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Salvador
2017
TOMAZ ALEIXO BRASILEIRO BORGES
Salvador
2017
B83 Brasileiro Borges, Tomaz.
Época de Crise na Filosofia de Ortega y Gasset / Tomaz
Brasileiro Borges. -- Salvador, 2017. 135 f.
RESUMO
ABSTRACT
This research seeks to clarify a concept, which currently seems confused within the
works of many authors. What is the actual meaning of the so called "Crisis"? When a
historical period can be labeled "Times of crisis"? How does it start? These are some
of the questions that we will try to answer, using as a benchmark the philosophical
ideas of the Spanish master. The research main purpose is to contribute to establish
a concept that may be used by those whose work is dedicated to better understanding
our times. In general, crisis is present when we no longer feel sure about the faith that
underlies our world vision, and remain unsafe about any other fundamental belief.
Ortega points that when the beliefs that sustain our installation in the world are no
longer valid, when our faith system collapses, our projects of life and world cease to
be effective and life turns into crisis. Crisis, is crisis of senses, is feeling immersed in
doubts, insecure and disoriented. The main symptom of a life in crisis is uneasiness.
ANTONIO BRASILEIRO
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 4
2 O EU E A CIRCUNSTÂNCIA ................................................................................. 12
1 INTRODUÇÃO
1BAUMAN, 2016.
2O mais próximo de um conceito de crise que encontramos em Como viver em tempo de crise está em
seu primeiro parágrafo: “As crises agravam as incertezas, favorecem os questionamentos; podem
estimular a busca de novas soluções e também provocar reações patológicas, como a escolha de um
bode expiatório. São, portanto, profundamente ambivalentes”. (MORIN, 2015, p. 9). Como podemos
notar, esse parágrafo não se presta a esclarecer o significado da palavra crise.
5
concentra-se para tentar resolver “o problema” que enfrenta sua época, uma época
de crise — que é o sair dela o quanto antes. Para isso formula uma “teoría de la vida
humana”, uma espécie de teoria da história, na qual se refere a “ecuaciones con
lugares vacíos que somos invitados a llenar con precisiones en cada caso”.3 É este, a
nosso ver, o maior legado do pensamento de Ortega aos novos filósofos: um guia para
a difícil tarefa que é o sair da crise. E talvez seja, dentre as suas ideias, aquela que
melhor suportará o impacto de teorias futuras; com equações de lugares vazios, pois
oferece-nos um esquema para guiar-nos, uma claridade sobre a confusão em que nos
encontramos. Para entender o conceito de época de crise é indispensável que
saibamos como e por que uma determinada cultura chega a viver em crise.
Em resumo, o que Ortega fundamentalmente propõe aponta para se pensar a
íntima ligação entre a verdade e os movimentos históricos: a verdade é criação
humana, fantasia, fruto de ideias, na tentativa de dar sentido à vida. Essa concepção
passa a ser tida como verdade na medida em que consegue solucionar o que é crítico.
Quando já não pensamos em tais ideias como criações, e não as consideramos como
obras de outros homens, elas assumem para nós o caráter de crenças e as sentimos
como a própria realidade. Ocorre, porém, que o homem nunca deixa de ter novas
ideias — novas soluções aos novos problemas de uma vida cada vez mais complexa
— que precisam estar em harmonia com o conjunto de crenças vigentes, exigindo que
o homem reforme algumas das antigas verdades para que o mundo mantenha sua
coerência e firmeza. Tais reformas resultam, ao final, em novas maneiras de ser
homem — em suma, resulta em movimentos históricos.4
ser necessariamente inalterável. Está sempre mudando, sutilmente, como se fosse um ser vivente.
Dentro, uma parte está morrendo, outra nascendo e outra se renovando gradualmente.”
8 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 394.
9 ORTEGA, El hombre y la gente, VII, p. 234.
10 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 70.
7
Esta etapa histórica é que Ortega denomina época de crise.13 São aquelas
horas fatídicas, onde “al mundo o sistema de convicciones de la generación anterior
sucede un estado vital en que el hombre se queda sin aquellas convicciones, por tanto,
sin mundo”,14 deixando o homem em seu estado original de não saber a quê se ater,
em um estado de ausência de verdadeiro sentido e orientação. Assim, o que
caracteriza uma época de crise é este sentimento de se estar náufrago, em busca de
uma terra firme.15
Trataremos aqui de investigar em que consiste o que Ortega chama “época de
crise”. Para isso teremos que iniciar nossa aproximação com os conceitos básicos de
sua filosofia — a vida, a verdade, o homem, a atuação do homem no mundo e do
sobre a realidade da qual faz parte. E os movimentos históricos são, de forma radical, a adequação
dessa interpretação à própria realidade que não se deixa aprisionar.
14 ORTEGA, Historia como sistema, VI, p. 21.
15 A metáfora do naufrágio é uma das mais belas e precisas utilizadas por Ortega. Francisco José
Martín (1999) sustenta um parentesco entre o estilo de Ortega e a tradição humanista, em especial
com a figura de Baltasar Gracián.
8
16 Fernando Salmerón (1993, p. 29) afirma que “os temas capitais do período de mocidade coincidem
[...] com os temas de toda a obra madura do mestre espanhol, como pode ser constatado, sem
dificuldade, por qualquer conhecedor mediano de seus escritos”. Isso não significa que entre o Ortega
de 1914 e o Ortega de 1955 não se detecte uma evolução. Seria ingênuo imaginar que em mais de
quarenta anos de trabalho filosófico Ortega não houvesse amadurecido seu pensamento. Ferrater Mora
(1958, p. 18) distingue três etapas fundamentais de seu desenvolvimento intelectual: o objetivismo
(1902-1914), o perspectivismo (1914-1923) e o raciovitalismo (1924-1955). J. Gaos (1957, p. 87)
observa que Ortega teve uma etapa de mocidade (1902 ou 1904-1914), na qual não se constata uma
filosofia própria, uma primeira etapa de plenitude (1914-1924); uma segunda etapa de plenitude (1924-
1936), em que se notaria a influência de Heidegger, e uma última etapa, que chama de Expatriação
(1936-1955), caracterizada mais pela continuidade de publicações. P. Cerezo (1984, p. 257 e ss.)
também divide sua obra em três períodos, que denomina: período do objetivismo eidético ou
neokantismo, período da fenomenologia e período da razão vital. A. Gutiérrez Pozo (2003, p. 23 e ss.)
segue, em linhas gerais, a concepção de P. Cerezo. C. Morón (1968, p. 81) prefere considerar a
periodização do pensamento de Ortega considerando as principais influências recebidas pelo filósofo
espanhol que, em sua interpretação, foram: Cohen, Scheller, Spengler e Heidegger. J. T. Graham, que
defende a necessidade de se compreender Ortega considerando sua raiz pragmatista, afirma que
primeiro Ortega se valeu da devoção do neokantimo à cultura para combater a fúria de Nietzsche,
depois recorreu ao “empirismo radical” de William James para escapar da armadilha idealista, e por
último baseou-se no método fenomenológico de Husserl para corrigir a noção de verdade do
pragmatismo.
17 Morón Arroyo (1968, p. 35) criticará como pouco filosófico não utilizar Ortega uma única palavra para
esclarecer uma ideia. “Mais grave que a evasão ou o rodeio é o equívoco. Ortega não usa os termos
com um sentido constante”. Fernando Salmerón (1959, p. 295) concorda com Morón Arroyo, afirmando
que “os conceitos de Ortega sequer são conceitos, apenas imagens, que não servem como
instrumentos intelectualmente eficazes para se apoderar da realidade”.Julián Marías (1983, p. 251)
defende o método de Ortega afirmando que ele “teve que frear sua tendência a fazer uma filosofia
‘técnica’; se tivesse feito, teria caído no vazio, teria sido inassimilável”. Durante anos houve o debate
sobre se Ortega poderia estar relacionado entre os filósofos. V. Chumillas (1940), J. Iriarte (1942),
Sánchez Villaseñor (1943), Roig Gironella (1946), S. Ramírez (1958) e V. Marrero (1962) são alguns
de seus críticos implacáveis. Essa polêmica só foi superada na década de 1970, com o aporte dos
trabalhos de J. L. Abellán (1966), J. L. Aranguren (1966), J. P. Borel (1969) e A. Guy (1968), que
tentaram compreender Ortega de maneira mais neutra, menos parcial.
9
nos anos 1920, razão vital e razão histórica são conceitos que começam a ser
entendidos conjuntamente. A vida, segundo Ortega, é tanto biografia quanto biologia.
Desde as celebrações pelo centenário do nascimento de Ortega inúmeros
estudiosos vêm se debruçando sobre os termos fundamentais de sua filosofia. Há,
seguramente, muitas descobertas inquestionáveis. É certo que muito já foi escrito
sobre o autor, sobre sua teoria do conhecimento, sua metafísica, suas teorias
estéticas e políticas, mas não foi assim no que concerne à sua teoria da história e à
sua doutrina sobre crise histórica.18 Pesquisando a biblioteca da Universidad
Complutense de Madrid, por exemplo, encontramos apenas dois trabalhos sobre o
tema, o primeiro publicado em 199119 e o segundo em 199420, que, por se tratar de
uma série de artigos, não se propõe a abordar o tema de forma sistemática.
Compartilho com o parecer de Ferrater Mora sobre o debate entre os que
defendem a originalidade de Ortega e os que o apontam, em seu estilo, como um
imitador do pensamento alemão contemporâneo21. Provavelmente Ortega seja mais
original do que o que dizem seus críticos implacáveis e menos original do que o que
pensam seus partidários. De todo modo, as realizações de um filósofo devem ser
apreciadas mais em termos de verdade do que de originalidade (FERRATER MORA,
1958, p.13).
18 José Luis Abellán (1996, p. 109) afirma que “o pensamento orteguiano alcança sua máxima
radicalidade no tema da história, onde logra situar-se à altura dos tempos”.
19 SHIKAMA, Rikiwo. Ortega: filósofo de las crisis históricas. Santiago de Chile: PUC, 1991.
20 PAREDES MARTÍN, María del Carmen. Ortega y Gasset: pensamiento y conciencia de crisis.
influências recebidas. Em 1979 saem os estudos de Ph. W. Silver (Fenomenología y razón vital) e de
N. R. Orringer (Ortega y sus fuentes germânicas). Nelson Orringer, fuçando a biblioteca pessoal de
Ortega, descobre obras de filósofos alemães que mais influenciaram o espanhol. Dentre os nomes
apontados (alguns sequer foram mencionados pelo próprio Ortega) estão: O. Immisch, G. Simmel, H.
Choem, P. Nartop, A. Pfander, M. Geiger, W. Schapp, E. Jaensch, K. Friedemann, E. Lucka e J. M.
Verweyen. P. Cerezo (1984) considera que Ortega não conseguiu abandonar o idealismo. Do lado dos
que defendem uma originalidade quase independente de Ortega podemos citar os trabalhos de Julián
Marías (1982), A. Rodríguez Héscar (1985), S. Rabade (1983), A. Regalado (1990), J. San Martín
(1998) e J. Lasaga (1997). Para Rodríguez Huéscar (2002), Ortega inaugura uma nova etapa da
metafísica ocidental. Miguel Oromí (1953) foi ainda mais radical: afirma que o vitalismo orteguiano
constitui a negação da metafísica ocidental, sendo sua filosofia mais profunda do que a de Kant. P.
Garagorri (1958) e J. L. Abellán (1991) afirmam que a filosofia de Ortega desborda os limites da filosofia
tradicional.
10
Ortega foi acusado também de ser pouco filosófico, principalmente por não ter
construído uma filosofia sistemática, ter demonstrado interesse por uma infinidade de
temas e ter escrito sua obra em vários gêneros literários, sobretudo o ensaio. Tudo
isso é certo; porém, como bem observa J. T. Graham (2004, p. 28),
ideia de que Ortega seja considerado um pós-moderno. Jesús Conill, uma referência
nas discussões atuais sobre o tema, também situa Ortega entre os pós-modernos (ver
“La transformación de la fenomenología en Ortega y Gasset. La posmodernidad
metafísica”, em SAN MATÍN, 1992).
12
2 O EU E A CIRCUNSTÂNCIA
es, pues, vida esa paradójica realidad que consiste en decidir lo que
vamos a ser — por tanto, en ser lo que aún no somos, en empezar por
el futuro. Al contrario que el ser cósmico, el viviente comienza por lo
de luego, por después.28
29 Sobre isto, escreve Ortega: “El presente no me preocupa porque ya existo en él. Lo grave es el futuro.
Para estar yo ahora tranquilo con respecto al minuto que va a venir, necesito estar seguro, por ejemplo,
de que la tierra que ahora me sostiene no me va a fallar luego” (En torno a Galileo, V, p. 85).
13
para enfrentá-lo, o homem precisa estar apoiado no passado, “sólo de él puede echar
mano: es la navecilla en que se embarca hacia el inquieto porvenir”.30
Convém observar que, em nenhum momento, Ortega interpreta esse projeto
como algo determinado; pelo contrário, a seu ver, a vida como projeto implica uma
vontade que é livre para realizar ou não esse projeto, apenas não pode escolher outro,
nem prescindir dele.
Em suma, o eu singular precisa realizar-se, executar o projeto que é sua vida,
e deve contar com o mundo em torno, único meio de realização do projeto, que lhe é
dado, com suas facilidades e dificuldades.
Este personagem programático, dirá Ortega, é o responsável por valorar todas
as coisas — aquelas que encontramos em nossa vida, as que precisamos interpretar
para que ela faça sentido. Este eu é, assim, “uma individualíssima influência
constrangedora e coercitiva sobre o mundo” e o mundo, por sua vez, é tudo aquilo
que me opõe resistência.
Entender o homem enquanto projeto significa entendê-lo como um “ser
substancialmente necessitado”, incompleto, um ser que “tem em si a exigência de
buscar sua unidade em algo fora de si”. Esse fora de si que obrigatoriamente se
relaciona e busca identidade é o que Ortega denomina circunstância. “La
circunstancia! Circum-stancia! Las cosas mudas que están en nuestro próximo
derredor!”31
A circunstância orteguiana guarda uma grande semelhança com o mundo
circundante (Umwelt) de Edmund Husserl,32 como poderemos ver no decorrer deste
trabalho, porém o conceito de circunstância em Ortega só é devidamente absorvido
quando compreendemos bem o conceito de vida humana. E aqui se separa Ortega
radicalmente de Husserl.
Para Husserl, o mundo existe para nós como produto intencional, em que a
intencionalidade “nada mais significa que esta particularidade que tem a consciência
orador, I, p. 557), o que sugere uma possível independência em relação ao pensamento de Husserl.
14
meios a toda crítica da razão que se deva realizar; por isso, requer prescindir o mais
completamente possível de supostos e o possuir uma absoluta evidência intelectual
na reflexão de si mesma” (HUSSERL, Ideias I, §63). A fenomenologia aspira a ser
uma nova atitude orientada a “tão só” contemplação.
Em seu livro sobre Leibniz (1947), Ortega expõe, em nota de rodapé (ORTEGA,
VIII, p.273-275), suas objeções à fenomenologia de Husserl:
35Philip Silver mostra claramente que Ortega já havia concluído, em 1914, uma crítica à fenomenologia
husserliana. De acordo com Silver, Ortega buscou uma fenomenologia mundana, antecipando a
fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (SILVER, 1978). E Julián Marías (1959, p. 264) diz
que “em 1914, quando a teoria da fenomenologia havia cumprido apenas um ano, Ortega havia
superado as noções de redução e consciência, para afirmar a realidade pessoal e executiva da vida
humana”.
16
Ortega não aceita que nossa relação primordial com as coisas seja em um
processo de “tomar consciência de”. Em Ortega vemos que o âmbito da consciência
se transfere para a vida e a nossa relação primordial com o mundo é uma relação
pragmática, que consiste em estar no mundo contando com as coisas. Para Ortega,
o conhecimento não pode ser entendido como o ingresso da coisa na mente, nem
como um estar a “coisa mesma” na mente per modum cognoscentis, nem como uma
construção da coisa. O conhecimento é, segundo Ortega, uma “interpretación de la
cosa misma sometiéndola a una traducción, como se hace de un lenguaje a otro,
diríamos del lenguaje del ser, que es mudo, al lenguaje decidor del conocer”. 37
Javier San Martín, com uma interpretação bastante peculiar sobre Husserl,
afirma que a filosofia de Ortega se aproxima bastante da fenomenologia de Husserl,
ambas possuindo a mesma arquitetura. Isso, segundo San Martín, não tira o mérito
de Ortega, mas o coloca em uma posição de relevo, posto que o espanhol soube
criticar “o que em Husserl era caduco”.38 San Martín aponta que ao se desvencilhar
da teoria fenomenológica e submergir diretamente na prática fenomenológica, Ortega
consegue desenvolver sistematicamente o que Husserl não conseguiu, “sua obra é o
desenvolvimento da fenomenologia como pensar sistemático”. (SAN MARTÍN, 1994,
p. 66). É interessante notar que San Martín compreende a redução fenomenológica
como recondução da realidade no sujeito que experimenta a realidade, e assim nos
diz que “todo o sentido da redução transcendental husserliana não é senão o de
reconduzir o mundo à vida radical, onde as coisas ganham sentido de ser, à
subjetividade transcendental que é o Urstätte, como diz Husserl, o lugar originário do
sentido do mundo”. (SAN MARTÍN, 1994, 93). E aproxima o conceito de subjetividade
Já José Lasaga Medina concorda que existe grande proximidade entre os dois
filósofos, contudo informa que “existem duas diferenças que afetam o sentido central
de uma e outra filosofia: a) Husserl não descreve o mundo da vida em termos de uma
realidade credencial, de forte componente social, alheia à consciência; b) Husserl
mantém intacto seu projeto original de encarregar à consciência a epoché do mundo
da vida para criar uma ciência radical e fundamental, o que implica a possibilidade de
constituir racionalmente a totalidade do mundo da vida”. (LASAGA, 1994, p. 211, nota
6). Em suma, a proximidade entre Ortega e Husserl depende de como se compreende
a fenomenologia.
Retomando o argumento central sobre o conceito de circunstância, Ortega nos
mostra que ao homem não está facultado prescindir do projeto que é sua vida, vida
entendida como conjunto de eu e circunstância. Circunstância essa que nos é dada e
19
não pode ser substituída por outra, pois forma parte de nós, é um conjunto de
facilidades e dificuldades para a execução de nosso projeto, que é “[...] El fuera de si,
donde El hombre tiene que afanarse en ser”.39 Note-se que a circunstância representa
o mundo não apenas como um mundo de coisas, mas como um mundo prático, como
aquilo que nos rodeia — coisas, bens e valores.
O conceito orteguiano de circunstância, como apontado por Morrón Arroyo, tem
grande parentesco com o conceito de milieu-dinge de Max Scheler. Vejamos o
seguinte fragmento de Scheler:
40 Ortega nunca encontrou uma palavra em espanhol que traduzisse de forma adequada o sentido que
os gregos davam a prágmata, daí que muitas vezes glosava seu significado, buscando uma melhor
compreensão do leitor. Uma “coisa” enquanto pragma deve ser entendida como algo em relação com
o homem, que ele manipula ou evita, de acordo com uma finalidade. Ortega não entende coisa como
algo que existe por si.
41 ORTEGA, El hombre y la gente, VII, p. 119.
Dos ensinamentos de Buda às ideias dos cientistas de hoje sobre uma flecha do
tempo, subjaz uma preocupação com o viver. O Dasein de Heidegger é perpassado
por essa preocupação: Sorge (cuidado) foi a palavra que usou para exprimir esse
estar no tempo. Um estar, claro, não “físico”, mas carregado de uma consciência deste
estar. De um ou de outro modo, porém, não tem sido fácil se chegar a algum acordo.
Pisamos como que em reinos de alguma ficção. Para Bergson, “o tempo é invenção
ou não é absolutamente nada”. Isto está em seu livro A evolução criadora, e foi citado
por Ilya Prigogine. “Bergson fala ali do tempo como ‘jorro efetivo de novidade
imprevisível’ de que é testemunha a nossa experiência da liberdade humana, mas
também da indeterminação das coisas”. (PRIGOGINE, 1996, p.61).
A ideia de ‘invenção’ do tempo, bem adaptada ao viver humano e todo seu
aparato de decisões, aproxima-nos de Heidegger e Ortega, assim como dos filósofos
chamados existencialistas. Ante o indeterminado nunca nos sentimos à vontade, já
que a imprevisibilidade não parece nos deixar mais felizes. A vida como eleição
(elegância), de Ortega, impõe este “cuidado” de que nos falava Heidegger, ao tempo
em que nada retira deste mistério que é o viver.
Sobre o tema da vida humana, à luz do pensamento de Ortega, um de seus mais
importantes discípulos, Julián Marías, escreveu uma interessante Antropología
metafísica. Marías também faz uso da flecha (mas não a “flecha do tempo”) como
imagem da vida. É uma imagem justa, diz Marías, mas não completa; “[...] a rigor, é
todo o arco com sua tensão para trás, de onde a flecha recebe impulso, e o alvo para
o qual se oriente — o símbolo adequado da vida humana”. E prossegue:
50 Em 1935, ao tomar conhecimento da publicação das conferências de Praga na qual Husserl explica
a crise da razão como uma crise enraizada na modernidade, Ortega ratifica sua opinião sobre o estilo
intelectual de Husserl; porém, dirá que abandonou a fenomenologia no mesmo instante em que a
recebeu, porque “para que sea posible un pensar fenomenológico sistemático hay que partir de un
fenómeno que sea él por sí sistema. Este fenómeno sistemático es la vida humana y de su intuición y
análisis hay que partir” (La idea de principio en Leibniz, VIII, p. 273).
26
es la suma de lo que hemos sido, sino lo que anhelamos: el apetito, el afán, la ilusión,
el deseo”.54
Não há contradição nisso, na convivência da determinação com a decisão,
escolha, liberdade. O que acontece é que o repertório de fatalidades do contorno
oferece, a cada instante, a possibilidade de que se faça isto ou aquilo, ou seja, o
próprio decidir exige a simultaneidade de limitação e liberdade. Onde houvesse pura
indeterminação, em que tudo fosse igualmente possível, o único impossível seria
decidir. A vida exige que eu trate com a circunstância para seguir vivendo. Dito de
outro modo, é a circunstância o conjunto de elementos determinados, portanto,
fechada; mas, ao mesmo tempo, com largueza interior, onde é possível o homem
mover-se. Conforme Ortega, “para sostenerse en esa circunstancia tiene que hacer
siempre algo — pero este quehacer no le es impuesto por la circunstancia, como al
gramófono le es impuesto el repertorio de sus discos o al astro la línea de su órbita”.55
Este caráter dinâmico da existência humana, esta vida como um “quehacer”, como
um “drama”, e não como coisa ou matéria ou substância acabada, aparece já com
firmeza em Pidiendo un Goethe desde dentro e, particularmente, em Historia como
Sistema. Sublinha Ortega:
O homem está obrigado a conviver com um mundo que não foi escolhido por
ele.57 Há nisso uma dimensão de fatalidade, porém há também uma dimensão de
possibilidades. A imagem do arco utilizada por Marías descreve perfeitamente essa
concepção de Ortega. “La vida es el ser indigente”58, escreve Ortega, cuja propriedade
originária, frisamos, é ter afazeres.
Como vimos, a estrutura fundamental da vida é individual e concreta, a vida de
cada qual, contudo Ortega apresenta outros dois níveis, o interindividual e o social.
Em La “filosofía de la historia” de Hegel y la historiología Ortega nos diz que “en el
convivir se completa el vivir del individuo; por tanto, se le toma en su verdad y no
abstraído, separado.”59 E mais adiante afirma:
Outro aspecto da vida é ser pretensão. Ortega define a vida do homem como
uma pretensão que nunca será realizada. “El destino — el privilegio y el honor— del
hombre es no lograr nunca lo que se propone y ser pura pretensión, viviente utopía.
Para siempre hacia el fracaso, y antes de entrar en la pelea lleva ya herida la sien”.61
O homem, neste sentido, é um ser constitutivamente infeliz, que descobre o
mundo como hostilidade. “El ser básico del hombre es subsistente infelicidad. Es el
único ser constitutivamente infeliz y lo es porque está en un ámbito de existencia —
el mundo — que le es extraño y, últimamente, hostil”.62
57 O ponto de partida da filosofia de Merleau-Ponty é a relação do homem com esse mundo em que
“fomos lançados”.
58 ORTEGA, Historia como sistema, VI, p. 33.
59 ORTEGA, La “filosofía de la historia” de Hegel y la historiología, IV, p. 539.
60 ORTEGA, La “filosofía de la historia” de Hegel y la historiología, IV, p. 540.
63José Gaos entende que Heidegger fez Ortega redirecionar sua filosofia para seu verdadeiro sentido.
Do sentido “biológico”, presente em Meditaciones del Quijote, para o “vital” ou “biográfico” dos escritos
posteriores. Ortega nunca admitiu alguma influência de Heidegger em seu pensamento. Vale recordar,
também, que ambos, Ortega e Heidegger, foram influenciados por Dilthey e Nietzsche. E, de acordo
com Marías, já em Las Atlántidas, obra anterior a Ser e Tempo, Ortega havia buscado interpretar a vida
humana como biografia/biologia. O próprio Ortega, incomodado com as insinuações sobre a influência
do pensamento de Heidegger, escreve em 1933 (Goethe desde dentro, p. 403) uma extensa nota de
rodapé, onde se refere ao pensamento do filósofo alemão como formalmente inconcluso, e o seu como
inadequadamente desenvolvido em forma escrita. Em todo caso, Ortega nunca abandonou a ideia
nietzschiana de que o espírito se parece mais a um estômago. E ele próprio faz uma crítica a Heidegger
por colocar o Ser como o problema mais importante. Segundo Ortega, o correto seria perguntar: “o que
me pede o corpo?” — e, não, “o que me pede o ser?”.
30
el ser antes de saber lo que es cada cosa en cuanto que es”.64 A pergunta “o que é o
Ser?” não significa apenas quem é o Ser, mas, também, “qué es el Ser mismo como
predicado, sea quien quiera el que es o el ente”. Para Ortega, Heidegger insere o
Dasein entre os tipos de Ente que se propõe a classificar.65
Outra importante diferença entre o pensamento de Heidegger e o de Ortega se
encontra na concepção unilateral da vida, preconizada pelo filósofo alemão, e na
concepção multilateral da vida, postulada por Ortega. Para Ortega, a vida comporta
uma duplicidade, como, em toda empresa, dois ingredientes: “el apetito de ejecutarla
y el temor del peligro que ocasiona”.66 Assim, contra a concepção heideggeriana da
vida como angústia, inquietude e morte, entende Ortega a vida como angústia e
empresa, morte e deleite, inquietude e sossego. A cada sentimento de aprisionamento
que o homem vivencia, Ortega vincula o sentimento do esforço desportivo capaz de
elevá-lo e libertá-lo do peso que suporta nas costas. Não existe em Ortega nenhuma
utopia reconfortante. Não cabe ao homem esperar uma instância de salvação fora do
próprio homem. A razão de Ortega coloca o homem desse lado de cá, com os pés
bem firmes na terra, consciente das possibilidades e dificuldades que lhe oferece a
circunstância (MARTÍN, 1995, p.56).
A liberdade e responsabilidade que fazem parte da vida impõem a ela uma
característica constitutivamente moral. Para realizar-me preciso atender à minha
vocação; minha vida enquanto projeto só cobra sentido quando se comunica com
minha circunstância, a qual somente estará inteira se se completa no universo.
Circunstância e vocação exigem ser completadas. É minha responsabilidade aceitar
meu destino e integrá-lo, ou seja, salvá-lo (BASTIDA FREIJEDO, in LLANO ALONSO,
2005, p.85). O pensamento orteguiano de que Yo soy yo y mi circunstancia y si no la
salvo a ella, no me salvo yo, culmina em uma ética da vida humana. Por ser livre para
escolher, sou o responsável pela salvação de minha vida. Elegante, segundo Ortega,
é aquele que sabe escolher a melhor conduta, e elegante é esta própria conduta. A
ética da vida humana orteguiana exige que se atue com elegância.
Herr Heidegger, dizia Ortega, a filosofia tem relação com três coisas:
a primeira, com a sagacidade, que sem dúvida você possui; a
segunda, com a profundidade, que você é um mestre, mas, carece
completamente da terceira: ¡¡a dança!!”. Heidegger, um pouco
enfadado, lhe contestou: “E o que tem que ver a filosofia com a
dança?” Ortega, sorridente e burlão, lhe disse: “Mehr als Sie denken!,
Mehr als Sie denken! (Mais do que você pensa!)”. E Gadamer sorria
contando, dando-lhe razão a Ortega: não apenas a angústia, também
a atitude desportiva e alegre. (in LLANO ALONSO, 2005, p.409).
32
todas las verdades posibles y todas las facetas y haces que la realidad pueda tener, ese ser, principio
33
um aspecto do real, mas estes não são necessariamente antagônicos. Quanto mais
aspectos percebemos, mais próximos da realidade estaremos. Note-se, porém, que o
ponto de vista individual é parcial, mas não falso. Apenas em um Deus onipotente e
ubíquo seria possível uma verdade não localizada. 70 E mesmo assim, “su punto de
vista es el de cada uno de nosotros; nuestra verdad parcial es también verdad para
Dios”.71 Assim indaga Ortega: “¿Cuándo nos abriremos a la convicción de que el ser
definitivo del mundo ¿no es materia ni es alma, no es cosa alguna determinada, sino
una perspectiva?”.72
Durante o ano acadêmico de 1915-1916, Ortega se aprofundou em seu diálogo
com Husserl em um curso ministrado pelo Centro de Estudos Históricos de Madrid.
As quinze lições só foram publicadas em 1982 com o título Investigaciones
Psicológicas, escolhido por Paulino Garagorri. Nelas argumenta Ortega que a verdade
em si mesma não é relativa, que relativa é a parte da realidade percebida por cada
indivíduo, posto que “cada indivíduo é um órgão de percepção em algo distinto de
todos os demais, e como um tentáculo que chega a pedaços de Universo para o resto
secretos” (XII, p. 432).
Ainda ao criticar o relativismo, Ortega chama atenção para outro importante
fato no processo de conhecimento: o de que ponto de vista é direcionado para uma
determinada paisagem. Na teoria do ponto de vista temos o sujeito que busca
conhecer e o objeto que se organiza de uma determinada maneira, aparecendo para
o sujeito.73 Em O Ser e o Nada, Sartre afirma que “a aparência remete à série total
das aparências e não a uma realidade oculta que haja drenado para si todo o ser do
existente” (1972, p. 11), aproximando-se, assim, do pensamento de Ortega. A
aparência, neste sentido, não oculta o ser de um existente, não difere, enfim, da
essência.
integral de todas verdad, sería lo que llamamos Dios. En efecto, sólo en Dios, ente ideal hipotético que
ahora mentalmente construimos, tendrá sentido suponer la integridad de la verdad”.
70 Mais adiante veremos a importância do conceito de sinceridade em Ortega y Gasset.
71 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 202.
“Es la cosa el maestro del hombre”.79 Quando observamos uma laranja, diz
Ortega, não há dúvida de que ela é a causa de que passemos de um aspecto a outro;
porém, devemos ter em conta que isto se dá porque, em cada momento, apenas
podemos ver dessa laranja um ponto de vista e somos impelidos a girá-la para
conseguir ter dela uma ideia mais completa. Em cada momento temos da realidade
um certo número de ‘aspectos da coisa’ que se vão acumulando. Assim, a realidade
radical que é a vida não consiste em ‘consciência’, mas sim “em uma radical dualidade
unitária, que é o diálogo dinâmico entre eu e as circunstâncias” (ORTEGA, 1967, p.
43). Entenderemos melhor a relação de Ortega com a realidade neste fragmento:
A realidade é sempre “realidade-para”.81 Isto não quer dizer que existam várias
realidades. A realidade é única. Ocorre que a percepção da realidade depende dos
consiste (ou se dá) não como substância, mas como acontecimento. Não cabe, pois, falar de
realidades-em-si, mas de realidades-para. A realidade se manifesta como relação; contudo não como
relação a um sujeito cognoscente, como acreditou Kant, mas como interação executiva entre um eu e
sua circunstância” (1994, p. 209). Nossa relação primária com as coisas se dá numa relação de contar
com, “nosso trato com os utensílios do mundo, conste, não é primariamente cognoscitivo”. Neste
sentido, adverte Ortega, “‘cosas’ significa en la lengua actual todo algo que tiene por sí y en sí su ser,
por tanto, que es con independencia de nosotros. Mas los componentes del mundo vital son sólo los
39
que son para y en mi vida no para sí y en sí. Son sólo en cuanto facilidades y dificultades, ventajas y
desventajas, para que el yo, que es cada cual, logre ser; son, pues, en efecto, instrumentos útiles,
enseres, medios que me sirven - su ser es un ser para mis finalidades, aspiraciones, necesidades, o
bien son como estorbos, faltas, trabas, limitaciones, privaciones, tropiezos, obstrucciones, escollos,
rémoras, obstáculos que todas esas realidades pragmáticas resultan, u por motivos que veremos,
siendo ‘cosas’ sensu stricto, es algo que viene después, algo secundario y en todo caso muy
cuestionable” (El hombre y la gente, VII, p. 117).
40
Más hondamente fluye desde el Renacimiento por los senos del alma
europea la tendencia antagónica [ao relativismo]: el racionalismo.
Siguiendo un procedimiento inverso, el racionalismo, para salvar la
verdad, renuncia a la vida. […] Siendo la verdad una, absoluta e
invariable, no puede ser atribuida a nuestras personas individuales,
corruptibles y mudadizas. Habrá que suponer, más allá de las
82 Anthony Giddens e Philip W. Sutton definem a modernidade como “período que se estende do
Iluminismo europeu de meados do século XVIII a, pelo menos, meados dos anos 1980, caracterizado
pela secularização, racionalização, democratização, individualização e ascensão da ciência”
(GIDDENS, 2015, p. 22). Segundo Toulmin, “dizer que todos os problemas verdadeiramente filosóficos
devem enunciar-se com independência de qualquer situação histórica concreta e resolver-se com
métodos igualmente isentos de toda referência contextual, é precisamente uma das pretensões
racionalistas que melhor caracterizam a filosofia moderna entre 1640 e 1950” (1990, p. 67). Mesmo
reconhecendo uma outra filosofia moderna, anticartesiana, encarnada em figuras como Voltaire ou
Vico, as principais características da modernidade apontadas por Ortega são a crença na ciência e a
crença no progresso. Assim, ensina Morón Arroyo, já em El tema de nuestro tiempo Ortega caracteriza
a época moderna como a época da razão pura. Em suma, Ortega aponta como pontos fundamentais
da modernidade: o triunfo das ciências exatas, em particular a matemática e a física, como modelos
epistemológicos mais perfeitos; a separação entre o âmbito da natureza e o âmbito da cultura, onde “la
cultura es siempre la negación de la naturaleza, y como en el hombre a lo natural llamamos espontáneo,
tendremos que definir la cultura como la negación de lo espontáneo” (II, p. 46); o triunfo da idéia da
consciência como fato primário do Universo, o que implica na tese idealista da redução do real ao ideal;
e, como vimos, a fé no progresso.
83 ORTEGA, El tema de nuestro tempo, III, p. 161.
41
Longe desses dois extremos, a missão da nova razão passa por colocar a
cultura na sua genuína função, que é a de servir a vida.
Ortega reconhece que a razão histórica está relacionada à, ao menos, três
contribuições estabelecidas por Dilthey. “Primero: estado de ‘conciencia histórica’,
averiguación de que todo lo humano es relativo a un tiempo, salvo el hecho mismo de
la existencia de lo humano. Segundo: necesidad consecuente de fundar esa
conciencia histórica, es decir, esa única afirmación que parece quedar en pie cuando
las demás sucumben: que el hombre es relatividad, historicidad. Tercero: postulación
de una ciencia de lo humano como tal que al ser la disciplina fundamental y quien
propiamente conoce la única realidad salvada del naufragio — el hombre —, será lo
que se ha pretendido siempre con el nombre de filosofía.”88
Com isso, Dilthey consegue redirecionar a preocupação da filosofia para o
problema que é o homem. A partir desse novo redirecionamento se fazia necessário
descobrir uma nova razão — o que Dilthey não conseguiu desenvolver em seu
pensamento –, capaz de compreender o problema da vida humana. Assim dirá
Ortega: “La filosofía es un hecho humano, y hemos visto que para Dilthey — esa es
su genialidad y su limitación — el hombre no tiene una ‘naturaleza’, un modo de ser
único e invariable en su última contextura, como creía aún el siglo XVIII, sino solo tiene
historia.”89
O ser do homem, como vimos, não pode ser compreendido como algo que se
remete ao estático. É preciso compreender que a realidade ‘homem’ consiste em ser
puro dinamismo, sempre diferente de si mesma. Para Ortega, a exuberância que a
ciência físico-matemática representa como conhecimento contrasta com a sua
deficiência diante do que é propriamente humano; buscou uma natureza estática do
homem, mas nunca encontrou, pelo simples fato de que “el hombre no tiene
naturaleza sino que tiene... historia. O, lo que es igual: lo que la naturaleza es a las
cosas, es la historia — como res gestae — al hombre”.90
são objetos ideais, fixos. O matemático primeiro define o número para depois elaborar
seus teoremas, diz Ortega. Eis o que argumenta:
No final das contas, argumenta Ortega, a razão pura se constitui numa crença
e, por esse motivo, teve o vigor de concorrer à crença religiosa anteriormente
vigente.99
Recordemos que, para Ortega, a vida é entendida como “diálogo dinâmico
entre o indivíduo e o mundo, como confronto do eu e sua circunstância”. Este modo
de pensar a vida é similar ao modo do pensar heideggeriano. 100 De acordo com
100 Segundo José Gaos, “entre 1928 e 1932 se desenvolve a influência mais decisiva na obra de Ortega:
a de Heidegger. O que o faz passar do puro historicismo das Atlántidas ao biografismo raciohistoricista,
e o faz interpretar no sentido deste o anterior biologismo raciovitalista” (GAOS, 1992). Recordemos que
Julián Marías é terminantemente contra esse ataque de Gaos, pois afirma que, já em 1910, Ortega
havia se instalado nas bases decisivas de seu pensamento, reagindo ao idealismo. Assim, entende
Marías que a evolução da obra de Ortega deve ser entendida como um desenvolvimento linear de uma
46
Heidegger existe uma “diferença ontológica” entre Ser e Ente. O ser não pode ser
entendido como referente às representações do sujeito ou da coisa. Para Heidegger,
devemos entender o ser como um “horizonte significativo”, pelo qual todo ente, toda
realidade é vista. Ser não significa a essência ou a existência da coisa. Heidegger
pensa o ser como manifestabilidade, como aquilo que aparece. “A essência do ser-aí
radica em sua existência.” (HEIDEGGER, 2005, p. 42). É enquanto realização de seu
ser, processo que funde num mesmo momento uma relação ontológica e uma
autocompreensão.
Heidegger critica Descartes por não ter buscado esclarecer o “sentido de ser”
quando digo “sou”, identificando-o com o conceito de substância. E critica Husserl por
não se ater à intencionalidade do “sentido de ser”. Também Ortega culpa Descartes
por haver colocado a filosofia em um caminho equivocado quando dividiu o mundo em
objeto pensante e objeto com extensão, retirando a possibilidade de compreender a
realidade como interação entre eu e circunstância.
Para Descartes, o Ser é algo relativo ao Pensar; contudo, e aqui encontramos
a principal crítica de Ortega ao idealismo101, o próprio Pensar é algo relativo à vida
intuição primeira: a intuição orteguiana antecipa em vinte anos o pensamento de Heidegger. (MARÍAS,
1959).
101 Em seu dicionário de filosofia, Ferrater Mora define idealismo como “toda doutrina – e toda atitude
– segundo a qual o mais fundamental, e aquilo pelo qual se supõe que devem reger-se as ações
humanas são os ideais – realizáveis ou não, mas quase sempre imagináveis como realizáveis [...] A
ação mais fundamental do idealismo é tomar como ponto de partida para a reflexão filosófica não ‘o
mundo em torno’, ou as chamadas ‘coisas exteriores’ (o mundo exterior), mas o que chamaremos eu,
sujeito ou consciência. Justamente porque o eu é fundamentalmente ideador, quer dizer,
representativo, o vocábulo idealismo torna-se totalmente justificado. Considerando o idealismo com
particularmente o idealismo moderno, e tendo em conta que o ponto de partida do pensamento idealista
é o sujeito, pode dizer-se que tal idealismo constitui um esforço para responder à pergunta: ‘como
podem conhecer-se, em geral, as coisas?’ Para o idealismo, ser significa primariamente ‘ser dado na
consciência’, ‘ser contido na consciência’. O idealismo é, assim, um modo de compreender o ser. Em
um curso de filosofia ministrado entre 19221 e 1922, apenas publicado em suas Obras completas (VII,
p. 767), ensina Ortega: “Como ven ustedes, la teoría idealista del conocimiento, que, en una u otro
forma, ha imperado en el mundo intelectual desde el Renacimiento hasta hoy, encuentra que el sujeto
no puede reglar, medir su pensamiento con una realidad trascendente, independiente de éste, por la
sencilla razón de que esa realidad no existe. Más rigurosamente dicho: la realidad trascendente es,
cuando más, problemática, y por tanto no puede el conocimiento, al construir su propia teoría y justificar
la pretensión de rigor en él ínsita, no puede afirmarla y estatuirla. La única objetividad segura con que
el conocimiento cuenta es la de los contenidos de conciencia. Esto es lo único que, en efecto, halla el
conocimiento previamente a su operar, lo único que es dado a él, puesto, positivo. Lo demás es
añadido, supuesto, problemático por tanto. A esta forzosidad que surge para el conocimiento riguroso
de no contar con más entidades, con más realidad, con más ser que los contenidos se ha llamado
principio de la inmanencia o de la fenomenalidad, según el cual ‘lo que para mí existe, está bajo l asuma
47
humana. Nem Ser nem Pensar são a autêntica realidade. Como vimos, a realidade
radical é a vida de cada um. “Detrás del pensamiento está nuestra simple, concreta y
dramática vida, la de cada cual, que nos obliga a pensar y teorizar”. 102 A crítica de
Ortega a Descartes — e consequentemente à fenomenologia de Husserl, que
considerava como uma forma “ultradepurada” do idealismo — se concentra na
necessidade da intermediação da consciência entre o eu que conhece e o mundo.
Para que o idealismo faça sentido, afirma Ortega, é preciso que o pensamento se
pense a si próprio. No entanto, a consciência não possui um ser objetivo, é pura
transitividade.
Lembremos ainda que, para Ortega, o Ser das coisas é “posto” pelo homem
quando este já não pode “contar com” elas espontaneamente, passando a “reparar
em”, a perguntar por elas. É nesse instante que as coisas começam a ter um ser. Em
1953 explica que o Ser, mais que um problema, era a solução encontrada.103
Compreender que a vida é a realidade radical e a razão deve servir à vida, esse
é o alerta de Ortega:
105 Xavier Zubiri, por sua vez, observa que “o sentir humano e a compreensão não são dois atos
numericamente distintos, cada um completo em sua ordem, senão que constituem dois momentos de
um só ato de apreensão senciente do real: é a inteligência senciente... O sentir humano e o
compreender não só não se opõem, como constituem em sua intrínseca e formal unidade um só e
único ato de apreensão. Esse ato enquanto senciente é impressão; enquanto intelectivo é apreensão
da realidade. Portanto, o ato único e unitário de compreensão senciente é impressão de realidade.
Compreender é um modo de sentir, e sentir é no homem um modo de compreender. (ZUBIRI, 1998A,
p.12).
106 Dilthey, em sua Introdução às Ciências do Espírito (1986), afirma que o homem somente pode
conhecer o mundo do espírito. A natureza só se deixa conhecer pelo espírito humano, nunca no que
ela é em si. O próprio Ortega inicia o artigo “Aurora da razão histórica” reconhecendo que fora Dilthey
o que fizera “a descoberta de uma nova realidade: a vida humana”. Dilthey faz com que a filosofia
conceba a vida humana não mais como uma realidade que pertence ao “universo infinito” dos físicos,
mas como uma realidade peculiar, que não pode ser submetida à realidade física. A partir de então,
segundo Ortega, a filosofia passou a perceber que o homem não têm natureza, tem história. De acordo
com Ortega (Guillermo Dilthey y la Idea de vida, VI, p. 166): “La nueva gran Idea en que el hombre
comienza a estar es la Idea de la vida. Dilthey fue uno de los primeros en arribar a esta costa
desconocida y caminar por ella, aunque, como suele acontecer a los primeros ocupantes, ya veremos
con qué género de fatigas e insuficiencias. Este estudio va a precisar cómo, en rigor, Dilthey no supo
nunca que había llegado a un nuevo continente y tierra firme. No logró nunca posesionarse del suelo
que pisaba.” Ortega reivindica também para si a inovação dessa ideia, posto que afirma (e lamenta)
não ter tido contato com a obra de Dilthey em sua estância em Berlim. Esse fato é questionado por J.
C. Lavêque (“Ortega y Dilthey”, em Ll. Álvarez [ed.], pp. 193 e ss.), segundo o qual o contato com
Dilthey se deu já em 1916. Para Ortega, Dilthey “no llegó nunca a la suficiente posesión de la ‘razón
histórica’ es que considere a la filosofía, junto a la religión y la literatura, como una posibilidad
permanente – por tanto, a-histórica – del hombre.” (Guillermo Dilthey y la Idea de vida, VI, p. 185).
107 ORTEGA, La “filosofía de la historia” de Hegel, IV, p. 532.
49
108Para Ortega, toda teoria tenderá a ser racional, passará por esse processo essencialmente formal e
operatório. “Todo lo que sea más de esto degenera en racionalismo” (Ni vitalismo ni racionalismo, III,
p. 277), que, por sua vez, não é senão uma postura antiteórica, anticontemplativa de misticismo da
razão. Inclusive Ortega afirma que para que fosse possível o surgimento da razão histórica foi
necessária a passagem pela razão físico-matemática. “Para que el hombre se extrañase de la vida
humana y reparase en que es una realidad peculiar, fue menester que llegara antes a poseer un sistema
riguroso y preciso de la realidad cósmica, que conociese de verdad la consistencia de los fenómenos
materiales. (ORTEGA, Ghillermo Dilthey y la Idea de vida, VI, p. 178). Em suma, foi necessário estar
na crença de que todos os problemas da humanidade pudessem ser resolvidos pela razão para que o
se pudesse constatar sua limitação e para que se buscasse uma nova razão, capaz de responder sobre
os problemas que ficaram sem solução.
109 Podemos afirmar que, de certa forma, o princípio de razão histórica mantido por Ortega está na
mesma linha do conceito amplo de razão que incorpora as diferentes formas pré-racionais da poesia
ou do mito, apresentado por Ernest Cassirer em A filosofia das formas simbólicas (1998).
110 ORTEGA, Las Atlántidas, III, p. 293.
Como vimos, Ortega não nega a razão, apenas recusa sua presunção de
fundamento do conhecimento, de soberania:
muy lejos nos sentimos hoy del dogma hegeliano, que hace del
pensamiento sustancia última de toda realidad. Es demasiado ancho
el mundo y demasiado rico para que asuma el pensamiento la
responsabilidad de cuanto en él ocurre. Pero al destronar la razón,
cuidemos de ponerla en su lugar. No todo es pensamiento, pero sin él
no poseemos nada con plenitud.112
Neste sentido, afirma Ferrater Mora (1958, p. 35), para Ortega “os conceitos
não são a substância metafísica da realidade”, mas órgãos de percepção.
Recordemos que as circunstâncias se apresentam como presenças e latências, e
percepção aqui significa ‘percepção da profundidade’. Assim, “a percepção nos leva
do nível da vida espontânea ao nível da vida reflexiva”, mas devemos ter consciência
de que a vida espontânea “constitui sempre o princípio e o fim de nossa busca”.
Precisamos pensar, nos ensina Ortega, como precisamos comer ou respirar.
Podemos entender agora como se articulam as principais teorias de Ortega que
culminam no conceito de razão histórica. Primeiro, a vida de cada um é a realidade
radical. Segundo, o ponto de vista do indivíduo é fundamental. Terceiro, as
circunstâncias fazem parte de mim: a realidade que me facilita ou oprime não pode
ser minimizada. Quarto, só conseguimos compreender uma época se entendemos a
história universal. “Tomando las cosas en todo su rigor, no se puede entender ni un
segundo de la vida de un hombre si no se entiende la historia universal”. 113
Mas, já que nos é impossível certificar a verdade de todos os fatos históricos,
a compreensão necessita de uma unidade e uma totalidade, em suma, um sistema,
porque somos obrigados a preencher os vazios com teorias. Para compreender é
indispensável a imaginação. O órgão da compreensão é a fantasia. Assim diz
expressamente Ortega quando trata da figura de Goya:
117 Referindo-se à razão pura e suas verdades fundamentais, diz Ortega: “Es una constitución
esquemáticamente perfecta, donde se supone que los hombres son ‘entes racionales’, y nada más.
Admitido este supuesto — la ‘razón pura’ tiene que partir siempre de supuestos, como el ajedrez —,
las consecuencias son ineludibles y exactas. El edificio de conceptos políticos, así elaborados, es de
una ‘lógica maravillosa’, es decir, de un rigor intelectual insuperable” (ORTEGA, El tema de nuestro
tiempo, III, p. 161).
54
118Paul Veyne, influenciado diretamente pela filosofia de Foucault, afirma que “os homens não
encontram a realidade: eles a fazem, assim como fazem sua história” (2013, p. 13).
55
pensar, tem que ser uma ficção. O pensamento não captura o real.
Todo conceito é uma metonímia. (in CONILL, 2001, p. 51).
Poderíamos afirmar que, em parte, Ortega se identifica com essa ideia, sobretudo à
luz da seguinte reflexão:
verdade e vida: a verdade deve ser ‘pessoal’, quer dizer, viva, crida por quem a sustenta, professada
com sinceridade y apaixonada.
125 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 164.
57
El hombre para vivir tiene que pensar, gústele o no. Si piensa mal, esto
es, sin íntima veracidad, vive mal, en pura angustia, problema y
desazón. Si piensa bien encaja en sí mismo — y eso, encajar en sí
mismo, es la definición de la felicidad.128
No mais profundo de nossa consciência, todos sentimos quem temos que ser,
qual é a nossa personalidade. Quando conseguimos realizar esta personalidade, diz
Ortega, quando conseguimos coincidir o que somos com o nosso autêntico ser, somos
felizes. Pois bem, a felicidade do homem é uma questão de fidelidade interior,
depende do coincidir entre o pensado e o sentido. Este coincidir do homem consigo
mesmo tem, para Ortega, o mesmo sentido de estar na verdade. O homem se esforça
incessantemente para estar na verdade. E estar na verdade nada mais é do que
acreditar nas respostas encontradas para os diversos problemas da vida. A verdade
não existe “si no nace en nuestro ser orgánico el acto mental con su faceta ineludible
de convicción íntima”.129
Note-se que este estar na verdade não denota quietude. Quando se está na
verdade, nunca se está quieto. Para permanecer neste estado é necessário esforço e
imaginação.
A vida do homem é um incessante fantasiar, um permanente buscar estar em
claro consigo e com as coisas ao derredor. Esta atividade interminável é um dos
atributos inerentes ao ser homem. Conforme Ortega,
Assim, o homem busca estar em claro consigo mesmo a respeito do que crê
das coisas com as quais vive ou coexiste. Uma vez que saibamos ao que nos ater,
por exemplo, com respeito à terra, sentir-nos-emos seguros.131
Então, algo é problemático quando buscamos em nós, e não sabemos, qual é
a nossa verdadeira posição frente a esse algo; quando, entre muitos pensamentos,
não sabemos de verdade qual é o nosso. Dito de outro modo, algo nos é problema
não porque ignoramos seu ser, mas porque não temos resposta ao problema anterior
e originário, qual seja, “encajar yo en mi mismo, coincidir conmigo”. 132
A história pode ser contada como uma busca de estabilidade. Diante do caos
que é a vida, o homem busca criar a ordem. Diante da incerteza do mundo, procura
dar um pouco de sentido ao mundo. A história é uma interpretação do mundo, um
confinar a vastidão do mundo em um esquema inteligível.
Mas, como é impossível captar o mundo em toda sua complexidade, estamos
obrigados a inventá-lo, ao menos em parte. E o inventamos com ideias. Este é um
tópico importante em Ortega. Para fugir do subjetivismo, Ortega vincula este fantasiar
à sinceridade. Assim, escreve:
É certo que fantasiamos, contudo este fantasiar, para que seja útil à vida, deve
ser sentido como verdadeiro. “La verdad o falsedad de una idea”, diz Ortega, “es una
cuestión de ‘política interior’ dentro del mundo imaginario de nuestras ideas. Una idea
es verdadera cuando corresponde a la idea que tenemos de la realidad”.134
Em suma, devemos buscar sempre pensar bem, que é pensar com sinceridade.
Buscar a correspondência de uma ideia com o aparente da realidade. A razão não
pode fabricar mundos puramente ideais, mas deve servir à vida — é o que sublinha
Ortega.
ignoradas. Estas atuam sobre nós sem que cheguemos a pensar sobre elas. Sobre
as primeiras atuamos conscientemente. Cada geração atuará de acordo com a
sensibilidade de sua época; é influenciada por determinadas ideias que lhes abrirão
os olhos para determinadas verdades e, consequentemente, lhes ofuscarão outras,
dependendo da perspectiva histórica em que se encontre. Aqui a verdade assume sua
fundamental qualidade: a de ser histórica. Perspectivismo, historicismo e
raciovitalismo assumem, neste contexto, uma e mesma significação. A história faz
parte da vida humana, de nosso psiquismo, da razão humana — que Ortega
denominará razão vital primeiramente e razão histórica mais tardiamente. Assim, as
verdades estão vinculadas, iniludivelmente, à sensibilidade de um determinado
momento histórico:
141 Cumpre notar que a busca da síntese de ambas as correntes não foi tentada primeiro e
exclusivamente por Ortega, pois fazia parte das preocupações de seu tempo. Como exemplo, podemos
citar José Ingenieros, que, em 1913, publica O homem medíocre, de cujo livro destacamos fragmentos
como: “À medida que a experiência humana se amplia, observando a realidade, os ideais são
modificados pela imaginação, que é plástica e não repousa jamais. Experiência e imaginação seguem
vias paralelas, ainda que esta se antecipe em muito àquela” (p. 13); “[...] é mais estreita ainda a
tendência corrente de se confundir idealismo, que se refere aos ideais, com as tendências metafísicas
que assim se denominam porque consideram as ‘ideias’ mais reais que a realidade mesma, ou
pressupõem que eles são a realidade única, forjada por nossa mente, como no sistema hegeliano... A
experiência, e apenas ela, decide sobre a legitimidade das ideias, em cada tempo e lugar” (p. 18-19).
142 ORTEGA, ¿Por qué se vuelve a la filosofía?, IV, p. 99.
realidade. "Podemos elegir entre una fantasía y otra para dirigir nuestra conducta y
hacer la prueba, pero no podemos elegir entre fantasear o no".145
Por ser obrigado a mover-se sobre o sólido, o homem inventa arbitrariamente
um mundo no qual possa caminhar. Supõe que as coisas são de uma dada maneira.
Ao executar tal tarefa está o homem dotado de um esquema com o qual pode
confrontar a efetiva realidade para, através dele, conseguir uma visão aproximada da
realidade. Assim, tendemos a imaginar que a realidade é de uma determinada
maneira e, logo, buscamos confrontar esta suposição com as inumeráveis facetas que
nos apresenta esta mesma realidade, a fim de alicerçar, solidificar a nossa teoria.
Primeiro, fantasiamos, logo racionalizamos sobre nossa fantasia. Nem mesmo a física
escapa a esse princípio. “Lo que llamamos razón no es sino fantasía puesta en
forma”.146 A física, diz Ortega, consiste na criação de mundos ideais, puramente
inventados. Acreditar no princípio da observação imparcial, norte da ciência moderna,
já não é mais possível.
Desde hace muchos años sostengo que la poesía es una forma del
conocimiento, ahora añado que desde hace los mismos años procuro
hacer caer en la cuenta a los demás que la física es una forma de
poesía, esto es, de fantasía, y aún hay que añadir, de una fantasía
mudadiza que hoy imagina un mundo físico distinto del de ayer y
mañana imaginará otro distinto del de hoy.150
vida. Reduzem o sentido e valor da vida a mero trânsito, a um futuro utópico. Neste
sentido, “el culturalismo es um cristianismo sin Dios”151,no qual a verdade deixaria de
ser encontrada em um Deus infinito, passando a ser ditada por uma ciência infinita.
Ao pensar assim, Ortega vai de encontro à posição culturalista moderna que atribui à
ciência o caráter de imparcialidade e a exclusividade no conhecimento da realidade.
em linhas gerais, os conceitos antecipados por Ortega. Em Conjecturas e refutações, escreve: “Em vez
de esperar passivamente que as repetições nos imponham suas regularidades, procuramos de modo
ativo impor regularidades ao mundo. Tentamos identificar similaridades e interpretá-las em termos de
leis que inventamos. Sem nos deter em premissas, damos um salto para chegar a conclusões — que
71
podemos precisar pôr de lado, caso as observações não a corroborem” (1980, p. 14). Não surpreende
tanto verificar as semelhanças entre o pensamento de Popper e o de Ortega quanto o desconhecimento
da existência do próprio Ortega por parte de Popper e da maioria dos filósofos ingleses
contemporâneos. Em Confissões de um filósofo, Bryan Magee resume o livro de Popper acima citado
e conclui com a espantosa assertiva: “Ele [Popper] derruba uma tradição empírica em filosofia
consagrada há alguns séculos, tradição cujo princípio mais importante é o de que todo o nosso
conhecimento do mundo deve começar pela experiência. Trata-se, portanto, apesar das aparências,
de uma teoria radical — revolucionária num sentido histórico e épica em suas implicações. Ela arrasa,
quase por acaso, com séculos de atividades filosóficas” (2001, p.).
156 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 16.
157 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 24.
“realidade” — utilizados por ele com um sentido, muitas vezes, destoante do habitual — os termos
“ideias” e “crenças”. Em alguns contextos, utilizou-os conjuntamente: “ideias verdadeiras” e “a realidade
em que cremos”; em outros, utilizou isoladamente cada vocábulo.
163 ORTEGA, Ideas y Creencias, V, p. 473.
74
ou sua época. Para o filósofo, são as nossas crenças o que mais relevo e influência
têm sobre nossas vidas. Assim, as ideias
organizado dos atos humanos, formam a base da constituição desse mundo... Os atores utilizam os
conceitos do senso comum e a linguagem cotidiana para fazer com que a vida aconteça" (1997, p.
252).
167 Cabe lembrar que, para Ortega, as ideias têm o poder de modificar a nossa percepção da realidade,
inclusive de destruir completamente a crença em que um povo se encontra: “Las ideas son fuerzas
destructoras, porque desarraigan a los hombres de una u otra creencia y finalmente, al cabo del tiempo,
pueden destruir toda la creencia de un pueblo” (Pasado y porvenir para el hombre actual, IX, p. 722).
168 Segundo Husserl, “Se a ideia geral de verdade em si se converte em norma universal de todas as
realidades e de todas as verdades relativas, que aparecem na vida humana, isto afeta também a todas
as normas tradicionais, as do direito, da beleza, da finalidade, dos valores humanos dominantes,
valores de caráter pessoal” (2008, p. 73).
75
possíveis, apenas, sobre a base das crenças. Sem crenças não se pode construir
nada.
Em Meditaciones del Quijote, Ortega esclarece como se manifesta a percepção
da realidade por parte do homem, como esta percepção depende da perspectiva que
se pode ter de determinado ponto de vista, depende das circunstâncias. Desse modo,
nossas crenças são nossas circunstâncias, influenciam nosso ponto de vista.
Segundo Ortega,
crença orteguiana. Julián Marías observa que, já em Vieja y nueva política, de 1914, a distinção entre
ideias e crenças está claramente formulada (MARÍAS, 1991, p. 151).
76
Diferentes das ideias, que são pensamentos explícitos, as crenças nem sempre
se formulam expressamente. Mas isso não significa que nunca se possa ser
consciente delas; significa, simplesmente, que as crenças operam de forma
infraintelectual. Contamos com elas tanto quando pensamos como quando agimos:
são os fundamentos básicos de nossas argumentações e de nossa conduta. As
crenças, segundo Ortega, são como o chão onde pisamos e caminhamos; apenas nos
damos conta de sua existência quando tropeçamos nele.
Já as ideias, para o pensador espanhol, surgem em dia e hora determinados
sobre esse chão em que caminhamos inadvertidamente. São ocorrências,
pensamentos que poderiam nunca nos ter ocorrido. Constituem-se como teorias e não
confundimos seus conteúdos particulares com a própria realidade. Resultam do
esforço de nosso intelecto.
Enquanto criações nossas, as ideias são propositais e intencionadas; têm por
objetivo interferir na realidade em que cremos viver. Sabemos a que se dirigem e que
podem ser refutadas. Deve-se entender, segundo Ortega, a afirmação de que a ideia
é aquilo que o homem forja para si mesmo quando a crença vacila. Na medida em
que as ideias tornam-se as coisas que construímos de maneira consciente, não
cremos nelas. Como ocorrências, sobre as ideias podemos atuar de forma direta.
Nossas crenças, em contrapartida, são criações de outros, de nossos antepassados.
Nascemos imersos nelas e através delas percebemos a realidade.
Pela impossibilidade humana de perceber a realidade em si mesma, somos
obrigados a contar com nossas crenças, como um conjunto de soluções. Contamos
com elas não de maneira intencional, mas infraintelectual, e, justamente por isso,
confundem-se com a realidade. A elas pertencemos, queiramos ou não. E Ortega
sublinha:
Como vemos, Ortega confunde as crenças com a realidade mesma, sem, com
isso, identificá-las de todo. Para ele, nossas crenças e a realidade mesma não são,
de fato, uma e mesma coisa; contudo, analisar a realidade sem o amparo das crenças
é impossível. Em alguns pontos encontraremos um paralelismo entre a concepção de
David Hume e a de Ortega. Também Hume adota a noção de crenças como
consequência de sua secularização, e concorda que ter uma ideia e crer não se
confundem, pois podemos conceber ideias em que não cremos. Trechos como o
citado abaixo dão mostra desta similitude entre ambos os pensadores Diz Hume sobre
as crenças:
porque, en efecto, nuestra vida está constituida por uno de sus lados
por un repertorio de pronósticos y expectativas que se han formado en
nosotros indeliberadamente, espontáneamente. Sería imposible
nuestra existencia si ante cada hecho que sobreviene tuviésemos que
afrontarlo como algo completamente nuevo y no poseyésemos por
anticipado una prefiguración que nos permite tomar ciertas
precauciones y preparar nuestra conducta.181
Ora, se o mundo tem como característica primordial o ser enigmático, para nele
poder viver os primeiros homens foram obrigados a explicá-lo, a interpretá-lo. Este
interpretar — criar ideias — é o labor da humanidade desde que ela começou a existir.
Ortega assim descreve esta situação dramática do homem obrigado a criar ideias:
183 Para Marías, também existem crenças não procedentes de ideias, crenças originárias, que Ortega
denomina experiências categoriais. “Essas crenças não começam por ser ideias, mas nascem de uma
peculiar vivência da realidade” (MARÍAS, 1955, p. 141).
184 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 63.
185 Eis o que afirma Gustave Le Bon: “A existência de um indivíduo ou de um povo ficaria
Então, como herdeiros, podemos lidar com uma realidade mais estável, menos
terrível, porque já interpretada. Mesmo assim, sempre encontraremos motivos para
reinterpretá-la, pelo menos em parte, pelo menos na parte do mundo que se nos
apresenta imprecisa.
Mas, para que as crenças assumam este papel radical em nossa vida de todo
dia, devemos percebê-las de maneira pré-intelectual, porque estão impregnadas no
ambiente, são parte imperceptível de uma época. O problema, porém, que se coloca
é como seria isso possível se são as crenças, em última instância, ocorrências
humanas, produtos de nossa imaginação?
Percebemos o mundo que nos rodeia por entre o conjunto de soluções vitais
confeccionado por nossos antepassados, que funciona para nós como um filtro, uma
tela, a qual é lançada à nossa vista desde que nascemos. Daí ser extremamente
complicado perceber que essa tela não é parte de nós mesmos ou do mundo. Ao
nascer, recebemos de nosso entorno, a cultura, um programa de soluções vitais que,
no curso do tempo, se torna parte inquestionável da condição humana.
Uma interpretação do mundo, quando atinge o grau de crença, costuma guiar
o destino da humanidade por um período relativamente longo da história. Passa a
representar, para nós, a realidade tout court. O que começou como uma ideia a
respeito do mundo, uma verdade ou conjunto de verdades, se nos apresenta como a
realidade. Para que uma ideia verdadeira faça parte do conjunto de crenças de uma
determinada cultura faz-se necessário o concurso do tempo, donde a força do
esquecimento.
Fomos tocados pelo esquecimento, herdeiros incapazes de reconhecer a
herança recebida. “As verdades”, diz Nietzsche, “são ilusões, das quais se
esqueceram que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível,
moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal,
não mais como moedas” (1999, p. 26). Aqui, o termo “verdades” parece mais próximo
do que Ortega denomina crenças, nas quais as ideias se transformaram. E Ortega
86
então conclui: as ideias são “aquello que las generaciones posteriores engendran en
la capa de las creencias; se convierten en creencias y desaparecen como ideas”. 186
Este processo, evidentemente, necessita de uma longa duração para que atue
o esquecimento, isto é, para que as ideias ganhem consistência e sejam assimiladas
pelo conjunto de crenças dominante.
Um dos fios condutores do pensamento orteguiano é a pressuposição de uma
“realidade em que cremos viver”, mas uma realidade absoluta, parcialmente confusa,
dependente de interpretações e que se revela em perspectivas. O homem persegue
a identificação entre ambas, contudo não dispõe de outro mecanismo senão o de
tentativa e erro, ao imaginar que a realidade autêntica é de determinada forma, e
confrontar esta hipótese com as diversas perspectivas que esta mesma realidade
autêntica lhe apresenta. Sobre a realidade autêntica não atuamos de forma direta.
Onde temos o poder de agir é sobre as ideias de nosso tempo, as novas
interpretações do real, que, caso alcancem o êxito necessário, se transformarão na
realidade de gerações vindouras, na realidade em que crerão os nossos tataranetos.
A partir daqui abre-se uma nova perspectiva para entendermos o conceito de
realidade. Ao concebê-la como uma verdade que, por haver cumprido tão bem aquilo
a que se propunha, caiu no esquecimento, Ortega rompe com o pensamento moderno
a esse respeito.
Em resumo, as crenças foram ideias que, ou nasceram de um confronto inicial
com a realidade enigmática, ou intervieram em vazios de nossas crenças,
substituindo, agregando ou reformando parte da interpretação do mundo que
apresentava um caráter conflitivo, duvidoso, dando, assim, unidade e solidez ao que
era ambíguo. Essas ideias, com o passar de gerações e por terem suportado a
coerência com o conjunto de crenças vigente, são esquecidas enquanto ideias,
ocorrências, passando a integrar o nosso baú de crenças. Opera sobre as crenças,
vale frisar, o atributo do esquecimento. Foram elas ocorrências de gerações anteriores
que com o passar do tempo chegaram a nós com a leveza do imemoriável. Não se
sabe como nem por onde entraram a fazer parte de nossas vidas. É algo herdado. É
o conjunto de esforços herdado. O homem é um herdeiro.
88
9 A CRISE DA RAZÃO
Cada especie y aun cada variedad y aun cada individuo aportará una
respuesta más o menos diferente, nunca idéntica. Vivir, en suma, es
una operación que se hace de dentro afuera, y por eso las causas o
principios de sus variaciones hay que buscarlas en el interior del
organismo.188
Cada sociedade interpreta suas circunstâncias, cria mundos, faz sua vida,
responde aos desafios que o confronto com o real provoca. E isto é a cultura, grosso
modo.189
187 Normalmente a interpretação que se impõe a uma época é formada pela confluência das mais
proeminentes interpretações da época passada, conseguindo, assim, “agradar” a sentimentos
discordes e conflitivos.
188 ORTEGA, La política por excelencia, III, p. 463.
189 Em O mal estar na cultura (1973), Freud define cultura como a soma das produções e instituições
que afastam o homem de seu antepassado primata, tendo como fim protegê-lo contra a natureza e
regular a convivência social. E Husserl nos diz que “Por cultura não entendemos outra coisa que o
conjunto total de realizações que vêm à realidade graças às atividades incessantes dos homens na
89
sociedade e têm uma existência espiritual duradoura na unidade da consciência coletiva e da tradição
que a conserva e prolonga. Tais realizações são transformadas em realidades físicas, encontram uma
expressão que se distancia de seu criador original; e, com base nesta corporalidade física, o seu sentido
espiritual é então experimentável por qualquer pessoa que é capaz de reviver o seu entendimento. Na
posteridade as conquistas da cultura podem sempre voltar a ser fontes de irradiação de influências
espirituais sobre novas gerações no marco da comunidade histórica. E é precisamente neste contexto
onde tudo que compreende o nome "cultura" possui um tipo essencialmente peculiar de existência
objetiva, e em que opera, por outro lado, como uma fonte permanente de socialização” (HUSSERL,
2002, p. 22). Em Misión de la universidad, ensaio de 1930, Ortega define cultura como “el sistema de
ideas vivas que cada tiempo posee. Mejor: el sistema de ideas desde las cuales el tiempo vive. Porque
no hay remedio ni evasión posible: el hombre vive siempre desde unas ideas determinadas, que
constituyen el suelo donde se apoya su existencia. Ésas que llamo ‘ideas vivas o de que se vive’ son,
ni más ni menos, el repertorio de nuestras efectivas convicciones sobre lo que es el mundo y los
prójimos, sobre la jerarquía de los valores que tienen las cosas y las acciones: cuáles son más
estimables, cuáles son menos” (IV, p. 556). Aqui vemos que Ortega ainda não havia perfilado
terminologicamente a diferença entre Ideas y Creencias, empregando “ideas vivas o de que se vive”
com o sentido que mais tarde ficará definitivamente relacionado ao conceito de crença.
190 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 78.
90
Ortega, porém, não aceita a ideia de dúvida como uma situação originária, nem
a possibilidade de o homem elevar a dúvida como a única crença, em substituição a
todas as outras. Assim, opõe-se a Heidegger, que situa a origem da filosofia no
estranhamento do mundo. Para Ortega, a filosofia nasce “de la duda por derrumbe de
creencias, que impele al conocimiento”.191
Cabe relembrar os ensinamentos de Ortega sobre o que é este sentimento de
estar na dúvida:
Ao final desse discurso, Ortega chama atenção para a necessidade que tem o
homem de encontrar um meio de sair da dúvida. O homem nunca está em paz quando
está na dúvida. Justamente por isso, é ele o homem em crise, ou como diria Camus,
o homem revoltado, um homem incansavelmente de criação.
Em suma, a característica fundamental de uma época de crise é, segundo
Ortega, a dúvida193, o “estar braceando em um mar de dúvidas”; o homem em crise
demonstra uma tendência à confusão e ao desassossego. “La confusión va aneja a
toda época de crisis”. Ou seja, se queremos descobrir se uma época pode ou não ser
classificada como época de crise, devemos averiguar qual o “estado de espírito” que
alojam os homens dessa época.
O sentimento de desassossego ou confusão se instala quando uma geração
não reconhece a anterior como transmissora do projeto vital. Existem épocas, observa
Ortega, em que prevalece uma filosofia pacífica, quando o pensamento se aceita
como resultado e sucessor das ideias germinadas anteriormente. E existem épocas
de filosofia beligerante, em que se sente o passado como algo que se deve reformar,
“que aspira a destruir el pasado mediante su radical superación. Nuestra época es de
este último tipo”.194 A filosofia beligerante faz parte da época de crise.195
revelar-lhe algo — disse Goethe certa vez a Eckermann — e o senhor o verá várias vezes confirmado
92
na sua vida. Todas as épocas de retrocesso e dissolução são subjetivas; em oposição, todas as épocas
de progresso têm uma orientação objetiva” (in KAUFMANN, 2002, p. 39).
196 Segundo Pessoa, “felizes os que sofrem com unidade! Aqueles a quem a angústia altera, mas não
divide, que creem, ainda que na descrença, e podem sentar-se ao sol sem pensamento reservado”
(2006, trecho 250).
197 ORTEGA, Meditaciones del Quijote, I, p. 357.
198 Sobre a fé na Ciência, escreve Ortega: “Vivimos, en efecto, de la ciencia; se entiende, de nuestra fe
en la ciencia. Y esta fe no es más ni menos fe que otra cualquiera — […] yo no quiero decir que no sea,
93
no progresso.199 Segundo Ortega, “de 1400 a 1650 no hay nada definitivo, sino que
todo es intento, ensayo, germen y transición”.200
tal vez, más justificada y en tal o cual sentido superior a toda otra fe. Lo único que digo es que se trata
de una fe, que la ciencia es una fe, una creencia en que se está, como se puede estar en la creencia
religiosa. (España invertebrada, III, p. 81).
199 Sobre a fé no progresso como crença fundamental da modernidade, escreve Ortega: “Condorcet, al
verse denunciado, se ocultó, encerrándose en casa de madame Vernet, y allí, en un rincón, escribió su
Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’espirit humain. Este libro (8 de julio de 1793) era el
evangelio de una nueva fe: la fe en el progreso. La idea del progreso había sido rigurosamente
formulada por el gran Turgot, maestro de Condorcet, en 1750. Es la gran idea de que ha vivido dos
centurias. Según ella, es ineludible el avance de la humanidad hacia formas de vida cada vez más
satisfactorias y perfectas. Nunca, pues, se ha sentido una gran porción de la humanidad, todo
Occidente, con un porvenir más seguro. Esta compactada fe (creencia) trajo consigo que fuese aquella,
probablemente, la época entre las bien conocidas en que el futuro se ha presentado al hombre
relativamente menos problemático. Por eso la vida perdió entonces dramática tensión”. (Pasado y
porvenir para el hombre actual, IX, p. 657).
200 ORTEGA, IX, p. 451.
201 ORTEGA, “Apêndice III”, XII, p. 327.
202 ORTEGA, VI, p. 51.
94
especulação sobre o ser e o mundo, porém, assim como Kant, apenas conseguiram
adiar a inevitável ruptura.
205 Entretanto, adverte Ortega, “acaso el hombre está condenado a la razón, por tanto, a una tarea
siempre incompleta [siempre infirme], siempre obligada a recomenzar de nuevo, como Sísifo estaba
condenado eternamente a volver a subir hasta la cima del peñasco que siempre de nuevo rodaba hasta
el valle” (IX, p. 1313).
97
afastar da vida. A fé no progresso, adverte Ortega, gerou nos homens uma sensação
de segurança que acabou produzindo uma “paralisia cultural”. “La seguridad de las
épocas de plenitud así en la última centuria - es una ilusión óptica que lleva a
despreocuparse del porvenir, encargando de su dirección a la mecánica del
universo”.206
Em suma, a crise da civilização ocidental está relacionada com a crise das
ciências europeias, mas não enquanto técnica. A crise atual “não é, primariamente,
crise dos fundamentos da ciência, ou da política, ou da economia, ou do que for, e,
sim,crise dos fundamentos da vida humana” (KUJAWSKI, 1991, p. 34). Em outras
palavras, os alicerces de nossa instalação no mundo foram desintegrados. Como
afirma Kujawski, nosso cotidiano em crise não mais nos sustenta, porque “viver no
cotidiano é o mesmo que estar lançado às feras, perdido na selva selvaggia da crise,
exposto ao relento e à intempérie. A vida perdeu a continuidade, o futuro é cada vez
mais incerto” (1991, p. 54). Não se trata de crise da ciência enquanto técnica ou
método, mas de uma crise de sentido, crise dos fundamentos da vida humana.
O homem moderno passou da fé em Deus para a fé na Ciência, contudo essa
fé não conseguiu permanecer como alicerce de nossa instalação no mundo e entrou
em colapso. Ao final desse processo de desintegração, o homem se vê, então, sem
um projeto sincero que lhe sirva de farol.
Ambos, Husserl, Ortega e Schweitzer perceberam que a fé na ciência, que
havia substituído a fé em Deus, já não era mais aceita sem questionamentos, ou seja,
havia fracassado enquanto crença fundamental da civilização ocidental e passava a
ser questionada como mais uma dentre tantas ideias possíveis. Ao perder seu vigor,
no momento em que deixou de funcionar como crença, deixou um vazio que ainda
hoje espera ser preenchido.
208Segundo Berger e Luckmann: “A tentativa das instituições de ligar finalidades legitimadoras a valores
supraordenados podem acarretar nada mais do que fórmulas vazias, assim como a conduta de vida
orientada para valores pode ficar limitada ao âmbito privado. Assim se fortificariam as condições para
a difusão de crises subjetivas e intersubjetivas de sentido” (BERGER, 2012, p. 36).
99
perceber uma ordem comum de valores e concepções gerais de vida que regulam as
diferentes comunidades de vida. No pluralismo atual, essa regulamentação não é
efetiva, provocando uma “situação de graves consequências”. As comunidades de
vida coexistem em uma mesma região, favorecendo “entrechoques de diferentes
ordens de valores e concepções de mundo” (BERGER, 2012, p. 40). A interação entre
as comunidades de vida, que em outras épocas era um fenômeno raro e, em grande
parte, realizado exclusivamente em um campo neutro, delimitado institucionalmente,
passou a ser frequente. Veja o exemplo da comunidade muçulmana em Paris. E
assim, onde as reservas de sentido deixam de ser propriedade comum de todos os
membros da sociedade,
209 María Zambrano sublinha: "Em uma crise algo morre. Crenças, ideias vigentes, modos de viver que
pareciam irremovíveis. Grupos sociais e também profissões que se perdem, minorias que perdem a fé
em si mesmas porque já não irão seguir vivendo ou terão que fazê-lo de outra forma [...] Na crise não
existe caminho ou já não se vê. Não aparece aberto o caminho, pois se manchou o horizonte [...] Não
há ponto de vista, que seja, também, ponto de referência. E então os acontecimentos vêm a nosso
encontro [...] Se está ao mesmo tempo vazio e aterrorizado" (ZAMBRANO, 2004, pp. 9 e 38).
210 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 70.
211 Aqui, Ortega faz uma alusão a Oswald Spengler, sobretudo no que se refere à decadência da Europa
e ao papel que deveriam assumir os homens mais lúcidos. Contudo, Ortega adverte que o pluralismo
102
até a fase em que se estabelecem novas convicções positivas, quando novas crenças
passam a sustentar a vida.212 O mundo, então, torna a adquirir uma forma. A época
de crise se encontra entre duas maneiras radicais de compreender o mundo.213
Nietzsche foi, com sua filosofia do martelo, o arauto da decadência do mundo
burguês cristão. E, como tal, se sabia só no mundo, consciente de ser o mais radical
de todos os pensadores. Em Ecce Homo, produto do período mais conturbado de sua
vida, escreve:
estado de dúvida ontológica. O existencialismo, especialmente com Sören Kierkegaard (1961), entende
que a vida é um estado constante de crise e superação de crise. O que significa dizer que o homem é
sempre um problema para si mesmo, que é próprio de sua condição ser “problema”. De acordo com
essas teorias, não há porque falar-se em etapas de crise. Toda história seria, assim, a modulação de
uma crise permanente. Segundo Kaufmann (2002, p. 41), uma cultura tem o seguinte curso: começa
com uma filosofia ontológica em sua fase de progresso, aceita uma teoria do conhecimento em uma
fase de retrocesso, ensaia o existencialismo em sua época de crise, e cria uma nova filosofia em sua
época de salvação. Para Pitirim Sorokin (1966), as culturas oscilam entre três fases: a ideacional (a
realidade espiritual assume o primeiro plano); a sensorial (o mundo material assume o primeiro plano);
a idealista (quando se dá a síntese entre o sensível, o racional e o suprassensível). A época de crise
seria a de transição entre o fim de uma e início de outra época. Sorokin (1948), assim como Ortega,
diagnosticou sua época como de crise.
213 Em Albert Camus também identificamos uma ideia semelhante. O homem rebelde pertence a uma
época de crise, que é uma época antes ou depois do sagrado, quando se dedica a “reivindicar uma
ordem humana na qual todas as respostas sejam humanas, quer dizer, razoavelmente formuladas.
Desde este momento toda interrogação, toda palavra, é rebelião, enquanto no mundo do sagrado toda
palavra é ação de graças. Seria possível mostrar assim que não pode haver para um espírito humano
senão dois universos possíveis, o do sagrado e o da rebelião. A desaparição de um equivale à aparição
do outro, ainda que esta aparição possa fazer-se em formas desconcertantes” (1963, p. 115).
103
A grande política não veio, mas Nietzsche estava certo. O que importava era a
crise sem tamanho e o embaralhar das ideias. Já vimos o rumor provocado por um
livro de história – A decadência do Ocidente, de Spengler — três décadas apenas
após o Ecce Homo. Spengler já falava, em seu livro, do fim de uma civilização. Hoje,
um século depois, somos (julgamos ser) a mesma civilização: mas com uma crise
como jamais vista. Valeria mesmo discutir a duração de uns tempos tais e seu campo
de ação. O que quer que se chame crise, no campo dos valores essenciais, toca
realmente todas as pessoas? A rigor, é preciso atingir todas as pessoas?
A Europa cantava sua belle époque, as nações festejavam... Mais que as
nações (como veremos adiante), as pessoas fantasiavam. Em suas memórias – “o
mundo que eu vi” – o conhecido escritor Stefan Zweig fala da surpresa que foi a
declaração da guerra em 1914: dois dias antes, nada se sabia. A população de seu
país, a Áustria, então um império, já há quase meio século vivia em paz, “a guerra era
uma lenda, e precisamente a grande distância a havia tornado heroica e romântica”
(ZWEIG, 1999, p. 249). Zweig observa como, àquela altura, a sociedade convivia bem.
O motivo era a confiança das pessoas nas autoridades do Império, sobretudo na do
seu imperador (p. 248). “Um enorme respeito para com os superiores”, dizia.
Em outras palavras — e voltamos ao nosso tema: acreditava-se. A notícia da
declaração da guerra não causou espanto, pelo contrário, o que se viu foi uma onda
de alegria. Em todas as nações envolvidas. Mesmo entre intelectuais. Se houve
exceções como, além da de Zweig na Áustria, ou a de Romain Rolland na França, há
que citar o nome de Thomas Mann na Alemanha, também já famoso, que, pelo
contrário, defendia entusiasticamente a guerra. Na verdade, aquela guerra que, para
Stefan Zweig foi causada por “diplomatas inábeis e gananciosos” (p. 251), e que para
a historiadora canadense Margaret MacMillan (2014) por uma desastrosa coincidência
de chefes de estado medíocres comandando as nações principais, poderia não ter
existido.
Um pensador como Ortega, pode-se pensar aqui, tinha motivos para se
impressionar com essas mudanças bruscas no comportamento da sociedade. Seu
104
país não era dos mais importantes no contexto político de então, mas seu pensamento
era europeu. Seus contatos com a cultura alemã por certo que não estavam imunes
às ideias de Nietzsche, agora vindas à tona e se expandindo rapidamente. Nietzsche,
assim como as mentes mais atentas àquela placidez dos últimos anos do século XIX
e esses primeiros do novo século, não confiava nos pactos humanos, tão só humanos.
Sob essa paz dorme o tumulto. A primeira guerra mundial não durou três semanas,
como a da Áustria contra a Prússia, em 1866. Em setembro de 1914 os soldados se
despediam dos pais, das esposas, das namoradas prometendo estar de volta para o
natal – escrevera Zweig. Não estariam, soube-se.
O choque da guerra — tida como a mais truculenta dos últimos séculos — fez
pensar. Há falhas na felicidade. Nenhuma eternidade dura muito. O espírito universal
de Ortega y Gasset embebia-se, inevitavelmente, dessa incerteza das coisas do
mundo.
E tudo estava bem ali. Nas artes plásticas e na música espocavam as
“revoluções”. Já um pouco antes da eclosão da primeira grande guerra, o movimento
cubista e a concepção da arte abstrata, e os ritmos selvagens da “sagração da
primavera” de Igor Stravinski, não passaram em branco — pelo contrário, foram
aplaudidos e vaiados. Havia, pelo menos nessas manifestações do espírito humano,
o sentimento de desassossego e desordem que, na década de XX, vai chegar a quase
desespero numa Europa profundamente ferida. O ano de 1922 chegou a merecer
destaque, quando visto nos dias de hoje, pelo fervilhar de inovações, agora não só
nas artes plásticas, música e dança, mas também na literatura e mesmo na ciência
(JACKSON, 2014). Nesta, uma ideia da mais alta importância, como a formulada por
Albert Einstein em 1905, a Teoria da Relatividade, vai desembocar na Mecânica
Quântica.
Esse sentimento de desassossego não começava propriamente ali; Baudelaire,
afirma-se comumente, fora dos primeiros a detectá-lo em meados do século XIX.214 E
Rimbaud encarnara mais dramaticamente. Os poetas, as “antenas da raça”, como
214 No fragmento XXII de Fusées Baudelaire escreve: “Le monde va finir. La seule raison pour laquelle
il pourrait durer, c’est qu’il existe. Que cette raison est faible, comparée a toutes celles qui annoncent
le contraire... Ces temps sont peut-être bien proches; qui sait même s’ils ne sont pas venus?”
105
afirmara Ezra Pound – um dos escritores mais marcantes dos anos 20 –, têm o dom
de saber antes de seus pares. Nietzsche, poeta/filósofo, soube como ninguém do
descalabro que nos aguardava. O poeta Fernando Pessoa, morto em 1935, vinha
arquivando suas ideias sobre este tema em seu “livro do desassossego”.
A rigor, de Baudelaire a Pessoa não há mais que um único movimento, do
mesmo modo como se diz, entre os historiadores, que as duas guerras foi apenas
uma, com vinte e um anos de intervalo de relativa, muito relativa, paz.
Quando falamos de grandes mudanças no campo da arte – a passagem da arte
românica para a gótica, por exemplo — não se observa o menor tremor no
comportamento do homem médio (aqui, o homem médio representando a maioria de
uma população). Do mesmo modo, outras grandes mudanças ocorrem em campos
variados do conhecimento humano. Diríamos, porém, que não são as mudanças
isoladas, uma aqui, outra ali, que farão estremecer, mas as “totais”, as chegadas todas
de uma vez, como um tropel tenebroso? Não era esse o tom da profecia
nietzscheana? E Então, víamos isto realmente ocorrer na década de Spengler, já uma
guerra avassaladora em suas fumaças? Vimos isso ocorrer na festivo/dolorida década
de reconstrução dos anos 20 na Europa (Paris não era uma festa então?). Optamos
por uma mudança de paradigma durante os temores da Segunda Guerra? Quando —
para não prosseguir aqui com mais detalhes — o homem, ele mesmo enquanto animal
social, entrou em crise?
Com o desgaste, talvez. Em 2016 — todos podemos perceber, não há
necessidade de precisar as diferenças —, as diferenças são bens mais marcantes que
no início, cem anos antes. A mudança é visível; ainda mais, sofrível. Mas quem vê?
quem sofre? quem vive naquele desassossego de que vimos falando?
É este um ponto a assinalar quando buscamos compreender o que significa
crise: não se deve esperar que todos “sofram” com a mesma intensidade. Uma crise
afeta, sobretudo, os criadores. E tem que ser assim, sob pena do descalabro, da
dizimação. O mundo, a rigor, flui. Passa-se o bastão, só isso. Em 2016 encontramos
as nações do mundo, agora em todos os continentes, em suas eternas labutas, umas
mais agressivas, outras mais subservientes. No entanto, não há inferir aqui
106
relativismos. O que queremos dizer é que a crise é demarcável e se dá. Sempre. Sua
dimensão e o incômodo que provoca é que a define como tal.
Os pensadores que aqui elencamos – e outros que ainda serão lembrados —
e cujas ideias se expressam ao longo de um inteiro século, não são unânimes e suas
conclusões. Vivendo, eles próprios, no olho do furacão, por certo que são
influenciados, quando não literalmente levados pelos fortes ventos. Adiante, quiçá
daqui a mais um século, saberemos quais (mas nem por isso os mais valiosos)
aqueles que “acertaram” na melhor definição. Uma época de crise é também isto: não
se sabe ao certo.
A profecia nietzscheana parece haver se concretizado. “Guerras como ainda
nunca houve na terra” aconteceram, jogando no lixo o que ainda restava da crença no
progresso e nos atirando em uma época de crise sem precedentes.
Nossa crise, segundo Ferrater Mora, se iniciou como “crise de poucos”, alojada
na mente de alguns homens do século XIV, passou a ser “crise de muitos” no século
XVIII e agora se fez “a crise de todos” (1972). Crise essa que é a de todos os
fundamentos da vida humana, que absorve toda a sociedade contemporânea. 215
Parece-nos inquestionável que a desorientação e o desassossego estão entranhados
no cotidiano mais do que em qualquer outra época.
A época de crise é época de perigos, mas também é época de possibilidades.
Crise humana e crise histórica têm entre si uma íntima relação. Ambas são, em geral,
crise de crenças, quando reinam a desorientação, o desassossego, a dúvida ou o
desespero. Mas também, como é característico da existência humana, emergem a
criatividade, a busca de estabilidade e confiança. É natural, portanto, que essa
inquietude perante uma etapa de crise gere uma procura incessante de saída dela o
215 Berger e Luckamn (2012, p. 76) levantam “a hipótese de que no ‘caso normal’ não se chega a uma
difusão pandemônica de crises de sentido nas sociedades modernas, enquanto permanecer atuante o
sistema imunológico das instituições intermediárias. Suprime-se, assim, o vírus das crises de sentido
do pluralismo moderno que se instalou em todas as sociedades modernas. Mas quando o sistema
imunológico fica extremamente enfraquecido por outras influências, nada mais obsta a difusão do
vírus.”
107
O que chama atenção em Ortega é que ele não possui uma concepção
pessimista das situações de crise. Para ele, as épocas de crise provocam o ânimo
para empreender, a força criativa em busca de novos conceitos capazes de conectar
o homem ao mundo. Do naufrágio surge o esforço natatório. O homem náufrago irá
provar a si mesmo, e dessa provação terá a possibilidade de desenvolver sua
criatividade.
Naufragar não significa afogar-se. Esse agitar os braços em busca da salvação
é o que chamamos cultura. E a cultura cumpre o seu desígnio, observa Ortega,
quando faz o homem ascender sobre seu próprio abismo. Mas adverte:
216 Em Machado Neto (2008, p. 85) encontramos a seguinte assertiva: “Época de crise, a nossa teria
de ser, fatalmente, uma era de farta proliferação sociológica, tal como sempre ocorreu no passado em
tais circunstâncias críticas, responsáveis diretas pelo aparecimento da preocupação humana pelo
social”.
217 ORTEGA, Goethe desde dentro, IV, p. 397.
108
que a crise de sua época é decorrência de uma crise da razão moderna, mas, ainda
assim, considera a razão como a melhor ferramenta para instalar-se e transformar o
mundo. O novo sistema de crenças não deve abandonar completamente essa fé.
archontische) sobre toda a humanidade” (2008, p 76). Ortega nos orientou em direção
a uma razão histórica, mas ainda hoje percebemos inúmeros ouvidos desatentos que
ensaiam viver sob uma outra sensibilidade.
110
O extenso trecho acima poderia nos fazer imaginar que fora escrito pelo próprio
Ortega, tal a confluência de ideias e sentimentos. Na introdução ao Livro do
Desassossego, Richard Zenith afirma que “dúvida e hesitação são os dois absurdos
pilares mestres do mundo segundo Pessoa [...] que é seu microcosmos” (in PESSOA,
2006, p. 13). Pessoa vivia e tinha consciência de estar vivendo em uma época de
crise. E, ainda, carregava consigo o sentimento trágico de viver na dúvida.
A citação do poeta português justifica-se por dois motivos: primeiro, porque
queremos deixar claro desde o início que a época de crise se caracteriza pelo
sentimento coletivo de desassossego; segundo, por ser Pessoa, com sua angústia
expressa em versos, a representação perfeita do conceito de “vida em crise”.
112
*
O homem em crise padece de uma incapacidade de desejar-se a si mesmo,
decorrente de sua incapacidade de ensimismarse. “Cuando alguien es incapaz de
desearse a sí mismo, porque no tiene claro un sí mismo que realizar, claro es que no
tiene sino pseudo-deseos, espectros de apetitos sin sinceridad ni vigor”. 220 Jean-
Pierre Lebrun e Charles Melman (LEBRUN, 2004) demonstram o surgimento, nos dias
atuais, de uma ‘nova economia psíquica’. Por vivermos em um mundo sem um projeto,
sem referenciais éticos capazes de direcionar as condutas das pessoas e,
consequentemente, sem o limite imposto pelo Outro, “o homem contemporâneo não
sabe o que é desejar, só sabe o que é consumir”. Em um mundo sem limites, somos
levados a evitar qualquer tipo de desprazer.221 Devido a isso, toda nossa técnica busca
apenas a satisfação desse apetite sem sinceridade nem vigor.
Heidegger em seus últimos dez anos de vida. Em entrevista que concedeu à revista
alemã Der Spiegel, em 1966, Heidegger manifestava sua inquietude:
uma coisa está clara. Onde a coletividade atua com mais força no
indivíduo do que ele nela, surge a decadência, pois com isso a
amplitude da qual tudo depende, o valor intelectual e moral do
indivíduo é necessariamente reduzido. Ocorre então a degradação e
a desmoralização da sociedade, pelas quais fica incapacitada de
entender os problemas que se apresentam a ela e de resolvê-los. Ou
crise, de desorientação, de não saber a que se ater. Sloterdijk, para fechar este
pequeno círculo, não se sentia grandemente otimista, posto que
reside na aparição das massas na vida histórica, mas em sua aparição a mandar por
si mesma” (LASAGA, Vida y filosofía, p. 82).
228 Ortega não define a massa pela situação social em que um indivíduo se encontra, mas por um
determinado comportamento que adota. Homens-massa são todos aqueles que não se exigem a si
mesmos, que seguem os comportamentos coletivos sem reflexão, que, não conseguindo
ensimismarse, vivem em constante alteração, que fazem isso ou qualquer outra coisa pela simples
razão de que todos fazem, que dispensam o fato de se ter razão. Em contrapartida, as minorias se
definem pela constante exigência e pela busca de coincidência consigo mesmas, pela vitalidade
ascendente. Em tempos ‘normais’, dirá Ortega, a minoria projeta sua influência sobre a massa e a
dirige.
120
foi criado pela cultura, mas ignora todo esforço que foi necessário, o que Lipovetsky
(2014) denomina “princípio do rebaixamento do sublime”.
A rebelião das massas, segundo Ortega, é o momento em que, pela primeira
vez, a história europeia é entregue à decisão do homem vulgar. 184 As massas se
tornaram insubordinadas, a direção social ficou a cargo de um tipo de homem que não
se interessa pelos princípios da civilização. E, como aponta Albert Schweitzer, “logo
que cheias do espírito da superficialidade, as instituições, trazidas a esta condição
pela sociedade, por sua vez exercem nela uma repercussão, e a infligem um vazio
espiritual” (SCHWEITZER, 2013, p. 25).
A incapacidade de pensar um projeto de vida coletiva — que sempre foi obra
das minorias — é apontada como causa da crise. Ao ignorar os ideais anteriores, a
perda de sua vigência, as massas acreditaram que era possível viver sem condução.
*
O irracionalismo é outro dos sintomas de uma época de crise. Segundo Ortega,
*
Outro sentimento presente em uma época de crise é a ironia. A ironia, o
“dissimular que se ignora algo”, como os dicionários a definem, é uma constatação da
235 Rorty descreve como missão dos ironistas: “Redescrevemos, nós mesmos, nossa situação e nosso
passado nesses termos, e comparamos os resultados com redescrições alternativas que usam os
vocábulos de figuras alternativas. Com essa redescrição contínua, nós, os ironistas, esperamos criar
para nós mesmos o melhor eu possível” (Contingência e ironia, p. 114).
236 Em seu Dicionário básico de filosofia, Hilton Japiassú e Danilo Marcondes definem o cinismo em
seu sentido moral como: “uma atitude individual que consiste no desprezo, por palavras e atos, das
convenções, das conveniências. da opinião pública, da moral admitida, ironizando todos aqueles que
a elas se submetem e adotando, em relação a eles, um certo amoralismo mais ou menos agressivo,
mais ou menos debochado”.
124
*
Em tempos de crise, somos levados a desprezar o passado. Entretanto, não
possuímos novos referenciais. Então, como se deteriora o repertório de soluções
pretéritas que permitia certa segurança de movermo-nos entre e com as coisas, a falta
de uma terra firme, de um plano, nos faz sentir desorientados. Neste estado, é próprio
do homem simular convicções e sustentar-se em palpites. São épocas de fingimento.
Isso leva esse homem desesperado a aceitar mais facilmente ideias salvadoras.237 É
comum que certos princípios sejam aceitos sem reflexão. Escreve Ortega:
237 Em O Livro do Desassossego, sublinha Fernando Pessoa: “Cansamo-nos de pensar, de ter opiniões
nossas, de querer pensar para agir. Não nos cansamos, porém, de ter, ainda que transitoriamente, as
opiniões alheias, para o único fim de sentir o seu influxo e não seguir o seu impulso” (2006, Trecho
239).
238 ORTEGA, El tema de nuestro tiempo, III, p. 170.
125
*
Em épocas de crise a salvação torna-se a prioridade para um grande número
de pessoas. O abalo dos alicerces da crença básica joga o homem na busca ansiosa
de portos seguros. Há uma tendência natural a se acreditar nisso. O homem em crise
ensaia a simplificação como método para tentar sair da crise. Eis como Ortega a
descreve:
239 Fernando Pessoa assim se percebeu: “Coisa arrojada a um canto, trapo caído na estrada, meu ser
ignóbil ante a vida finge-se” (2006, trecho 37).
240 ORTEGA, En torno a Galileo, V, p. 70.
Este sintoma não está presente apenas nas massas. Diante da dificuldade em
elaborar uma concepção de mundo que possa ser aceita por todos, os homens mais
sensíveis, incapazes de conter o fluxo descendente (ou enormemente tumultuado)
das coisas, buscam uma espécie de filosofia pessoal, uma filosofia para poucos. A
tranquilidade da alma, então, passa necessariamente por este antropologismo.
Ortega, nesse caso, cita, como exemplos, o helenismo, a decadência da filosofia
grega, o estoicismo, o apogeu do Império Romano (que, para alguns historiadores
significava o mesmo que o começo da decadência). Aqui, nesse extremo, ao centrar-
se em si, o homem acaba por descobrir-se de tal modo falso (absurdo) que nada mais
vê senão sua própria dissolução. Mesmo sinceras, essas filosofias pessoais não
deixam de ser uma falsificação.
Pessoas ou grupos seletos fogem do descompasso dos tempos buscando uma
verdade que, embora não se deixe extinguir, ou fragmentar-se, torna-se
irreconhecível. Em Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido, Peter L. Berger e
Thomas Luckmann encerram o ensaio apresentando exatamente uma proposta para
conter a crise que resulta numa simplificação.
12 CONCLUSÃO
Todo lo que haga, sienta, piense y diga será decidido y ejecutado sin
convicción positiva, es decir, sin efectividad; será un espectro de
hacer, sentir, pensar y decir, será la vita minima, una vida vacía de sí
misma, inconsistente, inestable.246
trouxe consigo a agonia dessa visão do mundo chamada modernidade, agonia que
vivemos agudamente no presente, e cujo outro nome é, precisamente, a crise do
século XX, primeiro capítulo de uma era de incerteza que está, apenas, começando”
(1991, p. 15).
Para Gilles Lipovetsky, um escritor dos nossos dias, seguimos vivendo dentro
da mesma modernidade vivida por Ortega, modernidade essa que hiperbolizou os
aspectos que ainda se apresentavam tímidos no final do século XIX, como “no
liberalismo globalizado, na mercantilização quase generalizada dos modos de vida,
na exploração da razão instrumental até a ‘morte’ desta, numa individualização
galopante” (2004, p. 53). Lipovetsky também caracteriza a hipermodernidade como
uma época de crise. Segundo ele, a atual crise das ideias é a principal causa da
angústia que se vê instalada em nosso tempo: “Narciso está menos enamorado de si
mesmo que aterrorizado pelo cotidiano” (2002, p. 25).
Seria a filosofia capaz de nos salvar da crise? Na conhecida entrevista a Der
Spiegel em 1966, questionado sobre a capacidade de influência da filosofia,
Heidegger respondia: “A filosofia não pode realizar imediatamente uma mudança no
atual estado do mundo. Isto vale não somente para a filosofia, mas para todos os
sentimentos e aspirações humanas. Só um deus pode salvar-nos ainda. Resta-nos a
única possibilidade de prepararmo-nos, pelo pensar e poetar, para a aparição de um
deus ou sua ausência no ocaso. Frente a ausência de um deus, nos afundamos.”
No colóquio de Darmstadt, em 1951, Heidegger narra o encontro que teve com
Ortega numa noite de festa:
Em 1941, Ortega havia constatado que a crise que diagnosticava era a maior
já enfrentada no Ocidente. Dez anos depois, muito menos otimista do que o de
costume, declara a morte da civilização ocidental:
134
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