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Primeiro Borges No Brasil
Primeiro Borges No Brasil
Borges no Brasil
E completa:
A verdade é que Borges, já nessa época, ria bastante, embora seu riso não
fosse uma gargalhada estomacal de Rabelais por exemplo, e sim o mais
irônico das melhores passagens do Quijote (sobretudo da segunda parte,
1615). Esse riso, que transparece nos jogos de palavras e conceitos que
implica um título como Inquisiciones, é profundamente criollo (MONEGAL,
1978, p. 51).
Embora Monegal contextualiza os deslizes de Mário de Andrade com relação
à suposta seriedade de Borges, o mesmo não aconteceu com a impropriedade da
alusão a Hegel. A referência ao filósofo alemão é altamente questionável em
Borges, que sempre se manteve fiel aos gregos, e que envelheceu resolvendo e
voltando a embaralhar os enigmas de Zenão e Pitágoras. Borges nunca parte em
busca de conceitos e sistemas, nem mesmo temas filosóficos; para ele, tempo e
espaço nunca foram evidências, nem condições necessárias ao pensamento, como
em Kant: basta lembrarmos dos contos Los teólogos, La otra muerte ou El Aleph.
Podemos inclusive afirmar uma certa desconfiança de Borges para com os filósofos
alemães. Além da alusão depreciativa de Heidegger no conto Guayaquil, Bioy
Casares (2006, p. 801) registrou no seu diário esta indignação de Borges, que havia
participado, junto a dois psicanalistas, de uma conferência sobre humorismo: “Uno
de los psicoanalistas citó a Hegel. ¿Qué puede saber de nada un bruto como Hegel?
Cuando hablan de humorismo citan siempre la opinión de Kant y de Hegel. [...]
Podrían también consultarlos sobre el corte y la quebrada”.
À parte esses detalhes, a crítica de Mário de Andrade não é apenas
precursora, mas surpreende pela inteligência e a correção de sua leitura, que
pressentiu o Borges por vir; um Borges, que assim como Mário, lançou incertezas
sobre a estabilidades dos gêneros, afinando as fronteiras entre a ficção e o ensaio;
ambos moldaram personagens insólitos, Macunaíma ou Carlos Argentino Daneri,
que revogam a idéia de sujeito linear e imutável.
Outro brasileiro a ler o jovem Borges foi o poeta Manuel Bandeira. Embora
não tenha deixado comentários à obra do argentino, Bandeira nos anos 40 já havia
lido ao menos Fervor en Buenos Aires, e desse livro, escolhe o poema Un patio para
compor os seus “Poemas Traduzidos”, de 1945. Essa antologia, além de contar com
nomes célebres das letras hispânicas, como J. R. Jiménez, J. A. Silva, Rubén Darío,
F. G. Lorca, ou a menos conhecida Sor Juana, foi a primeira ocasião que um texto
de Borges foi publicado em português.
A tradução do poema realizada por Bandeira é baseada na edição de 1923 de
Fernor en Buenos Aires, uma vez que posteriormente, por ocasião das obras
completas, Borges enxuga os “barroquismos” da sua obra juvenil e suprime alguns
versos de Un patio. Mas o trabalho foi em vão. Borges extirpou os quatro versos,
cujos vestígios, leais ou delatores, sobrevivem apenas nas traduções. Diferente de
Borges, que os apagou, Bandeira (1945, p. 29) certamente aprovou estes versos: “O
pátio é a janela/ Por onde Deus olha as almas"
Posteriormente, em 1964, o crítico Fausto Cunha, fascinado por Borges,
declarou-o, ao mesmo tempo, nada menos que Deus e labirinto. O seu ensaio
“Introdução a Borges como Deus e como Labirinto” faz parte do livro A luta literária.
Foi o suficiente para que Augusto Meyer se propusesse a investigar a presença de
Deus em El Aleph, ou no próprio Borges, chegando à seguinte conclusão: “Este
Deus de Borges, se não me engano, deve ser parente próximo do Deus de
Heráclito”. Uma conclusão que, certamente, seria confirmada pelo próprio Borges. A
profícua habilidade crítica de Augusto Meyer se exibe quando escreve:
No conjunto da obra de Borges, o Brasil, este lugar onde havia estado Burton,
sempre aparece como um lugar distante. Por vezes aparece no termo “Guerra del
Brasil’ (1974, p. 162, 179, 561, 563 e 1056), que a historiografia brasileira nomeia
por “Guerra do Paraguai”, conflito que mantém conexões com a família de Borges.
No Brasil é onde morava o pai de Emma Zunz; David Brodie, autor do informe
homônimo, havia evangelizado em terras brasileiras; no Brasil havia estado Roger
Charles Tichborne, por quem Tom Castro se passaria mais tarde; do Brasil havia
chegado A First Encyclopaedia of Tlón. Vol. XI. Hlaer to Jangr.
Em meados dos anos 80, a editora Hyspamérica fez uma proposta ao autor
de “Ficciones”: selecionar 100 livros que considerasse essenciais e escrever um
prólogo para cada um. Sua morte deixou o projeto inacabado, mas a coleção foi
editada com 75 volumes e virou objeto de culto. Não há nenhum brasileiro nessa
lista, que conta com um português, Eça de Queirós, com seu O Mandarim. O fato
não é motivo de lástima, uma vez que entre os 75 títulos dessa “biblioteca pessoal”
não aparecem obras de Shakespeare e Dante.
Em outubro de 1985, Borges concedeu uma das suas últimas entrevistas ao
jornalista brasileiro Roberto D´Avila. Nessa conversa, Borges retoma tópicos comuns
a suas entrevistas: a preferência do reler ao ler, a ignorância sobre a literatura
contemporânea, a genealogia, para concluir com a frase: “Sou um pequeno escritor
sul-americano, um mínimo argentino”. O entrevistador, desconcertado diante da
suposta modéstia de Borges, decide afirmar: “Mas o senhor é o maior escritor do
mundo!”, ao que Borges responde rindo: “Pobre mundo!”. Neste “pobre mundo”
estão Borges e o Brasil, que mantiveram, em medidas desiguais, uma relação de
afeto e proximidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS