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“Pide una caña brasilera”: as primeiras recepções de Jorge Luis

Borges no Brasil

Luiz Carlos de Barros Silva

Quando em 1966 Michel Foucault abriu "As Palavras e as Coisas" com a


inusual taxonomia chinesa e, assim, apresentou o nome de Jorge Luis Borges para
o mundo, o nome do argentino já havia ressoado em terras brasileiras. Aqui, como
em quase todo mundo, foi a partir dos anos 70 que Borges tornou-se conhecido pelo
grande público e pela mídia, virando quase do dia para a noite um fenômeno de
marketing editorial, apesar de, a esta altura, já ter escrito quase toda a sua obra.
Anos antes, em meados da década de 1950, Borges fez uma incursão na
literatura norte-americana com a publicação, em 1954, da primeira tradução para o
inglês de Funes el memorioso (Funes the Memorious), sob o direção dos
prestigiados editores William Phillips e Philip Rahv (cofundadores de uma das mais
influentes revistas literárias e políticas dos Estados Unidos, a Partisian Review). Foi
na década de 1960 que o premiado escritor argentino se transformou em um autor
“norte-americano”, tornando-se mais tarde quase um “ícone pop” e um “best-seller”.
Podemos observar o mesmo fenômeno no Brasil?
Desde a década de vinte a crítica brasileira se debruça sobre os espelhos, os
labirintos e os círculos borgeanos. Este itinerário vai justamente no sentido de
recolher e analisar a primeira fortuna crítica a respeito da obra de Borges no Brasil.
Começamos no dia 13 de maio de 1928, com um artigo no Diário Nacional, de
São Paulo, assinado por Mário de Andrade, cujo título, que pode soar meio vago, é
“A literatura modernista argentina”. Naquela época, porém, o termo “modernista”
parecia remeter principalmente a uma gama de novos autores que se havia
agrupado ao redor da revista Martín Fierro, dirigida por Evar Méndez, e que contava
com os nomes de Oliverio Girondo, Ernesto Palacio, Pablo Rojas Paz e Jorge Luis
Borges nas suas publicações. Em 1928 a revista já havia deixado de publicar, mas
os autores por ela divulgados seguiam sendo para Mário (1978, p. 99) o “mais vivo,
mais fecundo e mais típico da literatura moderna argentina”.
Apesar de reprovar certa tendência a publicar autores estrangeiros,
especialmente franceses, que em “revista sul-americana na maioria dos casos não
pode interessar”, Mário de Andrade (1978, p. 100) enaltece o espírito
“eminentemente nacional, culto e alegre” da revista, cuja figura de maior realce é um
moço de 28 anos, com três livros publicados, chamado Jorge Luis Borges.
A então pequena obra do jovem Borges parece ter despertado o mais
profundo interesse em Mário de Andrade, que afirma ser a produção do rapaz
superior a de autores já consagrados, como Oliverio Girondo e Ricardo Güiraldes.
Ainda assim, acha necessário lembrar que Borges havia passado muitos anos na
“estranja”.
A essa altura, Borges havia produzido uma obra que Mário classificou de
“surpreendente” e “que dentro de toda a cultura hispânica dele [de Borges], vê e
sente crioulamente”, “apesar de toda a influência européia, ou antes, aceitação
européia que a gente pode encontrar nas doutrinas estéticas que a revista prega ou
indica” (ANDRADE, 1978, p. 100). A respeito de Inquisiciones (1925), Mário de
Andrade afirma:

Este é um livro excepcionalmente bonito, duma elegância muito rara de


pensamento, verdadeira aristocracia que se educou na sobriedade, na
imobilidade da exposição e no raro das idéias. Além disso, apresentando
uma erudição adequada. Às vezes ri. Muito pouco.

E completa:

É verdade que em 'Inquisiciones' ele apresenta menos que pensamentos,


resultados de pensamentos, porém suponho uma espécie de dialética
hegeliana no jeito dele pensamentear. Um certo ceticismo decadente que
talvez lhe venha da cultura, excessiva pra idade tão moça que mostra só 28
anos (ANDRADE, 1978, p. 101).

Não perceber o riso ininterrupto e a ironia sob a melódica variação erudita,


como se a escrita de Borges soasse a um saber, no fim das contas, com ruídos
livrescos, constitui o maior deslize do escritor paulista nesta crítica. Emir Monegal,
que compilou e apresentou os cinco artigos de Mário de Andrade sobre a literatura
argentina moderna, não deixou passar impune essas afirmações, e rebate:

A verdade é que Borges, já nessa época, ria bastante, embora seu riso não
fosse uma gargalhada estomacal de Rabelais por exemplo, e sim o mais
irônico das melhores passagens do Quijote (sobretudo da segunda parte,
1615). Esse riso, que transparece nos jogos de palavras e conceitos que
implica um título como Inquisiciones, é profundamente criollo (MONEGAL,
1978, p. 51).
Embora Monegal contextualiza os deslizes de Mário de Andrade com relação
à suposta seriedade de Borges, o mesmo não aconteceu com a impropriedade da
alusão a Hegel. A referência ao filósofo alemão é altamente questionável em
Borges, que sempre se manteve fiel aos gregos, e que envelheceu resolvendo e
voltando a embaralhar os enigmas de Zenão e Pitágoras. Borges nunca parte em
busca de conceitos e sistemas, nem mesmo temas filosóficos; para ele, tempo e
espaço nunca foram evidências, nem condições necessárias ao pensamento, como
em Kant: basta lembrarmos dos contos Los teólogos, La otra muerte ou El Aleph.
Podemos inclusive afirmar uma certa desconfiança de Borges para com os filósofos
alemães. Além da alusão depreciativa de Heidegger no conto Guayaquil, Bioy
Casares (2006, p. 801) registrou no seu diário esta indignação de Borges, que havia
participado, junto a dois psicanalistas, de uma conferência sobre humorismo: “Uno
de los psicoanalistas citó a Hegel. ¿Qué puede saber de nada un bruto como Hegel?
Cuando hablan de humorismo citan siempre la opinión de Kant y de Hegel. [...]
Podrían también consultarlos sobre el corte y la quebrada”.
À parte esses detalhes, a crítica de Mário de Andrade não é apenas
precursora, mas surpreende pela inteligência e a correção de sua leitura, que
pressentiu o Borges por vir; um Borges, que assim como Mário, lançou incertezas
sobre a estabilidades dos gêneros, afinando as fronteiras entre a ficção e o ensaio;
ambos moldaram personagens insólitos, Macunaíma ou Carlos Argentino Daneri,
que revogam a idéia de sujeito linear e imutável.
Outro brasileiro a ler o jovem Borges foi o poeta Manuel Bandeira. Embora
não tenha deixado comentários à obra do argentino, Bandeira nos anos 40 já havia
lido ao menos Fervor en Buenos Aires, e desse livro, escolhe o poema Un patio para
compor os seus “Poemas Traduzidos”, de 1945. Essa antologia, além de contar com
nomes célebres das letras hispânicas, como J. R. Jiménez, J. A. Silva, Rubén Darío,
F. G. Lorca, ou a menos conhecida Sor Juana, foi a primeira ocasião que um texto
de Borges foi publicado em português.
A tradução do poema realizada por Bandeira é baseada na edição de 1923 de
Fernor en Buenos Aires, uma vez que posteriormente, por ocasião das obras
completas, Borges enxuga os “barroquismos” da sua obra juvenil e suprime alguns
versos de Un patio. Mas o trabalho foi em vão. Borges extirpou os quatro versos,
cujos vestígios, leais ou delatores, sobrevivem apenas nas traduções. Diferente de
Borges, que os apagou, Bandeira (1945, p. 29) certamente aprovou estes versos: “O
pátio é a janela/ Por onde Deus olha as almas"
Posteriormente, em 1964, o crítico Fausto Cunha, fascinado por Borges,
declarou-o, ao mesmo tempo, nada menos que Deus e labirinto. O seu ensaio
“Introdução a Borges como Deus e como Labirinto” faz parte do livro A luta literária.
Foi o suficiente para que Augusto Meyer se propusesse a investigar a presença de
Deus em El Aleph, ou no próprio Borges, chegando à seguinte conclusão: “Este
Deus de Borges, se não me engano, deve ser parente próximo do Deus de
Heráclito”. Uma conclusão que, certamente, seria confirmada pelo próprio Borges. A
profícua habilidade crítica de Augusto Meyer se exibe quando escreve:

Tudo isso envolve necessariamente, além de uma arte soberana e quase


escandalosa no governo da lucidez poética, sempre a cavaleiro da intuição
criadora, certa franja de paralogia metafísica, impregnada de humorismo
transcendente, aquele capitoso humour borgiano, que vai espicaçando o
nosso espanto com o arabesco renovado e aberto de uma fantasia
desatada em imprevisto e agilidade. “El pensamento más fugaz obedece a
un dibujo invisible y puede coronar, o inaugurar, una forma secreta”. Há em
Borges, a um só tempo, um zaori e um diabo rengo, um olho clarividente, a
par de um olho vesgo e turvo, que mistura as coisas por gosto e magia, para
que pareçam mais ameaçadas, mais imprecisas e mais patéticas. Da
imprecisão, uma imprecisão lúcida e precisa, ele soube fazer um acerado
instrumento de sugestões poéticas. Fausto Cunha, ao comentar um ensaio
de Jorge Luis Borges, informa: “No mesmo artigo, aconselha a hipótese de
que a imprecisão é tolerável ou verossímil na literatura, porque a ele
tendemos sempre na realidade”. Já dizia Nietzsche, com implacável ironia,
que era essa a função dos poetas: toldar as águas, para que pareçam mais
profundas (MEYER, 1980, p. 43).

Em seguida, Augusto Meyer expõe, desde a nossa experiência como leitor de


Borges, o jogo vertiginoso no qual o autor nos permite participar, e que ele próprio
participa, existindo na “história contada, para que possa de algum modo andar com
as próprias pernas e não pelo braço do autor”. Diante de tal onipresença, “os
escravos de Borges (os seus leitores) tentamos de vez em quando sacudir o seu
jugo, num impulso de humana rebeldia. Parece-nos que Borges abusa do direito de
ser autor, ou melhor, do direito de ser Deus” (MEYER, 1980, p. 45). Augusto Meyer
antecipa no plano textual, sem o saber, a latria que se observa no “fenômeno
Borges”, e que tão bem foi exposta por Josefina Ludmer (2000) no seu ensaio
¿Cómo salir de Borges?.
Porém, diferente do que formularam Fausto Cunha e Augusto Meyer, Borges
tem muito pouco de divino. O pensamento de Borges se desdobra em
autorefutações, correndo o risco de ser aniquilado por si próprio. Quanto à
divindade, podemos supor que, se o deus de Spinoza, é "a soma das leis naturais e
físicas do universo", o deus-Borges parece divertir-se em revelar a incoerência que,
como parasita, se hospeda em toda lei e em toda certeza.
Com a História da Literatura Ocidental (1959-1966), de Otto Maria Carpeaux,
a crítica brasileira parece fazer eco de um novo Borges: um escritor maduro que
“integrou os elementos irracionalistas do criacionismo num sistema filosófico cuja
tese principal é o caráter cíclico do Tempo e, portanto, a reversibilidade de todos os
acontecimentos”. Carpeaux, diferente dos críticos anteriores, não percebe qualquer
característica divina em Borges, mas antes nota um certo engenho diabólico, uma
mente capaz de tudo embaralhar, de cessar para sempre a calma que o humanismo
subjetivo gozava e produzir uma literatura “altamente fantástica”:

Mas em vez de um tratado de metafísica, escreveu contos filosóficos, as


“ficciones”, altamente fantásticas, engenhosamente construídas e baseadas
em “notas eruditas” diabolicamente inventadas, com a ajuda de toda a
erudição fabulosa de que Borges dispõe realmente (CARPEAUX, 2008, p.
2562).

