
ou bem as recebemos de outrem que por nós efetuou tal esforço de entendimento. Já
com as crenças interagimos de maneira oposta:

no llegamos a ellas tras una faena de entendimiento, sino que operan


ya en nuestro fondo cuando nos ponemos a pensar sobre algo. Por
eso no solemos formularlas, sino que nos contentamos con aludir a
ellas, como solemos hacer con todo lo que nos es la realidad misma.176

A vida é sempre preocupação, sempre problema. A realidade em que cremos


estar é formada por um “baú” de problemas solucionados. Na maioria das vezes,
esses problemas resolvidos sequer são percebidos. Outras vezes, os percebemos
como respostas já dadas e assentadas, visto que não cabe nenhuma dúvida sobre
sua veracidade, motivo pelo qual refletir sobre o assunto nos parecerá total perda de
tempo. Em contrapartida, a ideia verdadeira é a solução encontrada para um problema
do qual ainda cabe imaginar um futuro debate, mesmo que imaginemos que este

175 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 389.


176 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 385.
79

provavelmente não acontecerá. É a ideia que encontra uma aceitável correspondência


com o aparente, corrigindo uma parte de nosso “conjunto de soluções vitais” que havia
falhado.
As ideias podem ou não ser verdadeiras. São verdadeiras, na medida em que
conseguem obter uma aceitável coincidência quando confrontadas com o aparente da
realidade.
Em Ortega, as ideias desempenham uma função “ortopédica”, porque servem
para sanar determinados problemas da vida, da realidade. São pensamentos que nos
ocorrem sobre a realidade, descrições explícitas que podemos examinar e valorar.
Incluem-se neste grupo desde os pensamentos mais vulgares até as proposições
científicas mais complexas. Nós as sentimos como ocorrências nossas, como
resultado de nosso pensar racional. Mas, por mais verdadeiras que as ideias possam
nos parecer, há uma larga distância entre elas e as crenças. Assim, afirma Ortega:

Porque creer es cosa muy distinta de pensar. Pensar se puede pensar


todo, basta con quererlo pensar pero el creer o no creer está fuera de
nuestro albedrío. Pensamos la verdad científica, es decir,
consideramos que una cierta idea posee ciertos precisos atributos que
nos obligan a incluirla en la gran construcción intelectual que es el
sistema de las teorías. La verdad científica persuade nuestra
inteligencia, pero esto no implica que la creamos.177

As crenças são aquelas ocorrências que estão no ambiente e pertencem à


geração presente, a de agora. Elas têm, para Ortega, um caráter coletivo, não são
individuais. São aquela espécie mais profunda de verdade, não questionada
socialmente. Em Ortega, as crenças e o vital constituem um primeiro princípio
filosófico. O fundamento de tudo é a vida como realidade radical, pois consiste em um
“quehacer”, que se faz possível graças às crenças. Em tudo e por tudo, somos as
nossas crenças e nos movemos através delas e graças a elas. A seguinte afirmação
sintetiza o anteriormente dito:

Las creencias constituyen la base de nuestra vida, el terreno sobre el


que acontece. Porque ellas nos ponen delante lo que para nosotros es

177 ORTEGA, Una interpretación de la historia universal, IX, p. 58.


80

la realidad misma. Toda nuestra conducta, incluso la intelectual,


depende de cuál sea el sistema de nuestras creencias auténticas. En
ellas vivimos, nos movemos y somos.178

Como vemos, Ortega confunde as crenças com a realidade mesma, sem, com
isso, identificá-las de todo. Para ele, nossas crenças e a realidade mesma não são,
de fato, uma e mesma coisa; contudo, analisar a realidade sem o amparo das crenças
é impossível. Em alguns pontos encontraremos um paralelismo entre a concepção de
David Hume e a de Ortega. Também Hume adota a noção de crenças como
consequência de sua secularização, e concorda que ter uma ideia e crer não se
confundem, pois podemos conceber ideias em que não cremos. Trechos como o
citado abaixo dão mostra desta similitude entre ambos os pensadores Diz Hume sobre
as crenças:

É o ato da mente que torna as realidades, ou o que é tomado como


tal, mais presentes para nós do que as ficções, fazendo-as pesar mais
no pensamento, e dando-lhes uma influência superior sobre as
paixões e imaginação. (HUME, 1984, Seção V, parte II).

Podemos entender que a discordância entre os dois filósofos reside, sobretudo,


na radicalidade de Ortega em sua teoria, transportando para o plano vital o que Hume
sustenta apenas no plano gnosiológico. Para Hume, uma crença seria ‘uma ideia forte
e vivaz’, ‘um sentimento natural’ decorrente de uma impressão não racionalmente
apreendida pelo entendimento. Como sentimento não pode ser definido, mas pode
ser descrito como “uma concepção mais viva, mais intensa e forte que a que
acompanha as puras funções da imaginação” (HUME, 1984, p. 346). Neste sentido, a
crença é uma ideia, mas não qualquer tipo de ideia.
Segundo Hume, o tipo comum de ideia é uma pálida cópia ou representação
das coisas, que não pode se converter em crença, pois para isso se requer, como já
foi dito, força e vivacidade na ideia. Assim, a crença é, ao mesmo tempo, ideia,
impressão e sentimento. Em sua origem a crença foi ideia, mas fortalecida e avivada
pela associação com uma impressão presente. Por isso, Hume diferencia ideia de

178 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 387.


81

crença na maneira como a concebemos. “A crença”, diz o filósofo escocês, “não é


mais que uma ideia que é diferente de uma ficção, não por sua natureza, ou pela
ordem de suas partes, mas pela maneira de ser concebida” (1984, p. 205).
Primeiramente, não devemos reduzir o pensamento de Ortega sobre o que é
uma crença no sentido gnosiológico, mas situá-lo no âmbito vital, fisiológico. Ortega
extrapola o tratamento que Hume dá ao tema. Podemos notar como em Ortega as
crenças assumem um papel mais radical. Enquanto em Hume a razão se supedita à
experiência como fonte de todo conhecimento e nela obtém sua certeza ou
probabilidade, em Ortega a razão se supedita à vida. Hume acredita serem as crenças
imprescindíveis para o conhecimento, porque, em última instância, servem como
apoio, últimos princípios; Ortega as considera como imprescindíveis ao próprio
“quehacer” vital. “As crenças que não questionamos são nossa instalação no mundo”
(MORÓN ARROYO, 1968, p. 163). As crenças, de acordo com Rodríguez Huéscar,
“possuem uma certeza vital e incomparável à de toda certeza meramente intelectual”
(RODRÍGUEZ HUÉSCAR, 1966, p. 211).
Já as ideias, para Ortega, são representações e interpretações da realidade; a
crença, por ser originária de uma ideia, é uma criação mental. Ocorre que, para Hume,
a crença representa a realidade, enquanto que para Ortega, a crença é de fato a nossa
realidade, o que sustenta o nosso “quehacer vital”. Entende Hume que o costume
converte a crença em “uma espécie de instinto natural” para conhecer a realidade;
Ortega, porém, pensa que uma crença consolidada pelo costume se converte na
própria realidade.179 Cumpre observar que o filósofo espanhol diferencia ideias de
crenças não pelo modo como foram concebidas, mas sim pela maneira de nos afetar.

179 Como se pode observar, a interpretação dada ao pensamento de Hume é, fundamentalmente, a


interpretação que o próprio Ortega tem da obra do escocês. Barry Stroud (2005) e Norman Kemp-Smith
(1941) interpretam, porém, o pensamento de Hume aproximando-o bastante da filosofia orteguiana.
Para esses autores, Hume deveria ser considerado um “revolucionário”. Em seus estudos recolhem
inúmeros trechos da obra de Hume que corroboram essa aproximação. Hume defende, por exemplo,
que “o hábito é um instinto que a natureza implantou em nós” (1999A, p. 45)”; que “a natureza, por uma
necessidade absoluta e incontrolável, nos determinou a julgar bem como a respirar e sentir” (1999B, p.
183), e, também,“a necessidade de agir para sobreviver e a necessidade de se ter crenças para poder
agir” (SMITH, 1995, p. 32). Isso faria de Hume não um cético, mas um “naturalista”. Segundo esses
autores, Hume aceitaria a existência de causas reais desconhecidas para que, através dos instintos,
fosse possível o acesso à realidade.
82

A defesa de uma razão atrelada à vida, nos tempos mais recentes do


pensamento ocidental, vem de Schopenhauer e Nietzsche. A verdade passa por
filtros, mas filtros que não a decantam das impurezas da vida. Aqui, vemos, as
emoções exigem seu quinhão. Depois de Nietzsche, a razão, em seu viés mais árido
pareceu ainda mais aferrada a seus princípios. Mesmo com o crescimento da biologia
e da psicologia, queria-se, numa boa parte dos pensadores, uma razão limpa,
geométrica, lapidar.
Vimos que Ortega critica a razão moderna, a maneira de pensar a verdade
estabelecida modernamente, e em seu lugar defende uma razão vital, um pensamento
cuja realidade radical é a vida. Esta nova maneira de pensar está presente em sua
“teoria da vida humana”, segundo a qual é possível compreender o embate do homem
com o mundo.
O homem se acha, contra sua vontade, num mundo enigmático do qual apenas
pode perceber fragmentos, aspectos. Contudo, é impossível — ou pelo menos
angustiante — para o homem viver sem uma visão do todo, sem forjar para si uma
lógica sobre este mundo que tanto o angustia. Sem algumas certezas, afirma Ortega,
o homem seria incapaz de dar um passo. Em suma, é exigência da própria vida do
homem esta condição de ter a que se ater. A vida exige uma ordem. Por só dispor o
homem de alguns fragmentos do mundo, é obrigado a deduzir todo o restante
necessário. E este processo se dá, segundo Ortega, da seguinte maneira:

Ante la auténtica realidad, que es enigmática y, por tanto, terrible, el


hombre reacciona segregando en la intimidad de sí mismo un mundo
imaginario. Es decir, que por lo pronto se retira de la realidad, claro
que imaginariamente, y se va a vivir a su mundo interior [...] De ese
ensimismamiento sale luego el hombre para volver a la realidad, pero
ahora mirándola, como con un instrumento óptico, desde su mundo
interior, desde sus ideas, algunas de las cuales se consolidaron en
creencias.180

O homem, ao encontrar-se frente a uma realidade que é um caos, um enigma,


atua, por necessidade de sobrevivência, criando uma ordem, um sentido, uma

180 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 401.


83

interpretação. Geneticamente, segundo Ortega, a crença resulta de uma situação


trágica em que se encontra o homem, de um sentimento de naufrágio. Para
sobreviver, para se sustentar neste mundo em que se sente náufrago, o homem o
interpreta, partindo de algumas convicções básicas que já encontra quando na vida é
atirado. Nessas crenças, pois, vive, se move e é. Para Ortega, a fonte da crença é a
própria situação vital do homem.
Quando o homem se sente perdido diante da realidade, ele se refugia em sua
intimidade e começa a pensar, a ter ideias. Ou seja, para conhecer o mundo, o homem
deve primeiramente imaginá-lo, para em seguida confrontá-lo com os aspectos que a
realidade lhe permite perceber. Ocorre, porém, que em sua comunidade os homens
são herdeiros. Nascem imersos em uma ordem social que remonta a um passado
longínquo; nessa medida, como herdeiros, para poder viver, recebem de seus
antepassados um conjunto de interpretações do mundo. Isto,

porque, en efecto, nuestra vida está constituida por uno de sus lados
por un repertorio de pronósticos y expectativas que se han formado en
nosotros indeliberadamente, espontáneamente. Sería imposible
nuestra existencia si ante cada hecho que sobreviene tuviésemos que
afrontarlo como algo completamente nuevo y no poseyésemos por
anticipado una prefiguración que nos permite tomar ciertas
precauciones y preparar nuestra conducta.181

Ora, se o mundo tem como característica primordial o ser enigmático, para nele
poder viver os primeiros homens foram obrigados a explicá-lo, a interpretá-lo. Este
interpretar — criar ideias — é o labor da humanidade desde que ela começou a existir.
Ortega assim descreve esta situação dramática do homem obrigado a criar ideias:

La relación primaria del hombre con la circunstancia desnuda,


compuesta de puros y desazonadores enigmas que le obligan a
reaccionar buscándoles una interpretación; en suma, le obligan a
pensar, a hacer ideas, los instrumentos por excelencia con que vive. 182

181 ORTEGA, Una interpretación de la historia universal, IX, p. 16.


182 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 63.
84

Para Ortega as ideias são artefatos da mente, ou “ocorrências”, termo que


emprega em alguns textos. Nessa medida, elas não possuem a força vinculadora que
reside nas crenças, pois estas constituem o estrato básico da vida humana.
Entretanto, a angústia resultante do contato com a realidade provoca no homem o seu
instinto criador de ideias. Estas, com o tempo, foram se consolidando e se
convertendo em crenças.183
Assim, o homem identifica a realidade com o que suas crenças lhe oferecem.
Sobre isso, esclarece Ortega:

Lo que solemos llamar mundo real o “exterior” no es la nuda, auténtica


y primaria realidad con que el hombre se encuentra, sino que es ya
una interpretación dada por él a esa realidad, por lo tanto, una idea.
Esta idea se ha consolidado en creencia. Creer en una idea significa
creer que es la realidad, por lo tanto, dejar de verla como mera idea.
Pero claro es que esas creencias comenzaron por “no ser más” que
ocurrencias o ideas sensu stricto.184

Portanto, as crenças foram ideias que se consolidaram na consciência coletiva,


constituindo assim um hábito comum de interpretação da realidade. Ideias essas que
passam a fazer parte de nosso “tesouro de crenças”, nossa herança cultural. Daí
Ortega ressaltar como essencial na crença seu caráter hereditário — como um “a priori
acumulativo”. O que nossos olhos veem e qualificam como realidade, não é outra
coisa senão o resultado de uma invisível e sucessiva acumulação de convicções a
que nossa sociedade chegou, logrando sua vigência em forma de hábito. Assim como
Gustave Le Bon em As Opiniões e as Crenças, Ortega acredita que os costumes, o
hábito, têm um papel decisivo na consolidação de uma ideia.185 E justamente por isso,
por ser um hábito, as crenças têm uma influência determinante em nossas vidas.
Nossas crenças são como a herança sobre a qual se vive, o conjunto de esforços
herdados, e operam em nossas vidas sem que delas nos demos conta.

183 Para Marías, também existem crenças não procedentes de ideias, crenças originárias, que Ortega
denomina experiências categoriais. “Essas crenças não começam por ser ideias, mas nascem de uma
peculiar vivência da realidade” (MARÍAS, 1955, p. 141).
184 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 63.
185 Eis o que afirma Gustave Le Bon: “A existência de um indivíduo ou de um povo ficaria

instantaneamente paralisada se por um poder sobrenatural se subtraísse à influência do hábito. Este é


o que cada dia nos diz o que devemos dizer, fazer e pensar” (1912, p. 46).
85

Então, como herdeiros, podemos lidar com uma realidade mais estável, menos
terrível, porque já interpretada. Mesmo assim, sempre encontraremos motivos para
reinterpretá-la, pelo menos em parte, pelo menos na parte do mundo que se nos
apresenta imprecisa.
Mas, para que as crenças assumam este papel radical em nossa vida de todo
dia, devemos percebê-las de maneira pré-intelectual, porque estão impregnadas no
ambiente, são parte imperceptível de uma época. O problema, porém, que se coloca
é como seria isso possível se são as crenças, em última instância, ocorrências
humanas, produtos de nossa imaginação?
Percebemos o mundo que nos rodeia por entre o conjunto de soluções vitais
confeccionado por nossos antepassados, que funciona para nós como um filtro, uma
tela, a qual é lançada à nossa vista desde que nascemos. Daí ser extremamente
complicado perceber que essa tela não é parte de nós mesmos ou do mundo. Ao
nascer, recebemos de nosso entorno, a cultura, um programa de soluções vitais que,
no curso do tempo, se torna parte inquestionável da condição humana.
Uma interpretação do mundo, quando atinge o grau de crença, costuma guiar
o destino da humanidade por um período relativamente longo da história. Passa a
representar, para nós, a realidade tout court. O que começou como uma ideia a
respeito do mundo, uma verdade ou conjunto de verdades, se nos apresenta como a
realidade. Para que uma ideia verdadeira faça parte do conjunto de crenças de uma
determinada cultura faz-se necessário o concurso do tempo, donde a força do
esquecimento.
Fomos tocados pelo esquecimento, herdeiros incapazes de reconhecer a
herança recebida. “As verdades”, diz Nietzsche, “são ilusões, das quais se
esqueceram que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível,
moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal,
não mais como moedas” (1999, p. 26). Aqui, o termo “verdades” parece mais próximo
do que Ortega denomina crenças, nas quais as ideias se transformaram. E Ortega
86

então conclui: as ideias são “aquello que las generaciones posteriores engendran en
la capa de las creencias; se convierten en creencias y desaparecen como ideas”. 186
Este processo, evidentemente, necessita de uma longa duração para que atue
o esquecimento, isto é, para que as ideias ganhem consistência e sejam assimiladas
pelo conjunto de crenças dominante.
Um dos fios condutores do pensamento orteguiano é a pressuposição de uma
“realidade em que cremos viver”, mas uma realidade absoluta, parcialmente confusa,
dependente de interpretações e que se revela em perspectivas. O homem persegue
a identificação entre ambas, contudo não dispõe de outro mecanismo senão o de
tentativa e erro, ao imaginar que a realidade autêntica é de determinada forma, e
confrontar esta hipótese com as diversas perspectivas que esta mesma realidade
autêntica lhe apresenta. Sobre a realidade autêntica não atuamos de forma direta.
Onde temos o poder de agir é sobre as ideias de nosso tempo, as novas
interpretações do real, que, caso alcancem o êxito necessário, se transformarão na
realidade de gerações vindouras, na realidade em que crerão os nossos tataranetos.
A partir daqui abre-se uma nova perspectiva para entendermos o conceito de
realidade. Ao concebê-la como uma verdade que, por haver cumprido tão bem aquilo
a que se propunha, caiu no esquecimento, Ortega rompe com o pensamento moderno
a esse respeito.
Em resumo, as crenças foram ideias que, ou nasceram de um confronto inicial
com a realidade enigmática, ou intervieram em vazios de nossas crenças,
substituindo, agregando ou reformando parte da interpretação do mundo que
apresentava um caráter conflitivo, duvidoso, dando, assim, unidade e solidez ao que
era ambíguo. Essas ideias, com o passar de gerações e por terem suportado a
coerência com o conjunto de crenças vigente, são esquecidas enquanto ideias,
ocorrências, passando a integrar o nosso baú de crenças. Opera sobre as crenças,
vale frisar, o atributo do esquecimento. Foram elas ocorrências de gerações anteriores
que com o passar do tempo chegaram a nós com a leveza do imemoriável. Não se

186 ORTEGA, Pasado y porvenir para el hombre actual, IX, p. 722.


87

sabe como nem por onde entraram a fazer parte de nossas vidas. É algo herdado. É
o conjunto de esforços herdado. O homem é um herdeiro.
88

9 A CRISE DA RAZÃO

O homem fabrica verdades como um mecanismo de sobrevivência, pois, por


sua natureza complexa, dupla (exterior e interior), é incapaz de “estar no mundo” sem
uma interpretação crível deste. E porque incapaz de perceber o mundo em toda sua
plenitude com total certeza, concebe-o de forma idealizada. Para isso, partindo de
nossa perspectiva tentamos entender o todo através de um processo lógico-criativo.
Esta interpretação do mundo, quando provável, ou seja, quando consegue se impor
diante das outras interpretações concorrentes, passa a desempenhar o papel de
regente de todas as interpretações especializadas.187 Deixa de ser percebida como
uma ideia e se integra ao conjunta de crenças que servem como alicerce de nossa
instalação no mundo.
Assim, acredita-se, ocorreu ao longo da história humana. As sociedades se
mantinham unidas mais por suas crenças, que pela coerção. Pelo menos aquelas
sociedade mais duradouras, as chamadas civilizações e ou culturas. Ao acreditarmos
em um mundo regido por um Deus onipotente, por exemplo, passaremos a interpretar
alguns fenômenos de difícil compreensão à luz do que é teocêntrico. De acordo com
Ortega:

Cada especie y aun cada variedad y aun cada individuo aportará una
respuesta más o menos diferente, nunca idéntica. Vivir, en suma, es
una operación que se hace de dentro afuera, y por eso las causas o
principios de sus variaciones hay que buscarlas en el interior del
organismo.188

Cada sociedade interpreta suas circunstâncias, cria mundos, faz sua vida,
responde aos desafios que o confronto com o real provoca. E isto é a cultura, grosso
modo.189

187 Normalmente a interpretação que se impõe a uma época é formada pela confluência das mais
proeminentes interpretações da época passada, conseguindo, assim, “agradar” a sentimentos
discordes e conflitivos.
188 ORTEGA, La política por excelencia, III, p. 463.
189 Em O mal estar na cultura (1973), Freud define cultura como a soma das produções e instituições

que afastam o homem de seu antepassado primata, tendo como fim protegê-lo contra a natureza e
regular a convivência social. E Husserl nos diz que “Por cultura não entendemos outra coisa que o
conjunto total de realizações que vêm à realidade graças às atividades incessantes dos homens na
89

Quando uma cultura triunfa, isto é, quando as soluções aos problemas


propostos pelo contorno são plenamente satisfatórias, as vidas que se sucedem
tendem a adotá-las, ou seja, não têm que criá-las por sua conta. Vive-se, assim, sob
um sistema de opiniões alheias, a atmosfera das épocas, o espírito dos tempos. Vive-
se, “en suma, de un yo colectivo, convencional, irresponsable, que no sabe por qué
piensa lo que piensa ni quiere lo que quiere”, 190 reflete Ortega.
Como vimos, toda crença foi uma ideia que passou por um longo processo de
relação, ora conflituoso, ora coincidente com a realidade, passando a integrar, pelo
esquecimento, o estrato de nossas convicções. A ideia nasce de um indivíduo, e está
obrigada a ser aceita, sinceramente, por este indivíduo. A partir daí ela deve abrir
caminho na sociedade, a fim de poder consolidar-se como uma verdade e encaixar-
se no ideário vigente da sociedade. A consolidação de uma ideia depende de que ela
suporte o confronto com essa realidade. O tempo e o costume se encarregarão de
fazer com que essa ideia, que conseguiu sair indene do confronto com a realidade,
penetre no profundo do estrato de nossas crenças coletivas. Quando conseguimos
provar que a realidade se encaixa em sua estrutura, passamos a ver a realidade
através de tal ideia espontaneamente, identificando a realidade com ela, de tal
maneira, que já não temos que nos esforçar para ver se a realidade é assim ou de
outra maneira. O costume se encarregou de nos fazer esquecer que aquela ideia foi

sociedade e têm uma existência espiritual duradoura na unidade da consciência coletiva e da tradição
que a conserva e prolonga. Tais realizações são transformadas em realidades físicas, encontram uma
expressão que se distancia de seu criador original; e, com base nesta corporalidade física, o seu sentido
espiritual é então experimentável por qualquer pessoa que é capaz de reviver o seu entendimento. Na
posteridade as conquistas da cultura podem sempre voltar a ser fontes de irradiação de influências
espirituais sobre novas gerações no marco da comunidade histórica. E é precisamente neste contexto
onde tudo que compreende o nome "cultura" possui um tipo essencialmente peculiar de existência
objetiva, e em que opera, por outro lado, como uma fonte permanente de socialização” (HUSSERL,
2002, p. 22). Em Misión de la universidad, ensaio de 1930, Ortega define cultura como “el sistema de
ideas vivas que cada tiempo posee. Mejor: el sistema de ideas desde las cuales el tiempo vive. Porque
no hay remedio ni evasión posible: el hombre vive siempre desde unas ideas determinadas, que
constituyen el suelo donde se apoya su existencia. Ésas que llamo ‘ideas vivas o de que se vive’ son,
ni más ni menos, el repertorio de nuestras efectivas convicciones sobre lo que es el mundo y los
prójimos, sobre la jerarquía de los valores que tienen las cosas y las acciones: cuáles son más
estimables, cuáles son menos” (IV, p. 556). Aqui vemos que Ortega ainda não havia perfilado
terminologicamente a diferença entre Ideas y Creencias, empregando “ideas vivas o de que se vive”
com o sentido que mais tarde ficará definitivamente relacionado ao conceito de crença.
190 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 78.
90

uma reação de um homem particular frente ao desconhecido ou duvidoso. E, assim,


a ideia exitosa converte-se em uma crença, torna-se a própria realidade.
Entretanto, o homem segue indefinidamente a conhecer partes do universo que
as gerações anteriores não conheciam, passa a perceber o mundo por outra
perspectiva. Possuímos um horizonte vital diferente, logo, observaremos imperfeições
despercebidas por nossos antepassados. Para corrigir essas imperfeições — por uma
exigência vital — voltamos a fabricar verdades. Tentamos harmonizar as novas ideias
com o conjunto de crenças existente. Ortega sempre esteve atento a esse movimento
– essa exigência que o viver em sociedade impunha às pessoas em seu todo – e daí
falar dessa necessidade de renovação, de fabricação de novas verdades para que a
nave seguisse.
Recordemos que, segundo Ortega, a vida é em si mesma e sempre um
naufrágio: a vida como situação originária que não deriva de outras instâncias. A
imagem do náufrago nos ajuda a compreender a ideia de crise. Sobre o tema, observa
Ramón Rodríguez que, apesar de nossa expressão habitual “tenho dúvidas sobre
algo”,

a dúvida se encontra no nível das ideias, a topologia da dúvida revela


que esta é algo em que se está ou se cai, não algo que alguém se
propõe a ter ou adquirir ou oferecer a outros. A dúvida autêntica, não
a metodológica ou intelectual, é um tipo de crença. (in LASAGA, 2007,
p. 144).

Ortega, porém, não aceita a ideia de dúvida como uma situação originária, nem
a possibilidade de o homem elevar a dúvida como a única crença, em substituição a
todas as outras. Assim, opõe-se a Heidegger, que situa a origem da filosofia no
estranhamento do mundo. Para Ortega, a filosofia nasce “de la duda por derrumbe de
creencias, que impele al conocimiento”.191
Cabe relembrar os ensinamentos de Ortega sobre o que é este sentimento de
estar na dúvida:

191 ORTEGA, La idea de principio en Leibniz, VIII, p. 271.


91

La duda no es simplemente un no-creer. Quien carece de toda opinión


sobre una cosa ignora, pero no duda. La duda presupone varias
opiniones positivas ante nosotros, cada una de las cuales merecería
ser creída, pero que, por lo mismo, paralizan recíprocamente su fuerza
de convencer. El hombre se queda entre las varias opiniones, sin
ninguna bajo sus pies que firmemente le sostenga — por eso se
desliza entre los muchos “saberes” posibles y cae, cae en su elemento
insólito, fluido... cae en un mar de dudas. La duda es fluctuación del
juicio, es decir, braceo desesperado entre olas — fluctus. Por ello la
duda es un “estado de espíritu” que no es estado, que es inestable. No
puede el hombre quedarse en ella. Tiene que salir de la duda y para
ello busca un medio.192

Ao final desse discurso, Ortega chama atenção para a necessidade que tem o
homem de encontrar um meio de sair da dúvida. O homem nunca está em paz quando
está na dúvida. Justamente por isso, é ele o homem em crise, ou como diria Camus,
o homem revoltado, um homem incansavelmente de criação.
Em suma, a característica fundamental de uma época de crise é, segundo
Ortega, a dúvida193, o “estar braceando em um mar de dúvidas”; o homem em crise
demonstra uma tendência à confusão e ao desassossego. “La confusión va aneja a
toda época de crisis”. Ou seja, se queremos descobrir se uma época pode ou não ser
classificada como época de crise, devemos averiguar qual o “estado de espírito” que
alojam os homens dessa época.
O sentimento de desassossego ou confusão se instala quando uma geração
não reconhece a anterior como transmissora do projeto vital. Existem épocas, observa
Ortega, em que prevalece uma filosofia pacífica, quando o pensamento se aceita
como resultado e sucessor das ideias germinadas anteriormente. E existem épocas
de filosofia beligerante, em que se sente o passado como algo que se deve reformar,
“que aspira a destruir el pasado mediante su radical superación. Nuestra época es de
este último tipo”.194 A filosofia beligerante faz parte da época de crise.195

192 ORTEGA, Origen y epílogo de la filosofía, IX, p. 417.


193 Fernando Pessoa em O Livro do Desassossego escreve: “Decidir-me, finalizar qualquer coisa, sair
do duvidoso e do obscuro, são coisas que se me figuram catástrofes, cataclismos universais. Sinto a
vida um apocalipse e cataclismo. Dia a dia em mim aumenta a incompetência para sequer esboçar
gestos, para me conceber sequer em situações claras de realidade” (2006, p.474).
194 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 146.
195 Sobre isso, Arthur Kaufmann recolhe um interessante diálogo entre Goethe e Eckermann: “Quero

revelar-lhe algo — disse Goethe certa vez a Eckermann — e o senhor o verá várias vezes confirmado
92

Como vimos, a crise se dá em uma cultura inchada, com alto grau de


complexidade. A cultura empenha-se em buscar a unidade, a integridade, mas,
quando malogra nesse empenho, o mundo se desmorona.196 A vida se torna a tal
ponto complicada que se torna impossível a contradição. Como escreveu María
Zambrano: "A crise mostra as entranhas da vida humana, o desamparo do homem
que ficou sem apoio, sem ponto de referência de uma vida que não flui em direção a
meta alguma e não encontra justificação” (ZAMBRANO, 2000, p. 99).
Vimos, pois, que em Ortega as crenças se confundem com a própria realidade,
a qual, porém, se obscurece com o desmoronamento de uma crença fundamental.
Sem que seja um determinismo, o homem tem uma missão no mundo, mas que “no
le ha sido revelada por un Dios ni le es impuesta desde fuera por nadie ni por nada.
La lleva dentro de sí, es la raíz misma de su constitución. Dentro de su pecho se
levanta perpetuamente una inmensa ambición de claridad”.197 Quando esta claridade
é perdida, ou quando sua busca deixa de interessá-lo, o homem sente-se perdido,
náufrago num mar de dúvidas. Esse naufrágio se instala nas circunstâncias, ou —
como prefere Kujawski — é experimentado no cotidiano:

A realidade da crise, antes de qualquer análise ou interpretação


intelectual, é experimentada, vivencialmente, na ruptura das normas
do cotidiano: na dificuldade global de viver, na insegurança, no mal-
estar que acompanham nosso dia a dia. (1991, p. 140).

A modernidade, segundo Ortega, descansou sobre os pilares de duas crenças


fundamentais: a crença na Ciência como única instituição legitimada a conhecer sobre
as verdades do mundo e do homem; e a crença em que a humanidade, regida pela
autoridade da razão e da ciência, caminha sempre para uma etapa superior, ética e
materialmente. O homem moderno passou da fé em Deus para a fé na Ciência198 e

na sua vida. Todas as épocas de retrocesso e dissolução são subjetivas; em oposição, todas as épocas
de progresso têm uma orientação objetiva” (in KAUFMANN, 2002, p. 39).
196 Segundo Pessoa, “felizes os que sofrem com unidade! Aqueles a quem a angústia altera, mas não

divide, que creem, ainda que na descrença, e podem sentar-se ao sol sem pensamento reservado”
(2006, trecho 250).
197 ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 357.

198 Sobre a fé na Ciência, escreve Ortega: “Vivimos, en efecto, de la ciencia; se entiende, de nuestra fe

en la ciencia. Y esta fe no es más ni menos fe que otra cualquiera — […] yo no quiero decir que no sea,
93

no progresso.199 Segundo Ortega, “de 1400 a 1650 no hay nada definitivo, sino que
todo es intento, ensayo, germen y transición”.200

Poco después de 1600 el hombre sale de la duda renacentista y se


instala en una nueva creencia, en la creencia “moderna” sobre la cual
ha descansado la vida europea hace hasta muy pocos años. El
hombre moderno sustituye a la fe en Dios la fe en la razón. La razón
no es sino una fe como la otra.201

Quase dois séculos de inquietude e de crise caracterizam o Renascimento, “de


ella salva al hombre occidental una nueva fe, una nueva creencia: la fe en la razón,
en las nuove scienze. El hombre recaído renace. El Renacimiento es la inquietud
parturienta de una nueva confianza fundada en la razón físico matemática, nueva
mediadora entre el hombre y el mundo”.202 A nova orientação racionalista substituiu a
fé em Deus como uma das diretrizes da época moderna. O homem renascentista
reagiu sobre uma circunstância que se apresentava despida de sentido. Combatendo
o ceticismo daquela época de crise se esforçaram em encontrar a terra firme. E
encontraram, afirma Ortega, quando se assentaram sobre seus dois grandes pilares:
o primeiro, a crença no Ser, a crença “en que tras la confusión aparente, tras el caos
que nos es, por lo pronto, la realidad, se esconde una figura fiable, fija, de que todas
sus variaciones dependen, de suerte que al descubrir aquélla sabemos a qué
atenernos frente a lo que nos rodea” e que “ese ser de las cosas posee una

tal vez, más justificada y en tal o cual sentido superior a toda otra fe. Lo único que digo es que se trata
de una fe, que la ciencia es una fe, una creencia en que se está, como se puede estar en la creencia
religiosa. (España invertebrada, III, p. 81).
199 Sobre a fé no progresso como crença fundamental da modernidade, escreve Ortega: “Condorcet, al

verse denunciado, se ocultó, encerrándose en casa de madame Vernet, y allí, en un rincón, escribió su
Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’espirit humain. Este libro (8 de julio de 1793) era el
evangelio de una nueva fe: la fe en el progreso. La idea del progreso había sido rigurosamente
formulada por el gran Turgot, maestro de Condorcet, en 1750. Es la gran idea de que ha vivido dos
centurias. Según ella, es ineludible el avance de la humanidad hacia formas de vida cada vez más
satisfactorias y perfectas. Nunca, pues, se ha sentido una gran porción de la humanidad, todo
Occidente, con un porvenir más seguro. Esta compactada fe (creencia) trajo consigo que fuese aquella,
probablemente, la época entre las bien conocidas en que el futuro se ha presentado al hombre
relativamente menos problemático. Por eso la vida perdió entonces dramática tensión”. (Pasado y
porvenir para el hombre actual, IX, p. 657).
200 ORTEGA, IX, p. 451.
201 ORTEGA, “Apêndice III”, XII, p. 327.
202 ORTEGA, VI, p. 51.
94

consistencia afín con la dote humana que llamamos ‘inteligencia’”;203 o segundo, a


crença no progresso, a crença de que enfim a humanidade havia encontrado um
mecanismo seguro para resolver todas as contradições existentes até então e, guiada
pela razão, caminhava ininterruptamente por uma trilha que a levava a um inevitável
período de libertação.
Contudo, como aponta Albert Schweitzer, “no movimento civilizador, que tem
início com a Renascença, as forças de progresso material e ético-espirituais atuaram
lado a lado, mesmo que em rivalidade, até o início do século XIX”, porém as energias
do movimento ético entraram em falência, enquanto a civilização ocidental vivia
exclusivamente guiada pelos avanços do progresso material.204

Ainda por muitas décadas, nossa civilização então vivenciou as


grandes vantagens dos progressos materiais, sem antes ter
incisivamente percebido as consequências da falência do movimento
ético. Continuava-se a viver na situação estabelecida pelo movimento
civilizador ético, sem que ficasse claro que ela se tornaria
insustentável e sem enxergar aquilo que surgia na relação entre os
povos. Dessa maneira nosso tempo, sem qualquer reflexão, como era,
formou a opinião de que a civilização se comporia essencialmente de
conquistas científicas, técnicas e artísticas e poderia prosseguir sem
ética ou com o mínimo de ética. (SCHWEITZER, 2013, p. 36).

A modernidade se guiou pela crença na razão como veículo para a superação


de todas as contradições. O enfrentamento racional na relação do homem com o
mundo, guiados pela ciência, promoveria o avanço da humanidade a formas de vida
cada vez mais perfeitas. A fé na razão e no progresso trouxe a segurança de que
teríamos todos os nossos problemas resolvidos no futuro, e isso favoreceu o
comportamento confiante, mesmo quando o presente continuava a nos oprimir.
Na virada do século XIX, porém, esta fé na Ciência e no progresso começa a
perder força, como acrescenta Schweitzer:

203ORTEGA, VI, p. 16.


204Ainda hoje, palavras como “tradição”, “tradicional”, dificilmente são vistas com bons olhos. Os
estudos literários manejam – e com alguma sorte – uma terminologia que se aplica bem a esse
contratempo: “ruptura da tradição”. Há que romper com o velho, a tirania do velho. Sempre. Este
“sempre”, esta desconfiança mais e mais alimentada, vai exigir uma obrigatoriedade da revolta, um
descambar numa “tradição da ruptura”. O que mostra, bem vemos, a nossa confusão.
95

Condorcet e seus contemporâneos ignoraram algo óbvio. Sua crença


no êxito poderia ser legítima se o desejo de progresso fosse colocado
em risco apenas pelas circunstância externas adversas, a nova
valorização emergente da realidade e a idealização romântica do
passado. Mas ele estava muito mais ameaçado. A confiança do
racionalismo se devia ao fato de ele considerar a visão de mundo
otimista-ética evidente. No entanto, ela não o é, mas fundamenta-se
numa interpretação ingênua do mundo, como a de Confúcio e dos
estóicos tardios. Cada pensamento mais profundo, mesmo que não
seja voltado contra ela ou mesmo quando deseja consolidá-la, deve
em última instância desintegrá-la. Assim, Kant e Spinoza tornaram-se
seus detratores. Kant causa abalo nela ao buscar fundamentar a
essência mais profunda do ético. Spinoza, o pensador do século XVII,
a confunde, já que sua filosofia da natureza, cem anos após sua morte,
começa a provocar os intelectos (SCHWEITZER, 2013, p. 162).

Albert Schweitzer, como vimos, ao refletir com profundidade sobre as causas


da crise da civilização ocidental, diz que o processo de enfraquecimento da civilização
ocidental se iniciou no momento em que os ideais éticos da razão sobre o que era
verdadeiramente humano, criados pelo Iluminismo e o racionalismo, não conseguiram
responder à altura, por muito tempo, à crítica do pensamento consequente. Segundo
Schweitzer, “o ponto forte da ética da época racionalista reside em seu entusiasmo
ingenuamente utilitarista. Por meio de seus objetivos bons, ela faz com que o homem
esteja imediatamente ao seu serviço (SCHWEITZER, 2013, p. 166)”. Porém, ao exigir
uma ética baseada em considerações menos elementares Kant abala
irreversivelmente esse entusiasmo. O racionalismo do séculos XVIII e XIX conseguiu
desempenhar um papel de liderança da opinião pública, pois se relacionando de forma
elementar sobre as questões humanas conseguiu gerar uma filosofia popular vivida,
capaz de sustentar o entusiasmo civilizatório, porém quando atacada em seus
fundamentos racionais, desmoronou. Contudo, e aqui está o ponto, da crítica ao
racionalismo “ingênuo” não surgiu nenhuma visão de mundo capaz de sustentar a
civilização ocidental. A tentativa de Kant de transformar a visão de mundo mantendo
a essência espiritual do racionalismo não conseguiu substituir os alicerces que
sustentavam os ideais de civilização que ajudou a derrubar. Outros, como Hegel,
também tentaram criar uma visão de mundo ético otimista mantendo a essência
espiritual do racionalismo, ou seja, valendo-se da teoria do conhecimento e a
96

especulação sobre o ser e o mundo, porém, assim como Kant, apenas conseguiram
adiar a inevitável ruptura.

Desde então, os ideais éticos da razão, no tocante à civilização, erram


sem teto e desvalido pelo mundo. Uma visão total de mundo que a
fundamentasse não mais seria estabelecida. Nem mesmo surgiu uma
visão total de mundo que tivesse completude e solidez interna. A
época do dogmatismo filosófico terminara. Como verdade valia
apenas a ciência que descrevia a realidade. As visões totais de mundo
não surgiam mais como sóis sólidos, mas apenas como névoas de
cometas de hipóteses. (SCHWEITZER, 2013, p. 17).

Após essa ruptura, continua Schweitzer, a filosofia abandonou o trabalho em


busca de um modo de pensar civilizador, abandonou sua capacidade de reagir às
questões fundamentais sobre o homem.

Compassiva, a filosofia olhava para trás na direção do racionalismo


superado. Orgulhosa, vangloriava-se por “ter sido assimilada por
Kant”, por “ter recebido o entendimento histórico” e “trabalhar em
contato direto com as ciências naturais” em Hegel. Nesse sentido,
porém, ficou tão miserável quanto o mais miserável dos racionalismos,
pois sua tarefa pública, que esse havia praticado tão largamente, ela
realizava apenas nas aparências, e não mais na realidade. Aquela era
em toda a ingenuidade a verdadeira e efetiva filosofia, ela, contudo,
era apenas uma filosofia epigônica abstrata no que realmente importa.
Nas escolas e universidades ela ainda cumpria um papel, mas não
tinha nada mais a dizer ao mundo. (SCHWEITZER, 2013, p. 19).

Assim, afastada de sua vocação, a filosofia deixou o homem “sem o alimento


para apaziguar a fome espiritual do presente”. Neste sentido, a crise que vivenciamos,
segundo Schweitzer, teria como ponto decisivo o fracasso da filosofia. 205
A ciência objetiva se propôs a compreender a humanidade, mas deixou de lado
o essencialmente humano. Substituiu o mundo da vida por um mundo ideal de
símbolos, esquecendo que a vida é projeto, possui metas e está intimamente
relacionada às normas da tradição. Enquanto crença fundamental, perdeu força ao se

205 Entretanto, adverte Ortega, “acaso el hombre está condenado a la razón, por tanto, a una tarea
siempre incompleta [siempre infirme], siempre obligada a recomenzar de nuevo, como Sísifo estaba
condenado eternamente a volver a subir hasta la cima del peñasco que siempre de nuevo rodaba hasta
el valle” (IX, p. 1313).
97

afastar da vida. A fé no progresso, adverte Ortega, gerou nos homens uma sensação
de segurança que acabou produzindo uma “paralisia cultural”. “La seguridad de las
épocas de plenitud así en la última centuria - es una ilusión óptica que lleva a
despreocuparse del porvenir, encargando de su dirección a la mecánica del
universo”.206
Em suma, a crise da civilização ocidental está relacionada com a crise das
ciências europeias, mas não enquanto técnica. A crise atual “não é, primariamente,
crise dos fundamentos da ciência, ou da política, ou da economia, ou do que for, e,
sim,crise dos fundamentos da vida humana” (KUJAWSKI, 1991, p. 34). Em outras
palavras, os alicerces de nossa instalação no mundo foram desintegrados. Como
afirma Kujawski, nosso cotidiano em crise não mais nos sustenta, porque “viver no
cotidiano é o mesmo que estar lançado às feras, perdido na selva selvaggia da crise,
exposto ao relento e à intempérie. A vida perdeu a continuidade, o futuro é cada vez
mais incerto” (1991, p. 54). Não se trata de crise da ciência enquanto técnica ou
método, mas de uma crise de sentido, crise dos fundamentos da vida humana.
O homem moderno passou da fé em Deus para a fé na Ciência, contudo essa
fé não conseguiu permanecer como alicerce de nossa instalação no mundo e entrou
em colapso. Ao final desse processo de desintegração, o homem se vê, então, sem
um projeto sincero que lhe sirva de farol.
Ambos, Husserl, Ortega e Schweitzer perceberam que a fé na ciência, que
havia substituído a fé em Deus, já não era mais aceita sem questionamentos, ou seja,
havia fracassado enquanto crença fundamental da civilização ocidental e passava a
ser questionada como mais uma dentre tantas ideias possíveis. Ao perder seu vigor,
no momento em que deixou de funcionar como crença, deixou um vazio que ainda
hoje espera ser preenchido.

Por ello se vive en un mundo que se nos ha hecho incomprensible, en


el cual se preguntan las gentes en vano su “para qué”, por su sentido
antaño indubitable, tan plenamente reconocido por entendimiento y
voluntad.207

206 ORTEGA, La rebelión de las masas, IV, p. 168.


207 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 521
98

Peter L. Berger e Thomas Luckmann (2012), em um ensaio recente, apontam


como causas da atual crise de sentido os próprios processos de modernização,
secularização e pluralização, que promoveram uma dificuldade para que os grandes
grupos da sociedade consigam conservar as percepções estáveis de sentido. Apenas
nas pequenas comunidades se conseguem partilhar as concepções de vida
significativa.208 Berger e Luckmann apontam a falência das instituições de controle da
produção e transmissão de sentido, que embarcaram num mercado aberto, como
principal motivo da crise de sentido.

Todas as instituições corporificam um sentido “primitivo” de ação que


se “confirmou” na regulamentação definitiva do agir social numa área
funcional determinada. De especial importância são aquelas
instituições que têm por tarefa o reprocessamento social do sentido.
As mais importantes são aquelas cuja função principal é o controle da
produção e transmissão de sentido. Tais instituições existiram em
quase todas as sociedades, com exceção das arcaicas. Nas culturas
antigas mais avançadas, nas sociedades do início da idade moderna
e mais tarde (por exemplo, no Irã de hoje), as instituições religioso-
morais estiveram ligadas intimamente com o aparato do poder. Elas
podiam aspirar com certo êxito tanto à produção quanto à distribuição
de uma hierarquia relativamente coerente de sentido na sociedade
global. Mas se as condições de produção e distribuição (da adaptação
e distribuição social de sentido) se aproximarem de um mercado
aberto, isto tem naturalmente consequências duradouras para a
economia doméstica do sentido. Concorre então uma grande
quantidade de fornecedores de sentido para obter o favor de um
público que se vê confrontado com a dificuldade de escolher entre uma
infinidade de ofertas a mais adequada. (BERGER, 2012, p. 22).

Segundo os autores, a forma moderna de pluralismo não se assemelha ao


apresentado na Índia (pluralismo de castas) ou na Idade Média (pluralismo de estados
e corporações), onde “os diferentes grupos podiam interagir nas áreas racional-
finalistas da ação e, ao mesmo tempo, permanecer vinculados individualmente a seus
próprios sistemas de valores”. Nesses exemplos, afirmam os autores, se pode

208Segundo Berger e Luckmann: “A tentativa das instituições de ligar finalidades legitimadoras a valores
supraordenados podem acarretar nada mais do que fórmulas vazias, assim como a conduta de vida
orientada para valores pode ficar limitada ao âmbito privado. Assim se fortificariam as condições para
a difusão de crises subjetivas e intersubjetivas de sentido” (BERGER, 2012, p. 36).
99

perceber uma ordem comum de valores e concepções gerais de vida que regulam as
diferentes comunidades de vida. No pluralismo atual, essa regulamentação não é
efetiva, provocando uma “situação de graves consequências”. As comunidades de
vida coexistem em uma mesma região, favorecendo “entrechoques de diferentes
ordens de valores e concepções de mundo” (BERGER, 2012, p. 40). A interação entre
as comunidades de vida, que em outras épocas era um fenômeno raro e, em grande
parte, realizado exclusivamente em um campo neutro, delimitado institucionalmente,
passou a ser frequente. Veja o exemplo da comunidade muçulmana em Paris. E
assim, onde as reservas de sentido deixam de ser propriedade comum de todos os
membros da sociedade,

O indivíduo cresce num mundo em que não há mais valores comuns,


que determinam o agir nas diferentes áreas da vida, nem uma
realidade única, idêntica para todos. Ele é incorporado pela
comunidade de vida em que cresce num sistema supraordenado de
sentido. Mas este não é mais evidentemente o sistema de sentido de
seus concidadãos. Estes podem ter sido marcados por bem outros
sistemas de sentido nas comunidades de vida em que cresceram. Na
Europa os sistemas comuns e supraordenados de interpretação
entraram em colapso já nas primeiras fases da modernização. A
história das ideologias totalitárias dos últimos cem anos mostrou que
nada, nem mesmo tentativas radicais de regressão podem restaurar
duradouramente tais sistemas uniformes de interpretação e fazer
deles a característica estrutural das sociedades modernas. (BERGER,
2012, pp. 40 e 41).

“Modernidade significa um aumento quantitativo e qualitativo da pluralização”


(BERGER, 2012, p. 51). Em última instância, o pluralismo causa a crise de sentido da
modernidade.

O pluralismo moderno leva a um enorme relativismo dos sistemas de


valores e da interpretação. Em outras palavras: os antigos sistemas
de valores e de interpretação são “descanonizados”. A desorientação
do indivíduo e de grupos inteiros por causa disso já é tema principal
há muitos anos da crítica da sociedade e da cultura. Categorias como
“alienação e “anomia” são propostas para caracterizar a dificuldade
das pessoas de encontrar um caminho no mundo moderno.
(BERGER, 2012, p. 52).
100

Se pensarmos com Ortega e Schweitzer, podemos afirmar que o pluralismo


não é a causa, mas uma das consequências da crise de sentido. Em um ensaio de
1991, Gilberto Kujawski esclarece o sentido da crise. Interpretando as ideias de
Ortega, conclui que a origem da crise situa-se em um nível pragmático mais
elementar: o não saber o que fazer. E acrescenta:

A desordem política e a subversão moral não passam de


desdobramentos dessa mesma perplexidade vital: não saber o que
fazer. Eis aí por que vamos tão mal. Não por culpa da economia, da
política ou da moralidade, e sim porque estamos em crise, perplexos
e faltos de rumos em nossa vida mesma, em nossa capacidade de
projeção na História. (KUJAWSKI, 1991, p.203).

Também Horkheimer diagnosticou a crise da razão e a crise do indivíduo. “A


máquina”, escreveu, “expeliu o maquinista; está correndo cegamente no espaço. No
momento da consumação, a razão tornou-se irracional e embrutecida”
(HORKHEIMER, 2002, p. 139).
101

10 SOBRE ÉPOCA DE CRISE

A vida, para Ortega, se nutre sempre de uma interpretação do universo e o


movimento normal da história é aquele que não altera a configuração do mundo em
vigência. Ocorre que chega um momento em que uma cultura não suporta a admissão
de determinada verdade sem que ocorra um choque com uma de suas crenças
fundamentais. Nesse momento, quando a vida exige uma interpretação verdadeira
que não consegue se harmonizar com o conjunto de crenças fundamentais, uma
dessas crenças entra em colapso, provocando a desorientação. Com o
desmoronamento das crenças fundamentais, o homem não possui mais uma visão de
mundo e de vida que lhe possa servir de guia, que direcione o projeto que é a sua
vida. Assim, uma época de crise consiste na desintegração dos alicerces da vida
cotidiana.209
A vida, como crise, é estar o homem em convicções negativas, não ter certezas
sobre nada importante, não saber decidir sobre o que vai fazer com confiança e
entusiasmo sincero:

no puede encajar su vida en nada; hincarla en un claro destino. Todo


lo que haga, sienta, piense y diga será decidido y ejecutado sin
convicción positiva, es decir, sin efectividad; será un espectro de
hacer, sentir, pensar y decir, será la vita minima, una vida vacía de sí
misma, inconsistente, inestable.210

E a época de crise é uma época de trânsito, quando uma determinada cultura


experimenta um período turbulento e de aceleração de sua existência. O passado
não é mais vigente e o futuro é incerto; instala-se então a crença de que não se pode
crer nas normas do cotidiano.211 A época de crise se inicia nessa fase e se estende

209 María Zambrano sublinha: "Em uma crise algo morre. Crenças, ideias vigentes, modos de viver que
pareciam irremovíveis. Grupos sociais e também profissões que se perdem, minorias que perdem a fé
em si mesmas porque já não irão seguir vivendo ou terão que fazê-lo de outra forma [...] Na crise não
existe caminho ou já não se vê. Não aparece aberto o caminho, pois se manchou o horizonte [...] Não
há ponto de vista, que seja, também, ponto de referência. E então os acontecimentos vêm a nosso
encontro [...] Se está ao mesmo tempo vazio e aterrorizado" (ZAMBRANO, 2004, pp. 9 e 38).
210 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 70.
211 Aqui, Ortega faz uma alusão a Oswald Spengler, sobretudo no que se refere à decadência da Europa

e ao papel que deveriam assumir os homens mais lúcidos. Contudo, Ortega adverte que o pluralismo
102

até a fase em que se estabelecem novas convicções positivas, quando novas crenças
passam a sustentar a vida.212 O mundo, então, torna a adquirir uma forma. A época
de crise se encontra entre duas maneiras radicais de compreender o mundo.213
Nietzsche foi, com sua filosofia do martelo, o arauto da decadência do mundo
burguês cristão. E, como tal, se sabia só no mundo, consciente de ser o mais radical
de todos os pensadores. Em Ecce Homo, produto do período mais conturbado de sua
vida, escreve:

Algum dia se associará ao meu nome a lembrança de algo ingente —


de uma crise como jamais outra existiu na terra, da mais profunda
colisão de consciência, de uma decisão proferida contra tudo aquilo
que, até hoje, foi objeto de fé, de exigência e de sacralização. Não sou
um homem, sou dinamite... Com tudo isso, sou também
necessariamente o homem da fatalidade. Com efeito, quando a
verdade entrar em luta com a mentira de milênios, teremos
concussões, uma convulsão de tremores de terra, uma deslocação de
montanhas e vales, como jamais se sonhou. A noção de política é
então inteiramente absorvida numa luta de espíritos, todas as
estruturas de poder da antiga sociedade irão ao ar — todas assentam
na mentira: haverá guerras como ainda nunca houve na terra. Só a

spengleriano permanece em um plano superficial: “Spengler funda su profetismo en una contemplación


de las vidas históricas desde fuera de éstas que consiste en una comparación intuitiva de sus formas
o morfología. Lo que yo sostengo es lo contrario: el pronóstico histórico sólo es posible desde dentro
de una vida y no por comparación de ésta con otras”. Assim, Ortega se baseia na crença da
possibilidade de captar, de dentro, a sensação vital de uma época, afastando-se de Spengler quanto à
aceitação da ideia de ocorrência dos mesmos ciclos em todas as culturas.
212 Existem teorias segundo as quais os homens vivem, pessoal e historicamente, em um permanente

estado de dúvida ontológica. O existencialismo, especialmente com Sören Kierkegaard (1961), entende
que a vida é um estado constante de crise e superação de crise. O que significa dizer que o homem é
sempre um problema para si mesmo, que é próprio de sua condição ser “problema”. De acordo com
essas teorias, não há porque falar-se em etapas de crise. Toda história seria, assim, a modulação de
uma crise permanente. Segundo Kaufmann (2002, p. 41), uma cultura tem o seguinte curso: começa
com uma filosofia ontológica em sua fase de progresso, aceita uma teoria do conhecimento em uma
fase de retrocesso, ensaia o existencialismo em sua época de crise, e cria uma nova filosofia em sua
época de salvação. Para Pitirim Sorokin (1966), as culturas oscilam entre três fases: a ideacional (a
realidade espiritual assume o primeiro plano); a sensorial (o mundo material assume o primeiro plano);
a idealista (quando se dá a síntese entre o sensível, o racional e o suprassensível). A época de crise
seria a de transição entre o fim de uma e início de outra época. Sorokin (1948), assim como Ortega,
diagnosticou sua época como de crise.
213 Em Albert Camus também identificamos uma ideia semelhante. O homem rebelde pertence a uma

época de crise, que é uma época antes ou depois do sagrado, quando se dedica a “reivindicar uma
ordem humana na qual todas as respostas sejam humanas, quer dizer, razoavelmente formuladas.
Desde este momento toda interrogação, toda palavra, é rebelião, enquanto no mundo do sagrado toda
palavra é ação de graças. Seria possível mostrar assim que não pode haver para um espírito humano
senão dois universos possíveis, o do sagrado e o da rebelião. A desaparição de um equivale à aparição
do outro, ainda que esta aparição possa fazer-se em formas desconcertantes” (1963, p. 115).
103

partir de mim existe no mundo a grande política. (NIETZSCHE, 2008,


p. 102).

A grande política não veio, mas Nietzsche estava certo. O que importava era a
crise sem tamanho e o embaralhar das ideias. Já vimos o rumor provocado por um
livro de história – A decadência do Ocidente, de Spengler — três décadas apenas
após o Ecce Homo. Spengler já falava, em seu livro, do fim de uma civilização. Hoje,
um século depois, somos (julgamos ser) a mesma civilização: mas com uma crise
como jamais vista. Valeria mesmo discutir a duração de uns tempos tais e seu campo
de ação. O que quer que se chame crise, no campo dos valores essenciais, toca
realmente todas as pessoas? A rigor, é preciso atingir todas as pessoas?
A Europa cantava sua belle époque, as nações festejavam... Mais que as
nações (como veremos adiante), as pessoas fantasiavam. Em suas memórias – “o
mundo que eu vi” – o conhecido escritor Stefan Zweig fala da surpresa que foi a
declaração da guerra em 1914: dois dias antes, nada se sabia. A população de seu
país, a Áustria, então um império, já há quase meio século vivia em paz, “a guerra era
uma lenda, e precisamente a grande distância a havia tornado heroica e romântica”
(ZWEIG, 1999, p. 249). Zweig observa como, àquela altura, a sociedade convivia bem.
O motivo era a confiança das pessoas nas autoridades do Império, sobretudo na do
seu imperador (p. 248). “Um enorme respeito para com os superiores”, dizia.
Em outras palavras — e voltamos ao nosso tema: acreditava-se. A notícia da
declaração da guerra não causou espanto, pelo contrário, o que se viu foi uma onda
de alegria. Em todas as nações envolvidas. Mesmo entre intelectuais. Se houve
exceções como, além da de Zweig na Áustria, ou a de Romain Rolland na França, há
que citar o nome de Thomas Mann na Alemanha, também já famoso, que, pelo
contrário, defendia entusiasticamente a guerra. Na verdade, aquela guerra que, para
Stefan Zweig foi causada por “diplomatas inábeis e gananciosos” (p. 251), e que para
a historiadora canadense Margaret MacMillan (2014) por uma desastrosa coincidência
de chefes de estado medíocres comandando as nações principais, poderia não ter
existido.
Um pensador como Ortega, pode-se pensar aqui, tinha motivos para se
impressionar com essas mudanças bruscas no comportamento da sociedade. Seu
104

país não era dos mais importantes no contexto político de então, mas seu pensamento
era europeu. Seus contatos com a cultura alemã por certo que não estavam imunes
às ideias de Nietzsche, agora vindas à tona e se expandindo rapidamente. Nietzsche,
assim como as mentes mais atentas àquela placidez dos últimos anos do século XIX
e esses primeiros do novo século, não confiava nos pactos humanos, tão só humanos.
Sob essa paz dorme o tumulto. A primeira guerra mundial não durou três semanas,
como a da Áustria contra a Prússia, em 1866. Em setembro de 1914 os soldados se
despediam dos pais, das esposas, das namoradas prometendo estar de volta para o
natal – escrevera Zweig. Não estariam, soube-se.
O choque da guerra — tida como a mais truculenta dos últimos séculos — fez
pensar. Há falhas na felicidade. Nenhuma eternidade dura muito. O espírito universal
de Ortega y Gasset embebia-se, inevitavelmente, dessa incerteza das coisas do
mundo.
E tudo estava bem ali. Nas artes plásticas e na música espocavam as
“revoluções”. Já um pouco antes da eclosão da primeira grande guerra, o movimento
cubista e a concepção da arte abstrata, e os ritmos selvagens da “sagração da
primavera” de Igor Stravinski, não passaram em branco — pelo contrário, foram
aplaudidos e vaiados. Havia, pelo menos nessas manifestações do espírito humano,
o sentimento de desassossego e desordem que, na década de XX, vai chegar a quase
desespero numa Europa profundamente ferida. O ano de 1922 chegou a merecer
destaque, quando visto nos dias de hoje, pelo fervilhar de inovações, agora não só
nas artes plásticas, música e dança, mas também na literatura e mesmo na ciência
(JACKSON, 2014). Nesta, uma ideia da mais alta importância, como a formulada por
Albert Einstein em 1905, a Teoria da Relatividade, vai desembocar na Mecânica
Quântica.
Esse sentimento de desassossego não começava propriamente ali; Baudelaire,
afirma-se comumente, fora dos primeiros a detectá-lo em meados do século XIX.214 E
Rimbaud encarnara mais dramaticamente. Os poetas, as “antenas da raça”, como

214 No fragmento XXII de Fusées Baudelaire escreve: “Le monde va finir. La seule raison pour laquelle
il pourrait durer, c’est qu’il existe. Que cette raison est faible, comparée a toutes celles qui annoncent
le contraire... Ces temps sont peut-être bien proches; qui sait même s’ils ne sont pas venus?”
105

afirmara Ezra Pound – um dos escritores mais marcantes dos anos 20 –, têm o dom
de saber antes de seus pares. Nietzsche, poeta/filósofo, soube como ninguém do
descalabro que nos aguardava. O poeta Fernando Pessoa, morto em 1935, vinha
arquivando suas ideias sobre este tema em seu “livro do desassossego”.
A rigor, de Baudelaire a Pessoa não há mais que um único movimento, do
mesmo modo como se diz, entre os historiadores, que as duas guerras foi apenas
uma, com vinte e um anos de intervalo de relativa, muito relativa, paz.
Quando falamos de grandes mudanças no campo da arte – a passagem da arte
românica para a gótica, por exemplo — não se observa o menor tremor no
comportamento do homem médio (aqui, o homem médio representando a maioria de
uma população). Do mesmo modo, outras grandes mudanças ocorrem em campos
variados do conhecimento humano. Diríamos, porém, que não são as mudanças
isoladas, uma aqui, outra ali, que farão estremecer, mas as “totais”, as chegadas todas
de uma vez, como um tropel tenebroso? Não era esse o tom da profecia
nietzscheana? E Então, víamos isto realmente ocorrer na década de Spengler, já uma
guerra avassaladora em suas fumaças? Vimos isso ocorrer na festivo/dolorida década
de reconstrução dos anos 20 na Europa (Paris não era uma festa então?). Optamos
por uma mudança de paradigma durante os temores da Segunda Guerra? Quando —
para não prosseguir aqui com mais detalhes — o homem, ele mesmo enquanto animal
social, entrou em crise?
Com o desgaste, talvez. Em 2016 — todos podemos perceber, não há
necessidade de precisar as diferenças —, as diferenças são bens mais marcantes que
no início, cem anos antes. A mudança é visível; ainda mais, sofrível. Mas quem vê?
quem sofre? quem vive naquele desassossego de que vimos falando?
É este um ponto a assinalar quando buscamos compreender o que significa
crise: não se deve esperar que todos “sofram” com a mesma intensidade. Uma crise
afeta, sobretudo, os criadores. E tem que ser assim, sob pena do descalabro, da
dizimação. O mundo, a rigor, flui. Passa-se o bastão, só isso. Em 2016 encontramos
as nações do mundo, agora em todos os continentes, em suas eternas labutas, umas
mais agressivas, outras mais subservientes. No entanto, não há inferir aqui
106

relativismos. O que queremos dizer é que a crise é demarcável e se dá. Sempre. Sua
dimensão e o incômodo que provoca é que a define como tal.
Os pensadores que aqui elencamos – e outros que ainda serão lembrados —
e cujas ideias se expressam ao longo de um inteiro século, não são unânimes e suas
conclusões. Vivendo, eles próprios, no olho do furacão, por certo que são
influenciados, quando não literalmente levados pelos fortes ventos. Adiante, quiçá
daqui a mais um século, saberemos quais (mas nem por isso os mais valiosos)
aqueles que “acertaram” na melhor definição. Uma época de crise é também isto: não
se sabe ao certo.
A profecia nietzscheana parece haver se concretizado. “Guerras como ainda
nunca houve na terra” aconteceram, jogando no lixo o que ainda restava da crença no
progresso e nos atirando em uma época de crise sem precedentes.
Nossa crise, segundo Ferrater Mora, se iniciou como “crise de poucos”, alojada
na mente de alguns homens do século XIV, passou a ser “crise de muitos” no século
XVIII e agora se fez “a crise de todos” (1972). Crise essa que é a de todos os
fundamentos da vida humana, que absorve toda a sociedade contemporânea. 215
Parece-nos inquestionável que a desorientação e o desassossego estão entranhados
no cotidiano mais do que em qualquer outra época.
A época de crise é época de perigos, mas também é época de possibilidades.
Crise humana e crise histórica têm entre si uma íntima relação. Ambas são, em geral,
crise de crenças, quando reinam a desorientação, o desassossego, a dúvida ou o
desespero. Mas também, como é característico da existência humana, emergem a
criatividade, a busca de estabilidade e confiança. É natural, portanto, que essa
inquietude perante uma etapa de crise gere uma procura incessante de saída dela o

215 Berger e Luckamn (2012, p. 76) levantam “a hipótese de que no ‘caso normal’ não se chega a uma
difusão pandemônica de crises de sentido nas sociedades modernas, enquanto permanecer atuante o
sistema imunológico das instituições intermediárias. Suprime-se, assim, o vírus das crises de sentido
do pluralismo moderno que se instalou em todas as sociedades modernas. Mas quando o sistema
imunológico fica extremamente enfraquecido por outras influências, nada mais obsta a difusão do
vírus.”
107

quanto antes.216 Zigmunt Bauman, em Posmodernidad y crisis moral y cultural, assim


reflete a esse respeito:

Na atualidade, poucas vezes as pessoas recordam que a palavra


'crise' foi pensada para designar o momento de tomar decisões [...]
Etimologicamente, o termo se assemelha mais a 'critério' — princípio
que aplicamos para tomar a decisão correta — que à família das
palavras associadas com 'desastre' ou 'catástrofe', onde tendemos a
situá-la hoje. (BAUMAN, 2009, p. 149).

O que chama atenção em Ortega é que ele não possui uma concepção
pessimista das situações de crise. Para ele, as épocas de crise provocam o ânimo
para empreender, a força criativa em busca de novos conceitos capazes de conectar
o homem ao mundo. Do naufrágio surge o esforço natatório. O homem náufrago irá
provar a si mesmo, e dessa provação terá a possibilidade de desenvolver sua
criatividade.
Naufragar não significa afogar-se. Esse agitar os braços em busca da salvação
é o que chamamos cultura. E a cultura cumpre o seu desígnio, observa Ortega,
quando faz o homem ascender sobre seu próprio abismo. Mas adverte:

Pero diez siglos de continuidad cultural traen consigo, entre no pocas


ventajas, el gran inconveniente de que el hombre se cree seguro,
pierde la emoción del naufragio y su cultura se va cargando de obra
parasitaria y linfática. Por eso tiene que sobrevivir alguna
discontinuidad que renueve en el hombre la sensación de perdimiento,
sustancia de su vida. Es preciso que fallen en torno de él todos los
instrumentos flotadores, que no encuentre nada a que agarrarse.
Entonces sus brazos volverán a agitarse salvadoramente. La
conciencia del naufragio, al ser la verdad de la vida, es ya la salvación,
por eso yo no creo más que en los pensamientos de los náufragos.217

Como vimos, a crise é trânsito entre o estar apoiado em um determinado


sistema de crenças e o estar apoiado em outro sistema de crenças. Ortega concorda

216 Em Machado Neto (2008, p. 85) encontramos a seguinte assertiva: “Época de crise, a nossa teria
de ser, fatalmente, uma era de farta proliferação sociológica, tal como sempre ocorreu no passado em
tais circunstâncias críticas, responsáveis diretas pelo aparecimento da preocupação humana pelo
social”.
217 ORTEGA, Goethe desde dentro, IV, p. 397.
108

que a crise de sua época é decorrência de uma crise da razão moderna, mas, ainda
assim, considera a razão como a melhor ferramenta para instalar-se e transformar o
mundo. O novo sistema de crenças não deve abandonar completamente essa fé.

Y, sin embargo, basta un poco de serenidad, para que el pie vuelva a


sentir la deliciosa sensación de tocar lo duro, lo sólido de la madre
tierra, un elemento capaz de sostener al hombre. Como siempre ha
acaecido, es preciso y bastante, en vez de azorarse y perder la
cabeza, convertir en punto de apoyo aquello mismo que engendró la
impresión de abismo. La razón física no puede decirnos nada claro
sobre el hombre. ¡Muy bien! Pues esto quiere decir simplemente que
debemos deshacernos con todo radicalismo de tratar al modo físico y
naturalista todo lo humano. En vez de ello tomémoslo en su
espontaneidad, según lo vemos y nos sale al paso. O, dicho de otro
modo: el fracaso de la razón física deja la vía libre para la razón vital
e histórica.218

Ortega continua tendo fé na razão; seu projeto se baseia na necessidade de


reorientação da razão, em aceitar que a razão caminha paralelamente à vida.219
Épocas de crise também são épocas de efervescência de ideias. Viver na
angústia move o homem a buscar soluções. Após diagnosticar o seu tempo histórico,
cabe-lhe resolver os problemas a ele concernentes. Em sua maioria, os pensadores
que se ocuparam com o tema da crise diagnosticaram como causa uma falência no
modo de pensar racional; contudo, aqueles que melhor ensaiaram uma saída não
abandonaram a razão como meio de salvar-se. E esta atitude, a de procurar orientar-
se para a claridade, é um alento reflexivo. Fugir disso é não ouvir o que carregamos
em nosso interior, é falsificar-se. A este respeito, sublinha Husserl: “A filosofia deverá
exercer, constantemente, no seio da humanidade europeia sua função diretriz (die

218 ORTEGA, Historia como sistema, VI, p. 23.


219 Em ¿Qué es filosofía?, Ortega desenvolve, sem rodeios, sua crítica a Descartes (que considera o
pai da modernidade). Contudo, Ortega reconhece ser tributário de sua filosofia. O princípio da
autonomia, dirá Ortega, “nos retrotrae al gran impulsor del pensamiento moderno y nos califica como
últimos nietos de Descartes” (VIII, p. 283). Alguns anos mais tarde, Ortega definirá sua filosofia como
um cartesianismo da vida (IX, p. 520). Mesmo em seu período de maturidade filosófica Ortega voltará
a defender a razão. “Que no seamos ya cartesianos no hace variar este destino. Filosofar es a la vez
profundizar y patentizar, es frenético afán de volver del revés la realidad haciendo que lo profundo se
convierta en superficial” (VI, p. 803). Em suma, dirá Ortega, enquanto não inventarmos nada melhor do
que a filosofia (como ferramenta de claridade), enquanto não inventarmos uma ultrafilosofia, devemos
buscar a claridade através dela.
109

archontische) sobre toda a humanidade” (2008, p 76). Ortega nos orientou em direção
a uma razão histórica, mas ainda hoje percebemos inúmeros ouvidos desatentos que
ensaiam viver sob uma outra sensibilidade.
110

11 SINTOMAS DE UMA ÉPOCA DE CRISE

“Vairagia” é a palavra usada pelos místicos hindus para a dessatisfação, a


“noite negra da alma”, que, muitas vezes, se apossa do homem. Fernando Pessoa
conheceu tais abismos. Em carta ao amigo e também poeta Mário de Sá-Carneiro,
escrevera: “Estou outra vez preso de todas as crises imagináveis, mas agora o assalto
é total. Numa coincidência trágica desabaram sobre mim crises de várias ordens.
Estou psiquicamente cercado” (in BLAVATSKY, 1972, p. 23). Toda a obra de Pessoa
está marcada por esse “desassossego”. Dividido literalmente em vários eus, através
de seus heterônimos, o poeta é exemplo vivo desse mal-estar no mundo. Vivendo o
mesmo mundo que Ortega (era cinco anos mais novo que o filósofo), Pessoa não só
detectou a crise de valores pela qual passava a Europa, como está patente em seus
escritos, como a viveu em sua própria carne. Hiperssensível, como são os poetas de
sua estirpe, ao semblante dos tempos, não conseguiu desviar-se do extremo
desacordo que seu tempo imprimiu em sua alma. Daí o assalto total a que se referiu,
e o cerco a que foi submetido.
Mesmo não havendo entre Ortega e Pessoa um conhecimento profundo um do
outro, em ambos percebemos uma sensibilidade comum. Em um trecho de O Livro do
Desassossego, que nunca chegou a ser concluído, mas, assim como outros escritos
do poeta, publicado após sua morte, podemos identificar de forma clara essa
inquietação:

Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que


criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais
tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para
outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social,
outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência
e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam
buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que
entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos
órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a
representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-
las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se
sentir viver. Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o
111

seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos


navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher.
Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos
argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.
Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não
pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos, porque o
homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos
esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo
uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o
hoje, para o homem de ação, não é senão um prólogo do futuro. A
energia para lutar nasceu morta conosco, porque nós nascemos sem
o entusiasmo da luta.
Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e
baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o
trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do
conseguimento.
Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa pública, nada
querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do
esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. Impossível esforço,
em que[m] não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na
consciência.
Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da
confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar
quando se chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-
nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava
porque tínhamos perdido a noção normal da morte.
Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram
a coragem da negação e do asilo em si próprios. O que viveram foi em
negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de
dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no gênero de vida,
entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber
agir. (2006, trecho 306).

O extenso trecho acima poderia nos fazer imaginar que fora escrito pelo próprio
Ortega, tal a confluência de ideias e sentimentos. Na introdução ao Livro do
Desassossego, Richard Zenith afirma que “dúvida e hesitação são os dois absurdos
pilares mestres do mundo segundo Pessoa [...] que é seu microcosmos” (in PESSOA,
2006, p. 13). Pessoa vivia e tinha consciência de estar vivendo em uma época de
crise. E, ainda, carregava consigo o sentimento trágico de viver na dúvida.
A citação do poeta português justifica-se por dois motivos: primeiro, porque
queremos deixar claro desde o início que a época de crise se caracteriza pelo
sentimento coletivo de desassossego; segundo, por ser Pessoa, com sua angústia
expressa em versos, a representação perfeita do conceito de “vida em crise”.
112

Para Ortega, nossas crenças ou convicções sobre o mundo correspondem aos


pontos cardeais que dirigem nossas ações, nossos afazeres. Sem elas, a vida
humana perde a clareza de suas linhas definidoras, não se sabe bem o que é. Suas
tarefas são apenas espectros sem confiança e sem sincero entusiasmo. Neste
sentido, Berger e Luckmann explicam que quando há coincidência entre a
comunidade de vida e de sentido e as expectativas da sociedade, a existência do
indivíduo e a vida em sociedade fluem naturalmente, “quase que de forma
autoevidente”. O indivíduo “coincide” com a visão de mundo que está submerso,
“sabe” o que é o mundo, o que ele é nesse mundo e qual o papel que é esperado dele.
Suas insatisfações e problemas existenciais não provocam o sentimento de naufrágio,
pois esse indivíduo, “encaixado”, compreende seus problemas dentro de uma visão
de mundo que opera nele de forma “natural”. Contudo, continuam Berger e Luckmann,

o pluralismo moderno desacredita este “conhecimento” autoevidente.


Mundo, sociedade, vida e identidade são problematizados sempre
com mais vigor. Podem ser submetidos a várias interpretações e cada
uma delas está ligada com suas próprias perspectivas de ação.
Nenhuma interpretação, nenhuma perspectiva podem ser assumidas
como únicas em validade ou serem consideradas inquestionavelmente
corretas. Por isso coloca-se não raras vezes ao indivíduo a pergunta
se não deveria orientar sua vida segundo parâmetros bem diferentes
do que até agora. Isto, por um lado, é sentido como grande libertação,
como abertura de novos horizontes e possibilidades de vida que
conduzem para fora da estreiteza da existência antiga e
inquestionada. Mas este processo é sentido também (e muitas vezes
pela mesma pessoa) como um peso – uma exigência sobre o indivíduo
para que abra sempre maior espaço para o novo e o desconhecido em
sua realidade. Há pessoas que suportam esta exigência: e algumas
até parece que se sentem bem com ela. Poderíamos chamá-las de
virtuosos do pluralismo. A maioria, porém, sente-se insegura num
mundo confuso e cheio de possibilidades de interpretação e, como
alguns desses também estão comprometidos com diferentes
possibilidades de vida, sentem-se perdidos. (BERGER, 2012, p. 56).

Em suma, segundo Berger e Luckmann, o excesso de vidas possíveis, todas


igualmente aceitas como corretas, promove a contração da autoevidência à um núcleo
mínimo e de difícil definição. Neste cenário, o homem se sente angustiado pela
“necessidade de reinventar o mundo a cada dia e ter de se orientar dentro dele”.
113

Como vimos, o principal sintoma de uma época de crise é a desorientação


coletiva, diz Ortega. O desassossego. Mas, para o próprio Ortega, há outros. Aqui
destacaremos alguns dos sintomas que consideramos mais significativos:
massificação, irracionalismo, ironia, falsificação e simplificação.

*
O homem em crise padece de uma incapacidade de desejar-se a si mesmo,
decorrente de sua incapacidade de ensimismarse. “Cuando alguien es incapaz de
desearse a sí mismo, porque no tiene claro un sí mismo que realizar, claro es que no
tiene sino pseudo-deseos, espectros de apetitos sin sinceridad ni vigor”. 220 Jean-
Pierre Lebrun e Charles Melman (LEBRUN, 2004) demonstram o surgimento, nos dias
atuais, de uma ‘nova economia psíquica’. Por vivermos em um mundo sem um projeto,
sem referenciais éticos capazes de direcionar as condutas das pessoas e,
consequentemente, sem o limite imposto pelo Outro, “o homem contemporâneo não
sabe o que é desejar, só sabe o que é consumir”. Em um mundo sem limites, somos
levados a evitar qualquer tipo de desprazer.221 Devido a isso, toda nossa técnica busca
apenas a satisfação desse apetite sem sinceridade nem vigor.

Acaso la enfermedad básica de nuestro tiempo sea una crisis de los


deseos, y por eso toda la fabulosa potencialidad de nuestra técnica
parece como si no nos sirviera de nada [...] Y es que el hombre
actual no sabe qué ser, le falta imaginación para inventar el
argumento de su propia vida.222

O homem é intrinsecamente técnico, na medida em que a vida humana é


quehacer e este quehacer exige do homem o saber fazer — numa palavra, a técnica.
Ocorre que a técnica, em princípio utilizada para que o homem possa habitar o mundo,
hoje deforma e sacrifica a vida humana, posto que obedece a uma lógica insincera,
separada do mundo da vida concreta. Impossível ao homem morar nessa plataforma
espacial em que se vem transformando a Terra e que tanto apavorava Martin

220 ORTEGA, Ensimismamiento y alteración, V, p. 344.


221 Impossível não lembrar a previsão de Aldous Huxley (2009).
222 ORTEGA, Ensimismamiento y alteración, V, p. 344.
114

Heidegger em seus últimos dez anos de vida. Em entrevista que concedeu à revista
alemã Der Spiegel, em 1966, Heidegger manifestava sua inquietude:

Tudo funciona, e isso é o que me preocupa, que funcione, e que o


funcionamento nos impele sempre a maior funcionamento, e que a
técnica dos homens os separe da Terra e os desenraize sempre mais.
Não sei se vocês estão assustados, mas eu me sobressalto ao ver as
fotos da Lua vista da Terra. Não precisamos de bombas atômicas, o
desenraizamento dos homens é um fato. Mantemos só relações
técnicas. Não existe um só rincão sobre a Terra no qual o homem
possa viver hoje.

Essa incapacidade de desejar com sinceridade favorece o fenômeno da


massificação. O homem, ao encontrar-se em uma situação em que nenhum quehacer
lhe pareça satisfatório, em que nada tenha para ele um atrativo mais profundo,
“seguirá haciendo esto o lo otro, pero lo hará como un autómata, sin solidarizarse con
sus actos, que considera nulos, inválidos, sin sentido”.223 Entre o pensar as coisas e
o aceitá-las, prossegue Ortega, o homem, ao tornar-se homem-massa, bandeia para
esta última opção. Assim, a maioria torna-se o modelo a ser seguido e os atos deste
homem-massa estão atrelados ao que todos fazem.224 Segundo Bauman: “A vida
desejada tende a ser a vida vista na TV” (2001, p. 99). Um dos sintomas
característicos da crise histórica é a uniformização dos atos, valores, dizeres,
costumes, enfim.
Neste sentido, afirma Albert Schweitzer,

uma coisa está clara. Onde a coletividade atua com mais força no
indivíduo do que ele nela, surge a decadência, pois com isso a
amplitude da qual tudo depende, o valor intelectual e moral do
indivíduo é necessariamente reduzido. Ocorre então a degradação e
a desmoralização da sociedade, pelas quais fica incapacitada de
entender os problemas que se apresentam a ela e de resolvê-los. Ou

223ORTEGA, España invertebrada, III, p. 107.


224Fernando Pessoa em O Livro do Desassossego constata a ruína dos ideais clássicos e da influência
aristocrática. Consequentemente, constata a renúncia dos superiores e a violência dos inferiores,
decorrente da falência daqueles ideais. Neste sentido, “nenhuma qualidade superior pode afirmar-se
modernamente, tanto na ação, como no pensamento, na esfera política, como na especulativa” (2006,
Trecho 249).
115

seja, mais cedo ou mais tarde ela tenderá à catástrofe.


(SCHWEITZER, 2013, p. 53).

Vivemos de um eu coletivo, bombardeados diariamente por opiniões alheias,


geralmente produzidas e divulgadas com o intuito de manutenção do estado atual de
coisas. Schweitzer alerta para a necessidade de “levar os indivíduos novamente a
uma autoimagem elevada e recuperar mais uma vez a função que apenas o indivíduo
pode exercer, ou seja, criar pensamentos ético-espirituais”. A opinião pública precisa
surgir de forma natural, no seio das individualidades, e disseminadas de pessoa para
pessoa. A salvação de nossa civilização passa por esse acontecimento.
Para Gabriel Tarde, início do século XX, a sociedade humana é feita de
imitadores (a maioria absoluta) e inventores. É do estofo mesmo de toda sociedade a
imitação. A poucos, sempre, é que vai caber a invenção. Aqui é que começa tudo.
Para que uma sociedade (ou uma civilização) vingue, as exigências mais cruciais
acionam as mentes mais fortes. Essas mentes — os inventores — não são sempre
ouvidas. A força do já sabido reprime o bulício das inovações. Mas essas, ou, pelo
menos, algumas delas, acabam encontrando circunstâncias que as deixam vingar. O
ajuste é feito, a sobrevivência do grupo é garantida. Esse equilíbrio, pensava Tarde,
é que mantém a sociedade equilibrada por mais algum tempo.
Hoje, depois de um duro século, não nos sentimos encorajados a formular
nenhuma teoria apontando para um equilíbrio. Não negamos o peso da ideia de Tarde,
apenas não vemos que ela nos possa ser mais útil do que foi ou é. Assim é a
sociedade. Pronto. Não oferece, porém, perigo. Platão, na alegoria da caverna, via
uma sociedade pouquíssimo afeita às invenções. O liberto — na alegoria — não teve
sucesso algum à sua volta. Seus companheiros impuseram-lhe o silêncio, sob pena
de morte.
Não se mata mais. É essa a diferença. Os inventores — e aqui falamos dos
verdadeiros inventores, não aqueles a serviço de instituições que financiam seus
empreendimentos e ideias — não incomodam. Não que não tenham espaço, pois o
têm: apenas não são ouvidos, não se lhes presta atenção. Como se faz com os
poetas. Gabriel Tarde, reescrevesse seu livro hoje, diria que os inventores, como os
poetas, já não incomodam mais ninguém.
116

E isto, justamente, é o que corrói, desassossega, inquieta profundamente.


Em 1999, Peter Sloterdijk proferiu uma palestra que imediatamente chamou
atenção de estudiosos de várias partes do mundo: Regras para o parque humano.
Esta palestra, que pretendia ser uma resposta à “carta sobre o humanismo” de
Heidegger, aborda a crise do humanismo — tema de Heidegger — e a ideia
nietzcheana da domesticação dos homens.
Sloterdijk não usou meias palavras. Havia um tema candente a ser discutido,
algo não ia bem no nosso mundo, e competia aos pensadores detectar seus motivos.
E, na medida do possível, consertá-lo.
Sloterdijk também fala do desassossego, que de tempos em tempos, se abate
sobre os homens em sociedade. Platão, diz ele, já falava da comunidade humana
como um parque zoológico (SLOTERDIJK, 2000, p. 48).
Num mundo tão cheio de escrúpulos em não “ferir” o outro em “sua” liberdade
de ser, a conferência de Sloterdijk parece dura sobre muitos aspectos. Muito embora
ele se baseie em pensadores do porte dos já citados Platão, Nietzsche e Heidegger,
não deixa, por seu turno, de ajuntar um pouco mais de lenha a essa fogueira da
desconfiança das ideias tão só apaziguadoras. Ao evocar Heidegger, lembra que este
pensador achava que o homem poderia ser definido como “a criatura que fracassou
em ser animal”. Esse fracasso o joga para fora do seu ambiente “e com isso ganha o
mundo em seu sentido ontológico” (SLOTERDIJK, 2000, p. 34).
Com o fracasso do homem em ser animal, podemos pensar que, com isto, o
homem galgou seu degrau de “humanidade”, entendendo com isso um nível superior
ao que estava fadado. Como de resto pensavam, lembrava Heidegger, os
antropólogos de seu tempo e a maioria das pessoas. O fracasso do homem em ser
“apenas” animal forçou-o a dar o grande salto, como se um salto que liberta, que
catapulta para o alto, para um ponto mais alto na escala animal.
Não se discute, aqui, a “superioridade”, seja lá o que for que isso signifique, do
animal humano em seu reino. Apresenta-se, sim, o problema de controlar esse
rebanho, manter acesa a chama daquele salto, protegê-lo de si mesmo. Daí o parque,
a necessidade das instituições “e coerções”, naturalmente – aí incluídas as instituições
educacionais (como as universidades). O problema é que vivemos em uma época de
117

crise, de desorientação, de não saber a que se ater. Sloterdijk, para fechar este
pequeno círculo, não se sentia grandemente otimista, posto que

dois mil e quinhentos anos depois da tecedura de Platão, parece que


agora não só os deuses, mas também os sábios se retiraram,
deixando-nos sozinhos com nossa ignorância e nosso parco
conhecimento das coisas. O que nos restou no lugar dos sábios são
seus escritos, com seu brilho áspero e sua crescente obscuridade;
eles ainda continuam à disposição em edições mais ou menos
acessíveis, e ainda poderiam ser lidos, se ao menos os homens
soubessem por que ainda deveriam lê-los. SLOTERDIJK, 2000, p. 56).

Um dos pontos marcantes da palestra de Sloterdijk, parece-nos, é o que se


refere a “teoria”, os teóricos: “a teoria como uma variedade de serviço doméstico”
(SLOTERDIJK, 2000, p. 36). Teoria, prossegue Sloterdijk,

tal como aparece em suas antigas definições, assemelha-se a um


olhar sereno para fora da janela: ela é sobretudo uma questão de
contemplação, ao passo que na era moderna – desde que saber
passou a significar poder – assumiu inequivocamente o caráter de
trabalho. Nesse sentido, as janelas seriam as clareiras das paredes,
por trás das quais as pessoas se transformaram em seres capazes de
teorizar. Também os passeios a pé, nos quais movimento e reflexão
se fundem, são derivados da vida doméstica. As mal-afamadas
caminhadas meditativas de Heidegger por campos e bosques não
deixam de ser movimentos típicos de quem tem uma casa atrás de si.
SLOTERDIJK, 2000, p. 37).

Sloterdijk escreveu em 1999. Se formos colocar aqui os marcos citados para a


crise, estamos no olho do furacão. Talvez em sua época Platão estivesse passando
por um desses momentos, tal a extensão de suas inovações e de sua influência ao
longo dos séculos.
O “parque humano”, a “domesticação do homem” e a “arte de pastorear seres
humanos” não são fenômenos característicos de uma época de crise, estão presentes
em todas as épocas e culturas. Devemos perceber inclusive que são indispensáveis
para sua manutenção. O característico em uma época de crise é a ausência dos
“deuses” e dos “sábios” na direção do parque. Como adverte Lasaga, “a novidade não
118

reside na aparição das massas na vida histórica, mas em sua aparição a mandar por
si mesma” (LASAGA, Vida y filosofía, p. 82).

Todo lo que sigue es consecuencia o corolario de esa estructura


radical que podría resumirse así: el mundo organizado por el siglo XIX,
al producir automáticamente un hombre nuevo, ha metido en él
formidables apetitos, poderosos medios de todo orden para
satisfacerlos económicos, corporales (higiene, salud media superior a
la de todos los tiempos), civiles y técnicos (entiendo por éstos la
enormidad de conocimientos parciales y de eficiencia práctica que hoy
tiene el hombre medio y de que siempre careció en el pasado).
Después de haber metido en él todas esas potencias, el siglo XIX lo
ha abandonado a sí mismo, y entonces siguiendo el hombre medio su
índole natural se ha encerrado dentro de sí.225

Eis o paradoxo da modernidade, em meio à abundância o homem moderno se


sente desmoralizado.226 “Con más medios, más saber, más técnicas que nunca,
resulta que el mundo actual va como el más desdichado que haya habido: puramente
a la deriva”.227
O etólogo Konrad Lorenz assinala que a massificação é para o homem um
tumor. Em seu ensaio Os oito pecados mortais do homem civilizado, observa que,
“quanto maior a massificação do homem, mais nos sentimos acuados pela
necessidade do not to get involved” (LORENZ, 1988, p. 21). Aqui, à massificação
como oposto ao ensimismamiento acrescentamos o fenômeno da concentração das
grandes cidades. Desorientados e acuados nas grandes cidades, diz-nos Lorenz, o
perdemos nossa humanidade e somos capazes de presenciar uma série de violências
e barbáries sem reagir. Insensíveis ao sofrimento de nossos vizinhos.
Já no início do século XX, Albert Schweitzer se posicionou de forma idêntica:

O comportamento normal de ser humano para ser humano torna-se


difícil para nós. Pela pressa na qual vivemos, pelo tráfego maior e pelo
trabalho conjunto e coabitação com muitos num espaço exíguo,
associamo-nos continuamente e das mais diversas formas como

225 ORTEGA, La rebelión de las masas, IV, p. 184.


226 De acordo com Ortega, “un hombre desmoralizado es simplemente un hombre que no está en
posesión de sí mismo, que está fuera de su radical autenticidad y por ello no vive su vida y por ello no
crea, ni fecunda, ni hinche su destino” (Por qué he escrito “El hombre a la defensiva”, IV, 72).
227 ORTEGA, La rebelión de las masas, IV, p. 168.
119

estranhos entre estranhos. As condições não permitem que


mutuamente nos comportemos de ser humano para ser humano. A
limitação imposta a nós no exercício da humanidade natural é tão geral
e cotidiana que nos acostumamos a ela e não sentimos nosso
comportamento impessoal como algo antinatural. Não sofremos mais
em não mais poder agir em muitas e tantas situações de ser humano
para ser humano, e por fim chegamos ao ponto de nos negarmos a
fazê-lo onde seria possível e judicioso [...] Sem liberdade,
concentração, incompleto, perdido na falta de humanidade,
renunciando à sua autonomia espiritual e ao seu julgamento moral por
uma sociedade organizada, vivenciando em todos os aspectos as
degradações do sentido de civilização, o homem moderno traça seu
caminho cego em tempos obscuros. (SCHWEITZER, 2013, p. 27 e
32).

Em suma, o indivíduo exposto à massificação, sem um projeto de vida ético


que lhe sirva de guia e amontoado nas grandes cidades corre o risco de perder a sua
benevolência.
As grandes narrativas especulativas eclipsaram-se. Lyotard, analisando a
atualidade, considera que “o pós-moderno é a incredulidade em relação às
metanarrativas” (LYOTARD, 1989, p. 8). Segundo ele, impera a crise dos
fundamentos. Baudrillard, na mesma linha, afirma que “o grande acontecimento deste
período, o grande traumatismo, é esta agonia dos referenciais fortes, a agonia do real
e do racional que abre as suas portas para uma era de simulação” (BAUDRILLARD,
1991, p. 60). Quando os princípios e as normas da cultura deixam de ter efetividade,
apenas os produtos dessa cultura interessam ao homem-massa,228 que não respeita
hierarquias, a tradição e os valores do passado. É, portanto, anistórico, incapaz de
desejar um futuro, porque se interessa apenas pelo agora; consome o que de melhor

228 Ortega não define a massa pela situação social em que um indivíduo se encontra, mas por um
determinado comportamento que adota. Homens-massa são todos aqueles que não se exigem a si
mesmos, que seguem os comportamentos coletivos sem reflexão, que, não conseguindo
ensimismarse, vivem em constante alteração, que fazem isso ou qualquer outra coisa pela simples
razão de que todos fazem, que dispensam o fato de se ter razão. Em contrapartida, as minorias se
definem pela constante exigência e pela busca de coincidência consigo mesmas, pela vitalidade
ascendente. Em tempos ‘normais’, dirá Ortega, a minoria projeta sua influência sobre a massa e a
dirige.
120

foi criado pela cultura, mas ignora todo esforço que foi necessário, o que Lipovetsky
(2014) denomina “princípio do rebaixamento do sublime”.
A rebelião das massas, segundo Ortega, é o momento em que, pela primeira
vez, a história europeia é entregue à decisão do homem vulgar. 184 As massas se
tornaram insubordinadas, a direção social ficou a cargo de um tipo de homem que não
se interessa pelos princípios da civilização. E, como aponta Albert Schweitzer, “logo
que cheias do espírito da superficialidade, as instituições, trazidas a esta condição
pela sociedade, por sua vez exercem nela uma repercussão, e a infligem um vazio
espiritual” (SCHWEITZER, 2013, p. 25).
A incapacidade de pensar um projeto de vida coletiva — que sempre foi obra
das minorias — é apontada como causa da crise. Ao ignorar os ideais anteriores, a
perda de sua vigência, as massas acreditaram que era possível viver sem condução.

*
O irracionalismo é outro dos sintomas de uma época de crise. Segundo Ortega,

si dirigimos una mirada al área europea, a la política, a la vida social,


sobre todo a las nuevas generaciones, os encontraréis que ya casi
nadie quiere tener razón. No es que no la tenga: es que
deliberadamente le trae sin cuidado tenerla o no.229

Em épocas de crise, o interesse pela ideia das coisas dá lugar a um interesse


brutal pelas coisas mesmas. A vontade, o querer as coisas com resolução, é mais
estimado que a inteligência. “A la aberración intelectualista que aísla la contemplación
de la acción, ha sucedido la aberración opuesta: la voluntarista, que se exonera de la
contemplación y diviniza la acción pura”.230 Aquele brutal querer as coisas não se
traduz por um ato da inteligência, mas da vontade: ao intelectualismo sucede o
voluntarismo.
Neste sentido, em épocas de crise verificamos um predomínio do homem de
ação.231 Em decorrência da falta de orientação, afirma Schweitzer,

229 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 468.


230 ORTEGA, Ensimismamiento y alteración, V, p.311.
231 Ver André Malraux e sua filosofia da ação.
121

Paira diante de nossos olhos ocidentais uma visão de mundo que


corresponde ao nosso impulso de agir, e que também o explica. Não
conseguimos estabelecer em definitivo essa visão de mundo tendo
apenas essa pulsão desorientada para a ação. O espírito de nosso
tempo nos arremessa à ação sem que consigamos chegar a uma visão
clara sobre o mundo e sobre nossa vida. Ele nos requisita sem cessar
para estes ou aqueles objetivos, e para aqueles ou outras conquistas,
mantendo-nos num atordoamento de atividades, de modo a não
chegarmos a uma reflexão e não nos perguntarmos qual a relação
efetiva entre essa dedicação infatigável a objetivos e conquistas, e o
sentido do mundo, e o sentido de nossa própria vida. Dessa maneira,
vagamos como mercenários apátridas e bêbados na crescente
escuridão causada pela falta de visão de mundo, e nos deixamos
recrutar em prol de atos ordinários e elevados sem mesmo diferenciá-
los. E quanto mais desoladas se tornam as condições do mundo nas
quais se descarrega essa pulsão aventureira de ação e avanço, mais
nebulosas as inclinações, e mais estúpidas as empresas prescritas
aos mercenários. (SCHWEITZER, 2013, p. 65-66).

Em épocas de crise a reflexão pessoal sobre o que é elementar é deixada de


lado. Também o agir não é justificado pelos objetivos decorrentes do sentido de minha
vida pensados a partir de uma visão de mundo. “É necessário que nossa vontade de
agir ganhe consciência e pare de existir cegamente”, aponta Schweitzer.
Em Mirabeau o el Político, Ortega distingue duas classes opostas de homem
— os ocupados (políticos) e o preocupados (intelectuais). O político é
fundamentalmente um homem de ação, atua antes de pensar. Encontra-se
constantemente fora de si. Em oposição, “el intelectual no siente la necesidad de
acción […] El intelectual de pura cepa no necesita de nada, ni de nadie, porque es un
microcosmos”.232 O político ideal, segundo Ortega, precisa “unir en si los caracteres
más antagónicos, fuerza vital e intelección, impetuosidad y agudeza". 233 No entanto,
em épocas de crise, a ação pura é divinizada e torna-se improvável o aparecimento
desse político ideal.

*
Outro sentimento presente em uma época de crise é a ironia. A ironia, o
“dissimular que se ignora algo”, como os dicionários a definem, é uma constatação da

232 ORTEGA, Mirabeau o el político, III, p. 620.


233 ORTEGA, Mirabeau o el político, III, p. 633.
122

posição incômoda em que o homem se encontra, quando sua verdade particular


(mesmo que esta seja a verdade geral) não parece sustentar-se diante de uma
argumentação, ou da infinidade de outras verdades. Mesmo que essa ironia não se
caracterize como hipocrisia ou cinismo, não deixa de estar associada a épocas de
crise, tanto individual quanto coletiva. A ironia, do ponto de vista artístico ou literário,
pode servir como um artifício para que “vejamos” melhor um fato. Vladmir Jankélévitch
tratou-a como “forma de vida” (in FERRATER MORA, 2001, p. 1562). Segundo
Ortega, as mudanças na sensibilidade de uma época são primeiro observadas na arte
e na ciência pura, “precisamente por ser las actividades más libres, menos
estrechamente sometidas a las condiciones sociales de cada época”.
Em uma época de crise, a arte se mofa de si própria, em um processo de
autocrítica e ironia, abandonando a seriedade do período anterior. Está livre para ser
apenas arte, com jovialidade e graça. Sobre a arte em princípios do século XX,
observa Ortega:

El cuadro, renunciando a emular la realidad, se convertiría en lo que


auténticamente es: un cuadro, una irrealidad […] De pintar las cosas
se ha pasado a pintar las ideas: el artista se ha cegado para el mundo
exterior y ha vuelto la pupila hacia los paisajes internos y subjetivos.234

Esse parágrafo de Ortega exige algumas palavras. Aqui se fala na “realidade”,


bifurcada em “a realidade ela mesma” e “a realidade vista pelo artista”. Há que ter
cautelas, o tema é amplo e talvez espinhoso. Pensar que o artista — no caso um pintor
— não vê a realidade, ou não a aceita, é infundir tons ainda escuros sobre as sombras.
Daí a imaginar que o artista distorce a realidade para melhor apreende-la, é um
pequeno salto. O que os artistas em geral veem é realmente a realidade. Seu quadro
— e por isso é arte — não se resume ao registro fotográfico, mas (e verdadeiramente)
à interpretação. O objeto fotografado – uma paisagem, digamos, ou um retrato —
continuam inabordáveis, transposições que são somente. Um quadro não é “una
irrealidad”; um quadro (pensamos numa verdadeira obra de arte) é “uma realidade”.
Se não a realidade (é aqui onde está a profundidade do tema, que não nos compete

234 ORTEGA, La deshumanización del arte, III, p. 376.


123

aqui abordar) ao menos um modo mais seguro de compreender, interpretar, conviver


com a realidade. A conhecida frase de Picasso: “não procuro; acho.” — nos remete,
inclusive, a uma nova maneira de ver, não volitiva e racional, mas receptiva, artística.
Feitas essas ressalvas, podemos melhor entender a citação de Ortega. Em
épocas de crise, o artista renuncia a imitar uma realidade que não percebe como
completamente sua e volta sua atenção para uma realidade interior. O cubismo se
encaixa perfeitamente nessa concepção orteguiana.
O tópico “ironia” também recebeu um tratamento especial do filósofo americano
Richard Rorty.235 Ele (ironista) considera que o que o une ao restante da espécie não
é uma linguagem comum, mas apenas a suscetibilidade à dor e, em particular, ao tipo
especial de dor que as feras não compartilham com os seres humanos: a humilhação
(RORTY, p. 164). O ironista-liberal busca a substituição do conhecimento pela
esperança. Como ironista, abdica das essências em detrimento da persuasão. Como
liberal, acredita na ideia de que agora estamos melhores do que antes e estaremos
melhores no futuro.
A ironia pode ser considerada um subproduto do cinismo.236 Sloterdijk define o
cinismo como “falsa consciência ilustrada”. Isto, explica, porque a mentira, a ilusão e
a ideologia eram as três formas de falsidade que o ideal do Iluminismo tentou erradicar
e acabou realizando um pacto com um quarto tipo de falsidade: o cinismo. Assim, a
atividade cínica moderna “troca de lado”, abandonando a crítica genuína e assumindo
a “lógica dos senhores”.

O descontento em nossa cultura assumiu uma nova qualidade: ele


aparece como um cinismo difuso e universal. A crítica da ideologia
tradicional encontra uma derrota diante desse cinismo. Ela não sabe
qual botão pressionar nessa consciência lamentosamente cínica para
fazer o Iluminismo continuar. O cinismo moderno apresenta-se como

235 Rorty descreve como missão dos ironistas: “Redescrevemos, nós mesmos, nossa situação e nosso
passado nesses termos, e comparamos os resultados com redescrições alternativas que usam os
vocábulos de figuras alternativas. Com essa redescrição contínua, nós, os ironistas, esperamos criar
para nós mesmos o melhor eu possível” (Contingência e ironia, p. 114).
236 Em seu Dicionário básico de filosofia, Hilton Japiassú e Danilo Marcondes definem o cinismo em

seu sentido moral como: “uma atitude individual que consiste no desprezo, por palavras e atos, das
convenções, das conveniências. da opinião pública, da moral admitida, ironizando todos aqueles que
a elas se submetem e adotando, em relação a eles, um certo amoralismo mais ou menos agressivo,
mais ou menos debochado”.
124

esse estado de consciência que segue após ideologias ingênuas e sua


iluminação. (SLOTERDIJK, 2003, p.3).

Diante da enfermidade ou decadência de uma comunidade que aparece como


inautêntica e perturbada, o verdadeiro cínico (buscando escapar da alienação) opta
pelo caminho do autárquico, fugindo dos perigos de se embrutecer como as massas
domesticadas. O único espaço de liberdade para o verdadeiro cínico é a arte, a
literatura.

*
Em tempos de crise, somos levados a desprezar o passado. Entretanto, não
possuímos novos referenciais. Então, como se deteriora o repertório de soluções
pretéritas que permitia certa segurança de movermo-nos entre e com as coisas, a falta
de uma terra firme, de um plano, nos faz sentir desorientados. Neste estado, é próprio
do homem simular convicções e sustentar-se em palpites. São épocas de fingimento.
Isso leva esse homem desesperado a aceitar mais facilmente ideias salvadoras.237 É
comum que certos princípios sejam aceitos sem reflexão. Escreve Ortega:

Nuestro tiempo padece gravemente de esta morbosa conducta (recibir


sin previa revisión ciertos principios intelectuales, morales, políticos,
estéticos o religiosos, y darlos desde luego por buenos. [...]La fauna
característica del presente es el naturalismo que jura positivismo, sin
haberse tomado jamás el trabajo de replantearse el tema que aquél
formula; es el demócrata que no se ha puesto nunca en cuestión la
verdad del dogma democrático.238

E acrescenta: “De donde resulta la burlesca contradicción de que la cultura


europea actual, la única fundada en razones, no es ya vivida, sentida por su
racionalidad, sino que se la adopta místicamente.” Dessa aceitação sem reflexão

237 Em O Livro do Desassossego, sublinha Fernando Pessoa: “Cansamo-nos de pensar, de ter opiniões
nossas, de querer pensar para agir. Não nos cansamos, porém, de ter, ainda que transitoriamente, as
opiniões alheias, para o único fim de sentir o seu influxo e não seguir o seu impulso” (2006, Trecho
239).
238 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 170.
125

podemos verificar uma tendência: a tomada de posições falsas, insinceras.239 Como


observa Ortega, as pessoas tomam posições falsas para tentar driblar essa situação
incômoda:

En las épocas de crisis son muy frecuentes las posiciones falsas,


fingidas. Generaciones enteras se falsifican a sí mismas, quiero decir,
se embalan en estilos artísticos, en doctrinas, en movimientos políticos
que son insinceros y llenan el hueco de auténticas convicciones.
Cuando se acercan a los cuarenta años esas generaciones quedan
anuladas, porque a esa edad no se puede ya vivir de ficciones: hay
que estar en la verdad”240.

Então proliferam as instituições “facilitadoras” de salvação. Pessoas ou


instituições inescrupulosas surgem de toda parte para explorar esse terreno propício.
Fazendo uso de técnicas psicológicas, em geral bem primárias, facilmente aliciam os
ansiosos por certezas e paz. Tais instituições conseguem então arrebanhar
verdadeiras multidões e mantê-las encadeadas por tempo indefinido, administrando a
maior parte de sua vida espiritual e mesmo política.

*
Em épocas de crise a salvação torna-se a prioridade para um grande número
de pessoas. O abalo dos alicerces da crença básica joga o homem na busca ansiosa
de portos seguros. Há uma tendência natural a se acreditar nisso. O homem em crise
ensaia a simplificação como método para tentar sair da crise. Eis como Ortega a
descreve:

Es, por lo pronto, la simplificación como método para reobrar ante la


desesperación y el perdimiento en la excesiva riqueza de la vida — los
muchos saberes y ninguno suficiente, los muchos apetitos y placeres
posibles, pero ninguno plenario, el demasiado amontonamiento de
quehaceres forzosos, pero ninguno con sentido absoluto,
satisfactorio.241

239 Fernando Pessoa assim se percebeu: “Coisa arrojada a um canto, trapo caído na estrada, meu ser
ignóbil ante a vida finge-se” (2006, trecho 37).
240 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 70.

241 ORTEGA, España invertebrada, III, p. 108.


126

O homem busca salvar-se na simplicidade e a busca da simplificação pode,


então, gerar a proliferação de projetos que tendam à salvação de um dos aspectos da
cultura em crise. Daí o surgimento de seitas, grupos, partidos etc., que disputam entre
si o predomínio em forma de ideologias. Costuma-se ver uma extrapolação de um dos
inúmeros problemas da vida como sendo aquele que, sendo resolvido, resolverá toda
a problemática da vida. Assim, durante anos, pudemos verificar a elevação do
problema da desigualdade social como sendo o problema político a ser resolvido.
Hoje, parece estar mais na moda o problema da salvação ecológica do planeta. 242
Todos esses ensaios, porque incapazes de resolver o problema fundamental, que é a
própria vida, estão fadados ao fracasso.
Sentindo o iminente fracasso da cultura, os pós-modernos passaram a
considerar “a procura da felicidade” como o único projeto de vida. É o que constata
Lipovetsky: “[...] a procura da felicidade surge [...] como a primeira e a mais
fundamental das leis naturais, a moral define-se como aquilo que deve indicar-nos o
caminho a seguir para sermos felizes” (LIPOVETSKY, 2010, p. 41).
O problema é que numa cultura na qual se instalou a crise de seus
fundamentos, esse fascínio pela felicidade se vulgariza, e se transforma em uma
ameaça.243 Como adverte Lipovetsky, “o consumidor atual não consome apenas bens
e objetos, consome também cidadania, solidariedade, ética, ecologia”. E mesmo
consumindo tudo, vivendo muito mais, tendo mais liberdade, mais conforto e
possibilidades de lazer, observa-se um aumento das depressões, ansiedades,
estresses, suicídios. É o que Lipovetsky denomina felicidade paradoxal. Na
hipermodernidade “o bem estar tornou-se deus, o consumo é o seu templo, e o corpo,
o seu livro sagrado” (2007, p. 301). Em seu ensaio já referido, Os oito pecados mortais
do homem civilizado, Lorenz alerta:

242 Outra possibilidade comum de ensaio da salvação consiste em um exagero de tendências


anteriores, um retorno ao antigo, o aparecimento de um sistema metafísico que se configure como uma
“recapitulação”. Assim poderíamos entender Plotino e Santo Tomás.

243 Ver Pascal Bruckner, A euforia perpétua, 2002.


127

A crescente intolerância ao desprazer, aliada à reduzida força atrativa


do prazer, leva o homem a perder a capacidade de investir trabalho
árduo naqueles empreendimentos que prometem um ganho de prazer
somente a longo prazo. Disso resulta uma impaciente demanda de
satisfação imediata de cada novo desejo. A necessidade de satisfação
imediata (instant gratification) é, infelizmente, favorecida de todas as
maneiras pelos produtores e empresas comerciais, e é estranho que
os consumidores não se deem conta de quanto os “convenientes”
planos de pagamento em prestações representam uma forma de
escravidão. (LORENZ, 1988, p. 46).

Este sintoma não está presente apenas nas massas. Diante da dificuldade em
elaborar uma concepção de mundo que possa ser aceita por todos, os homens mais
sensíveis, incapazes de conter o fluxo descendente (ou enormemente tumultuado)
das coisas, buscam uma espécie de filosofia pessoal, uma filosofia para poucos. A
tranquilidade da alma, então, passa necessariamente por este antropologismo.
Ortega, nesse caso, cita, como exemplos, o helenismo, a decadência da filosofia
grega, o estoicismo, o apogeu do Império Romano (que, para alguns historiadores
significava o mesmo que o começo da decadência). Aqui, nesse extremo, ao centrar-
se em si, o homem acaba por descobrir-se de tal modo falso (absurdo) que nada mais
vê senão sua própria dissolução. Mesmo sinceras, essas filosofias pessoais não
deixam de ser uma falsificação.
Pessoas ou grupos seletos fogem do descompasso dos tempos buscando uma
verdade que, embora não se deixe extinguir, ou fragmentar-se, torna-se
irreconhecível. Em Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido, Peter L. Berger e
Thomas Luckmann encerram o ensaio apresentando exatamente uma proposta para
conter a crise que resulta numa simplificação.