À guisa de conclusão, poderíamos nos perguntar se todo o afeto e atenção


que o Brasil dedicou a Borges por meio dos nossos críticos e editores foi
correspondido. Não vamos nos deter no diário de Bioy Casares, onde Borges diz
com todas as letras que detestava o Brasil: “del Brasil dice que lo mejor sería
borrarlo del mapa” (2006, p. 1061). O certo é que Borges parece não ter se
interessado muito por nossa literatura, salvo alguma vaga referência a Euclides da
Cunha, e perdido um artigo de 1933 publicado na Revista Multicolor de los Sábados,
sobre o livro “Nordeste e outros poemas do Brasil”, do esquecido paulista poeta
Ribeiro Couto. O historiador brasileiro Pedro Correia do Lago coincidiu com Borges
por três vezes, duas delas no Brasil, o que o levou a escrever o artigo Três
encontros com Borges (2007), publicado pela Revista Piauí. Afirma Lago:

[...] era e admirava Os Sertões, de Euclides da Cunha, e fora em Santana


do Livramento que vira pela primeira vez matar um homem. Perguntei-lhe
porque em seus contos as más notícias, freqüentemente, vinham do Brasil.
Não adiantou: ele só falou do que queria (LAGO, 2007, s.p.).

No conjunto da obra de Borges, o Brasil, este lugar onde havia estado Burton,
sempre aparece como um lugar distante. Por vezes aparece no termo “Guerra del
Brasil’ (1974, p. 162, 179, 561, 563 e 1056), que a historiografia brasileira nomeia
por “Guerra do Paraguai”, conflito que mantém conexões com a família de Borges.
No Brasil é onde morava o pai de Emma Zunz; David Brodie, autor do informe
homônimo, havia evangelizado em terras brasileiras; no Brasil havia estado Roger
Charles Tichborne, por quem Tom Castro se passaria mais tarde; do Brasil havia
chegado A First Encyclopaedia of Tlón. Vol. XI. Hlaer to Jangr.
Em meados dos anos 80, a editora Hyspamérica fez uma proposta ao autor
de “Ficciones”: selecionar 100 livros que considerasse essenciais e escrever um
prólogo para cada um. Sua morte deixou o projeto inacabado, mas a coleção foi
editada com 75 volumes e virou objeto de culto. Não há nenhum brasileiro nessa
lista, que conta com um português, Eça de Queirós, com seu O Mandarim. O fato
não é motivo de lástima, uma vez que entre os 75 títulos dessa “biblioteca pessoal”
não aparecem obras de Shakespeare e Dante.
Em outubro de 1985, Borges concedeu uma das suas últimas entrevistas ao
jornalista brasileiro Roberto D´Avila. Nessa conversa, Borges retoma tópicos comuns
a suas entrevistas: a preferência do reler ao ler, a ignorância sobre a literatura
contemporânea, a genealogia, para concluir com a frase: “Sou um pequeno escritor
sul-americano, um mínimo argentino”. O entrevistador, desconcertado diante da
suposta modéstia de Borges, decide afirmar: “Mas o senhor é o maior escritor do
mundo!”, ao que Borges responde rindo: “Pobre mundo!”. Neste “pobre mundo”
estão Borges e o Brasil, que mantiveram, em medidas desiguais, uma relação de
afeto e proximidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIOY CASARES, A. Borges. Barcelona: Editorial Destino, 2006.


BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1974.
LAGO, P. C. do. Três encontros com Borges. Revista Piauí, nº. 14, nov. 2007.
Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/tres-encontros-com-borges/.
Acesso em: 23 dez. 2023.
MONEGAL, E. R.. Mário de Andrade/Borges. Trad., a partir do manuscrito, de Maria
Augusta da Costa Vieira Helene, São Paulo: Perspectiva, 1978.

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