Entre a impossibilidade de reação “relativista” à modernidade e as


amedrontadoras possibilidades do “fundamentalismo” há uma outra
posição. Ela consiste em tentar, da melhor forma possível, conformar-
se com as consequências negativas da diferenciação estrutural e do
pluralismo moderno. A gente se volta contra o perigo da destruição da
sociedade moderna por meio de regressões totalitárias, mas não vê
nenhum motivo para celebrar o pluralismo moderno. O programa é
modesto, mas, pensamos nós, realista: as instituições intermediárias
precisam ser apoiadas lá onde não encarnam atitudes
128

“fundamentalistas”, mas onde apoiam os “pequenos mundos da vida”


(a expressão foi criada há muitos anos por Benita Luckmann) de
comunidades de sentido e eventualmente também de convicção e
educam ao mesmo tempo seus membros para serem portadores de
uma “civil society” pluralista. Nos “pequenos mundos da vida” os
diversos sentidos oferecidos pelas entidades que os intermedeiam não
são simplesmente consumidos, mas são objeto de uma apropriação
comunicativa e processados de forma seletiva até se transformarem
em elementos da comunhão de sentido das comunidades de vida.
(BERGER, 2012, p. 85).

Contudo, seguindo os ensinamentos de Ortega, devemos entender que a vida


exige ser compreendida por completo.
Naturalmente não há aqui a intenção de esgotar todos os sintomas de uma
época de crise. Os tópicos acima considerados apontam para a abrangência e a
atualidade do pensamento de José Ortega y Gasset.
129

12 CONCLUSÃO

Viver é interpretar o Universo, dizia Ortega. Crise, a rigor, é só uma não


conformação de nosso ânimo ao estado de coisas. As coisas, elas mesmas, são o
que são. Nossa ânsia por uma ordem, ou algo que nos deixe mais confiantes para
deitar a cabeça no travesseiro, é que nos faz ver outros acontecimentos — não mais
que outros — como um tumultuar das águas. De Parmênides aos mestres zen-
budistas, nada mais é a realidade que ela mesma e só ela mesma.
A interpretação do Universo, contudo, se se quer bem feita, requer essas
simetrias. Aqui, pensamos, haveria que se inserir o conceito de liberdade. O conceito
de homem (e então nos estenderemos pelo de civilização e pelo de crise) traz em seu
bojo o de liberdade. Ao inventar-se como homem e senhor do Universo, pelo menos
enquanto intérprete desse Universo, esse conceito nos parece estar implícito. O
homem em sua liberdade pensa construir para si um mundo acolhedor. O difícil — e
aqui reside o nó da questão — será manter esse mundo acolhedor por todo o tempo.
Sobre as coisas, mesmo que creiamos poder fazê-lo por algum tempo que seja, não
podemos dispor indefinidamente. Daí as crises.
Este estudo tentou mostrar o esquema dos ciclos históricos pensado por
Ortega, em que a crise pertence à normalidade da história, funcionando, inclusive,
como uma peça necessária no funcionamento do destino humano. María Zambrano
afirma ser “a crise uma enfermidade própria dos seres que têm história” (ZAMBRANO,
1949, p. 28). Uma humanidade sem catástrofes, segundo Ortega, cairia na indolência,
perderia todo seu poder criador.244 Diz ele:

Yo no recuerdo que ninguna civilización haya muerto de un ataque de


duda. Creo recordar más bien que las civilizaciones han solido morir
por una petrificación de su fe tradicional, por una arterioesclerosis de
sus creencias.245

Em praticamente todas as culturas verificou-se que certas épocas se


mostraram mais confusas, seus valores tornaram-se instáveis, alguma insatisfação

244 ORTEGA, Origen y epílogo de la filosofía, IX, p. 365.


245 ORTEGA, Sobre un Goethe bicentenario, IX, p. 564.
130

pareceu estar mais presente no corpo da sociedade. A história do Ocidente registra


algumas dessas passagens perigosas, do declínio da Grécia e de Roma aos
conturbados decênios da primeira metade do século XX. Segundo alguns
historiadores, os dias atuais enfrentam essa incerteza que se convencionou nomear
de crise. Ortega, ele mesmo espectador e personagem de um desses períodos (toda
a metade do século XX) dá realce à dúvida, “fluctuación de juicio, braceo desesperado
entre olas”. A dúvida define grande parte de toda crise, mas, como vimos, a vida em
crise exige o esforço natatório. A crise, um “mar de dúvidas”, instiga, por sua essência,
o homem a buscar saídas. Estado de espírito instável, diz ele, a dúvida está na raiz
da crise, pede por solução ao tempo em que corrói, ameaça, atormenta. Mas esta
solução não surge senão com redobradas forças e cautelas; deixá-las ao cuidado das
pessoas, não basta. As pessoas em geral não suportam uma tal dimensão da dúvida.
Homens imbuídos de forte querer instilam de tempos em tempos ideias salvadoras —
mas isto, a rigor, tão só alerta para a existência da crise.
Os esforços para a autopreservação, contudo, mesmo que tenham se originado
de mentes mais lúcidas, não parecem poder atender senão a um momento: o da crise
mesma que se apresenta. Ortega, em sua visão ampla, apontava para algo que bem
podia significar mais que uma inquietude. Seu conhecimento, porém, não foi suficiente
para impedir o pior: nações assustadas e obedientes que geraram a maior de todas
as guerras. Em 1946, Camus dava seu diagnóstico: “Não se cura a peste com os
remédios que se aplicam à enxaqueca. Uma crise que afeta o mundo inteiro deve ser
resolvida em escala universal” (Camus, 2002, p. 636).
Em épocas de crise, a confusão é o que se instala. É estar o homem em
convicções negativas, diz Ortega.

Todo lo que haga, sienta, piense y diga será decidido y ejecutado sin
convicción positiva, es decir, sin efectividad; será un espectro de
hacer, sentir, pensar y decir, será la vita minima, una vida vacía de sí
misma, inconsistente, inestable.246

246 ORTEGA, España invertebrada, III, p. 70.


131

Esse caráter negativo perante a vida, a preencher os tementes vazios dos


indivíduos e da sociedade, caracterizando, portanto, o que se chama crise, tende a
eclodir de uma forma ou de outra. Ou a exigir cuidados. Para essa tarefa do cuidar,
são geralmente convocadas as melhores cabeças. Uma espécie de autopreservação
do grupo incita alguns de seus membros a buscar sair do impasse, mesmo que a
esses membros se possa vir a cortar a cabeça. A história de todas as crises tem
demonstrado isso. Quando assim não ocorre — e quantas vezes já o presenciamos
— os fatos obrigam. Algumas guerras, por exemplo, não puderam ser evitadas ou
contornadas.
Paul Valéry compartilhava com Ortega tanto a dúvida sobre o futuro da
civilização ocidental quanto a certeza da necessidade de uma redefinição da cultura
europeia, que deveria ser executada por seus intelectuais. Segundo Rockwell Gray,
“ambos insistiam em que, apesar de que o espírito europeu tivesse sido
profundamente perturbado em princípios do século XX, não podia desaparecer, pelo
menos enquanto estivessem vivos homens como eles” (GRAY, 1994, p. 222).
Como vimos, a crise se dá sobre o colapso das crenças fundamentais que
sustentam uma dada cultura. Ou seja, para entender o conceito de crise somos
obrigados a entender o conceito de crença. Ambos os conceitos se mostram de difícil
compreensão, prestando-se facilmente à confusão, principalmente porque são
amplamente utilizados em nosso cotidiano. As crenças, em Ortega, precisam ser
compreendidas em toda sua radicalidade. Quando Ortega diz que somos nossas
crenças, não se trata de uma frase de efeito. Cumpre-nos lembrar o significado que
Ortega dá ao conceito de Ser. Neste sentido, é impossível entender o conceito de
crise sem ter em mente, e claros, os conceitos de Crença e Ser.
Na primeira parte deste estudo, acreditamos ter deixado claro qual o significado
de Ser, como se dá a relação do eu com as circunstâncias, o que significa a vida como
realidade radical e qual a necessidade de se pensar através da razão histórica, temas
esses fundamentais para a compreensão do pensamento de Ortega. Demonstramos
que Ortega inaugura um novo modo de pensar o Ser, o que culmina em uma nova
forma de filosofar. Com isso, buscamos dar ao leitor algumas ferramentas para
começar a compreender o conceito de crença.
132

A segunda parte do estudo teve como objetivo esclarecer de forma mais


aprofundada o que Ortega pretende quando afirma que somos nossas crenças, nelas
nos movemos. Tentamos demonstrar que por uma necessidade vital o homem secreta
ideias. O homem busca sempre clareza, busca encaixar. Algumas ideias encaixam,
conseguem suportar o choque decorrente da confrontação com a realidade e passam
a ser reconhecidas como verdades. Quando essas ideias conseguem se sustentar
sem contestação por gerações começam a ser esquecidas enquanto ideias, deixando
de ser para nós um problema. É o momento em que se transformam em crenças e
passam a operar em nossas vidas de forma infraintelectual. Ortega alerta para o fato
de que não são nossas ideias que mais influenciam nossas vidas, mas nossas
crenças. Nossas crenças direcionam nosso projeto de vida e de mundo.
A última parte do estudo buscou demonstrar como uma civilização entra em
crise. Ortega ensina que quando as crenças que alicerçam nossa instalação no mundo
deixam de viger, quando nosso sistema de crenças entra em colapso, nosso projeto
de vida e de mundo também deixa de ser efetivo e a vida se torna uma vida em crise.
Crise é crise de sentido, é estar em um mar de dúvidas, é viver desorientado. O
principal sintoma de uma vida em crise é o desassossego, mas não é o único.
Percorrendo os escritos de Ortega conseguimos reunir os principais sintomas,
buscando suscitar no leitor a ideia de que os mesmos sintomas seguem presentes na
atualidade. Por mais que a ideia de que ainda vivemos uma e mesma época de crise
não passe de uma intuição, conseguimos, com isso, abrir a possibilidade para um
futuro aprofundamento do estudo.
Grandes guerras já ocorreram, mas se esta crise é finda ou se todavia
participamos da maior crise jamais vista, só teremos sua verdadeira dimensão quando
nos encontrarmos a uma distância capaz de abarcá-la em sua totalidade. A vida,
segundo Ortega, é este movimento que vai de estarmos seguros em alguma crença
para estarmos seguros em outra. Já vivemos seguros em algo ou seguimos
braceando náufragos em um mar de dúvidas?
Para Gilberto Kujawski, pensador brasileiro contemporâneo, continuamos,
ainda hoje, imersos em uma época de crise. De acordo com Kujawski, “O final brusco
e violento da belle époque, coroamento de um processo de quatro séculos de história,
133

trouxe consigo a agonia dessa visão do mundo chamada modernidade, agonia que
vivemos agudamente no presente, e cujo outro nome é, precisamente, a crise do
século XX, primeiro capítulo de uma era de incerteza que está, apenas, começando”
(1991, p. 15).
Para Gilles Lipovetsky, um escritor dos nossos dias, seguimos vivendo dentro
da mesma modernidade vivida por Ortega, modernidade essa que hiperbolizou os
aspectos que ainda se apresentavam tímidos no final do século XIX, como “no
liberalismo globalizado, na mercantilização quase generalizada dos modos de vida,
na exploração da razão instrumental até a ‘morte’ desta, numa individualização
galopante” (2004, p. 53). Lipovetsky também caracteriza a hipermodernidade como
uma época de crise. Segundo ele, a atual crise das ideias é a principal causa da
angústia que se vê instalada em nosso tempo: “Narciso está menos enamorado de si
mesmo que aterrorizado pelo cotidiano” (2002, p. 25).
Seria a filosofia capaz de nos salvar da crise? Na conhecida entrevista a Der
Spiegel em 1966, questionado sobre a capacidade de influência da filosofia,
Heidegger respondia: “A filosofia não pode realizar imediatamente uma mudança no
atual estado do mundo. Isto vale não somente para a filosofia, mas para todos os
sentimentos e aspirações humanas. Só um deus pode salvar-nos ainda. Resta-nos a
única possibilidade de prepararmo-nos, pelo pensar e poetar, para a aparição de um
deus ou sua ausência no ocaso. Frente a ausência de um deus, nos afundamos.”
No colóquio de Darmstadt, em 1951, Heidegger narra o encontro que teve com
Ortega numa noite de festa:

Ortega parecia deprimido. Me fez um sinal e me sentei junto dele, não


apenas por cortesia, mas porque me cativava também a grande
tristeza que emanava de sua figura espiritual. Logo se fez patente o
motivo de sua tristeza. Ortega estava desesperado pela impotência do
pensar diante dos poderes do mundo contemporâneo. (in LLANO
ALONSO, 2005, p. 419).

Em 1941, Ortega havia constatado que a crise que diagnosticava era a maior
já enfrentada no Ocidente. Dez anos depois, muito menos otimista do que o de
costume, declara a morte da civilização ocidental:
134

Ha muerto por sí misma. No la han matado los enemigos; ella ha sido


la fuerza que ha estrangulado sus propios principios haciéndoles de
todo lo que ‘tenían en el vientre’, y probando, en conclusión, que estos
principios no lo eran.247

Acreditar na possibilidade de renovação de nossa civilização e trabalhar para


que ela aconteça é imperioso. Albert Schweitzer, no momento em que percebe que
vive numa época de crise, alerta:

Aqueles que aquiescem com o ocaso da civilização como algo natural,


confortam-se com a ideia de que apenas uma civilização e não a
civilização está em vias de dissolução. Uma nova civilização
floresceria em um novo tempo e em uma nova raça. Isso é um erro. O
mundo não tem, como antes, povos talentosos e não utilizados de
reserva, que possam nos substituir num futuro distante como líderes
da vida intelectual. Conhecemos todos que temos à disposição. Não
há nenhum entre eles que já não faça parte de nossa civilização, cujo
futuro intelectual e espiritual não tenha sido determinado pelo nosso
próprio. Todos, sejam talentosos ou não, distantes ou próximos,
vivenciaram as forças da barbárie que atuam em nossa civilização.
Todos estão debilitados, como nós, e apenas conosco podem se
recuperar.
Não a civilização de uma raça, mas a da humanidade, de agora e do
futuro, é que será abandonada, se a crença na regeneração de nossas
forças for em vão. (SCHWEITZER, 2013, p. 48).

Em 1949, María Zambrano advertia: “a crise, sim, existe, mas apenas


poderemos atravessá-la, transcendê-la, se uma vez compreendida deixarmos de crer
nela” (ZAMBRANO, 1949, 33). Deixaremos de crer nela apenas quando consigamos
reestabelecer uma visão de mundo que tenha seus alicerces numa afirmação ética do
mundo e da vida. Neste instante conteremos o declínio de nossa civilização. O
fracasso desse projeto produzirá a definitiva degeneração da civilização.
Finalizamos este estudo com as iluminadas palavras de Albert Schweitzer, que,
assim como seu contemporâneo Ortega y Gasset, diagnosticando sua época como
uma época de crise, trabalhou incansavelmente em prol de sua salvação.

247 ORTEGA, Pasado y porvenir para el hombre actual, IX, p. 660.


135

Apenas quando a convicção de que a renovação da cultura somente


pode advir da renovação da visão de mundo se generalizar e surgir
um novo anseio pela visão de mundo, chegaremos ao caminho
correto. Essa convicção ainda não tem condições de ser
implementada. Nem o homem moderno percebeu a gravidade do fato
de que ele vive numa visão de mundo insuficiente ou na falta de visão
de mundo. Primeiro, é necessário conscientizá-lo da anormalidade e
do risco dessa situação, do mesmo modo que é necessário tornar claro
àquelas pessoas que mostram perturbações de sensibilidade do
sistema nervoso que sua vitalidade está ameaçada, embora elas não
sofram. Assim, nós, pessoas modernas, temos que acordar para a
reflexão elementar acerca do que o homem representa no mundo e do
que lhe cabe fazer de sua vida. Apenas quando os homens modernos
estiverem novamente cientes da necessidade de dar sentido e valor a
sua existência e assim alcançar a fome e a sede por uma visão de
mundo satisfatória, haverá as condições adequadas para uma atitude
intelectual que nos possibilite restabelecer a civilização.
(SCHWEITZER, 2013, p. 82).

Passamos por um século de desassossego e desorientação sem que


tivéssemos consciência plena de nossa doença. Agora parece que já nos
reconhecemos como enfermos. E este é o primeiro passo para a cura.
136

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